Revista Piaui - Defensoria
Revista Piaui - Defensoria
Revista Piaui - Defensoria
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 1 of 15<br />
20/9/2011<br />
Edição 43 > _anais da medicina<br />
Como mudar de sexo<br />
A vida, as angústias e as cirurgias que transexuais fazem com o doutor Eloísio Alexsandro<br />
num hospital público do Rio de Janeiro<br />
por Clara Becker<br />
Em uma manhã de fevereiro, um jovem estudante de letras de cabelos curtos, espinhas no rosto e<br />
vestido com roupas largas em estilo grunge, esperava ao lado da mãe a vez de ser atendido no<br />
ambulatório de urologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, na Zona Norte do<br />
Rio. M., como pediu para ser chamado, tem 22 anos, mas parece um adolescente. Seu jeito frágil e<br />
sereno contrastava com o da mulher, que parecia ansiosa e desconfortável por estar ali. Ao chegar,<br />
o médico Eloísio Alexsandro, chefe do ambulatório, sugeriu que conversassem em separado e pediu<br />
que ela entrasse primeiro no seu consultório.<br />
Depois de algumas perguntas, a mãe lhe disse, com os olhos marejados: "Eu já li tudo na internet,<br />
doutor. Ela não é assim. Ela é virgem. Como alguém que nunca transou com homem nem com<br />
mulher pode saber se é transexual" M., que nasceu e foi criada como menina, passava pelo<br />
primeiro estágio de um longo tratamento destinado a transexuais que, na maioria dos casos, acaba<br />
em uma cirurgia de mudança de sexo.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 2 of 15<br />
20/9/2011<br />
Um mês antes, M. tomara a primeira dose de testosterona, o hormônio responsável pelo<br />
desenvolvimento das características masculinas. Teve um surto de acnes no rosto e pelos grossos<br />
lhe brotaram nas pernas. A transformação definitiva apavorava a mãe. "Pelo que eu sei, transexuais<br />
jogam com os brinquedos do sexo oposto, e ela nunca fez isso", disse a senhora. "Como vocês<br />
abraçam a causa assim, doutor"<br />
Com um tom de voz seguro, o médico lhe disse que o processo de mudança de sexo era lento e<br />
progressivo. Assegurou que a maior parte das modificações hormonais era reversível. E disse que a<br />
cirurgia para mudar o aparelho genital - a parte do processo que mais assusta os familiares -<br />
ocorreria no final do tratamento, e só depois do aval de um psicólogo e um psiquiatra.<br />
A mulher ainda parecia transtornada. O médico lhe disse que aceitar a "condição" de seu rebento<br />
seria uma prova de amor. "Eu tento, doutor, mas não consigo chamá-la pelo nome masculino",<br />
respondeu.<br />
A longa jornada de M. incluirá uma série de injeções de testosterona, que farão com que a voz<br />
engrosse, a barba cresça e a sua agressividade aumente. A menstruação cessará e as mamas, que<br />
hoje são esmagadas por faixas apertadas, serão extirpadas cirurgicamente. Outra operação plástica<br />
dará um contorno mais masculino ao peitoral, delimitando o tórax. Se M. quiser, também poderá<br />
fazer uma histerectomia e terá seu útero, ovários e trompas removidos.<br />
Ele terá duas alternativas quanto ao órgão sexual. Se responder bem à testosterona, seu clitóris<br />
poderá ter triplicado de tamanho e, eventualmente, funcionará como uma espécie de micropênis.<br />
Daí, bastará costurar os grandes lábios para formar um escroto na sua base.<br />
A outra hipótese é uma neofaloplastia, procedimento cirúrgico no qual um pênis é construído a<br />
partir de um tecido sensível retirado do próprio corpo, como o antebraço. Ainda assim, não há<br />
garantia de que a aparência e o funcionamento do novo órgão serão razoáveis. Como o<br />
procedimento é experimental, o paciente precisa concordar com o risco.<br />
Na sala de Eloísio Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto, em meio a tubos de ensaio, jalecos, pilhas<br />
de livros e computadores, um quadro na parede chama a atenção. É uma reprodução de A Mulher<br />
Barbuda, tela pintada em 1631 pelo espanhol José de Ribera, que fez carreira na Itália. Ela mostra<br />
uma mulher de feições severas, nariz largo, olhos escuros e barba negra à Rasputin, amamentando<br />
uma criança. Ao seu lado, está o marido, também barbado. A senhora barbuda seria Magdalena<br />
Ventura de los Abruzos, a quem o duque de Alcalá, vice-rei de Nápoles, teria encarregado Ribera de<br />
pintar o retrato. "Desconfio que ela tivesse um tumor benigno na glândula adrenal", disse<br />
Alexsandro, comentando a aparência masculinizada da figura.<br />
O médico gasta tempo e dinheiro estudando história da arte médica, a disciplina que procura<br />
detectar patologias em pinturas e esculturas. Entre os iniciados no assunto, é praticamente<br />
consenso que a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, sofria de arteriosclerose. Alexsandro discorda: "É
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 3 of 15<br />
20/9/2011<br />
um diagnóstico leviano."<br />
O urologista não fica só nas obras clássicas. Um dia, na saída do ambulatório do hospital, ele<br />
comentou o filme argentino xxy, um de seus preferidos. A fita conta a história de Alex, uma<br />
hermafrodita cujos pais resolveram não fazer a operação de definição de sexo, para que ela pudesse<br />
decidir mais tarde. "xxy tem um erro médico crucial", disse Alexsandro. "Tem uma cena em que ela<br />
aparece fazendo xixi em pé. Mas, pelo tipo de hermafroditismo dela, em que a uretra fica na vagina<br />
e não no pênis, ela deveria fazer xixi sentada."<br />
