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OS PENSADORES - MOM. Morar de Outras Maneiras.

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<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>


THEODOR W. ADORNOTEXT<strong>OS</strong> ESCOLHID<strong>OS</strong>Consultoria: Paulo Eduardo ArantesNOM1CUUUIML


FundadorVICTOR CIVITA(1907-1990)Í*Editora Nova Cultural Ltda.,uma divisão do Círculo do Livro Ltda.Copyright © <strong>de</strong>sta edição 1996, Círculo do Livro Ltda.Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 - 11® andarCEP 01410-901 - São Paulo - SP.Títulos originais:Begriff <strong>de</strong>r AufkàrungÜber <strong>de</strong>n Fetischcharakter in <strong>de</strong>r Musik und dieRegression <strong>de</strong>s Hõrens (<strong>de</strong> Dissonanzen)Der Positivismusstreit in <strong>de</strong>r <strong>de</strong>utschen Soziologie IntroductionTraduções: Zeljko Loparic, Andréa Maria Altino <strong>de</strong> CamposLoparic, Edgard Afonso Malagodi, Ronaldo Pereira Cunha,Luiz João Baraúna, Wolfgang Leo MaarDireitos exclusivos sobre a tradução <strong>de</strong>ste volume,Editora Nova Cultural Ltda., São PauloDireitos exclusivos sobre "Adorno — Vida e Obra",Editora Nova Cultural Ltda.Impressão e acabamento: Gráfica CírculoISBN 85-351-0778-9


VIDA E OBRAA HISTÓRIA da chamada Escola <strong>de</strong> Frankfurt — naqual se <strong>de</strong>stacam, entre outros pensadores, Walter Benjamin,Theodor Wiesengrund-Adorno e Max Horkheimer — po<strong>de</strong>ser iniciada com a fundação do Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Social<strong>de</strong> Frankfurt, sob direção <strong>de</strong> Carl Grünberg, que permaneceuno cargo até 1927. Grünberg abria o primeiro número doArquivo <strong>de</strong> História do Socialismo e do Movimento Operário (publicaçãoque fundou em 1911), salientando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>não se estabelecer privilégio especial para esta ou aquela concepção,orientação científica ou opinião <strong>de</strong> partido. Gtiinbergestava convencido <strong>de</strong> que qualquer unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong>vista entre os colaboradores prejudicaria os fins críticos eintelectuais da própria iniciativa. Posteriormente, já na direçãoda Revista <strong>de</strong> Pesquisa Social, ele próprio se consi<strong>de</strong>rariaum marxista, porém enten<strong>de</strong>ndo essa posição não em seusentido apenas político-partidário, mas em seu significadocientífico; o conceito "marxismo" servia-lhe para <strong>de</strong>scrição<strong>de</strong> um sistema econômico, <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada cosmovisãoe <strong>de</strong> um método <strong>de</strong> pesquisa bem <strong>de</strong>finido. Essa posturainicial <strong>de</strong> Grünberg — vinculada a uma "escola" <strong>de</strong> pensamento,mas ao mesmo tempo enten<strong>de</strong>ndo-a em sua dimensãocrítica e como perspectiva aberta — constitui, <strong>de</strong> modo geral,a tônica do pensamento dos elementos do grupo <strong>de</strong> Frankfurt.Entre os colaboradores da Revista, contam-se figurasmuito conhecidas <strong>de</strong> um público mais amplo, como HerbertMarcuse (1898-1979), autor <strong>de</strong> Eros e Civilização e O Homem


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>Unidimensional (ou I<strong>de</strong>ologia da Socieda<strong>de</strong> Industrial), e ErichFromm (1900-1980), que se <strong>de</strong>dicou a estudos <strong>de</strong> psicologiasocial, nos quais procura vincular a psicanálise criada porFreud (1856-1939) às idéias marxistas. Outros são menos conhecidos,como Siegfried Kracauer, autor <strong>de</strong> um clássico estudosobre o cinema alemão (De Caligari a Hitler), ou LeoLõwenthal, que se <strong>de</strong>dicou a reflexões estéticas e <strong>de</strong> sociologiada arte. Ao grupo da Revista pertenceram também Wittfogel,F. Pollock e Grossmann, autores <strong>de</strong> importantes estudos<strong>de</strong> economia política.ADORNO: A INDÚSTRIA CULTURALTheodor Wiesengrund-Adorno nasceu em 1903, emFrankfurt, cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> fez seus primeiros estudos e em cujauniversida<strong>de</strong> se graduou em filosofia. Em Viena, estudoucomposição musical com Alban Berg (1885-1935), um dosmaiores expoentes da revolução musical do século XX. Em1932, escreveu o ensaio A Situação Social da Música, tema <strong>de</strong>inúmeros outros estudos: Sobre o jazz (1936), Sobre o CaráterFetichista da Música e a Regressão da Audição (1938), FragmentosSobre Wagner (1939) e Sobre Música Popular (1940-1941). Em1933, com a tomada do po<strong>de</strong>r pelos nazistas, Adorno foiobrigado a refugiar-se na Inglaterra, on<strong>de</strong> passou a lecionarna Universida<strong>de</strong> Oxford, ali permanecendo até 1938. Nesseano, transferiu-se para os Estados Unidos, on<strong>de</strong> escreveria,em colaboração com Horkheimer, a obra Dialética do Iluminismo(1947). Foi também nos Estados Unidos que Adornorealizou, em colaboração com outros pesquisadores, um estudoconsi<strong>de</strong>rado posteriormente um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sociologiaempírica: A Personalida<strong>de</strong> Autoritária. Esta obra foi publicadaem 1950, ano em que Adorno pô<strong>de</strong> regressar à terra natal ereorganizar o Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Social <strong>de</strong> Frankfurt. Entreoutras obras publicadas por Adorno, antes <strong>de</strong> sua morte ocorridaem 1969, salientam-se ainda Para a Metacrítica da Teoriado Conhecimento — Estudos Sobre Husserl e as Antinomias Fe-


ADORNOnomenológicas (1956), Dissonâncias (1956), Ensaios <strong>de</strong> LiteraturaI, II, III (1958 a 1965), Dialética Negativa (1966), Teoria Estética(1968) e Três Estudos Sobre Hegel (1969).Para Adorno, a postura otimista <strong>de</strong> Benjamin no quediz respeito à função possivelmente revolucionária do cinema<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra certos elementos fundamentais, que <strong>de</strong>sviamsua argumentação para conclusões ingênuas. Embora <strong>de</strong>vendoa maior parte <strong>de</strong> suas reflexões a Benjamin, Adorno procuramostrar a falta <strong>de</strong> sustentação <strong>de</strong> suas teses, na medidaem que elas não trazem à luz o antagonismo que resi<strong>de</strong> nopróprio interior do conceito <strong>de</strong> "técnica". Segundo Adorno,passou <strong>de</strong>spercebido a Benjamin que a técnica se <strong>de</strong>fine emdois níveis: primeiro "enquanto qualquer coisa <strong>de</strong>terminadaintra-esteticamente" e, segundo, "enquanto <strong>de</strong>senvolvimentoexterior às obras <strong>de</strong> arte". O conceito <strong>de</strong> técnica não <strong>de</strong>veser pensado <strong>de</strong> maneira absoluta: ele possui uma origemhistórica e po<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer. Ao visarem à produção emsérie e à homogeneização, as técnicas <strong>de</strong> reprodução sacrificama distinção entre o caráter da própria obra <strong>de</strong> arte edo sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa á exercerimenso po<strong>de</strong>r sobre a socieda<strong>de</strong>, tal ocorre, segundo Adorno,graças, em gran<strong>de</strong> parte, ao fato <strong>de</strong> que as circunstânciasque favorecem tal po<strong>de</strong>r são arquitetadas pelo po<strong>de</strong>r doseconomicamente mais fortes sobre a própria socieda<strong>de</strong>. Em<strong>de</strong>corrência, a racionalida<strong>de</strong> da técnica i<strong>de</strong>ntifica-se com aracionalida<strong>de</strong> do próprio domínio. Essas consi<strong>de</strong>rações evi<strong>de</strong>nciariamque não só o cinema, como também o rádio, não<strong>de</strong>vem ser tomados como arte. "O fato <strong>de</strong> não serem maisque negócios — escreve Adorno — basta-lhes como i<strong>de</strong>ologia."Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizadospor meio <strong>de</strong> sistemática e programada exploração <strong>de</strong> bensconsi<strong>de</strong>rados culturais. Tal exploração Adorno chama <strong>de</strong> "indústriacultural".O termo foi empregado pela primeira vez em 1947,quando da publicação da Dialética do Iluminismo, <strong>de</strong> Horkheimere Adorno. Este último, numa série <strong>de</strong> conferências— 7 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>radiofônicas, pronunciadas em 1962, explicou que a expressão"indústria cultural" visa a substituir "cultura <strong>de</strong> massa",pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos <strong>de</strong>tentoresdos veículos <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa. Os <strong>de</strong>fensoresda expressão "cultura <strong>de</strong> massa" querem dar a enten<strong>de</strong>rque se trata <strong>de</strong> algo como uma cultura surgindo espontaneamentedas próprias massas. Para Adorno, que divergefrontalmente <strong>de</strong>ssa interpretação, a indústria cultural, ao aspirarà integração vertical <strong>de</strong> seus consumidores, não apenasadapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em largamedida, <strong>de</strong>termina o próprio consumo. Interessada nos homensapenas enquanto consumidores ou empregados, a indústriacultural reduz a humanida<strong>de</strong>, em seu conjunto, assimcomo cada um <strong>de</strong> seus elementos, às condições que representamseus interesses. A indústria cultural traz em seu bojotodos os elementos característicos do mundo industrial mo<strong>de</strong>rnoe nele exerce um papel específico, qual seja, o <strong>de</strong> portadorada i<strong>de</strong>ologia dominante, a qual outorga sentido a todoo sistema. Aliada à i<strong>de</strong>ologia capitalista, e sua cúmplice, aindústria cultural contribui eficazmente para falsificar as relaçõesentre os homens, bem como dos homens com a natureza,<strong>de</strong> tal forma que o resultado final constitui uma espécie<strong>de</strong> antiiluminismo. Consi<strong>de</strong>rando-se — diz Adorno —que o iluminismo tem como finalida<strong>de</strong> libertar os homensdo medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magiae do mito, e admitindo-se que essa finalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> seratingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria acrer que o iluminismo instauraria o po<strong>de</strong>r do homem sobrea ciência e sobre a técnica. Mas ao invés disso, liberto domedo mágico, o homem tornou-se vítima <strong>de</strong> novo engodo:o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-seem po<strong>de</strong>roso instrumento utilizado pela indústriacultural para conter o <strong>de</strong>senvolvimento da consciência dasmassas. A indústria cultural — nas palavras do próprio Adorno— "impe<strong>de</strong> a formação <strong>de</strong> indivíduos autônomos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,capazes <strong>de</strong> julgar e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir conscientemente".


ADORNOO próprio ócio do homem é utilizado pela indústria culturalcom o fito <strong>de</strong> mecanizá-lo, <strong>de</strong> tal modo que, sob o capitalismo,em suas formas mais avançadas, a diversão e o lazer tornam-seum prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversãoé buscada pelos que <strong>de</strong>sejam esquivar-se ao processo<strong>de</strong> trabalho mecanizado para colocar-se, novamente, em condições<strong>de</strong> se submeterem a ele. A mecanização conquistoutamanho po<strong>de</strong>r sobre o homem, durante o tempo livre, çsobre sua felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminando tão completamente a fabricaçãodos produtos para a distração, que o homem nãotem acesso senão a cópias e reproduções do próprio trabalho.O suposto conteúdo não é mais que uma pálida fachada: oque realmente lhe é dado é a sucessão automática <strong>de</strong> operaçõesreguladas. Em suma, diz Adorno, "só se po<strong>de</strong> escaparao processo <strong>de</strong> trabalho na fábrica e na oficina a<strong>de</strong>quando-sea ele no ócio".Tolhendo a consciência das massas e instaurando o po<strong>de</strong>rda mecanização sobre o homem, a indústria cultural criacondições cada vez mais favoráveis para a implantarão doseu comércio fraudulento, no qual os consumidores sao continuamenteenganados em relação ao que lhes é prometidomas não cumprido. Exemplo disso encontra-se nas situaçõeseróticas'apresentadas pelo cinema. Nelas, o <strong>de</strong>sejo suscitadoou sugerido pelas imagens, ao invés <strong>de</strong> encontrar uma satisfaçãocorrespon<strong>de</strong>nte à promessa nelas envolvida, acabasendo satisfeito com o simples elogio da rotina. Não conseguindo,como pretendia, escapar a esta última, o <strong>de</strong>sejo divorcia-se<strong>de</strong> sua realização que, sufocada e transformada emnegação, converte o próprio <strong>de</strong>sejo em privação. A indústriacultural não sublima o instinto sexual, como nas verda<strong>de</strong>irasobras <strong>de</strong> arte, mas o reprime e sufoca. Ao expor semprecomo novo o objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo (o seio sob o suéter ou o dorsonu do herói <strong>de</strong>sportivo), a indústria cultural não faz maisque excitar o prazer preliminar não sublimado que, pelo hábitoda privação, converte-se em conduta masoquista. Assim,prometer e não cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>único e mesmo ato da indústria cultural. A situação erótica,conclui Adorno, une "à alusão e à excitação a advertênciaprecisa <strong>de</strong> que não se <strong>de</strong>ve, jamais, chegar a esse ponto". Taladvertência evi<strong>de</strong>ncia como a indústria cultural administrao mundo social.Criando "necessida<strong>de</strong>s" ao consumidor (que <strong>de</strong>ve contentar-secom o que lhe é oferecido), a indústria cultural organiza-separa que ele compreenda sua condição <strong>de</strong> meroconsumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objetodaquela indústria. Desse modo, instaura-se a dominação naturale i<strong>de</strong>ológica. Tal dominação, como diz Max Jiménez,comentador <strong>de</strong> Adorno, tem sua mola motora no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>posse constantemente renovado pelo progresso técnico ecientífico, e sabiamente controlado pela indústria cultural.Nesse sentido, o universo social, além <strong>de</strong> configurar-se comoum universo <strong>de</strong> "coisas", constituiria um espaço hermeticamentefechado. Nele, todas as tentativas <strong>de</strong> liberação estãocon<strong>de</strong>nadas ao fracasso.Contudo, Adorno não <strong>de</strong>semboca numa visão inteiramentepessimista, e procura mostrar que é possível encontrar-seuma via <strong>de</strong> salvação. Esse tema aparece <strong>de</strong>senvolvidoem sua última obra, intitulada Teoria Estética.A OBRA DE ARTE E A PRÁXISEm Teoria Estética — nas palavras do comentador Kothe— "Adorno oscila entre negar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzirarte <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundoque o chocava, mas que ele não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> olhar e<strong>de</strong>nominar". Essa postura foi extremamente criticada pelosmovimentos <strong>de</strong> contestação radical, que o acusavam <strong>de</strong> buscarrefúgio na pura teoria ou na criação artística, esquivando-seassim da práxis política. A seus <strong>de</strong>tratores, Adorno respon<strong>de</strong>que, embora plausível para muitos, o argumento <strong>de</strong>que contra a totalida<strong>de</strong> bárbara não surtem efeito senão osmeios bárbaros, na verda<strong>de</strong>, não revela que, apesar disso,— 10 —


ADORNOatinge-se um valor limite. A violência que há cinqüenta anospodia parecer legítima àqueles que nutrissem a esperançaabstrata e a ilusão <strong>de</strong> uma transformação total está, após aexperiência do nazismo e do horror estalinista, inextricavelmenteimbricada naquilo que <strong>de</strong>veria ser modificado: "ou ahumanida<strong>de</strong> renuncia à violência da lei <strong>de</strong> talião, ou a pretendidapráxis política radical renova o terror do passado".Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a obra'<strong>de</strong>arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente, como antíteseda socieda<strong>de</strong>, cujas antinomias e antagonismos nela reaparecemcomo problemas internos <strong>de</strong> sua forma. Entre autor,obra e público, a obra adquire priorida<strong>de</strong> epistemológica,afirmando-se como ente autônomo. Esse duplo caráter vincula-seà própria natureza <strong>de</strong>sdobrada da arte, que se constituicomo aparência. Ela é aparência por sua diferença emrelação à realida<strong>de</strong>, pelo caráter aparente da realida<strong>de</strong> quepreten<strong>de</strong> retratar, pelo caráter aparente do espírito do qualela é uma manifestação; a arte é até mesmo aparência <strong>de</strong> siprópria na medida em que preten<strong>de</strong> ser o que não po<strong>de</strong> ser:algo perfeito num mundo imperfeito, por se apresentar cémoum ente <strong>de</strong>finitivo, quando na verda<strong>de</strong> é algo feito e tornadocomo é.


CRONOLOGIA1903 — Em Frankfurt, nasce Theodor Wiesengrund-Adorno.1914/18 — O mundo é agitado pela Primeira Guerra Mundial.1921 — Adorno conhece Horkheimer, a quem se liga por profundaamiza<strong>de</strong>.1923 — Adorno obtém o título <strong>de</strong> doutor em Filosofia com umatese sobre Husserl.1924 — É fundado o Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Social <strong>de</strong> Frankfurt.1932 — Adorno escreve o ensaio A Situação Social da Música.1933 — Hitler é feito chanceler do Terceiro Reich. Os intelectuais<strong>de</strong> oposição são reprimidos pelos nazistas nopo<strong>de</strong>r. O Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Social <strong>de</strong> Frankfurttransfere-se para Genebra. Adorno refugia-se na Inglaterrae passa a lecionar na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford.1938 — Depois <strong>de</strong> elaborar o estudo Sobre o Jazz e outros, Adornoexila-se nos Estados Unidos. Surge o seu ensaio Sobre oCaráter Fetichista da Música e a Regressão da Audição.1939 — Publica Fragmentos sobre Wagner. Tem início a SegundaGuerra Mundial.1940/41 — Adorno publica o estudo Sobre Música Popular.1945 — Termina a Segunda Guerra Mundial.1947 — Em colaboração com Horkheimer, Adorno escreve a obraintitulada Dialética do Iluminismo. Ambos empregampela primeira vez a expressão "indústria cultural".1950 — Adorno regressa à Alemanha, participa da reorganização doInstituto e publica o estudo A Personalida<strong>de</strong> Autoritária.1956 — Adorno publica as obras intituladas Dissonâncias e Para— 13 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>a Metacrítica da Teoria do Conhecimento — Estudossobre Husserl e as Antinomias Fenomenológicas.1958/65 — Divulga seus Ensaios <strong>de</strong> Literatura I, II e III.1966 — Publica a Dialética Negativa.1968 — Conclui a primeira versão <strong>de</strong> Teoria Estética.1969 — Falece a 6 <strong>de</strong> agosto, com 66 anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> elaborar aobra Três Estudos sobre Hegel.


BIBLIOGRAFIASCHIMIDT, A. e RUSCONI, G. E.: La Scuola di Francoforte,De Donato editore, Bari, 1972.HABERMAS, ADORNO e outros: Comunicação e IndústriaCultural, organizado por G. Cohn, Companhia EditoraNacional e Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,São Paulo, 1971.ADORNO, POPPER e outros: La Disputa <strong>de</strong>i Positivismo emla Sociologia Alemana, Ediciones Grijalbo, Barcelona-Cida<strong>de</strong> do México, 1973.JIMÉNES, M.: Adorno: Art, I<strong>de</strong>ologie et Theorie <strong>de</strong> 1'Art, UnionGénerale d'Éditions, 10/18, Paris, 1973.AXEL<strong>OS</strong>, K.: Arguments d'une Recherche, Éditions <strong>de</strong> Minuit,Paris, 1969.SLATER, PHIL: Origem e Significado da Escola <strong>de</strong> Frankfurt,Zahar Editores, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1978.KOTHE, F. R.: Benjamin & Adorno: Confrontos, Editora Atica,São Paulo, 1978.


CONCEITO DE ILUMINISMO 1(Em parceria com Horkheimer)DESDE sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente<strong>de</strong> um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo<strong>de</strong> livrar os homens do medo e <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>les senhores. Mas,completamente iluminada, a terra resplan<strong>de</strong>ce sob o signodo infortúnio triunfal. O programa do iluminismo era o <strong>de</strong>livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a <strong>de</strong> dissolver osmitos e anular a imaginação, por meio do saber. Bacon, "opai da filosofia experimental", 2 já havia coligido as suas idéiasdiretrizes. Ele <strong>de</strong>sprezava os a<strong>de</strong>ptos da tradição que "acreditamprimeiro que outros sabem o que eles próprios nãosabem; e, em seguida, que eles próprios sabem o que nãosabem. Entretanto, a credulida<strong>de</strong>, a aversão à dúvida, a precipitaçãonas respostas, o pedantismo cultural, o receio <strong>de</strong>contradizer, a parcialida<strong>de</strong>, a negligência na pesquisa pessoal,0 fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito comconhecimentos parciais, essas e outras causas semelhantesimpediram que o entendimento humano fizesse um casamentofeliz com a natureza das coisas e foram, em vez disso,as alcoviteiras <strong>de</strong> sua ligação a conceitos fúteis e experimentosnão planejados: é fácil imaginar os frutos e a prole <strong>de</strong>1 Traduzido do original alemão: "Begriff <strong>de</strong>r Aufklaerung", em Dialektik <strong>de</strong>r Aufldaerung,Frankfurt am Main, 1969, S. Fischer Verlag, pp. 9-49.2 Voltaire, Lettres Pkibsophiques XI/, Oeuvres complètes, Ed. Garnier, Paris, 1879, vol. XXII,p. 118. (N. do A.)— 17 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>uma união tão gloriosa. A impressora, invenção grosseira; ocanhão, que já era prefigurado; a bússola, que até certo pontojá era conhecida anteriormente; que mudanças não produziramessas três — a primeira, no estado da ciência, a outra,no da guerra, a terceira, no das finanças, do comércio e danavegação! E foi só por acaso, repito, que se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> encontrocom essas invenções. Portanto, não há dúvida alguma <strong>de</strong>que a superiorida<strong>de</strong> do homem resi<strong>de</strong> no saber. Nele estãoguardadas muitas coisas, que os reis com todos os seus tesourosnão po<strong>de</strong>m comprar, sobre as quais não se impõe oseu mando, das quais seus informantes e alcagüetes não dãonotícia alguma, cujas terras <strong>de</strong> origem não po<strong>de</strong>m ser alcançadaspelos veleiros dos seus navegantes e <strong>de</strong>scobridores.Hoje, não passa <strong>de</strong> simples opinião nossa, a <strong>de</strong> que dominamosa natureza; estamos submetidos a seu jugo. Porém,se nos <strong>de</strong>ixássemos guiar por ela na invenção, nós a teríamos,na práxis, a nosso mando". 1Apesar <strong>de</strong> alheio à matemática, Bacon captou muito bem0 espírito da ciência que se seguiu a ele. O casamento felizentre o entendimento humano e a natureza das coisas, queele tem em vista, é patriarcal: o entendimento, que venceua superstição, <strong>de</strong>ve ter voz <strong>de</strong> comando sobre a natureza<strong>de</strong>senfeitiçada. Na escravização da criatura ou na capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> oposição voluntária aos senhores do mundo, o saber queé po<strong>de</strong>r não conhece limites. Esse saber serve aos empreendimentos<strong>de</strong> qualquer um, sem distinção <strong>de</strong> origem, assimcomo, na fábrica e no campo <strong>de</strong> batalha, está a serviço <strong>de</strong>todos os fins da economia burguesa. Os reis não dispõemsobre a técnica <strong>de</strong> maneira mais direta do que os comerciantes:o saber é tão <strong>de</strong>mocrático quanto o sistema econômicojuntamente com o qual se <strong>de</strong>senvolve. A técnica é a essência<strong>de</strong>sse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagensnem a felicida<strong>de</strong> da contemplação, mas o método, a explo-1 Bacon, In Pnásc of Knomkdge. MáaUaneous Tracts Upon Human Pküosophy, The Works ofFrtmcis Bacon, ed. Basil Montagu, Londres, 1825, vol. I, pp. 254 s. (N. do A.)— li —


ADORNOração do trabalho dos outros, o capital. Por sua vez, as inúmerascoisas que, segundo Bacon, ainda são guardadas nelenão passam <strong>de</strong> instrumentos: o rádio, enquanto impressorasublimada, o avião <strong>de</strong> combate, enquanto artilharia eficaz,o telecomando, enquanto bússola <strong>de</strong> maior confiança. O queos homens querem apren<strong>de</strong>r da natureza é como aplicá-lapara dominar completamente sobre ela e sobre os homens.Fora disso, nada conta. Sem escrúpulos para consigo mesmo,0 iluminismo incinerou os últimos restos da sua própria consciência<strong>de</strong> si. Só um pensar que faz violência a si próprio ésuficientemente duro para quebrar os mitos. Diante do triunfoatual do tino para os fatos, até mesmo o credo nominalista<strong>de</strong> Bacon seria suspeito <strong>de</strong> ser ainda uma metafísica e cairiasob o veredito <strong>de</strong> futilida<strong>de</strong> que ele próprio pronunciou contraa escolástica. Po<strong>de</strong>r e conhecimento são sinônimos. 1 Afelicida<strong>de</strong> estéril, provinda do conhecimento, é lasciva tantopara Bacon como para Lutero. O que importa não é aquelasatisfação que os homens chamam <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, o que importaé a operation, o proce<strong>de</strong>r eficaz. "O verda<strong>de</strong>iro objetivo e serventiada ciência" não resi<strong>de</strong> nos "discursos plausíveis, <strong>de</strong>leitantes,veneráveis, que fazem efeito, ou em quaisquer argumentosintuitivamente evi<strong>de</strong>ntes, mas sim no <strong>de</strong>sempenhoe no trabalho, na <strong>de</strong>scoberta dos fatos particulares anteriormente<strong>de</strong>sconhecidos que nos auxiliem e nos equipem melhorna vida". 2 Portanto, nenhum mistério há <strong>de</strong> restar e, tampouco,nenhum <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> revelação.O <strong>de</strong>senfeitiçamento do mundo é a erradicação do animismo.Xenófanes zomba dos muitos <strong>de</strong>uses, por serem elessemelhantes aos homens, que os produziram, no que estestêm <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntal e <strong>de</strong> pior, e a lógica mais recente <strong>de</strong>nunciaas palavras em que se cunha a linguagem, como moedasfalsas, que melhor seria se fossem substituídas por fichas1 Cf. Bacon, Nooum Organum, op. cit., vol. XIV, p. 31. (N. do A.)2 Bacon, Valerius Termmus of the Interpretation of Naturt. Miscdlaneous Tracts, op. cit., vol. I,P- 281. (N. do A.)— 19 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>neutras <strong>de</strong> um jogo. O mundo vira caos e a síntese é a salvação.Entre o animal totêmico, os sonhos <strong>de</strong> um visionárioe a idéia absoluta, não cabe nenhuma diferença. Caminhandoem busca da ciência mo<strong>de</strong>rna, os homens se <strong>de</strong>spojam dosentido. Eles substituem o conceito pela fórmula, a causapela regra e pela probabilida<strong>de</strong>. A noção <strong>de</strong> causa foi o últimoconceito filosófico a entrar no acerto <strong>de</strong> contas da crítica científicae, por ser o único que ainda comparecia perante a ciência,era por assim dizer a secularização mais tardia do princípiocriador. Des<strong>de</strong> Bacon, um dos objetivos da filosofia erao <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir, em conformida<strong>de</strong> com o espírito do tempo,substância, qualida<strong>de</strong>, ação e paixão, ser e existência; mas aciência se safou, mesmo sem tais categorias. Elas ficaram paratrás, como Idola Theatri da velha metafísica; e, mesmo notempo <strong>de</strong>ssa última, já eram elas mementos <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s epotências do ante-passado, que tinham, nos mitos, vida emorte explicitadas e entrelaçadas. As categorias, nas quais afilosofia oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong>terminara sua eterna or<strong>de</strong>m da natureza,marcavam os lugares, antigamente ocupados por Ocnos ePerséfone, Ariadne e Nereu. As cosmologias pré-socráticasfixam o momento <strong>de</strong> transição. A umida<strong>de</strong>, o indiferenciado,o ar, o fogo, nelas tratados como material primitivo da natureza,são justamente sedimentações meramente nacionalizadasda visão mítica do mundo. Assim como as imagensda criação a partir do rio e da terra, imagens que chegaramdo Nilo até os gregos, tornaram-se aqui princípios hilozoísticos,elementos, assim também a profusa ambigüida<strong>de</strong> dos<strong>de</strong>mônios míticos se espiritualizou nas formas puras das essênciasontológicas. Pelas idéias platônicas, o logos filosóficofinalmente também toma conta dos <strong>de</strong>uses patriarcais doOlimpo. Mas, reconhecendo as antigas potências na herançaplatônico-aristotélica da metafísica, o iluminismo combateua pretensão à verda<strong>de</strong> dos universais, como superstição. Elejulga ver ainda, na autorida<strong>de</strong> dos conceitos universais, omedo dos <strong>de</strong>mônios, por meio <strong>de</strong> cujas imagens os homensprocuravam, no ritual mágico, influir na natureza. A partir— 20 —


ADORNO<strong>de</strong> agora, a matéria <strong>de</strong>verá finalmente ser dominada, semapelo a forçás ilusórias que a governem ou que nela habitem,sem apek^jy proprieda<strong>de</strong>s ocultas. O que não se ajusta àsmedidas da cáículabilida<strong>de</strong> e da utilida<strong>de</strong> é suspeito para oiluminismo. Uma vez que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se sem ser perturbadopela opressão externa, nada mais há que lhe possaservir <strong>de</strong> freio. Com as suas próprias idéias sobre os direitoshumanos acontece o mesmo que acontecera com os antigosuniversais. Cada resistência espiritual que ele encontra serveapenas para multiplicar a sua força. 1 Isso se explica pelo fato<strong>de</strong> que o iluminismo se auto-reconhece até mesmo nos mitos.Quaisquer que sejam os mitos para os quais essa resistênciapossa apelar, esses mitos, pelo simples fato <strong>de</strong> se tornaremargumentos numa tal contestação, a<strong>de</strong>rem ao princípio daracionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>molidora pela qual censuram o iluminismo.O iluminismo é totalitário.Para ele, o fundamento do mito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre estiverano antropomorfismo, na projeção do subjetivo sobre a natureza.2 O sobrenatural, os espíritos e os <strong>de</strong>mônios seriam imagensnas quais se espelham os homens que se <strong>de</strong>ixam atemorizarpelo natural. Segundo o iluminismo, as múltiplasfiguras míticas po<strong>de</strong>m ser, todas elas, remetidas a um mesmo<strong>de</strong>nominador comum, elas se reduzem ao sujeito. A resposta<strong>de</strong> Edipo ao enigma da esfinge, "É o homem", é indiferenciadamenterepetida como uma saída estereotipada, poucoimportando que se tenha diante dos olhos um fragmento dosentido objetivo, os contornos <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m, a angústia peranteas potências do mal ou a esperança <strong>de</strong> salvação. O queo iluminismo reconhece <strong>de</strong> antemão como ser e como aconteceré o que po<strong>de</strong> ser abrangido pela unida<strong>de</strong>; seu i<strong>de</strong>al é0 sistema, do qual tudo segue. Nesse ponto, suas versõesracionalista e empirista não divergem. Ainda que as diferen-1 Cf. Hegel, Phünomenologie <strong>de</strong>s Gostes, Werke, vol. II, pp. 410-11. (N. do A.)2 Xenófanes, Montaigne, Hume, Feuerbach e Salomon Reinach estão <strong>de</strong> acordo sobre esseponto. Cf. em Reinach: Orpheus. Traduzido do francês por F. Simmons, Londres e NovaYork, 1909, pp. 6 ss. (N. do A.)— 21 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>tes escolas interpretem os axiomas <strong>de</strong> diferentes maneiras,a estrutura da ciência unitária é sempre a mesma. Apesar<strong>de</strong> todo o pluralismo dos domínios <strong>de</strong> pesquisa, o postulado<strong>de</strong> Bacon da Una scientia universalis 1 é tão hostil ao <strong>de</strong>sconexoquanto a mathesis universalis <strong>de</strong> Leibniz é inimiga do salto.A multiplicida<strong>de</strong> das figuras é reduzida a posição e or<strong>de</strong>nação;a história, ao fato; as coisas, à matéria. Mesmo segundoBacon, <strong>de</strong>ve existir entre os princípios supremos e os enunciados<strong>de</strong> observação uma conexão lógica unívoca atravésdos níveis <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>. De Maistre zomba <strong>de</strong> Bacon, acusando-o<strong>de</strong> cultuar une idole d'echelle. 2 A lógica formal foi agran<strong>de</strong> escola <strong>de</strong> uniformização. Ela ofereceu aos iluministaso esquema da calculabilida<strong>de</strong> do mundo. A equiparação mitologizantedas idéias aos números, nos últimos escritos <strong>de</strong>Platão, exprime a ânsia própria a qualquer <strong>de</strong>smitologização:o número se tornou o cânon do iluminismo. As mesmas e-quações dominam tanto a justiça burguesa quanto a troca<strong>de</strong> mercadorias. "Pois a regra <strong>de</strong> que é <strong>de</strong>sigual a soma doigual com o <strong>de</strong>sigual não será um princípio fundamentaltanto da justiça como da matemática? E será que não existeuma verda<strong>de</strong>ira correspondência entre a justiça comutativae distributiva, por um lado, e as proporções geométricas earitméticas, por outro?" 3 A socieda<strong>de</strong> burguesa é dominadapelo equivalente. Ela torna comparáveis as coisas que nãotêm <strong>de</strong>nominador comum, quando as reduz a gran<strong>de</strong>zas abstratas.O que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>svanecer em números, e, emúltima análise, numa unida<strong>de</strong>, reduz-se, para o iluminismo,a aparência e é <strong>de</strong>sterrado, pelo positivismo mo<strong>de</strong>rno, para0 domínio da poesia. De Parmêni<strong>de</strong>s a Russell, a senha é aunida<strong>de</strong>. Insiste-se na <strong>de</strong>struição dos <strong>de</strong>uses e das qualida<strong>de</strong>s.Mas os mitos que tombam como vítimas do iluminismojá eram, por sua vez, seus próprios produtos. No cálculo1 Bacon, De Augmentis Scientiarum, op. cit., vol. VIII, p. 152. (N. do A.)2 Les Soirées <strong>de</strong> Samt-Pétersburg, 5ème entretien. Oeuvres complètes, Lião, 1891, vol. IV, p.256. (N. do A.)3 Bacon, Advancement of Leammg, op. cit., vol. n, p. 126. (N. do A.)— 22 —


ADORNOcientífico dqfaepntecer, anula-se a justificação que uma vezlhe fora daoa jjelo pensamento, nos mitos. O mito pretendiarelatar, <strong>de</strong>nominar, dizer a origem; e, assim, expor, fixar, explicar.Com a escrita e a compilação dos mitos, essa tendênciase fortaleceu. De relato que eram, eles logo passaram a serdoutrina. Todo ritual inclui uma representação do acontecerenquanto processo <strong>de</strong>terminado que se <strong>de</strong>stina a ser influenciadopelo feitiço. Este elemento teórico do ritual tornou-sein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte nas mais antigas epopéias dos povos. Os mitos,tais como encontrados pelos autores trágicos, já estavam sob0 signo daquela disciplina e daquele po<strong>de</strong>r louvados porBacon como o objetivo a ser perseguido. Em lugar dos <strong>de</strong>usese <strong>de</strong>mônios locais, aparecem o céu e a sua hierarquia, emlugar das práticas <strong>de</strong> conjuração do feiticeiro e da tribo, surgemos sacrifícios <strong>de</strong> vários níveis hierárquicos e o trabalhodos escravos mediatizado pelo mundo. As divinda<strong>de</strong>s olímpicasnão são mais imediatamente idênticas aos elementos,elas os significam. Em Homero, Zeus presi<strong>de</strong> o céu diurno,Apoio guia o sol, Hélio e Eos já <strong>de</strong>rivam para o alegórico.Os <strong>de</strong>uses se separam dos elementos materiais como suasessências. Des<strong>de</strong> então, o ser se <strong>de</strong>compõe, por um lado, emlógos que, com o progresso da filosofia, se comprime na mônada,num mero ponto <strong>de</strong> referência, e, por outro lado, namassa <strong>de</strong> todas as coisas e criaturas lá fora. Uma única diferença,a diferença entre a própria existência e a realida<strong>de</strong>,absorve todas as outras. Sem que sejam respeitadas as diferenças,o mundo torna-se sujeito ao homem. Nesse pontoconcordam a história da criação judaica e a religião olímpica."E disse Deus: 'Façamos o homem à nossa imagem, conformea nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar,sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, os animaisselvagens e todos os répteis que rastejam sobre a terra'." 1"Ó, Zeus, pai Zeus, é teu o domínio do céu e teu olhar1 Gén 1, 26. (N. do A.)


