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BRAUDEL PAPERS - Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

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A fábula das abelhasEduardo Gianetti da FonsecaA ética lida com aquilo que po<strong>de</strong> ser diferente doque é. O terremoto que aniquila uma comunida<strong>de</strong> oua leucemia que <strong>de</strong>strói <strong>de</strong> um jovem provocam em nosum sentimento intimo <strong>de</strong> revolta, mas não se prestam àcon<strong>de</strong>nação moral. São eventos naturais, <strong>de</strong>terminadospor mecanismos causais inerentes ao mundo físico eque in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m por completo da vonta<strong>de</strong> e escolhahumanas. Po<strong>de</strong>mos, é claro, evitar a construção <strong>de</strong>cida<strong>de</strong>s em áreas <strong>de</strong> risco e buscar a cura da leucemia;ou aceitar estoicamente os fatos; ou rezar. Mas seriaabsurdo supor que eventos como esses possam serdiferentes do que são. Completamente distinta é a nossareação diante do bombar<strong>de</strong>io aéreo <strong>de</strong> civis, do <strong>de</strong>svio<strong>de</strong> verbas públicas ou <strong>de</strong> um atropelamento na porta<strong>de</strong> uma escola. Ao sentimento <strong>de</strong> revolta junta-se aquia <strong>de</strong>saprovação moral — o juízo ético e a atribuição <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong> (dolosa ou culposa) aos causadores domal. Fazemos isso porque acreditamos estar diante <strong>de</strong>eventos que, <strong>de</strong> alguma forma, po<strong>de</strong>riam perfeitamentenão ter ocorrido. Em contraste com a ótica estritamentecientífica dos fenômenos, <strong>de</strong>ntro da qual “apenas o queacontece é possível”, o ponto <strong>de</strong> vista moral abre umabrecha para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o mundo como ele eesteja aquém do mundo como ele po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser.A ética parte da crença na existência <strong>de</strong> um hiato —alguns diriam abismo — separando a realida<strong>de</strong> humanado potencial humano. Esta crença no hiato, por sua vez,baseia-se numa experiência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mosfacilmente apreciar por nós mesmos.A condição humana pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> uma singular cisão.As funções vitais do organismo — todos os processosmetabólicos que ocorrem <strong>de</strong>ntro do nosso corpo — sãoeventos imunes à nossa vonta<strong>de</strong> e escolha conscientes,O coração bate, o sangue circula, o pulmão trabalhae o alimento é digerido sem que possamos <strong>de</strong>cidircomo acontecerá tudo isso. Sob o efeito do estímuloapropriado, o fígado segrega a bílis e as glândulassupra-renais a adrenalina. A eficácia <strong>de</strong> um anestésicoin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das crenças que o doente possa ter sobre oseu funcionamento.Mas quando passamos do metabolismo internodo corpo para a nossa relação com os eventos doambiente externo — para as nossas ações no mundo— imediatamente notamos uma mudança radical. Ocardíaco é livre para <strong>de</strong>cidir se vai ou não consultarum médico e o cirurgião escolhe a melhor técnica parareparar o coração <strong>de</strong>feituoso. Ciente <strong>de</strong> que a digestão doalimento ingerido ocorre à sua revelia, o prisioneiro po<strong>de</strong>ainda optar pela greve <strong>de</strong> fome como forma <strong>de</strong> protesto.Agir ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> agir são eventos que <strong>de</strong> alguma formapartem do indivíduo e que estão, portanto, abertos àinterferência <strong>de</strong> seus estados mentais — suas crenças,preferências e opiniões.Algumas ativida<strong>de</strong>s, é curioso notar, parecem situarsena fronteira cinzenta do controlável. Se prestarmosatenção ao fato (e se tivermos paciência para isso)po<strong>de</strong>mos acelerar ou retardar a respiração; <strong>de</strong> outromodo (e enquanto dormimos) ela encontra o seu próprioritmo. Há um sentido em que acordar na hora <strong>de</strong>sejadaé um ato <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> — algo que po<strong>de</strong>mos nos forçara fazer — , ao passo que nenhum esforço da vonta<strong>de</strong>consciente consegue nos fazer adormecer quando o sononão vem. Estar ciente <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>seja e precisa dormircostuma ser, <strong>de</strong> fato, um traço comum da insônia.A experiência subjetiva <strong>de</strong>ssa cisão entre aquilo quenos acontece e aquilo que fazemos é algo que cada umpo<strong>de</strong> facilmente constatar por si mesmo. O porquê dacisão e o que faz com que a fronteira esteja on<strong>de</strong> está— po<strong>de</strong>mos mexer o <strong>de</strong>do e a língua mas não o pâncrease o nervo óptico — são questões que se prestam a umtratamento científico e que a biologia po<strong>de</strong>rá talvezalgum dia ajudar a esclarecer.O que é certamente mais difícil imaginar é que oavanço da ciência possa algum dia refutar a valida<strong>de</strong>da nossa experiência subjetiva da cisão. A históriada ciência, é verda<strong>de</strong>, tem sido em gran<strong>de</strong> medida ahistória da <strong>de</strong>struição das nossas crenças em causalida<strong>de</strong>simaginárias: com um simples par <strong>de</strong> prismas polidos,por exemplo, Newton enterrou milênios <strong>de</strong> fantasiassobre as causas do arco-íris. Mas dai a supor que a nossasensação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> ao agir no mundo seja também elauma ilusão antropocêntrica há um fosso intransponível.Trata-se aqui <strong>de</strong> uma questão metafísica sobre o lugar daespécie humana no universo — o homem como parteapenas ou também como parceiro da criação - e uma daspoucas certezas firmes que se po<strong>de</strong> ter sobre o assunto éEduardo Giannetti da Fonseca é professor da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Economia</strong> da USP e realizou este trabalho como Professor <strong>de</strong> Pesquisa Octávio Gouvêa <strong>de</strong>Bulhões no <strong>Instituto</strong> <strong>Fernand</strong> <strong>Brau<strong>de</strong>l</strong> <strong>de</strong> <strong>Economia</strong> <strong>Mundial</strong>. Esta pesquisa está publicada em seu livro Vício privados, benefícios públicos? pela Companhiadas Letras.www.brau<strong>de</strong>l.org.br<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


que ele continuará fornecendo matéria-primapara especulação e <strong>de</strong>bate enquanto aindahouver filósofos no mundo para especular e<strong>de</strong>bater.Do ponto <strong>de</strong> vista da ética, aexperiência da cisão entre aquiloque nos acontece, <strong>de</strong> um lado,e aquilo que fazemos quandoagimos ou <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> agir,<strong>de</strong> outro, é crucial. O pontofundamental é que, comono caso dos eventos corporaisacima <strong>de</strong>scritos, nossosprocessos mentais tambémestão, em larga medida,apenas parcialmente sobnosso controle.O medo, a raiva, opavor e o pânico, porexemplo, são ocorrênciasemocionais às quais estamossujeitos em <strong>de</strong>terminadascircunstâncias. São eventosque, por assim dizer, nosatravessam sem pedirlicença ou fazer cerimônia;processos mentais que nãopo<strong>de</strong>mos simplesmenteescolher se <strong>de</strong>sejamos ou nãoter, assim como po<strong>de</strong>mosescolher, digamos,a hora em que<strong>de</strong>sejamos <strong>de</strong>spertarou a cor da roupaque vamos vestir.Se os nossos processos mentais estivessem inteiramentesob nosso comando consciente, po<strong>de</strong>ríamos não sóescolher à vonta<strong>de</strong> a personalida<strong>de</strong> e o caráter que nosparecessem mais aprazíveis, mas po<strong>de</strong>ríamos tambémviver em estado permanente <strong>de</strong> êxtase amoroso, furorcriativo e embriaguês eufórica. Ninguém precisariaescolher, como propõe o poeta, entre morrer <strong>de</strong> vodcaou <strong>de</strong> tédio. A indústria do álcool e a mídia <strong>de</strong> massairiam à falência.A ética é um filtro. Ela existe para impedir, em algumamedida, que aquilo que nos acontece espontaneamente- o sentimento agudo <strong>de</strong> medo - numa situação <strong>de</strong>perigo por exemplo — <strong>de</strong>termine sem mediação aquiloque faremos ao agir no mundo. A ética opera como umfiltro que modula e mo<strong>de</strong>ra o apelo dos estados mentaisem relação aos quais somos passivos, <strong>de</strong> modo a atenuarwww.brau<strong>de</strong>l.org.brseu po<strong>de</strong>r sobre nossas ações — por exemploimpedindo que, numa situação <strong>de</strong> perigocoletivo, cada um se entregue cegamente aoimpulso <strong>de</strong> sobrevivência.O mesmo raciocínio se aplica para avariada gama <strong>de</strong> ocorrências emocionais quenos impelem não a evitar ou fugir <strong>de</strong> algumacoisa, mas a buscar e perseguir um objetivo.