29.11.2014 Views

Folha de Sala - Culturgest

Folha de Sala - Culturgest

Folha de Sala - Culturgest

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Esta Jerusalém<br />

Depois do trabalho do Vasco Mendonça<br />

para a música do Júlio César <strong>de</strong><br />

Shakespeare no S. Luiz, tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

me oferecer para encenar uma ópera<br />

sua, se alguma vez a escrevesse. Tinha<br />

gostado da música que então escreveu<br />

e tinha gostado <strong>de</strong> como trabalháramos<br />

em conjunto e em função<br />

do palco. Longe estava eu <strong>de</strong> pensar<br />

que nessa altura já ele tinha o projecto<br />

da Jerusalém. Foi logo, portanto, que<br />

começámos a pensar nisso e a tentar<br />

encontrar a orquestra, o maestro, a<br />

sala, o financiamento e um produtor. E<br />

a escolher os cantores. Não foi difícil<br />

juntar os artistas. O Gonçalo M. Tavares<br />

já estava metido nisso antes <strong>de</strong> mim,<br />

claro, e à cabeça. Criou-se a pouco e<br />

pouco um grupo <strong>de</strong> artistas que se<br />

conheciam ainda mal mas que acabaram<br />

enten<strong>de</strong>ndo-se muito bem. E também<br />

não foi difícil encontrar porta aberta na<br />

sala da <strong>Culturgest</strong>. Ao contrário do que<br />

é costume, mas como seria <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar, a<br />

ópera já foi nascendo com os seus intérpretes.<br />

O libreto elaborado a pensar num<br />

espectáculo, a música <strong>de</strong>finida a pensar<br />

também no palco e nos cantores e no<br />

maestro e na orquestra que lhe iriam dar<br />

corpo. Todo o processo foi novida<strong>de</strong> boa<br />

para mim, que nunca tinha ousado lançar-me<br />

a encenar uma ópera sem antes<br />

a po<strong>de</strong>r ouvir. Mais difícil terá sido a<br />

produção do espectáculo nas condições<br />

<strong>de</strong> financiamento a que tivemos <strong>de</strong> estar<br />

sujeitos e amarga a sensação <strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong> alguma forma não estávamos, neste<br />

processo que consi<strong>de</strong>ro “natural” e por<br />

isso exemplar, a correspon<strong>de</strong>r ao mo<strong>de</strong>lo<br />

previsto para ser mais apoiado. Mas creio<br />

que valeu a pena. Uma nova ópera <strong>de</strong><br />

um novíssimo compositor português aí<br />

está. Com uma linguagem também nova.<br />

Orgulho-me <strong>de</strong> ter colaborado nisso.<br />

Percebi que no projecto do Vasco a<br />

própria concepção do libreto e a função<br />

da música no espectáculo, tentavam<br />

uma outra i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “ópera” e fugiam a<br />

contar uma história. E que se colavam<br />

à própria escrita do romance, que<br />

<strong>de</strong>sconstrói em fragmentos, que se vão<br />

<strong>de</strong> várias maneiras combinando, uma<br />

noite, uma noite <strong>de</strong> mortes em que<br />

todas as histórias individuais se cruzam<br />

na fronteira invisível entre vida e morte<br />

e se acrescentam à pouca memória dos<br />

mortos <strong>de</strong> guerra, e reflectem (mal) a<br />

História. Penso que é para uma busca da<br />

História perdida que estes fragmentos<br />

remetem o espectador na imagem que<br />

o <strong>de</strong>safiam a construir e que talvez seja<br />

a do nosso tempo, ou a das cida<strong>de</strong>s que<br />

conhecemos, todas cegas, todas metidas<br />

na morte herdada e na morte vivida<br />

cada dia, sem futuro visível, cheias <strong>de</strong><br />

gente <strong>de</strong>sesperada à procura <strong>de</strong> um sentido<br />

que as tornasse nalguma Jerusalém,<br />

cida<strong>de</strong> única e <strong>de</strong> todas as religiões.<br />

Afinal a solidão, a esquizofrenia, a loucura.<br />

Seis personagens, seis vozes. Em<br />

nome da multidão.<br />

Percebi que também a música não<br />

contaria essa história. E que mais do que<br />

a mão que no romance recorta os fragmentos<br />

<strong>de</strong> tempo e os tempos <strong>de</strong> cada<br />

personagem, ela seria a voz <strong>de</strong> alguém<br />

que os reconstrói e sobretudo os sente.<br />

Fragmentariamente e em vários modos<br />

diferentes. E tentámos com o Gonçalo<br />

construir uma estrutura <strong>de</strong> espectáculo<br />

que os agregasse:<br />

1. uma abertura ou Introdução puramente<br />

orquestral com uma imagem<br />

global <strong>de</strong> todas as existências;<br />

2. uma primeira parte (Noite 1) em que<br />

as histórias daquela noite começassem a<br />

<strong>de</strong>senhar-se na coexistência simultânea<br />

em cena <strong>de</strong> todas as pequenas acções<br />

das personagens e <strong>de</strong> todas as solidões;<br />

3. uma zona central <strong>de</strong> vários<br />

fragmentos <strong>de</strong> loucura (árias, duetos,<br />

tercetos e coros) a que o Vasco <strong>de</strong>u<br />

os nomes, em diferentes combinações,<br />

das personagens (Mylia, Theodor, Ernst,<br />

Kaas, Hinnerk, Hanna), e que revelaria<br />

o mundo interior e os fragmentos <strong>de</strong><br />

memória <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas figuras<br />

escolhidas na multidão;<br />

4. uma conclusão (Noite 2) que<br />

retomasse a história daquela noite num<br />

modo finalmente narrativo.<br />

Acabou por surgir ainda a vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> epílogo com a voz<br />

simultânea das duas mulheres e a fusão<br />

Fotografia <strong>de</strong> ensaio © Alexandre Almeida<br />

<strong>de</strong> duas frases suas, sintoma do vazio<br />

ou da <strong>de</strong>sesperada pacificação a que<br />

conduz a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos e <strong>de</strong><br />

cada um se conhecer, a sua infelicida<strong>de</strong>:<br />

Uma queimadura. A dor passou.<br />

Foi a esta maneira <strong>de</strong> organizar a música<br />

que tentei correspon<strong>de</strong>r construindo<br />

variantes, várias maneiras <strong>de</strong> ter em<br />

cena as seis figuras, e <strong>de</strong> organizar os<br />

seus movimentos e as suas presenças.<br />

A cada uma das partes tentei dar uma<br />

lógica cénica diferente. Sem medo da<br />

<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>. E encontrei na repetida<br />

indicação no romance <strong>de</strong> que cada<br />

personagem procura no espelho a sua<br />

imagem, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> espelho<br />

que fosse, quer os diferentes espelhos<br />

em que cada um se busca, quer a janela<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> Ernst se quer atirar, ou <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

6 7

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!