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>se esten<strong>de</strong> do alto a todos os feitos dos homens, os criminosose os justos, e também à insolência dos animais, e o teu coraçãose compraz na retidão." 1 "Pois assim são as coisas, um expiaimediatamente, o outro, mais tar<strong>de</strong>; e, ainda que alguém consigaescapar e a ameaçadora fatalida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>uses não oatinja, essa fatalida<strong>de</strong> acaba todavia por cumprir-se infalivelmentee inocentes têm que pagar pelo ato, seus filhos ouuma geração posterior." 2 Perante os <strong>de</strong>uses subsiste apenasaquele que se submete sem restrições. O <strong>de</strong>spertar do sujeitoé pago pelo reconhecimento do po<strong>de</strong>r como princípio <strong>de</strong>todas as relações. Em face da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma tal razão, adiferença entre Deus e o homem é reduzida àquela irrelevânciaque a razão já indicara resolutamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a maisantiga crítica homérica. O Deus criador e o espírito or<strong>de</strong>nadorsão iguais entre si enquanto senhores da natureza. No homem,o seu ser feito à imagem <strong>de</strong> Deus consiste na sua soberaniasobre o que existe, no seu olhar <strong>de</strong> senhor, no comando.O mito passa a ser iluminação e a natureza, meraobjetivida<strong>de</strong>. O preço que os homens pagam pela multiplicaçãodo seu po<strong>de</strong>r é a sua alienação daquilo sobre o queexercem o po<strong>de</strong>r. O iluminismo se relaciona com as coisasassim como o ditador se relaciona com os homens. Ele osconhece, na medida em que os po<strong>de</strong> manipular. O homem<strong>de</strong> ciência conhece as coisas, na medida em que as po<strong>de</strong>produzir. E assim que o em-si das coisas vem a ser para-ele.Na modificação, a essência das coisas se revela como já sendo<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre a mesma, como substrato <strong>de</strong> dominação. Essai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> constitui a unida<strong>de</strong> da natureza. Nem ela nemtampouco a unida<strong>de</strong> do sujeito eram pressupostas pela conjuraçãomágica. Os ritos xamanistas eram usados para o vento,para a chuva, para a serpente lá fora ou para o <strong>de</strong>môniono doente, e não para os elementos materiais ou para os1 Archilochos, fr. 87. Citado por Deussen, Allgemeine Geschichte <strong>de</strong>r Philosophie, vol. n. Primeiraparte, Leipzig, 1911, p. 18. (N. do A.)2 Sólon, fr. 13, 25 s., op. cit., p. 20. (N. do A.)— 24 —


ADORNOexemplares. A magia não era impulsionada por um único emesmo espírito; ele variava, tal como as máscaras do culto,que <strong>de</strong>viam assemelhar-se aos diversos espíritos. A magia éa inverda<strong>de</strong> cruenta, mas que não preten<strong>de</strong> ainda renegar adominação, estabelecendo-se, transformada na verda<strong>de</strong> pura,em fundamento do mundo caído sob seu po<strong>de</strong>r. O feiticeirose faz semelhante aos <strong>de</strong>mônios; para assustá-los ou abrandá-los,ele se comporta <strong>de</strong> uma maneira assustadora ou branda.Embora seu ofício fosse o da repetição, ele ainda não seproclamara feito à imagem da força invisível, tal como fazo civilizado, para o qual, então, os mo<strong>de</strong>stos campos <strong>de</strong> caçase aviltam, convertendo-se num cosmo unitário, no conjunto<strong>de</strong> todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> exploração. Só na medida emque é essa imagem, o homem atinge a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do si-mesmo,que não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r na i<strong>de</strong>ntificação com um outro,mas que toma posse <strong>de</strong> si <strong>de</strong> uma vez por todas como umamáscara impenetrável. Essa é a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do espírito, e seucorrelato é a unida<strong>de</strong> da natureza, diante da qual sucumbea riqueza das qualida<strong>de</strong>s. A natureza <strong>de</strong>squalificada torna-seo material caótico <strong>de</strong> uma simples classificação e o si-mesmotodo-po<strong>de</strong>roso converte-se em mero ter, em i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> abstrata.Na magia, há representantes específicos. O que ocorrecom a lança do inimigo, com o seu cabelo, com o seu nome,atinge ao mesmo tempo a pessoa, e o animal <strong>de</strong> sacrifício émassacrado em lugar do <strong>de</strong>us. A substituição no sacrifíciomarca um passpfctm direção da lógica discursiva. A cervaou o cor<strong>de</strong>iro qyey<strong>de</strong>viam ser ofertados pela filha ou peloprimogênito, embora <strong>de</strong>vessem ainda ter qualida<strong>de</strong>s próprias,já representavam, entretanto, a espécie. Eles traziamem si o caráter arbitrário do exemplar. Mas a sacralida<strong>de</strong> dohic et nunc, a unicida<strong>de</strong> do eleito, contraída pelo representante,distingue-se radicalmente, faz com que ele não possavir a ser objeto <strong>de</strong> troca. A ciência põe fim a isso. Nela nãose po<strong>de</strong> recorrer à representação específica: se ainda há animais<strong>de</strong> sacrifício, <strong>de</strong>uses não mais existem. O recurso darepresentação transforma-se em funcionalida<strong>de</strong> universal.— 25 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>Um átomo não é <strong>de</strong>sintegrado enquanto representante, masenquanto espécimen da matéria, e o coelho não assume qualquerfunção representativa, mas, incompreendido, atravessaa via crucis do laboratório como um mero exemplar. Comona ciência funcional as diferenças se tornam tão fluidas quetudo perece numa matéria única, o objeto científico se petrificae o rígido ritual <strong>de</strong> antigamente aparece como maleável,pois ainda substituía uma coisa pela outra. O mundoda magia ainda continha diferenças, cujos traços <strong>de</strong>sapareceram,até mesmo da forma da linguagem. 1 As múltiplasafinida<strong>de</strong>s entre entes são reprimidas por uma única relaçãoentre o sujeito doador <strong>de</strong> sentido e o objeto sem sentido,entre a significação racional e o suporte causai da significação.Na etapa da magia, sonho e imagem não valiam comomeros signos <strong>de</strong> coisa, mas como vinculados a ela por semelhançaou pelo nome. A relação não é a da intenção, masa do parentesco. A feitiçaria, como a ciência, tem seus fins,mas ela os persegue pela mimese e não por um distanciamentoprogressivo do objeto. Ela não se fundamenta <strong>de</strong> modoalgum numa "onipotência dos pensamentos" que fosse atribuídapelo primitivo a si mesmo, tal como fazem os neuróticos;2 on<strong>de</strong> não há separação radical entre pensamento erealida<strong>de</strong>, não po<strong>de</strong> haver "superestimação <strong>de</strong> processos psíquicosem face da realida<strong>de</strong>". A "confiança inabalável na possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> dominação do mundo", 3 que Freud anacronicamenteatribui à feitiçaria, só vem com uma dominação do mundoadaptada à realida<strong>de</strong>, feita por meio <strong>de</strong> uma ciência maisastuta. Para as práticas locais do curan<strong>de</strong>iro po<strong>de</strong>rem ser substituídaspela técnica industrial universalmente aplicável, foi necessário,em primeiro lugar, ter havido um processo em queos pensamentos se tornaram in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes dos objetos, semelhanteao que se perfaz no eu adaptado à realida<strong>de</strong>.1 Cf., p. ex., Robert H. Lowie, An Introductkm to Cultural Anthropology, Nova York, 1940,pp. 34445. (N. do A.)2 Cf. Totem und Tabu, Cesammelte Werke, vol. X. pp. 106 ss. (N. do A.)3 Op. cit., p. 110. (N. do A.)— 26 —


ADORNOEnquanto totalida<strong>de</strong> verbalmente <strong>de</strong>senvolvida — cujapretensão à verda<strong>de</strong> reprimiu a fé mítica mais antiga, as religiõesprimitivas —, o mito solar patriarcal é por sua veziluminismo com o qual o iluminismo filosófico po<strong>de</strong> medir-seno mesmo plano. Ele recebe agora o pagamento na mesmamoeda. A própria mitologia <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou o processo semfim do iluminismo, no qual qualquer visão teórica <strong>de</strong>terminadasucumbe, inelutável e necessariamente, como vítimada crítica arrasadora <strong>de</strong> ser apenas uma crença, a tal pontoque os próprios conceitos <strong>de</strong> espírito, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e até mesmo<strong>de</strong> iluminismo são relegados ao domínio do feitiço animista.O princípio daquela necessida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino que se tramaqual uma conseqüência lógica do oráculo, e pela qual perecemos heróis do mito, uma vez purificado a ponto <strong>de</strong> atingiro rigor da lógica formal, não predomina apenas em qualquersistema racionalista da filosofia oci<strong>de</strong>ntal, mas governa atémesmo a seqüência dos sistemas, que começa com a hierarquiados <strong>de</strong>uses e, no crepúsculo permanente dos ídolos,lega, a título <strong>de</strong> conteúdo idêntico, a ira contra as contas malprestadas. Assim como os mitos já são iluminismo, assimtambém o iluminismo se envolve em mitologia a cada passomais profundamente. Ele recebe todo o seu material dos mitos,pára então <strong>de</strong>struí-los, e, enquanto justiceiro, cai sob oencantamento mítico. Ele preten<strong>de</strong> subtrair-se ao processodo <strong>de</strong>stino e da retaliação, exercendo a retaliação sobre essepróprio processe^Nos mitos, todo acontecer tem que expiarseu ter acontMdp. O iluminismo fica nisso mesmo: o fatose anula, mal tendo acontecido. A doutrina da igualda<strong>de</strong> daação e da reação alegava o po<strong>de</strong>r da repetição sobre a existência,muito <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os homens se terem <strong>de</strong>sfeito da ilusão<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se por repetição com a existência repetida e<strong>de</strong> subtrair-se assim a seu po<strong>de</strong>r. Porém, quanto mais se <strong>de</strong>svanecea ilusão mágica, mais implacavelmente a repetição,sob o rótulo <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>, amarra o homem àquele círculo,por meio <strong>de</strong> cuja objetualização em lei da natureza o homemse preten<strong>de</strong> garantido como sujeito livre. O princípio <strong>de</strong> ima-— 27 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>nêncía, <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong> todo acontecer como uma repetição,sustentado pelo iluminismo contra o po<strong>de</strong>r da imaginaçãomítica, é o princípio do próprio mito. A sabedoria ressequida,para a qual nada <strong>de</strong> novo vige sob o sol, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, no jogosem sentido, todas as cartas já foram jogadas, e os gran<strong>de</strong>spensamentos, todos eles já pensados, que as possíveis <strong>de</strong>scobertaspo<strong>de</strong>m ser antecipadamente construídas, e que oshomens estão comprometidos a se autoconservarem pelaadaptação — essa sabedoria ressequida limita-se a renovara sabedoria fantástica que justamente rejeita: sanção do <strong>de</strong>stinoque reproduz incessantemente por retaliação o que semprejá era. O que po<strong>de</strong>ria ser outro é feito igual. Tal é overedito que estabelece criticamente os confins da experiênciapossível. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo com tudo é paga com o nãohaver nada po<strong>de</strong>ndo ser ao mesmo tempo idêntico a si mesmo.O iluminismo dissolve a injustiça da antiga <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>,a dominação imediata, porém torna-a, ao mesmo tempo,eterna mediação universal, na relação <strong>de</strong> um ente qualquera qualquer outro. Ele consegue fazer aquilo <strong>de</strong> que se louvaa ética protestante <strong>de</strong> Kierkegaard e que se encontra no cicloépico <strong>de</strong> Hércules como dos arquétipos da violência mítica:ele extirpa o incomensurável. Não são só as qualida<strong>de</strong>s quese dissolvem no pensamento, também os homens são coagidosà conformida<strong>de</strong> com o real. O mercado não questionasobre o seu nascimento, mas o preço <strong>de</strong>ssa vantagem, pagopor quem fez a troca, foi o <strong>de</strong> ser obrigado a permitir queas suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nascença fossem mo<strong>de</strong>ladas pelaprodução das mercadorias que nele po<strong>de</strong>m ser compradas.Os homens foram presenteados com um si-mesmo próprioa cada um e distinto <strong>de</strong> todos os outros, só para que se torne,com mais segurança, igual aos outros. Mas, como ele nuncase <strong>de</strong>sfez totalmente, o iluminismo, mesmo durante o períodoliberal, sempre simpatizou com a coação social. A unida<strong>de</strong>do coletivo manipulado consiste na negação <strong>de</strong> qualquer indivíduo,zomba-se <strong>de</strong> toda espécie <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>ssequerer fazer do indivíduo um indivíduo. A horda, cujo nome— 28 —


ADORNOfigura sem dúvida alguma na organização da Juventu<strong>de</strong> Hitlerista,não é nenhuma recaída na antiga barbárie, mas otriunfo da igualda<strong>de</strong> repressiva, o <strong>de</strong>senvolvimento da igualda<strong>de</strong>do direito na injustiça feita pelos iguais. O mito pechisbequedos fascistas revela-se como aquilo que no antetempoera o mito genuíno, só que esse último distinguia aretaliação, enquanto o falso a executa cegamente nas suasvítimas. Cada uma das tentativas <strong>de</strong> romper o jugo da natureza,enquanto rompe com a natureza, é só uma quedamais profunda sob esse jugo. Foi assim que a civilização européiapercorreu o seu caminho. A abstração, ferramenta doiluminismo, comporta-se diante <strong>de</strong> seus objetos como o <strong>de</strong>stino,cujo conceito é por ela mesma eliminado: como liquidação.Sob a dominação nivelante do abstrato, que faz comque tudo na natureza se possa repetir, e sob a da indústria,para a qual isso é aprontado, os próprios liberados convertem-sefinalmente naquela "tropa" que Hegel 1 assinalou como0 resultado do iluminismo.A distância do sujeito ao objeto, pressuposto da abstração,fundamenta-se na distância à coisa que o senhor obtémpor meio do assenhoreamento. Os cantos homéricos e os hinosdo-Rig Veda provêm dos tempos da dominação das terrase dos burgos fortalecidos nos quais se assentara um povoguerreiro, senhor da massa dos autóctones vencidos. 2 Omaior <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>uses gerou-se no mundo <strong>de</strong>sses primeirosburgos, ondéõíèi como chefe da nobreza armada, fixavaà terra os subjugados/ enquanto médicos, adivinhos, artesãos,comerciantes cuidavam da circulação social. Com o fim davida nôma<strong>de</strong>, a or<strong>de</strong>m social se constituiu à base da proprieda<strong>de</strong>estável. Dominação e trabalho se separam. Um proprietário,como Ulisses, "traz consigo, <strong>de</strong> terras longínquas,um pessoal numeroso e minuciosamente diferenciado, cons-1 Phànomenologie <strong>de</strong>s Geistes, loc. cit., p. 424. (N. do A.)2 Cf. W. Kirfel, Geschichte lndien, in Propyliiemoeltgeschichte, voL Dl, pp. 261 s. e G. Glotz,Historie Grique, vol. I, in Histoire Ancienne, Paris, 1938, pp. 137 ss. (N. do A.)— 29 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>tituído por homens que cuidam dos bois, ovelhas e porcos,e por serviçais. À noite, tendo avistado do seu castelo o campoiluminado por mil fogos, po<strong>de</strong> adormecer tranqüilamente:ele sabe que seus bravos serviçais velam para manter a distânciaos animais selvagens e para afugentar os ladrões dosrecintos confiados à sua guarda". 1 A generalida<strong>de</strong> dos pensamentos,tal como a lógica discursiva a <strong>de</strong>senvolve, a dominaçãona esfera do conceito, erige-se sobre o fundamentoda dominação na esfera da realida<strong>de</strong>. Na substituição daherança mágica, das antigas representações difusas, pela unida<strong>de</strong>conceituai, exprime-se a constituição da vida articuladapelo mando e <strong>de</strong>terminada pelos homens livres. O si-mesmoque, com a sujeição do mundo, apren<strong>de</strong>u a or<strong>de</strong>m e a subordinação,não tardou a i<strong>de</strong>ntificar a verda<strong>de</strong> em geral comum pensar que dispõe, cujas firmes diferenciações são imprescindíveispara que possa subsistir. Com o feitiço mimético,o si-mesmo transformou em tabu o conhecimento queatinge efetivamente o objeto. Seu ódio se volta contra a imagemdo antemundo vencido e contra a sua felicida<strong>de</strong> imaginária.Os <strong>de</strong>uses ctônios dos aborígenes são <strong>de</strong>sterradospara o inferno no qual a terra mesma se transforma, sob areligião <strong>de</strong> sol e luz <strong>de</strong> Indra e Zeus.Mas céu e inferno estavam estreitamente ligados. Assimcomo o nome <strong>de</strong> Zeus convinha, em cultos que não se excluíamreciprocamente, tanto a um <strong>de</strong>us subterrâneo comoa um <strong>de</strong>us <strong>de</strong> luz, 2 assim como os <strong>de</strong>uses do Olimpo cultivamtodo tipo <strong>de</strong> convivência com os ctônios, do mesmo modoas potências boas e más, a salvação e a perdição, não estavamisoladas uma da outra sem ambigüida<strong>de</strong>s. Elas se enca<strong>de</strong>avamcomo geração e corrupção, vida e morte, verão e inverno.No mundo luminoso da religião grega sobrevive a turva indiferenciaçãodo princípio religioso que, nas mais antigas1 G. Glotz, op. cit., p. 140. (N. do A.)2 Cf. Kurt Eckermann, Jahrbuch <strong>de</strong>r Reiigòmsgeschichte und Mythclogie, Halle, 1845, vol. I, p.241 e O. Kern, Die Rdigúm <strong>de</strong>r Griechen, Berlim, 1926, vol. I, pp. 181 ss. (N. do A.)— 30 —


ADORNOfases conhecidas da humanida<strong>de</strong>, era venerado como numa.Originariamente, indiferenciado é tudo aquilo que é <strong>de</strong>sconhecido,estranho, aquilo que transcen<strong>de</strong> o âmbito da experiência,aquilo que nas coisas exce<strong>de</strong> o seu existir antecipadamenteconhecido. O que aqui é experimentado como sobrenaturalpelo primitivo não é a substância espiritual, emoposição à material, mas o entrelaçamento do natural emface do membro singular isolado. O grito <strong>de</strong> terror que acompanhaa experiência do insólito fica sendo o seu nome. Elefixa a transcendência do <strong>de</strong>sconhecido diante do que é conhecidoe converte assim o tremor em santida<strong>de</strong>. A duplicaçãoda natureza em aparência e essência, ação e força, quefaz com que tanto o mito como a ciência venham a ser possíveis,provém da angústia do homem, cuja expressão se tornaexplicação. Não que a alma seja transferida para a natureza,como faz crer o psicologismo; mana, o espírito motor,não é nenhuma projeção e sim o eco da supremacia real danatureza nas almas fracas dos selvagens. Só a partir <strong>de</strong>ssepré-animismo é que é feita a cisão entre o animado e o inanimado,e que <strong>de</strong>terminados lugares são investidos <strong>de</strong> <strong>de</strong>môniose divinda<strong>de</strong>s. Nele já está implícita a separação entresujeito e objeto. Se o homem não consi<strong>de</strong>ra mais a árvoreapenas uma árvore, mas um testemunho <strong>de</strong> um outro, comose<strong>de</strong> do mana, a linguagem exprime a contradição <strong>de</strong> algoser ele próprio e ao mesmo tempo algo diferente <strong>de</strong> si próprio,idêntico e não idêntie^JJPor meio da divinda<strong>de</strong>, a linguagempassa <strong>de</strong> tautologia a (linguagem. O conceito, que costumaser <strong>de</strong>finido como unida<strong>de</strong> das características daquilo quecompreen<strong>de</strong> sob si, foi, em vez disso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, o produtodo pensamento dialético, no qual sempre tudo só é oque é, enquanto se torna o que não é. Essa foi a forma origináriada objetivação <strong>de</strong>terminante em que conceito e coisa1 Hubert e Mauss <strong>de</strong>screvem o teor representativo da "simpatia", da mimese, da seguintemaneira: "L'un est le tout, tout est dans 1'un, Ia nature triomphe <strong>de</strong> Ia nature" — H. Huberte M. Mauss, Théorie GénénU <strong>de</strong> ]a Magie, in VAnnée Sociobgique, 1902-3, p. 100. (N. do A.)


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>se separam <strong>de</strong>ssa mesma objetívação que, na época homérica,já era bastante florescente e que se inverte na ciência mo<strong>de</strong>rnapositiva. Mas essa dialética permanece impotente, na medidaem que se <strong>de</strong>senvolve a partir do grito <strong>de</strong> terror que é aduplicação, a tautologia do próprio terror. Os <strong>de</strong>uses nãopo<strong>de</strong>m livrar o homem do medo cujas vozes petrificadaseles carregam como seus nomes. O homem tem a ilusão <strong>de</strong>se ter libertado do medo quando já não há mais nada <strong>de</strong><strong>de</strong>sconhecido. Isso <strong>de</strong>termina a via da <strong>de</strong>smitologização doiluminismo que i<strong>de</strong>ntifica o animado com o inanimado, assimcomo o mito i<strong>de</strong>ntificava o inanimado com o animado. Oiluminismo é a angústia mítica que se tornou radical. A imanênciapura do positivamente, seu produto último, é algocomo um tabu universal. Lá fora não <strong>de</strong>ve haver mais nada,pois a mera representação do lá fora é a verda<strong>de</strong>ira fonteda angústia. Quando a vingança do primitivo, pela morteinfligida a um dos seus, se <strong>de</strong>ixava eventualmente aplacarpela aceitação do homicida no seio da própria família, 1 tantoa vingança quanto a aceitação significavam a assimilação dosangue alheio ao próprio, a instauração da imanência. Odualismo mítico não leva além do âmbito da existência. Omundo dominado pelo mana e mesmo ainda o mundo domito hindu e grego são eternamente iguais e sem saída. Cadanascimento é pago com a morte, cada felicida<strong>de</strong>, com a infelicida<strong>de</strong>.Homens e <strong>de</strong>uses po<strong>de</strong>m tentar, durante o tempoque lhes é dado, distribuir a sorte segundo medidas diferentesdo curso cego do <strong>de</strong>stino, mas, no final, a existênciatriunfa sobre eles. Até mesmo sua justiça, arrancada do <strong>de</strong>stino,exibe os seus traços; ela correspon<strong>de</strong> ao olhar que oshomens, tanto os primitivos como os gregos e os bárbaros,lançam para seu mundo ambiente, a partir <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> coação e <strong>de</strong> miséria. É por isso que, tanto para a justiçamítica como para a do iluminismo, culpa e pena, felicida<strong>de</strong>1 Cf. Westermarck, Ursprung <strong>de</strong>r Moralbergriffe, Leipzig, 1913, vol. l p. 402. (N. do A.)— 32 —


ADORNOvalem como membros <strong>de</strong> uma equação. A justiça perece nodireito. O xamanista esconjura o perigoso pela sua imagem.Seu instrumento é a igualda<strong>de</strong>. E ela que regula a puniçãoe o mérito na civilização. As representações dos mitos po<strong>de</strong>mser reduzidas, sem <strong>de</strong>ixar resto, a relações da natureza. Assimcomo a constelação dos Gêmeos e todos os outros símbolos<strong>de</strong> dualida<strong>de</strong> indicam o ciclo inelutável da natureza, que porsua vez tem no símbolo do ovo, do qual saiu, seu signo maisarcaico, da mesma maneira a balança na mão <strong>de</strong> Zeus, imagemsensível da justiça <strong>de</strong> todo o mundo patriarcal, remeteà natureza nua. O passo que vai do caos à civilização, on<strong>de</strong>as relações naturais não mais exercem o seu po<strong>de</strong>r imediatamente,mas através da consciência dos homens, não resultouem alteração alguma no princípio da igualda<strong>de</strong>. Sim, oshomens tiveram que expiar, justamente por esse passo, coma adoração daquilo a que antes eram apenas submetidos,assim como todas as outras criaturas. Antes, os fetiches estavamsob a lei da igualda<strong>de</strong>. Agora, a própria igualda<strong>de</strong> seconverte em fetiche. A venda sobre os olhos da Justitia nãosignifica somente a proibição <strong>de</strong> intervir no direito; ela dizainda que o direito não provém da liberda<strong>de</strong>.A doutrina dos sacerdotes era simbólica, no sentido emque nela coincidiam signo e imagem. Como testemunhamos hieroglifos, a palavra <strong>de</strong>sempenhava originariamente tambéma função <strong>de</strong> imagem. Essa função passou para os mitos.Tanto os mitos quanto os ritos mágicos visam à naturezaque se repete. Ela é a^essência do simbólico: um ser ou umprocesso que é represehtacjio como eterno, por <strong>de</strong>ver sempreconverter-se novamente em acontecimento, no perfazer-se dosímbolo. Inesgotabilida<strong>de</strong>, renovação sem fim, permanênciado significado, não são apenas atributos <strong>de</strong> todos os símbolos,mas seu verda<strong>de</strong>iro teor. As narrativas da criação em que omundo sai da mãe primígena, da vaca ou do ovo, são simbólicasem oposição à gênese judaica. A zombaria que osantigos faziam dos <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>masiadamente humanos <strong>de</strong>ixou— 33 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>intacto o essencial. A individualida<strong>de</strong> não esgota a essênciados <strong>de</strong>uses. Eles ainda tinham em si algo <strong>de</strong> mana, encarnavama natureza enquanto po<strong>de</strong>r universal; e, com seus traçospré-animistas, sobrevivem no iluminismo. Debaixo do véupudico da cronique scandaleuse do Olimpo, já se tinha configuradoa doutrina da mistura, da pressão e choque dos elementos,que logo em seguida se estabeleceu como ciência ereduziu os mitos a construções da fantasia. Com a clara distinçãoentre ciência e poesia, a divisão do trabalho já efetivadacom seu auxílio se esten<strong>de</strong> à linguagem. Como signo, a palavraentra na ciência; como som, como imagem, como palavrapropriamente dita, ela é distribuída pelas diferentesartes, sem que jamais possa ser restabelecida pela soma <strong>de</strong>ssasúltimas, pela sinestesia ou pela "arte global". Como signo,a linguagem <strong>de</strong>ve resignar-se a ser um cálculo, para conhecera natureza, precisa renunciar à pretensão <strong>de</strong> lhe ser semelhante.Como imagem, ela <strong>de</strong>ve resignar-se a ser reprodução,para ser totalmente natureza, tem que renunciar à pretensão<strong>de</strong> conhecê-la. Com o progredir do iluminismo, só as autênticasobras <strong>de</strong> arte pu<strong>de</strong>ram escapar <strong>de</strong> ser meras imitaçõesdaquilo que, <strong>de</strong> qualquer maneira, já é. A antítese corriqueiraentre arte e ciência, que separa as duas em diferentes setoresculturais, a fim <strong>de</strong> que, enquanto setores culturais, elas possamser ambas administradas, faz com que cada uma <strong>de</strong>las, enquantoexato oposto, converta-se finalmente na outra em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> suas próprias tendências. A ciência, na sua interpretaçãoneopositivista, torna-se esteticismo, um sistema <strong>de</strong> signossoltos, <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> qualquer intenção que transcenda o sistema:jogo que os matemáticos, já há muito tempo, orgulhosamente<strong>de</strong>clararam ser o seu assunto. Mas a arte da reprodutibilida<strong>de</strong>integral abandonou-se à ciência positivista até mesmonas suas técnicas. Mais uma vez, <strong>de</strong> fato, ela se torna mundo,duplicação i<strong>de</strong>ológica, dócil reprodução. A separação entre signoe imagem é inevitável. Todavia, se for mais uma vez hipostasiada,num incauto contentamento consigo mesma, cadaum dos dois princípios isolados induz à <strong>de</strong>struição da verda<strong>de</strong>.— 34 —


ADORNOA filosofia evita o abismo que se abriu com essa separação,na relação entre conceito e intuição, e tenta sempre eem vão cobri-lo: sim, na verda<strong>de</strong>, ela se <strong>de</strong>fine por essa tentativa.No mais das vezes, ela se posta <strong>de</strong>certo do lado doqual recebe o nome. Platão baniu a poesia, no mesmo espíritocom que o positivismo <strong>de</strong>sterrou a doutrina das idéias. Comsua arte tão louvada, Homero não impôs reformas nem públicasnem privadas, não ganhou guerras nem fez <strong>de</strong>scobertas.Desconhecemos a existência <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong>seguidores que o teriam venerado ou amado. A arte aindaterá que comprovar sua utilida<strong>de</strong>. 1 Em Platão, como no judaísmo,a imitação é proscrita. Razão e religião banem oprincípio da feitiçaria. Enquanto arte, numa abnegada distânciada existência, esse princípio ainda é <strong>de</strong>sonesto; os queo praticam tornam-se errantes, nôma<strong>de</strong>s sobreviventes quenão têm mais pátria entre os que se tornaram se<strong>de</strong>ntários.A natureza não <strong>de</strong>ve mais ser influenciada por assemelhação,mas dominada pelo trabalho. A obra <strong>de</strong> arte tem ainda emcomum com a feitiçaria a fixação <strong>de</strong> um domínio própriofechado em si, subtraído da contextura do existir profano.Vigem aí leis particulares. Assim como o feiticeiro começavaa cerimônia <strong>de</strong>limitando, contra todo o mundo circundante,0 lugar próprio para o jogo das forças sagradas, assim tambémem cada obra <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>staca-se do real o seu âmbitofechado. A renúncia à influência, pela qual a arte se <strong>de</strong>sligada simpatia mágica, é justamente o que mais profundamentepreserva a herança mágica. Ela impõe, em oposição à existênciaem carne e osso Jà imagem pura que supera em si oselementos <strong>de</strong>ssa existência. O sentido da obra <strong>de</strong> arte, a aparênciaestética, exige que ela seja aquilo em que se convertia,naquele feitiço do primitivo, o novo e terrificante acontecer:a aparição do todo no particular. Perfaz-se mais uma vez,na obra <strong>de</strong> arte, a duplicação pela qual a coisa aparecera1 Cf. no décimo livro da República. (N. do A.)— 35 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>como espiritual, como externação do mana. É isso que faz asua aura. Enquanto expressão da totalida<strong>de</strong>, a arte se arvoraem dignida<strong>de</strong> do absoluto. As vezes isso levou a filosofia aatribuir à arte a primazia sobre o conhecimento conceituai.Segundo Shelling, a arte começa on<strong>de</strong> o saber abandona ohomem à sua sorte. Ela é, para Shelling, "o mo<strong>de</strong>lo da ciência,que ainda está para chegar on<strong>de</strong> a arte já se encontra". 1 Aseparação entre imagem e signo é, no sentido da sua doutrina,"completamente superada por cada apresentação singular daarte". 2 Raras vezes o mundo burguês mostrou abertura parauma tal confiança na arte. Quando ele restringia o saber, via<strong>de</strong> regra, isso acontecia não a fim <strong>de</strong> dar lugar à arte, massim à fé. E pela fé que a religiosida<strong>de</strong> militante dos temposmo<strong>de</strong>rnos, Torquemada, Lutero, Maomé, pretendiam reconciliarespírito e existência. Mas fé é um conceito privativo:ela é anulada enquanto fé se não acentuar continuamentesua oposição ou sua concordância com o saber. Enquanto<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da restrição do saber, ela é por sua vez restringida.A tentativa empreendida pela fé, no protestantismo, <strong>de</strong> encontrarimediatamente na palavra, como se dava no antetempo,o princípio da verda<strong>de</strong> a ela transcen<strong>de</strong>nte e sem oqual ela não po<strong>de</strong> existir, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver-lhe o po<strong>de</strong>r simbólico,essa tentativa foi paga com a obediência à palavra, e precisamentenão à palavra sagrada. Enquanto permanece, quercomo amiga, quer como inimiga, forçosamente atada ao saber,a fé perpetua a separação na luta para vencê-la: seufanatismo é o signo da sua inverda<strong>de</strong>, a confissão objetiva<strong>de</strong> que quem tem somente fé, por isso mesmo não tem maisfé. A má consciência é sua segunda natureza. A razão pelaqual toda honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem tem fé foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempreirascível e perigosa está na consciência secreta do <strong>de</strong>feitoque necessariamente a afeta, na consciência <strong>de</strong> contradição1 Erster Entwurf emes Systems <strong>de</strong>r Naturphilosophie, quinta seção, in Werke. Primeira parte,vol. H, p. 623. (N. do A.)2 Op. cit., p. 626. (N. do A.)— 36 —


ADORNOque lhe é imanente, <strong>de</strong> fazer da reconciliação o seu ofício.Os horrores da espada e do fogo, da Contra-reforma e daReforma não foram excessos cometidos, mas a realização doprincípio da fé. A fé manifesta continuamente que tem omesmo cunho que a história do mundo, que preten<strong>de</strong> ter aseu comando. Nos tempos mo<strong>de</strong>rnos ela se torna o instrumentopredileto do seu ardil particular. Irrefreável é não sóo iluminismo do século XVIII, como reconhecia Hegel, mas,e nenhum outro sabia disso melhor do que ele, o própriomovimento do pensamento. Em todos os níveis <strong>de</strong> compreensão,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os inferiores até os mais elevados, está contida aevidência <strong>de</strong> sua distância à verda<strong>de</strong>, que torna o apologetaum mentiroso. O paradoxo da fé se abastarda finalmente naburla, no mito do século XX, e sua irracionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>generaem instituição racional nas mãos dos <strong>de</strong>finitivamente esclarecidosque guiam entretanto a socieda<strong>de</strong> para a barbárie.Des<strong>de</strong> que a linguagem entra na história, seus mestressão sacerdotes e feiticeiros. Quem viola os símbolos cai, emnome das potências supraterrenas, vítima dos po<strong>de</strong>res terrestres,cujos representantes são os órgãos oficiais da socieda<strong>de</strong>.Ignoramos o que po<strong>de</strong> ter acontecido anteriormente.A etnologia sempre encontrou já sancionado, no mínimo pelosanciãos da tribo, o terror do qual nascia o mana. Os homenstornam consistente e materializam com violência omana fluido e não idêntico. Os feiticeiros não tardaram apovoar todos os lugares com emanações e a coor<strong>de</strong>nar amultiplicida<strong>de</strong> dos domínios sacrais aos ritos sacrais. Como mundo dos espíritos e suas peculiarida<strong>de</strong>s, eles <strong>de</strong>senvolvemseu saber futuro e^spa autorida<strong>de</strong>. A essência sagradatransmite-se aos feiticeiros'que com ela convivem. Nas primeirasetapas nôma<strong>de</strong>s, os membros da tribo participam ainda,<strong>de</strong> maneira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, da influência sobre o cursoda natureza. Os homens vão à caça e as mulheres cuidamdo trabalho que po<strong>de</strong> ser feito sem um comando rígido. Éimpossível <strong>de</strong>terminar quanta violência prece<strong>de</strong>u ao hábitomesmo <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m tão simples. Nela, o mundo já estava— 37 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>dividido numa esfera <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e numa outra profana. Nela,0 curso da natureza, enquanto emanação do mana, já se elevaraem norma que exige a submissão. Mas se apesar <strong>de</strong>toda submissão o selvagem nôma<strong>de</strong> ainda tomava parte nofeitiço que a limitava, disfarçando-se em caça para surpreen<strong>de</strong>ra caça, nos períodos posteriores, o comércio com os espíritose a submissão foram distribuídos pelas diferentes classesda humanida<strong>de</strong>: o po<strong>de</strong>r fica <strong>de</strong> um lado, o obe<strong>de</strong>cer dooutro. Os processos da natureza, eternamente iguais e repetitivos,são inculcados nos que são submetidos, quer por tribosestranhas, quer pelas suas próprias camarilhas dirigentes,como cadência <strong>de</strong> trabalho marcada pelo ritmo do pilão edo açoite, que ressoa em cada tambor bárbaro, em cada ritualmonótono. Os símbolos assumem a expressão do fetiche. Arepetição da natureza, que eles significavam, evi<strong>de</strong>ncia-se daípor diante sempre como a repetição da permanência <strong>de</strong> coaçãosocial por eles representada. O terror objetualizado naimagem fixa torna-se signo da dominação fortalecida dosprivilegiados. Mas os conceitos gerais continuam a ser essesmesmos signos, embora tendo eliminado <strong>de</strong> si qualquer afiguração.A forma <strong>de</strong>dutiva da ciência espelha ainda a hierarquiae a coação. Tal como as primeiras categorias representama tribo organizada e seu po<strong>de</strong>r sobre o indivíduo,toda a or<strong>de</strong>m lógica, <strong>de</strong>pendência, concatenação, extensão econexão dos conceitos fundamentam-se nas relações correspon<strong>de</strong>ntesda realida<strong>de</strong> social, da divisão do trabalho. 1 Contudo,esse caráter social das formas do pensar não é, comoensina Durkheim, expressão <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, mas testemunhoda unida<strong>de</strong> impenetrável entre socieda<strong>de</strong> e dominação.A dominação confere maior força e consistência aotodo social no qual se estabelece. A divisão do trabalho, naqual a dominação se <strong>de</strong>senvolve socialmente, serve à autoconservaçãodo todo dominado. Mas, com isso, o todo como1 Cf. E. Durkheim, De quelques formes primitives <strong>de</strong> classificatim, UAnnée sociologique, vol. IV,1903, pp. 66 ss. (N. do A.)— 38 —