“A preservação da nossa vida” observouSócrates, “<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma escolhacorreta do prazer... se ele é mais oumenos, se é amplo ou estreito,se é mais remoto ou maispróximo” (Protágoras,357a). Como até mesmoum libertino consumadotermina mais cedo oumais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrindo,discriminar prazeresé condição <strong>de</strong>sobrevivência para oindivíduo (e não só porcausa da Aids..). “Osefeitos <strong>de</strong> uma seqüência<strong>de</strong> prazeres dissolutos”,adverte o bispo e filósofomoral inglês Joseph Butler,“são com freqüênciamortais”.As coisas e imagens queespontaneamente, sem nospedir licença, suscitamem nós o <strong>de</strong>sejo e aambição, nem sempresão aquelas quetambém merecem governar o nosso <strong>de</strong>sejo e ambição.As aparências enganam. Entre o <strong>de</strong>sejado, <strong>de</strong> um lado,e o <strong>de</strong>sejável, <strong>de</strong> outro, está uma opinião — um juízo<strong>de</strong> valor que faz daquilo que se <strong>de</strong>seja algo merecedordo nosso <strong>de</strong>sejo. A ética inci<strong>de</strong> precisamente ai. Ela é ofiltro que separa o <strong>de</strong>sejado do <strong>de</strong>sejável.A diferença entre o <strong>de</strong>sejado e o <strong>de</strong>sejável ajuda aesclarecer a posição <strong>de</strong> Adam Smith quanto à ambiçãomaterial e o valor moral da riqueza. Para ele, o livremercadoe o <strong>de</strong>sejo da maioria <strong>de</strong> melhorar <strong>de</strong> vida são asduas variáveis responsáveis pelo <strong>de</strong>sempenho econômicodas nações, com o auto-interesse e o empenho dosjogadores sendo ainda mais <strong>de</strong>cisivos do que as regras dojogo. Na síntese formulada pelo próprio Smith:O esforço natural <strong>de</strong> cada indivíduo para melhorar suaprópria condição, quando se lhe permite ser exercitado com<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


liberda<strong>de</strong> e segurança, é um princípio tão po<strong>de</strong>roso que eleé capaz, por si só, e sem qualquer assistência, não apenas<strong>de</strong> conduzir a socieda<strong>de</strong> à riqueza e prosperida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>sobrepujar uma centena <strong>de</strong> obstruções impertinentes com asquais a estupi<strong>de</strong>z das leis humanas com tanta freqüênciaestorva sua operação.A hipótese comportamental adotada por Smith é a <strong>de</strong>que os indivíduos <strong>de</strong>sejam ar<strong>de</strong>ntemente melhorar suacondição <strong>de</strong> vida material, que eles lutarão com afincopor isso, e que usarão a liberda<strong>de</strong> conquistada — ouos favores que porventura arrancarem da autorida<strong>de</strong>política — para fazer valer seu auto-interesse econômico.“Gente do mesmo ramo <strong>de</strong> negócios”, observou Smith,“raramente se encontra, até mesmo para entretenimentoe diversão, sem que a conversa termine em algumaconspiração contra o público ou em algum conluio paraelevar os preços”. Isso é o <strong>de</strong>sejado, ou seja, assim age naprática não um ou outro gato pingado, mas o que elecostumava chamar <strong>de</strong> “a gran<strong>de</strong> multidão humana”.Mas Smith jamais confundiu o <strong>de</strong>sejado e o <strong>de</strong>sejável.Na Teoria dos Sentimentos Morais, ele procurou mostrarporque “a gran<strong>de</strong> multidão humana” <strong>de</strong>seja o que <strong>de</strong>sejae porque o <strong>de</strong>sejado, embora moralmente tolerável,estava longe <strong>de</strong> ser o <strong>de</strong>sejável:Nós <strong>de</strong>sejamos ambas as coisas, ser respeitáveis e serrespeitados. Nós receamos ambas as coisas, ser <strong>de</strong>sprezíveis e ser<strong>de</strong>sprezados. Mas ao chegarmos ao mundo logo <strong>de</strong>scobrimosque a sabedoria e a virtu<strong>de</strong> não são <strong>de</strong> forma alguma os únicosobjetos <strong>de</strong> respeito, nem o vício e a estupi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo.Nós assistimos com freqüência as atenções respeitosas domundo mais fortemente dirigidas para os ricos e po<strong>de</strong>rosos doque para os sábios e virtuosos. Nós assistimos com freqüênciaos vícios e a estupi<strong>de</strong>z dos imponentes muito menos<strong>de</strong>sprezados do que a pobreza e a fraqueza dos inocentes.Merecer, conquistar e usufruir o respeito e a admiraçãoda humanida<strong>de</strong> são os gran<strong>de</strong>s objetivos da ambição e daemulação. Dois caminhos distintos se apresentam diante <strong>de</strong>nós, os dois igualmente levando à consecução <strong>de</strong>ste objetivotão <strong>de</strong>sejado: um <strong>de</strong>les, pelo estudo da sabedoria e pela práticada virtu<strong>de</strong>; o outro, pela aquisição da riqueza e po<strong>de</strong>r Doistipos distintos <strong>de</strong> caráter se apresentam à nossa emulação:um <strong>de</strong>les, <strong>de</strong> ambição orgulhosa e avi<strong>de</strong>z ostentatória; ooutro, da modéstia humil<strong>de</strong> e da justiça equânime...São os sábios e virtuosos; um grupo seleto embora, eutema, reduzido, os verda<strong>de</strong>iros e resolutos admiradores dasabedoria e da virtu<strong>de</strong>. A gran<strong>de</strong> multidão humana são osadmiradores e veneradores, e, o que po<strong>de</strong> parecer ainda maisextraordinário, com freqüência admiradores e veneradores<strong>de</strong>sinteressados, da riqueza e do po<strong>de</strong>r.As simpatias <strong>de</strong> Smith enquanto filósofo moraldispensam comentário. Ele observou com frieza analíticawww.brau<strong>de</strong>l.org.bra conduta humana ao seu redor e foi capaz <strong>de</strong> constatar,por exemplo, que “para a maior parte das pessoas ricasa principal fruição da riqueza consiste em po<strong>de</strong>r exibila,algo que aos seus olhos nunca se dá <strong>de</strong> modo tãocompleto como quando elas parecem possuir aquelessinais <strong>de</strong> opulência que ninguém mais po<strong>de</strong> ter a nãoser elas mesmas”. Quase sem nos darmos conta (e nãoapenas no sentido literal) nós ten<strong>de</strong>mos “a exibir nossasriquezas e a escon<strong>de</strong>r nossa pobreza”.Mas ao contrário dos moralistas clássicos, entretanto,Smith jamais con<strong>de</strong>nou a aspiração espontânea da maioriae muito menos alimentou a ilusão <strong>de</strong> que a pregaçãomoral, a doutrinação bem-intencionada ou um “golpe<strong>de</strong> marketing” pela ética pu<strong>de</strong>ssem algum dia alteraressa realida<strong>de</strong>. Em sua teoria econômica, ele reconheceua força do <strong>de</strong>sejo pela riqueza e procurou analisar seusefeitos sob diferentes arranjos institucionais.Nada disso, contudo, o levou a confundir o <strong>de</strong>sejadocom o <strong>de</strong>sejável. Embora tolerável do ponto <strong>de</strong> vistamoral, e sob muitos aspectos surpreen<strong>de</strong>ntementebenéfico para o conjunto da socieda<strong>de</strong>, o auto-interesseeconômico do indivíduo estava longe <strong>de</strong> ser alguma coisaadmirável. Imaginar que a riqueza e o po<strong>de</strong>r pu<strong>de</strong>ssemter o dom <strong>de</strong> tomar os seus <strong>de</strong>tentores pessoas mais oumenos merecedoras do nosso respeito e estima semprefoi visto, por Adam Smith, como uma “corrupção dosnossos sentimentos morais”.Uma posição teórica muito distinta da smithiana,e que acabou em larga medida dominando a ciênciaeconômica no século 20, é a tese do egoísmo ético.Trata-se aqui, como será visto a seguir, da afirmaçãodo auto — interesse