Alexsandro é alto, magro e, com 39 anos, seus cabelos começam a pratear nas têmporas. Fala<br />
sempre de maneira enfática e gesticulando. Com frequência, recorre a desenhos e rabiscos para<br />
ilustrar raciocínios. É solteiro, não tem filhos e vive sozinho no Rio. Trabalha quase quinze horas<br />
por dia, seis dias por semana. Com pouco tempo para comer, sempre anda com uma caixa de Bis<br />
branco para driblar a baixa ingestão calórica. Tem poucos amigos e, nas escassas horas vagas, zanza<br />
sozinho por livrarias e sebos atrás de raridades.<br />
No trabalho, seus colegas o têm como rígido, controlador e exigente, sobretudo em questões de<br />
disciplina. Os residentes novatos se assustam quando, ao lhe darem uma resposta, o chefe retruca,<br />
áspero: "Na medicina não tem muito ou pouco. Quero números, eu quero saber quantos mililitros o<br />
paciente urinou!"<br />
Quando era criança, em Tarumirim, no interior de Minas Gerais, Alexsandro brincava de cientista<br />
com os peixes que pegava no córrego da fazenda em que morava. Repetia o que havia aprendido<br />
com as experiências de Mendel, e promovia o cruzamento de peixes com cor de olhos diferentes,<br />
para produzir um exemplar recessivo. Alterava os formatos das caudas, a cor das escamas e<br />
sonhava em descobrir uma espécie nova.<br />
Na hora de decidir o que seria na vida, às vésperas do vestibular, disse ao pai que queria estudar<br />
biologia. Com um filho engenheiro e uma advogada, o pai achou melhor que ele fosse médico.<br />
Alexsandro aceitou. Formou-se na Universidade Federal do Espírito Santo. Fez especializações em<br />
urologia pediátrica e cirurgia reconstrutora genital na Espanha, nos Estados Unidos e na Bélgica.<br />
Na Europa, familiarizou-se com técnicas inovadoras ao operar croatas, sérvios e bósnios que<br />
tiveram o pênis mutilado durante as guerras balcânicas dos anos 90.<br />
A experiência profissional o leva a dizer que é uma temeridade responder, de maneira padrão, à<br />
mais prosaica das perguntas de pais de recém-nascidos: é menino ou menina "O obstetra, depois<br />
que bate no bumbum do neném, deveria dizer: 'tem falo' ou 'não tem falo'", afirmou.<br />
Há pouco mais de quatro anos, Linda (que preferiu não revelar o seu sobrenome) estava desolada e<br />
sem esperanças. Havia mandado cartas para todos os programas de televisão, pedindo que a<br />
ajudassem a ser operada para mudar de sexo. Chegou a interpelar desconhecidos na rua para<br />
perguntar se sabiam de alguém que pudesse realizar a cirurgia.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 4 of 15<br />
20/9/2011<br />
Com 31 anos, Linda é morena, tem cabelos longos, negros e alisados, nariz fino, sobrancelhas<br />
desenhadas à pinça e unhas compridas e bem cuidadas. Suas mãos e pés, no entanto, são grandes.<br />
Tem os braços musculosos, os ombros largos e no rosto vê-se a marca azulada da barba, resultado<br />
de uma eletrólise ainda não concluída. "Acho que quando Deus estava me fazendo, se distraiu e<br />
trocou meu sexo", Linda me disse.<br />
Ela nasceu menino. Desde pequena, na Paraíba, sempre teve certeza de que era uma mulher.<br />
Sentia-se estranha num corpo de homem e não suportava se olhar no espelho. Ao falar sobre sua<br />
infância, só sorri quando menciona que era confundida com uma menina por amigas da mãe.<br />
Lembrou-se de uma vez, quando tinha 11 anos, botou um vestido e pintou os lábios de vermelho.<br />
Seu pai ficou possesso. Apanhou dele várias vezes, que lhe gritava: "Vira homem, fala que nem<br />
homem!" Os onze irmãos também nunca aceitaram os seus modos femininos.<br />
Linda não sabe explicar o motivo, mas sua voz jamais engrossou. Ao falar com ela pelo telefone,<br />
ninguém diria que há um homem do outro lado da linha. Nunca fez xixi em pé e sempre ficou<br />
nervosa ao se tocar. Aos 16 anos, depois de meses ingerindo hormônios femininos por conta<br />
própria, pequenos seios brotaram em seu tórax. Insatisfeita, pediu a uma amiga travesti que lhe<br />
injetasse silicone industrial - comprado numa loja de autopeças - no peito, no culote e nos glúteos.<br />
Ficou como se tivesse duas bolas de rúgbi presas ao tronco. Mais alguns meses e o implante caseiro<br />
se deslocou, fazendo com que os seios artificiais parassem na altura do umbigo. Conheceu no Rio<br />
uma transexual que lhe contou as proezas do doutor Alexsandro.<br />
Boa parte dos transexuais que chegam a Alexsandro no Hospital Pedro Ernesto resume assim a sua<br />
angústia: é como estar aprisionado dentro de um corpo do sexo oposto. O transexual é alguém que<br />
se olha no espelho e não se reconhece. Nasceu com cromossomos, órgãos genitais e hormônios de<br />
um sexo, mas tem a mente, as aspirações, desejos e inquietações próprias do outro. Ele é diferente<br />
do travesti que, em geral, está satisfeito com sua genitália e se sente confortável em se vestir como o<br />
sexo oposto. E é ainda mais diverso do hermafrodita (ou intersexo, o termo usado pelos<br />
especialistas), a pessoa com alterações anatômicas fora do padrão masculino e feminino.<br />
A corredora sul-africana Caster Semeya, medalha de ouro nos 800 metros do Mundial de Atletismo<br />
de Berlim, no ano passado, é um exemplo. Exames clínicos mostraram que, apesar da genitália<br />
feminina, ela não tem útero ou ovários. Seu nível de testosterona é três vezes maior do que o da<br />
média feminina, pois é produzido por testículos internos atrofiados. A Federação Internacional de<br />
Atletismo deliberou que Caster pode ficar com a medalha de ouro. Mas não foi decidido se ela<br />
