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Revista Piaui - Defensoria

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Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />

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20/9/2011<br />

Edição 43 > _anais da medicina<br />

Como mudar de sexo<br />

A vida, as angústias e as cirurgias que transexuais fazem com o doutor Eloísio Alexsandro<br />

num hospital público do Rio de Janeiro<br />

por Clara Becker<br />

Em uma manhã de fevereiro, um jovem estudante de letras de cabelos curtos, espinhas no rosto e<br />

vestido com roupas largas em estilo grunge, esperava ao lado da mãe a vez de ser atendido no<br />

ambulatório de urologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, na Zona Norte do<br />

Rio. M., como pediu para ser chamado, tem 22 anos, mas parece um adolescente. Seu jeito frágil e<br />

sereno contrastava com o da mulher, que parecia ansiosa e desconfortável por estar ali. Ao chegar,<br />

o médico Eloísio Alexsandro, chefe do ambulatório, sugeriu que conversassem em separado e pediu<br />

que ela entrasse primeiro no seu consultório.<br />

Depois de algumas perguntas, a mãe lhe disse, com os olhos marejados: "Eu já li tudo na internet,<br />

doutor. Ela não é assim. Ela é virgem. Como alguém que nunca transou com homem nem com<br />

mulher pode saber se é transexual" M., que nasceu e foi criada como menina, passava pelo<br />

primeiro estágio de um longo tratamento destinado a transexuais que, na maioria dos casos, acaba<br />

em uma cirurgia de mudança de sexo.


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Um mês antes, M. tomara a primeira dose de testosterona, o hormônio responsável pelo<br />

desenvolvimento das características masculinas. Teve um surto de acnes no rosto e pelos grossos<br />

lhe brotaram nas pernas. A transformação definitiva apavorava a mãe. "Pelo que eu sei, transexuais<br />

jogam com os brinquedos do sexo oposto, e ela nunca fez isso", disse a senhora. "Como vocês<br />

abraçam a causa assim, doutor"<br />

Com um tom de voz seguro, o médico lhe disse que o processo de mudança de sexo era lento e<br />

progressivo. Assegurou que a maior parte das modificações hormonais era reversível. E disse que a<br />

cirurgia para mudar o aparelho genital - a parte do processo que mais assusta os familiares -<br />

ocorreria no final do tratamento, e só depois do aval de um psicólogo e um psiquiatra.<br />

A mulher ainda parecia transtornada. O médico lhe disse que aceitar a "condição" de seu rebento<br />

seria uma prova de amor. "Eu tento, doutor, mas não consigo chamá-la pelo nome masculino",<br />

respondeu.<br />

A longa jornada de M. incluirá uma série de injeções de testosterona, que farão com que a voz<br />

engrosse, a barba cresça e a sua agressividade aumente. A menstruação cessará e as mamas, que<br />

hoje são esmagadas por faixas apertadas, serão extirpadas cirurgicamente. Outra operação plástica<br />

dará um contorno mais masculino ao peitoral, delimitando o tórax. Se M. quiser, também poderá<br />

fazer uma histerectomia e terá seu útero, ovários e trompas removidos.<br />

Ele terá duas alternativas quanto ao órgão sexual. Se responder bem à testosterona, seu clitóris<br />

poderá ter triplicado de tamanho e, eventualmente, funcionará como uma espécie de micropênis.<br />

Daí, bastará costurar os grandes lábios para formar um escroto na sua base.<br />

A outra hipótese é uma neofaloplastia, procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a<br />

partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. Ainda assim, não há<br />

garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão razoáveis. Como o<br />

procedimento é experimental, o paciente precisa concordar com o risco.<br />

Na sala de Eloísio Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto, em meio a tubos de ensaio, jalecos, pilhas<br />

de livros e computadores, um quadro na parede chama a atenção. É uma reprodução de A Mulher<br />

Barbuda, tela pintada em 1631 pelo espanhol José de Ribera, que fez carreira na Itália. Ela mostra<br />

uma mulher de feições severas, nariz largo, olhos escuros e barba negra à Rasputin, amamentando<br />

uma criança. Ao seu lado, está o marido, também barbado. A senhora barbuda seria Magdalena<br />

Ventura de los Abruzos, a quem o duque de Alcalá, vice-rei de Nápoles, teria encarregado Ribera de<br />

pintar o retrato. "Desconfio que ela tivesse um tumor benigno na glândula adrenal", disse<br />

Alexsandro, comentando a aparência masculinizada da figura.<br />

O médico gasta tempo e dinheiro estudando história da arte médica, a disciplina que procura<br />

detectar patologias em pinturas e esculturas. Entre os iniciados no assunto, é praticamente<br />

consenso que a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, sofria de arteriosclerose. Alexsandro discorda: "É


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um diagnóstico leviano."<br />

O urologista não fica só nas obras clássicas. Um dia, na saída do ambulatório do hospital, ele<br />

comentou o filme argentino xxy, um de seus preferidos. A fita conta a história de Alex, uma<br />

hermafrodita cujos pais resolveram não fazer a operação de definição de sexo, para que ela pudesse<br />

decidir mais tarde. "xxy tem um erro médico crucial", disse Alexsandro. "Tem uma cena em que ela<br />

aparece fazendo xixi em pé. Mas, pelo tipo de hermafroditismo dela, em que a uretra fica na vagina<br />

e não no pênis, ela deveria fazer xixi sentada."<br />

Alexsandro é alto, magro e, com 39 anos, seus cabelos começam a pratear nas têmporas. Fala<br />

sempre de maneira enfática e gesticulando. Com frequência, recorre a desenhos e rabiscos para<br />

ilustrar raciocínios. É solteiro, não tem filhos e vive sozinho no Rio. Trabalha quase quinze horas<br />

por dia, seis dias por semana. Com pouco tempo para comer, sempre anda com uma caixa de Bis<br />

branco para driblar a baixa ingestão calórica. Tem poucos amigos e, nas escassas horas vagas, zanza<br />

sozinho por livrarias e sebos atrás de raridades.<br />

No trabalho, seus colegas o têm como rígido, controlador e exigente, sobretudo em questões de<br />

disciplina. Os residentes novatos se assustam quando, ao lhe darem uma resposta, o chefe retruca,<br />