governado pelo motivo-monetárionão tanto como uma regularida<strong>de</strong> empírica, mais oumenos próxima dos fatos observáveis, mas como umaprescrição — como um i<strong>de</strong>al normativo <strong>de</strong> conduta parao indivíduo — tendo em vista os objetivos <strong>de</strong> promovera eficiência produtiva e alocativa da economia e <strong>de</strong>maximizar o nível <strong>de</strong> bem-estar material da socieda<strong>de</strong>.Dentro <strong>de</strong>ssa perspectiva, o <strong>de</strong>sejável é precisamenteaquilo que a “gran<strong>de</strong> multidão humana” retratada porAdam Smith <strong>de</strong>seja. Para os a<strong>de</strong>ptos do egoísmo ético“é apenas necessário que cada indivíduo aja <strong>de</strong> formaegoísta para que o bem <strong>de</strong> todos seja atingido”, já que“os melhores resultados seriam obtidos se as pessoasnão pensassem <strong>de</strong> todo em termos morais, mas agissemmeramente <strong>de</strong> modo egoísta”.O principal objetivo <strong>de</strong>ste ensaio será apresentar ediscutir criticamente o argumento que levou à tese doegoísmo ético na economia mo<strong>de</strong>rna. A intenção éexaminar os limites <strong>de</strong>ssa tese e analisar à luz da pesquisateórica e empírica mais recente, a importância da éticacomo fator <strong>de</strong> produção.<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


É praticamente certo que o egoísmo ético não temprece<strong>de</strong>nte nas filosofias antiga e medieval. Na filosofiamo<strong>de</strong>rna, sua formulação original remonta ao que era,<strong>de</strong> início, um poema satírico publicado anonimamenteem 1705 sob o título <strong>de</strong> A Colméia Ruidosa; ou canalhasfeitos honestos. O impacto inicial do poema foi quasenulo. Nove anos mais tar<strong>de</strong>, contudo, ele reapareceucomo parte <strong>de</strong> uma obra mais ampla, também anônima,e que acabou se tomando um dos maiores, senão omaior, succès <strong>de</strong>scandale em um século notório pelaousadia e prodigioso vigor <strong>de</strong> sua vida intelectual. Nasua nova roupagem, o poema original era seguido <strong>de</strong> umensaio sobre “a origem da virtu<strong>de</strong> moral” e cerca <strong>de</strong> vintecomentários emprosa aprofundando temas específicosabordados na sátira. O novo conjunto foi batizadoA Fábula das Abelhas; ou vícios privados, benefíciospúblicos; e o seu autor, como logo transpareceu, eraBernard Man<strong>de</strong>ville, um médico holandês radicado naInglaterra.Entre as características <strong>de</strong> Man<strong>de</strong>ville comointelectual, uma das mais salientes foi sem dúvidao seu gosto irreverente pelo paradoxo. Suas causasprediletas pareciam calculadas para atiçar nos leitoresmais ortodoxos o máximo <strong>de</strong> frisson e repulsa. Sob overniz <strong>de</strong> uma retórica mordaz e esmerada, ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ua prostituição feminina em nome da proteção dacastida<strong>de</strong> sexual e atacou a educação popular em nomeda preservação da felicida<strong>de</strong> do povo — a ignorânciaservindo, no caso, como uma espécie <strong>de</strong> ópio capaz <strong>de</strong>trazer contentamento e alegria aos menos favorecidos.Mas o seu mais fecundo paradoxo — aquele quefez <strong>de</strong> sua Fábula, como ironizou Samuel Johnson,“um livro que todo jovem possui em suas estantes nacrença errônea <strong>de</strong> que é um livro <strong>de</strong>pravado” — foi oargumento <strong>de</strong>senvolvido no poema satírico <strong>de</strong> 1705e imortalizado na fórmula elíptica “vícios privados,benefícios públicos”.A colméia da Fábula é uma miniatura da socieda<strong>de</strong>inglesa tal como a percebia Man<strong>de</strong>ville: “esses insetosviviam como os homens, e todas as nossas ações eles asfaziam em pequena escala”. A principal característicada colméia era a profunda dissociação entre as suasbrilhantes realizações práticas e econômicas, <strong>de</strong> um lado,e o <strong>de</strong>scontentamento ético das abelhas consigo próprias<strong>de</strong> outro. Na sua ingenuida<strong>de</strong>, elas não se davam conta<strong>de</strong> que ambas as coisas estavam intimamente ligadasentre si, que o vínculo entre uma e outra era o mesmoque une um efeito à sua causa. Tudo lá transcorria semmaiores abalos, até o dia em que suas preces são afinalatendidas por um <strong>de</strong>us impaciente que expulsa o vício,a má-fé e a hipocrisia <strong>de</strong> suas vidas. Em pouco tempo,www.brau<strong>de</strong>l.org.bras abelhas da colméia se <strong>de</strong>scobrem con<strong>de</strong>nadas a umaexistência insípida e medíocre, porém virtuosa, nointerior <strong>de</strong> uma árvore oca. Antes da súbita conversãodas abelhas, nenhuma outra colméia era tão pujante,próspera e bem governada quanto aquela. Sua indústriae seu po<strong>de</strong>rio militar conferiam-lhe respeito e renomeinternacionais. Suas leis, arte, ciência e tecnologia eramadmiradas e copiadas pelas colméias vizinhas. Emborahouvesse gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social entre as abelhas,não havia <strong>de</strong>semprego na colméia. E o avanço da técnicae da capacida<strong>de</strong> produtiva eram <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que todosse beneficiavam <strong>de</strong> alguma forma. Graças a isso, até ospobres <strong>de</strong> agora podiam “viver melhor que os ricos dopassado”.Mas não obstante todas estas conquistas e feitosnotáveis, a insatisfação era geral. As abelhas não tinhampaz e viviam se acusando e recriminando umas às outras.Nunca perdiam a chance <strong>de</strong> reclamar amargamente <strong>de</strong>sua triste condição. Um close-up da base motivacionalda colméia ajuda a esclarecer a razão.A economia da colméia girava alimentada pelosvícios que moviam as abelhas como consumidoras eprodutoras. Sua pujança e afluência resultavam <strong>de</strong> umespetáculo pouco edificante: “milhões procuravam darsatisfação mútua a sua cupi<strong>de</strong>z e ostentação”.Ao gastar seus rendimentos, as abelhas se entregavama um hedonismo insaciável. Eram escravas da volúpia, doexibicionismo e do capricho da moda. Já na produção,elas pertenciam a uma das duas classes fundamentaisem que se dividia a socieda<strong>de</strong> da colméia: os canalhasassumidos e os canalhas dissimulados. O grupo dosassumidos era composto por parasitas, especuladores,charlatões, falsificadores, estelionatários, proxenetas,ladrões comuns e todos aqueles que sendo inimigosdo “honesto labor, com sagacida<strong>de</strong> tiravam vantagemconsi<strong>de</strong>rável da lida do vizinho incauto e afável”.O outro grupo, mais numeroso, era constituído <strong>de</strong>abelhas ostensivamente honestas mas que, sempre quepodiam fazê-lo sem muito risco, aplicavam algumtruque ou trapaça contra clientes e fornecedores: “<strong>de</strong>todos os negócios a frau<strong>de</strong> era pane, nenhuma profissãoera isenta <strong>de</strong>ssa arte”. A este grupo pertenciam, entreoutros, advogados, comerciantes, industriais, militares,médicos, enfermeiras, balconistas, professores, políticos,padres, ministros <strong>de</strong> Estado e oficiais <strong>de</strong> justiça.O gran<strong>de</strong> sonho <strong>de</strong> cada abelha individual, nãoimportando a classe a que pertencesse, era encontrar ocaminho mais fácil e curto para sobrepujar as <strong>de</strong>mais emfama, po<strong>de</strong>r e riqueza. Aberta ou secretamente, todaselas viviam segundo a máxima do verso horaciano: “Damaneira honesta se você conseguir, mas <strong>de</strong> qualquer<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


