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representações femininas na poesia de marina colasanti - TEL

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A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e LiteraturaREPRESENTAÇÕES FEMININAS NAPOESIA DE MARINA COLASANTITássia Tavares <strong>de</strong> Oliveira 1A escritora Mari<strong>na</strong> Colasanti (oriunda <strong>de</strong> uma família italia<strong>na</strong>, <strong>na</strong>scidaem solo africano e radicada no Rio <strong>de</strong> Janeiro) possui mais <strong>de</strong> quarentatítulos publicados que contemplam diversos gêneros, apresentandosecomo uma das vozes <strong>femini<strong>na</strong>s</strong> ainda ativas e mais representativas daprodução literária <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Sua produção poética é i<strong>na</strong>ugurada com o livroRota <strong>de</strong> colisão (1993). A partir da leitura <strong>de</strong> seus poemas, fortemente eróticose marcados pelo cotidiano doméstico, po<strong>de</strong>mos observar representaçõesdo feminino <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong>. Ainda no gênero lírico, a autora publicoutambém Gargantas abertas (1998), Fino sangue (2005) e Passageira em trânsito(2009). Este último, composto por 108 poemas, reforça, a começar pelotítulo, a perspectiva itinerante que assume a autora <strong>na</strong> obra. Mari<strong>na</strong> Colasantitraz nos poemas registros <strong>de</strong> suas percepções e reflexões ao longo <strong>de</strong>uma longa viagem (a obra supõe uma viagem: inicia-se com a <strong>de</strong>colagemdo avião no poema “E logo” e fi<strong>na</strong>liza-se com a volta para casa no poema“Colheita”). A repetição <strong>de</strong> temas como o cotidiano e a passagem do tempoé capaz <strong>de</strong> revelar uma concepção <strong>de</strong> construção da subjetivida<strong>de</strong> femini<strong>na</strong>que subjaz à poética <strong>de</strong> Mari<strong>na</strong>. É importante ainda darmos <strong>de</strong>staque ao caráter<strong>de</strong> transitorieda<strong>de</strong> e movimento suscitados a partir do título Passageiraem trânsito. A tradição histórica e literária lida comumente com imagens<strong>femini<strong>na</strong>s</strong> cujo cotidiano está limitado à noção <strong>de</strong> imobilida<strong>de</strong> doméstica (ocotidiano feminino circunscrito ao lar); os poemas <strong>de</strong> Mari<strong>na</strong>, ao contrário,representam a mulher em constante movimento (cotidiano feminino pelaperspectiva da viajante); portanto, o feminino não se limita aos afazeres domésticose familiares, mas refere-se ao dia a dia da mulher itinerante.Alguns aspectos da crítica feministaAo nos propormos a abordar a <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> autoria femini<strong>na</strong>, imediata-1 Mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Letras, UFPB, bolsista CAPES, orientandada Prof.ª Liane Schnei<strong>de</strong>r.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturafeminino negativo difundido <strong>na</strong> literatura e cinema é um obstáculo <strong>na</strong> lutapelos direitos da mulher.A crítica literária feminista é profundamente política<strong>na</strong> medida em que trabalha no sentido <strong>de</strong> interferir <strong>na</strong>or<strong>de</strong>m social. Trata-se <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> ler a literaturaconfessadamente empenhado, voltado para a<strong>de</strong>sconstrução do caráter discrimi<strong>na</strong>tório das i<strong>de</strong>ologias<strong>de</strong> gênero, construídas, ao longo do tempo, pela cultura.[...] implica investigar o modo pelo qual tal texto estámarcado pela diferença <strong>de</strong> gênero, num processo <strong>de</strong><strong>de</strong>snudamento que visa <strong>de</strong>spertar o senso crítico epromover mudanças <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>s, ou, por outro lado,divulgar posturas críticas por parte dos(as) escritores(as)em relação à convenções sociais que, historicamente,têm aprisio<strong>na</strong>do a mulher e tolhido seus movimentos 5A partir da década <strong>de</strong> 1980, o gênero é elevado à categoria <strong>de</strong> análise.Nesse momento, <strong>de</strong>senvolve-se o viés da crítica feminista em torno <strong>de</strong>estruturas não-eurocêntricas e os estudos sobre as mulheres <strong>na</strong>s socieda<strong>de</strong>speriféricas (crítica pós-colonial). A lógica