13.07.2015 Views

a literatura infanto-juvenil de ruth rocha - TEL

a literatura infanto-juvenil de ruth rocha - TEL

a literatura infanto-juvenil de ruth rocha - TEL

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e LiteraturaO surgimento da <strong>literatura</strong> infantil se <strong>de</strong>u, efetivamente, conformeZilberman (2006), no final do século XVII; e esta obteve gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentodurante do século XVIII. Logo, po<strong>de</strong>mos entendê-la como um produtoda socieda<strong>de</strong> burguesa. Isso porque, nesse momento, houve uma espécie<strong>de</strong> esfacelamento das famílias consanguíneas em favor do surgimento/fortalecimentoda família nuclear ou unicelular (composta apenas por pais efilhos). Com o surgimento <strong>de</strong>ssa nova concepção <strong>de</strong> família, houve a valorizaçãoda infância enquanto faixa etária diferenciada. Pois, antes disso, acriança era tratada como um adulto em miniatura e, portanto, o tratamentoque recebia era o mesmo dos adultos, inclusive participando <strong>de</strong> todos oseventos dos quais participavam todos os <strong>de</strong>mais que compunham o grupofamiliar. Em virtu<strong>de</strong> da modificação no olhar lançado ao público infantil,houve a necessida<strong>de</strong> formá-lo <strong>de</strong> modo diferenciado. Logo, surgiu, então,uma nova concepção <strong>de</strong> escola e uma produção literária específica paraaten<strong>de</strong>r às especificida<strong>de</strong>s infantis.Nesse momento, o texto literário era produzido especialmente porprofessores e pedagogos, que lhe imprimiam um tom notadamente moralizante.O forte teor educativo, então, se constituía como um instrumento <strong>de</strong>perpetuação dos valores aceitos socialmente; logo, favorecia a manutençãodos traços culturais. Vale ressaltar que se procurava formar o humanoinfantil provocando sua i<strong>de</strong>ntificação com as personagens encaradas como“corretas” (ou “boas”). Pois, as “erradas” (ou “más”) eram punidas com algumtipo <strong>de</strong> sanção, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua má conduta. Além disso, é importantelembrar que os textos surgidos com esse propósito, não costumavam sepreocupar com o estatuto artístico ao qual a <strong>literatura</strong> infantil, sobretudoenquanto objeto estético, <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r.Po<strong>de</strong>mos afirmar, por outro lado, que o texto em estudo, Faca semponta, galinha sem pé, dialoga com a tradição no intuito <strong>de</strong> traduzi-la, pois– em vez <strong>de</strong> perpetuar o tom moralizante – promove a reflexão (além <strong>de</strong> nãoperpetuar a i<strong>de</strong>ia maniqueísta da realida<strong>de</strong>) por meio do questionamentodas relações <strong>de</strong> gênero. Nesse sentido, concordamos com Lígia Ca<strong>de</strong>martori,que afirma:


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literaturaencontrasse no chão, fazia cara feia.Dona Brites ficava zangada:- Que é isso, menina? Que comportamento! Menina temque ser <strong>de</strong>licada, boazinha...- Boazinha? Pois sim! – respondia Joana <strong>de</strong> mausmodos. 3Por outro lado, quando Pedro chorava ou tomava mais cuidado coma beleza, Joana zombava: “– Olha a mulherzinha! Como está vaidoso...” 4 .É possível ler nessas atitu<strong>de</strong>s que socialmente criamos padrões queengessam as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> homens e <strong>de</strong> mulheres. Des<strong>de</strong> a infância nos formamosacreditando que isso é natural, quando – na verda<strong>de</strong> – é um processoconstruído, ou seja, diz respeito à cultura na qual estamos inseridos. Aesse respeito é importante ressaltar que “a cultura é como uma lente atravésda qual o homem vê o mundo” 5 . Isso nos leva a pensar que nossa maneira<strong>de</strong> ver o mundo é apenas uma maneira possível, não a única. É possívelcrer que os questionamentos dos padrões postos levam o público infantil arefletir sobre as atitu<strong>de</strong>s que toma e sobre os padrões nos quais ten<strong>de</strong>mos aengessar nossas ações e as alheias, a fim <strong>de</strong> reproduzirmos comportamentosaceitos socialmente.No entanto, os <strong>de</strong>sejos humanos acabam por questionar o já posto.Nesse sentido, o que afirma Bettelheim 6 sobre a relação da criança com oscontos <strong>de</strong> fadas po<strong>de</strong> ser retomado para enten<strong>de</strong>rmos a possível relação<strong>de</strong>sta com a obra em estudo, visto que “enquanto diverte a criança, o conto<strong>de</strong> fadas [no nosso caso, a obra <strong>de</strong> Rocha] a esclarece sobre si mesma, efavorece o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>”. Isso se dá em virtu<strong>de</strong>da postura reflexiva que a leitura propõe. Pois, “o fato <strong>de</strong> que o homem vêo mundo através <strong>de</strong> sua cultura tem como consequência a propensão em3 ROCHA, Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé... Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1983, s/p.4 I<strong>de</strong>m.5 Benedict apud LARAIA, Roque <strong>de</strong> B. Cultura: Um conceito Antropológico. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Zahar, 1988, p.69.6 BET<strong>TEL</strong>HEIM, B. A psicanálise dos contos <strong>de</strong> fadas. 11.ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1996,p.20.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literaturaconsi<strong>de</strong>rar o seu modo <strong>de</strong> vida como o mais correto e o mais natural” 7 e issopo<strong>de</strong> levar a posturas preconceituosas e sectárias. Por outro lado, o textoapresenta as atitu<strong>de</strong>s diferentes do padrão cristalizado não como uma fugaà norma, mas uma possibilida<strong>de</strong> completamente aceitável. Pois, em meioà pedagogia do “isso não po<strong>de</strong>”, ao voltarem os irmãos para casa, num diaem que havia chovido, encontraram um arco-íris e Pedro teve i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “passarpor baixo”. Joana pensou no perigo que a proposta po<strong>de</strong>ria representar,mas, como Pedro insistiu, resolveu aceitá-la:Joana se riu:– Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arcoírisantes do meio-dia homem vira mulher e mulher viahomem...– Que besteira! – disse Pedro. – Quem é que acreditanuma coisa <strong>de</strong>ssas?E os dois se <strong>de</strong>ram as mãos e correram, correram nadireção do arco-íris. E <strong>de</strong> repente pararam espantados.Eles estavam se sentindo esquisitíssimos!– O que aconteceu? – perguntou Joana.E a voz <strong>de</strong>la saiu diferente, parece que mais grossa...– Sei lá! – disse Pedro.Mas parou <strong>de</strong>pressa, porque ele estava falando direitinhocomo uma menina. 8Após isso, os irmãos (assim como seus os pais) passaram a questionaras “regras” que, <strong>de</strong> certo modo, ditam as ações permitidas ou não a cadasexo. Pedro passou a ser chamado Pedra e Joana, Joano. Assim um po<strong>de</strong>sentir a arbitrarieda<strong>de</strong> que cerceava as ações alheias e também as suas.Logo na esquina Pedro, quer dizer, Pêdra, que agora eramenina, <strong>de</strong>u o maior chute numa tampinha <strong>de</strong> cerveja queestava no chão.- Vamos parar com isso? – disse Joano. – Menina não faz7 LARAIA, Roque <strong>de</strong> B. Cultura: Um conceito Antropológico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1988, p.75.8 ROCHA, Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé... Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1983, s/p.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literaturaessas coisas.- E eu sou menina? – reclamou Pêdra.- É, não é?- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>chutar tampinha, empinar papagaio, <strong>de</strong> pular sela...- Ué, eu também tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer tudo isso e vocêdizia que menina não podia – reclamou Joano.- Mas é que todo mundo diz isso – disse Pêdra. – Quemenina não joga futebol, que mulher é <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa... 9Percebemos então que as ações tidas como masculinas ou femininasnão são inatas aos gêneros, mas passam por um processo <strong>de</strong> construçãoque, na verda<strong>de</strong>, é muito mais um processo <strong>de</strong> repetição <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong>reflexão, visto que simplesmente se repetem ações sem que elas passempor um crivo reflexivo. A respeito disso, segundo Adriana Facina 10 , po<strong>de</strong>mosafirmar que “cultura não é algo inato, natural nos seres humanos, mas simalguma coisa [...] cultivada, que é adquirida e que envolve um processo <strong>de</strong>formação”. Vale pensar nesse processo <strong>de</strong> formação, inclusive, um processo<strong>de</strong> castração. Ao homem é quase que negada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vivenciare expor sua sensibilida<strong>de</strong>. À mulher, por sua vez, essa postura é justamentea <strong>de</strong>sejável, pois <strong>de</strong>ve ser “<strong>de</strong>licada, boazinha”. É justamente esse tipo <strong>de</strong>pensamento engessado e perpetuado socialmente que a obra <strong>de</strong> Ruth Rochanos ajuda a questionar. Pois, conforme Frigga Haug 11 ,o conceito <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong>ve permitir-nos estudarcriticamente como os sexos servem para reproduzir oconjunto das relações sociais. Em algum sentido, então,tem que pressupor o que é um resultado das relaçõessociais, ou seja, a existência dos gêneros no sentidoreconhecido historicamente como homem e mulher.Sobre a base <strong>de</strong> uma complementarida<strong>de</strong> na procriação,9 I<strong>de</strong>m.10 FACINA, Adriana. Literatura e Socieda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p.11.11 HAUG, Frigga. Para uma teoria das relações <strong>de</strong> gênero. En publicacion: A teoria marxistahoje. Problemas e perspectivas. Boron, Atilio A.; Ama<strong>de</strong>o, Javier; Gonzalez, Sabrina. 2007 ISBN978987118367-8, s/p.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e LiteraturaBibliografiaBET<strong>TEL</strong>HEIM, B. A psicanálise dos contos <strong>de</strong> fadas. 11.ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra,1996.CADEMARTORI, L. O que é <strong>literatura</strong> infantil? 6.ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.FACINA, Adriana. Literatura e Socieda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2004.Haug, Frigga. Para uma teoria das relações <strong>de</strong> gênero. En publicacion: A teoriamarxista hoje. Problemas e perspectivas Boron, Atilio A.; Ama<strong>de</strong>o, Javier; Gonzalez,Sabrina. 2007 ISBN 978987118367-8.LARAIA, Roque <strong>de</strong> B. Cultura: Um conceito Antropológico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,1988.ROCHA, Ruth. Faca sem ponta, galinha sem pé... Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira,1983.ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo: Global, 2006.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!