maneira faça dinheiro”. A virtu<strong>de</strong> era o crime bemsucedido.Mas o problema é que as abelhas não eram apenasaproveitadoras, corruptas e egoístas. Elas também erammíopes e incapazes <strong>de</strong> ver que o esplendor econômicoda colméia, do qual tanto se orgulhavam, resultavaprecisamente <strong>de</strong> seus vícios e taras, “tal como na harmoniamusical sons dissonantes produzem unidos um acor<strong>de</strong>”.Elas não viam que, como <strong>de</strong> fato no seu próprio caso,“uma bela superestrutura po<strong>de</strong> ser construída sobre umafundação podre e <strong>de</strong>sprezível”.E como cada abelha individual se consi<strong>de</strong>rava melhorque as <strong>de</strong>mais, e acreditava sinceramente estar muitoacima <strong>de</strong> toda a <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pravação que percebiaà sua volta, o resultado era um clamor estrondoso pelaimplantação da ética e da justiça na colméia. A cada nova<strong>de</strong>núncia, a cada novo escândalo, ao menor inci<strong>de</strong>nteque se tornasse público, as abelhas embarcavam numaverda<strong>de</strong>ira orgia <strong>de</strong> insultos, acusações e recriminaçõesmútuas, cada uma clamando por mais honestida<strong>de</strong> erezando pela regeneração moral das <strong>de</strong>mais.É aí que Júpiter acaba per<strong>de</strong>ndo a paciência comas abelhas e resolve atendê-las. Ele baixa um <strong>de</strong>cretoeliminando qualquer traço <strong>de</strong> egoísmo, oportunismo ecorrupção da “colméia lamuriante”. De agora em diante,todos os hedonistas e canalhas (<strong>de</strong> ambas as classes) serãoparadigmas da retidão e da virtu<strong>de</strong>.A primeira coisa que acontece é um sentimentoprofundo e geral <strong>de</strong> vergonha. Cada abelha olha parao seu passado e se <strong>de</strong>para com aquilo que antes não via— suas próprias fraquezas, vícios e imperfeições. Cai amáscara da hipocrisia e caí o preço da carne. Os tribunaisse esvaziam. Os <strong>de</strong>vedores vão atrás dos credores parapagar o que <strong>de</strong>vem, mas estes preferem perdoar e esquecer.A advocacia <strong>de</strong>saparece do mapa como profissão (aindanão existiam economistas naquele tempo). A própriajustiça e o sistema penal tornam-se ociosos, e com elesse vão todos os <strong>de</strong>legados, policiais, carcereiros e oficiais<strong>de</strong> justiça. Alguns poucos médicos continuam existindo,mas melhor distribuídos pela colméia e voltados apenaspara o bem-estar do paciente. O uso <strong>de</strong> remédios<strong>de</strong>spenca. O clero <strong>de</strong>sperta do seu torpor, mas é tar<strong>de</strong><strong>de</strong>mais — já não há pecados a perdoar.Aos poucos, as repercussões da nova or<strong>de</strong>m se fazemsentir por toda parte. Os políticos e ministros <strong>de</strong> Estadotomam-se frugais e passam a viver apenas do seu salário.O setor público da economia experimenta uma brutalcontração. Os parasitas largam a mamata “e todos oscargos ocupados antes por três abelhas, que assistiam àcanalhice umas das outras, e com freqüência ajudavamsepor coleguismo no roubo, agora são ocupados porwww.brau<strong>de</strong>l.org.brapenas uma, <strong>de</strong> modo que mais alguns milhares sevão”.No setor privado, os efeitos do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Júpitersão ainda mais amplos. Sem guerras não há indústria <strong>de</strong>armamentos; sem o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ostentar não há produçãoe comércio <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> luxo; sem vaida<strong>de</strong> e inconstâncianão há indústria da moda. Bares, hotéis e restaurantesse esvaziam e as abelhas passam a vestir a mesma roupadurante anos. O comércio externo <strong>de</strong>clina. Lojas efábricas fecham em dominó. Os preços <strong>de</strong>sabam e o<strong>de</strong>semprego explo<strong>de</strong>. As abelhas per<strong>de</strong>m o interesse queas movia: já não se ligam em ganhar mais, ao menorcusto, para po<strong>de</strong>r gastar mais. “Ruína da indústria, asatisfação faz com que apreciem o que possuem e nadamais cobicem ou busquem”.O resultado final <strong>de</strong> toda essa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> efeitosinter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>flagrada pela súbita conversão dasabelhas é uma dupla <strong>de</strong>pressão — uma queda semprece<strong>de</strong>ntes na economia e a pasmaceira existencial.Uma tentativa <strong>de</strong> invasão externa e rechaçada a duraspenas, com o sacrifício <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> abelhas, até quepor fim a colméia outrora grandiosa e radiante se resignaao padrão <strong>de</strong> vida típico dos insetos sociais — umaexistência estagnada, reta e sem brilho, “abençoada pelocontentamento e honestida<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma árvoreoca. E como toda a fábula tem uma moral, esta tambémtermina anunciando a sua. Como esclarece o próprioMan<strong>de</strong>ville no prefácio da obra:O principal objetivo da Fábula (tomo é brevementeexplicado na moral) é mostrar a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>usufruir lodosos mais elegantes confortos da vida, com osquais nos <strong>de</strong>paramos em qualquer nação industriosa, ricae po<strong>de</strong>rosa, e ao mesmo tempo ser abençoado com toda avirtu<strong>de</strong> e inocência que se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>sejar numa ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ouro; e a partir disso exibir a tolice e insensatez daquelesque, <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> pertencer a um povo florescente e próspero,e maravilhosamente sequiosos dos benefícios que po<strong>de</strong>mreceber enquanto tal, estão no entanto sempre murmurandoe con<strong>de</strong>nando aqueles vícios e saliências que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o iníciodo mundo até o dia presente sempre foram inseparáveis <strong>de</strong>todos os remos e Estados que se renomaram pelo seu po<strong>de</strong>rio,riqueza e refinamento ao mesmo tempo.O argumento da Fábula, vale notar, vira <strong>de</strong> pontacabeçaa tese do “neolítico moral”, segundo a quala raiz dos nossos problemas sociais estaria numadisparida<strong>de</strong> crescente entre o avanço científico,tecnológico e econômico da humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um lado,e o retardamento ético dos indivíduos <strong>de</strong> outro. O vícionão é o filho bastardo e corrigível da prosperida<strong>de</strong>. Ele éo pai <strong>de</strong>la. O barro das motivações e taras humanas— egoísmo, ganância, inveja, vaida<strong>de</strong>, lascívia,<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


à administração da justiça sabiamente elaboradas eestritamente executadas.O fato, contudo, é que a trama da sátira <strong>de</strong>Man<strong>de</strong>ville parece ser em larga medida inconsistentecom a implementação <strong>de</strong>sse preceito. Pois se a justiçafosse estritamente implementada, isso levaria à extinção<strong>de</strong> uma das duas classes fundamentais da colméia, oscanalhas assumidos. Claramente, enfatizar a importância<strong>de</strong> um arcabouço respeitado <strong>de</strong> lei e or<strong>de</strong>m em nadacontribuiria para reforçar o tom <strong>de</strong> provocação e afrontada fábula.Outro ponto que merece atenção é o rigorismo éticosobre o qual se ergue o argumento central da Fábula.Para alcançar o efeito <strong>de</strong>sejado, Man<strong>de</strong>ville trabalhacom uma visão extraordinariamente restritiva do que éconduta moral: a noção <strong>de</strong> que toda a virtu<strong>de</strong> é feita<strong>de</strong> renúncia, isto é, da “rendição das paixões através<strong>de</strong> uma ambição racional <strong>de</strong> ser bom”; ao passo que,por oposição, toda conduta auto-interessada, e que <strong>de</strong>alguma forma beneficie o próprio agente, constitui ipsofacto uma ação egoísta e merece portanto ser chamada<strong>de</strong> vício.Que a renúncia seja um dos elementos centraisda conduta moral é algo que dificilmente se po<strong>de</strong>riacontestar. Mas <strong>de</strong>fini-la como uma total e absoluta“rendição das paixões” e elevá-la à condição <strong>de</strong> únicocaminho da virtu<strong>de</strong> — tudo o mais caindo na valacomum do vício — é um passo altamente questionável.Um passo que, se não coloca a ética <strong>de</strong>finitivamente forado alcance <strong>de</strong> meros bípe<strong>de</strong>s mortais como nós humanos,no mínimo retira <strong>de</strong>la qualquer relevância prática.Adam Smith, ao criticar o “sistema licencioso” <strong>de</strong>Man<strong>de</strong>ville na Teoria dos Sentimentos Morais, pôs o<strong>de</strong>do no nervo da questão: “A gran<strong>de</strong> falácia do livrodo Dr. Man<strong>de</strong>ville é representar toda paixão comointeiramente viciosa, na medida em que ela o seja emqualquer grau ou em