ADORNOtal, a ativida<strong>de</strong> da razão a ele imanente, torna-se execuçãodo particular. A dominação faz frente ao indivíduo a título<strong>de</strong> geral, <strong>de</strong> razão na esfera da realida<strong>de</strong>. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> todosos membros da socieda<strong>de</strong>, que enquanto tais não dispõem<strong>de</strong> outra saída aberta, soma-se, sempre <strong>de</strong> novo, por meioda divisão <strong>de</strong> trabalho que lhes é imposta, para a realizaçãojustamente do todo, cuja racionalida<strong>de</strong> assim é por sua vezmultiplicada. O que é feito a todos por poucos, perfaz-sesempre pela subjugação <strong>de</strong> alguns por muitos: a opressãoda socieda<strong>de</strong> exibe sempre, ao mesmo tempo, os traços daopressão exercida por um coletivo. É essa unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>e dominação, e não a imediata generalida<strong>de</strong> social,a solidarieda<strong>de</strong>, que se sedimenta nas formas do pensamento.Os conceitos filosóficos com os quais Platão e Aristóteles expõemo mundo, pela pretensão à valida<strong>de</strong> universal, elevaramas relações por eles fundamentadas ao status da realida<strong>de</strong>verda<strong>de</strong>ira. Esses conceitos provêm, como se lê em Vico, 1do mercado <strong>de</strong> Atenas. Eles espelham, com a mesma pureza,as leis da física, a igualda<strong>de</strong> dos cidadãos <strong>de</strong> pleno direitoe a inferiorida<strong>de</strong> das mulheres, crianças e escravos. A próprialinguagem conferiu ao dito, às relações <strong>de</strong> dominação, universalida<strong>de</strong>que ela própria assumiu enquanto meio <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> burguesa. A insistência metafísica,a sanção por idéias e normas, não passava da hipóstaseda dureza e exclusivida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve sempre caracterizar osconceitos on<strong>de</strong> quer que a linguagem tenha unido a comunida<strong>de</strong>dos dominantes no exercício do comando. Quantomais crescia o po<strong>de</strong>r^social da linguagem, mais supérfluastornavam-se as idéía§ g^ra fortalecê-lo, e a linguagem daciência lhes <strong>de</strong>u o golpe <strong>de</strong> misericórdia. A sugestão, quetinha em si ainda algo do terror perante o fetiche, não seprendia à justificação consciente. A unida<strong>de</strong> entre coletivida<strong>de</strong>e dominação manifesta-se antes naquela universalida<strong>de</strong>1 G. Vico, Die Neue Wissensdaft über die gemeinschaflliche Natur <strong>de</strong>r Võlker. Trad. <strong>de</strong> Auerbach,Munique, 1924, p. 397. (N. do A.)— 39 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>que o conteúdo mau necessariamente assume na linguagem,tanto na linguagem metafísica como na científica. A apologiametafísica trai a injustiça do subsistente, pelo menos na incongruênciaentre conceito e realida<strong>de</strong>. Na imparcialida<strong>de</strong>da linguagem científica o <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r per<strong>de</strong>u completamentea força <strong>de</strong> expressão e só o subsistente encontraseu signo neutro. Tal neutralida<strong>de</strong> é mais metafísica do quea própria metafísica. O iluminismo <strong>de</strong>vorou finalmente nãosó os símbolos, mas também seus sucessores, os conceitosuniversais, e da metafísica não restou nada mais do que aquelaangústia abstrata perante o coletivo, da qual se originou.Diante do iluminismo, os conceitos estão como rentiers peranteos trastes industriais. Nenhum <strong>de</strong>les po<strong>de</strong> sentir-seseguro. Se o positivismo lógico <strong>de</strong>ixara uma chance à probabilida<strong>de</strong>,o positivismo etnológico a equipara à essência."Nossas idéias vagas, <strong>de</strong> chance e <strong>de</strong> quintessência, sãopálidos sobreviventes <strong>de</strong> uma noção muito mais rica", 1 asaber, a <strong>de</strong> substância mágica.O iluminismo, enquanto nominalista, pára diante do nomen,conceito puntiforme, sem extensão, nome próprio. Jánão é mais possível <strong>de</strong>cidir com certeza se, como preten<strong>de</strong>malguns, 2 os nomes próprios eram também originalmente nomesgenéricos; contudo eles não compartilham ainda do <strong>de</strong>stino<strong>de</strong>sses últimos. A substância-eu, negada por Hume eMach, não é o mesmo que o nome. Na religião judaica, on<strong>de</strong>a idéia do patriarca se acentua até a anulação do mito, ovínculo entre nome e ser ainda é reconhecido na proibição<strong>de</strong> pronunciar o nome <strong>de</strong> Deus. O mundo <strong>de</strong>senfeitiçadodos ju<strong>de</strong>us reconcilia a feitiçaria com a sua negação, na idéia<strong>de</strong> Deus. A religião judaica não tolera nenhuma palavra quetraga consolação ao <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> tudo o que é mortal. Todaesperança é vinculada à proibição <strong>de</strong> invocar o falso como1 Hubert e Mauss, op. cit., p. 118. (N. do A.)2 Cf. Tünnies, Philosophische Terminobgie, in Psychologisch-Soziologische Ansicht, Leipzig, 1908,p. 31. (N. do A.)— 40 —


ADORNODeus, o finito como infinito, a mentira como verda<strong>de</strong>. O penhorda salvação está na recusa <strong>de</strong> toda a fé que pu<strong>de</strong>ssesustentá-la, o conhecimento está na <strong>de</strong>núncia da ilusão. Contudo,a negação não é abstrata. A contestação indiscriminada<strong>de</strong> todo o positivismo, a fórmula estereotipada da nulida<strong>de</strong>,tal como é aplicada pelo budismo, importa-se tão pouco coma proibição <strong>de</strong> chamar o absoluto pelo nome, quanto o seuoposto, o panteísmo, ou sua caricatura, o ceticismo burguês.As explicações do mundo, como mundo do nada, ou do tudo,são mitologias, e as veredas garantidas da re<strong>de</strong>nção, práticasmágicas sublimadas. O autocontentamento em ter por antecipaçãoresposta para tudo e a transfiguração da negativida<strong>de</strong>em re<strong>de</strong>nção são formas não verda<strong>de</strong>iras da resistência aoengano. O que é salvo é o direito da imagem, no fiel respeitoà sua proibição. Esse procedimento, "negação <strong>de</strong>terminada", 1não é imunizado, pela soberania do conceito abstrato, contraas seduções da intuição, tal como é o ceticismo, para o qualfalso e verda<strong>de</strong>iro têm valor nulo. A negação <strong>de</strong>terminadarejeita as representações imperfeitas do absoluto, os ídolos,sem lhes opor, como faz o rigorismo, a idéia para a qualeles são insuficientes. A dialética manifesta, em vez disso,toda imagem como escritura. Ela ensina a ler, nos traços daimagem, a confissão da sua falsida<strong>de</strong>, que lhe rouba o po<strong>de</strong>r,adjudicando-a à verda<strong>de</strong>. Com isso a linguagem torna-semais do que um mero sistema <strong>de</strong> signos. Com o conceito <strong>de</strong>negação <strong>de</strong>terminada, Hegel <strong>de</strong>stacou um elemento que distingueo iluminismo da <strong>de</strong>composição positivista, à qual eleo atribui. Contudo, ao transformar finalmente em absoluto0 resultado consciejatexdo processo global <strong>de</strong> negação — atotalida<strong>de</strong> em sistéiQa^e em história —, ele infringe a proibiçãoe cai por sua vez na mitologia.Isso não aconteceu apenas com a sua filosofia, enquantoapoteose do pensar que progri<strong>de</strong>, mas ao próprio iluminismo,1 Hegel, op. cit., p. 65. (N. do A.)— 41 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>à sobrieda<strong>de</strong> pela qual preten<strong>de</strong> distinguir-se <strong>de</strong> Hegel e dametafísica em geral. Pois o iluminismo é tão totalitário quantoqualquer outro sistema. Sua inverda<strong>de</strong> não é, como lhe acusavam<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre seus inimigos românticos, o métodoanalítico, a volta aos elementos, a <strong>de</strong>composição por reflexão,mas o fato <strong>de</strong> que, para ele, o processo está <strong>de</strong>cidido <strong>de</strong>antemão. Ao tornar-se, no procedimento matemático, a incógnita<strong>de</strong> uma equação, o <strong>de</strong>sconhecido fica assim caracterizadocomo um velho conhecido, mesmo antes <strong>de</strong> se ter<strong>de</strong>terminado o seu valor. Antes e <strong>de</strong>pois da teoria dos quanta,a natureza é aquilo que <strong>de</strong>ve ser compreendido matematicamente;mesmo o que não se encaixa, insolubilida<strong>de</strong> e irracionalida<strong>de</strong>,é cercado por teoremas matemáticos. I<strong>de</strong>ntificandopor antecipação o mundo matematizado, pensadoaté as últimas conseqüências, com a verda<strong>de</strong>, o iluminismoacredita estar a salvo diante do retorno do mito. Ele i<strong>de</strong>ntificapensar e matemática. Assim, esta fica como que <strong>de</strong>ixada àsolta, convertida em instância absoluta. "Um mundo infinito,aqui um mundo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>s, é concebido como um mundocujos objetos não se tornam acessíveis a nosso conhecimentoum por um, <strong>de</strong> maneira incompleta e como que aci<strong>de</strong>ntalmente,mas um método racional, sistematicamente unitárioatinge finalmente — num progredir sem limites — cadaobjeto segundo o seu pleno ser em si... Na matematizaçãogalilena da natureza, a própria natureza é então i<strong>de</strong>alizada,sob a orientação da nova matemática; ela própria — mo<strong>de</strong>rnamentefalando — torna-se uma multiplicida<strong>de</strong> matemática."1 O pensar se coisifica no processo automático que transcorrepor conta própria, competindo com a máquina que elepróprio produz para que esta possa finalmente substituí-lo.O iluminismo 2 <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado a exigência clássica <strong>de</strong> pensar0 pensamento — da qual a filosofia <strong>de</strong> Fichte é o <strong>de</strong>senvol-1 Edmund Husserl, "Die Krisis <strong>de</strong>r europaischen Wissenchaften und die transzen<strong>de</strong>ntaleFhãnomenologie", m Philosophiu, Belgrado, 1936, pp. 95-97. (N. do A.)2 Cf. Schopenhauer, Parerga uni Paralipomena, vol. II, § 356, Werke, Ed. Deussen, vol. V, p.671. (N. do A.)— 42 —


ADORNOvimento radical — porque ela o <strong>de</strong>sviava do imperativo <strong>de</strong>comandar a práxis, imperativo que, entretanto, o próprio Fichtequeria satisfazer. O procedimento matemático tornou-secomo que um ritual do pensar. Apesar <strong>de</strong> auto-restrição axiomática,ele se instaura como necessário e objetivo: transformao pensamento em coisa, em ferramenta, como ele próprio o<strong>de</strong>nomina. Mas, com essa mimese, na qual o pensar se fazigual ao mundo, o fatual torna-se agora a tal ponto únicoque até mesmo a negação <strong>de</strong> Deus incorre na con<strong>de</strong>naçãoformulada contra a metafísica. Para o positivismo, que ocupouo posto <strong>de</strong> juiz da razão esclarecida, uma digressão pelosmundos inteligíveis não é mais apenas proibida, mas é vistacomo uma tagarelice sem sentido. O positivismo — para asua felicida<strong>de</strong> — não precisa ser ateísta, pois o pensamentoreificado não po<strong>de</strong> nem mesmo pôr a questão. O censor positivista<strong>de</strong>ixa passar o culto oficial, enquanto setor particular<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> social <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> conhecimento, com a mesmabenevolência com que <strong>de</strong>ixa a arte; mas nunca o negar quese levanta com a pretensão <strong>de</strong> ser, ele próprio, conhecimento.O distanciamento do pensar com respeito à tarefa <strong>de</strong> or<strong>de</strong>naro fatual, a saída do círculo encantado da existência, significapara a consciência cientificista, loucura e auto<strong>de</strong>struição,aquilo mesmo que, para o feiticeiro primitivo, era representadopela saída do círculo mágico por ele traçado para aconjuração; e nos dois casos providências são tomadas paraque a violação do tabu se converta também efetivamente emperdição para o sacrílego. A dominação da natureza <strong>de</strong>lineiao círculo para o qual o pensar foi exilado pela Crítica daRazão Pura. Kant ligou a doutrina do trabalhoso e ininterruptoprogresso sem fimtíop^nsar à insistência sobre a sua insuficiênciae eterna limitação. A resposta que dou é um oráculo.Não há ser no mundo em que a ciência não possa penetrar,mas aquilo em que a ciência po<strong>de</strong> penetrar não é oser. Segundo Kant, o juízo filosófico visa à novida<strong>de</strong> e contudonão conhece nada <strong>de</strong> novo, pois limita-se a repetir continuamenteaquilo que a razão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre implantou no— 43 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>objeto. Mas, a esse pensamento, garantido nos diversos ramosda ciência em face dos sonhos <strong>de</strong> um visionário, é apresentadaa conta: a dominação mundial sobre a natureza vira-secontra o próprio sujeito pensante, <strong>de</strong>le nada mais resta doque justamente aquele eternamente idêntico eu penso que<strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r acompanhar todas as minhas representações. Sujeitoe objeto tornam-se ambos nulos. O si-mesmo abstrato,o título legal para fazer relatórios e sistematizar só tem diante<strong>de</strong> si o material abstrato que não possui outra proprieda<strong>de</strong>senão a <strong>de</strong> ser substrato <strong>de</strong> semelhante posse. A equaçãoentre espírito e mundo é solucionada sem <strong>de</strong>ixar resto, mas<strong>de</strong>vido apenas a seus dois membros serem reciprocamentesimplificados. Na redução do pensar ao aparato matemáticoestá implícita a consagração do mundo como medida <strong>de</strong> simesmo. O que aparece como triunfo da racionalida<strong>de</strong> subjetiva,a sujeição <strong>de</strong> todo ente ao formalismo lógico, é pagocom a subordinação dócil da razão aos achados imediatos.Compreen<strong>de</strong>r o achado como tal, notar nos dados não apenassuas relações espaço-temporais abstratas, por on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mentão ser apanhados, mas pensá-los, em vez disso, como superfície,como momentos mediatizados do conceito que sóse preenchem no <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> seu sentido social, histórico,humano — toda a pretensão ao conhecimento é abandonada.Ela não consiste no mero perceber, classificar e calcular,mas justamente na negação <strong>de</strong>terminante do que acada momento é imediato. Mas o formalismo matemático,cujo meio é o número, a figura mais abstrata do imediato,fixa, em vez disso, o pensamento na mera imediatez. O fatualconserva o seu direito, o conhecimento se restringe à suarepetição, o pensamento converte-se em mera tautologia.Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o ente,mais cega é a sua resignação ao reproduzi-lo. Com isso, oiluminismo recai na mitologia, da qual nunca soube escapar.Pois a mitologia tinha nas suas figuras, espelhada como verda<strong>de</strong>,a essência do subsistente: ciclo, <strong>de</strong>stino, dominação domundo; havia renunciado à esperança. No semblante <strong>de</strong> ima-— 44 —


ADORNOgem mítica, bem como na clareza da fórmula científica, ératificada a eternida<strong>de</strong> do fatual e a mera existência é proclamadacomo sentido que o fatual obstrui. O mundo enquantogigantesco juízo analítico, o único que restou <strong>de</strong> todosos sonhos da ciência, tem o mesmo cunho do mito cósmico,que ligava a mudança da primavera e do outono ao rapto<strong>de</strong> Perséfone. A unicida<strong>de</strong> do acontecimento mítico, que <strong>de</strong>velegitimar o acontecimento fatual, é enganosa. Originariamente,o rapto da <strong>de</strong>usa era imediatamente i<strong>de</strong>ntificado à morteda natureza. Repetia-se a cada outono, e nem mesmo a repetiçãoera uma sucessão <strong>de</strong> acontecimentos separados, masera, cada vez, o mesmo. Com o endurecimento da consciênciado tempo, o acontecimento foi fixado no passado como único,e buscou-se aplacar ritualmente o tremor perante a morte,em cada novo ciclo das estações do ano, recorrendo-se aoque era uma vez, há muito tempo. Mas a separação é impotente.Em virtu<strong>de</strong> do posicionamento daquele passadocomo acontecendo uma só vez, o ciclo assume o caráter doinevitável e o tremor se irradia do antigo para o acontecerinteiro, enquanto mera repetição sua. A subsunção do fatual,quer à fabulosa pré-história, quer ao formalismo matemático,o relacionamento simbólico do presente, no rito, com o acontecimentomítico, ou, na ciência, com a categoria abstrata, fazcom que o novo apareça como o pre<strong>de</strong>terminado que, na verda<strong>de</strong>,é assim o antigo. O que é sem esperança não é a existência,mas o saber, que no símbolo afigurativo ou matemático se apropriada existência e a perpetua como um esquema.No mundo do iluminismo, a mitologia entrou na esferado profano. A existência radicalmente purificada dos <strong>de</strong>môniose <strong>de</strong> sua prole conceituai assume, na sua naturalida<strong>de</strong>límpida, o caráter luminoso que o antemundo atribuiu aos<strong>de</strong>mônios. Sob o/tíÇulp <strong>de</strong> fato bruto, a injustiça social daqual eles se originam é hoje sacralizada como uma injustiçaque se subtrai eternamente a investidas, assim como o curan<strong>de</strong>iroera sacrossanto, sob a proteção <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>uses. Adominação não é paga apenas com a alienação do homem— 45 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>com respeito aos objetos dominados: com a reificação doespírito, as próprias relações entre os homens foram enfeitiçadas,bem como as <strong>de</strong> cada um dos indivíduos consigomesmo. Ele se atrofia até virar o ponto nodal das reações edos modos <strong>de</strong> funcionamento convencionais <strong>de</strong>le esperadosconcretamente. O animismo animou o real, o industrialismoreificou as almas. Pelo aparato econômico, as mercadoriassão dotadas automaticamente, antes mesmo da planificaçãototal, <strong>de</strong> valores que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m sobre o comportamento dohomem. Des<strong>de</strong> o momento em que, com o fim da troca livre,as mercadorias per<strong>de</strong>m suas qualida<strong>de</strong>s econômicas e atémesmo seu caráter <strong>de</strong> fetiche, este último se propaga comouma cãibra sobre a vida da socieda<strong>de</strong>, em todos os seus aspectos.Por meio das inúmeras agências <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong>cultura <strong>de</strong> massa, os modos <strong>de</strong> comportamento sujeitos anormas são inculcados no indivíduo como os únicos naturais,<strong>de</strong>centes e racionais. Ele só se <strong>de</strong>termina ainda como coisa,como elemento estatístico, como success orfailure. Sua medidaé a autoconservação, a adaptação à objetivida<strong>de</strong> bem ou malsucedidadas suas funções, e o mo<strong>de</strong>lo imposto para estaadaptação. Todo o restante, idéia e criminalida<strong>de</strong>, experimentaa força do coletivo que tudo vigia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sala <strong>de</strong>aula até o sindicato. Todavia, mesmo o coletivo ameaçadorpertence apenas à superfície enganosa sob a qual se albergamas potências que o manipulam na sua violência. Sua brutalida<strong>de</strong>,que mantém o indivíduo no seu lugar, representatão pouco a verda<strong>de</strong>ira qualida<strong>de</strong> do homem quanto o valorcom respeito à verda<strong>de</strong>ira qualida<strong>de</strong> dos objetos <strong>de</strong> uso. Afigura <strong>de</strong>moniacamente <strong>de</strong>formada, que as coisas e os homensassumiram à luz clara do conhecimento sem preconceitos,remete à dominação, ao princípio que já havia efetivadoa especificação do mana em espíritos e divinda<strong>de</strong>s ecapturado o olhar pelas miragens dos feiticeiros e dos curan<strong>de</strong>iros.A fatalida<strong>de</strong> pela qual o antetempo sancionara amorte incompreensível é transmitida à existência compreendidasem lacunas. O pânico meridiano no qual os homens— 46 —


ADORNOsubitamente se inteiraram, horrorizados, da natureza enquantototalida<strong>de</strong>, encontrou seu correspon<strong>de</strong>nte no pânicoque hoje está prestes a irromper a qualquer momento: oshomens esperam que o mundo sem saída seja posto em chamaspor uma totalida<strong>de</strong> que eles próprios são e sobre a qualnão têm nenhum po<strong>de</strong>r.O iluminismo experimenta um pavor mítico perante omito. Ele o avista não somente em palavras e conceitos nãoesclarecidos, como presume a crítica semântica da linguagem,mas em qualquer expressão humana que não tenha lugar nacontextura <strong>de</strong> fins daquela autoconservação. A proposição<strong>de</strong> Espinosa "Conatus sese conseroandi primum et unicum virtutisest fundamentum" 1 contém a verda<strong>de</strong>ira máxima <strong>de</strong> todaa civilização oci<strong>de</strong>ntal, na qual se aplacam as diferenças religiosase filosóficas da burguesia, o si-mesmo — que <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> todos os traços naturais terem sido metodologicamenteeliminados como mitológicos não <strong>de</strong>via mais ser nem corpo,nem sangue, nem alma, nem mesmo o eu natural — constituiu,sublimado em sujeito transcen<strong>de</strong>ntal ou lógico, o ponto<strong>de</strong> referência da razão, da instância legisladora do agir. Quemse abandona à vida sem referir-se racionalmente à sua autoconservaçãorecai, segundo o juízo do iluminismo e doprotestantismo, na pré-história. O impulso como tal seria mítico,assim como a superstição; servir a um <strong>de</strong>us que o simesmonão postula é tão insensato como o vício da bebida.0 progresso reservou para os dois o mesmo <strong>de</strong>stino: a adoraçãoe o afundamento no ser natural imediato; ele amaldiçoouo esquecimento <strong>de</strong> si do pensamento assim como o doprazer. O trabalho social <strong>de</strong> cada indivíduo na socieda<strong>de</strong>burguesa é mediatizado pelo princípio do si-mesmo; <strong>de</strong>verestituir a uns o cjapifal acrescido, a outros, a força para omais-trabalho. Porém; quanto mais longe chega o processoda autoconservação pela divisão burguesa do trabalho, mais1 Ethica. Parte IV. Propôs. XXH Corol. (N. do A.)— 47 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>ele força o auto<strong>de</strong>spojamento dos indivíduos, que <strong>de</strong>vemmoldar-se, corpo e alma, ao aparato técnico. Isso é por suavez levado em conta pelo pensamento esclarecido: até mesmoo sujeito transcen<strong>de</strong>ntal do conhecimento é finalmente suprimido,ao que parece, como última recordação da própriasubjetivida<strong>de</strong>, e substituído pelo trabalho, <strong>de</strong> tanto menoratrito, executado pelos mecanismos automáticos da or<strong>de</strong>m.A subjetivida<strong>de</strong> se volatilizou na lógica das regras <strong>de</strong> jogopretensamente arbitrárias para po<strong>de</strong>r dispor <strong>de</strong> tudo commenos inibições ainda. O positivismo que finalmente nãoparou nem sequer diante do que é tecido pelo cérebro, nosentido literal, o próprio pensar, <strong>de</strong>scartou a última instânciapela qual a ação individual podia ser <strong>de</strong>sligada da normasocial. O processo técnico, no qual o sujeito se reificou <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> ter sido extirpado da consciência, é isento da plurivocida<strong>de</strong>do pensar mítico, bem como <strong>de</strong> todo e qualquer significar,pois a própria razão tornou-se mero instrumento auxiliardo aparato econômico que tudo abrange. Ela serve <strong>de</strong>ferramenta universal que se presta à fabricação <strong>de</strong> todas asoutras, rigidamente dirigida para fins, tão fatal como o manipularcalculado com exatidão na produção material, cujoresultado para os homens escapa a qualquer computação.Realizou-se finalmente sua velha ambição, a <strong>de</strong> ser o puroórgão dos fins. A exclusivida<strong>de</strong> das leis lógicas provém <strong>de</strong>ssaunivocida<strong>de</strong> da função, em última análise, do caráter coativoda autoconservação. Essa última se aguça cada vez mais naescolha entre sobrevivência e ruína, que ainda se reflete noprincípio segundo o qual, <strong>de</strong> duas proposições contraditórias,só é possível que uma seja verda<strong>de</strong>ira e a outra falsa. Oformalismo <strong>de</strong>sse princípio, e da lógica inteira a cujo títuloele se estabelece, provém da impenetrabilida<strong>de</strong> e do entrelaçamentodos interesses <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, na qual a conservaçãodas formas e a conservação dos indivíduos só coinci<strong>de</strong>maci<strong>de</strong>ntalmente. A expulsão do pensamento para forada esfera da lógica ratifica, na sala <strong>de</strong> aula, a reificação dohomem na fábrica e no escritório. Dessa forma o tabu se


ADORNOalastra ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> constituir tabus, o iluminismo, ao espíritoque ele próprio é. Mas com isso, a natureza, enquanto verda<strong>de</strong>iraautoconservação, é <strong>de</strong>ixada à solta, pelo processoque prometia expulsá-la, tanto no indivíduo como no <strong>de</strong>stinocoletivo <strong>de</strong> crise e guerra. Se o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> da ciênciase mantém como única norma da teoria, a práxis é vitimadapela engrenagem <strong>de</strong>senfreada da história do mundo. O simesmo,absorvido totalmente pela civilização, dissolve-senum elemento daquela inumanida<strong>de</strong> da qual a civilizaçãotentava escapar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início. Concretiza-se a mais antigaangústia, a <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o próprio nome. A existência puramentenatural, animal e vegetativa constituía para a civilização operigo absoluto. Os modos <strong>de</strong> comportamento mimético, míticoe metafísico foram sucessivamente tomados como épocassuplantadas; a recaída nelas era ligada ao terror <strong>de</strong> que osi-mesmo fosse novamente convertido naquela mera naturezada qual se alienara com indivisível esforço e que justamentepor isso inspirava um indivisível pavor. A recordaçãoviva do antetempo, ou mesmo do tempo nôma<strong>de</strong> e maisainda das épocas pré-patriarcais propriamente ditas, foi extirpadada consciência dos homens com as mais terríveis punições,em todos os milênios. O espírito esclarecido substituiuo fogo e a roda <strong>de</strong> tortura pelo estigma que estampou emtoda irracionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela conduz à ruína. O hedonismoera comedido, os extremos não lhe eram menosodiosos que a Aristóteles. O i<strong>de</strong>al burguês da naturalida<strong>de</strong>não significa a natureza amorfa, mas a virtu<strong>de</strong> do meio. Promiscuida<strong>de</strong>e ascese, abundância e fome, apesar <strong>de</strong> mutuamenteopostas, são imediatamente idênticas enquanto potências<strong>de</strong> dissolução. Pela subordinação da vida inteira às exigências<strong>de</strong> sua conservação, a minoria que manda garante,além da própria segurança, a permanência do todo. Entre aCila da recaída nav^epjtodução simples e a Carib<strong>de</strong>s da satisfação<strong>de</strong>senfreada, o espírito dominante procura navegar,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> Homero; ele <strong>de</strong>sconfia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre,<strong>de</strong> qualquer outra estrela que o norteie, que não seja a do— 49 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>mal menor. Os neopagãos alemães e os manipuladores daatmosfera <strong>de</strong> guerra querem liberar novamente o prazer. Mascomo na milenar coação ao trabalho, apren<strong>de</strong>u-se a odiá-lo,na emancipação totalitária, o prazer fica sendo vulgar e estropiadopelo auto<strong>de</strong>sprezo. Ele continua a ser ligado à autoconservaçãopara a qual fora outrora educado pela razão<strong>de</strong>stituída entretempo. Nos momentos críticos da civilizaçãooci<strong>de</strong>ntal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a transição para a religião do Olimpo até oRenascimento, a Reforma e o ateísmo burguês, sempre quenovos povos e camadas recalcavam cada vez mais <strong>de</strong>cididamenteo mito, o medo perante a natureza incompreendidae ameaçadora, conseqüência <strong>de</strong> sua própria materializaçãoe objetualização, foi rebaixado a superstição animista e a dominaçãoda natureza, por <strong>de</strong>ntro e por fora, convertida emfim absoluto da vida. Se finalmente a autoconservação é automatizada,a razão é <strong>de</strong>spedida por aqueles que, como diretoresda produção, assumiram sua herança e que a tememagora, nos <strong>de</strong>serdados. A essência do iluminismo é a alternativacuja inevitabilida<strong>de</strong> é a da dominação. Os homenssempre tiveram que escolher entre sua própria submissão ànatureza e a da natureza ao si-mesmo. Com a propagaçãoda economia mercantil burguesa, o horizonte obscuro domito é iluminado pelo sol da razão calculadora, sob cujosraios gélidos amadurece a semente da nova barbárie. Coagidopela dominação, o trabalho humano <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre se distanciarado mito, em cujo círculo encantado recai sempre <strong>de</strong>novo sob a dominação.Num relato homérico é preservado o entrelaçamentoentre mito, dominação e trabalho. O décimo segundo cantoda Odisséia narra a passagem diante <strong>de</strong> sereias. O chamarizera a tentação do per<strong>de</strong>r-se no passado. Mas o herói que ésubmetido à tentação chegou à maiorida<strong>de</strong> no sofrimento.Na varieda<strong>de</strong> dos perigos mortais, nos quais ele se <strong>de</strong>viamanter firme, a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua própria vida, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><strong>de</strong> pessoa endureceu-se. Como água, terra e ar, separam-separa ele os reinos do tempo. Para ele, a maré do que era— 50 —


ADORNOrefluiu da roca do presente e o futuro nublado carrega ohorizonte. O que Ulisses <strong>de</strong>ixou atrás <strong>de</strong> si entrou no mundodas sombras; o si-mesmo está ainda tão perto do mito doantetempo, <strong>de</strong> cujo seio se separou penosamente, que seupróprio passado vivido se converte para ele no antetempomítico. Pela or<strong>de</strong>m firme do tempo ele procura um paliativopara isso. O esquema tripartido <strong>de</strong>ve libertar o momentopresente do po<strong>de</strong>r do passado, expulsando este último paratrás do limite absoluto do irrestituível e pondo-o à disposiçãodo agora a título <strong>de</strong> saber praticável. O afã <strong>de</strong> salvar o passadoenquanto vivo, em vez <strong>de</strong> usá-lo como material do progresso,só é apaziguado na arte, à qual a própria históriapertence enquanto exposição da vida passada. Enquanto renunciaa valer como conhecimento, fechando-se assim paraa práxis, a arte é tolerada, assim como o prazer, pela práxissocial. Mas o canto das sereias ainda não foi privado da suaforça, ainda não foi reduzido a arte. Elas sabem <strong>de</strong> "tudoquanto se passa na terra fecunda",i sobretudo aquilo <strong>de</strong> que0 próprio Ulisses participou, "tudo quanto os argivos e troianossofreram na arrasada Tróia pela vonta<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>uses". 2Evocando diretamente o passado mais recente, elasameaçam, com a irresistível promessa <strong>de</strong> prazer percebidano seu canto, a or<strong>de</strong>m patriarcal que só <strong>de</strong>volve a vida <strong>de</strong>cada um contra sua plena medida <strong>de</strong> tempo. Quem vai atrásdas artimanhas das sereias cai na perdição, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que só apermanente presença <strong>de</strong> espírito arranca a existência da natureza.Se as sereias sabem <strong>de</strong> tudo o que se passou, elasexigem o futuro como preço disso e a promissão do felizretorno é o engano pelo qual o passado captura o saudoso.Ulisses foi prevenido por Circe, divinda<strong>de</strong> que transformaos homens em animais; ele lhe soube resistir e, em compensação,ela lhe <strong>de</strong>u %/força <strong>de</strong> resistir a outros po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>dissolução. Mas a s«àução das sereias é assim mesmo forte1 Odisséia, XII. (N. do A.) Trad. Jaime Bruna, Cultrix, 1968. (N. do T.)2 Op. cit., XD. (N. do A.)


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong>mais. Ninguém que ouça o seu canto po<strong>de</strong> escapar-lhe. Ahumanida<strong>de</strong> teve que infligir-se terríveis violências até serproduzido o si-mesmo, o caráter do homem idêntico, viril,dirigido para fins, e algo disso se repete ainda em cada infância.O esforço para manter firme o eu pren<strong>de</strong>-se ao euem todos os seus estágios e a tentação <strong>de</strong> perdê-lo sempreveio <strong>de</strong> par com a cega <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> conservá-lo. A embriagueznarcótica que faz expiar, com um sono semelhante à morte,a euforia que suspen<strong>de</strong> o si-mesmo, é uma das mais antigasinstituições sociais que fazem a mediação entre autoconservaçãoe auto-aniquilamento, uma tentativa do si-mesmo <strong>de</strong>sobreviver a si próprio. A angústia <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o si-mesmo e<strong>de</strong> suprimir com ele a fronteira entre si próprio e a outravida, o pavor perante morte e <strong>de</strong>struição, irmana-se com umapromessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> que ameaçava a civilização cada momento.Seu caminho era o da obediência e do trabalho, sobreo qual a satisfação reluzia permanentemente como mera aparência,como beleza esvaziada <strong>de</strong> força. Inimigo tanto da própriamorte como da própria felicida<strong>de</strong>, o pensamento <strong>de</strong> Ulissessabe disso. Ele conhece apenas duas saídas possíveis.Uma ele prescreve a seus companheiros. Ele lhes tapa asorelhas com cera e manda-os remar com todas as forças quetêm. Quem quiser subsistir não <strong>de</strong>verá dar ouvidos à tentaçãodo irrestituível e isso só po<strong>de</strong>rá ser evitado caso não lhe forpossível escutá-la. Disso a socieda<strong>de</strong> sempre cuidou. Viçosose concentrados, os trabalhadores <strong>de</strong>vem olhar para frente e<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o que estiver ao lado. Eles <strong>de</strong>vem sublimaro impulso que os pressiona ao <strong>de</strong>svio, aferrando-se ao esforçosuplementar. Assim eles se tornam práticos. — A outra saídaé a que é escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor <strong>de</strong> terras,que faz os outros trabalharem para si. Ele escuta, porém privado<strong>de</strong> forças, atado ao mastro, e, quanto maior se torna atentação, mais fortemente ele se faz acorrentar, da mesmamaneira que, em épocas posteriores, os burgueses recusarãoa felicida<strong>de</strong> para si mesmos, com tanto maior obstinaçãoquanto mais a tenham ao seu alcance, com o crescimento do— 52 —


ADORNOseu po<strong>de</strong>r. O escutado não tem conseqüências para ele, quepo<strong>de</strong> apenas acenar com a cabeça para que o soltem, porémtar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais: os companheiros, que não po<strong>de</strong>m escutar, sabemapenas do perigo do canto, não da sua beleza, e <strong>de</strong>ixam-noatado ao mastro para salvar a ele e a si próprios.Eles reproduzem a vida do opressor ao mesmo tempo quea sua própria vida e ele não po<strong>de</strong> mais fugir a seu papelsocial. Os vínculos pelos quais ele é irrevogavelmente acorrentadoà práxis ao mesmo tempo guardam as sereias àdistância da práxis: sua tentação é neutralizada em puroobjeto <strong>de</strong> contemplação, em arte. O acorrentado assiste aum concerto escutando imóvel, como fará <strong>de</strong>pois o público<strong>de</strong> um concerto, e seu grito apaixonado pela liberação per<strong>de</strong>-senum aplauso. Assim o prazer artístico e o trabalhomanual se separam na <strong>de</strong>spedida do antemundo. A epopéiajá contém a teoria correta. Os bens culturais estão emexata correlação com o trabalho comandado e os dois sefundamentam na inelutável coação à dominação social sobrea natureza.Medidas tais como as que foram tomadas diante dassereias na nave <strong>de</strong> Ulisses são uma alegoria premonitória dadialética do iluminismo. Assim como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sefazer representar é a medida da dominação, sendo o maispo<strong>de</strong>roso aquele que po<strong>de</strong> fazer-se representar no maior número<strong>de</strong> funções, essa possibilida<strong>de</strong> é também o veículo doprogresso e, ao mesmo tempo, da regressão. Depen<strong>de</strong>ndodas circunstâncias, não estar envolvido no trabalho significatambém ser estropiado, não apenas para os <strong>de</strong>sempregados,mas até mesmo para os <strong>de</strong> pólo social oposto. Os que estão<strong>de</strong> cima, não estando mais às voltas com a existência, só aexperimentam ainda como substrato, e petrificam-se inteiramenteno si-mesmo que comanda. O primitivo fez a experiênciada coisa natmràl apenas a título <strong>de</strong> objeto que se subtraiao <strong>de</strong>sejo, "mas osenhor, que inseriu o escravo entre elee a coisa, liga-se assim apenas à não-in<strong>de</strong>pendência da coisa,gozando-a puramente; mas abandona o lado da in<strong>de</strong>pendên-


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>cia ao servo que trabalha a coisa". 1 Ulisses se faz representarno trabalho. Assim como não po<strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r à tentação <strong>de</strong> renunciarao si-mesmo, enquanto proprietário ele acaba pornão mais participar do trabalho, <strong>de</strong>ixando finalmente até <strong>de</strong>dirigi-lo, ao passo que os companheiros, apesar <strong>de</strong> toda aproximida<strong>de</strong> às coisas, não po<strong>de</strong>m na verda<strong>de</strong> gozar do trabalho,pois este se faz sob coação, no <strong>de</strong>sespero, os sentidosobstruídos pela violência. O servo permanece subjugado <strong>de</strong>corpo e alma, o senhor regri<strong>de</strong>. Nenhuma dominação pô<strong>de</strong>até agora <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pagar esse preço e o aspecto cíclico dahistória no seu progresso é explicado também por esse enfraquecimento,o equivalente do po<strong>de</strong>r. Enquanto suas habilida<strong>de</strong>se conhecimentos se diferenciam pela divisão dotrabalho, a humanida<strong>de</strong> é coagida a retroce<strong>de</strong>r a suas etapasantropologicamente mais primitivas, pois, com a existênciafacilitada pela técnica, a permanência da dominação condicionaa fixação dos instintos por uma opressão mais forte.A fantasia é atrofiada. A perdição não está em que os indivíduosnão correspondam à socieda<strong>de</strong> ou à sua produçãomaterial. On<strong>de</strong> quer que a evolução da máquina já se tenhatransformado em maquinaria <strong>de</strong> dominação, fazendo comque as tendências técnica e social, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre entremeadas,convirjam para um envolvimento total do homem, os quenão correspon<strong>de</strong>m não representam apenas a inverda<strong>de</strong>. Emoposição a isso, a adaptação ao po<strong>de</strong>r do progresso, ao progressodo po<strong>de</strong>r, envolve sempre <strong>de</strong> novo aquelas formaçõesregressivas que traduzem não o progresso falido, mas justamenteo progresso bem-sucedido do seu próprio oposto.A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão.Essa regressão não se restringe à experiência do mundosensível, ligada a uma proximida<strong>de</strong> em carne e osso, masafeta ao mesmo tempo o intelecto autocrático que se separada experiência sensível para subjugá-la. A uniformização da1 Phimommologie <strong>de</strong>s Geistes, op. cit., p. 146. (N. do A.)