poderá voltar a competir.<br />
O hermafrodita costuma nascer com um pênis e uma vagina, a chamada genitália ambígua. Nesses<br />
casos, Alexsandro é chamado para dar um parecer e, quando indicado, intervir cirurgicamente para<br />
determinar o sexo do bebê. A situação é considerada uma emergência médica porque os pais<br />
precisam da definição sexual para registrar a criança.<br />
Certa vez, um juiz lhe deu 24 horas para decidir sobre um caso em que, segundo o magistrado, a
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 5 of 15<br />
20/9/2011<br />
questão era simples porque havia só duas hipóteses: ou o bebê era homem ou mulher. "Fiz cópias<br />
dos capítulos que se referiam ao assunto na literatura médica e mandei tudo para o juiz. Ele não me<br />
importunou mais", disse o médico.<br />
Em 2003, Alexsandro fez sua primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Um transexual havia<br />
conseguido uma autorização judicial para se tornar fisicamente mulher e foi encaminhado ao Pedro<br />
Ernesto, referência em urologia reconstrutora genital. Na especialização no exterior, Alexsandro já<br />
havia operado transexuais e por isso se dispôs ao trabalho. Nunca mais parou. "Aconteceu<br />
naturalmente", disse. "Nunca pensei em trabalhar com pacientes transexuais." Sua mãe e irmãos<br />
não sabem exatamente como ele ganha a vida.<br />
"Não tem questão mais gratificante", disse Alexsandro. "Os benefícios para a paciente são<br />
inegáveis, elas choram de felicidade. O agradecimento é sincero, vem de dentro, não é cordial. A<br />
emoção delas motiva o meu trabalho, é contagiante."<br />
Alexsandro diz que tem como modelo o homem universal da Renascença, encarnado por Leonardo<br />
da Vinci, que tinha conhecimentos em múltiplas áreas. Além das cirurgias no Pedro Ernesto, ele<br />
também opera na Santa Casa, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da<br />
Universidade Gama Filho, onde orienta uma dezena de alunos de mestrado e doutorado, e<br />
coordena os departamentos de urologia reconstrutora e trauma da Sociedade Brasileira de<br />
Urologia, seções nacional e estadual.<br />
Aos 18 anos, Linda deixou Campina Grande e partiu para o Rio de Janeiro. Vendeu balas em sinais,<br />
foi feirante, pedreira e se prostituiu, mas era incapaz de usar seu membro ativamente em relações<br />
sexuais. Por isso, não conseguia clientes, que a abordavam perguntando pelo tamanho do seu<br />
pênis. Em 2004, descobriu ter o vírus da Aids.<br />
Desde então, Linda ganha a vida fazendo megahair, implante de cabelo, em homens e mulheres.<br />
Mora numa quitinete que construiu sozinha na Ilha do Governador. "Carregava baldes de cimento<br />
com salto alto, top e shortinho do Tchan para não perder a pose", contou.<br />
Nos últimos quatro anos, o sofrimento por conta da genitália masculina se agravou. Ela contou,<br />
com a voz trêmula: "Achava que não ia aguentar esperar pela operação, queria cortar eu mesma. Se<br />
morrer, pelo menos morro sem. Isso não é vida."<br />
Para o caso de bater um desespero inescapável, juntou um arsenal de emergência. Guardou numa<br />
gaveta do quarto bisturi, xilocaína e agulha. "Lembrava do meu pai castrando porcos e depois<br />
batendo as cinzas do fogão a lenha para estancar o sangue. Pensava que poderia, um dia, fazer<br />
igual", contou.<br />
A incerteza quanto ao sexo aparece na literatura, médica ou leiga, desde a Antiguidade. Na<br />
mitologia grega, Vênus Castina era a deusa que atendia às súplicas das almas femininas trancadas<br />
em corpos masculinos. Tirésias foi transformado em mulher como punição. Ao apreciar os deleites
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 6 of 15<br />
20/9/2011<br />
do prazer feminino, foi castigado e voltou a ser homem. O imperador romano Heliogabalus se<br />
casou com um escravo e assumiu as tarefas femininas do matrimônio. Ele gostava de ser chamado<br />
de rainha e teria oferecido o Império Romano ao cirurgião que o transformasse em mulher.<br />
O rei Henri iii, da França, queria ser uma mulher e pedia para ser chamado de Sa majesté, no<br />
feminino, expressão que é adotada até hoje. Também na França, o chevalier d'Eon, conhecido<br />
como Madame Beaumont, serviu como diplomata e espião do rei Luis xv. Viveu 49 anos como<br />
homem e 34 como mulher. Quando morreu, choveram apostas na Bolsa de Londres acerca do seu<br />
verdadeiro sexo. Uma comissão atestou que d'Eon era, biologicamente, homem.<br />
Num ensaio dos anos 20, Sigmund Freud parafraseou Napoleão Bonaparte e cunhou uma frase<br />
famosa: "Anatomia é destino." Para ele, a definição da sexualidade de um indivíduo se ligava à<br />
superação do complexo de Édipo, à fixação do gênero que seria objeto da sua libido. Mas a<br />
anatomia, a definição biológica, serviria como realidade última e inapelável, em contraponto às<br />
vivências neuróticas ou psicóticas. Freud sempre reconheceu, no entanto, que todas as pessoas têm<br />
traços psíquicos masculinos e femininos, não importa a sua orientação sexual. Eles seriam<br />
resquícios do polimorfismo infantil, anterior à estruturação do complexo de Édipo.<br />
A ambiguidade psicológica de qualquer pessoa seria uma herança genética da constituição da<br />
espécie. Antes de os humanos se constituírem em sexos diferentes, teria havido um ser andrógino.<br />
Os mamilos dos homens e o clitóris das mulheres seriam traços da antiga constituição única.<br />
A cultura, dizem os antropólogos, também teria um grande peso na definição dos papéis sexuais.<br />