áspero: "Na medicina não tem muito ou pouco. Quero números, eu quero saber quantos mililitros o<br />

paciente urinou!"<br />

Quando era criança, em Tarumirim, no interior de Minas Gerais, Alexsandro brincava de cientista<br />

com os peixes que pegava no córrego da fazenda em que morava. Repetia o que havia aprendido<br />

com as experiências de Mendel, e promovia o cruzamento de peixes com cor de olhos diferentes,<br />

para produzir um exemplar recessivo. Alterava os formatos das caudas, a cor das escamas e<br />

sonhava em descobrir uma espécie nova.<br />

Na hora de decidir o que seria na vida, às vésperas do vestibular, disse ao pai que queria estudar<br />

biologia. Com um filho engenheiro e uma advogada, o pai achou melhor que ele fosse médico.<br />

Alexsandro aceitou. Formou-se na Universidade Federal do Espírito Santo. Fez especializações em<br />

urologia pediátrica e cirurgia reconstrutora genital na Espanha, nos Estados Unidos e na Bélgica.<br />

Na Europa, familiarizou-se com técnicas inovadoras ao operar croatas, sérvios e bósnios que<br />

tiveram o pênis mutilado durante as guerras balcânicas dos anos 90.<br />

A experiência profissional o leva a dizer que é uma temeridade responder, de maneira padrão, à<br />

mais prosaica das perguntas de pais de recém-nascidos: é menino ou menina "O obstetra, depois<br />

que bate no bumbum do neném, deveria dizer: 'tem falo' ou 'não tem falo'", afirmou.<br />

Há pouco mais de quatro anos, Linda (que preferiu não revelar o seu sobrenome) estava desolada e<br />

sem esperanças. Havia mandado cartas para todos os programas de televisão, pedindo que a<br />

ajudassem a ser operada para mudar de sexo. Chegou a interpelar desconhecidos na rua para<br />

perguntar se sabiam de alguém que pudesse realizar a cirurgia.


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Com 31 anos, Linda é morena, tem cabelos longos, negros e alisados, nariz fino, sobrancelhas<br />

desenhadas à pinça e unhas compridas e bem cuidadas. Suas mãos e pés, no entanto, são grandes.<br />

Tem os braços musculosos, os ombros largos e no rosto vê-se a marca azulada da barba, resultado<br />

de uma eletrólise ainda não concluída. "Acho que quando Deus estava me fazendo, se distraiu e<br />

trocou meu sexo", Linda me disse.<br />

Ela nasceu menino. Desde pequena, na Paraíba, sempre teve certeza de que era uma mulher.<br />

Sentia-se estranha num corpo de homem e não suportava se olhar no espelho. Ao falar sobre sua<br />

infância, só sorri quando menciona que era confundida com uma menina por amigas da mãe.<br />

Lembrou-se de uma vez, quando tinha 11 anos, botou um vestido e pintou os lábios de vermelho.<br />

Seu pai ficou possesso. Apanhou dele várias vezes, que lhe gritava: "Vira homem, fala que nem<br />

homem!" Os onze irmãos também nunca aceitaram os seus modos femininos.<br />

Linda não sabe explicar o motivo, mas sua voz jamais engrossou. Ao falar com ela pelo telefone,<br />

ninguém diria que há um homem do outro lado da linha. Nunca fez xixi em pé e sempre ficou<br />

nervosa ao se tocar. Aos 16 anos, depois de meses ingerindo hormônios femininos por conta<br />

própria, pequenos seios brotaram em seu tórax. Insatisfeita, pediu a uma amiga travesti que lhe<br />

injetasse silicone industrial - comprado numa loja de autopeças - no peito, no culote e nos glúteos.<br />

Ficou como se tivesse duas bolas de rúgbi presas ao tronco. Mais alguns meses e o implante caseiro<br />

se deslocou, fazendo com que os seios artificiais parassem na altura do umbigo. Conheceu no Rio<br />

uma transexual que lhe contou as proezas do doutor Alexsandro.<br />

Boa parte dos transexuais que chegam a Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto resume assim a sua<br />

angústia: é como estar aprisionado dentro de um corpo do sexo oposto. O transexual é alguém que<br />

se olha no espelho e não se reconhece. Nasceu com cromossomos, órgãos genitais e hormônios de<br />

um sexo, mas tem a mente, as aspirações, desejos e inquietações próprias do outro. Ele é diferente<br />

do travesti que, em geral, está satisfeito com sua genitália e se sente confortável em se vestir como o<br />

sexo oposto. E é ainda mais diverso do hermafrodita (ou intersexo, o termo usado pelos<br />

especialistas), a pessoa com alterações anatômicas fora do padrão masculino e feminino.<br />

A corredora sul-africana Caster Semeya, medalha de ouro nos 800 metros do Mundial de Atletismo<br />

de Berlim, no ano passado, é um exemplo. Exames clínicos mostraram que, apesar da genitália<br />

feminina, ela não tem útero ou ovários. Seu nível de testosterona é três vezes maior do que o da<br />

média feminina, pois é produzido por testículos internos atrofiados. A Federação Internacional de<br />