qualquer direção”. Da mesma formaHume, criticando o “entusiasmo moral” associado aorigorismo ético, ironizou: “Imaginar que a gratificação<strong>de</strong> qualquer sentido, ou a satisfação <strong>de</strong> gostos refinadosem carnes, bebidas ou vestes, constitui por si um vício,é algo que jamais po<strong>de</strong>rá entrar numa cabeça que nãoesteja <strong>de</strong>sorientada pelos <strong>de</strong>svairios do entusiasmo. Defato, ouvi contar <strong>de</strong> um monge estrangeiro que, comoas janelas <strong>de</strong> sua cela se abriam por sobre uma belapaisagem, fez um pacto com os seus olhos para que elesnunca se voltassem naquela direção e recebessem umagratificação tão sensual”.Nem só <strong>de</strong> renúncia é feita a conduta moral. Aafirmação <strong>de</strong> valores na vida prática, a busca da felicida<strong>de</strong>e uma atenção pru<strong>de</strong>nte aos nossos assuntos particularessão princípios louváveis <strong>de</strong> ação, assim como a apatiae a preguiça — o <strong>de</strong>scaso e o <strong>de</strong>sleixo em relação ànossa própria pessoa — nada têm <strong>de</strong> meritório. Fazerdo ascetismo monástico o padrão universal da condutaética foi um dos estratagemas empregados com inegávelarte por Man<strong>de</strong>ville para potencializar o caráter paradoxalda Fábula.Finalmente, há o problema da interpretação dafórmula “vícios privados, benefícios públicos”. Háuma elipse enigmática separando as duas meta<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssaexpressão. Qual seria, mais precisamente, a naturezado mecanismo — da “alquimia divina” — responsávelpela transformação do vício das partes no esplendor dotodo?Entre as respostas possíveis, existem duas linhasbásicas <strong>de</strong> interpretação. Num pólo está a posição,<strong>de</strong>fendida por Jacoh Viner, <strong>de</strong> que Man<strong>de</strong>ville é aindabasicamente um mercantilista, e <strong>de</strong> que é através da“administração engenhosa por políticos habilidosos”,como diversas vezes ressalta o autor da Fábula, que osvícios privados se tornariam beneficio público.No outro pólo está a posição adotada por Hayek,entre outros, <strong>de</strong> que Man<strong>de</strong>ville é um precursor da “mãoinvisível” smithiana, e <strong>de</strong> que é através da liberda<strong>de</strong>econômica e <strong>de</strong> “regras gerais <strong>de</strong> conduta justa”, comoinsiste o economista austríaco, que os vícios privados<strong>de</strong>saguarão no beneficio público.Ambas as posições, é preciso admitir, sãorazoavelmente plausíveis. Em diversas passagens, porexemplo, Man<strong>de</strong>ville expressa o seu temor <strong>de</strong> que “asabedoria míope <strong>de</strong> pessoas talvez bem intencionadaspossa roubar-nos <strong>de</strong> uma felicida<strong>de</strong> que fluiria <strong>de</strong> modoespontâneo da própria natureza <strong>de</strong> qualquer gran<strong>de</strong>socieda<strong>de</strong>, se ninguém <strong>de</strong>sviasse ou interrompesse essacorrente”. Uma das principais funções <strong>de</strong> “leis sábias”seria justamente a <strong>de</strong> proteger o bem comum dos“gran<strong>de</strong>s prejuízos” causados “pela falta <strong>de</strong> conhecimentoou <strong>de</strong> probida<strong>de</strong> dos ministros, se algum <strong>de</strong>les se mostrarmenos capaz e honesto do que <strong>de</strong>sejaríamos que fosse”.Tudo isso seria difícil negar, é água no moinho dosque preferem Man<strong>de</strong>ville no panteão dos pioneiros doliberalismo econômico.Mas o fato, entretanto, é que existem fortes evidênciasapontando também na direção oposta. A importânciaque Man<strong>de</strong>ville atribui, por exemplo, à existência <strong>de</strong> umapopulação gran<strong>de</strong> e mal instruída (“abençoada” pela suaignorância), à preeminência internacional da colméia e,ainda, ao seu po<strong>de</strong>rio militar, são traços inequívocos <strong>de</strong>suas inclinações mercantilistas.www.brau<strong>de</strong>l.org.br<strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 0


Ainda mais sintomática é a ausência na sua obra, <strong>de</strong>qualquer argumento econômico articulado mostrandoo mecanismo pelo qual vícios privados redundariamem beneficio público. Todas as vezes em que se refereao conteúdo subentendido na elipse <strong>de</strong> sua fórmula,Man<strong>de</strong>ville invariavelmente ressalta o papel daautorida<strong>de</strong> política no <strong>de</strong>senho e implementação <strong>de</strong>políticas e instituições que tomem o interesse privadosubserviente ao bem comum. A mediação entre o barrotosco das partes e a fina porcelana do todo se dá através<strong>de</strong> um processo político que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, por sua vez, daexistência <strong>de</strong> “políticos habilidosos”. Man<strong>de</strong>ville pregoua liberda<strong>de</strong> econômica sem explicar porque ela po<strong>de</strong>riafuncionar. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um espetáculo curiosocontemplarmos um médico <strong>de</strong>scrente (assumido) e, noentanto, capaz <strong>de</strong> acreditar na “alquimia divina” comtamanha fé.A força do paradoxo man<strong>de</strong>villiano <strong>de</strong>riva <strong>de</strong>um exercício contra-factual. À colméia que aí está écontraposta uma outra colméia, hipotética, on<strong>de</strong> avirtu<strong>de</strong> e a honestida<strong>de</strong> ocupam o lugar do vício e dacorrupção. A questão proposta é: o que aconteceria se osmembros da comunida<strong>de</strong> suprimissem suas inclinaçõesegoístas, hedonistas e oportunistas para abraçar, digamos,o princípio da ética franciscana do “dar sem contar ocusto, trabalhar sem pedir recompensa”? A moral dafábula sugere a futilida<strong>de</strong> do clamor pela virtu<strong>de</strong> e induzà reconciliação da “colméia ruidosa” com a colméia queai está. O <strong>de</strong>sejado é o <strong>de</strong>sejável. Amor fati. O primeiropasso para tornar clara a fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse raciocínio emostrar o que há <strong>de</strong> fundamentalmente errado com atese do egoísmo ético é recorrer a um argumento contrafactualna direção oposta. Suponha que os indivíduosadotem como princípio <strong>de</strong> conduta na vida prática omais estrito, vigoroso e inexpugnável auto-interesse, istoé, que eles sejam absolutamente alheios a qualquer tipo<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração pelo bem‐estar dos <strong>de</strong>mais (egoísmo)e que jamais percam uma chance sequer <strong>de</strong> tirarproveito em benefício próprio da violação <strong>de</strong> normas<strong>de</strong> convivência social (oportunismo). Pergunta-se: o queaconteceria? Quais seriam as conseqüências prováveisda generalização do auto-interesse crasso — egoísmo +oportunismo — por toda a socieda<strong>de</strong>? Até que pontose po<strong>de</strong>ria supor, como sustentam Milton Friedman,George Stigler e outros a<strong>de</strong>ptos recentes do egoísmoético, que uma população assim constituída conduziriaa socieda<strong>de</strong> ao máximo <strong>de</strong> eficiência e prosperida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o Estado não atrapalhe <strong>de</strong>mais e os jogadoressejam livres para perseguir o seu auto-interesse <strong>de</strong>ntrodas regras do jogo da economia <strong>de</strong> mercado?Há boas razões para acreditar que, sejam quaisforem as regras do jogo econômico, o auto-interessecrasso é muito mais um obstáculo do que um insumona busca da eficiência e do crescimento econômicos.O fato, como será visto em <strong>de</strong>talhe a seguir, é que asimples maximização do auto-interesse individual, seminibições e preocupações morais, é um princípio <strong>de</strong>conduta ina<strong>de</strong>quado — e com freqüência letal — tantopara o bom <strong>de</strong>sempenho da economia como para aprópria existência do mercado enquanto mecanismo <strong>de</strong>coor<strong>de</strong>nação econômica.Afirmar que a virtu<strong>de</strong> pura não funciona na economia,o que é verda<strong>de</strong>iro, <strong>de</strong> forma alguma significa dizer queo vício puro funcione, o que é falso. E para mostrarisso não é necessário invocar um planeta povoado porHitlers, Stalins, Neros e