São a família, os clãs, os costumes, as tradições, em suma, a organização social, que levam um<br />
indivíduo a ser mulher ou homem. Como, numa outra frase famosa, disse Simone de Beauvoir:<br />
"Não se nasce mulher: torna-se."<br />
A causa da desarmonia entre corpo e mente é desconhecida. Experiências científicas recentes<br />
apontam para hipóteses biológicas, como a exposição aos hormônios esteróides da mãe durante a<br />
gestação. Uma das linhas de pesquisa sustenta que a formação de gênero ocorre no cérebro do feto,<br />
ainda entre a segunda e quarta semana de gestação, antes da genitália, que só começa a ser<br />
formada a partir da sexta semana.<br />
A transexualidade foi descrita em detalhes, pela primeira vez, somente em 1966. O médico alemão<br />
Harry Benjamin descreveu o que seriam as características para se diagnosticar o "verdadeiro<br />
transexual". Ele já defendia que a cirurgia de mudança de sexo era a "única alternativa terapêutica<br />
possível" para acabar com o sofrimento deles.<br />
Segundo uma estimativa da Organização Mundial da Saúde, a oms, um em cada 30 mil homens<br />
quer se tornar mulher. E uma em cada grupo de 100 mil mulheres deseja ser homem. Mas a<br />
estatística é imprecisa em relação ao número daqueles que, de fato, estariam dispostos a se<br />
submeter a uma cirurgia de mudança de sexo.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 7 of 15<br />
20/9/2011<br />
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado desde 1952 pela Associação<br />
Americana de Psiquiatria, serve de guia para hospitais e seguradoras de saúde ao redor do mundo.<br />
Nele, a transexualidade é classificada como uma doença. O Código Internacional de Doenças,<br />
elaborado pela oms, a define como "transtorno de identidade de gênero". Na França, porém, desde<br />
fevereiro passado, ela não é considerada mais uma patologia graças à ação do Movimento de<br />
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.<br />
No começo do ano, o presidente Barack Obama indicou uma transexual, Amanda Simpson, para o<br />
cargo de conselheira-sênior do Departamento de Comércio. Simpson foi registrada como homem<br />
ao nascer, há 48 anos, e passou por uma cirurgia genital. A sua nomeação, especula-se nos Estados<br />
Unidos, pode significar mudanças na legislação, no sentido de que a transexualidade deixe de ser<br />
considerada uma patologia clínica.<br />
Mas é exatamente o fato de ser classificada como doença que permite que a cirurgia seja feita<br />
gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, o sus. Desde 1997, o procedimento é autorizado pelo<br />
Conselho Federal de Medicina como solução terapêutica para adequar a genitália ao sexo psíquico.<br />
As intervenções cirúrgicas só são possíveis se atenderem a critérios estabelecidos por uma<br />
resolução do Conselho. Uma equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo<br />
e assistente social deve produzir um laudo unânime sobre a necessidade do procedimento.<br />
O candidato ou candidata deve apresentar uma boa saúde mental, mas num quadro de desconforto<br />
extremo com seu sexo anatômico. Precisa manifestar a vontade de eliminar os genitais, o que<br />
significa perder as características primárias e secundárias do próprio sexo. Durante dois anos, a<br />
pessoa deve se vestir, se apresentar e se comportar como alguém do sexo que pretende assumir. Se<br />
depois de tudo, o paciente ainda quiser levar o plano adiante, a cirurgia é autorizada.<br />
O cirurgião Roberto Farina fez, em 1971, a primeira cirurgia de mudança de sexo no Brasil. Foi<br />
condenado a dois anos de reclusão por "lesões corporais graves", num processo movido pelo<br />
Conselho Federal de Medicina. Posteriormente, Farina foi absolvido e a Justiça reconheceu que não<br />
houve perda do pênis, visto que o órgão era inútil e que a cirurgia era a única maneira de aliviar a<br />
angústia do paciente.<br />
"É comovente como os pacientes usam argumentos tão variados para um mesmo sentimento",<br />
disse o psiquiatra Miguel Chalub, um dos responsáveis pelos laudos para as cirurgias do Pedro<br />
Ernesto. "Eles falam coisas do tipo 'foi um erro da natureza', 'é como se eu tivesse nascido com dois<br />
narizes, preciso consertar', 'sou uma mulher com um ponteiro a ser ajustado' ou ' isso é carne<br />
morta, uma verruga'."<br />
Ainda que os médicos possam diagnosticar o transtorno, não existem testes objetivos para provar o<br />
resultado. Do ponto de vista clínico, não há como ter absoluta certeza se a pessoa é realmente<br />
transexual. Os médicos se valem da experiência e da sensibilidade para fazer a triagem entre<br />
pacientes mentalmente saudáveis e os psicóticos, que são recusados para a operação.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 8 of 15<br />
20/9/2011<br />
"Quando eles chegam falando coisas do tipo 'Isso aqui cresceu de um dia para o outro, preciso<br />
tirar', algo está errado", disse o psicanalista Sergio Zaidhaft, referindo-se aos psicóticos. Ele fornece<br />
laudos psiquiátricos para os candidatos à cirurgia no Hospital Universitário Clementino Fraga<br />
Filho, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.<br />
Em março de 2003, Alexsandro montou o Grupo de Atenção Integral à Saúde das Pessoas que<br />
Vivenciam a Transexualidade, conhecido pela sigla gen. "No início, o ambulatório onde as<br />
transexuais eram atendidas virou um point de freakshow", ele disse. Resolveu então fazer palestras<br />