da essência femini<strong>na</strong> é reformuladaem favor do sujeito do feminismo como uma categoria multifacetadae instável (não há unida<strong>de</strong> <strong>na</strong> categoria mulheres). Ou seja, o <strong>de</strong>bate emtorno da questão mulher e literatura vem sendo marcado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípiopelo diálogo em torno da revisão <strong>de</strong> conceitos.Representações <strong>femini<strong>na</strong>s</strong> em poemas <strong>de</strong> Mari<strong>na</strong> ColasantiOs poemas que selecio<strong>na</strong>mos para esta abordagem são “Foto noálbum” e “Minhas filhas vida acima”, ambos presentes no livro Passageiraem trânsito. Nos dois poemas está posto o olhar lírico feminino sobre outrasfiguras <strong>femini<strong>na</strong>s</strong>: a mãe e as filhas, respectivamente. É interessante, então,observar esse olhar humano (feminino) sobre si e sobre o outro. Assim,nos propomos a observar como o olhar feminino lançado para essas figuras5 Ibid., 2009, p.218.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturatailleur claro e chapéu <strong>de</strong> meni<strong>na</strong>. A tropa toda formadaao redor. Um tanto atrás dos noivos, os únicos civis sãoseis mulheres e uma criança, certamente as duas irmãs<strong>de</strong>la, órfã <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, e as melhores amigas. Reconheçominha avó pater<strong>na</strong>. Ao lado do meu pai, junto ao altar, ocomandante. 7Essa passagem, ao ser comparada com o poema, ilustra muito bema questão da linguagem poética. Nos dois textos Mari<strong>na</strong> está <strong>de</strong>screvendoa mesma situação vivida pelos pais: a cerimônia <strong>de</strong> casamento atípica, emmeio a soldados, num clima <strong>de</strong> guerra eminente. No entanto, é notória adiferença da forma como isso é feito, não ape<strong>na</strong>s por se tratar <strong>de</strong> um textoem verso e outro em prosa. Nas memórias, por exemplo, não há a quebra<strong>de</strong> expectativas causada pela informação inicial do casamento em campoaberto com a informação seguinte das vésperas da guerra, a informação émuito mais direta: “meus pais casaram sob a mira das metralhadoras”. Aforma <strong>de</strong> “pren<strong>de</strong>r” o leitor, portanto, utiliza recursos diferentes. Isso é prova<strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong>r ple<strong>na</strong>mente um poema não significa <strong>de</strong> modo algumtransformá-lo num texto em prosa, simples paráfrase. A <strong>poesia</strong> requer umaleitura mais <strong>de</strong>tida das relações <strong>de</strong> sentido. No dizer <strong>de</strong> Valéry:São as mesmas palavras, sem dúvida, mas <strong>de</strong> formanenhuma os mesmos valores. É exatamente o não-uso,o não-dizer “que chove” que é a sua função; [...] Asrimas, a inversão, as figuras <strong>de</strong>senvolvidas, as simetriase as imagens, tudo isso, criações ou convenções, sãoigualmente meios <strong>de</strong> se opor à tendência prosaica doleitor [...]. A impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reduzir à prosa sua obra,a <strong>de</strong> dizer ou <strong>de</strong> compreendê-la como prosa são condiçõesessenciais <strong>de</strong> existência, fora das quais essa obra nãotem poeticamente qualquer sentido. 87 COLASANTI, M. Minha guerra alheia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2010. p.9.8 VALÉRY, P. Questões <strong>de</strong> <strong>poesia</strong>. In: Varieda<strong>de</strong>s. São Paulo: Iluminuras, 1991. p.186.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e LiteraturaDescrições das vestes da mãe também aparecem nos dois fragmentos,observemos como essas informações contribuem para que façamosuma i<strong>de</strong>ia da figura femini<strong>na</strong> como “jovem” e “frágil”, inocente em meio aoclima contrastante da guerra: “magro tailleur”; “chapéu <strong>de</strong> meni<strong>na</strong>”; “enormebuquê <strong>de</strong> flores silvestres”. Nesse sentido, não po<strong>de</strong>mos falar em “<strong>de</strong>scriçãopura”, uma vez que a adjetivação empregada já traz implícito um posicio<strong>na</strong>mentodo eu lírico e relação ao que este observa <strong>na</strong> foto. Mais uma vez, nopoema, a informação sobre o buquê <strong>de</strong> flores é quebrada pela informaçãoseguinte, <strong>de</strong> que as flores silvestres foram colhidas, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong>, pela tropada montanha. Retomando, mais uma