Genghis Khans. Basta examinaralguns casos concretos on<strong>de</strong> a ética — pela sua presençaou ausência — parece <strong>de</strong> fato <strong>de</strong>cidir o resultado dapartida.O imperativo da justiça, como condição <strong>de</strong> existênciada vida comunitária em socieda<strong>de</strong>s complexas, ocupalugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no pensamento <strong>de</strong> Adam Smith, e nemmesmo Man<strong>de</strong>ville <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fazer uma clara reverência— ainda que um tanto encabulada — na sua direção.No limite, como assinala Joan Robinson em FilosofiaEconômica, “uma socieda<strong>de</strong> constituída <strong>de</strong> egoístasirrefreados se espatifaria em pedaços”. A existência <strong>de</strong>um arcabouço respeitado <strong>de</strong> lei e or<strong>de</strong>m, protegendocada indivíduo contra atos <strong>de</strong> violência, roubo e frau<strong>de</strong>,é o que nos separa da guerra. E a guerra é a negação daeconomia.O mínimo legal da convivência humana civilizadana política (<strong>de</strong>mocracia) e na economia (mercado) po<strong>de</strong>parecer pouca coisa. Mas a experiência vem mostrando,entretanto, como por exemplo nas economias do LesteEuropeu em transição para o mercado ou nas socieda<strong>de</strong>satrasadas do Terceiro Mundo on<strong>de</strong> as instituições datroca não se firmam, que conquistar e consolidar estepouco é tarefa bem mais difícil do que parece.Mesmo sendo pouco, o mínimo legal já é, <strong>de</strong> fato,muita coisa. Como qualquer regulamento, o arcabouço <strong>de</strong>lei e or<strong>de</strong>m apenas é respeitado quando a gran<strong>de</strong> maioriados indivíduos se dispõe a obe<strong>de</strong>cê-lo voluntariamente.Para que isso ocorra, o po<strong>de</strong>r coercitivo da autorida<strong>de</strong>estatal e o cálculo racional do auto-interesse crasso nãobastam. A or<strong>de</strong>m social e a or<strong>de</strong>m do mercado estãoancoradas numa infra-estrutura ética. Para escapar donaufrágio, nenhuma das duas po<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong>la.A a<strong>de</strong>são ao mínimo legal requer uma dose consi<strong>de</strong>rável<strong>de</strong> sentimentos e crenças morais, formadas a partir <strong>de</strong> umlongo processo <strong>de</strong> aprendizado na família e no sistemaescolar, que contenham a violação das leis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>www.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 10


certos limites. As estatísticas <strong>de</strong> crimes violentos não sóem países pobres, mas também em algumas das naçõesmais ricas do planeta, revelam os limites e a fragilida<strong>de</strong>da a<strong>de</strong>são ao mínimo legal no mundo contemporâneo.Nos Estados Unidos, por exemplo, 25% das escolas<strong>de</strong> segundo grau em áreas urbanas já adquiriram einstalaram <strong>de</strong>tectores <strong>de</strong> metais para tentar coibir o uso<strong>de</strong> armas pelos alunos no recinto da escola. O futuro nãoestá escrito. Mas é preciso lembrar que, ao contrário dosatributos físicos do corpo, crenças e sentimentos moraisnão são transmitidos geneticamente entre gerações.Do ponto <strong>de</strong> vista econômico o mínimo legalpressuposto pelos a<strong>de</strong>ptos da teoria econômica pura,com base no princípio do egoísmo ético, está longe<strong>de</strong> ser tudo. O que é enganoso, contudo, é supor <strong>de</strong>antemão a sua existência como dada ou o respeito a elepelos jogadores como universal.A conquista e a consolidação do mínimo legal sãotarefas mais complicadas do que se po<strong>de</strong>ria imaginarà primeira vista e o sucesso em realizá-las, mesmosem ser tudo, é já gran<strong>de</strong> coisa. O risco <strong>de</strong> pressuporo mínimo legal como dado na economia é per<strong>de</strong>r <strong>de</strong>vista a variabilida<strong>de</strong> e a precarieda<strong>de</strong> da a<strong>de</strong>são a ele.O fato relevante é que, longe <strong>de</strong> ser alguma coisa dada<strong>de</strong> antemão, po<strong>de</strong>r usufruir <strong>de</strong> um mínimo legal bem<strong>de</strong>finidoe amplamente acatado é em si mesmo umextraordinário beneficio para qualquer economia. Areal dimensão <strong>de</strong>sse beneficio é dificilmente notada eapreciada enquanto se po<strong>de</strong> contar com ele. Como asaú<strong>de</strong>, o mínimo legal da interação econômica apenascostuma se fazer notar quando falta.O mínimo legal da economia <strong>de</strong> mercado inclui, alémda legislação criminal básica, regras que estabelecem afronteira entre o que é lícito e o que é ilícito na ativida<strong>de</strong>econômica. Sabotar as operações da empresa rival ousubornar o seu gerente <strong>de</strong> marketing são violações dasregras mínimas da competição. Mas manter para si (oupatentear) um segredo industrial ou atrair o tal gerenteoferecendo um salário mais alto fazem parte das regrasdo jogo, embora suas conseqüências para a empresa rivalpossam ser muito piores do que no primeiro caso.O mínimo legal da or<strong>de</strong>m do mercado — direitos<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> bem-<strong>de</strong>finidos, liberda<strong>de</strong> e garantia<strong>de</strong> execução <strong>de</strong> contratos e prevenção <strong>de</strong> práticas anticompetitivas— tem como objetivo básico barrar astentativas dos agentes econômicos <strong>de</strong> viver às custas dos<strong>de</strong>mais, colhendo o que não plantaram.A importância da prevenção <strong>de</strong> práticas anticompetitivasnesse contexto é bem assinalada por Viner:“Praticamente todo apoio, em termos éticos e econômicos,que a teoria econômica dá ao sistema <strong>de</strong> livre-iniciativa,baseia-se no pressuposto <strong>de</strong> que o empreendimento énão apenas privado e livre , mas que é competitivo”. Acompetição estimula a - empresa livre e privada a buscarganhos <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> através da inovação técnica eorganizacional. Mas para que esses ganhos cheguem atéon<strong>de</strong> se <strong>de</strong>seja, ou seja, até o bolso, o estômago e a sala<strong>de</strong> estar do público consumidor, é imprescindível queela opere num ambiente competitivo.Outro elemento crucial para que o sistema funcioneé a confiança, por parte <strong>de</strong> cada indivíduo e <strong>de</strong> cadaempresa, <strong>de</strong> que o resultado final <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>sserá avaliado e remunerado <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>acordo com a disposição dos consumidores em pagarpor eles.O problema é que se este vínculo entre ativida<strong>de</strong>,avaliação e remuneração se toma irregular e incerto,ou seja, se o mínimo legal do mercado não é garantidopelo Estado e passa a ser amplamente contestado e<strong>de</strong>srespeitado, os agentes não só per<strong>de</strong>m a confiança <strong>de</strong>que po<strong>de</strong>rão <strong>de</strong> fato colher mais à frente o que <strong>de</strong>cidiremplantar hoje, como passam a reorientar seus esforçose talento na tentativa <strong>de</strong> colher agora o que os outrosplantaram antes. Os efeitos <strong>de</strong>ssa quebra <strong>de</strong> confiançano mínimo legal do mercado são bem analisados porDavid Ricardo:A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> emprego num país <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> não apenasda quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capital, mas da sua distribuição vantajosae, sobretudo, da convicção <strong>de</strong> cada capitalista <strong>de</strong> que lheserá permitido usufruir sem ser molestada, dos frutos do seucapital, sua habilida<strong>de</strong> e sua capacida<strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>dora.Retirar <strong>de</strong>le tal convicção é aniquilar <strong>de</strong> uma só vez meta<strong>de</strong>da indústria produtiva da nação e seria mais fatal para otrabalhador pobre do que para o próprio capitalista rico.O problema é que tanto um Estado fraco e inoperantequanto um Estado excessivamente forte e voraz minam aconfiança do setor privado no mínimo legal do mercado.O primeiro porque se mostra incapaz <strong>de</strong> garantir ajustiça e proteger os agentes dos avanços predatórios dos<strong>de</strong>mais; e o segundo porque ele próprio acaba se tornandoa gran<strong>de</strong> ameaça <strong>de</strong> invasão predatória, colhendo para si,através <strong>de</strong> impostos e confiscos, o resultado das ativida<strong>de</strong>sprodutivas do setor privado.Pior do que um ou outro, apenas uma combinaçãoperversa <strong>de</strong> ambos: o Estado que combina a inoperância naadministração da justiça com a voracida<strong>de</strong> irresponsáveldo lado fiscal.Infelizmente, esse híbrido monstruoso — uma espécie<strong>de</strong> leviatã anêmico — é uma praga teimosa da qualdiversas economias na América Latina e África parecemwww.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 11