para o pessoal do hospital, e explicou a questão da transexualidade a agentes de segurança, técnicos<br />
de raios X, enfermeiros, maqueiros, ascensoristas, secretárias e mesmo diretores.<br />
Um dia, ele entreouviu o seguinte diálogo: "Ali é o ambulatório dos travecos", perguntou um<br />
segurança. "Traveco nada, rapaz, é transexual!", respondeu o outro. Os pelos do braço do médico se<br />
arrepiaram quando contou a história.<br />
"Foi tudo difícil, muitos profissionais não viam com bons olhos o programa, foi muito sofrimento,<br />
não sei como não desisti", disse. "Mas nossa ação foi ganhando repercussão, apresentávamos<br />
muitos trabalhos em congressos médicos, e as pessoas passaram a bater à nossa porta."<br />
Desde a criação do gen, Alexsandro operou oitenta pacientes. Hoje tem 140 em acompanhamento<br />
pré-operatório. A fila de espera é, em média, de dois anos. Ela inclui professores universitários,<br />
modelos, engenheiros, mães de santo, maestrinas, advogadas, domésticas, cabeleireiras,<br />
prostitutas, donas de casa e estudantes.<br />
A maioria tem um histórico parecido: teve que lidar com a rejeição familiar, o que fez com que<br />
saíssem de casa cedo, abandonassem os estudos e tentassem modificar a aparência física por conta<br />
própria. Na vida adulta, a maioria teve dificuldades em arrumar trabalho. Além do preconceito pelo<br />
aspecto físico, documentos com um nome incompatível com a figura afastam ainda mais as<br />
possibilidades. A situação provoca um sofrimento psíquico maior.<br />
Transexuais de todo Brasil são atendidos às quartas-feiras pela manhã no Hospital Pedro Ernesto.<br />
A maioria tem aparência andrógina. Vinte e cinco deles moram fora do Rio e têm as passagens<br />
reembolsadas pelo Sistema Único de Saúde.<br />
Antes de começar a maratona de consultas e exames, Alexsandro contou que uma das cafetinas<br />
mais populares de Copacabana o procurara, com uma mala de dinheiro, para furar a fila da<br />
operação. Mesmo que ela quisesse pagar pela cirurgia, deveria cumprir a exigência dos dois anos de<br />
acompanhamento terapêutico.<br />
Na fila de Alexsandro estão também pacientes com problemas diversos que, igualmente, exigem<br />
cirurgias urológicas reconstrutoras. Fez questão disso para evitar a segregação. "Não apoio uma<br />
divisão separada, como faziam com os tuberculosos antigamente", explicou, "porque a fila
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 9 of 15<br />
20/9/2011<br />
misturada é uma forma de inclusão social."<br />
Muitas de suas cirurgias são reparos de operações malfeitas. É o que deve ocorrer com Jane, uma<br />
mulher de 58 anos, magra, baixa e de aparência frágil que passou por uma cirurgia de troca de sexo<br />
no ano passado. Como não teve auxílio para tomar banho e ir ao banheiro, ela acabou perdendo o<br />
molde que mantém a forma do canal vaginal aberto até a cicatrização. A pele teve uma aderência e<br />
o canal fechou completamente.<br />
Jane tem uma genitália como a de uma boneca, não tem mais pênis ou vagina. Consegue urinar<br />
porque o orifício da uretra foi preservado. "Ficou feio, sem forma, não posso mostrar para<br />
ninguém" disse ela quando tentava marcar uma cirurgia reparadora com Alexsandro.<br />
Em uma manhã de março, a sala de espera estava lotada. Havia pacientes com câncer peniano,<br />
disfunções urinárias, falos malformados e travestis que queriam aumentar o pênis. Numa cadeira<br />
estava uma advogada que só se traveste quando chega à rodoviária do Rio. Em sua terra natal, vai<br />
ao fórum todos os dias de terno e gravata. Noutra, sentara-se uma prostituta que trabalha no Leme<br />
e que dobrou seu cachê depois de ter sido operada pelo doutor Alexsandro.<br />
Sentado no final da fila, um moreno alto chamava a atenção pelo porte e beleza. Havia sido<br />
chamado para posar nu em uma revista masculina e, ao saber que o cachê era condicionado ao<br />
tamanho do pênis, injetou silicone industrial no membro. O resultado foi como o de uma<br />
elefantíase, que deformou e inutilizou seu órgão sexual.<br />
"Ser operada pelo doutor Alexsandro é grife, tem glamour", disse K. que aguardava a sua primeira<br />
consulta com o médico. "Ele faz as periquitas mais bonitas do Brasil, ficam melhores que as<br />
originais." K. é alta e forte, usava salto alto, saia jeans curta, uma blusa verde colada ao corpo e<br />
sutiã com enchimento. Além de hormônios femininos, tomava também finasterida, para retardar a<br />
calvície em andamento. Ao avistar o cirurgião, seus olhos se encheram de lágrimas. "Deixa encostar<br />
nessas mãos de fada, doutor", pediu.<br />
A primeira a entrar no consultório foi uma mulher de cabelos loiros compridos, magra e de rosto<br />
fino, que usava um vestido de alcinha estampado com flores. Bonita e feminina, era praticamente<br />
impossível identificar características masculinas na sua aparência. Casada há dez anos, e operada<br />
há dois, passou a ter casos extraconjugais.<br />
"Preciso me autoafirmar enquanto mulher, doutor", justificou ela durante a consulta anual de<br />
revisão. Disse que tinha uma vida sexual muito satisfatória. Tinha orgasmos com facilidade, se<br />
masturbava e não precisava mais de lubrificantes para a penetração.<br />
Quando a mulher deixou a sala, Alexsandro comentou: "A operação fica cada vez melhor com o<br />
passar do tempo. A metaplasia, uma alteração celular, faz com que a pele tenda a assumir a função<br />
do tecido original e se adapte ao ambiente novo."