vez o livro <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong> Mari<strong>na</strong>,temos a “explicação” para o motivo <strong>de</strong>sse casamento <strong>de</strong> maneira inusitada,informação que o poema não nos fornece. A título <strong>de</strong> saber extraliterário econtextual da biografia da autora, ao continuar a leitura das memórias, ficamossabendo que o pai da autora era soldado do exército italiano e partiriaem breve para participar das guerras <strong>de</strong> conquista no solo africano (on<strong>de</strong>viria a <strong>na</strong>scer Mari<strong>na</strong>). Essas informações, além <strong>de</strong> se relacio<strong>na</strong>rem com opoema em questão (frisamos mais uma vez que por si só as informaçõesnão “explicam” o poema), contribuem para a nossa compreensão acerca dofazer poético <strong>de</strong> Mari<strong>na</strong>, <strong>de</strong> modo geral, uma <strong>poesia</strong> também marcada peloaspecto nôma<strong>de</strong>. Entre a experiência pessoal da autora e o fazer poético, noentanto, há um espaço que precisou ser percorrido pela sua competêncialiterária; <strong>na</strong>s palavras <strong>de</strong> Valéry, “Sentir não significa tor<strong>na</strong>r sensível – e, menosainda, belamente sensível...” 9 . O trabalho poético, portanto, é o fazer que<strong>de</strong>ve ser avaliado, não diríamos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da experiência pessoal,mas acima <strong>de</strong>sta. Voltando ao poema, <strong>na</strong> sequência, o tom <strong>de</strong>scritivoce<strong>de</strong> espaço a uma reflexão mais <strong>de</strong>clarada sobre a condição da mulher<strong>na</strong>quela situação: “Tão jovem minha MÃE e / diante <strong>de</strong>la aquele altar cercado<strong>de</strong> soldados / <strong>na</strong> mira cega das metralhadoras.” O contraste entrea juventu<strong>de</strong> da mãe (candura) e a presença dos soldados e metralhadoras(agressão) é mantida. Os dois últimos versos <strong>de</strong>ssa sequência, “Se sorri nãose vê / <strong>na</strong> foto antiga.”, encerram a visão sobre a situação mater<strong>na</strong>, apontandopara o estado <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> com que a jovem moça encarava aquelasituação tão tensa que está <strong>de</strong>scrita. Especulações sobre se o ato consistiunum gesto <strong>de</strong> coragem ou submissão, são, evi<strong>de</strong>ntemente, permitidas ao9 VALÉRY, 1991, p. 179.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturaleitor no momento <strong>de</strong> fruição do poema, mas no nível da análise, consi<strong>de</strong>ramosinoportuno (nos faltam elementos textuais que permitam fazer tal tipo<strong>de</strong> afirmação).No segundo segmento do poema, bem menos extenso, o olhar agoraé lançado para o pai. Primeiramente, chamamos atenção para a adversativacom que se inicia a sequência. Fazendo a relação, entre as duas sequências,mãe/pai, temos claramente que as condições representadas sãoopostas. Enquanto o eu lírico não é capaz <strong>de</strong> saber se a mãe sorri <strong>na</strong> fotoantiga, encerra o poema afirmando que o pai posa para a foto, vencedor <strong>de</strong>sua batalha. A imagem dos braços cruzados sobre as cartucheiras tambémcolabora para isso. É permitido, então, consi<strong>de</strong>rar que a mesma situação foiexperienciada <strong>de</strong> maneiras distintas pelos dois “perso<strong>na</strong>gens” do poema. Asituação específica, a cerimônia matrimonial, é consi<strong>de</strong>rada um gesto <strong>de</strong>comunhão do casal, quando, a partir daquele momento, passam a ter uma“vida em comum”; no entanto, as oposições marcadas no poema entre aexperiência femini<strong>na</strong> e a masculi<strong>na</strong> entram em choque com essa visão, oque não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> levar em consi<strong>de</strong>ração. Portanto, é lícito tambémobservarmos que o pai posa vencedor <strong>de</strong> sua batalha num ambienteque lhe é mais familiar (por ser também soldado), enquanto a mãe não sesabe se sorri num ambiente que lhe é mais estranho. A interpretação dopróprio casamento como uma batalha que estava sendo vencida pelo noivotambém nos parece possível, uma vez que o sentido do poema não énecessariamente único. Essa interpretação abre espaço para uma série <strong>de</strong>questio<strong>na</strong>mentos sobre a condição femini<strong>na</strong> e o matrimônio, ainda mais <strong>na</strong>socieda<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> trinta.Passemos agora, ao segundo poema, bastante distinto do primeiro.Há aqui um lapso temporal maior, já que a poetisa não mais olha para umafotografia (registro <strong>de</strong> um momento específico), mas pensa sobre a vida dassuas filhas e sobre a própria vida.Minhas filhas vida acimaMinhas filhas não têm mais / vinte anos / e há muito /já não trançam seus cabelos. / Usaram saltos altos antes