Atletismo deliberou que Caster pode ficar com a medalha de ouro. Mas não foi decidido se ela<br />

poderá voltar a competir.<br />

O hermafrodita costuma nascer com um pênis e uma vagina, a chamada genitália ambígua. Nesses<br />

casos, Alexsandro é chamado para dar um parecer e, quando indicado, intervir cirurgicamente para<br />

determinar o sexo do bebê. A situação é considerada uma emergência médica porque os pais<br />

precisam da definição sexual para registrar a criança.<br />

Certa vez, um juiz lhe deu 24 horas para decidir sobre um caso em que, segundo o magistrado, a


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questão era simples porque havia só duas hipóteses: ou o bebê era homem ou mulher. "Fiz cópias<br />

dos capítulos que se referiam ao assunto na literatura médica e mandei tudo para o juiz. Ele não me<br />

importunou mais", disse o médico.<br />

Em 2003, Alexsandro fez sua primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Um transexual havia<br />

conseguido uma autorização judicial para se tornar fisicamente mulher e foi encaminhado ao Pedro<br />

Ernesto, referência em urologia reconstrutora genital. Na especialização no exterior, Alexsandro já<br />

havia operado transexuais e por isso se dispôs ao trabalho. Nunca mais parou. "Aconteceu<br />

naturalmente", disse. "Nunca pensei em trabalhar com pacientes transexuais." Sua mãe e irmãos<br />

não sabem exatamente como ele ganha a vida.<br />

"Não tem questão mais gratificante", disse Alexsandro. "Os benefícios para a paciente são<br />

inegáveis, elas choram de felicidade. O agradecimento é sincero, vem de dentro, não é cordial. A<br />

emoção delas motiva o meu trabalho, é contagiante."<br />

Alexsandro diz que tem como modelo o homem universal da Renascença, encarnado por Leonardo<br />

da Vinci, que tinha conhecimentos em múltiplas áreas. Além das cirurgias no Pedro Ernesto, ele<br />

também opera na Santa Casa, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da<br />

Universidade Gama Filho, onde orienta uma dezena de alunos de mestrado e doutorado, e<br />

coordena os departamentos de urologia reconstrutora e trauma da Sociedade Brasileira de<br />

Urologia, seções nacional e estadual.<br />

Aos 18 anos, Linda deixou Campina Grande e partiu para o Rio de Janeiro. Vendeu balas em sinais,<br />

foi feirante, pedreira e se prostituiu, mas era incapaz de usar seu membro ativamente em relações<br />

sexuais. Por isso, não conseguia clientes, que a abordavam perguntando pelo tamanho do seu<br />

pênis. Em 2004, descobriu ter o vírus da Aids.<br />

Desde então, Linda ganha a vida fazendo megahair, implante de cabelo, em homens e mulheres.<br />

Mora numa quitinete que construiu sozinha na Ilha do Governador. "Carregava baldes de cimento<br />

com salto alto, top e shortinho do Tchan para não perder a pose", contou.<br />

Nos últimos quatro anos, o sofrimento por conta da genitália masculina se agravou. Ela contou,<br />

com a voz trêmula: "Achava que não ia aguentar esperar pela operação, queria cortar eu mesma. Se<br />

morrer, pelo menos morro sem. Isso não é vida."<br />

Para o caso de bater um desespero inescapável, juntou um arsenal de emergência. Guardou numa<br />

gaveta do quarto bisturi, xilocaína e agulha. "Lembrava do meu pai castrando porcos e depois<br />

batendo as cinzas do fogão a lenha para estancar o sangue. Pensava que poderia, um dia, fazer<br />

igual", contou.<br />

A incerteza quanto ao sexo aparece na literatura, médica ou leiga, desde a Antiguidade. Na<br />

mitologia grega, Vênus Castina era a deusa que atendia às súplicas das almas femininas trancadas<br />

em corpos masculinos. Tirésias foi transformado em mulher como punição. Ao apreciar os deleites


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do prazer feminino, foi castigado e voltou a ser homem. O imperador romano Heliogabalus se<br />

casou com um escravo e assumiu as tarefas femininas do matrimônio. Ele gostava de ser chamado<br />

de rainha e teria oferecido o Império Romano ao cirurgião que o transformasse em mulher.<br />

O rei Henri iii, da França, queria ser uma mulher e pedia para ser chamado de Sa majesté, no<br />

feminino, expressão que é adotada até hoje. Também na França, o chevalier d'Eon, conhecido<br />

como Madame Beaumont, serviu como diplomata e espião do rei Luis xv. Viveu 49 anos como<br />

homem e 34 como mulher. Quando morreu, choveram apostas na Bolsa de Londres acerca do seu<br />

verdadeiro sexo. Uma comissão atestou que d'Eon era, biologicamente, homem.<br />

Num ensaio dos anos 20, Sigmund Freud parafraseou Napoleão Bonaparte e cunhou uma frase<br />

famosa: "Anatomia é destino." Para ele, a definição da sexualidade de um indivíduo se ligava à<br />

superação do complexo de Édipo, à fixação do gênero que seria objeto da sua libido. Mas a<br />

anatomia, a definição biológica, serviria como realidade última e inapelável, em contraponto às<br />

vivências neuróticas ou psicóticas. Freud sempre reconheceu, no entanto, que todas as pessoas têm<br />

traços psíquicos masculinos e femininos, não importa a sua orientação sexual. Eles seriam<br />

resquícios do polimorfismo infantil, anterior à estruturação do complexo de Édipo.<br />

A ambiguidade psicológica de qualquer pessoa seria uma herança genética da constituição da<br />

espécie. Antes de os humanos se constituírem em sexos diferentes, teria havido um ser andrógino.<br />

Os mamilos dos homens e o clitóris das mulheres seriam traços da antiga constituição única.<br />

A cultura, dizem os antropólogos, também teria um grande peso na definição dos papéis sexuais.<br />

São a família, os clãs, os costumes, as tradições, em suma, a organização social, que levam um<br />

indivíduo a ser mulher ou homem. Como, numa outra frase famosa, disse Simone de Beauvoir:<br />