não conseguir se livrar. A manutenção do mínimolegal do mercado, como dizia Mill sobre a segurança,“consiste na proteção pelo governo, e na proteção contrao governo”. O que ele não po<strong>de</strong>ria imaginar é que algumdia ambas as coisas pu<strong>de</strong>ssem ser urgentes ao mesmotempo.Entre as causas da erosão do mínimo legal domercado, a inflação crônica merece lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque.A moeda é parte do sistema <strong>de</strong> pesos e medidas que dãoprecisão e transparência às transações econômicas. Afalta <strong>de</strong> um padrão monetário com valor relativamenteestável torna precário qualquer cálculo <strong>de</strong> retomodas ativida<strong>de</strong>s econômicas. Ela promove enormestransferências arbitrárias <strong>de</strong> renda entre o setor públicoe o privado, bem como no interior <strong>de</strong>ste, estimulandopadrões <strong>de</strong> conduta incompatíveis com a ética e a lógicado mercado. (Uma abordagem preliminar das relaçõesentre ética e inflação encontra-se no ensaio Ética einflação, publicado em <strong>Brau<strong>de</strong>l</strong> Papers no. 1.).Um fator crucial para a <strong>de</strong>fesa do mínimo legal domercado pelo governo e contra o governo é a própriamoralida<strong>de</strong> dos governantes. Poucas coisas seriam (e são)mais corrosivas do respeito às regras do jogo da economia<strong>de</strong> mercado do que a extensão da tese do egoísmo éticopara os ocupantes <strong>de</strong> cargos no setor público. Se osmembros do governo e os oficiais <strong>de</strong> justiça passassem apautar suas ações pela busca do auto-interesse crasso, oresultado seria não só a prática generalizada do “para osamigos tudo, para os inimigos a lei”, mas a subordinaçãodo próprio processo legislativo a interesses pessoais.Que isso já ocorra, em alguma medida, na prática,como apontam os teóricos da “escolha pública”, pareceser um fato inegável. Mas seria também difícil negar,por outro lado, que a experiência internacional <strong>de</strong>corrupção e abuso do po<strong>de</strong>r político é marcada por umaespantosa diversida<strong>de</strong>, com situações que vão da Suíçaà Nigéria. Entre as causas <strong>de</strong>ssa diversida<strong>de</strong> está muitoprovavelmente a operação <strong>de</strong> sanções e condicionantesmorais no exercício <strong>de</strong> funções públicas. É importante<strong>de</strong>ixar claro que a proposta favorita dos a<strong>de</strong>ptos da“escolha pública” para lidar com o problema do abusodo po<strong>de</strong>r em regimes <strong>de</strong>mocráticos — a criação <strong>de</strong> regrase salvaguardas constitucionais impondo limites para amargem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e ação discricionária dos governantes— <strong>de</strong> forma alguma prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> um generoso insumo<strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> política.Os requisitos morais da proposta são: (a) a existência<strong>de</strong> constituintes dispostos a legislar pelo que acreditamser o bem comum; e (b) a atuação vigilante <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>rjudiciário capaz <strong>de</strong> fazer cumprir a constituição apesarda resistência (ou coisa pior) <strong>de</strong> políticos recalcitrantes.Sem ética há uma regressão infinita: quem guarda osguardiões?O ponto central é que a qualida<strong>de</strong> dos jogadores afetaa natureza e a robustez das regras do jogo. Jogadoresmotivados pelo auto-interesse crasso não se contentamem perseguir seus objetivos <strong>de</strong>ntro da or<strong>de</strong>m do mercadoe jogar limpo todo o tempo: eles irão persistentementetentar — e muitas vezes conseguirão — driblar asrestrições que o mínimo legal do mercado <strong>de</strong>fine.E pior: quando a própria autorida<strong>de</strong> política — ojuiz da partida — fraqueja ou adota o auto-interessecrasso como princípio <strong>de</strong> ação, o resultado é a total<strong>de</strong>turpação não só do andamento do jogo, mas do placarfinal medido em termos <strong>de</strong> eficiência produtiva e criação<strong>de</strong> riqueza.A lei sem suporte moral é letra morta. A falta <strong>de</strong>compromisso com a ética torna precária e incerta avigência do mínimo legal do mercado. Muitas vezesela acarreta o seu completo <strong>de</strong>svirtuamento, com sériasconseqüências para o <strong>de</strong>sempenho da economia. Mais dowww.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 12


que isso, a tese doegoísmo éticose revela um ponto<strong>de</strong> vista ina<strong>de</strong>quado e<strong>de</strong>ficiente mesmo nahipótese (generosa) <strong>de</strong> queas regras do jogo do sistema<strong>de</strong> mercado estão dadas<strong>de</strong> antemão e não serãovioladas <strong>de</strong> forma sistemáticapelos jogadores ou pelo juiz dapartida.Qual a natureza da relaçãoentre o ético e o útil? Oegoísmo ético, inspirado na“mão invisível” smithiana,privilegia as regras do jogoeconômico, ou seja, o livremercadopropelido pelo autointeressedos jogadores, como fator responsável pelariqueza das nações. Dado o mercado e um arcabouçorespeitado <strong>de</strong> lei e or<strong>de</strong>m, a prosperida<strong>de</strong> econômica éatingida apesar da falta <strong>de</strong> ética dos jogadores (AdamSmith) ou por causa <strong>de</strong>la (Man<strong>de</strong>ville e Chicago). O útilin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do ético ou é função negativa <strong>de</strong>le.Mas se adotarmos a perspectiva da ética como fator<strong>de</strong> produção o quadro se altera radicalmente. Quantoàs regras do jogo, não há muito o que discordar. Aeconomia <strong>de</strong> mercado regida pelo sistema <strong>de</strong> preçosé a melhor solução para o problema da coor<strong>de</strong>naçãoeconômica e da alocação eficiente <strong>de</strong> recursos. A gran<strong>de</strong>diferença está no peso atribuído à variável qualida<strong>de</strong> dosjogadores — e à ética em particular — enquanto fator<strong>de</strong>terminante do <strong>de</strong>sempenho econômico <strong>de</strong> empresase nações.O que está em jogo, portanto, não são as proprieda<strong>de</strong>snotáveis e surpreen<strong>de</strong>ntes da “mão invisível” smithianaou a universalida<strong>de</strong> e a força do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> cada pessoa <strong>de</strong>melhorar <strong>de</strong> vida. Até ai tudo bem. O que se questionaé o que se faz a partir daí: a tese <strong>de</strong> que as regras do jogodo mercado representam uma espécie <strong>de</strong> sinal ver<strong>de</strong> parao vale-tudo no campo da ética e <strong>de</strong> que o auto-interesse<strong>de</strong>ntro da lei basta.Como procurei argumentar neste ensaio, existemduas razões básicas e <strong>de</strong> caráter rigorosamenteprático — para não invocarmos motivos maiselevados — pelas quais se <strong>de</strong>ve rever a noçãoque se tornou dominante na teoria econômicado pós-guerra e segundo a qual o mercadosignifica “férias morais” para os jogadores.Primeiro, porque as regras do jogoeconômico — inclusive, é claro, a a<strong>de</strong>sãoe o respeito ao mínimo legal do mercado— <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da qualida<strong>de</strong> dos jogadores.Como foi sugerido acima, a existência <strong>de</strong>um Estado enxuto e capaz <strong>de</strong> administrara justiça, <strong>de</strong> um lado, e a disposição damaioria dos indivíduos <strong>de</strong> acatar as regrasdo jogo, <strong>de</strong> outro, pressupõem umgeneroso insumo <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> cívica.Na ausência <strong>de</strong>ste insumo — comoparece ser o caso em boa parte das naçõesem <strong>de</strong>senvolvimento — as instituições domercado competitivo não se firmam e o jogoeconômico da socieda<strong>de</strong> ten<strong>de</strong> a prosseguir <strong>de</strong> modoprecário, instável e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado.E segundo, porque o bom funcionamento das regrasdo jogo do mercado e das organizações hierárquicas dasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da qualida<strong>de</strong> dos jogadores. Tantoa experiência <strong>de</strong> homens práticos como a evolução dateoria econômica fornecem boas razões para sustentara tese <strong>de</strong> que a ética conta. Dado o sistema <strong>de</strong> mercadoe um arcabouço respeitado <strong>de</strong> lei e or<strong>de</strong>m, a riquezadas nações é, em larga medida, explicada pela presença<strong>de</strong> valores éticos e normas sociais na vida prática doswww.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 13