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturado tempo / ganharam bicicleta / <strong>de</strong>pois carro / e enfimpuseram calcanhar no chão. / Agora crescem sem baixarbainhas / levando a vida às costas / vida acima. / Euas olho do alto com ternura / estendo a mão / mas nãoescapo à si<strong>na</strong> / elas sobem a encosta / eu vou <strong>de</strong>scendoa qui<strong>na</strong>. 10Partindo do mesmo método utilizado <strong>na</strong> abordagem do poema anterior,vamos dividi-lo em dois segmentos, <strong>de</strong>ssa vez a partir <strong>de</strong> uma percepçãotemporal: o primeiro momento refere-se ao olhar sobre a infância ejuventu<strong>de</strong> das filhas; no segundo momento temos a representação da maturida<strong>de</strong>da fase adulta. Não sabemos através do poema a ida<strong>de</strong> das filhasdo eu lírico, mas sabemos que elas já passaram dos vinte anos, ou seja, jáestão <strong>na</strong> fase adulta mais “madura” (utilizamos as aspas, pois o conceito <strong>de</strong>maturida<strong>de</strong> tem mais a ver com as experiências e aprendizados do sujeito doque com uma ida<strong>de</strong> específica, no entanto, é senso comum que se adquirematurida<strong>de</strong> com o passar dos aniversários, e é essa significação, portanto,que tomamos). Para representar as etapas do <strong>de</strong>senvolvimento das filhas,o eu lírico refere-se a elementos do cotidiano que facilmente associam-seàs diferentes ida<strong>de</strong>s. Trançar os cabelos é um hábito feminino mais comumdurante a infância/juventu<strong>de</strong>, e por isso é facilmente associada a esta fase(as associações semióticas, portanto, levam em consi<strong>de</strong>ração os significadosconstruídos culturalmente), ganhar bicicleta também. Ao contrário, usarsalto alto e ganhar carro representam muito mais a adolescência e a faseadulta inicial, portanto, ainda um momento <strong>de</strong> transição, reforçado pela informação<strong>de</strong> que elas começaram a usar salto alto antes do tempo, ou seja,ainda muito jovens. A gui<strong>na</strong>da se dá com o verso, repleto <strong>de</strong> significados, “eenfim puseram calcanhar no chão”. O verso é polissêmico, pois, consi<strong>de</strong>randoque se estava a falar <strong>de</strong> saltos altos, literalmente, ao <strong>de</strong>scer do salto secoloca o calcanhar no chão. Além disso, como observávamos a passagemdo tempo, também é hábito comum que as mulheres usem mais salto alto <strong>na</strong>juventu<strong>de</strong> e com o passar do tempo passem a usar mais sapatos baixos, oque aponta para o sentido <strong>de</strong> que as filhas também cresceram, tor<strong>na</strong>ram-semulheres adultas. Por fim, “colocar os pés no chão” é uma expressão muito10 COLASANTI, 2009, p.103.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturacomum, que significa, como sabemos, encarar a realida<strong>de</strong>, não sonhar <strong>de</strong>mais(“<strong>de</strong>scer das nuvens” ou “voltar do mundo da lua”). Isso aponta, maisuma vez, para a constatação <strong>de</strong> que as filhas cresceram, já que nossa culturacomumente consi<strong>de</strong>ra a juventu<strong>de</strong> como a fase mais “sonhadora” davida, enquanto a maturida<strong>de</strong> seria a fase mais realista (mais uma vez o significadocultural se faz presente). Atentemos também para o movimento <strong>de</strong>subida e <strong>de</strong>scida que começa a se configurar no poema: crescer é “subir”,pôr o calcanhar no chão é “<strong>de</strong>scer”, sonhar é “subir”, viver é “<strong>de</strong>scer”, etc.Essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> movimento se faz mais forte no segundo momento dopoema, agora sobre a maturida<strong>de</strong> das filhas. Essa sequência se inicia como advérbio “agora”, ou seja, o eu lírico não olha mais para um tempo no passado,mas para um momento no tempo presente. Nesse presente, a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> movimento subida/<strong>de</strong>scida aparece <strong>de</strong> forma mais explícita