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 10 of 15<br />
20/9/2011<br />
O paciente seguinte, A., entrou com os ombros curvados e tinha olheiras profundas. Era difícil dizer<br />
se era um homem afeminado ou uma mulher masculinizada. Falava bem baixo, tinha cabelos<br />
encaracolados curtos e usava roupas unissex - calça jeans, blusa de algodão preta larga e tênis.<br />
A. explicou que não se travestia todo o tempo para "não bagunçar a cabeça" do filho. Só vestia as<br />
roupas da mulher quando não havia ninguém em casa. Seu plano é fazer a cirurgia, virar mulher,<br />
mudar de cidade e começar uma vida nova. Desde que começara o tratamento hormonal, sua<br />
esposa havia lhe pedido para dormir no sofá da sala. Ela vivia à base de tranquilizantes.<br />
A. é um transexual especial. Ele não é só um homem que quer ser mulher. É um homem que quer<br />
virar lésbica. Está convicto de que é uma mulher que ama outras mulheres. No que depender dele,<br />
seu casamento continuará.<br />
Casos de gênero que parecem confusos para um leigo são rotina na vida de Alexsandro. No<br />
intervalo de uma de suas consultas, ele se lembrou da história de duas transexuais, ambas nascidas<br />
homens, que haviam se conhecido na sala de espera do ambulatório de urologia do Pedro Ernesto.<br />
Uma era estudante da Universidade Federal Fluminense e já havia sido operada. A outra - que<br />
ainda mantinha o órgão sexual masculino - era uma psicóloga gaúcha. Foram morar juntas. Anos<br />
depois, tornaram-se um casal lésbico quando a segunda também passou pela cirurgia.<br />
Em 1952, soube-se da primeira cirurgia de mudança de sexo no mundo. Na Dinamarca, George se<br />
tornou Christine Jorgensen e, no ano seguinte, foi eleita A Mulher do Ano por diversos jornais e<br />
revistas. A história se espalhou e surgiram milhares de candidatos à operação.<br />
Até os anos 70, a cirurgia de alteração do sexo masculino para o feminino consistia na amputação<br />
do pênis e a modelação de um orifício funcional. Na década seguinte, passou-se a construir um<br />
feixe de tecidos semelhante ao clitóris - como exibiu a modelo Roberta Close nas páginas da<br />
Playboy em 1984. Atualmente, o desafio é reproduzir esteticamente uma vagina, preservando as<br />
terminações nervosas para garantir o prazer sexual.<br />
Depois do procedimento, as pacientes usam lubrificantes à base de gel até passarem a se umedecer<br />
sozinhas. A origem da secreção não é certa. Pode ser suor, dilatação dos vasos sanguíneos ou<br />
líquido seminal produzido pela próstata, que não é retirada.<br />
As pesquisas e a perícia de Alexsandro foram reconhecidas pela International Society for Sexual<br />
Medicine, que premiou sua técnica de vulvoplastia - procedimento que refina a parte interna do<br />
assoalho da vulva. "No exterior, a depilação é menos cavada e a cicatriz é mais central. Aqui, me<br />
preocupo em deixar a cicatriz na virilha, onde é mais fácil escondê-la", explicou.<br />
Outro trabalho seu foi premiado: o de reaproveitamento de tecidos do pênis de transexuais (que,<br />
em geral, seriam jogados fora) em pacientes mutilados recentemente. Ele também é editor da<br />
revista Urologia Contemporânea e diretor sul-americano da World Professional Association for<br />
Transgender Health.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 11 of 15<br />
20/9/2011<br />
Antes da cirurgia, médico e paciente sentam para definir os detalhes. Pode-se escolher entre lábios<br />
vaginais maiores ou menores, montes de Vênus mais lautos ou mais retos. "A escolha da vagina é<br />
bem individual", disse Alexsandro durante um jantar num centro comercial. "Algumas têm o mito<br />
da supermulher e querem vaginas com uma cavidade ampla, para serem penetradas por pênis<br />
grandes. Querem transar com vários homens. Outras têm fixação pelo orgasmo, outras querem<br />
apenas uma vagina funcional, pois querem continuar com o sexo anal. E há aquelas que só de não<br />
ter o pênis já estão contentes."<br />
Linda pertencia a essa última categoria. "Não quero saber como vai ficar e sim o que não vai ficar",<br />
ela me disse na véspera de sua cirurgia. "Só de cortar está ótimo, se tiver vagina melhor ainda." A<br />
operação havia sido antecipada devido ao seu estado emocional, que se deteriorara. Os especialistas<br />
que a atendiam alertaram sobre o risco de suicídio.<br />
Na sexta-feira, 28 de fevereiro, antes de o sol nascer, Linda já estava de banho tomado, enrolada<br />
em uma toalha em um dos leitos do Hospital Pedro Ernesto. Estava com os pés na cabeceira para<br />
ativar a circulação e evitar varizes. A operação estava marcada para as 9 horas. Os calmantes que<br />
tomara na véspera pareciam insuficientes. A cada dez minutos, ela olhava a hora na tela do celular.<br />
"Estou louca para me jogar na sala de cirurgia", disse. "Meus problemas vão acabar", falou.<br />
Às 9h30, o doutor Alexsandro entrou e Linda pulou na maca. "É uma cirurgia de caráter mutilante<br />
e irreversível, não trabalhamos com arrependimentos", ele disse. Ela mostrou estar segura. "Agora<br />
só vai tocar de novo no chão na segunda-feira", disse Alexsandro encarando sua paciente de soslaio.<br />
Deitada de barriga para cima, ela foi empurrada pelos longos corredores, pintados de verde-musgo<br />
e com a tinta descascando, até o centro cirúrgico. Ao longo de todo caminho, balbuciava para si<br />
mesma: "Nunca mais, Jesus Cristo, nunca mais."<br />
Às 10h30, sedada, ela foi levada para a sala de cirurgia, que, ao contrário de todas as demais, tinha<br />
as vitrines que dão para o corredor tapadas por um plástico azul. "O Pedro Ernesto é um hospital<br />