"Não se nasce mulher: torna-se."<br />

A causa da desarmonia entre corpo e mente é desconhecida. Experiências científicas recentes<br />

apontam para hipóteses biológicas, como a exposição aos hormônios esteróides da mãe durante a<br />

gestação. Uma das linhas de pesquisa sustenta que a formação de gênero ocorre no cérebro do feto,<br />

ainda entre a segunda e quarta semana de gestação, antes da genitália, que só começa a ser<br />

formada a partir da sexta semana.<br />

A transexualidade foi descrita em detalhes, pela primeira vez, somente em 1966. O médico alemão<br />

Harry Benjamin descreveu o que seriam as características para se diagnosticar o "verdadeiro<br />

transexual". Ele já defendia que a cirurgia de mudança de sexo era a "única alternativa terapêutica<br />

possível" para acabar com o sofrimento deles.<br />

Segundo uma estimativa da Organização Mundial da Saúde, a oms, um em cada 30 mil homens<br />

quer se tornar mulher. E uma em cada grupo de 100 mil mulheres deseja ser homem. Mas a<br />

estatística é imprecisa em relação ao número daqueles que, de fato, estariam dispostos a se<br />

submeter a uma cirurgia de mudança de sexo.


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O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado desde 1952 pela Associação<br />

Americana de Psiquiatria, serve de guia para hospitais e seguradoras de saúde ao redor do mundo.<br />

Nele, a transexualidade é classificada como uma doença. O Código Internacional de Doenças,<br />

elaborado pela oms, a define como "transtorno de identidade de gênero". Na França, porém, desde<br />

fevereiro passado, ela não é considerada mais uma patologia graças à ação do Movimento de<br />

Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.<br />

No começo do ano, o presidente Barack Obama indicou uma transexual, Amanda Simpson, para o<br />

cargo de conselheira-sênior do Departamento de Comércio. Simpson foi registrada como homem<br />

ao nascer, há 48 anos, e passou por uma cirurgia genital. A sua nomeação, especula-se nos Estados<br />

Unidos, pode significar mudanças na legislação, no sentido de que a transexualidade deixe de ser<br />

considerada uma patologia clínica.<br />

Mas é exatamente o fato de ser classificada como doença que permite que a cirurgia seja feita<br />

gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, o sus. Desde 1997, o procedimento é autorizado pelo<br />

Conselho Federal de Medicina como solução terapêutica para adequar a genitália ao sexo psíquico.<br />

As intervenções cirúrgicas só são possíveis se atenderem a critérios estabelecidos por uma<br />

resolução do Conselho. Uma equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo<br />

e assistente social deve produzir um laudo unânime sobre a necessidade do procedimento.<br />

O candidato ou candidata deve apresentar uma boa saúde mental, mas num quadro de desconforto<br />

extremo com seu sexo anatômico. Precisa manifestar a vontade de eliminar os genitais, o que<br />

significa perder as características primárias e secundárias do próprio sexo. Durante dois anos, a<br />

pessoa deve se vestir, se apresentar e se comportar como alguém do sexo que pretende assumir. Se<br />

depois de tudo, o paciente ainda quiser levar o plano adiante, a cirurgia é autorizada.<br />

O cirurgião Roberto Farina fez, em 1971, a primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Foi<br />

condenado a dois anos de reclusão por "lesões corporais graves", num processo movido pelo<br />

Conselho Federal de Medicina. Posteriormente, Farina foi absolvido e a Justiça reconheceu que não<br />

houve perda do pênis, visto que o órgão era inútil e que a cirurgia era a única maneira de aliviar a<br />

angústia do paciente.<br />

"É comovente como os pacientes usam argumentos tão variados para um mesmo sentimento",<br />

disse o psiquiatra Miguel Chalub, um dos responsáveis pelos laudos para as cirurgias do Pedro<br />

Ernesto. "Eles falam coisas do tipo 'foi um erro da natureza', 'é como se eu tivesse nascido com dois<br />

narizes, preciso consertar', 'sou uma mulher com um ponteiro a ser ajustado' ou ' isso é carne<br />

morta, uma verruga'."<br />

Ainda que os médicos possam diagnosticar o transtorno, não existem testes objetivos para provar o<br />

resultado. Do ponto de vista clínico, não há como ter absoluta certeza se a pessoa é realmente<br />

transexual. Os médicos se valem da experiência e da sensibilidade para fazer a triagem entre<br />

pacientes mentalmente saudáveis e os psicóticos, que são recusados para a operação.


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"Quando eles chegam falando coisas do tipo 'Isso aqui cresceu de um dia para o outro, preciso<br />

tirar', algo está errado", disse o psicanalista Sergio Zaidhaft, referindo-se aos psicóticos. Ele fornece<br />

laudos psiquiátricos para os candidatos à cirurgia no Hospital Universitário Clementino Fraga<br />

Filho, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.<br />

Em março de 2003, Alexsandro montou o Grupo de Atenção Integral à Saúde das Pessoas que<br />

Vivenciam a Transexualidade, conhecido pela sigla gen. "No início, o ambulatório onde as<br />

transexuais eram atendidas virou um point de freakshow", ele disse. Resolveu então fazer palestras<br />

para o pessoal do hospital, e explicou a questão da transexualidade a agentes de segurança, técnicos<br />

de raios X, enfermeiros, maqueiros, ascensoristas, secretárias e mesmo diretores.<br />

Um dia, ele entreouviu o seguinte diálogo: "Ali é o ambulatório dos travecos", perguntou um<br />

segurança. "Traveco nada, rapaz, é transexual!", respondeu o outro. Os pelos do braço do médico se<br />

arrepiaram quando contou a história.<br />

"Foi tudo difícil, muitos profissionais não viam com bons olhos o programa, foi muito sofrimento,<br />

não sei como não desisti", disse. "Mas nossa ação foi ganhando repercussão, apresentávamos<br />

muitos trabalhos em congressos médicos, e as pessoas passaram a bater à nossa porta."<br />