pelo próprioemprego das palavras: “crescem”; “baixar bainhas” (subir a bainha das calças/saiasé muito comum durante as etapas em que a criança ainda estácrescendo já que com frequência as calças são muito compridas para usar;baixar a bainha, ao contrário, é o que fazemos quando a calça/saia estámuito curta para usar, já que a pessoa está crescendo); “vida acima”; “olhodo alto”; “elas sobem”; “eu vou <strong>de</strong>scendo”. Destacamos o verso “levando avida às costas”, pelo significado que possibilita <strong>de</strong> que a vida é “um fardo ase carregar”. Essa expressão retoma a i<strong>de</strong>ia já expressa pelo verso “e enfimpuseram calcanhar no chão”, ou seja, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que nessa fase adulta jánão sobra tanto tempo para “<strong>de</strong>vaneios adolescentes”, que o adulto precisaencarar a vida, fazer <strong>de</strong>cisões, assumir as consequências, etc. Notemos queelas vão “levando a vida às costas / vida acima.”, ou seja, ao passo que vãocrescendo vão carregando mais peso, assumindo mais responsabilida<strong>de</strong>s,etc. “EU as olho do alto com ternura / estendo a mão”, aqui aparece pelaprimeira vez o pronome pessoal EU (apesar do eu lírico já ter se expressadoanteriormente através do possessivo MINHAS). Ou seja, a partir daqui oolhar não é mais lançado ape<strong>na</strong>s para a vida das filhas, aqui, ao ver o crescimentodas filhas, o eu lírico começa a ver também o seu envelhecimento.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as olhar “do alto com ternura” implica que a mãe já seencontra no ponto mais alto do <strong>de</strong>senvolvimento, no ápice da maturida<strong>de</strong>.Por isso lhes “esten<strong>de</strong> a mão”, tenta lhes ajudar a superar as dificulda<strong>de</strong>s<strong>na</strong>turais da vida. “Mas não escapo à si<strong>na</strong> / ELAS sobem a encosta / EU


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e Literaturavou <strong>de</strong>scendo a qui<strong>na</strong>.” Os últimos três versos do poema nos causam umgran<strong>de</strong> impacto, resultado da impressão com que se expressa o fim do texto(mais cabisbaixo, digamos) e da realização sonora permitida pela rima(mais alegre). Primeiramente, o “mas” mostra como apesar <strong>de</strong> tentar ajudaras filhas lhe esten<strong>de</strong>ndo a mão, lá do alto, a mãe não consegue escaparda si<strong>na</strong>, palavra forte que remete à fatalida<strong>de</strong> da vida, <strong>de</strong>stino. E enfim, asi<strong>na</strong> se revela: enquanto “ELAS sobem a encosta / EU vou <strong>de</strong>scendo aqui<strong>na</strong>.” A oposição entre a situação das filhas e a própria situação da mãenos mostra uma reflexão sobre a passagem do tempo e os seus reflexos <strong>na</strong>vida dos indivíduos. O movimento <strong>de</strong> subida/<strong>de</strong>scida presente no poemanos permite compreen<strong>de</strong>r como os “altos e baixos” são uma representaçãoda própria vida. Além disso, vem-nos em mente a metáfora da vida comouma escada, em que cada <strong>de</strong>grau correspon<strong>de</strong> a uma etapa da vida. Nessaescada, representada no poema, a infância seriam os primeiros <strong>de</strong>graus; amaturida<strong>de</strong> seria o topo da escada; e <strong>de</strong>pois disso o movimento seria novamenteo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scer a qui<strong>na</strong>”.


A<strong>na</strong>is do XIV Seminário Nacio<strong>na</strong>l Mulher e Literatura / V Seminário Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l Mulher e LiteraturaBibliografiaCOLASANTI, Mari<strong>na</strong>. Minha guerra alheia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2010.______. Passageira em trânsito. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2009.FUNCK, Susa<strong>na</strong> Bornéo. Da questão da mulher à questão do gênero. In: FUNCK(org.). Trocando i<strong>de</strong>ias sobre a mulher e a literatura. Pós-Graduação em InglêsUFSC, Florianópolis, 1994.VALÉRY, P. Questões <strong>de</strong> <strong>poesia</strong>. In: Varieda<strong>de</strong>s. São Paulo: Iluminuras, 1991.ZINANI, Cecil J. A. Literatura e gênero: a construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> femini<strong>na</strong>.Caxias do Sul: Educs, 2006.ZOLIN, Lúcia O. Crítica feminista. In: BONNICI; ZOLIN. (orgs.). Teoria literária:abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringá: Eduem,2009.

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