ADORNOfunção intelectual, por força da qual se perfaz a dominaçãosobre os sentidos, a resignação do pensar à produção daunanimida<strong>de</strong>, significa um empobrecimento tanto do pensarcomo da experiência; a separação dos dois reinos importaem danos para ambos. Na restrição do pensar à organizaçãoe administração, praticada pelos que estão <strong>de</strong> cima, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oastuto Ulisses até os ingênuos diretores gerais, está implícitaa estreiteza que acomete os gran<strong>de</strong>s, a partir do momentoem que não mais se trata <strong>de</strong> manipular os pequenos. O espíritose converte <strong>de</strong> fato naquele aparato <strong>de</strong> dominação e<strong>de</strong> autocontrole, a título do que sempre foi <strong>de</strong>sconhecidopela filosofia burguesa. Os ouvidos surdos que os dóceisproletários conservaram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o mito não se constituíramem vantagem alguma, diante da imobilida<strong>de</strong> do mandante.Amadurecida até passar do ponto, a socieda<strong>de</strong> vive da imaturida<strong>de</strong>dos dominados. Quanto mais complicado e refinadoo aparato social, econômico e científico, a serviço do qual ocorpo fora <strong>de</strong>stinado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, pelo sistema <strong>de</strong> produção,tanto mais pobres as vivências <strong>de</strong> que esse corpo é capaz.A eliminação das qualida<strong>de</strong>s, seu cálculo em termos <strong>de</strong> funções,transpõe-se da ciência, em virtu<strong>de</strong> dos modos <strong>de</strong> trabalhoracionalizados, para o mundo da experiência dos povose ten<strong>de</strong> a torná-lo novamente similar ao mundo dos anfíbios.Hoje, a regressão das massas consiste na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ouvir o que nunca foi ouvido, <strong>de</strong> palpar com as própriasmãos o que nunca foi tocado, uma nova forma <strong>de</strong> ofuscamentoque supera qualquer ofuscamento mítico vencido.Através da mediação da socieda<strong>de</strong> total, que amarra todasas relações e impulsos, os homens são convertidos <strong>de</strong> novojustamente naquilo contra o que se voltara a lei do <strong>de</strong>senvolvimentoda socieda<strong>de</strong>, o princípio do si-mesmo; em simplesexemplares da espécie humana, semelhantes uns aosoutros, em virtu<strong>de</strong> do isolamento na coletivida<strong>de</strong> dirigidapela coação. Os renfraàores que não po<strong>de</strong>m falar entre si sãoatrelados, todos eles, âo mesmo ritmo, tal como o trabalhadormo<strong>de</strong>rno, na fábrica, no cinema e na sua comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>— 55 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>trabalho. São as condições concretas <strong>de</strong> trabalho na socieda<strong>de</strong>que impõem o conformismo, e não aquelas influências conscientes,as quais fizeram com que, por cima disso, os homensoprimidos se embrutecessem e se distanciassem da verda<strong>de</strong>.A impotência dos trabalhadores não é apenas uma finta dosdominantes, mas a conseqüência lógica da socieda<strong>de</strong> industrial,na qual finalmente se transformou o fado da antigüida<strong>de</strong>,no esforço <strong>de</strong> escapar-lhe.Mas essa necessida<strong>de</strong> lógica não é <strong>de</strong>finitiva. Ela estáligada à dominação como seu reflexo e, ao mesmo tempo,como sua ferramenta. Portanto, sua verda<strong>de</strong> é pelo menostão questionável quanto é inevitável sua evidência. Na verda<strong>de</strong>,o pensar sempre se bastou para <strong>de</strong>terminar concretamenteseu próprio caráter questionável. Ele é o servo que osenhor não po<strong>de</strong> fazer para o seu bel-prazer. Ao coisificar-seem lei e organização — <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que os homens se tornaramse<strong>de</strong>ntários e, em seguida, na economia mercantil — a dominaçãoteve que se restringir. O instrumento adquiriu in<strong>de</strong>pendência:a instância mediadora do espírito abranda, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda vonta<strong>de</strong> do dirigente, a imediatez dainjustiça econômica. Os instrumentos <strong>de</strong> dominação, que <strong>de</strong>vemtomar tudo em suas garras, linguagem, armas e finalmentemáquinas, têm que po<strong>de</strong>r ser empunhados por todos.Assim o momento da racionalida<strong>de</strong> se impõe na dominação,também enquanto diferente <strong>de</strong>la. A objetualida<strong>de</strong> do meio,que o faz universalmente disponível, sua "objetivida<strong>de</strong>" paratodos, implica prontamente na crítica da dominação: comomeio para esta última, <strong>de</strong>senvolveu-se o pensar. No caminhoque vai da mitologia à logística, o pensar per<strong>de</strong>u o elementoda reflexão sobre si e hoje a maquinaria estropia os homensmesmo quando os alimenta. Mas, na figura da máquina, arazão alienada move-se para uma socieda<strong>de</strong> que reconciliao pensar, firmado tanto no seu aparato material como nointelectual, com o vivente liberado, e o refere à própria socieda<strong>de</strong>enquanto seu sujeito real. A origem particular dopensar e sua perspectiva universal sempre foram insepará-— 56 —


ADORNOveis. Hoje, com a transformação do mundo em indústria, aperspectiva do universal, a realização social do pensar, é tãoamplamente aberta que, por essa razão, o pensar dos própriosdominantes é negado como mera i<strong>de</strong>ologia. A má consciênciadas camarilhas nas quais por fim se encarna a necessida<strong>de</strong>econômica é traída pelo fato <strong>de</strong> que suas manifestações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>as intuições do Führer até a "visão dinâmica do mundo", nãomais reconhecem, numa <strong>de</strong>cidida oposição à apologética burguesaanterior, as próprias ações criminosas como conseqüênciasnecessárias <strong>de</strong> conjunturas da vida regidas por leis.As mentiras mitológicas relativas a missão e <strong>de</strong>stino, que vêem seu lugar, nem sequer anunciam totalmente a inverda<strong>de</strong>:já não são mais as leis objetivas do mercado que dominavamas ações dos empresários e levavam à catástrofe. Em vezdisso, a <strong>de</strong>cisão consciente dos diretores gerais, enquantoresultante que em nada ce<strong>de</strong> à obrigatorieda<strong>de</strong> dos mais cegosmecanismos <strong>de</strong> preços, põe em execução a antiga lei dovalor e, com isso, o <strong>de</strong>stino do capitalismo. Os próprios dominantesnão acreditam em nenhuma necessida<strong>de</strong> objetiva,embora às vezes eles <strong>de</strong>nominem assim aquilo que tramam.Eles se arvoram em engenheiros da história do mundo. Sóos dominados aceitam como intocável e necessário o <strong>de</strong>senvolvimentoque, a cada aumento <strong>de</strong> custo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>cretado,os torna ainda mais impotentes. Des<strong>de</strong> que se tornou possívelproduzir o sustento daqueles que, <strong>de</strong> alguma maneira, sãousados ainda para manejo das máquinas, com uma partemínima do tempo <strong>de</strong> trabalho que está à disposição dos donosda socieda<strong>de</strong>, o restante supérfluo, a enorme massa dapopulação recebe agora o a<strong>de</strong>stramento dos guardas <strong>de</strong> reservado sistema, para servir, hoje e amanhã, <strong>de</strong> materialpara seus gran<strong>de</strong>s planos. A eles se dá <strong>de</strong> comer como aoexército dos sem-trabalho. Seu rebaixamento a meros objetosda administração, que enforma antecipadamente cada setorda vida mo<strong>de</strong>rna, até mesmo a linguagem e a percepção,prega-lhes a peça da necessida<strong>de</strong> objetiva, contra a qual elescrêem nada podf^r fa)zer. A miséria, enquanto oposição entre


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>po<strong>de</strong>r e impotência, cresce até o incomensurável, juntamentecom a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suprimir para sempre toda miséria. Eimpenetrável, para qualquer indivíduo, a selva <strong>de</strong> camarilhase instituições que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as supremas alturas do comandoda economia até o último bando <strong>de</strong> assaltantes profissionais,cuidam da permanência ilimitada do status quo. Um proletárionão passa <strong>de</strong> um exemplar exce<strong>de</strong>nte, perante o bonzosindical que por acaso o repare, para não falar no manager-,enquanto o bonzo, por sua vez, estremece temendo a próprialiquidação.O absurdo da situação, na qual a violência do sistemasobre os homens cresce a cada passo que os liberta da violênciada natureza, <strong>de</strong>nuncia como obsoleta a razão da socieda<strong>de</strong>racional. Sua necessida<strong>de</strong> é tão aparente quanto aliberda<strong>de</strong> dos empresários que acaba manifestando sua naturezacoativa nas suas inevitáveis lutas e acomodações. Talaparência, na qual se per<strong>de</strong> a humanida<strong>de</strong> totalmente esclarecida,não po<strong>de</strong> ser dissolvida pelo pensar que, enquantoórgão da dominação, tem que escolher entre comando e obediência.Sem po<strong>de</strong>r livrar-se das amarras com que foi preso,na pré-história, o pensar é capaz <strong>de</strong> reconhecer a lógica daalternativa, da conseqüência e da antinomia, pela qual seemancipou radicalmente da natureza, como essa própria naturezanão apaziguada e alienada a si própria. O pensar, emcujo mecanismo coativo a natureza se reflete e se perpetua,reflete, justamente em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua irrefreável conseqüência,também a si próprio, como natureza que se esqueceu <strong>de</strong>si mesma, como mecanismo <strong>de</strong> coação. Decerto, a representação(Vorstellung) é apenas um instrumento. Pensando, oshomens se distanciam da natureza, para colocá-la diante <strong>de</strong>si, tal como ela <strong>de</strong>ve ser dominada. Tal como a coisa —ferramenta material qúe é mantida idêntica em diferentessituações e que separa assim o mundo, enquanto caótico,multilateral, díspar do mundo conhecido, uno, idêntico —,o conceito é a ferramenta i<strong>de</strong>al que se ajusta às coisas noponto em que elas po<strong>de</strong>m ser apanhadas. Portanto, o pensar— 58 —


ADORNOtambém se torna ilusório, toda vez que preten<strong>de</strong> negar afunção separatória, o distanciamento e a objetualização. Todaunificação mística é apenas mais um engano, traço internoimpotente da revolução aviltada. Mas, enquanto o iluminismoconserva seu direito contra qualquer hipótese <strong>de</strong> utopiae enuncia impassível a dominação enquanto ruptura, a cisãoentre sujeito e objeto, cujo encobrimento é por ele proibido,converte-se em índice da verda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua própria inverda<strong>de</strong>.O <strong>de</strong>sterro da superstição sempre significou o progresso dadominação, ao mesmo tempo que seu <strong>de</strong>snudamento. O iluminismoé mais do que iluminismo, natureza que se tornaperceptível na sua alienação. No autoconhecimento do espírito,enquanto ruptura da natureza consigo mesma, é a naturezaque, como no antetempo, invoca a si mesma, porémnão mais imediatamente como mana, seu presumido nomeque quer dizer onipotência, mas como coisa cega e estropiada.A sujeição à natureza consiste na sua dominação, sem a qualnão existe espírito. Pela humilda<strong>de</strong> na qual ele se reconheceenquanto dominação e se retira para a natureza, <strong>de</strong>sfaz-se asua pretensão dominadora que justamente o escraviza à natureza.Mesmo que não se possa <strong>de</strong>ter na fuga diante danecessida<strong>de</strong>, no progresso e na civilização, sem renunciar aopróprio conhecimento, a humanida<strong>de</strong> não mais incorre noerro <strong>de</strong> tomar por garantia <strong>de</strong> uma liberda<strong>de</strong> vindoura osdiques que constrói contra a necessida<strong>de</strong>, as instituições, aspráticas <strong>de</strong> dominação, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre se refletiram sobrea socieda<strong>de</strong>, a partir da subjugação da natureza. Cada umdos progressos da civilização renovou, juntamente com a dominação,a perspectiva <strong>de</strong> mitigá-la. Contudo, enquanto ahistória real é tecida por um real sofrimento, que absolutamentenão diminui na proporção em que crescem os meiospara eliminá-lo, a concretização da perspectiva <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> doconceito. Pois o conceito não se limita a distanciar, enquantociência, os homens da natureza, mas nos permite medir aindaa distância que eterniza a injustiça, justamente enquanto autoreflexodo pensa^ qué se mantém acorrentado, na forma da— 5» —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>ciência, à cega tendência econômica. Por essa recordação danatureza no sujeito, que encerra, ao perfazer-se, a verda<strong>de</strong>incompreendida <strong>de</strong> toda a cultura, o iluminismo se opõe aqualquer dominação e o apelo para que ele seja sustado ressoou,já nos tempos <strong>de</strong> Vanini, menos por angústia dianteda ciência exata, que pelo ódio contra o pensar <strong>de</strong>sregrado,o qual, na medida em que se confessa diante <strong>de</strong> si mesmocomo um estremecimento da própria natureza, liberta-se doseu encantamento. Os sacerdotes sempre vingavam mana noiluminista que, ao atemorizar-se perante o terror que levavao seu nome, apaziguava, e os áugures do iluminismo uniamseaos sacerdotes na hybris. Enquanto burguês, o iluminismose per<strong>de</strong>u no seu momento positivista, muito antes <strong>de</strong> Turgote d'Alembert. Ele nunca foi imune à tentação <strong>de</strong> confundira liberda<strong>de</strong> com a engrenagem da autoconservação. A suspensãodo conceito, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> ter sido feita emnome do progresso ou da cultura, os quais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito,uniram-se num conluio secreto contra a verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixou campolivre para a mentira. Num mundo que se importava apenasem verificar os enunciados <strong>de</strong> relatórios e que guardavao pensamento, <strong>de</strong>gradado a contribuição <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s pensadores,como uma espécie <strong>de</strong> slogan caduco, nesse mundo, amentira não podia mais distinguir-se da verda<strong>de</strong> neutralizadaem bem cultural.Porém, o reconhecimento da dominação até mesmo noíntimo do próprio pensamento, enquanto natureza não apaziguada,po<strong>de</strong> afrouxar aquela necessida<strong>de</strong>, cuja eternida<strong>de</strong>foi precipitadamente ratificada pelo próprio socialismo, comoconcessão ao common sense reacionário. Ao elevar a necessida<strong>de</strong>para todo sempre à condição <strong>de</strong> base e ao <strong>de</strong>pravar oespírito, em bom estilo i<strong>de</strong>alista, fazendo <strong>de</strong>le o mais altoponto, o socialismo se agarrou, num espasmo ansioso, à herançada filosofia burguesa. Assim, a relação da necessida<strong>de</strong>ao reino da liberda<strong>de</strong> ficou sendo puramente quantitativa,mecânica, e a natureza, posta como algo totalmente alheio,tornou-se totalitária, como na primeira mitologia, e absorveu— 60 —


ADORNOa liberda<strong>de</strong> junto com o socialismo. Com a renúncia ao pensar,que na sua forma coisificada, enquanto matemática, máquina,organização, vinga-se no homem que o está esquecendo,o iluminismo renunciou a sua própria realização. Disciplinandotudo o que é individual, o iluminismo <strong>de</strong>ixou aotodo não conceitualizado a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> abater-se, enquantodominação sobre as coisas, por cima do ser e do ser-conscientedos homens. Mas a práxis revolucionária <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> daintransigência da teoria em face da inconsciência com a quala socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa que o pensar se endureça. A concretizaçãonão é posta em causa pelos seus pressupostos materiais, pelatécnica, como tal, <strong>de</strong>ixada à solta. Isso é o que dizem ossociólogos que sonham, por sua vez, com um antídoto, mesmo<strong>de</strong> cunho coletivista, para se tornarem seus donos. 1 Aculpa está no obcecante contexto social. O mítico respeito daciência dos povos pelo dado, que entretanto é sempre produzidopor eles, converte-se finalmente, por sua vez, numfato positivo, na torre-<strong>de</strong>-guarda diante da qual até mesmoa fantasia revolucionária se envergonha <strong>de</strong> si, como um utopismo,e <strong>de</strong>genera em dócil confiança na tendência objetivada história. Como órgão <strong>de</strong> uma tal adaptação, como meraconstrução <strong>de</strong> meios, o iluminismo é tão <strong>de</strong>strutivo como oproclamam seus inimigos românticos. Ele só recairá em siquando <strong>de</strong>sfizer o último acordo com esses inimigos e ousarabandonar o falso absoluto, o princípio da dominação cega.O espírito <strong>de</strong>ssa teoria intransigente po<strong>de</strong>ria inverter, paraseus próprios fins, o espírito <strong>de</strong>sse progresso impiedoso. Bacon,o arauto <strong>de</strong>sse último, sonhava com as muitas coisas"que os reis, com todos os seus tesouros, não po<strong>de</strong>m comprar."The supreme question which confnmts our generation toàay — the question to which ali otherproblems are merely corollaries — is whether technóbgy can be brought un<strong>de</strong>r contrai... Nobodycan be sure of the formula by wich this end can be adntved... We must draw on ali the resourcesto which acess can be had..." (The Rockefeller Foundation, A Review for 1943. Nova York,1944, pp. 33-35. (N. do A.) ("A questão suprema com a qual nossa geração hoje se <strong>de</strong>para— questão da qual todas as outras são corolários — é a <strong>de</strong> saber se a tecnologia po<strong>de</strong> serposta sob controle... Ninguém po<strong>de</strong> ter segurança quanto à fórmula pela qual esse fimpo<strong>de</strong> ser alcançado... É preciso lançar mão <strong>de</strong> todos os recursos aos quais possamos teracesso..." (N. dos T.) ^— 61 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>sobre as quais não se impõe seu mando, das quais seus informantese alcagüetes não dão notícia alguma". Tal comoele queria, tudo isso coube aos burgueses, her<strong>de</strong>iros esclarecidosdos reis. Multiplicando o seu po<strong>de</strong>r pela mediaçãodo mercado, a economia burguesa multiplicou <strong>de</strong> tal modosuas coisas e suas forças que não só reis, mas também burgueses,<strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser necessários para administrá-las: necessáriosainda são apenas todos. Esses então apren<strong>de</strong>m, pelopo<strong>de</strong>r das coisas, a passar finalmente sem o po<strong>de</strong>r. O iluminismose completa e se supera quando os fins práticos próximosse revelam como o ponto mais distante a que se chegou,e as terras "das quais seus informantes e alcagüetes nãodão notícia alguma", a saber, a natureza incompreendida pelaciência senhorial, são recordadas como as terras da origem.Hoje que a utopia <strong>de</strong> Bacon, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos "ter a natureza,na práxis, a nosso mando", concretizou-se em proporções telúricas,torna-se manifesta a essência da coação, por ele atribuídaà natureza não dominada. Essa essência era a própriadominação. O saber, que para Bacon residia indubitavelmentena "superiorida<strong>de</strong> do homem", po<strong>de</strong> passar agora à dissolução<strong>de</strong>ssa dominação. Mas, diante <strong>de</strong> semelhante possibilida<strong>de</strong>,o iluminismo a serviço do presente transforma-seno total engano das massas.— 62 —


TEXT<strong>OS</strong> DETHEODOR W. ADORNOTraduções <strong>de</strong> Luiz João Baraúna,revista por João Marcos Coelho(O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição),Wolfgang Leo Maar(Introdução ã Controvérsia Sobre oPositivismo na Sociologia Alemã).


O FETICHISMO NA MÚSICA E AREGRESSÃO DA AUDIÇÃO 1As QUEIXAS acerca da <strong>de</strong>cadência do gosto musicalsão, na prática, tão antigas quanto esta experiência ambivalenteque o gênero humano fez no limiar da época histórica,a saber: a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestaçãoimediata do instinto humano e a instância própria para oseu apaziguamento. Ela <strong>de</strong>sperta a dança das <strong>de</strong>usas, ressoada flauta encantadora <strong>de</strong> Pã, brotando ao mesmo tempo dalira <strong>de</strong> Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas asdiversas formas do instinto humano. Toda vez que a pazmusical se apresenta perturbada por excitações bacânticas,po<strong>de</strong>-se falar da <strong>de</strong>cadência do gosto. Entretanto, se <strong>de</strong>s<strong>de</strong>0 tempo da noética grega a função disciplinadora da músicafoi consi<strong>de</strong>rada um bem supremo e como tal se manteve,em nossos dias, certamente mais do que em qualquer outraépoca histórica, todos ten<strong>de</strong>m a obe<strong>de</strong>cer cegamente à modamusical, como aliás acontece igualmente em outros setores.Contudo, assim como não se po<strong>de</strong> qualificar <strong>de</strong> dionisíacaa consciência musical contemporânea das massas, da mesmaforma pouco têm a ver com o gosto artístico em geral asmais recentes modificações <strong>de</strong>sta consciência musical. O próprioconceito <strong>de</strong> gosto está ultrapassado. A arte responsável1 Traduzido do original alemão: "Ueber Fetischcharakter Fetischchrakter in <strong>de</strong>r Musik unddie Regression <strong>de</strong>s Hoerens", em Dissorumzen, Goettingen, 1963, Van<strong>de</strong>nhoeck undRuprecht, pp. 9-45.— 65 —O


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento:o lógico e o ilógico, o verda<strong>de</strong>iro e o falso. Deresto, já não há campo para escolha; nem sequer se colocamais o problema, e ninguém exige que os cânones da convençãosejam subjetivamente justificados; a existência do próprioindivíduo, que po<strong>de</strong>ria fundamentar tal gosto, tornou-setão problemática quanto, no pólo oposto, o direito à liberda<strong>de</strong><strong>de</strong> uma escolha, que o indivíduo simplesmente não conseguemais viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se "gosta"<strong>de</strong> uma música <strong>de</strong> sucesso lançada no mercado, não conseguiremosfurtar-nos à suspeita <strong>de</strong> que o gostar e o não gostar jánão correspon<strong>de</strong>m ao estado real, ainda que a pessoa interrogadase exprima em termos <strong>de</strong> gostar e não gostar. Em vezdo valor da própria coisa, o critério <strong>de</strong> julgamento é o fato <strong>de</strong>a canção <strong>de</strong> sucesso ser conhecida <strong>de</strong> todos; gostar <strong>de</strong> umdisco <strong>de</strong> sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo.O comportamento valorativo tornou-se uma ficção paraquem se vê cercado <strong>de</strong> mercadorias musicais padronizadas.Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opiniãopública, nem tampouco po<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir com liberda<strong>de</strong> quantoao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lheoferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, narealida<strong>de</strong>, se pren<strong>de</strong> apenas ao <strong>de</strong>talhe biográfico, ou mesmoà situação concreta em que a música é ouvida. As categoriasda arte autônoma, procurada e cultivada em virtu<strong>de</strong> do seupróprio valor intrínseco, já não têm valor para a apreciaçãomusical <strong>de</strong> hoje. Isto ocorre, em gran<strong>de</strong> escala, também comas categorias da música séria, que, para <strong>de</strong>scartar com maiorfacilida<strong>de</strong>, se costuma <strong>de</strong>signar com o qualificativo <strong>de</strong> "clássica".Se se objeta que a música ligeira e toda a música <strong>de</strong>stinadaao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundoas mencionadas categorias, não há como negar a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>staobjeção. Contudo, esta espécie <strong>de</strong> música é afetada pela mudança,e isto precisamente em virtu<strong>de</strong> da seguinte razão: proporciona,sim, entretenimento, atrativo e prazer, porém, apenaspara ao mesmo tempo recusar os valores que conce<strong>de</strong>. Aldous


ADORNOHuxley levantou em um <strong>de</strong> seus ensaios a seguinte pergunta:quem ainda se diverte realmente hoje num lugar <strong>de</strong> diversão?Com o mesmo direito po<strong>de</strong>r-se-ia perguntar: para quem amúsica <strong>de</strong> entretenimento serve ainda como entretenimento?Ao invés <strong>de</strong> entreter, parece que tal música contribui aindamais para o emu<strong>de</strong>cimento dos homens, para a morte da linguagemcomo expressão, para a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação.A música <strong>de</strong> entretenimento preenche os vazios do silêncioque se instalam entre as pessoas <strong>de</strong>formadas pelo medo, pelocansaço e pela docilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escravos sem exigências. Assumeela em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel quelhe competia ao tempo e na situação específica do cinema mudo.A música <strong>de</strong> entretenimento serve ainda — e apenas — comofundo. Se ninguém mais é capaz <strong>de</strong> falar realmente, é óbviotambém que já ninguém é capaz <strong>de</strong> ouvir. Um especialistaamericano em propaganda radiofônica — que utiliza com predileçãoespecial a música — manifestou ceticismo com respeitoao valor <strong>de</strong> tais anúncios, alegando que os ouvintes apren<strong>de</strong>rama não dar atenção ao que ouvem, mesmo durante o próprioato da audição. Tal observação é contestável quanto ao valorpublicitário da música. Mas é essencialmente verda<strong>de</strong>ira quandose trata da compreensão da própria música.Nas queixas usuais acerca da <strong>de</strong>cadência do gosto, hácertos motivos que se repetem constantemente. Tais motivosestão presentes nas consi<strong>de</strong>rações rançosas e sentimentais <strong>de</strong>dicadasà atual massificação da música, consi<strong>de</strong>rando-a uma"<strong>de</strong>generação". O mais pertinaz é o do encantamento dossentidos, que no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> muitos amolece e torna a pessoaincapaz <strong>de</strong> qualquer atitu<strong>de</strong> heróica. Tal recriminação encontra-sejá no terceiro livro da República <strong>de</strong> Platão, no qualse proíbem tanto os modos musicais "queixosos" como os"moles", que no dizer do sábio grego "se recomendam embanquetes e orgias"; 1 aliás, até hoje não se sabe com clareza1 Staat, Uebertragung von Preisendanz (A República, tradução <strong>de</strong> Preisendanz), Jena,1920, p. 398.— 67 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>por que razão o filósofo atribui tais características aos modosmixolídio, lídio, hipolídio e jônico. Na República <strong>de</strong> Platãoseria consi<strong>de</strong>rado tabu o modo maior da música oci<strong>de</strong>ntalposterior, o qual correspon<strong>de</strong> ao jônico. Igualmente proibidosseriam a flauta e os instrumentos "<strong>de</strong> muitas cordas" tangidoscom os <strong>de</strong>dos. Dos diversos modos, só se permitem aquelesque "<strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada imitam a voz e a expressão do homem",que "na guerra ou em qualquer ação que exija a forçasingular, porta-se com bravura ainda que vez por outra possaincidir em erro, ser ferido ou ser atingido pela morte ou poruma infelicida<strong>de</strong>". 1A República <strong>de</strong> Platão não constitui a utopia tal como é<strong>de</strong>scrita pela história da filosofia oficial. O Estado platônicodisciplina os seus cidadãos incitando-os tanto para a salvaguardado Estado como <strong>de</strong> sua própria existência, inclusivena música, on<strong>de</strong> a própria classificação segundo modos suavese fortes, já ao tempo <strong>de</strong> Platão, praticamente representavaapenas um resíduo da mais crassa superstição. A ironia platônicagosta <strong>de</strong> ridicularizar maldosamente o flautista Mársias,verberado pelo mo<strong>de</strong>rado Apoio. O programa éticomusical<strong>de</strong> Platão possui a característica <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong>purificação ática, <strong>de</strong> uma campanha <strong>de</strong> saneamento <strong>de</strong> estiloespartano. A mesma classe pertencem outros traços da pregaçãomusical dos capuchinhos. As objeções mais marcantessão a da superficialida<strong>de</strong> e a do "culto da personalida<strong>de</strong>".Todas essas recriminações fazem parte do progresso, tantodo ponto <strong>de</strong> vista social como sob o aspecto estético específico.Nos atrativos proibidos entrelaçam-se a varieda<strong>de</strong> doprazer dos sentidos e a consciência diferenciada. A prepon<strong>de</strong>rânciada pessoa sobre a coação coletiva na música proclamaa relevância da liberda<strong>de</strong> subjetiva, que perpassa amúsica em períodos mais tardios; por outra parte, apresenta-secomo profanação aquela superficialida<strong>de</strong> que liberta a1 Loc. cit., p. 399.— 68 —


ADORNOmúsica da opressão mágica que a escraviza. Os aspectos censuradosentram <strong>de</strong>sta forma na gran<strong>de</strong> música oci<strong>de</strong>ntal: oprazer dos sentidos como porta <strong>de</strong> entrada para a dimensãoharmônica e finalmente colorística; a pessoa livre e sem peiascomo portadora da expressão e da humanização da própriamúsica; a "superficialida<strong>de</strong>" como crítica da fria e muda objetivida<strong>de</strong>das formas, no sentido da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Haydn pelo"galante" contra o erudito; evi<strong>de</strong>ntemente, enten<strong>de</strong>-se a <strong>de</strong>cisão<strong>de</strong> Haydn e não a <strong>de</strong>spreocupação <strong>de</strong> um cantor dotado<strong>de</strong> boa garganta ou <strong>de</strong> um arranjador <strong>de</strong> mau gosto. Taismotivos entraram na gran<strong>de</strong> música e foram por ela absorvidos;porém, a gran<strong>de</strong> música não foi assumida por eles.Na varieda<strong>de</strong> dos encantos e da expressão comprova-se suagran<strong>de</strong>za como força que conduz à síntese. A síntese musicalnão somente conserva a unida<strong>de</strong> da aparência e a protegedo perigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivar para a tentação do "bonvivantismo".Em tal unida<strong>de</strong>, também, na relação dos momentos particularescom um todo em produção, fixa-se a imagem <strong>de</strong> umasituação social na qual — e só nela — esses elementos particulares<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> seriam mais do que mera aparência.Até o fim da pré-história, o equilíbrio musical entre prazerparcial e totalida<strong>de</strong>, entre expressão e síntese, entre superficiale profundo permanece tão precário quanto os momentos<strong>de</strong> equilíbrio entre a oferta e a procura na economia burguesa.A "Flauta Mágica", na qual a utopia da emancipação e oaspecto <strong>de</strong> prazer e entretenimento coinci<strong>de</strong>m exatamentena cançoneta do "Singspiel", constitui apenas um momentoem si mesmo. Após a "Flauta Mágica", porém, nunca maisse conseguiu reunir música séria e música ligeira.Todavia, o que então se emancipa da lei formal não sãomais impulsos produtivos que se opõem às convenções. Oencanto, a subjetivida<strong>de</strong> e a profanação — os velhos adversáriosda alienação coisificante — sucumbem precisamentea ela. Os tradicionais fermentos antimitológicos da músicaconjuram, na era do capitalismo, contra a liberda<strong>de</strong>, contraesta mesma liberda<strong>de</strong> que havia sido outrora a causa <strong>de</strong> sua— 69 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>proibição, <strong>de</strong>vido às afinida<strong>de</strong>s que os uniam a ela. Os porta-ban<strong>de</strong>irasda oposição ao esquema autoritário se transformaramem testemunhas da autorida<strong>de</strong> ditatorial do sucessocomercial. O prazer do momento e da fachada <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>transforma-se em pretexto para <strong>de</strong>sobrigar o ouvinte <strong>de</strong> pensarno todo, cuja exigência está incluída na audição a<strong>de</strong>quadae justa; sem gran<strong>de</strong> oposição, o ouvinte se converte em simplescomprador e consumidor passivo. Os momentos parciaisjá não exercem função crítica em relação ao todo pré-fabricado,mas suspen<strong>de</strong>m a crítica que a autêntica globalida<strong>de</strong>estética exerce em relação aos males da socieda<strong>de</strong>. A unida<strong>de</strong>sintética é sacrificada aos momentos parciais, que já não produzemnenhum outro momento próprio a não ser os codificados,e mostram-se con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes a estes últimos. Osmomentos <strong>de</strong> encantamento <strong>de</strong>monstram-se irreconciliáveiscom a constituição imanente da obra <strong>de</strong> arte, e esta últimasucumbe àqueles toda vez que a obra artística tenta elevar-separa transcendência. Os referidos momentos isolados <strong>de</strong> encantamentonão são reprováveis em si mesmos, mas tão-somentena medida em que cegam a vista. Colocam-se a serviçodo sucesso, renunciam ao impulso insubordinado e rebel<strong>de</strong>que lhes era próprio, conjuram-se para aprovar e sancionartudo o que um momento isolado é capaz <strong>de</strong> oferecer a umindivíduo isolado, que há muito tempo já <strong>de</strong>ixou completamente<strong>de</strong> existir. Os momentos <strong>de</strong> encanto e <strong>de</strong> prazer, aose isolarem, embotam o espírito. Quem a eles se entrega étão pérfido quanto os antigos noéticos em seus ataques aoprazer sensual dos orientais. A força <strong>de</strong> sedução do encantoe do prazer sobrevive somente on<strong>de</strong> as forças <strong>de</strong> renúnciasão maiores, ou seja: na dissonância, que nega a fé à frau<strong>de</strong>da harmonia existente. O próprio conceito <strong>de</strong> ascética é dialéticona música. Se em outros tempos a ascese <strong>de</strong>rrotou asexigências estéticas reacionárias, nos dias que ocorrem elase transformou em característica e ban<strong>de</strong>ira da arte avançada.Obviamente tal não acontece em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>ficiênciaarcaizante <strong>de</strong> meios, na qual a miséria e a pobreza são enal-— 70 —