Desde a criação do gen, Alexsandro operou oitenta pacientes. Hoje tem 140 em acompanhamento<br />

pré-operatório. A fila de espera é, em média, de dois anos. Ela inclui professores universitários,<br />

modelos, engenheiros, mães de santo, maestrinas, advogadas, domésticas, cabeleireiras,<br />

prostitutas, donas de casa e estudantes.<br />

A maioria tem um histórico parecido: teve que lidar com a rejeição familiar, o que fez com que<br />

saíssem de casa cedo, abandonassem os estudos e tentassem modificar a aparência física por conta<br />

própria. Na vida adulta, a maioria teve dificuldades em arrumar trabalho. Além do preconceito pelo<br />

aspecto físico, documentos com um nome incompatível com a figura afastam ainda mais as<br />

possibilidades. A situação provoca um sofrimento psíquico maior.<br />

Transexuais de todo Brasil são atendidos às quartas-feiras pela manhã no Hospital Pedro Ernesto.<br />

A maioria tem aparência andrógina. Vinte e cinco deles moram fora do Rio e têm as passagens<br />

reembolsadas pelo Sistema Único de Saúde.<br />

Antes de começar a maratona de consultas e exames, Alexsandro contou que uma das cafetinas<br />

mais populares de Copacabana o procurara, com uma mala de dinheiro, para furar a fila da<br />

operação. Mesmo que ela quisesse pagar pela cirurgia, deveria cumprir a exigência dos dois anos de<br />

acompanhamento terapêutico.<br />

Na fila de Alexsandro estão também pacientes com problemas diversos que, igualmente, exigem<br />

cirurgias urológicas reconstrutoras. Fez questão disso para evitar a segregação. "Não apoio uma<br />

divisão separada, como faziam com os tuberculosos antigamente", explicou, "porque a fila


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misturada é uma forma de inclusão social."<br />

Muitas de suas cirurgias são reparos de operações malfeitas. É o que deve ocorrer com Jane, uma<br />

mulher de 58 anos, magra, baixa e de aparência frágil que passou por uma cirurgia de troca de sexo<br />

no ano passado. Como não teve auxílio para tomar banho e ir ao banheiro, ela acabou perdendo o<br />

molde que mantém a forma do canal vaginal aberto até a cicatrização. A pele teve uma aderência e<br />

o canal fechou completamente.<br />

Jane tem uma genitália como a de uma boneca, não tem mais pênis ou vagina. Consegue urinar<br />

porque o orifício da uretra foi preservado. "Ficou feio, sem forma, não posso mostrar para<br />

ninguém" disse ela quando tentava marcar uma cirurgia reparadora com Alexsandro.<br />

Em uma manhã de março, a sala de espera estava lotada. Havia pacientes com câncer peniano,<br />

disfunções urinárias, falos malformados e travestis que queriam aumentar o pênis. Numa cadeira<br />

estava uma advogada que só se traveste quando chega à rodoviária do Rio. Em sua terra natal, vai<br />

ao fórum todos os dias de terno e gravata. Noutra, sentara-se uma prostituta que trabalha no Leme<br />

e que dobrou seu cachê depois de ter sido operada pelo doutor Alexsandro.<br />

Sentado no final da fila, um moreno alto chamava a atenção pelo porte e beleza. Havia sido<br />

chamado para posar nu em uma revista masculina e, ao saber que o cachê era condicionado ao<br />

tamanho do pênis, injetou silicone industrial no membro. O resultado foi como o de uma<br />

elefantíase, que deformou e inutilizou seu órgão sexual.<br />

"Ser operada pelo doutor Alexsandro é grife, tem glamour", disse K. que aguardava a sua primeira<br />

consulta com o médico. "Ele faz as periquitas mais bonitas do Brasil, ficam melhores que as<br />

originais." K. é alta e forte, usava salto alto, saia jeans curta, uma blusa verde colada ao corpo e<br />

sutiã com enchimento. Além de hormônios femininos, tomava também finasterida, para retardar a<br />

calvície em andamento. Ao avistar o cirurgião, seus olhos se encheram de lágrimas. "Deixa encostar<br />

nessas mãos de fada, doutor", pediu.<br />

A primeira a entrar no consultório foi uma mulher de cabelos loiros compridos, magra e de rosto<br />

fino, que usava um vestido de alcinha estampado com flores. Bonita e feminina, era praticamente<br />

impossível identificar características masculinas na sua aparência. Casada há dez anos, e operada<br />

há dois, passou a ter casos extraconjugais.<br />

"Preciso me autoafirmar enquanto mulher, doutor", justificou ela durante a consulta anual de<br />

revisão. Disse que tinha uma vida sexual muito satisfatória. Tinha orgasmos com facilidade, se<br />

masturbava e não precisava mais de lubrificantes para a penetração.<br />

Quando a mulher deixou a sala, Alexsandro comentou: "A operação fica cada vez melhor com o<br />

passar do tempo. A metaplasia, uma alteração celular, faz com que a pele tenda a assumir a função<br />

do tecido original e se adapte ao ambiente novo."