jogadores. Entre o <strong>de</strong>sejado por cada indivíduo, <strong>de</strong> umlado, e o <strong>de</strong>sejável para o grupo a que ele pertence, <strong>de</strong>outro, existem valores e normas <strong>de</strong> interesse comum aserem preservados. O útil, em suma, é função positivado ético.No “gran<strong>de</strong> tabuleiro <strong>de</strong> xadrez da socieda<strong>de</strong> humana”as regras do jogo são importantes, mas estão longe <strong>de</strong>ser tudo. É ilusão supor que o auto-interesse <strong>de</strong>ntroda lei é tudo o que o mercado precisa para mostrar doque ele é capaz na criação <strong>de</strong> riqueza. A qualida<strong>de</strong> dosjogadores — as variações <strong>de</strong> motivação e conduta naação individual — afetam a natureza das regras do jogoe exercem, juntamente com elas, um papel <strong>de</strong>cisivo no<strong>de</strong>sempenho da economia.Tanto a constituição econômica vigente quanto oexercício da cidadania na vida produtiva <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> crenças e sentimentosmorais sobre o qual muito pouco se sabe <strong>de</strong> um ponto<strong>de</strong> vista científico. Uma coisa no entanto, parece certa.Negligenciar esse processo e as variações a que eleestá sujeito é per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista um dos fatores <strong>de</strong>cisivosna explicação das causas da riqueza e da pobreza dasnações.A colméia ruidosa, ou os canalhasque se tornaram honestosBernard Man<strong>de</strong>villeUma gran<strong>de</strong> colméia, <strong>de</strong> abelhas repleta,Que viviam em luxuosida<strong>de</strong> completa,Porém tão famosa por leis e açãoQuanto por copiosa população,Constituía o gran<strong>de</strong> manancialDo saber científico e industrial.Não havia abelhas com governo melhor,Com mais contentamento, inconstância menor;Não eram escravas da tirania,Nem sofriam com <strong>de</strong>mocracia,Mas tinham reis, que errar não podiam,Pois seu po<strong>de</strong>r as leis comediam.(...)Embora o enxame a fértil colméia abarrotasse,Essa multidão fazia com que ela prosperasse;Milhões procuravam dar satisfaçãoMútua a sua cupi<strong>de</strong>z e ostentação;Outros tantos entravam na lidaPara ver sua obra <strong>de</strong>struída.Abasteciam o mundo com sobra,Mas tinham mais trabalho que mão-<strong>de</strong>-obra.Alguns, com pouco esforço e gran<strong>de</strong> capital,Faziam negócios <strong>de</strong> lucro monumental;Outros, con<strong>de</strong>nados a foices e espadasE a todas essas árduas empreitadasEm que, voluntariamente, infelizes suavamPara po<strong>de</strong>r comer, as forças esgotavam;Outros ainda a mistérios estavam votados,Aos quais poucos aprendizes eram encaminhadaQue não requeriam senão o impudor,E sem um centavo podiam se imporComo parasitas, gigolôs, ladrões,Punguistas, falsários, magos, charlatões,E todos os que, por inimiza<strong>de</strong>Ao honesto labor, com sagacida<strong>de</strong>Tiravam vantagem consi<strong>de</strong>rávelDa lida do vizinho incauto e afável.Chamavam-nos canalhas, mas os diligentes,Exceto o nome, não agiam diferente.De todos os negócios a frau<strong>de</strong> era parte,Nenhuma profissão era isenta <strong>de</strong>ssa arte.(...)Assim, o vício em cada parte vivia,Mas o todo, um paraíso constituía;Temidos na guerra, na paz incensados,Pelos estrangeiros era respeitados,E, <strong>de</strong> riquezas e vidas abundante,Entre as colméias era a prepon<strong>de</strong>rante.Tais eram as bênçãos daquele estado;Seus crimes tomavam-no abastado;E a virtu<strong>de</strong>, que com a politicagemApren<strong>de</strong>ra bastante malandragem,Tomara-se, pela feliz influência,Amiga do vício; por conseqüência,O pior elemento em toda a multidãoRealizava algo para o bem da nação.(...)www.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 14


Assim, o vício fomentava o engenhoQue, unido ao tempo e ao bom <strong>de</strong>sempenho,Propiciava da vida as comodida<strong>de</strong>s,Seus prazeres, confortos e facilida<strong>de</strong>s,A tal extremo que mesmo os miseráveisViviam melhor que os ricos do passado,E nada podia ser acrescentado.Como é vã dos mortais a felicida<strong>de</strong>!Soubessem eles da precarieda<strong>de</strong>,E <strong>de</strong> que, cá embaixo, a perfeiçãoNão po<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>uses ser concessão,Teriam os animais se contentadoCom ministros e governo instalados.Porém eles, a cada sobrevento,Como seres perdidos e sem tento,os políticos e as armas maldiziam,Enquanto “Abaixo os <strong>de</strong>sonestos!” rugiam.Os próprios <strong>de</strong>feitos podiam tolerar,Mas dos <strong>de</strong>mais, barbaramente, nem pensar!(...)A menor coisa que um erro mostrasse,Ou que os negócios públicos trancasse,E todos os velhacos gritavam aos céus:“Se ao menos houvesse honestida<strong>de</strong>, oh Deus!”Mercúrio sorria ante o <strong>de</strong>scaramento,Já outros chamavam <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> tentoProtestar sempre contra o mais amado.Mas Júpiter, <strong>de</strong> indignação tomadoE, por fim, irritado, jurou <strong>de</strong> vezLivrar a colméia da frau<strong>de</strong>. E assim fez.No mesmo momento em que ela partiaDe honestida<strong>de</strong> o coração se enchia;Tal como para Adão, se lhes revelaramAqueles crimes dos quais se envergonharam,Que então, em silêncio, confessaram,E ante sua torpeza coraram,Como menino <strong>de</strong> mau comportamentoQue pela cor <strong>de</strong>nuncia o pensamento,Imaginando, ao ser olhado,Que os outros vêem o seu passado.(...)Ve<strong>de</strong> agora na colméia renomadaHonestida<strong>de</strong> e negócios <strong>de</strong> mão dada;O show terminou; foi-se rapidamente,E mostrou-se tom face bem diferente>Pois não apenas foram-se emboraOs que gastavam muito a toda hora,Como multidões, que <strong>de</strong>les <strong>de</strong>pendiam,Para viver, forçadas, também partiam.Era inútil buscar outra profissão,Pois vaga não se achava em toda nação.Enquanto que orgulho e luxo minguavam,Gradativamente os mares <strong>de</strong>ixavam,Não os mercadores, mas companhiasFábricas fechavam todos os dias.Artes e ofícios mortos estão.Ruína da indústria, a satisfaçãoFaz com que apreciem o que possuemE nada mais cobicem ou busquem.Assim, poucos na colméia ficaram,Nem centésima parte conservaramContra os ataques <strong>de</strong> inimigos vários,A quem sempre enfrentavam, temerários,Até encontrar algum refúgio forte,On<strong>de</strong> se <strong>de</strong>fendiam até a morte.Em suas forças não houve mercenários;Valentemente, lutaram eles próprios.Sua coragem e integrida<strong>de</strong> totalForam coroadas com a vitória final.Triunfaram, porém não sem azares,Pois as abelhas morreram aos milhares.Calejadas <strong>de</strong> árdua lida e exercício,Consi<strong>de</strong>raram a comodida<strong>de</strong> um vício,O que aperfeiçoou sua mo<strong>de</strong>raçãoTanto, que para evitar dissipaçãoInstalaram-se duma árvore na cavida<strong>de</strong>,Abençoadas com satisfação e honestida<strong>de</strong>.www.brau<strong>de</strong>l.org.br <strong>BRAUDEL</strong> <strong>PAPERS</strong> 15

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