ADORNOtecidas, mas antes por rigorosa exclusão <strong>de</strong> tudo o que éculinariamente gostoso e que <strong>de</strong>seja ser consumido <strong>de</strong> imediato,como se na arte os valores dos sentidos não fossemportadores dos valores do espírito, que somente se revela ese <strong>de</strong>gusta no todo, e não em momentos isolados da matériaartística. A arte consi<strong>de</strong>ra negativa precisamente aquela possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, à qual se contrapõe hoje a antecipaçãoapenas parcial e positiva da felicida<strong>de</strong>. Toda arte ligeirae agradável tornou-se mera aparência e ilusão: o que se nosantolha esteticamente em categorias <strong>de</strong> prazer já não po<strong>de</strong>ser <strong>de</strong>gustador: a promesse du bonheur — foi assim que umavez se <strong>de</strong>finiu a arte — já não se encontra em lugar algum,a não ser on<strong>de</strong> a pessoa tira a máscara da falsa felicida<strong>de</strong>.O prazer só tem lugar ainda on<strong>de</strong> há presença imediata, tangível,corporal. On<strong>de</strong> carece <strong>de</strong> aparência estética é ele mesmofictício e aparente segundo critérios estéticos e engana aomesmo tempo o consumidor acerca da sua natureza. Somentese mantém fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à possibilida<strong>de</strong> do prazer on<strong>de</strong> cessaa mera aparência.A nova etapa da consciência musical das massas se <strong>de</strong>finepela negação e rejeição do prazer no próprio prazer.Assemelha-se tal fenômeno aos comportamentos que as pessoassoem manter em face do esporte ou da propaganda. Aexpressão "prazer artístico" ou "gosto artístico" assumiramum significado curioso e cômico. A música <strong>de</strong> Schoenberg,tão diferente das canções <strong>de</strong> sucesso, apresenta em todo casouma analogia com elas: não é <strong>de</strong>gustada, não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sfrutada.Quem ainda se <strong>de</strong>liciasse com os belos trechos <strong>de</strong>um quarteto <strong>de</strong> Schubert ou com um provocantemente sadio"concerto grosso" <strong>de</strong> Haen<strong>de</strong>l seria catalogado como um <strong>de</strong>fensorsuspeito da cultura, bem abaixo dos colecionadores<strong>de</strong> borboletas. O que o cataloga nesta categoria <strong>de</strong> amadoresnão é o "novo". O fascínio da canção da moda, do que émelodioso, e <strong>de</strong> todas as variantes da banalida<strong>de</strong>, exerce asua influência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período inicial da burguesia. Em outrostempos este fascínio atacou o privilégio cultural das ca-


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>madas sociais dominantes. Hoje, contudo, quando este po<strong>de</strong>rda banalida<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>u a toda a socieda<strong>de</strong>, sua funçãose modificou. A modificação <strong>de</strong> função atinge todos os tipos<strong>de</strong> música. Não somente a ligeira — reino em que o po<strong>de</strong>rda banalida<strong>de</strong> se faria notar comodamente como simplesmente"gradual", com respeito aos meios mecânicos <strong>de</strong> difusão.A unida<strong>de</strong> e harmonia das esferas musicais separadas<strong>de</strong>ve ser repensada e recomposta. A sua separação estática,tal como a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m e promovem ocasionalmente algunsconservadores da cultura antiquada, é ilusória — chegou-sea atribuir ao totalitarismo do rádio a tarefa <strong>de</strong>, por um lado,propiciar entretenimento e distração aos ouvintes, e por outro,a <strong>de</strong> incentivar e promover os chamados valores culturais,como se ainda pu<strong>de</strong>sse haver bom entretenimento ecomo se os bens da cultura não se transformassem em algo<strong>de</strong> mau, precisamente em virtu<strong>de</strong> do modo <strong>de</strong> cultivá-los.Assim como a música séria, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Mozart, tem a sua históriana fuga da banalida<strong>de</strong> e como aspecto negativo reflete ostraços da música ligeira, da mesma forma presta ela hoje emdia testemunho, nos seus representantes mais cre<strong>de</strong>nciados,<strong>de</strong> sombrias experiências, que se prefiguram, carregadas <strong>de</strong>pressentimentos, na <strong>de</strong>spreocupada simplicida<strong>de</strong> da músicaligeira. Inversamente seria igualmente cômodo ocultar a separaçãoe a ruptura entre as duas esferas e supor uma continuida<strong>de</strong>,que permitiria à formação progressiva passar semperigo do jazz e das canções <strong>de</strong> sucesso aos genuínos valoresda cultura. A barbárie cínica <strong>de</strong> forma alguma é preferívelà frau<strong>de</strong> cultural. O que alcança, quanto à <strong>de</strong>silusão do superior,é por ela compensado através das i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>e vinculação com o natural, mediante as quaistransfigura o mundo musical inferior: um submundo que jánão ajuda, por exemplo, na contradição dos excluídos dacultura, mas limita-se a se alimentar com o que lhe é dado<strong>de</strong> cima. A ilusória convicção da superiorida<strong>de</strong> da músicaligeira em relação à séria tem como fundamento precisamenteessa passivida<strong>de</strong> das massas, que colocam o consumo da— 72 —


ADORNOmúsica ligeira em oposição às necessida<strong>de</strong>s objetivas daquelesque a consomem. É habitual alegar, a este propósito, queas pessoas na realida<strong>de</strong> apreciam a música ligeira, e só tomamconhecimento da música séria por motivos <strong>de</strong> prestígio social,ao passo que o conhecimento <strong>de</strong> um único texto <strong>de</strong> canção<strong>de</strong> sucesso é suficiente para revelar que função po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenharo que é lealmente aceito e aprovado. Em conseqüência,a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambas as esferas da música resulta <strong>de</strong> umacontradição não resolvida. Ambas não se relacionam entresi como se a inferior constituísse uma espécie <strong>de</strong> propedêuticapopular para a superior, ou como se a superior pu<strong>de</strong>sse haurirda inferior a sua perdida força coletiva. Não é possível,a partir da mera soma das duas meta<strong>de</strong>s seccionadas, formaro todo, mas em cada uma <strong>de</strong>las aparecem, ainda que emperspectiva, as modificações do todo, que só se move emconstante contradição. Se a fuga da banalida<strong>de</strong> se tornasse<strong>de</strong>finitiva, reduzir-se-ia a zero a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> venda e<strong>de</strong> consumo da produção séria, em conseqüência <strong>de</strong> suas<strong>de</strong>mandas objetivas inerentes, e a padronização dos sucessosse efetua mais abaixo, <strong>de</strong> modo a não atingir <strong>de</strong> maneiraalguma o sucesso <strong>de</strong> estilo antigo, admitindo somente a meraparticipação. Entre a incompreensibilida<strong>de</strong> e a inevitabilida<strong>de</strong>não existe meio-termo possível: a situação polarizou-seem extremos que na realida<strong>de</strong> acabam por tocar-se. Entreeles já não há espaço algum para o "indivíduo", cujas exigências— on<strong>de</strong> ainda eventualmente existirem — são ilusórias,ou seja, forçadas a se amoldarem aos padrões gerais.A liquidação do indivíduo constitui o sinal característico danova época musical em que vivemos.Se as duas esferas da música se movem na unida<strong>de</strong> dasua contradição recíproca, a linha <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação que as separaé variável. A produção musicai avançada se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntizoudo consumo. O resto da música séria é submetidoà lei do consumo, pelo preço do seu conteúdo. Ouve-se talmúsica séria como se consome uma mercadoria adquiridano mercado. Carecem totalmente <strong>de</strong> significado real as dis-


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>tinções entre a audição da música "clássica" oficial e da músicaligeira. Os dois tipos <strong>de</strong> música são manipulados exclusivamenteà base das chances <strong>de</strong> venda; <strong>de</strong>ve-se assegurarao fã das músicas <strong>de</strong> sucesso que os seus ídolos não sãoexcessivamente elevados para ele. Quanto mais premeditadamenteos organismos dirigentes plantam cercas <strong>de</strong> aramefarpado para separar as duas esferas da música, tanto maioré a suspeita <strong>de</strong> que sem tais separações os clientes não po<strong>de</strong>riamenten<strong>de</strong>r-se com facilida<strong>de</strong>. Tanto Toscanini como ochefe <strong>de</strong> uma "bandinha" qualquer são <strong>de</strong>nominados "maestros",embora neste último caso com uma certa ponta <strong>de</strong> ironia.Uma certa música famosa — "Music, maestro, please" —obteve êxito impressionante imediatamente <strong>de</strong>pois que Toscaninifoi con<strong>de</strong>corado pela opinião pública, com a coberturado rádio. O reino daquela vida musical que se esten<strong>de</strong> pacificamente<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as organizações <strong>de</strong> compositores como IrvingBerlin e Walter Donaldson (the world's best composer —o melhor compositor do mundo), passando por Gershwin,Sibelius e Tchaikóvski, até a Sinfonia em Si Menor <strong>de</strong>nominadaInacabada, é dominado por fetiches. O princípio do "estrelato"tornou-se totalitário. As reações dos ouvintes parecem <strong>de</strong>svincular-seda relação com o consumo da música e dirigir-sediretamente ao sucesso acumulado, o qual, por sua vez, nãopo<strong>de</strong> ser suficientemente explicado pela espontaneida<strong>de</strong> daaudição mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatasdo cinema e senhores do rádio. As "estrelas" não sãoapenas os nomes célebres <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas pessoas. As própriasproduções já começam a assumir esta <strong>de</strong>nominação.Vai-se construindo um verda<strong>de</strong>iro panteão <strong>de</strong> best sellers. Osprogramas vão se encolhendo, e este processo <strong>de</strong> encolhimentovai separando não somente o que é medianamentebom, o bom como termo médio <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, mas os própriosclássicos comumente aceitos são submetidos a uma seleçãoque nada tem a ver com a qualida<strong>de</strong>. Nos Estados Unidos,a Quarta Sinfonia <strong>de</strong> Beethoven já se per<strong>de</strong> entre as autênticasrarida<strong>de</strong>s. Esta seleção perpetua-se e termina num círculo— 74 —


ADORNOvicioso fatal: o mais conhecido é o mais famoso, e tem maissucesso. Conseqüentemente, é gravado e ouvido sempremais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A própriaescolha das produções-padrão orienta-se pela "eficácia" emtermos <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> valor e sucesso que regem a músicaligeira ou permitem ao maestro <strong>de</strong> orquestra famoso exercerfascínio sobre os ouvintes <strong>de</strong> acordo com o programa; oscrescendo da Sétima Sinfonia <strong>de</strong> Beethoven são colocados nomesmo plano do indizível solo <strong>de</strong> trompa do movimentolento da Quinta Sinfonia <strong>de</strong> Tchaikóvski. Melodia significaaqui o mesmo que melodia no registro médio-agudo comsimetria <strong>de</strong> oito compassos. Esta é registrada como um "achado"do compositor, que se acredita po<strong>de</strong>r levar para casacomo uma coisa comprada, da mesma forma como é atribuídaao compositor como sua proprieda<strong>de</strong> legal. O conceito <strong>de</strong>"achado" é precisamente ina<strong>de</strong>quado para a música consi<strong>de</strong>radaclássica. O seu material temático, o mais das vezestría<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sagregadas, <strong>de</strong> modo algum pertence ao autor naforma específica em que cabe, por exemplo, no lied romântico.A gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Beethoven se avalia pela subordinação totaldo elemento melódico casual e isolado ao conjunto formalda obra. Isto não impe<strong>de</strong> que toda a música, mesmo Bach— qué tomou <strong>de</strong> empréstimo alguns dos mais relevantestemas do seu Cravo Bem Temperado —, seja compreendidasob a categoria <strong>de</strong> "achados" e se vigiem com o máximo zeloos plágios musicais, <strong>de</strong> sorte que afinal <strong>de</strong> contas um comentaristamusical po<strong>de</strong> justificar seu êxito com o título <strong>de</strong>"<strong>de</strong>tetive" <strong>de</strong> melodias. O campo que o fetichismo musicalmais domina é o da valorização pública dada às vozes doscantores. O atrativo exercido por estes últimos é tradicional,bem como o é a vinculação estreita do sucesso com a pessoado cantor dotado <strong>de</strong> bom "material". Entretanto, nos dias <strong>de</strong>hoje, esqueceu-se que a voz é apenas um elemento material.Ter boa voz e ser cantor são hoje expressões sinônimas parao vulgar apreciador materialista da música. Em outros temposexigia-se dos ases do canto, dos "castrati" e das primas-— 75 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>donas, no mínimo, alto virtuosismo técnico. Agora exalta-seo material em si mesmo, <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> qualquer função. Einútil perguntar pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exposição puramentemusical. Nem sequer se espera que o cantor domine mecanicamenteos recursos técnicos. Requer-se tão-somente quea sua voz seja particularmente potente ou aguda para legitimaro renome <strong>de</strong> seu dono. Quem, não obstante essas convicções,quiser se atrever a pôr em dúvida — mesmo quenuma conversação privada — a importância <strong>de</strong>cisiva da voze externe a opinião <strong>de</strong> que com uma voz mo<strong>de</strong>sta se po<strong>de</strong>produzir música tão boa quanto a que se po<strong>de</strong> tocar em umpiano <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>sta, <strong>de</strong>parará <strong>de</strong> imediato comuma situação <strong>de</strong> inimiza<strong>de</strong> e hostilida<strong>de</strong> que afetivamentereveste-se <strong>de</strong> muito maior importância que o próprio motivoda discussão. As vozes dos cantores constituem bens sagrados<strong>de</strong> valor igual a uma marca <strong>de</strong> fabricação nacional. Comose as vozes quisessem vingar-se disto, já começam a per<strong>de</strong>ro encantamento dos sentidos em cujo nome são tratadas. Namaioria dos casos, soam como imitações dos arrivistas, mesmoquando elas mesmas são arrivistas. Todo este processoculmina abertamente no absurdo do culto que se presta aosgran<strong>de</strong>s mestres do violino. Cai-se prontamente em estado<strong>de</strong> êxtase diante do belíssimo som convenientemente anunciadopela propaganda <strong>de</strong> um Stradivarius ou <strong>de</strong> um Amati;no entanto, só po<strong>de</strong>m ser distinguidos <strong>de</strong> um violino mo<strong>de</strong>rnorazoavelmente bom por um ouvido especializado, esquecendo-se<strong>de</strong> prestar atenção à composição ou à execução,da qual sempre se po<strong>de</strong>ria ainda tirar algo <strong>de</strong> valor. Quantomais progri<strong>de</strong> a mo<strong>de</strong>rna técnica <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> violinos,tanto maior é o valor que se atribui aos instrumentos antigos.De vez que os atrativos dos sentidos, da voz e do instrumentosão fetichizados e <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> suas funções únicas quelhes po<strong>de</strong>riam conferir sentido, em idêntico isolamento lhesrespon<strong>de</strong>m — igualmente distanciadas e alheias ao significadodo conjunto e igualmente <strong>de</strong>terminadas pelas leis dosucesso — as emoções cegas e irracionais, como as relações— 76 —


ADORNOcom a música na qual entram carentes <strong>de</strong> relação. Na realida<strong>de</strong>,as relações são as mesmas que se verificam entre asmúsicas <strong>de</strong> sucesso e os seus consumidores. Parece-lhes próximoo totalmente estranho: tão estranho, alienado da consciênciadas massas por um espesso véu, como alguém quetenta falar aos mudos. Se estes porventura ainda reagirem,já não fará diferença alguma se se trata da Sétima Sinfoniaou do short <strong>de</strong> banho.O conceito <strong>de</strong> fetichismo musical não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzirpor meios puramente psicológicos. O fato <strong>de</strong> que "valores"sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suasqualida<strong>de</strong>s específicas sejam sequer compreendidas ouapreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência dasua característica <strong>de</strong> mercadoria. Com efeito, a música atual,na sua totalida<strong>de</strong>, é dominada pela característica <strong>de</strong> mercadoria:os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados.A música, com todos os atributos do etéreo e do sublimeque lhes são outorgados com liberalida<strong>de</strong>, é utilizada sobretudonos Estados Unidos, como instrumento para a propagandacomercial <strong>de</strong> mercadorias que é preciso comprar parapo<strong>de</strong>r ouvir música. Se é verda<strong>de</strong> que a função propagandísticaé cuidadosamente ofuscada em se tratando <strong>de</strong> músicaséria, nio âmbito da música ligeira tal função se impõe emtoda parte. Todo o movimento do jazz, com a distribuiçãográtis das partituras às diversas orquestras, está orientadono sentido <strong>de</strong> a execução ser usada como instrumento <strong>de</strong>propaganda para a compra <strong>de</strong> discos e <strong>de</strong> reduções parapiano. Inúmeros são os textos <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong> sucesso queenaltecem a própria canção, cujo título repetem constantementeem maiúsculas. O que transparece em tais letreirosmonstruosos é o valor <strong>de</strong> troca, no qual o quantum do prazerpossível <strong>de</strong>sapareceu. Marx <strong>de</strong>screve o caráter fetichista damercadoria como a veneração do que é autofabricado, o qual,por sua vez, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valor <strong>de</strong> troca se aliena tantodo produtor como do consumidor, ou seja, do "homem". EscreveMarx: "O mistério da forma mercadoria consiste sim-— 77 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>plesmente no seguinte: ela <strong>de</strong>volve aos homens, como umespelho, os caracteres sociais do seu próprio trabalho comocaracteres dos próprios produtos do trabalho, como proprieda<strong>de</strong>snaturais e sociais <strong>de</strong>ssas coisas; em conseqüência, aforma mercadoria reflete também a relação social dos produtorescom o trabalho global como uma relação social <strong>de</strong>objetos existente fora <strong>de</strong>les". 1 Este é o verda<strong>de</strong>iro segredodo sucesso. É o mero reflexo daquilo que se paga no mercadopelo produto: a rigor, o consumidor idolatra o dinheiro queele mesmo gastou pela entrada num concerto <strong>de</strong> Toscanini.0 consumidor "fabricou" literalmente o sucesso, que ele coisificae aceita como critério objetivo, porém, sem se reconhecernele. "Fabricou" o sucesso, não porque o concerto lheagradou, mas por ter comprado a entrada. E óbvio que nosetor dos bens da cultura o valor <strong>de</strong> troca se impõe <strong>de</strong> maneirapeculiar. Com efeito, tal setor se apresenta no mundodas mercadorias precisamente como excluído do po<strong>de</strong>r datroca, como um setor <strong>de</strong> imediatida<strong>de</strong> em relação aos bens,e é exclusivamente a esta aparência que os bens da cultura<strong>de</strong>vem o seu valor <strong>de</strong> troca. Ao mesmo tempo, contudo, fazemparte do mundo da mercadoria, são preparados para omercado e são governados segundo os critérios <strong>de</strong>ste mercado.A aparência <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> e imediatida<strong>de</strong> é tão realquanto é inexorável a pressão do valor <strong>de</strong> troca. A aceitaçãoe o acordo social harmonizam a contradição. A aparência <strong>de</strong>imediatida<strong>de</strong> apo<strong>de</strong>ra-se do que na realida<strong>de</strong> não passa <strong>de</strong>um objeto <strong>de</strong> mediação do próprio valor <strong>de</strong> troca. Se a mercadoriase compõe sempre do valor <strong>de</strong> troca e do valor <strong>de</strong>uso, o mero valor <strong>de</strong> uso — aparência ilusória, que os bensda cultura <strong>de</strong>vem conservar, na socieda<strong>de</strong> capitalista — ésubstituído pelo mero valor <strong>de</strong> troca, o qual, precisamenteenquanto valor <strong>de</strong> troca, assume ficticiamente a função <strong>de</strong>valor <strong>de</strong> uso. E neste qüiproquó específico que consiste o1 Das Kapital, edição popular Viena-Berlim, 1932, tomo I, p. 177.— 78 —


ADORNOespecífico caráter fetichista da música: os efeitos que se dirigempara o valor <strong>de</strong> troca criam a aparência do imediato,e a falta <strong>de</strong> relação com o objeto ao mesmo tempo <strong>de</strong>smentetal aparência. Esta carência <strong>de</strong> relação baseia-se no caráterabstrato do valor <strong>de</strong> troca. De tal processo <strong>de</strong> substituiçãosocial <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> toda a satisfação substitutiva, toda a posteriorsubstituição "psicológica".A modificação da função da música atinge os própriosfundamentos da relação entre arte e socieda<strong>de</strong>. Quanto maisinexoravelmente o princípio do valor <strong>de</strong> troca subtrai aoshomens os valores <strong>de</strong> uso, tanto mais impenetravelmente semascara o próprio valor <strong>de</strong> troca como objeto <strong>de</strong> prazer. Temseperguntado qual seria o fator que ainda mantém coesa asocieda<strong>de</strong> da mercadoria (e consumo). Para elucidar tal fatopo<strong>de</strong> contribuir aquela transferência do valor <strong>de</strong> uso dosbens <strong>de</strong> consumo para o seu valor <strong>de</strong> troca <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umaconstituição global, na qual, finalmente, todo prazer que seemancipa do valor <strong>de</strong> troca assume traços subversivos. Oaparecimento do valor <strong>de</strong> troca nas mercadorias assumiuuma função específica <strong>de</strong> coesão. A mulher que possui dinheiropara as compras <strong>de</strong>licia-se no ato mesmo <strong>de</strong> fazercompras. Having a good time ("Passar momentos agradáveis")significa, na linguagem convencional americana, participardo divertimento dos outros, divertimento que, a seu turno,tem como único objeto e motivo o participar. A religião doautomóvel faz com que, no momento sacramentai, todos oshomens se sintam irmãos ao som das palavras "este é umRolls Royce". Por outra parte, para muitas mulheres, as situações<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>, em que tratam dos cabelos e fazema maquilagem, são mais agradáveis do que as situações <strong>de</strong>intimida<strong>de</strong> familiar e conjugai para as quais se <strong>de</strong>stinam openteado e a maquilagem. A relação com o que é <strong>de</strong>stituído<strong>de</strong> relação trai a sua natureza social na obediência. Tudo semovimenta e se faz segundo o mesmo comando: o casal <strong>de</strong>automóvel, que passa o tempo a i<strong>de</strong>ntificar cada carro comque cruza e a alegrar-se quando possui a marca e o mo<strong>de</strong>lo— 79 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>mais recentes; a moça cujo único prazer consiste em observarque ela e o seu parceiro "sejam elegantes"; o "juízo crítico"do entusiasta do jazz, que se legitima pelo fato <strong>de</strong> estar aocorrente do que é moda inevitável. Diante dos caprichos teológicosdas mercadorias, os consumidores se transformamem escravos dóceis; os que em setor algum se sujeitam aoutros, neste setor conseguem abdicar <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixando-seenganar totalmente.Tanto no adorador feitichista dos bens <strong>de</strong> consumocomo no <strong>de</strong> "caráter sadomasoquista" e no cliente da arte <strong>de</strong>massas <strong>de</strong> nosso tempo, verifica-se o mesmo fenômeno, sobaspectos diversos. A masoquista cultura <strong>de</strong> massas constituia manifestação necessária da própria produção onipotente.A ocupação efetiva do valor <strong>de</strong> troca não constitui nenhumatransubstanciação mística. Correspon<strong>de</strong> ao comportamentodo prisioneiro que ama a sua cela porque não lhe é permitidoamar outra coisa. A renúncia à individualida<strong>de</strong> que se amoldaà regularida<strong>de</strong> rotineira daquilo que tem sucesso, bemcomo o fazer o que todos fazem, seguem-se do fato básico<strong>de</strong> que a produção padronizada dos bens <strong>de</strong> consumo oferecepraticamente os mesmos produtos a todo cidadão. Por outraparte, a necessida<strong>de</strong>, imposta pelas leis do mercado, <strong>de</strong> ocultartal equação conduz à manipulação do gosto e à aparênciaindividual da cultura oficial, a qual forçosamente aumentana proporção em que se agiganta o processo <strong>de</strong> liquidaçãodo indivíduo. Também no âmbito da superestrutura, a aparêncianão é apenas o ocultamente da essência, mas resultaimperiosamente da própria essência. A igualda<strong>de</strong> dos produtosoferecidos, que todos <strong>de</strong>vem aceitar, mascara-se norigor <strong>de</strong> um estilo que se proclama universalmente obrigatório;a ficção da relação <strong>de</strong> oferta e procura perpetua-se nasnuanças pseudo-individuais. Se contestamos a valida<strong>de</strong> dogosto na situação atual, é muito fácil compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> quese compõe ria verda<strong>de</strong> este gosto, em tal situação. A adaptaçãoà lei comum é racionalmente apresentada como disciplina,rejeição da arbitrarieda<strong>de</strong> e da anarquia; assim como— 80 —


ADORNOo encantamento musical, pereceu também a noética musical,que tem sua paródia nos tempos dos compassos rigidamentecontados. A isto une-se complementarmente a diferenciaçãocasual no contexto estrito do que é oferecido e preceituado.Entretanto, se o indivíduo liquidado aceita realmente e compaixão a exteriorida<strong>de</strong> consumada das convenções como critério,<strong>de</strong>ve-se dizer que a época áurea do gosto irrompeunum momento em que não há mais gosto algum.As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformamem bens <strong>de</strong> cultura sofrem, mediante este processo, alteraçõesconstitutivas. Tornam-se <strong>de</strong>pravadas. O consumo, <strong>de</strong>stituído<strong>de</strong> relação, faz com que se corrompam. Isto, não somenteno sentido <strong>de</strong> que as poucas que são sempre <strong>de</strong> novo tocadasou cantadas se <strong>de</strong>sgastam como a Madona da Capela Sistina,que comumente é colocada no quarto <strong>de</strong> dormir. O processo<strong>de</strong> coisificação atinge a sua própria estrutura interna. Taisobras transformam-se em um conglomerado <strong>de</strong> idéias, <strong>de</strong>"achados", que são inculcados aos ouvintes através <strong>de</strong> amplificaçõese repetições contínuas, sem que a organização doconjunto possa exercer a mínima influência contrária. O valor<strong>de</strong> recordação das partes dissociadas possui na própria gran<strong>de</strong>música uma forma prévia ou antecipada nas técnicas <strong>de</strong>composição do romantismo tardio, sobretudo na wagneriana.Quanto mais coisificada for a música, tanto mais românticasoará aos ouvidos alienados. E precisamente através distoque tal música se torna "proprieda<strong>de</strong>". Uma sinfonia <strong>de</strong> Beethoven,executada e ouvida, enquanto totalida<strong>de</strong>, espontaneamente,jamais po<strong>de</strong>ria tornar-se proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém.A pessoa que no metrô assobia triunfalmente o tema do últimomovimento da Primeira Sinfonia <strong>de</strong> Brahms, na realida<strong>de</strong>relaciona-se apenas com suas ruínas. Contudo, tanto quanto<strong>de</strong>cadência do fetiche representa um perigo para o própriofetiche, aproximando-o das músicas <strong>de</strong> sucesso, também produzuma tendência contrária, no intuito <strong>de</strong> conservar o seucaráter fetichista. Se a romantização do indivíduo se alimentacom o corpo da totalida<strong>de</strong>, o ameaçado vê-se recoberto <strong>de</strong>— 81 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>cobre, por galvanização. A ampliação, que precisamente sublinhaas partes coisificadas, assume o caráter <strong>de</strong> um ritualmágico, no qual são esconjurados, por quem reproduz, todosos mistérios da personalida<strong>de</strong>, intimida<strong>de</strong>, inspiração e espontaneida<strong>de</strong>,que <strong>de</strong>sapareceram da própria obra. Precisamenteporque a obra dos momentos, em <strong>de</strong>cadência, renunciaà sua espontaneida<strong>de</strong>, tais momentos lhe são injetados <strong>de</strong>fora, tão estereotipados quanto as idéias criadoras. A <strong>de</strong>speito<strong>de</strong> todo o falatório sobre a "nova objetivida<strong>de</strong>", a função essencialdas representações ou execuções musicais conformistasnão é mais a representação da obra "pura" mas a apresentaçãoda obra <strong>de</strong>pravada com um enorme aparato queprocura, enfática e impotentemente, afastar <strong>de</strong>la a <strong>de</strong>pravação.Depravação e redução à magia, irmãs inimigas, coabitamnos "arranjos" que passaram a dominar permanentementevastos setores da música. A prática dos arranjos esten<strong>de</strong>usee amplia-se continuamente nas mais diversas dimensões.Primeiramente apo<strong>de</strong>ra-se do tempo. Separa manifestamenteos "achados" (idéias criadoras) coisificados e os arranca doseu contexto original, montando-os num pot-pourri. Dilaceraa unida<strong>de</strong> poliédrica <strong>de</strong> obras inteiras e apresenta apenasfrases ou movimentos isolados e conjugados, juntados artificialmente:o minueto da Sinfonia em Mi Bemol Maior <strong>de</strong>Mozart, executado isoladamente, per<strong>de</strong> seu caráter <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong><strong>de</strong>ntro da harmonia sinfônica e se transforma, nasmãos <strong>de</strong> quem o executa, em uma peça comum, que se assemelhamais à Gavota <strong>de</strong> Stéphanie do que àquele tipo <strong>de</strong>classicismo <strong>de</strong> que faz propaganda e para o qual tenta ganhara<strong>de</strong>ptos. Em segundo lugar, a técnica do arranjo se converteno princípio da colorística. Os novos fazedores <strong>de</strong> músicafazem arranjos com toda música <strong>de</strong> que possam apo<strong>de</strong>rar-se,a não ser que algum intérprete famoso os proíba. Se no campoda música ligeira os arranjadores são os únicos músicos dotados<strong>de</strong> alguma formação, isto só po<strong>de</strong> levá-los a se sentiremvocacionados e manipular os bens da cultura com muitomaior <strong>de</strong>senvoltura. Invocam toda espécie <strong>de</strong> motivos para


ADORNOjustificar os arranjos. No caso <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s obras orquestradas,alegam que os arranjos contribuem para o barateamento daexecução; ou então, afirmam que os compositores têm umatécnica <strong>de</strong> instrumentação imperfeita. Na realida<strong>de</strong>, essas razõessão lamentáveis pretextos. O argumento do barateamento,que do ponto <strong>de</strong> vista estético se julga e se con<strong>de</strong>na a simesmo, é anulado praticamente à constatação da riqueza <strong>de</strong>instrumentação <strong>de</strong> que dispõem precisamente aqueles quemais propaganda fazem do arranjo. O argumento anula-seigualmente porque, com muita freqüência, da qual são exemplosos lie<strong>de</strong>r para piano transcritos <strong>de</strong>pois para orquestra,os arranjos acabam tendo custo substancial maior que umainterpretação da versão original da obra. Além disso, a convicção<strong>de</strong> que a música mais antiga necessita <strong>de</strong> um toquecolorístico renovador supõe que a relação cor—<strong>de</strong>senho éesporádica neste tipo <strong>de</strong> música, o que trai um <strong>de</strong>sconhecimentobrutal do classicismo vienense e <strong>de</strong> um compositorcomo Schubert, objeto predileto dos arranjadores. Admitamosque a <strong>de</strong>scoberta verda<strong>de</strong>ira e própria da dimensão colorísticase <strong>de</strong>u na época <strong>de</strong> Berlioz e <strong>de</strong> Wagner. Em quepese tal constatação, a sobrieda<strong>de</strong> colorística <strong>de</strong> Haydn ou<strong>de</strong> Beethoven tem uma profundíssima relação com a prepon<strong>de</strong>rânciado princípio construtivo sobre os elementos melódicosindividuais e isolados, que ressaltariam em cores brilhantesa partir da unida<strong>de</strong> dinâmica do conjunto. Precisamenteem razão <strong>de</strong> tal sobrieda<strong>de</strong>, as terças do fagote noinício da abertura do terceiro ato <strong>de</strong> Leonora, ou a cadênciado oboé na repetição da primeira frase da Quinta Sinfoniaadquirem uma imponência que se per<strong>de</strong>ria inexoravelmentese houvesse gran<strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> vozes e instrumentos. Diantedo que vimos dizendo, é imperioso aceitar que a prática dosarranjos musicais se tem imposto em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> motivos suigeneris. Antes <strong>de</strong> mais nada, o objetivo visado é tornar assimilávela gran<strong>de</strong> música distante do homem, que semprepossui traços <strong>de</strong> caráter público, não privado. O homem <strong>de</strong>negócios, que volta para casa exausto, consegue digerir e até


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>fazer amiza<strong>de</strong> com os clássicos "arranjados". Trata-se <strong>de</strong> umimpulso semelhante àquele que obriga os disc-jóqueis do rádioa imiscuir-se como tios e tias nas festas familiares dosseus ouvintes e fingir que se interessam pelos seus problemas.O processo <strong>de</strong> coisificação radical produz a sua própria aparência<strong>de</strong> imediatida<strong>de</strong> e intimida<strong>de</strong>. Inversamente, a dimensãodo íntimo, precisamente por ser excessivamente sóbrio,é exagerada e explorada pelos "arranjos", e colorida. Os momentos<strong>de</strong> encantamento dos sentidos, que resultam das unida<strong>de</strong>sisoladas e <strong>de</strong>compostas, são em si mesmos — pelofato <strong>de</strong> serem apenas momentos separados do conjunto —<strong>de</strong>masiadamente fracos para produzir o encantamento dossentidos que <strong>de</strong>les se exige, e para cumprir os requisitos publicitáriosque lhes são impostos. O embelezamento artificiale a exaltação do individual fazem <strong>de</strong>saparecer os traços <strong>de</strong>protesto que estavam traçados na limitação do individual asi próprio em face dos negócios, da mesma forma como naintimização do que é gran<strong>de</strong> se per<strong>de</strong> a contemplação datotalida<strong>de</strong>, na qual encontrava o seu limite a má imediatida<strong>de</strong>na gran<strong>de</strong> música. Ao invés disso, forma-se um falso equilíbrio,o qual a cada passo se evi<strong>de</strong>ncia falso, por contradizero material. A Serenata <strong>de</strong> Schubert, ao som compassado dacombinação <strong>de</strong> cordas e piano, com a estúpida superacentuaçãodos compassos intermediários imitativos, torna-se tãoabsurda como se tivesse surgido no Dreitnae<strong>de</strong>rlhaus. Igualmenteridículo se apresenta o Preislied dos Mestres Cantores,quando executado por uma simples orquestra <strong>de</strong> cordas. Namonocromia per<strong>de</strong> objetivamente a articulação que lhe dáplasticida<strong>de</strong> na partitura original <strong>de</strong> Wagner. Entretanto, precisamentepor esse motivo, se torna plástico para o ouvinteque não mais necessita compor o corpo da canção com diferentescores, mas po<strong>de</strong> abandonar-se tranqüilamente aosom da melodia dominante, única e ininterrupta. Neste exemplotorna-se palpável o antagonismo, em relação aos ouvintes,no qual sucumbem hoje em dia as obras consi<strong>de</strong>radasclássicas. Todavia, po<strong>de</strong>-se presumir que o segredo ou a razão— 84 —


ADORNOmais obscura da técnica do "arranjo" resi<strong>de</strong> na tendência ouinstinto <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar nada tal como é, e manipular tudocom que topar pela frente. Tal tendência torna-se tanto maisforte quanto maior é a estabilida<strong>de</strong> do existente. A ditadurasocial total confirma o seu po<strong>de</strong>r e a sua glória pelo seloque é impresso em tudo quanto cai na engrenagem <strong>de</strong> seumaquinismo. Contudo, esta afirmação é ao mesmo tempo<strong>de</strong>strutiva. Os ouvintes <strong>de</strong> hoje teriam o máximo prazer em<strong>de</strong>struir o que os mantém em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> respeito cego, e suapseudo-ativida<strong>de</strong> já se encontra prefigurada e recomendadado lado da produção.A prática dos arranjos provém da música <strong>de</strong> salão. É aprática do entretenimento elevado, que toma emprestada aexigência <strong>de</strong> nível e qualida<strong>de</strong> dos bens da cultura, porémtransforma-os em objetos <strong>de</strong> entretenimento do tipo das músicas<strong>de</strong> sucesso. Tal entretenimento, que em outras épocasse limitava a acompanhar o murmúrio ou tartamu<strong>de</strong>io davoz humana, difun<strong>de</strong>-se hoje em todo o campo da vida musical,que ninguém mais leva a sério, e a verda<strong>de</strong>ira música<strong>de</strong>saparece sempre mais, não obstante todo o falatório emtorno da cultura. Na prática há apenas duas alternativas aescolher: ou entrar docilmente na engrenagem do maquinismo— mesmo que apenas diante do alto-falante no sábadoà tar<strong>de</strong> —, ou aceitar essa pornografia musical que é fabricadapara satisfazer às supostas ou reais necessida<strong>de</strong>s das massas.A falta <strong>de</strong> compromisso e o caráter ilusório dos objetos doentretenimento elevado ditam a distração dos ouvintes. Paracúmulo dos males, tem-se ainda a ousadia <strong>de</strong> manter a consciênciatranqüila, alegando que se oferece aos ouvintes umamercadoria <strong>de</strong> primeira qualida<strong>de</strong>; a quem objetar que setrata <strong>de</strong> mercadoria embolorada, replica-se em seguida queé exatamente isto que os ouvintes <strong>de</strong>sejam. Tal réplica po<strong>de</strong>riaser refutada não por diagnóstico realista do estado dosouvintes, mas somente analisando o processo em sua totalida<strong>de</strong>,que consiste em diabolicamente levar os consumidoresa concordarem com os critérios ditados pelos produtores.— 85 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>Entretanto o processo <strong>de</strong> feitichização inva<strong>de</strong> até mesmo amúsica supostamente séria, que mobiliza o páthos da distânciacontra o entretenimento elevado. A pureza do serviço prestadoaos genuínos interesses da arte, com a qual apresentaas suas produções, evi<strong>de</strong>ncia-se freqüentemente tão hostilao entretenimento elevado como a <strong>de</strong>pravação e o arranjo.O i<strong>de</strong>al oficial da interpretação, que predomina em toda partena esteira do trabalho extraordinário <strong>de</strong> Toscanini, ajuda asancionar um estado <strong>de</strong> coisas que — para usar uma expressão<strong>de</strong> Eduard Steuermann — po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>nominar "barbárieda perfeição". Inquestionavelmente, aqui não mais são fetichizadosos nomes das obras famosas, embora as não famosas,que chegam a ocupar um lugar nos programas <strong>de</strong> concertos,praticamente façam aparecer como <strong>de</strong>sejável a limitaçãoao pequeno número das outras. Certamente aqui nãose esmagam com os pés os momentos da invenção criadora,nem se <strong>de</strong>puram os contrastes, a fim <strong>de</strong> exercer o fascínio.Reina aqui uma disciplina férrea. Precisamente férrea. O novofetiche, neste caso, é o aparato como tal, imponente e brilhante,que funciona sem falha e sem lacunas, no qual todasas rodas engrenam umas nas outras com tanta perfeição eexatidão que já não resta a mínima fenda para a captaçãodo sentido do todo. A interpretação perfeita e sem <strong>de</strong>feito,característica do novo estilo, conserva a obra a expensas dopreço da sua coisificação <strong>de</strong>finitiva. Apresenta-a como algojá pronto e acabado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras notas; a execuçãosoa exatamente como se fosse sua própria gravação no disco.A dinâmica é <strong>de</strong> tal forma predisposta e pré-fabricada, quenão <strong>de</strong>ixa espaço algum para tensões. As resistências do materialsonoro são eliminadas tão impiedosamente no ato daprodução do som, que já não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir asíntese, a autoprodução da obra, que constitui o significadoe a característica <strong>de</strong> cada uma das sinfonias <strong>de</strong> Beethoven.Para que, ainda, o esforço e o empenho sinfônico, se o materialjá foi digerido e triturado, a ponto <strong>de</strong> tornar supérfluoe inútil tal trabalho? A fixação conservadora da obra leva à— 86 —