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O paciente seguinte, A., entrou com os ombros curvados e tinha olheiras profundas. Era difícil dizer<br />

se era um homem afeminado ou uma mulher masculinizada. Falava bem baixo, tinha cabelos<br />

encaracolados curtos e usava roupas unissex - calça jeans, blusa de algodão preta larga e tênis.<br />

A. explicou que não se travestia todo o tempo para "não bagunçar a cabeça" do filho. Só vestia as<br />

roupas da mulher quando não havia ninguém em casa. Seu plano é fazer a cirurgia, virar mulher,<br />

mudar de cidade e começar uma vida nova. Desde que começara o tratamento hormonal, sua<br />

esposa havia lhe pedido para dormir no sofá da sala. Ela vivia à base de tranquilizantes.<br />

A. é um transexual especial. Ele não é só um homem que quer ser mulher. É um homem que quer<br />

virar lésbica. Está convicto de que é uma mulher que ama outras mulheres. No que depender dele,<br />

seu casamento continuará.<br />

Casos de gênero que parecem confusos para um leigo são rotina na vida de Alexsandro. No<br />

intervalo de uma de suas consultas, ele se lembrou da história de duas transexuais, ambas nascidas<br />

homens, que haviam se conhecido na sala de espera do ambulatório de urologia do Pedro Ernesto.<br />

Uma era estudante da Universidade Federal Fluminense e já havia sido operada. A outra - que<br />

ainda mantinha o órgão sexual masculino - era uma psicóloga gaúcha. Foram morar juntas. Anos<br />

depois, tornaram-se um casal lésbico quando a segunda também passou pela cirurgia.<br />

Em 1952, soube-se da primeira cirurgia de mudança de sexo no mundo. Na Dinamarca, George se<br />

tornou Christine Jorgensen e, no ano seguinte, foi eleita A Mulher do Ano por diversos jornais e<br />

revistas. A história se espalhou e surgiram milhares de candidatos à operação.<br />

Até os anos 70, a cirurgia de alteração do sexo masculino para o feminino consistia na amputação<br />

do pênis e a modelação de um orifício funcional. Na década seguinte, passou-se a construir um<br />

feixe de tecidos semelhante ao clitóris - como exibiu a modelo Roberta Close nas páginas da<br />

Playboy em 1984. Atualmente, o desafio é reproduzir esteticamente uma vagina, preservando as<br />

terminações nervosas para garantir o prazer sexual.<br />

Depois do procedimento, as pacientes usam lubrificantes à base de gel até passarem a se umedecer<br />

sozinhas. A origem da secreção não é certa. Pode ser suor, dilatação dos vasos sanguíneos ou<br />

líquido seminal produzido pela próstata, que não é retirada.<br />

As pesquisas e a perícia de Alexsandro foram reconhecidas pela International Society for Sexual<br />

Medicine, que premiou sua técnica de vulvoplastia - procedimento que refina a parte interna do<br />

assoalho da vulva. "No exterior, a depilação é menos cavada e a cicatriz é mais central. Aqui, me<br />

preocupo em deixar a cicatriz na virilha, onde é mais fácil escondê-la", explicou.<br />

Outro trabalho seu foi premiado: o de reaproveitamento de tecidos do pênis de transexuais (que,<br />

em geral, seriam jogados fora) em pacientes mutilados recentemente. Ele também é editor da<br />

revista Urologia Contemporânea e diretor sul-americano da World Professional Association for<br />

Transgender Health.


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Antes da cirurgia, médico e paciente sentam para definir os detalhes. Pode-se escolher entre lábios<br />

vaginais maiores ou menores, montes de Vênus mais lautos ou mais retos. "A escolha da vagina é<br />

bem individual", disse Alexsandro durante um jantar num centro comercial. "Algumas têm o mito<br />

da supermulher e querem vaginas com uma cavidade ampla, para serem penetradas por pênis<br />

grandes. Querem transar com vários homens. Outras têm fixação pelo orgasmo, outras querem<br />

apenas uma vagina funcional, pois querem continuar com o sexo anal. E há aquelas que só de não<br />

ter o pênis já estão contentes."<br />

Linda pertencia a essa última categoria. "Não quero saber como vai ficar e sim o que não vai ficar",<br />

ela me disse na véspera de sua cirurgia. "Só de cortar está ótimo, se tiver vagina melhor ainda." A<br />

operação havia sido antecipada devido ao seu estado emocional, que se deteriorara. Os especialistas<br />

que a atendiam alertaram sobre o risco de suicídio.<br />

Na sexta-feira, 28 de fevereiro, antes de o sol nascer, Linda já estava de banho tomado, enrolada<br />

em uma toalha em um dos leitos do Hospital Pedro Ernesto. Estava com os pés na cabeceira para<br />

ativar a circulação e evitar varizes. A operação estava marcada para as 9 horas. Os calmantes que<br />

tomara na véspera pareciam insuficientes. A cada dez minutos, ela olhava a hora na tela do celular.<br />

"Estou louca para me jogar na sala de cirurgia", disse. "Meus problemas vão acabar", falou.<br />

Às 9h30, o doutor Alexsandro entrou e Linda pulou na maca. "É uma cirurgia de caráter mutilante<br />

e irreversível, não trabalhamos com arrependimentos", ele disse. Ela mostrou estar segura. "Agora<br />

só vai tocar de novo no chão na segunda-feira", disse Alexsandro encarando sua paciente de soslaio.<br />

Deitada de barriga para cima, ela foi empurrada pelos longos corredores, pintados de verde-musgo<br />

e com a tinta descascando, até o centro cirúrgico. Ao longo de todo caminho, balbuciava para si<br />

mesma: "Nunca mais, Jesus Cristo, nunca mais."<br />

Às 10h30, sedada, ela foi levada para a sala de cirurgia, que, ao contrário de todas as demais, tinha<br />

as vitrines que dão para o corredor tapadas por um plástico azul. "O Pedro Ernesto é um hospital<br />

universitário, e normalmente as pessoas podem acompanhar as cirurgias", explicou Alexsandro.<br />

"Mas se eu deixar, isso aqui vira um show de bizarrice. Não quero alimentar o mito transexual."<br />

Apesar da equipe numerosa - três anestesistas, dois instrumentadores, duas enfermeiras, um<br />

técnico de enfermagem, o doutor Alexsandro e outro cirurgião, e dois residentes em urologia -<br />

ouvia-se apenas uma música tranquila ao fundo, e os batimentos cardíacos de Linda através dos<br />

aparelhos. "O ambiente está bem próximo do ideal", disse o cirurgião. "Já aconteceu de<br />

profissionais, por motivos religiosos, se recusarem a trabalhar nessas operações."<br />

Ele reuniu a equipe para as últimas orientações e puxou o banco ergonômico de couro preto, que<br />

traz de casa. "Como o pênis dela é acima da média, e tem um bom prepúcio, vamos usar a técnica<br />

da inversão da pele peniana", explicou.