universitário, e normalmente as pessoas podem acompanhar as cirurgias", explicou Alexsandro.<br />
"Mas se eu deixar, isso aqui vira um show de bizarrice. Não quero alimentar o mito transexual."<br />
Apesar da equipe numerosa - três anestesistas, dois instrumentadores, duas enfermeiras, um<br />
técnico de enfermagem, o doutor Alexsandro e outro cirurgião, e dois residentes em urologia -<br />
ouvia-se apenas uma música tranquila ao fundo, e os batimentos cardíacos de Linda através dos<br />
aparelhos. "O ambiente está bem próximo do ideal", disse o cirurgião. "Já aconteceu de<br />
profissionais, por motivos religiosos, se recusarem a trabalhar nessas operações."<br />
Ele reuniu a equipe para as últimas orientações e puxou o banco ergonômico de couro preto, que<br />
traz de casa. "Como o pênis dela é acima da média, e tem um bom prepúcio, vamos usar a técnica<br />
da inversão da pele peniana", explicou.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 12 of 15<br />
20/9/2011<br />
Demóstenes Apostolides, urologista da Marinha, começaria a cirurgia. Era seu último dia no<br />
Hospital Pedro Ernesto, onde passou um ano no programa de especialização em cirurgia<br />
reconstrutora genital criado por Alexsandro. É a única formação em cirurgia dessa natureza no<br />
Brasil.<br />
Alexsandro cedeu seu banco ao colega. Apostolides sentou-se, puxou a máscara para cima do nariz<br />
e começou. Ele desmembrou o pênis por dentro do períneo, descascando-o como se fosse uma<br />
banana. A ideia era tirar as cartilagens, deixá-lo vazio. Os tecidos e a pele exteriores do pênis<br />
seriam mais tarde empurrados de volta para o períneo, por cima do reto, num espaço moldado com<br />
o dedo que faria as vezes de canal vaginal.<br />
De quando em quando, Apostolides pedia a Alexsandro para verificar a precisão dos cortes e<br />
orientar os próximos passos. Linda jazia imóvel, com as pernas abertas em posição ginecológica,<br />
coberta por lençóis azuis da cintura para baixo. O cheiro forte de sangue quente deixava o ar úmido<br />
e espesso, mas não inibia o apetite dos médicos. Durante quinze minutos, trocaram experiências<br />
gastronômicas, endereços de restaurantes e pratos que valiam a pena serem experimentados.<br />
Na segunda hora de cirurgia, Alexsandro assumiu o controle. O silêncio dominou a sala e a equipe<br />
formou uma rodinha em volta do chefe. Seus movimentos pareciam orquestrados. Ele empunhava<br />
bisturis, linhas e tesouras como se fosse ambidestro, com segurança e delicadeza notáveis. Por<br />
debaixo das máscaras, a equipe cochichava: "Aquilo ali é o quê", "Você viu o que ele fez com a<br />
uretra", "Nossa quem inventou isso" Ouviu-se até um "isso me dá até saudades do meu<br />
namorado".<br />
Alexsandro cortou um triângulo no meio da glande e costurou as duas pontas ao avesso, formando<br />
um delicado clitóris. Os testículos foram extraídos com a ajuda de um bisturi elétrico que, ao<br />
queimar o tecido, inundou a sala com um cheiro de carne esturricada. A pele do escroto foi esticada<br />
e usada para formar os grandes lábios. Os pequenos lábios foram feitos a partir do prepúcio e parte<br />
da uretra.<br />
A cada meia hora, Alexsandro reclinava o corpo para trás, tomando um pouco de distância para<br />
verificar a simetria. "Quem é de fora vê só barbárie, mas o olho treinado vê beleza", comentou. A<br />
hora final foi gasta costurando tudo o que foi desmembrado.<br />
Depois de seis horas, Alexsandro deu o último ponto e declarou a cirurgia terminada. Contemplou a<br />
joia que acabara de lapidar, virou-se para um dos residentes e indagou, provocativo : "E aí, Felipe"<br />
O rapaz não se intimidou. "Não me leve a mal, doutor, mas o conjunto da obra...", disse. Todos<br />
riram alto.<br />
A enfermeira residente, Aline Rodrigues, de 24 anos, tinha dúvidas sobre questões de fundo. "Não<br />
sei se o sus deveria pagar por essa cirurgia", ela me disse. "Falta verba para tantas coisas mais<br />
importantes. Para mim, todo homem tem ciúmes do próprio pênis, nunca vi um que quisesse tirar.<br />
Fora que não adianta, não vai ser mulher, não pode parir", disse.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 13 of 15<br />
20/9/2011<br />
À meia-noite, Linda acordou da anestesia. As outras cinco camas da enfermaria estavam ocupadas,<br />
mas todos dormiam. Em meio à escuridão, deslizou lentamente a mão direita por baixo do lençol e<br />
seus dedos hesitantes tatearam até o meio de suas pernas. "Estou livre, cortaram", disse. Sorriu e<br />
voltou a dormir.<br />
Pacientes amputados costumam ter a sensação de membro fantasma. Sentem sensações, dor e<br />
incômodo na parte amputada como se ela ainda existisse. Transexuais não sentem dor fantasma.<br />
"Isso só comprova que, para elas, o pênis de fato não fazia parte do corpo", explicou Alexsandro.<br />
Ele considerou a cirurgia de Linda um sucesso.<br />
No dia seguinte, Linda dava gargalhadas que eram ouvidas em todo o 5º andar do Pedro Ernesto.<br />
Disse estar com a impressão de sorrir por dentro. As dores do pós-operatório, os fios da sonda e do<br />
soro, não eram nada comparados à satisfação com que ela experimentava seu novo corpo.<br />
Durante a troca de curativos, pediu que tirassem uma foto do resultado com o seu celular. "Eu<br />
quero ver a cara dela", disse. Quando viu o trabalho de Alexsandro, seu rosto se iluminou. "Está<br />
perfeita, mesmo inchada já está bonita", disse, armazenando a imagem como tela de fundo do<br />
telefone. "Agora quero ver quem não vai deixar eu usar o banheiro feminino! Vou fazer xixi de porta<br />
aberta", gabou-se e gargalhou novamente.<br />
Quatro dias depois, Linda continuava radiante. "Nasci de novo, agora vou começar a viver de<br />