ADORNOsua <strong>de</strong>struição, visto que a sua unida<strong>de</strong> se realiza apenas,precisamente, na espontaneida<strong>de</strong>, que é sacrificada pela fixação.O último fetichismo, que domina a própria obra, sufocatal espontaneida<strong>de</strong>: a a<strong>de</strong>quação absoluta da aparênciaà obra <strong>de</strong>smente esta última e faz com que esta <strong>de</strong>sapareçacom indiferença atrás do aparato, da mesma forma que certospantanais são secados por equipes <strong>de</strong> trabalhadores apenaspara empregar mão-<strong>de</strong>-obra, e não em razão da sua utilida<strong>de</strong>.Não é em vão que o domínio dos novos maestros lembra opo<strong>de</strong>rio <strong>de</strong> um governante totalitário. Assim como este, omaestro reduz o nimbo <strong>de</strong> glória e a organização ao mesmo<strong>de</strong>nominador comum. É ele o verda<strong>de</strong>iro tipo mo<strong>de</strong>rno doantigo virtuose: como bandlea<strong>de</strong>r ou à frente <strong>de</strong> uma filarmônica.O seu virtuosismo atingiu uma tal perfeição que elemesmo já não necessita fazer nada; a equipe <strong>de</strong> maestrossubstitutos dispensa-o <strong>de</strong> ler a partitura musical nos ensaios.O mo<strong>de</strong>rno maestro cria normas e individualiza ao mesmotempo: a normalização é creditada à sua personalida<strong>de</strong>, e osartifícios individuais que penetra repetem apenas máximasgerais. O caráter fetichista do maestro é ao mesmo tempo omais manifesto e o mais oculto <strong>de</strong> todos: as obras-padrãopo<strong>de</strong>riam provavelmente ser executadas pelas atuais orquestras<strong>de</strong> virtuoses com a mesma perfeição sem nenhum maestro,e o público que aclama freneticamente o Kapellmeisterseria incapaz <strong>de</strong> notar que atrás do fosso que escon<strong>de</strong> a orquestraé na realida<strong>de</strong> o maestro substituto que está atuando,em lugar do "herói", ausente <strong>de</strong>vido a uma gripe.A consciência da gran<strong>de</strong> massa dos ouvintes está emperfeita sintoma com a música fetichizada. Ouve-se a músicaconforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a<strong>de</strong>pravação da música não seria possível se houvesse resistênciapor parte do público, se os ouvintes ainda fossem capazes<strong>de</strong> romper, com suas exigências, as barreiras que <strong>de</strong>limitamo que o mercado lhes oferece. Aliás, quem eventualmentetentasse "verificar" ou comprovar o caráter fetichistada música através <strong>de</strong> uma enquete sobre as relações dos ou-— 87 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>vintes, por meio <strong>de</strong> entrevistas e questionários, po<strong>de</strong>ria sofrervexames imprevistos. Tanto na música como nas <strong>de</strong>maisáreas, a tensão entre substância e fenômeno, entre essênciae aparência agigantou-se em tal proporção que já é inteiramenteimpossível que a aparência chegue a ser um testemunhoválido da essência. 1 As reações inconscientes do público,dos ouvintes, são ofuscadas com tal perfeição, a apreciaçãoconsciente dos ouvintes é teleguiada com tal exclusivida<strong>de</strong>pelos critérios fetichistas dominantes, que toda e qualquerresposta concorda a priori com a superfície mais banal <strong>de</strong>stecultivo musical atacado pela teoria cuja valida<strong>de</strong> precisamentese quer "verificar". Basta formular a um ouvinte a perguntamais primitiva que existe com relação a uma obra <strong>de</strong> arte— agrada-lhe ou <strong>de</strong>sagrada-lhe? — para constatar que entraeficazmente em jogo todo o mecanismo que, como se crê,po<strong>de</strong>ria tornar-se manifesto ou ser eliminado pela reduçãoa esta pergunta. Se, porém, ainda se tentar substituir taiscondições <strong>de</strong> averiguação, que levem em conta a <strong>de</strong>pendênciareal do ouvinte em relação aos ditames da máquina dirigenteda propaganda, constata-se que toda sofisticação do método<strong>de</strong> averiguação não só dificultará uma interpretação objetivados resultados, mas também aumentará as resistências dosouvintes a serem testados, acabando por fazê-los insistiremainda mais neste tipo <strong>de</strong> comportamento conformista, <strong>de</strong>ntrodo qual se consi<strong>de</strong>ram protegidos do perigo <strong>de</strong> aparecerempublicamente como são. Não é possível estabelecer com clarezaum nexo causai, por exemplo, entre as "repercussões"das músicas <strong>de</strong> sucesso e seus efeitos psicológicos sobre osouvintes. Se realmente hoje em dia os ouvintes não pertencemmais a si mesmos, isto significa também que já não po<strong>de</strong>mser "influenciados". Os pólos opostos da produção e do consumoestão respectivamente subordinados entre si e não sãoreciprocamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> modo isolado. A sua própria1 Cf. Max Horkheimer, "Der neueste Angriff auf die Metaphysik", in Zeitschrift fuer Sozialforschung,ano VI (1937), pp. 28 ss.— 88 —


ADORNOmediação <strong>de</strong> maneira alguma se subtrai à conjetura teórica.Basta recordar quanto sofrimento é poupado àquele que nãotem muitas idéias e quanto mais "<strong>de</strong> acordo com a realida<strong>de</strong>"se comporta quem aceita a realida<strong>de</strong> como verda<strong>de</strong>ira, e atéque ponto dispõe do domínio sobre o mecanismo somenteaquele que o aceita sem objeções, para que a correspondênciaentre a consciência dos ouvintes e a música fetichizada permaneçacompreensível mesmo quando não é possível reduzira consciência dos ouvintes a esta última.No pólo oposto ao fetichismo na música opera-se umaregressão da audição. Com isto não nos referimos a um regressodo ouvinte individual a uma fase anterior do próprio<strong>de</strong>senvolvimento, nem a um retrocesso do nível coletivo geral,porque é impossível estabelecer um confronto entre osmilhões <strong>de</strong> pessoas que, em virtu<strong>de</strong> dos meios <strong>de</strong> comunicação<strong>de</strong> massas, são hoje atingidos pelos programas musicaise os ouvintes do passado. O que regrediu e permaneceu numestado infantil foi a audição mo<strong>de</strong>rna. Os ouvintes per<strong>de</strong>mcom a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha e com a responsabilida<strong>de</strong> nãosomente a capacida<strong>de</strong> para um conhecimento consciente damúsica — que sempre constitui prerrogativa <strong>de</strong> pequenosgrupos — mas negam com pertinácia a própria possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> se chegar a um tal conhecimento. Flutuam entre o amploesquecimento e o repentino reconhecimento, que logo <strong>de</strong>saparece<strong>de</strong> novo no esquecimento. Ouvem <strong>de</strong> maneira atomísticae dissociam o que ouviram, porém <strong>de</strong>senvolvem, precisamentena dissociação, certas capacida<strong>de</strong>s que são maiscompreensíveis em termos <strong>de</strong> futebol e automobilismo doque com os conceitos da estética tradicional. Não são infantisno sentido <strong>de</strong> uma concepção segundo a qual o novo tipo<strong>de</strong> audição surge porque certas pessoas, que até agora estavamalheias à música, foram introduzidas na vida musical.E todavia são infantis; o seu primitivismo não é o que caracterizaos não <strong>de</strong>senvolvidos, e sim o dos que foram privadosviolentamente da sua liberda<strong>de</strong>. Manifestam, sempreque lhes é permitido, o ódio reprimido daquele que tem a— 89 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>idéia <strong>de</strong> uma outra coisa, mas a adia, para po<strong>de</strong>r viver tranqüilo,e por isso prefere <strong>de</strong>ixar morrer uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>algo melhor. A repressão efetua-se em relação a esta possibilida<strong>de</strong>presente; mais concretamente, constata-se uma regressãoquanto à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma outra música, opostaa essa. Regressivo é, contudo, também o papel que <strong>de</strong>sempenhaa atual música <strong>de</strong> massas na psicologia das suas vítimas.Esses ouvintes não somente são <strong>de</strong>sviados do que émais importante, mas confirmados na sua necessida<strong>de</strong> neurótica,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> como as suas capacida<strong>de</strong>s musicaisse comportam em relação à cultura especificamentemusical <strong>de</strong> etapas sociais anteriores. A sua a<strong>de</strong>são entusiastaàs músicas <strong>de</strong> sucesso e aos bens da cultura <strong>de</strong>pravados enquadra-seno mesmo quadro <strong>de</strong> sintomas dos rostos, <strong>de</strong> quejá não se sabe se foi o filme que os tirou da realida<strong>de</strong>, ou arealida<strong>de</strong> do filme; rostos que abrem uma boca monstruosamentegran<strong>de</strong> com <strong>de</strong>ntes brilhantes, encimada por doisolhos tristes, cansados e distraídos. Juntamente com o esportee o cinema, a música <strong>de</strong> massas e o novo tipo <strong>de</strong> audiçãocontribuem para tornar impossível o abandono da situaçãoinfantil geral. A enfermida<strong>de</strong> tem significado conservador.Os modos <strong>de</strong> ouvir típicos das massas atuais não são, absolutamente,novos, e po<strong>de</strong>-se conce<strong>de</strong>r pacificamente que aaceitação da canção <strong>de</strong> sucesso Puppchen, famosa antes da IIGuerra, não foi diferente da que se dispensa a uma cançãoinfantil sintética <strong>de</strong> jazz. Todavia, é digno <strong>de</strong> nota o contextono qual aparece uma tal canção infantil: a ridicularizaçãomasoquista do próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> recuperar a felicida<strong>de</strong> perdida,ou o comprometimento da exigência da própria felicida<strong>de</strong>mediante a retroversão a uma infância cuja inacessibilida<strong>de</strong>dá testemunho da inacessibilida<strong>de</strong> da alegria — estaé a conquista da nova audição, e nada do que atinge o ouvidofoge <strong>de</strong>ste esquema <strong>de</strong> apropriação. Sem dúvida, subsistemdiferenças sociais, porém o novo tipo <strong>de</strong> audição vai tão longequanto a estupi<strong>de</strong>z dos oprimidos atinge os próprios opressores;e diante da prepotência da roda que se impulsiona a— 90 —


ADORNOsi mesma se tornam suas vítimas aqueles que acreditam po<strong>de</strong>r<strong>de</strong>terminar sua trajetória.A audição regressiva relaciona-se manifestamente coma produção, através do mecanismo <strong>de</strong> difusão, o que aconteceprecisamente mediante a propaganda. A audição regressivaocorre tão logo a propaganda faça ouvir a sua voz <strong>de</strong> terror,ou seja: no próprio momento em que, ante o po<strong>de</strong>rio damercadoria anunciada, já não resta à consciência do compradore do ouvinte outra alternativa senão capitular e comprara sua paz <strong>de</strong> espírito, fazendo com que a mercadoriaoferecida se torne literalmente sua proprieda<strong>de</strong>. Na audiçãoregressiva o anúncio publicitário assume caráter <strong>de</strong> coação.Uma fábrica <strong>de</strong> cerveja inglesa utilizou durante algum tempo,para fins <strong>de</strong> propaganda, um cartaz que representava uma<strong>de</strong>ssas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tijolos brancos que se encontram com tantafreqüência nos bairros pobres <strong>de</strong> Londres e nas cida<strong>de</strong>s industriaisdo norte do país. Colocado com habilida<strong>de</strong>, o cartazdificilmente se distinguia <strong>de</strong> um muro real. No cartaz se via,em cor branca, a imitação perfeita <strong>de</strong> uma caligrafia <strong>de</strong>sajeitada,com as palavras: What we want is Watney's (O quequeremos é cerveja Watney). A marca da cerveja era apregoadacomo slogan político. Tal cartaz não somente permiteenten<strong>de</strong>r a natureza da propaganda mo<strong>de</strong>rna, que transmiteàs pessoas os seus ditames como se fossem mercadorias, mastambém, no caso da firma inglesa, a mercadoria se mascarasob o slogan. O tipo <strong>de</strong> comportamento que o cartaz sugeria,isto é, que as massas fizessem <strong>de</strong> um produto que lhe erarecomendado o objeto <strong>de</strong> sua própria ação, se encontra, narealida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> novo, como esquema da aceitação da músicaligeira. Os ouvintes e os consumidores em geral precisam eexigem exatamente aquilo que lhes é imposto insistentemente.O sentimento <strong>de</strong> impotência, que furtivamente toma conta<strong>de</strong>les em face da produção monopolista, domina-os enquantose i<strong>de</strong>ntificam com o produto do qual não conseguem subtrair-se.Assim, eliminam a estranheza das produções musicaisque lhes são ao mesmo tempo longínquas e ameaçado-— 91 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>ramente próximas, e além disso obtêm lucro no prazer <strong>de</strong>sentirem-se sócios dos empreendimentos do Sr. Kannitverstancomos quais se <strong>de</strong>frontam em toda parte. Isto explicapor que continuamente nos <strong>de</strong>paramos com manifestações<strong>de</strong> preferência individual — ou naturalmente também <strong>de</strong>recusa — num campo em que o objeto e o sujeito tornamtais reações imediatamente suspeitas. O caráter fetichista damúsica produz, através da i<strong>de</strong>ntificação dos ouvintes comos fetiches lançados no mercado, o seu próprio mascaramento.Somente esta i<strong>de</strong>ntificação confere às músicas <strong>de</strong> sucesso0 po<strong>de</strong>r que exercem sobre as suas vítimas. Opera-se estai<strong>de</strong>ntificação na seqüência do esquecer e do recordar. Assimcomo cada anúncio publicitário se compõe do que é discretamenteconhecido e <strong>de</strong>sconhecidamente discreto, da mesmaforma a música <strong>de</strong> sucesso, na penumbra do seu conhecimentosubconsciente, permanece benfazejamente esquecida,para tornar-se por alguns instantes dolorosamente clara,como na luz repentina <strong>de</strong> um refletor. E-se quase tentado aequiparar o momento <strong>de</strong>sta recordação com aquele em queocorrem à vítima o título ou as palavras do início do refrãoda sua música <strong>de</strong> sucesso: talvez se i<strong>de</strong>ntifique recordando-a,e assim incorpora a sua posse. E possível que esta coação oleve a refletir sobre o título da música <strong>de</strong> sucesso. O textoescrito <strong>de</strong>baixo das notas musicais, que permite a i<strong>de</strong>ntificação,não é outra coisa que a marca comercial da música <strong>de</strong> sucesso.O modo <strong>de</strong> comportamento perceptivo, através do qualse prepara o esquecer e o rápido recordar da música <strong>de</strong> massas,é a <strong>de</strong>sconcentração. Se os produtos normalizados e irremediavelmentesemelhantes entre si, exceto certas particularida<strong>de</strong>ssurpreen<strong>de</strong>ntes, não permitem uma audição concentrada semse tornarem insuportáveis para os ouvintes, estes, por suavez, já não são absolutamente capazes <strong>de</strong> uma audição concentrada.Não conseguem manter a tensão <strong>de</strong> uma concen-1 "Não-entendo-nada", nome próprio criado por Adorno a partir <strong>de</strong> kann (posso) nichts(nada) verstchen (enten<strong>de</strong>r), com intenção ironizante. (N. do E.)— 92 —


ADORNOtração atenta, e por isso se entregam resignadamente àquiloque acontece e flui acima <strong>de</strong>les, e com o qual fazem amiza<strong>de</strong>somente porque já o ouvem sem atenção excessiva. A observação<strong>de</strong> Walter Benjamin sobre a apercepção <strong>de</strong> um filmeem estado <strong>de</strong> distração também vale para a música ligeira.O costumeiro jazz comercial só po<strong>de</strong> exercer a sua funçãoquando é ouvido sem gran<strong>de</strong> atenção, durante um bate-papoe sobretudo como acompanhamento <strong>de</strong> baile. De vez emquando se ouvirá a opinião <strong>de</strong> que o jazz é sumamente agradávelnum baile e horrível <strong>de</strong> ouvir. Contudo, se o filmecomo totalida<strong>de</strong> parece ser a<strong>de</strong>quado para a apreensão <strong>de</strong>sconcentrada,é certo que a audição <strong>de</strong>sconcentrada torna impossívela apreensão <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong>. Só se apren<strong>de</strong> o querecai exatamente sob o facho luminoso do refletor: intervalosmelódicos surpreen<strong>de</strong>ntes, modulações invertidas, erros <strong>de</strong>liberadosou casuais, ou aquilo que eventualmente se con<strong>de</strong>nacomo fórmula mediante uma fusão particularmente íntimada melodia com o texto. Também nisto há concordânciaentre os ouvintes e os produtos: a estrutura, que não têmcapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir, nem sequer lhes é oferecida. Se é verda<strong>de</strong>que, em se tratando da música superior, a audição atomísticasignifica <strong>de</strong>composição progressiva, também é inquestionávelque no caso da música inferior já nada maisexiste que seja suscetível <strong>de</strong> <strong>de</strong>composição. Com efeito, asformas dos sucessos musicais são tão rigidamente normalizadase padronizadas, até quanto ao número <strong>de</strong> compassose à sua duração, que em uma <strong>de</strong>terminada peça isolada nemsequer aparece uma forma específica. A emancipação daspartes em relação ao todo e em relação a todos os momentosque ultrapassam a sua presença imediata inaugura o <strong>de</strong>slocamentodo interesse musical para o atrativo particular, sensual.E significativa a atenção que os ouvintes dispensamnão somente a <strong>de</strong>terminadas habilida<strong>de</strong>s acrobáticas instrumentais,mas também aos diversos coloridos dos instrumentosenquanto tais; atenção que é ainda mais estimulada pelaprática da música popular americana, pelo fato <strong>de</strong> que cada— 93 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>variação — chorus — apresenta com predileção um <strong>de</strong>terminadotimbre instrumental peculiar — a clarineta, o piano, otrompete — <strong>de</strong> modo quase concertante. Chega-se até o pontoem que os ouvintes parecem preocupar-se mais com o "estilo 11do que com o próprio material — a música — que é emtodo caso indiferente; a única coisa importante é que o estiloassegure efeitos particulares <strong>de</strong> atrativo sensorial. Evi<strong>de</strong>ntemente,esta predileção pelo colorido ou timbre como tal manifestaum en<strong>de</strong>usamento do instrumento e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> imitare participar; possivelmente entre também em jogo algo dopo<strong>de</strong>roso encantamento das crianças pelo multicor, que retornasob a pressão da experiência musical contemporânea.A transferência do interesse para o atrativo do timbree o truque individual e habilidoso, isolado do conjunto etalvez até mesmo da "melodia", po<strong>de</strong>ria ser interpretada otimistamentecomo um impulso novo, em virtu<strong>de</strong> da sua funçãodisciplinadora. Entretanto, precisamente esta interpretaçãoseria errônea. Com efeito, por uma parte os atrativosapercebidos permanecem sem resistência no esquema rígido,e quem a eles se entrega, ao final se rebelara contra os mesmos.Além disso, esses atrativos são <strong>de</strong> natureza extremamentelimitada. Giram todos em torno <strong>de</strong> uma tonalida<strong>de</strong>diluída impressionisticamente. De maneira nenhuma é lícitopensar que, por exemplo, o interesse pelo timbre isolado <strong>de</strong>sperteo senso e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> novos timbres e novos sons. Pelocontrário, os ouvintes, em razão da audição atomística queos caracteriza, são os primeiros a <strong>de</strong>nunciar tais sons como"intelectuais" ou, pior ainda, como dissonantes, cacofônicos.Os atrativos <strong>de</strong>gustados pelos ouvintes <strong>de</strong>vem ser do tipoaprovado e comprovado. É verda<strong>de</strong> que na prática do jazzocorrem dissonâncias, e existem até técnicas da <strong>de</strong>sentoaçãointencional. Entretanto, a todos esses hábitos confere-se umatestado <strong>de</strong> irrepreensibilida<strong>de</strong>: todo som extravagante <strong>de</strong>veapresentar características tais que o ouvinte possa reconhecernele uma substituição <strong>de</strong> um som "normal"; e enquanto oouvinte se alegra com o mau trato que a dissonância inflige— 94 —


ADORNOà consonância que substitui, a consonância virtual asseguraao mesmo tempo que se permanece <strong>de</strong>ntro do círculo estabelecido.Em testes realizados com o objetivo <strong>de</strong> apurar aaceitação das músicas <strong>de</strong> sucesso, <strong>de</strong>parou-se com pessoasque perguntam como se <strong>de</strong>vem comportar quando uma <strong>de</strong>terminadapassagem lhes agrada e <strong>de</strong>sagrada ao mesmo tempo.Po<strong>de</strong>-se presumir que, ao fazerem tal pergunta, dão testemunho<strong>de</strong> uma experiência que é comum também àquelesque não falam <strong>de</strong>la. As reações em face dos atrativos isoladossão ambivalentes. Uma passagem que agrada aos sentidoscausa fastio tão logo se nota que ela se <strong>de</strong>stina apenas aenganar o consumidor. A frau<strong>de</strong> consiste aqui em proporcionarconstantemente a mesma coisa. Até mesmo o maisimbecil fã das músicas <strong>de</strong> sucesso há <strong>de</strong> ter por vezes osentimento <strong>de</strong> uma criança gulosa que entra numa confeitaria.Se os atrativos se esvaem e ten<strong>de</strong>m a transformar-se nooposto — a curta duração dos sucessos musicais pertenceao mesmo tipo <strong>de</strong> experiência —, a i<strong>de</strong>ologia cultural, quecaracteriza a ativida<strong>de</strong> musical superior, acarreta como conseqüênciaque também a música inferior seja ouvida comconsciência intranqüila. Ninguém acredita inteiramente noprazer dirigido. No entanto, mesmo aqui a audição permaneceregressiva, na medida em que aceita este estado <strong>de</strong> coisas,a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda <strong>de</strong>sconfiança e <strong>de</strong> toda a ambivalênciapossíveis. A transferência dos afetos para o valor <strong>de</strong> trocatraz como conseqüência que, em música, já não se faz nenhumaexigência. Os substitutos atingem tão bem o seu objetivoporque os próprios <strong>de</strong>sejos e anseios aos quais se ajustamjá foram substituídos. Entretanto, os ouvidos que somentetêm capacida<strong>de</strong> para ouvir, naquilo que lhes é proporcionado,o que se lhes exige, e que registram o atrativosensorial abstrato, ao invés <strong>de</strong> levarem os momentos <strong>de</strong> encantamentoà síntese, constituem ouvidos <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>:mesmo no fenômeno "isolado", escapar-lhes-ão traços <strong>de</strong>cisivos,isto é, precisamente aqueles que permitem ao fenômenotranscen<strong>de</strong>r o seu próprio isolamento. Existe efetivamente— 95 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>um mecanismo neurótico da necessida<strong>de</strong> no ato da audição;o sinal seguro <strong>de</strong>ste mecanismo neurótico é a rejeição ignorantee orgulhosa <strong>de</strong> tudo o que sai do costumeiro. Os ouvintes,vítimas da regressão, comportam-se como crianças.Exigem sempre <strong>de</strong> novo, com malícia e pertinácia, o mesmoalimento que uma vez lhes foi oferecido.Para tais ouvintes, elabora-se uma espécie <strong>de</strong> linguagemmusical infantil, que se distingue da linguagem genuína porqueo seu vocabulário consta exclusivamente <strong>de</strong> resíduos e<strong>de</strong>formações da linguagem artística musical. Nas transcriçõespara piano dos sucessos musicais <strong>de</strong>paramo-nos com diagramassingulares. Referem-se a guitarra, ukelele e banjo,instrumentos infantis, tanto quanto a harmônica dos tangos,comparados ao piano — e se <strong>de</strong>stinam a tocadores incapazes<strong>de</strong> ler as notas musicais. Os diagramas representam graficamentea posição das mãos nas cordas que <strong>de</strong>vem ser tangidasnos respectivos instrumentos. O texto musical das notas, aoinvés <strong>de</strong> ser apresentado em termos racionais, é substituídopor comandos ópticos, espécie <strong>de</strong> sinais musicais <strong>de</strong> trânsito-*Esses sinais limitam-se obviamente aos três acor<strong>de</strong>s fundamentaise excluem qualquer progressão harmônica dotada<strong>de</strong> sentido. O trânsito musical assim regulamentado é digno<strong>de</strong> tais sinais. Tal trânsito musical não po<strong>de</strong> ser comparadocom o trânsito rodoviário, porque abundam os erros <strong>de</strong> fraseadoe <strong>de</strong> harmonia. Trata-se <strong>de</strong> falsas duplicações <strong>de</strong> terças,progressões <strong>de</strong> quintas e oitavas, <strong>de</strong>senvolvimentos melódicosilógicos <strong>de</strong> toda espécie, sobretudo nos baixos. Po<strong>de</strong>rse-iaacreditar que tais erros são atribuíveis aos amadores,dos quais na maioria dos casos proce<strong>de</strong>m os originais dasmúsicas <strong>de</strong> sucesso, ao passo que o trabalho musical propriamentedito é executado pelos arranjadores. Entretanto,assim como seria inadmissível que os editores permitissema publicação <strong>de</strong> uma carta eivada <strong>de</strong> erros ortográficos, damesma forma não se po<strong>de</strong> crer que os arranjadores, assessoradospelos técnicos na matéria, permitam a publicação<strong>de</strong>scontrolada <strong>de</strong> versões <strong>de</strong> amadores cheias <strong>de</strong> erros. Por


ADORNOconseguinte, <strong>de</strong> duas uma: ou os erros provêm <strong>de</strong>liberadamentedos próprios técnicos, ou são <strong>de</strong>ixados intencionalmente— em atenção aos ouvintes. Po<strong>de</strong>r-se-ia supor que oseditores e técnicos <strong>de</strong>sejam congraçar-se com os ouvintes aose apresentarem tão "em mangas <strong>de</strong> camisa", po<strong>de</strong>ríamosdizer, tão nonchalant, como qualquer fã que arranha uma música<strong>de</strong> sucesso tocando <strong>de</strong> ouvido. Tais intrigas seriam iguais— embora calculadas, inclusive psicologicamente, com outrosfins — às da ortografia incorreta em inúmeros textos <strong>de</strong>publicida<strong>de</strong>. Mesmo, porém, que se quisesse excluir sua aceitaçãopor sutileza excessiva, os erros estereotipados seriam<strong>de</strong> fácil compreensão. Por uma parte, a audição infantil exigesons ricos e cheios, como os que são representados particularmentepelas luxuriantes terças, e é precisamente por estaexigência que a linguagem musical infantil contradiz <strong>de</strong> maneirabrutal a canção infantil. Por outra, a audição infantilrequer sempre as soluções mais cômodas e comuns. As conseqüênciasque <strong>de</strong>rivariam do som "rico" seriam tão alheiasàs condições harmônicas estandardizadas que os ouvintesas rejeitariam como "antinaturais". Segundo isto os erros seriamos golpes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que eliminariam os antagonismosda consciência dos ouvintes infantis. Não menos característicaspara a linguagem musical regressiva são as citações.Seu campo <strong>de</strong> utilização vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a citação consciente <strong>de</strong>canções populares e infantis, passando por alusões equívocase semicasuais, até semelhanças e plágios manifestos. Esta tendênciatriunfa sobretudo on<strong>de</strong> se adaptam trechos ou obrasinteiras do repertório clássico ou operístico. A prática dascitações reflete a ambivalência da consciência infantil do ouvinte.As frases melódicas citadas se revestem ao mesmo tempo<strong>de</strong> um cunho <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> paródia. É assim queuma criança imita o professor.A ambivalência dos ouvintes vítimas da regressão encontraa sua expressão máxima no seguinte fato: sempre <strong>de</strong>novo os indivíduos ainda não inteiramente coisificados queremsubtrair-se ao mecanismo da coisificação musical, ao qual— 97 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>estão entregues, porém na realida<strong>de</strong> cada uma das suas revoltascontra o fetichismo acaba por escravizá-los ainda maisa ele. Toda vez que tentam libertar-se do estado passivo <strong>de</strong>consumidores sob coação e procuram tornar-se "ativos", caemna pseudo-ativida<strong>de</strong>. Entre a massa das vítimas da regressão<strong>de</strong>stacam-se os tipos do que se distinguem pela pseudo-ativida<strong>de</strong>e, não obstante isto, dão ainda mais realce à regressão.Em primeiro lugar figuram os entusiastas que escrevem cartas<strong>de</strong> estímulo às estações <strong>de</strong> rádio e às orquestras, e emjam-sessions habilmente teleguiadas dão vazão ao seu próprioentusiasmo como propaganda para a mercadoria que consomem.Denominam-se a si mesmos jitterbugs, como se quisessemao mesmo tempo afirmar e ridicularizar a perda <strong>de</strong>sua individualida<strong>de</strong>, a sua transformação em besouros queziguezagueiam fascinados. Sua única escusa é que o termojitterbug, como <strong>de</strong> resto toda a terminologia do cinema e dojazz, lhes foi inculcado pelos empresários a fim <strong>de</strong> fazer-lhescrer que são eles que se encontram por trás dos bastidores.O seu êxtase é <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> conteúdo. O fato <strong>de</strong> que oêxtase se realiza, o fato <strong>de</strong> que se obe<strong>de</strong>ce à música, isto ésuficiente para substituir o próprio conteúdo. O objeto doseu êxtase é constituído pelo caráter <strong>de</strong> coação que o distingue.O êxtase é estilizado segundo os arrebatamentos ao rufardos tambores <strong>de</strong> guerra, como acontece com os selvagens.O fenômeno apresenta traços convulsivos, que lembram adoença <strong>de</strong>nominada dança-<strong>de</strong>-São Guido ou os reflexos <strong>de</strong>animais mutilados. A própria paixão parece provocada por<strong>de</strong>terminadas falhas funcionais. O ritual do êxtase revela-secomo pseudo-ativida<strong>de</strong> através do momento mímico. Nãose dança nem se ouve música "por sensualida<strong>de</strong>", muito menosa audição satisfaz à sensualida<strong>de</strong>, mas o que se faz éimitar gestos <strong>de</strong> pessoas sensuais. Existe uma analogia coma representação <strong>de</strong> excitações particulares no cinema, on<strong>de</strong>ocorrem fenômenos fisionômicos do medo, do <strong>de</strong>sejo, do brilhoerótico; também com o keep smiling e com o "expressivo"atomístico da música <strong>de</strong>pravada. A apropriação imitativa <strong>de</strong>


ADORNOmo<strong>de</strong>los comerciais entrelaça-se com os hábitos folclóricosda imitação. No jazz é mínima a relação <strong>de</strong>ssa mímica comos indivíduos que imitam. O seu meio é a caricatura. A dançae a música imitam as etapas da excitação sexual apenas pararidicularizá-las. É como se imediatamente o sucedâneo dopróprio prazer se voltasse <strong>de</strong>sfavoravelmente contra este,cheio <strong>de</strong> inveja: o comportamento "segundo a realida<strong>de</strong>" dooprimido triunfa sobre o seu sonho <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. E paraconfirmar o caráter aparente e a traição <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> êxtase,os pés são incapazes <strong>de</strong> executar o que o ouvido apren<strong>de</strong>.Os mesmos jitterbugs, que se comportam como se estivessemeletrizados por síncopes, dançam quase exclusivamente asboas passagens rítmicas. A carne fraca <strong>de</strong>nuncia o carátermentiroso do espírito sempre pronto; o êxtase gestual doouvinte infantil fracassa diante do gesto estático. — O opostodos entusiastas parece ser o diligente, que se retira do movimentoe se "ocupa" com a música na silenciosa paz <strong>de</strong> seuquarto. E tímido e inibido, talvez não tenha sucesso com osexo oposto, em todo caso quer conservar-se na sua esferasingular. Tenta isto como radioamador. Com vinte anos, conserva-sena ida<strong>de</strong> dos adolescentes que constroem casinhasou, para agradar aos pais, executam trabalhos <strong>de</strong> serra mecânica.Este tipo <strong>de</strong> jovem alcançou gran<strong>de</strong> prestígio no âmbitotécnico do rádio. Constrói pacientemente aparelhos cujoscomponentes principais <strong>de</strong>ve adquirir prontos, e pesquisa oar atrás dos segredos das ondas curtas, segredos que naturalmentesão inexistentes. Como leitor <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> índiose livros <strong>de</strong> viagens, <strong>de</strong>scobriu terras <strong>de</strong>sconhecidas e abriua sua senda através da floresta virgem. Na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> radioamador,torna-se <strong>de</strong>scobridor precisamente dos produtosindustriais, os quais estão interessados em ser <strong>de</strong>scobertospor ele. Não leva nada para casa que já não lhe tenha sidodado em casa. Os aventureiros da pseudo-ativida<strong>de</strong> se organizaramem grupos alegres: os radioamadores encomendamàs estações <strong>de</strong> ondas curtas por eles <strong>de</strong>scobertas fichas— 99 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong> verificação e organizam concursos, nos quais vence quemapresentar o maior número <strong>de</strong> tais fichas. Dentre os ouvintesfetichistas, o mais perfeito é talvez o radioamador. O queouve, e mesmo a maneira como ouve, lhe é totalmente indiferente;o que lhe interessa é tão-somente saber que estáouvindo, e que consegue, através do seu aparelho particular,introduzir-se no mecanismo público, embora não consigaexercer sobre este a mínima influência. Imbuídos do mesmoespírito, incontáveis são os rádio-ouvintes que manobram obotão sintonizador e o regulador <strong>de</strong> volume do seu aparelho,sem eles mesmos "fabricarem" tais aparelhos. Outros há quesão mais entendidos, ou pelo menos mais agressivos. São osmoços "mo<strong>de</strong>rninhos", que em toda parte se sentem à vonta<strong>de</strong>e que têm capacida<strong>de</strong> para tudo: é o estudante <strong>de</strong> escolasuperior ou faculda<strong>de</strong>, que em qualquer ambiente social estádisposto a tocar jazz mecanicamente para os <strong>de</strong>mais dançaremou ouvirem; ou então trata-se do frentista do posto <strong>de</strong>gasolina, que cantarola <strong>de</strong>scontraidamente as suas síncopesao abastecer os carros que aparecem. Ou então, trata-se doperito <strong>de</strong> audição que é capaz <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar cada banda ese aprofunda na história do jazz como se fosse a históriasagrada. É o que mais se aproxima do esportista: se não dopróprio jogador <strong>de</strong> futebol, em todo caso do torcedor fanfarrãoque domina as tribunas dos estádios. Brilha pela capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> improvisação, embora tenha que tocar pianoem casa durante horas, para po<strong>de</strong>r executar os ritmos fantasmagóricosque lhe apresentam. Este tipo <strong>de</strong> "mo<strong>de</strong>rninho"se apresenta como o in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que assobia <strong>de</strong>scontraidamente,contra todo mundo. Mas, no fundo, a melodia queassobia é a que todo mundo canta, e os seus estratagemasconstituem, mais do que invenções do momento, experiênciasacumuladas no contato com os objetos técnicos impostos pelapropaganda. As suas improvisações são sempre gestos <strong>de</strong>hábil subordinação àquilo que lhe é ditado pelos organismosdirigentes. O motorista é o protótipo do ouvinte "mo<strong>de</strong>rninho".A sua concordância com tudo o que está na crista da—100 —