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Demóstenes Apostolides, urologista da Marinha, começaria a cirurgia. Era seu último dia no<br />

Hospital Pedro Ernesto, onde passou um ano no programa de especialização em cirurgia<br />

reconstrutora genital criado por Alexsandro. É a única formação em cirurgia dessa natureza no<br />

Brasil.<br />

Alexsandro cedeu seu banco ao colega. Apostolides sentou-se, puxou a máscara para cima do nariz<br />

e começou. Ele desmembrou o pênis por dentro do períneo, descascando-o como se fosse uma<br />

banana. A ideia era tirar as cartilagens, deixá-lo vazio. Os tecidos e a pele exteriores do pênis<br />

seriam mais tarde empurrados de volta para o períneo, por cima do reto, num espaço moldado com<br />

o dedo que faria as vezes de canal vaginal.<br />

De quando em quando, Apostolides pedia a Alexsandro para verificar a precisão dos cortes e<br />

orientar os próximos passos. Linda jazia imóvel, com as pernas abertas em posição ginecológica,<br />

coberta por lençóis azuis da cintura para baixo. O cheiro forte de sangue quente deixava o ar úmido<br />

e espesso, mas não inibia o apetite dos médicos. Durante quinze minutos, trocaram experiências<br />

gastronômicas, endereços de restaurantes e pratos que valiam a pena serem experimentados.<br />

Na segunda hora de cirurgia, Alexsandro assumiu o controle. O silêncio dominou a sala e a equipe<br />

formou uma rodinha em volta do chefe. Seus movimentos pareciam orquestrados. Ele empunhava<br />

bisturis, linhas e tesouras como se fosse ambidestro, com segurança e delicadeza notáveis. Por<br />

debaixo das máscaras, a equipe cochichava: "Aquilo ali é o quê", "Você viu o que ele fez com a<br />

uretra", "Nossa quem inventou isso" Ouviu-se até um "isso me dá até saudades do meu<br />

namorado".<br />

Alexsandro cortou um triângulo no meio da glande e costurou as duas pontas ao avesso, formando<br />

um delicado clitóris. Os testículos foram extraídos com a ajuda de um bisturi elétrico que, ao<br />

queimar o tecido, inundou a sala com um cheiro de carne esturricada. A pele do escroto foi esticada<br />

e usada para formar os grandes lábios. Os pequenos lábios foram feitos a partir do prepúcio e parte<br />

da uretra.<br />

A cada meia hora, Alexsandro reclinava o corpo para trás, tomando um pouco de distância para<br />

verificar a simetria. "Quem é de fora vê só barbárie, mas o olho treinado vê beleza", comentou. A<br />

hora final foi gasta costurando tudo o que foi desmembrado.<br />

Depois de seis horas, Alexsandro deu o último ponto e declarou a cirurgia terminada. Contemplou a<br />

joia que acabara de lapidar, virou-se para um dos residentes e indagou, provocativo : "E aí, Felipe"<br />

O rapaz não se intimidou. "Não me leve a mal, doutor, mas o conjunto da obra...", disse. Todos<br />

riram alto.<br />

A enfermeira residente, Aline Rodrigues, de 24 anos, tinha dúvidas sobre questões de fundo. "Não<br />

sei se o sus deveria pagar por essa cirurgia", ela me disse. "Falta verba para tantas coisas mais<br />

importantes. Para mim, todo homem tem ciúmes do próprio pênis, nunca vi um que quisesse tirar.<br />

Fora que não adianta, não vai ser mulher, não pode parir", disse.


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À meia-noite, Linda acordou da anestesia. As outras cinco camas da enfermaria estavam ocupadas,<br />

mas todos dormiam. Em meio à escuridão, deslizou lentamente a mão direita por baixo do lençol e<br />

seus dedos hesitantes tatearam até o meio de suas pernas. "Estou livre, cortaram", disse. Sorriu e<br />

voltou a dormir.<br />

Pacientes amputados costumam ter a sensação de membro fantasma. Sentem sensações, dor e<br />

incômodo na parte amputada como se ela ainda existisse. Transexuais não sentem dor fantasma.<br />

"Isso só comprova que, para elas, o pênis de fato não fazia parte do corpo", explicou Alexsandro.<br />

Ele considerou a cirurgia de Linda um sucesso.<br />

No dia seguinte, Linda dava gargalhadas que eram ouvidas em todo o 5º andar do Pedro Ernesto.<br />

Disse estar com a impressão de sorrir por dentro. As dores do pós-operatório, os fios da sonda e do<br />

soro, não eram nada comparados à satisfação com que ela experimentava seu novo corpo.<br />

Durante a troca de curativos, pediu que tirassem uma foto do resultado com o seu celular. "Eu<br />

quero ver a cara dela", disse. Quando viu o trabalho de Alexsandro, seu rosto se iluminou. "Está<br />

perfeita, mesmo inchada já está bonita", disse, armazenando a imagem como tela de fundo do<br />

telefone. "Agora quero ver quem não vai deixar eu usar o banheiro feminino! Vou fazer xixi de porta<br />

aberta", gabou-se e gargalhou novamente.<br />

Quatro dias depois, Linda continuava radiante. "Nasci de novo, agora vou começar a viver de<br />

verdade", falou. Havia feito escova no cabelo e modelado a linha da sobrancelha. Ela me mostrou<br />

sua carteira de identidade, colocando o polegar sobre a foto em que aparecia menos sorridente e<br />

mais masculinizada. Ali, estava seu nome de registro: Orlando Vicente. Depois de operadas, o passo<br />

seguinte das pacientes é dar entrada na Justiça para a mudança de documentos.<br />