verdade", falou. Havia feito escova no cabelo e modelado a linha da sobrancelha. Ela me mostrou<br />
sua carteira de identidade, colocando o polegar sobre a foto em que aparecia menos sorridente e<br />
mais masculinizada. Ali, estava seu nome de registro: Orlando Vicente. Depois de operadas, o passo<br />
seguinte das pacientes é dar entrada na Justiça para a mudança de documentos.<br />
Como não há legislação específica, os transexuais ficam à mercê da deliberação de um juiz quando<br />
pedem a mudança oficial do nome. As interpretações são as mais diversas. Há os que permitem<br />
mudar nome e sexo nos documentos, mas não no cartório. Outros que obrigam a pessoa a escrever<br />
"transexual" no quesito "sexo". E os irredutíveis que negam todas as possibilidades.<br />
A alegação desses últimos é que se deve preservar o interesse de terceiros. Por exemplo, evitar que<br />
um desavisado se case com um transexual. Ou que um esportista participe de competições em<br />
categorias indevidas. Alexsandro conseguiu o apoio da <strong>Defensoria</strong> Pública do Rio para seu<br />
programa de assistência aos transexuais. O que fez com que, com o laudo da operação, as pacientes<br />
levem de quatro a cinco meses para terem seus novos registros em mãos.<br />
"Ninguém se apresenta com a genitália exposta", disse Heloísa Barboza, professora de direito civil<br />
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. "O que define homem ou mulher não é um pênis ou<br />
uma vagina. É o que a pessoa é." Como Heloísa Barboza é defensora da causa transexual, muitas<br />
vezes ela é considerada uma militante gay.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 14 of 15<br />
20/9/2011<br />
"Enquanto o Ministério da Saúde reconhece a minoria transexual, o jurídico não, o que é a cara do<br />
Brasil", ela disse, em sua casa. "Se a pessoa não obtém sua requalificação civil, o processo de<br />
transexualização não está completo." Segundo a professora, o maior entrave é de ordem moral: "É<br />
preconceito, desinformação e ignorância."<br />
Na Inglaterra e Espanha, há leis protetoras sobre a identidade de gênero. Não é preciso que a<br />
pessoa se submeta à mudança de sexo para obter novos documentos. Heranças, pensão e acesso a<br />
plano de saúde do cônjuge são garantidos.<br />
Depois de anos convivendo com transexuais, Heloísa Barboza formou uma opinião distinta do<br />
estereótipo vigente. Acha que, de fato, eles são pessoas conservadoras, que procuram fazer a<br />
congruência entre sexo e gênero para se enquadrarem no padrão heterossexual. "Elas sofreram<br />
tanto que buscam o modelo de maior aceitação, querem ser uma mulher como a Doris Day", disse.<br />
"Elas não são feministas, costumam ser recatadas, delicadas e menos exuberantes do que as<br />
travestis."<br />
Luciana passou pela cirurgia há três anos e virou mulher. Mas não ficou totalmente satisfeita com o<br />
novo corpo. Magricela, adoraria ter os seios maiores, engrossar um pouco as pernas e fazer escova<br />
definitiva nos cabelos. Aos 47 anos, ela é evangélica, e guarda a virgindade para a noite de núpcias.<br />
Ganha a vida como costureira, mas seus rendimentos mensais são insuficientes para comprar os<br />
hormônios femininos que terá que tomar para o resto da vida.<br />
Ela mora na Marambaia, subúrbio ao sul do Rio, em um casebre feito de tijolos, telhas Eternit,<br />
porta e janelas de papelão. Tudo o que possui são três máquinas de costura, uma cama coberta com<br />
lençóis gastos, um lampião, um ventilador, fogão e geladeira antigos. Ela largou a escola, no<br />
interior da Bahia, porque não suportava ouvir seu nome de batismo na chamada. A cada vez que a<br />
professora dizia "Carlos Alberto", tinha vontade de morrer.<br />
Apesar da vida pobre, Luciana se recusa a ir ao banco para buscar os vencimentos do segurodesemprego,<br />
só para não ser humilhada. "Vão chamar aquele nome e vai aparecer outra coisa;<br />
prefiro não ir", ela me disse, em sua casa. Também não vai a postos de saúde e por pouco não abriu<br />
mão de tirar carteira de identidade. Tremia só de pensar em ter que se apresentar para o<br />
alistamento militar. Assim que os sargentos responsáveis pela triagem a viram, logo a dispensaram.<br />
"Eu pago meus impostos, mas não me sinto uma cidadã. É um desamparo só", falou.<br />
Uma semana depois da cirurgia, Linda recebeu alta. Antes de ir embora, teve uma aula de higiene<br />
pessoal com uma enfermeira. "É como se você estivesse ensinando para uma criança", explicou-me<br />
a chefe de enfermagem Cristiane Amorim. "É tudo novo, elas não sabem nem como se limpar."<br />
Apesar da ardência causada pelos pontos, Linda se emocionou ao sentir o xixi escorrer por entre as<br />
pernas. Com medo de estragar a cirurgia ao subir as escadas do ônibus, pediu 50 reais emprestados<br />
a uma vizinha para voltar de táxi para casa.
Como mudar de sexo | Edição 43 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais<br />
mhtml:file://C:\Documents and Settings\egacirilo\Desktop\como_mudar_de_sexo_revista_...<br />
Page 15 of 15<br />
20/9/2011<br />
Alexsandro se prepara para ir, agora em maio, à Costa Rica. Uma vez por ano, ele se junta à<br />
organização Médicos sem Fronteiras e viaja o mundo operando crianças com anomalias genitais.<br />
Além de trabalhar no Pedro Ernesto, mantém um consultório privado. Apesar de não revelar<br />
quanto cobra, uma cirurgia de mudança de sexo pode custar mais de 50 mil reais.<br />
Linda ainda continuará com os tratamentos psicológico, psiquiátrico e médico por muitos anos.<br />
"Você acha que eu posso dar alta para um paciente desses Isso aqui é um compromisso de vida",<br />
disse Alexsandro.