ADORNOonda é tão maciça, que já não opõe a menor resistência anada, mas faz sempre o que lhe é exigido, a fim <strong>de</strong> que tudofuncione tranqüilamente. Ele mesmo, porém, afirma que nãoestá sujeito à máquina dirigente, mas a domina. Em conseqüência,a rotina soberana do amador <strong>de</strong> jazz é apenas acapacida<strong>de</strong> passiva <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar-se <strong>de</strong>sviar por nada naadaptação dos padrões. Ele é o verda<strong>de</strong>iro sujeito do jazz:as suas improvisações vêm do esquema; comanda o esquema,com o cigarro na boca, tão displicentemente como se ele mesmoo tivesse inventado.Os ouvintes regressivos apresentam muitos traços emcomum com o homem que precisa matar o tempo porquenão tem outra coisa com que exercitar o seu instinto <strong>de</strong> agressão,e com o trabalhador <strong>de</strong> meio expediente. Precisa-se dispor<strong>de</strong> muito tempo livre e <strong>de</strong> muito pouca liberda<strong>de</strong> ouficar colado o dia inteiro ao rádio para tornar-se um bomperito em jazz; e a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar conta, com a mesma<strong>de</strong>senvoltura, tanto das síncopes do jazz como dos ritmosfundamentais, é comparável à do funileiro <strong>de</strong> automóveis,que se consi<strong>de</strong>ra capaz <strong>de</strong> consertar alto-falantes e instalaçõeselétricas. Os mo<strong>de</strong>rnos ouvintes assemelham-se a certo tipo<strong>de</strong> mecânicos, especializados e ao mesmo tempo capazes <strong>de</strong>empregar os seus conhecimentos técnicos em misteres inesperados,fora do ofício que apren<strong>de</strong>ram. Entretanto, o abandonoda sua especialização só aparentemente os ajuda a selibertarem do sistema. Quanto mais intensamente se <strong>de</strong>dicamàs exigências do seu ofício, tanto mais se escravizam aosditames do sistema. A constatação resultante <strong>de</strong> uma pesquisa,<strong>de</strong> que entre rádio-ouvintes os amigos da música ligeirase <strong>de</strong>monstram <strong>de</strong>spolitizados, não é casual. A possibilida<strong>de</strong>do refúgio individual e da segurança pessoal, questionávelcomo sempre, impe<strong>de</strong> o olhar <strong>de</strong> perceber a modificaçãodo estado no qual se quer procurar guarida. A experiênciasuperficial o contradiz. A "geração jovem" — o próprioconceito constitui uma simples capa i<strong>de</strong>ológica — pareceprecisamente, em razão da nova maneira <strong>de</strong> ouvir, estar em— 101 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>contradição com os seus pais e sua cultura pequeno-burguesae <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> gosto. Nos Estados Unidos <strong>de</strong>para-se comos assim chamados liberais e progressistas entre os entusiastasda música popular ligeira, que a classificam como <strong>de</strong>mocráticapor excelência, <strong>de</strong>vido à amplidão da sua ação. Se,porém, a audição regressiva progredisse, em comparaçãocom a "individualista", isto aconteceria apenas no sentidodialético <strong>de</strong> que, melhor do que esta, se adaptariam à brutalida<strong>de</strong>que progri<strong>de</strong>. Todo o mofo possível é varrido pelavileza, e é legítima a crítica feita aos resíduos estéticos <strong>de</strong>um individualismo que há muito tempo foi arrebatado dosindivíduos. Todavia, da parte da música popular, esta críticanão po<strong>de</strong> ser feita, tanto mais que precisamente tal tipo <strong>de</strong>música conserva zelosamente e embalsama os restos <strong>de</strong>pravadose putrefatos do individualismo romântico. As suasinovações estão sempre inseparavelmente irmanadas com velhosresíduos.O masoquismo da audição <strong>de</strong>fine-se não somente narenúncia a si mesmo e no prazer <strong>de</strong> substituição pela i<strong>de</strong>ntificaçãocom o po<strong>de</strong>r. Fundamenta-se este masoquismo naexperiência <strong>de</strong> que a segurança da procura <strong>de</strong> proteção nascondições reinantes constitui algo <strong>de</strong> provisório, um simplespaliativo, e que ao final todo este estado <strong>de</strong> coisas <strong>de</strong>ve terum fim. Mesmo na renúncia à própria liberda<strong>de</strong> não se temconsciência tranqüila: ao mesmo tempo que sentem prazer,no fundo as pessoas percebem-se traidoras <strong>de</strong> uma possibilida<strong>de</strong>melhor, e simultaneamente percebem-se traídas pelasituação reinante. A audição regressiva está a cada momentopronta a <strong>de</strong>generar em furor. Sabendo-se que no fundo seestá marcando passo, o furor se dirige <strong>de</strong> imediato contratudo aquilo que o mo<strong>de</strong>rnismo da moda po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>saprovare mostrar quão reduzida foi a mudança que houve na realida<strong>de</strong>.Conhecemos, pelas fotografias e pelo cinema, o efeitodo que é mo<strong>de</strong>rno envelhecido, efeito que, utilizado originariamentecomo choque pelo surrealismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então passoua ser mera diversão daqueles cujo fetichismo se pren<strong>de</strong>— 102 —


ADORNOao presente abstrato- Este efeito retorna abreviado <strong>de</strong> formaselvagem, no caso dos ouvintes regredidos: eles gostariam<strong>de</strong> ridicularizar e <strong>de</strong>struir aquilo que ainda ontem os encantava,como se quisessem vingar-se a posteriori <strong>de</strong>ste falso encantamento.Deu-se a este efeito uma <strong>de</strong>nominação própria,difundida pelo rádio e pela imprensa. Entretanto, corny <strong>de</strong>forma alguma significa — como se po<strong>de</strong>ria pensar — a músicaligeira, <strong>de</strong> ritmo mais simples, do período anterior aojazz, mas antes, toda música sincopada, que precisamentenão se compõe das fórmulas rítmicas aprovadas no momentopresente. Um perito <strong>de</strong> jazz po<strong>de</strong> morrer <strong>de</strong> rir ao ouvir umamúsica que ritmicamente tenha uma semicolcheia seguida<strong>de</strong> uma colcheia com ponto, embora este ritmo tenha sido<strong>de</strong> imediato mais agressivo, embora <strong>de</strong> forma alguma seja,<strong>de</strong>ntro do seu estilo, mais provinciana, do que os legati sincopadospraticados mais tar<strong>de</strong> e a renúncia a todos os acentosnos tempos fracos do compasso. Os ouvintes regressivos sãorealmente <strong>de</strong>strutivos. O insulto trivial tem seu motivo irônico;irônico, porque as tendências <strong>de</strong>strutivas dos ouvintesregressivos na verda<strong>de</strong> se dirigem contra os mesmos elementosque são odiados pelos ouvintes fora <strong>de</strong> moda, ouseja, contra a rebeldia como tal, a não ser que esta se apresenteacobertada pela espontaneida<strong>de</strong> tolerada <strong>de</strong> excessos coletivos.O contraste aparente das gerações em parte alguma setorna mais manifesto do que no furor. Partilham a mesmalinha, no fundo, os hipócritas que, em cartas patéticas e sádicasàs emissoras, recriminam a profanação dos tesourossagrados da gran<strong>de</strong> música pelo jazz, e a juventu<strong>de</strong> que se<strong>de</strong>licia com tais exibições. Basta apenas que surja uma situaçãoapropriada para vê-los aliados.Com isto se formula uma crítica às "novas possibilida<strong>de</strong>s"na audição regressiva. Po<strong>de</strong>r-se-ia estar tentado a redimi-laalegando, por exemplo, que nela o caráter <strong>de</strong> "aura"da obra <strong>de</strong> arte, os elementos <strong>de</strong> sua auréola ou aparênciaexterna ce<strong>de</strong>m em favor do puramente lúdico. Como querque seja no cinema, a atual música <strong>de</strong> massas pouco apresenta— 103 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong>ste progresso no <strong>de</strong>sencantamento. Neste tipo <strong>de</strong> músicanada é mais forte e mais constante do que a aparência externa,e nada nela é mais ilusório do que a objetivida<strong>de</strong>. Este jogoinfantil só tem em comum com os jogos produtivos das criançaso nome. Não é em vão que o esporte burguês gostaria<strong>de</strong> separar-se nitidamente <strong>de</strong>ste jogo. Sua serieda<strong>de</strong> carrancudaconsiste no seguinte: ao invés <strong>de</strong> conservar-se fiel aosonho da liberda<strong>de</strong>, mantendo distância em relação aos seusobjetivos, cataloga a participação no jogo como <strong>de</strong>ver entreos objetivos úteis, extirpando os vestígios <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> neleexistentes. Isto vale ainda mais intensamente para a música<strong>de</strong> massas atual. Representa ela um jogo mas tão-somenteno sentido <strong>de</strong> repetição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los pré-fabricados; isenta-seda própria responsabilida<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>scarrega sobre os padrõesque se obriga a seguir, transformando-se em <strong>de</strong>ver. Tal jogotem apenas aparência <strong>de</strong> jogo. Por isso, a aparência é necessariamenteinerente à música esportiva atual. E ilusório estimulare promover os momentos ou aspectos técnico-racionaisda atual música <strong>de</strong> massas — ou as capacida<strong>de</strong>s excepcionaisdos ouvintes regressivos que apreciam tais aspectos— a expensas <strong>de</strong> vim encantamento corrompido que prescreveas normas para o seu funcionamento impecável. Seriailusório também porque as inovações técnicas da música <strong>de</strong>massa são simplesmente inexistentes. No que respeita à harmoniae à linha melódica isto é evi<strong>de</strong>nte. Com efeito, verda<strong>de</strong>iroengodo colorista da nova música <strong>de</strong> dança, as aproximaçõesdas diversas cores e timbres entre si — aproximaçõestão gran<strong>de</strong>s, que sem rupturas um instrumento po<strong>de</strong>tomar o lugar do outro ou até mascarar-se no outro — tudoisto são coisas tão familiares à técnica orquestral wagnerianae pós-wagneriana quanto os efeitos <strong>de</strong> surdina dos instrumentos<strong>de</strong> sopro <strong>de</strong> metal. Mesmo <strong>de</strong>ntre os artifícios dasíncope, não há nenhum que não se encontre germinalmenteem Brahms, e que não tenha sido superado por Schoenberge Stravinsky. A música popular <strong>de</strong> hoje não <strong>de</strong>senvolveupropriamente tais técnicas, mas até lhes tirou, <strong>de</strong>certo, o vi-— 104 —


ADORNOgor, com seu conformismo. Os ouvintes que admiram taisartifícios com competência não vêem nisso uma proveitosalição técnica, mas reagem com uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistência erecusa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento em que tais técnicas lhes são apresentadas<strong>de</strong>ntro dos contextos que lhes dão verda<strong>de</strong>iro sentido.O que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se uma <strong>de</strong>terminada técnica po<strong>de</strong> serconsi<strong>de</strong>rada "racional" e constitui um progresso, é o sentidooriginal, a sua posição no conjunto social e no conjunto daobra <strong>de</strong> arte concreta e individual. A tecnicização como talpo<strong>de</strong> servir à simples reação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento em que sefirma como fetiche e pela sua perfeição substitui a perfeiçãoda socieda<strong>de</strong>. Esta é a razão pela qual têm gorado todas astentativas <strong>de</strong> modificar a função da música <strong>de</strong> massas e daaudição regressiva. A arte musical capaz <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong>consumo <strong>de</strong>ve pagar o preço da sua consistência, e os errosque encerra não constituem erros "artísticos", mas cada acor<strong>de</strong>falsamente composto ou retardatário expressa o caráterreacionário daqueles a cuja <strong>de</strong>manda a música é adaptada.Uma música <strong>de</strong> massas tecnicamente conseqüente, coerentee purificada dos elementos <strong>de</strong> má aparência, se transformariaem música artística, e com isto mesmo per<strong>de</strong>ria a característicaque a torna aceita pelas massas. Todas as tentativas <strong>de</strong>conciliação, quer sejam feitas por artistas que acreditem nomercado, quer procedam <strong>de</strong> pedagogos da arte que creiamno coletivo, são infrutíferas. Tais tentativas nenhum outroresultado têm logrado senão criar artes industriais ou entãoaquele tipo <strong>de</strong> produções às quais se <strong>de</strong>ve anexar uma "bula<strong>de</strong> uso" ou um texto social para se saber quais são as suasmotivações profundas.Enaltece-se um aspecto positivo da nova música <strong>de</strong> massase da audição regressiva: a vitalida<strong>de</strong> e o progresso técnico,a ampla aceitação coletiva e a relação com uma prática in<strong>de</strong>finida,em cujos conceitos entrou a auto<strong>de</strong>núncia dos intelectuais,os quais em última análise po<strong>de</strong>m eliminar a suaalienação das massas porque unificam sua consciência coma atual consciência <strong>de</strong> massas. Ora, este aspecto que se diz— 105 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>positivo na verda<strong>de</strong> é negativo, ou seja, a irrupção, na música,<strong>de</strong> uma fase catastrófica da própria socieda<strong>de</strong>. O positivo sóexiste na sua negativida<strong>de</strong>. A música <strong>de</strong> massas fetichizadaameaça os valores culturais fetichizados. A tensão entre asduas esferas musicais cresceu <strong>de</strong> tal forma que se torna difícilà música oficial sustentar-se. Embora tenha muito pouco aver com os padrões técnicos dos ouvintes da música <strong>de</strong> massas,se compararmos os conhecimentos musicais <strong>de</strong> um perito<strong>de</strong> jazz com os <strong>de</strong> um adorador <strong>de</strong> Toscanini, verifica-se queos do primeiro ultrapassam <strong>de</strong> muito os <strong>de</strong>ste último. Entretanto,a audição regressiva constitui um inimigo impiedosonão só dos bens culturais que po<strong>de</strong>ríamos chamar "museológicos",mas também da função antiqüíssima e sagradada música como instância <strong>de</strong> sujeição e repressão dos instintos.Não sem punição, as produções <strong>de</strong>pravadas da culturamusical são expostas ao jogo <strong>de</strong>srespeitoso e ao humor sádico.Em face da audição regressiva, a música em sua totalida<strong>de</strong>começa a assumir um aspecto curioso e cômico. Gastaouvir <strong>de</strong> fora o som <strong>de</strong> um ensaio <strong>de</strong> coro. Com imponenteimpertinência esta experiência foi retratada em alguns filmesdos irmãos Marx, que <strong>de</strong>molem uma <strong>de</strong>coração <strong>de</strong> ópera,como se se <strong>de</strong>vesse <strong>de</strong>monstrar alegoricamente a intuiçãohistórico-filosófica da <strong>de</strong>cadência da ópera, ou então comuma peça apreciável <strong>de</strong> entretenimento elevado, reduzem aruínas o piano <strong>de</strong> cauda com o objetivo <strong>de</strong> apo<strong>de</strong>rar-se doacordoamento interno do piano, utilizando-o como uma verda<strong>de</strong>iraharpa do futuro na execução <strong>de</strong> um prelúdio. O aspectocômico da música na fase atual tem como primeiromotivo o fato <strong>de</strong> que se faz uma coisa completamente inútilcom todos os sinais visíveis do esforço exigido por um trabalhosério. A estranheza da música para as pessoas sérias<strong>de</strong>nota a estranheza que reina entre elas e a consciência <strong>de</strong>staestranheza se exprime em uma explosão <strong>de</strong> gargalhadas. Namúsica — ou analogamente no poeta lírico — torna-se cômicaa socieda<strong>de</strong> que a con<strong>de</strong>na ao cômico. Daquela gargalhadaparticipa a <strong>de</strong>cadência do espírito sagrado <strong>de</strong> conciliação.— 106 —


ADORNOCom muita facilida<strong>de</strong> toda a música soa hoje como aos ouvidos<strong>de</strong> Nietzsche soava o Parsifal. Lembra ritos incompreensíveise máscaras que sobrevivem dos tempos antigos.O rádio, que projeta excessiva luz sobre a música, concorrepara tanto. Talvez esta <strong>de</strong>cadência aju<strong>de</strong> um dia a levar aoinesperado. E possível que um dia soe uma hora mais felizpara os jovens "mo<strong>de</strong>rninhos", a hora que requeira antes aa<strong>de</strong>quação rápida com matérias previamente fabricadas, aalteração improvisadora das coisas, do que aquele gênero<strong>de</strong> começo radical que só floresce sob a proteção do inabalávelmundo real. Mesmo a disciplina po<strong>de</strong> ser expressão <strong>de</strong>livre solidarieda<strong>de</strong>, quando o seu conteúdo for a liberda<strong>de</strong>.Embora a audição regressiva não constitua sintoma <strong>de</strong> progressona consciência da liberda<strong>de</strong>, é possível que inesperadamentea situação se modificasse, se um dia a arte, <strong>de</strong> mãosdadas com a socieda<strong>de</strong>, abandonasse a rotina do sempre igual.Para esta possibilida<strong>de</strong> a música produziu um mo<strong>de</strong>lo:não a música popular, mas a artística. Não é em vão queMahler constitui o escândalo secreto <strong>de</strong> toda a estética musicalburguesa. Qualificam-no <strong>de</strong> carente <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> criativaporque ele <strong>de</strong>ixa em suspenso seu próprio conceito <strong>de</strong>"criar". Tudo aquilo que Mahler manipula já existe. Toma-ocomo é em sua forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>pravação. Seus temas não sãoseus, são <strong>de</strong>sapropriados. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>ste fato, nenhum dosseus temas apresenta o som habitual, todos são guiados comopor um ímã. Precisamente o que já está "gasto" ce<strong>de</strong> maleavelmenteà mão improvisadora; precisamente os temas "batidos"recebem nova vida como variações. Assim como oconhecimento que o motorista possui do seu carro velho eusado po<strong>de</strong> capacitá-lo a conduzi-lo pontualmente ao termo<strong>de</strong>sejado, da mesma forma po<strong>de</strong> a expressão <strong>de</strong> uma melodiabatida e repisada posta em tensão sob o som agudo da clarinetaem mi bemol e <strong>de</strong> oboés em registros altos atingirpíncaros que a linguagem musical escolhida jamais atingiusem perigo. Tal música consegue assumir os elementos <strong>de</strong>pravadose formar um conjunto realmente novo, mas é in-— 107 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>contestável que o seu material é tirado da audição regressiva.Po<strong>de</strong>r-se-ia até pensar que na música <strong>de</strong> Mahler esteja sismograficamenteregistrada a experiência do autor, quarentaanos antes que tal experiência penetrasse a socieda<strong>de</strong>. Se,porém, Mahler foi contrário ao conceito do progresso musical,não se po<strong>de</strong> colocar sob o signo do progresso a músicanova e radical que, nos seus representantes mais avançados,se apóia nele e o invoca paradoxalmente como precursor.Esta nova música propõe-se a resistir conscientemente à experiênciada audição regressiva. O medo que, hoje como ontem,difun<strong>de</strong>m Schoenberg e Webern não proce<strong>de</strong> da suaincompreensibilida<strong>de</strong>, mas precisamente por serem <strong>de</strong>masiadamentebem compreendidos. A sua música dá formaàquela angústia, àquele pavor, àquela visão clara do estadocatastrófico ao qual os outros só po<strong>de</strong>m escapar regredindo.Chamam-lhes <strong>de</strong> individualistas, e no entanto a sua obranão é senão um diálogo único com os po<strong>de</strong>res que <strong>de</strong>stroema individualida<strong>de</strong> — po<strong>de</strong>res cujas "sombras monstruosas"se projetam, gigantescas, sobre a sua música. As forças coletivasliquidam também na música a individualida<strong>de</strong> quejá não tem chance <strong>de</strong> salvação. Todavia, somente os indivíduossão capazes <strong>de</strong> representar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, com conhecimento claro,o genuíno <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong> em face <strong>de</strong> tais po<strong>de</strong>res.— 108 —


A Fred Pollock,no seu septuagésimo quinto aniversário,com amiza<strong>de</strong>INTRODUÇÃO À CONTROVÉRSIASOBRE o P<strong>OS</strong>ITIVISMO NASOCIOLOGIA ALEMÃ 1Abre-te, Sésamo — quero sair!STANISLAW JERZY LECEM SUAS incisivas observações a respeito da discussão<strong>de</strong> Tübingen sobre as duas comunicações, com que começouna Alemanha a controvérsia pública sobre dialética e, no sentidomais amplo, a sociologia positivista, 2 Ralf Dahrendorflamenta ter a discussão carecido, "em geral, daquela intensida<strong>de</strong>que seria apropriada às diferenças <strong>de</strong> concepção efetivamentepresentes". 3 Em conseqüência, alguns dos participantesda discussão criticaram "a ausência <strong>de</strong> tensão entreas duas comunicações principais e entre os seus relatores". 4Diante disto, Dahrendorf sente "a ironia <strong>de</strong> tais concordân-1 Traduzido do original alemão: "Einleitung", em Der Positivismusstreit in <strong>de</strong>r <strong>de</strong>utschenSoziologie, Darmstadt und Neuwied, 1974, H. Luchterhand Verlag, 3" ed„ pp. 7-79.2 Vi<strong>de</strong> a introdução <strong>de</strong> Sociologia e Filosofia <strong>de</strong> E. Durkheim, Frankfurt 1967, pp. 8 s., nota.Assinale-se novamente que Popper e Albert não se limitam ao positivismo lógico restrito.Por que, apesar disto, são consi<strong>de</strong>rados positivistas, o texto o explicitará.3 Ralf Dahrendorf, "Anmerkungen zur Diskussion <strong>de</strong>r Referate von Karl P. Popper undTheodor W. Adorno" ("Notas à Discussão das Comunicações <strong>de</strong> Popper e Adorno"), emA Disputa do Positivismo na Sociologia Alemã, <strong>de</strong> Adorno e outros, Hermann Lucterhand,Darmstadt und Neuwied, 1972, p. 145.4 Loc. cit.— 109 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>cias"; por trás <strong>de</strong> coincidências da formulação teriam se ocultadodiferenças profundas concernentes ao assunto. Que efetivamentenão se originasse discussão alguma, em que razõesopostas tivessem se entrelaçado, não era <strong>de</strong>vido unicamenteà conciliação dos relatores: eles almejavam, em primeiro lugar,tornar teoricamente comensuráveis as posições. Mastambém não é simplesmente responsável a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> algunsparticipantes da discussão que convertem em trunfo sua estranhezaem relação à filosofia, por vezes somente granjeada.Os dialéticos recorrem explicitamente à filosofia, porém osinteresses metodológicos dos positivistas não são menosalheios ao empreendimento <strong>de</strong> pesquisa ingenuamente praticado.Ambos os relatores <strong>de</strong>veriam se confessar culpados<strong>de</strong> uma carência verda<strong>de</strong>ira, que bloqueava a discussão: ambosnão tiveram sucesso na medição total à sociologia comotal. Gran<strong>de</strong> parte do que diziam referia-se à ciência em geral.Uma parcela <strong>de</strong> abstração pejorativa é posta para toda a teoriado conhecimento, bem como para sua crítica. 1 Quem, na simplesimediatez do procedimento científico, não se conformaafastando-se <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s, aufere, juntamente coma visão mais livre, também vantagens ilegítimas. Entretanto,não proce<strong>de</strong> o que freqüentemente ouvimos, que a discussão<strong>de</strong> Tübingen permaneceu na terra <strong>de</strong> ninguém e por istonão foi proveitosa à sociologia como ciência <strong>de</strong>terminada.Argumentos que se entregam à teoria analítica da ciência,sem aten<strong>de</strong>r a seus axiomas — e somente isto po<strong>de</strong>-se quererdizer com "terra <strong>de</strong> ninguém" —, acabam caindo na máquinainfernal da lógica. Por mais fielmente que sigamos o princípioda crítica imanente, este não há <strong>de</strong> ser aplicado irrefletidamenteali, on<strong>de</strong> a própria imanência lógica, prescindindo <strong>de</strong>qualquer conteúdo particular, é erigida como referência única.Acrescente-se à crítica imanente da lógica <strong>de</strong>senfreada a<strong>de</strong> seu caráter coercivo. Este é adotado pelo pensamento me-1 Hans Albert, "Der Mythos <strong>de</strong>r totalen Vernuft" ("O mito da razão total"), em A Disputado Positivismo..., p. 197.— lio —


ADORNOdiante a irrefletida i<strong>de</strong>ntificação com processos lógico-formais.A crítica imanente tem seu limite no princípio fetichizadoda lógica imanente: a este há que indicar pelo nome.Além disto, a relevância <strong>de</strong> conteúdo para a sociologia daspretensas discussões na terra <strong>de</strong> ninguém não é muito rebuscada.O po<strong>de</strong>rmos distinguir entre aparência e essênciaimplica imediatamente, se po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, e assimatravés <strong>de</strong> todas as suas ramificações, uma peça doutrináriacentral da sociologia. Uma tal relevância <strong>de</strong> conteúdodo que mais parecem ser preliminares lógicos ou da teoriado conhecimento se explica pelo fato <strong>de</strong> que as controvérsias<strong>de</strong>cisivas, por sua vez, são da natureza <strong>de</strong> conteúdo latente.Ou o conhecimento da socieda<strong>de</strong> está intimamente vinculadoa esta, e a socieda<strong>de</strong> transita concretamente à ciência <strong>de</strong> queé objeto, ou esta é somente um produto da razão subjetivasituado além <strong>de</strong> toda questão retrospectiva quanto a suaspróprias mediações objetivas.Contudo, por trás da recriminada abstração, espreitamdificulda<strong>de</strong>s muito mais sérias da discussão. Para ser possívelela precisa proce<strong>de</strong>r conforme a lógica formal. A tese da priorida<strong>de</strong><strong>de</strong>sta, porém, constitui por seu lado o cerne da concepçãopositivista ou — trocando a expressão, talvez excessivamentesobrecarregada, por uma eventualmente aceitávela Popper — da concepção cientificista <strong>de</strong> toda ciência, incluídassociologia e teoria social. Não <strong>de</strong>ve se excluir <strong>de</strong>ntreos objetos da controvérsia, se a inalienável logicida<strong>de</strong> do procedimentoefetivamente proporciona à lógica o primado absoluto.Contudo, raciocínios motivados pela auto-reflexão críticado primado da lógica em disciplinas objetivas caem inevitavelmenteem <strong>de</strong>svantagem tática. Precisam pensar sobrea lógica com meios entre os quais se afirmam os lógicos —uma contradição do tipo <strong>de</strong> que já Wittgenstein, o positivista<strong>de</strong> maior reflexão, se tornou dolorosamente consciente. Seum <strong>de</strong>bate, impreterível como o presente, fosse conduzidoa respeito <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> mundo, partindo <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vistaexternamente opostos, seria infrutífero a priori; mas, passando— 111 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>à argumentação, sofre a ameaça <strong>de</strong> serem reconhecidas semdiscussão as regras do jogo <strong>de</strong> uma das posições, que nãoperfazem por último o objeto <strong>de</strong> discussão.A observação do correlatar, <strong>de</strong> não se tratar <strong>de</strong> umadiferença <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista mas <strong>de</strong> oposições <strong>de</strong>cidíveis,foi respondida por Dahrendorf com a pergunta "se o primeironão seria falso e o segundo verda<strong>de</strong>iro". 1 E certo que, emconseqüência, as posições não excluiriam discussão e argumentos,as diferenças na natureza da argumentação contudosão tão profundas, "que é preciso duvidar se Popper e Adornosão capazes <strong>de</strong> concordar quanto a um único procedimentosequer, com cujo auxílio permitir-se-iam <strong>de</strong>cidir suasdiferenças". 2 A pergunta tem proprieda<strong>de</strong>: ela admite respostaapenas uma vez realizada a tentativa <strong>de</strong> provocar umatal <strong>de</strong>cisão, não antes. Somos impelidos à tentativa, porquea tolerância pacífica para dois tipos diferentes <strong>de</strong> sociologia,coexistentes lado a lado, não conduziria a nada melhor doque a neutralização da enfática pretensão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. A tarefase apresenta paradoxalmente: discutir as questões controversassem preconceito logicista, mas também sem dogmatismo.Os esforços neste sentido, e não astuciosos artifícioserísticos, constituem o que Habermas quer dizer com as formulações"infiltrar sob" ou "por trás das costas". Haveria <strong>de</strong>ser encontrado um local espiritual, em que pu<strong>de</strong>sse existirconcordância, sem contudo aceitar um cânone tematizadona controvérsia mesma; uma terra <strong>de</strong> ninguém do pensamento.Este local não <strong>de</strong>ve ser imaginado, conforme o mo<strong>de</strong>loda lógica da proporcionalida<strong>de</strong>, como ainda mais geral doque as duas posições em choque. Obtém sua concreção, porquetambém a ciência, incluída a lógica formal, não é apenasforça social produtiva, mas igualmente relação social <strong>de</strong> produção.Resta saber se isto é aceitável para os positivistas;abala criticamente a tese fundamental da autonomia absoluta1 Dahrendorf, loc. cit., p. 150.2 Loc. cit., p. 151.— 112 —


ADORNOda ciência, do seu caráter constitutivo para qualquer conhecimento.Haveria que questionar se é válida uma disjunçãoconvincente entre o conhecimento e o processo <strong>de</strong> vida real;se, ao contrário, o conhecimento não é mediatizado em relaçãoa este, e mesmo se sua própria autonomia, medianteo que se tornou in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e se objetivou produtivamentediante <strong>de</strong> sua gênese, não é por sua vez <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> suafunção social; se não constitui uma conexão <strong>de</strong> imanência,e igualmente, conforme sua constituição como tal, se se situanum campo circundante, atua também sobre sua estruturaimanente. Uma tal ambigüida<strong>de</strong>, por mais plausível, seriaconflitante com o princípio da não-contradição, pois a ciênciaseria autônoma, e não o seria. Uma dialética que sustentaisto <strong>de</strong>ve tampouco, como em qualquer outra parte, comportar-secomo "pensamento privilegiado"; não <strong>de</strong>ve apresentar-secomo uma capacida<strong>de</strong> particular subjetiva, com queum é dotado e que é negado ao outro, ou até se fazer passarpor intuicionismo. Por outro lado, os positivistas precisamfazer o sacrifício <strong>de</strong> abandonar a posição <strong>de</strong>nominada porHabermas <strong>de</strong> "não-estou-enten<strong>de</strong>ndo", não <strong>de</strong>squalificar simplesmentecomo ininteligível tudo o que não é concor<strong>de</strong> comcategorias como os seus "critérios <strong>de</strong> sentido". Em face dahostilida<strong>de</strong> a se propagar contra a filosofia, não conseguimosabandonar a suspeita <strong>de</strong> que alguns sociólogos querem obstinadamentese livrar do próprio passado, contra o que estecostuma se vingar.Prima vista, a controvérsia se apresenta como se os positivistasrepresentassem um rigoroso conceito <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>científica objetiva, diluído pela filosofia; os dialéticos seduzem,conforme o insinua a tradição filosófica, <strong>de</strong> modo especulativo.É certo que nisto o uso da linguagem transformao conceito <strong>de</strong> especulativo em seu oposto. Ele não é maisinterpretado, como em Hegel, no sentido <strong>de</strong> auto-reflexãocrítica do entendimento, sua limitação e sua correção, masinadvertidamente <strong>de</strong> acordo com o mo<strong>de</strong>lo popular, que sobreespeculativo imagina aquele que pensa futilmente sem— 113 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>compromisso, justamente sem autocrítica lógica e sem confrontaçãocom as coisas. A partir do <strong>de</strong>smoronamento dosistema hegeliano, e talvez como sua conseqüência, a idéia<strong>de</strong> especulação se inverteu <strong>de</strong>ste modo, tal como o queria oclichê fáustico do animal em árida charneca. O que <strong>de</strong>veria<strong>de</strong>signar o pensamento que se <strong>de</strong>spoja <strong>de</strong> sua própria limitação,adquirindo assim objetivida<strong>de</strong>, é equiparado à arbitrarieda<strong>de</strong>subjetiva: à arbitrarieda<strong>de</strong>, porque a especulaçãocarece <strong>de</strong> controles universalmente válidos; ao subjetivismo,porque o conceito do fato especulativo é substituído, comênfase na mediação, pelo "conceito" que aparece como .retornoao realismo escolástico, e, conforme o rito positivista,como realização do pensamento, a se confundir audaciosamentecom um ser-em-si. Diante disto, mais força do que oargumento tu quoquetão reticente para Albert, tem a tese<strong>de</strong> que a posição positivista, cujo pathos e cujo efeito se pren<strong>de</strong>mà sua pretensão <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, é por sua vez subjetiva.Isto o antecipou à crítica <strong>de</strong> Hegel ao que <strong>de</strong>nominava filosofiada reflexão. O triunfo <strong>de</strong> Carnap, segundo o qual dafilosofia não restará nada, a não ser o método: o da análiselógica, constitui o protótipo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão prévia quasi ontologicapara uma razão subjetiva. 2 O positivismo, para o qualcontradições são anátemas, possui a sua mais profunda einconsciente <strong>de</strong> si mesma [contradição], ao perseguir, intencionalmente,a mais extrema objetivida<strong>de</strong>, purificada <strong>de</strong> todasas projeções subjetivas, contudo apenas enredando-sesempre mais na particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma razão instrumentalsimplesmente subjetiva. Os que se sentem vitoriosos em frentedo i<strong>de</strong>alismo lhe são bem mais próximos do que é a teoriacrítica: hipostasiam ao controle científico o sujeito cognos-1 Argumento tu quoque é o que se volta contra si mesmo. No caso presente, a critica àdialética como reflexão <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> autocrítica lógica e confrontação com as coisas elasmesmas, aplica-se ao próprio positivismo que a move, dada a alteração por este operadano conceito <strong>de</strong> especulativo. (N. do T.)2 O conceito se encontra <strong>de</strong>senvolvido em: Max Horkheimer, Critica da Razão Instrumental,1» parte, Frankfurt 1967.— 114 —