Como não há legislação específica, os transexuais ficam à mercê da deliberação de um juiz quando<br />

pedem a mudança oficial do nome. As interpretações são as mais diversas. Há os que permitem<br />

mudar nome e sexo nos documentos, mas não no cartório. Outros que obrigam a pessoa a escrever<br />

"transexual" no quesito "sexo". E os irredutíveis que negam todas as possibilidades.<br />

A alegação desses últimos é que se deve preservar o interesse de terceiros. Por exemplo, evitar que<br />

um desavisado se case com um transexual. Ou que um esportista participe de competições em<br />

categorias indevidas. Alexsandro conseguiu o apoio da <strong>Defensoria</strong> Pública do Rio para seu<br />

programa de assistência aos transexuais. O que fez com que, com o laudo da operação, as pacientes<br />

levem de quatro a cinco meses para terem seus novos registros em mãos.<br />

"Ninguém se apresenta com a genitália exposta", disse Heloísa Barboza, professora de direito civil<br />

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. "O que define homem ou mulher não é um pênis ou<br />

uma vagina. É o que a pessoa é." Como Heloísa Barboza é defensora da causa transexual, muitas<br />

vezes ela é considerada uma militante gay.


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"Enquanto o Ministério da Saúde reconhece a minoria transexual, o jurídico não, o que é a cara do<br />

Brasil", ela disse, em sua casa. "Se a pessoa não obtém sua requalificação civil, o processo de<br />

transexualização não está completo." Segundo a professora, o maior entrave é de ordem moral: "É<br />

preconceito, desinformação e ignorância."<br />

Na Inglaterra e Espanha, há leis protetoras sobre a identidade de gênero. Não é preciso que a<br />

pessoa se submeta à mudança de sexo para obter novos documentos. Heranças, pensão e acesso a<br />

plano de saúde do cônjuge são garantidos.<br />

Depois de anos convivendo com transexuais, Heloísa Barboza formou uma opinião distinta do<br />

estereótipo vigente. Acha que, de fato, eles são pessoas conservadoras, que procuram fazer a<br />

congruência entre sexo e gênero para se enquadrarem no padrão heterossexual. "Elas sofreram<br />

tanto que buscam o modelo de maior aceitação, querem ser uma mulher como a Doris Day", disse.<br />

"Elas não são feministas, costumam ser recatadas, delicadas e menos exuberantes do que as<br />

travestis."<br />

Luciana passou pela cirurgia há três anos e virou mulher. Mas não ficou totalmente satisfeita com o<br />

novo corpo. Magricela, adoraria ter os seios maiores, engrossar um pouco as pernas e fazer escova<br />

definitiva nos cabelos. Aos 47 anos, ela é evangélica, e guarda a virgindade para a noite de núpcias.<br />

Ganha a vida como costureira, mas seus rendimentos mensais são insuficientes para comprar os<br />

hormônios femininos que terá que tomar para o resto da vida.<br />

Ela mora na Marambaia, subúrbio ao sul do Rio, em um casebre feito de tijolos, telhas Eternit,<br />

porta e janelas de papelão. Tudo o que possui são três máquinas de costura, uma cama coberta com<br />

lençóis gastos, um lampião, um ventilador, fogão e geladeira antigos. Ela largou a escola, no<br />

interior da Bahia, porque não suportava ouvir seu nome de batismo na chamada. A cada vez que a<br />

professora dizia "Carlos Alberto", tinha vontade de morrer.<br />

Apesar da vida pobre, Luciana se recusa a ir ao banco para buscar os vencimentos do segurodesemprego,<br />

só para não ser humilhada. "Vão chamar aquele nome e vai aparecer outra coisa;<br />

prefiro não ir", ela me disse, em sua casa. Também não vai a postos de saúde e por pouco não abriu<br />

mão de tirar carteira de identidade. Tremia só de pensar em ter que se apresentar para o<br />

alistamento militar. Assim que os sargentos responsáveis pela triagem a viram, logo a dispensaram.<br />

"Eu pago meus impostos, mas não me sinto uma cidadã. É um desamparo só", falou.<br />

Uma semana depois da cirurgia, Linda recebeu alta. Antes de ir embora, teve uma aula de higiene<br />

pessoal com uma enfermeira. "É como se você estivesse ensinando para uma criança", explicou-me<br />

a chefe de enfermagem Cristiane Amorim. "É tudo novo, elas não sabem nem como se limpar."<br />

Apesar da ardência causada pelos pontos, Linda se emocionou ao sentir o xixi escorrer por entre as<br />

pernas. Com medo de estragar a cirurgia ao subir as escadas do ônibus, pediu 50 reais emprestados<br />

a uma vizinha para voltar de táxi para casa.


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Alexsandro se prepara para ir, agora em maio, à Costa Rica. Uma vez por ano, ele se junta à<br />

organização Médicos sem Fronteiras e viaja o mundo operando crianças com anomalias genitais.<br />

Além de trabalhar no Pedro Ernesto, mantém um consultório privado. Apesar de não revelar<br />

quanto cobra, uma cirurgia de mudança de sexo pode custar mais de 50 mil reais.<br />

Linda ainda continuará com os tratamentos psicológico, psiquiátrico e médico por muitos anos.<br />

"Você acha que eu posso dar alta para um paciente desses Isso aqui é um compromisso de vida",<br />

disse Alexsandro.

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