ADORNOcente, se bem que não mais como sujeito criador, absoluto,mas ainda como o topos noeticos 1 <strong>de</strong> toda valida<strong>de</strong>. Enquantoquerem liquidar a filosofia, simplesmente advogam uma que,apoiada na autorida<strong>de</strong> da ciência, se torna impermeável asi mesma. Em Carnap, elo final da ca<strong>de</strong>ia Hume-Mach-Schlick, o vínculo com o positivismo subjetivo mais antigoainda está presente através <strong>de</strong> sua interpretação sensualistados enunciados protocolares. Como também estes são fornecidosà ciência somente através da linguagem, e não sãoimediatamente <strong>de</strong>terminados pelos sentidos, aquela interpretação<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou a problemática <strong>de</strong> Wittgenstein. Porém,<strong>de</strong> modo algum o subjetivismo latente é rompido pela teoriada linguagem do Tractatus. "A filosofia não resulta em proposiçõesfilosóficas", afirma-se neste, "mas em tornar clarasas proposições. A filosofia <strong>de</strong>ve tomar os pensamentos que,por assim dizer, são vagos e obscuros e torná-los claros ebem <strong>de</strong>limitados." 2 Clareza, porém, correspon<strong>de</strong> unicamenteà consciência subjetiva. No espírito cientificista, Wittgensteinsobrecarrega <strong>de</strong> tal modo a pretensão <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> queela se <strong>de</strong>sfaz e ce<strong>de</strong> àquele paradoxo total da filosofia, queforma o nimbo <strong>de</strong> Wittgenstein. Subjetivismo latente constitui-seem contraponto <strong>de</strong> objetivismo <strong>de</strong> todo movimentonominalista do iluminismo, a permanente reductio ad hominem.A ela o pensamento não precisa se submeter, pois écapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar criticamente o subjetivismo latente. É surpreen<strong>de</strong>nteque os cientificistas, inclusive Wittgenstein, tenham-seincomodado tão pouco com isto, como também com0 permanente antagonismo da ala lógico-formal e da ala empirista,que, em forma distorcida no interior do positivismo,revela um outro dos mais reais. Já em Hume a doutrina davalida<strong>de</strong> absoluta da matemática se opunha heterogeneamenteao sensualismo cético. Nisto se manifesta o insucesso1 Local <strong>de</strong>terminado do conhecimento. (N. do T.)2 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Phibsophkus, 4.112, Frankfurt, 1960 (1963), pp. 31s., citado pela tradução portuguesa <strong>de</strong> J. A. Giannotti. (N. do T.)— 115 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>do cientificismo na mediação <strong>de</strong> factícida<strong>de</strong> e conceito; dis-Asociados, ambos tornam-se logicamente inconciliáveis. E menossustentável a precedência absoluta do evento singularem frente das "idéias", do que manter a autonomia absoluta<strong>de</strong> um domínio puramente i<strong>de</strong>al, precisamente o matemático.Enquanto se conservar, não importa sob que variação, o esseest percipi <strong>de</strong> Berkeley, é incompreensível don<strong>de</strong> provém apretensão <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> das disciplinas formais que não possuiseu fundamento em nada sensível. Inversamente, todas asoperações conectivas do pensamento do empirismo, para asquais o nexo das sentenças constitui um critério <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,postulam a lógica formal. Esta simples consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>veriaser suficiente para mover o cientificismo em direção à dialética.A polarida<strong>de</strong> abstrata, no mau sentido, do formal edo empírico, contudo, se mantém perceptível nas ciênciassociais. A sociologia formal é o complemento externo da exrperiência restringida, para usar um termo <strong>de</strong> Habermas. Nãosão as teses do formalismo sociológico, as <strong>de</strong> Simmel, porexemplo, que são falsas em si, mas sim os atos do pensamentoque as arrancam da empiria, as hipostasiam e posteriormentelhes conferem conteúdo ilustrativo. Algumas <strong>de</strong>scobertas favoritasda sociologia formal, como a burocratização dos partidosproletários, têm seu fundamento in re, porém não seoriginam invariavelmente a partir do conceito <strong>de</strong> "organizaçãoem geral", mas sim <strong>de</strong> condições sociais, como a obrigação<strong>de</strong> se afirmar no interior <strong>de</strong> um sistema prepotente, cuja violênciase realiza graças à difusão pelo todo <strong>de</strong> suas própriasformas <strong>de</strong> organização. Esta obrigação se partilha com osoponentes, não apenas mediante transmissão social, mas também<strong>de</strong> modo quase racional: para que a organização possarepresentar momentaneamente <strong>de</strong> modo eficiente os interesses<strong>de</strong> seus membros. No interior da socieda<strong>de</strong> coisificada,nada tem chance <strong>de</strong> sobreviver que por sua vez não sejacoisificado. A universalida<strong>de</strong> histórica concreta do capitalismomonopolista se prolonga no monopólio do trabalho etodas as suas implicações. Uma tarefa relevante da sociologia— 116 —


ADORNOempírica seria analisar os elos intermediários, <strong>de</strong>monstrarem <strong>de</strong>talhe como a adaptação às relações capitalistas <strong>de</strong>produção transformadas se apo<strong>de</strong>ra daqueles cujos interessesobjetivos à la longue (com o tempo) se contrapõeàquela adaptação.Com razão, a sociologia positivista dominante po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>nominada subjetiva no mesmo sentido da economia subjetiva;em um dos representantes principais <strong>de</strong>sta, VilfredoPareto, o positivismo sociológico contemporâneo tem suasraízes. Aqui "subjetivo" possui significado duplo. Uma veza sociologia dominante opera, na expressão <strong>de</strong> Habermas,com retículas, esquemas sobrepostos ao material. Enquantonestes indubitavelmente o material também tem importância,<strong>de</strong> acordo com o lugar em que precisa ser ajustado, constituiuma diferença capital, se o material, os fenômenos são ounão interpretados conforme uma estrutura em si pré-estabelecida,não produzida em intenção classificatória pela ciência.Quão pouco indiferente é a escolha dos supostos sistemas<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nadas, po<strong>de</strong> ser exemplificado na alternativa <strong>de</strong>submeter <strong>de</strong>terminados fenômenos sociais a conceitos comoprestígio e status, ou <strong>de</strong>rivá-los <strong>de</strong> relações objetivas <strong>de</strong> dominação.Segundo a última concepção, status e prestígio sesubmetem à dinâmica da relação <strong>de</strong> classes, e em princípiopo<strong>de</strong>m ser apresentados como suprimíveis; sua subsunçãoclassificatória contudo toma ten<strong>de</strong>nciosamente aquelas categoriascomo algo simplesmente dado e virtualmente imutável.Do conteúdo <strong>de</strong> tal modo rico em conseqüências é umadistinção que aparentemente diz respeito apenas à metodologia.Com isto concorda também o subjetivismo da sociologiapositivista em seu segundo significado. Ao menos emum setor bastante consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>, ela parte<strong>de</strong> opiniões, <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> comportamento, da autocompreensãodos sujeitos singulares e da socieda<strong>de</strong>, em vez <strong>de</strong> partir<strong>de</strong>sta. Numa tal concepção, a socieda<strong>de</strong> é, em ampla medida,a consciência ou a inconsciência média a ser obtida estatisticamente<strong>de</strong> sujeitos socializados e que agem socialmente,— 117 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>e não o meio em que estes se movimentam. A objetivida<strong>de</strong>da estrutura, para os positivistas uma relíquia mitológica, é,segundo a teoria dialética, o a priori da razão subjetiva cognoscente.Caso se tornasse consciente disto, ela teria que <strong>de</strong>terminara estrutura quanto a suas próprias leis, e não porsi mesma, conforme regras <strong>de</strong> comportamento <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m conceituai.Condição e conteúdo <strong>de</strong> fatos sociais a serem levantadosa partir <strong>de</strong> sujeitos singulares são fornecidos por aquelaestrutura. Não importa até que ponto a concepção dialéticada socieda<strong>de</strong> recuperou sua pretensão <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, e seesta lhe é mesmo possível — o fato é que ela a consi<strong>de</strong>racom mais gravida<strong>de</strong> do que seus opositores, que adquirema segurança aparente das suas <strong>de</strong>scobertas objetivamente válidas,na medida em que renunciam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início à vigorosaidéia <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, tal como esta fora consi<strong>de</strong>rada em relaçãoao conceito do em-si. Os positivistas emitem juízos préviossobre o <strong>de</strong>bate, na medida em que <strong>de</strong>ixam transparecerque representam um tipo do pensamento novo que progrediu,apesar <strong>de</strong> suas concepções, na expressão <strong>de</strong> Albert, hojeainda não terem se firmado em toda parte, porém em relaçãoàs quais a dialética constitui arcaísmo. Esta visão do progresso<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado o preço, que o está sabotando. O espírito<strong>de</strong>ve progredir, na medida em que, como espírito, se constrangeem benefício dos fatos efetivamente uma contradiçãológica. "Por que", pergunta Albert, "novas idéias não <strong>de</strong>veriamigualmente ter uma chance <strong>de</strong> se confirmarem?" 1 Asidéias novas referem-se a uma mentalida<strong>de</strong> em geral poucoamistosa para com idéias. Sua pretensão à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nãopo<strong>de</strong> ser outra senão a <strong>de</strong> um iluminismo avançado. Este,contudo, necessita da auto-reflexão crítica da razão subjetiva,cujo progresso, unido intimamente com a dialética do iluminismo,não po<strong>de</strong> ser incondicionalmente suposto como asuprema objetivida<strong>de</strong>. Eis o foco da controvérsia.1 Albert, "O mito da razão total" em A Disputa do Positivismo..., p. 205.— 118 —


ADORNOO não ser a dialética um método in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seuobjeto impe<strong>de</strong> sua apresentação como um para-si, tal comoa permite o sistema <strong>de</strong>dutivo. Não obe<strong>de</strong>ce ao critério da<strong>de</strong>finição, critica-o. Mais grave é que, após a irrevogável ruínado sistema hegeliano, ela tinha perdido também a outroraexistente e profundamente discutível consciência <strong>de</strong> segurançafilosófica. O que lhe recriminam os positivistas, a carência<strong>de</strong> um fundamento sobre que se edifica todo o restante,constitui também a censura da filosofia dominante: falta-lhearkhe. Em sua versão i<strong>de</strong>alista, atreveu-se a mostrar o ente<strong>de</strong> incontidas mediações, graças mesmo à sua não-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>própria com o espírito, como sem restos idênticos a este. Istomalogrou, motivo por que a dialética em sua configuraçãoatual não se situa menos polemicamente em relação ao "mitoda razão total" do que ao cientificismo <strong>de</strong> Albert. Ela nãopo<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar garantida a sua pretensão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> comonos tempos i<strong>de</strong>alistas. Como princípio abrangente <strong>de</strong> explicação,o movimento dialético em Hegel entendia-se sem maiscomo "ciência". Pois, já em seus primeiros passos ou proposições,sempre estava contida a tese da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que, notranscurso das análises, tanto era corroborada como explicitada;Hegel a <strong>de</strong>screveu por meio da igualda<strong>de</strong> círculo. Umtal fechamento que cuidava para que nada fosse extraído dadialética como sendo inessencial ou aci<strong>de</strong>ntal se per<strong>de</strong>u, juntamentecom a necessida<strong>de</strong> e a univocida<strong>de</strong>; ela não possuium cânone a regulá-la. Apesar disto tem sua razão <strong>de</strong> ser.Socialmente a idéia <strong>de</strong> um sistema objetivo que é em si nãoé tão quimérica como parecia ser após a queda do i<strong>de</strong>alismo,e tal como é alegada pelo positivismo. O conceito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>filosofia, tido por este como superado, 1 não é <strong>de</strong>vido a pretensasqualida<strong>de</strong>s estéticas <strong>de</strong> realizações do pensamento,mas a um conteúdo <strong>de</strong> experiência que, justamente por causa<strong>de</strong> sua transcendência em relação à consciência humana sin-1 Vi<strong>de</strong> Helmut F. Spinner, "Wo warst du Plantíon? Ein kleiner Protest gegen eine 'grassePhilosophie"', em Saziale Welt; Revista 2/3, ano 18, <strong>de</strong> 1967, pp. 174 ss.— 11» —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>guiar, atraía para a hipóstase <strong>de</strong>sta como absoluto. A dialéticaé capaz <strong>de</strong> se legitimar mediante a retradução <strong>de</strong>ste conteúdona experiência <strong>de</strong> que proveio. Esta, porém, é a experiênciada mediação <strong>de</strong> todo singular por meio da totalida<strong>de</strong> socialobjetiva. Na dialética tradicional ela estava disposta <strong>de</strong> cabeçapara baixo, segundo a tese <strong>de</strong> que a objetivida<strong>de</strong> prece<strong>de</strong>nte,o próprio objeto, entendido como totalida<strong>de</strong>, é sujeito. Albertcensurou ao correlator <strong>de</strong> Tübingen o ter passado pelo caso,<strong>de</strong>licadamente, com simples indicações acerca da totalida<strong>de</strong>. 1Ora, é quase tautológico que o conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> nãopo<strong>de</strong> ser apontado <strong>de</strong> igual modo como aqueles facts dosquais se <strong>de</strong>stacou como conceito. "Para a primeira aproximação,ainda em <strong>de</strong>masia abstrata, recor<strong>de</strong>-se a <strong>de</strong>pendência<strong>de</strong> todos os singulares quanto à totalida<strong>de</strong> que constituem.Nesta também todos são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> todos. O todo sóse mantém graças à unida<strong>de</strong> das funções efetuadas por seusmembros. De modo geral, todo singular precisa, para viver,tomar sobre si uma função e apren<strong>de</strong> a ser grato enquantotem uma." 2Albert responsabiliza Habermas por uma idéia total <strong>de</strong>razão, com todos os pecados da filosofia da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Emtermos objetivos: a dialética proce<strong>de</strong>, num modo hegelianamenteobsoleto, com uma representação do todo social forado alcance da pesquisa e que <strong>de</strong>ve ser abandonada. O fascínioexercido pela Theory of the Middle Range <strong>de</strong> Merton há queser explicado em gran<strong>de</strong> parte pelo ceticismo quanto à categoria<strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>, enquanto os objetos <strong>de</strong> tais teoremassão obtidos à força <strong>de</strong> conexões alastradas. Conforme o maissimples common sense, a empiria conduz à totalida<strong>de</strong>. Se estudamos,por exemplo, o conflito social em um caso comoo dos excessos cometidos em Berlim, contra os estudantes,em 1967, então os motivos da situação isolada não são su-J Albert, loc. cit., p. 194, nota 1.2 Theodor W. Adorno, vocábulo Socieda<strong>de</strong>, em Evangdischcs Staalslnrikon, Stuttgart 1967,coluna 637.— 120 —


ADORNOficientes para a explicação. Uma tese como a <strong>de</strong> que a populaçãoreagiu espontaneamente contra um grupo que lheparecia pôr em perigo os interesses da cida<strong>de</strong>, mantida sobcondições precárias, seria insuficiente não somente <strong>de</strong>vido àquestionabilida<strong>de</strong> das conexões político-i<strong>de</strong>ológicas por elaimputadas. De maneira nenhuma ela torna plausível a fúriamanifestada imediatamente por violência física contra umaminoria específica visível e facilmente i<strong>de</strong>ntificável pelo preconceitopopular. Os estereótipos mais difundidos e eficazesem voga contra os estudantes: <strong>de</strong> que participavam <strong>de</strong> manifestaçõesem vez <strong>de</strong> trabalharem — uma inverda<strong>de</strong> flagrante—, <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sperdiçavam o dinheiro dos contribuintesque pagam os seus estudos, e coisas semelhantes, evi<strong>de</strong>ntementenada têm a ver com a exacerbada situação. Tais lemasse assemelham visivelmente àqueles da imprensa do 'Jingo'; 1mas uma tal imprensa dificilmente encontraria ressonância,se não se associasse a disposições da opinião e dos impulsos<strong>de</strong> numerosos indivíduos, que ela confirma e fortalece. Antiintelectualismo,a disposição <strong>de</strong> projetar o <strong>de</strong>scontentamentocom situações problemáticas sobre aqueles que <strong>de</strong>nunciamos problemas revelam-se às reações às causas imediatas; estasatuam como pretexto, como racionalização. Mesmo que asituação <strong>de</strong> Berlim fosse um fator que contribuísse para liberaro potencial psicológico das massas, ela por sua veznão seria inteligível fora do contexto da política internacional.Preten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>rivar da assim <strong>de</strong>nominada situação <strong>de</strong> Berlim,0 que proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> disputas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se atualizam noconflito <strong>de</strong> Berlim, seria um procedimento por <strong>de</strong>mais limitado.Prolongadas, as linhas conduzem ao plexo social. Dadaa multiplicida<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> seus momentos, este dificilmenteadmite ser apreendido por prescrições cientificistas. Contudo,uma vez eliminado da ciência, os fenômenos são atri-1 "Jingo" <strong>de</strong>signava um partido conservador britânico, que na guerra Russo-Turca <strong>de</strong> 1877,querendo forçar a Inglaterra à guerra com a Rússia, se utilizou da imprensa. A partirdisto, o termo passa a representar o Hurra-patriot, o patriota exaltado e imperialista fanático.(N. do T.)— 121 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>buídos a causas falsas, do que regularmente se aproveita ai<strong>de</strong>ologia dominante. Que a socieda<strong>de</strong> não permite ser firmadacomo fato, isto expressa apenas o fato mesmo da mediação:os fatos não são aquilo tido por último e impenetrávelpelo que os consi<strong>de</strong>ra a sociologia dominante, conforme osmo<strong>de</strong>los dos dados sensíveis da teoria mais antiga do conhecimento.Neles se manifesta algo que eles mesmos nãosão. 1 Não é a menos significativa das diferenças entre a concepçãopositivista e a dialética, a <strong>de</strong> que o positivismo, segundoa máxima <strong>de</strong> Schlick, reconhece somente a vigência<strong>de</strong> fenômenos, enquanto a dialética não renuncia à distinçãoentre essência e fenômeno. Por seu lado, constitui uma leisocial que estruturas <strong>de</strong>cisivas do processo social, tais comoa da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> dos supostos equivalentes que são intercambiados,não se evi<strong>de</strong>ncia sem a intervenção da teoria. Dasuspeita daquilo que Nietzsche <strong>de</strong>nominava transmundano,0 pensamento dialético vem ao encontro na medida em quea essência (Wesen) oculta constitui <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, abuso (Unwesen).Irreconciliável com a tradição filosófica, não aceita esta<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m graças à sua violência, mas a critica em sua contradiçãocom o "que se manifesta" e por último com a vidareal dos homens singulares. Há que se apegar à proposiçãohegeliana <strong>de</strong> que é preciso a essência se manifestar; é <strong>de</strong>stemodo que isso incorre na referida contradição com o fenômeno.A totalida<strong>de</strong> não constitui uma categoria afirmativa,mas sim crítica. A crítica dialética se propõe a ajudar a salvarou restaurar o que não está <strong>de</strong> acordo com a totalida<strong>de</strong>, oque se lhe opõe ou o que, como potencial <strong>de</strong> uma individuaçãoque ainda não é, está apenas em formação. A interpretaçãodos fatos conduz à totalida<strong>de</strong>, sem que esta seja,ela própria, um fato. Não há nada socialmente fático quenão tenha seu valor específico nesta totalida<strong>de</strong>. Ela está preor<strong>de</strong>nadaa todos os sujeitos singulares, porque estes obe<strong>de</strong>cem1 Vi<strong>de</strong> Max Horkheimer, loc. cit., pp. 20 s.— 122 —


ADORNOà sua contrainte por si mesmos e até mesmo por sua constituiçãomonadológica, e inclusive, por causa <strong>de</strong>sta, representama totalida<strong>de</strong>. Neste sentido, ela constitui a mais efetivarealida<strong>de</strong>. Na medida em que é a síntese da relação socialdos indivíduos entre si, a obscurecer-se em face do singular,ela, contudo, simultaneamente é também aparência, i<strong>de</strong>ologia.Uma humanida<strong>de</strong> liberada não persiste como totalida<strong>de</strong>;0 ser-em-si <strong>de</strong>sta também é a ausência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> daquela,tal como a simula a respeito <strong>de</strong> si mesma como sendo overda<strong>de</strong>iro substrato social. E certo que <strong>de</strong>ste modo não selogrou o <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato <strong>de</strong> uma análise lógica do conceito <strong>de</strong>totalida<strong>de</strong> 1 como <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> contradição objetiva da totalida<strong>de</strong>.Mas a análise livraria o recurso da totalida<strong>de</strong> dacrítica <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória. 2 Habermas, assim comoqualquer outro dialético, não nega a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaexplicação da totalida<strong>de</strong>, mas sim somente a sua verificabilida<strong>de</strong>conforme o critério dos fatos, que é transcendido pelomovimento à categoria <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>. Da mesma maneira elanão é khorís dos fatos, mas, como sua mediação, lhes é imanente.A totalida<strong>de</strong>, numa formulação provocativa, é aSCHcieda<strong>de</strong> como coisa em si, provida <strong>de</strong> toda carga <strong>de</strong> coisificação.Porém, precisamente porque esta coisa em si aindanão é sujeito social global, ainda não é liberda<strong>de</strong>, mas prosseguecomo natureza heterônoma, cabe-lhe objetivamente ummomento <strong>de</strong> irredutibilida<strong>de</strong>, tal como Durkheim, com suficienteparcialida<strong>de</strong>, a explicava para a essência do social.Nesta medida, ela também é "fática". O conceito <strong>de</strong> faticida<strong>de</strong>,custodiado pela concepção positivista como seu substrato último,é função da mesma socieda<strong>de</strong> a cujo respeito cala asociologia cientificista, insistindo na imperscrutabilida<strong>de</strong> dosubstrato. A separação absoluta entre fato e socieda<strong>de</strong> constituium produto artificial da reflexão a ser <strong>de</strong>duzido e refutadopor meio <strong>de</strong> uma segunda reflexão.1 Albert, "O mito da razão total", em A Disputa do Positivismo..., pp. 197 s.2 í<strong>de</strong>m, ibid., p. 199.— 123 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>Numa nota <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> página, Albert diz: "Habermas citaneste contexto a indicação <strong>de</strong> Adorno à inverificabilida<strong>de</strong> da<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> todo fenômeno social em relação à 'totalida<strong>de</strong>'.Esta citação provém <strong>de</strong> um contexto em que Adorno,remetendo-se a Hegel, afirma que a refutação é frutífera apenascomo crítica imanente; para tanto, ver Adorno, Sobre aLógica das Ciências Sociais. Ao mesmo tempo, o sentido dasconsi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Popper acerca da verificação crítica é transformado,mediante 'reflexão continuada', quase em seu oposto.Parece-me que a inverificabilida<strong>de</strong> do citado pensamento<strong>de</strong> Adorno se vincula <strong>de</strong> início essencialmente ao fato <strong>de</strong>que nem o conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> utilizado nem o tipo <strong>de</strong><strong>de</strong>pendência referido é orientado a um esclarecimento, pormo<strong>de</strong>sto que seja. Possivelmente nada mais há por trás doque a idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong> algum modo tudo se relaciona comtudo. Até que ponto, a partir <strong>de</strong> uma tal idéia, se po<strong>de</strong> obteruma vantagem metodológica para alguma concepção, é oque precisa ainda ser comprovado. Meros exorcismos verbaisda totalida<strong>de</strong> não são suficientes. 1 Contudo, a "inverificabilida<strong>de</strong>"não consiste em que, para o recurso à totalida<strong>de</strong>, nãopossa ser referida uma razão plausível, mas em que a totalida<strong>de</strong>não é fática como o são os fenômenos sociais singularesaos quais se limita o critério <strong>de</strong> verificabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Albert.À objeção <strong>de</strong> que por trás do conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> nadamais existe do que a trivialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que tudo se relacionacom tudo, há que replicar que a má abstração <strong>de</strong>sta proposiçãonão constitui apenas um produto débil do pensamento,mas o teor básico da socieda<strong>de</strong>: o da troca. Na sua realizaçãouniversal, e não apenas na explicação científica do mesmo,é que se abstrai objetivamente; prescin<strong>de</strong>-se da constituiçãoqualitativa dos produtores e dos consumidores, do modo <strong>de</strong>produção, e até mesmo da necessida<strong>de</strong>, que é satisfeita secundariamentepelo mecanismo social. A humanida<strong>de</strong> con-1 I<strong>de</strong>m, ibid., p. 207, nota 26.— 124 —


ADORNOvertida em clientela, sujeito das necessida<strong>de</strong>s, é ainda, além<strong>de</strong> todas as representações ingênuas, preformada socialmentenão apenas pela situação técnica das forças produtivas, masigualmente pelas relações econômicas em que estas funcionam.O caráter abstrato do valor <strong>de</strong> troca está vinculado apriori à <strong>de</strong>nominação do universal sobre o particular, da socieda<strong>de</strong>sobre seus membros coatos. Ele não é socialmenteneutro, como simula a logicida<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> redução asingularida<strong>de</strong>s, tais como o tempo <strong>de</strong> trabalho social médio.Através da redução dos homens a agentes e portadores datroca <strong>de</strong> mercadorias, realiza-se a dominação dos homenspelos homens. A conexão total configura-se concretamentena medida em que todos são obrigados a se submeter à leiabstrata da troca, sob pena <strong>de</strong> sucumbirem, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> serem ou não subjetivamente conduzidos por um "afã <strong>de</strong>lucro". 1 A diferença entre a visão dialética da totalida<strong>de</strong>, ea positivista, se aguça justamente porque o conceito dialético<strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> preten<strong>de</strong> ser "objetivo", isto é, ser aplicável aqualquer constatação social singular, enquanto as teorias <strong>de</strong>sistemas positivistas tencionam somente, pela escolha <strong>de</strong> categoriaso mais gerais possível, reunir constatações sem contradiçãoem um contínuo lógico, sem reconhecer os conceitosestruturais superiores como condição dos estados <strong>de</strong> coisaspor eles subsumidos. Ao <strong>de</strong>negrir este conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>como retrocesso mitológico e pré-científico, o positivismo,em infatigável luta contra a mitologia, mitologiza a ciência.Seu caráter instrumental, quer dizer, sua orientação em direçãoao primado <strong>de</strong> métodos disponíveis, em vez <strong>de</strong> à coisae seu interesse, inibe consi<strong>de</strong>rações que afetam tanto o procedimentocientífico como o seu objeto. O cerne da críticaao positivismo consiste em que este se fecha à experiênciada totalida<strong>de</strong> cegamente dominante, tanto quanto à estimulanteesperança <strong>de</strong> que finalmente haverá uma mudança, sa-1 Adorno, vocábulo Socieda<strong>de</strong>, loc. cit., coluna 639.— 125 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>tisfazendo-se com os <strong>de</strong>stroços <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> sentido querestaram após a liquidação do i<strong>de</strong>alismo, sem interpretar e<strong>de</strong>scobrir a verda<strong>de</strong>, por sua vez, da liquidação e do liquidado.Em lugar disto, encontra díspar o dado interpretadosubjetivamente, e, <strong>de</strong> modo complementar, as formas purasdo pensamento do sujeito. Estes momentos diferenciados doconhecimento são reunidos pelo cientificismo contemporâneotão superficialmente como o fez outrora a filosofia dareflexão, que por este preciso motivo mereceu a sua críticapela dialética especulativa. A dialética contém também ooposto da hybris i<strong>de</strong>alista. Afasta a aparência <strong>de</strong> qualquer possíveldignida<strong>de</strong> naturalmente transcen<strong>de</strong>ntal do sujeito singular,compreen<strong>de</strong>ndo a este e às suas formas <strong>de</strong> pensamentocomo algo social em si: nesta medida, ela é mais "realista" doque o cientificismo com todos os seus "critérios <strong>de</strong> sentido".Como porém a socieda<strong>de</strong> se compõe <strong>de</strong> sujeitos e seconstitui graças à conexão funcional <strong>de</strong>stes, seu conhecimentopor sujeitos vivos, comensuráveis, resulta muito mais comensurávelà "coisa mesma" do que acontece nas ciências naturais,obrigadas, pela estranheza <strong>de</strong> um objeto, que por suavez não é humano, a transferir a objetivida<strong>de</strong> inteiramenteao mecanismo categorial, à subjetivida<strong>de</strong> abstrata. Freyeratentou para isto; a distinção alemã entre o nomotético e oi<strong>de</strong>ográfico po<strong>de</strong> ser posta fora <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração, tanto maisque uma teoria não simplificada da socieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> prescindirdas leis <strong>de</strong> sua mobilida<strong>de</strong> estrutural. A comensurabilida<strong>de</strong>do objeto socieda<strong>de</strong> quanto ao sujeito cognoscenteexiste tanto como não existe; também isto dificilmente po<strong>de</strong>ser conciliado com a lógica discursiva. A socieda<strong>de</strong> é ao mesmotempo inteligível e ininteligível. Inteligível na medidaem que o estado <strong>de</strong> coisas objetivamente <strong>de</strong>terminante datroca implica abstração, <strong>de</strong> acordo com sua própria objetivida<strong>de</strong>,implica um ato subjetivo: nele o sujeito verda<strong>de</strong>iramentereconhece a si mesmo. Isto explica, do ponto <strong>de</strong> vistada teoria científica, por que a sociologia weberiana está centradano conceito da racionalida<strong>de</strong>. Nela ele procurava, não— 126 —


ADORNOimporta se conscientemente ou não, aquela igualda<strong>de</strong> entresujeito e objeto, própria a permitir algo como o conhecimentoda coisa, em lugar <strong>de</strong> seu esfacelamento em fatos reais e dotratamento mecânico <strong>de</strong>stes. Contudo a racionalida<strong>de</strong> objetivada socieda<strong>de</strong>, a da troca, pela dinâmica própria afasta-secada vez mais do mo<strong>de</strong>lo da razão lógica. Por isto a socieda<strong>de</strong>,o que se tornou autônomo, também não continua aser inteligível; o é unicamente a lei <strong>de</strong> autonomização. Ininteligibilida<strong>de</strong><strong>de</strong>signa não somente algo essencial à sua estrutura,mas também a i<strong>de</strong>ologia, mediante a qual se protegeda crítica à sua irracionalida<strong>de</strong>. Porque a racionalida<strong>de</strong>, oespírito, se dissociou como momento parcial dos sujeitos vivos,se limitou à racionalização, ela continua a se movimentarem direção oposta ao sujeito. O aspecto da objetivida<strong>de</strong> comoimutabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que ela assim se reveste, se reflete novamentena coisificação da consciência cognoscente. A contradiçãono conceito da socieda<strong>de</strong> como inteligível e ininteligívelconstitui o motor da crítica racional a se alastrar pela socieda<strong>de</strong>e pôr seu tipo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>, a particular. Procurandoa essência da crítica na eliminação das contradições lógicasdo conhecimento pelo progresso <strong>de</strong>ste, Popper torna seu próprioi<strong>de</strong>al em crítica à coisa, ao ter a contradição seu lugarcognoscível nela e não apenas em seu conhecimento. Umaconsciência que não usa antolhos diante da constituição antagônicada socieda<strong>de</strong>, e também diante da imanente contradição<strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> e irracionalida<strong>de</strong>, precisa partirpara a crítica à socieda<strong>de</strong> sem metábasis eis állo gértos, semoutros meios que os racionais.Habermas, em seu trabalho sobre a teoria analítica daciência, fundamentou a transição à dialética como necessária,tendo em vista o conhecimento específico da ciência social. 1Conforme sua argumentação, não apenas o objeto do conhecimentoé mediatizado pelo sujeito, como, aliás, reconhece1 Vi<strong>de</strong> Juergen Habermas, "Teoria analítica da ciência e dialética, contribuição à controvérsiaentre Popper e Adorno", em A Disputa do Positizrismo..., p. 191.— 127 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>o positivismo, mas também inversamente: o sujeito inci<strong>de</strong>como momento na objetivida<strong>de</strong> a ser por ele conhecida, oprocesso social. Neste, em relação direta à expansão científica,o conhecimento é força produtiva. A dialética quer encontraro cientificismo em seu próprio campo, ao preten<strong>de</strong>r conhecermelhor a realida<strong>de</strong> social contemporânea. Procura traspassaro véu que a ciência ajuda a tecer. Sua tendência harmonizadorapermitindo, graças a seu metódico tratamento mecânico,o <strong>de</strong>saparecimento dos antagonismos da realida<strong>de</strong> efetiva,repousa no método classificatório, sem nenhuma intencionalida<strong>de</strong>dos que <strong>de</strong>le se utilizam. Reduz a um mesmo conceitocoisas essencialmente irredutíveis e contraditórias, pormeio da escolha do aparato conceituai e a serviço <strong>de</strong> suaunanimida<strong>de</strong>. Constitui exemplo recente para esta tendênciaa mui conhecida tentativa <strong>de</strong> Talcott Parsons <strong>de</strong> fundar umaciência unificada do homem, cujo sistema <strong>de</strong> categorias compreen<strong>de</strong>igualmente indivíduo e socieda<strong>de</strong>, psicologia e sociologiaou, pelo menos, as apresenta em um contínuo. 1 Oi<strong>de</strong>al <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> vigente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Descartes e sobretudoa partir <strong>de</strong> Leibniz não se tornou duvidoso apenas <strong>de</strong>vidoao <strong>de</strong>senvolvimento mais recente das ciências naturais. Noplano social, é enganoso a respeito do abismo existente entreo universal e o particular, no qual o permanente antagonismose expressa; a unificação da ciência <strong>de</strong>sloca a contraditorieda<strong>de</strong><strong>de</strong> seu objeto. A satisfação indubitavelmente contagiosaque proce<strong>de</strong> da ciência unificada tem um preço: o momentoda divergência entre indivíduo e socieda<strong>de</strong>, socialmente posto,bem como as ciências <strong>de</strong>dicadas a ambos, lhe escapam.0 esquema totalizador <strong>de</strong> tão pedante organização, queabrange <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o indivíduo e suas regularida<strong>de</strong>s até as formaçõessociais mais complexas, tem lugar para tudo, menos paraa separação histórica <strong>de</strong> indivíduo e socieda<strong>de</strong>, embora nãosejam estes radicalmente distintos. Sua relação é contraditória1 Vi<strong>de</strong> Theodor W. Adorno, "Acerca da relação entre sociologia e psicologia", em Sociokjgica:Contribuição da Escola <strong>de</strong> Frankfurt à Sociologia, I, pp. 12 ss.— 128 —


ADORNOporque a socieda<strong>de</strong> recusa aos indivíduos, em ampla medida,o que ela sempre lhes promete, como socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos,e o que constitui em última análise o motivo <strong>de</strong> suaconstituição, enquanto por sua vez os interesses cegos e <strong>de</strong>senfreadosdos indivíduos singulares inibem a formação <strong>de</strong>um possível interesse social global. Ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma ciênciaunificada cabe um título que seria o último a lhe agradar, oestético, do mesmo modo como falamos <strong>de</strong> elegância em matemática.A racionalização organizatória, em que <strong>de</strong>sembocao programa da ciência unificada em frente das ciências singularesdíspares, prejulga ao extremo as questões <strong>de</strong> teoriada ciência levantadas pela socieda<strong>de</strong>. Se, nas palavras <strong>de</strong>Wellmer, "dotado <strong>de</strong> sentido se converte em sinônimo paracientífico", então a ciência, socialmente mediatizada, dirigidae controlada, que paga à socieda<strong>de</strong> existente e à sua tradição0 tributo <strong>de</strong>vido, usurpa o papel do arbiter veri et falsi. Aotempo <strong>de</strong> Kant, a questão da constituição da teoria do conhecimentoera a da possibilida<strong>de</strong> da ciência. Hoje, ela énovamente remetida à ciência como simples tautologia. Conhecimentose procedimentos que, em vez <strong>de</strong> se manteremno interior da ciência em vigor, lhe concernem criticamente,são evitados a limine. Assim, o conceito aparentemente neutro<strong>de</strong> "vínculo convencional" tem implicações fatais. Pela portados fundos da teoria da convenção é contraban<strong>de</strong>ado o conformismosocial como critério <strong>de</strong> sentido das ciências sociais;valeria a pena analisar <strong>de</strong>talhadamente o emaranhamento<strong>de</strong> conformismo e auto-exaltação da ciência. Horkheimer aludiua todo este complexo há mais <strong>de</strong> trinta anos em seuensaio "O mais recente ataque à metafísica". 1 Também Poppersupõe o conceito <strong>de</strong> ciência como evi<strong>de</strong>nte em sua condição<strong>de</strong> fato real dado. No entanto, ele possui em si sua dialéticahistórica. Quando, na virada do século XVIII para o XIX,foram escritas a Doutrina da Ciência <strong>de</strong> Fichte e a Ciência da1 Agora em Max Horkheimer, Teoria Critica, tomo H pp. 82 ss.— 1» —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>Lógica <strong>de</strong> Hegel, teria permanecido criticamente ao nível dopré-científico o que presentemente ocupa com pretensões aexclusivida<strong>de</strong> o conceito <strong>de</strong> ciência, enquanto hoje é con<strong>de</strong>nadocomo extracientífico pelo assim <strong>de</strong>nominado cientificismo<strong>de</strong> Popper o que então se chamava ciência ou, maisquimericamente, saber absoluto. O movimento da história,e não apenas da espiritual, que levou a isto <strong>de</strong> modo algumconstitui progresso como o preten<strong>de</strong>m vaidosamente os positivistas.Todo o refinamento matemático da metodologiacientífica em avanço não dissipa a suspeita <strong>de</strong> que a conversãoda ciência em uma técnica junto às outras está minandoo seu próprio conceito. O mais forte argumento para istoseria que o que a interpretação cientificista consi<strong>de</strong>ra fim, ofactfinding, constitui para a ciência somente meio para a teoria;na ausência <strong>de</strong>sta não se esclarece por que o todo é constituído.Aliás, a alteração no funcionamento da idéia <strong>de</strong> ciênciajá se inicia com os i<strong>de</strong>alistas, sobretudo com Hegel, cujosaber absoluto coinci<strong>de</strong> com o conceito <strong>de</strong>senvolvido do serassim e não outro. A crítica daquele <strong>de</strong>senvolvimento se aplicanão à cristalização <strong>de</strong> métodos científicos específicos, indiscutivelmentefrutíferos, mas à representação dominante,rigidamente sustentada pela autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Max Weber, segundoo qual interesses extracientíficos são exteriores à ciência,e ambas as coisas <strong>de</strong>vem ser distinguidas com niti<strong>de</strong>z.Enquanto por um lado os interesses pretensamente científicossão muitas vezes neutralização <strong>de</strong> interesses extracientíficosa se prolongarem, sob sua forma mais atenuada, pela ciência,o instrumental científico que fornece o cânone do que é científicotambém constitui instrumental <strong>de</strong> uma maneira nãosonhada pela razão instrumental: meio para respostas a questõesque têm sua origem além da ciência e que vão além<strong>de</strong>la. Até o ponto em que a racionalida<strong>de</strong>-fim-meio da ciênciaignora o tetos disposto no conceito do instrumentalismo e seconstitui em fim único para si, ela contradiz sua própria instrumentalida<strong>de</strong>.Justamente isto a socieda<strong>de</strong> exige da ciência.Em lima, que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>terminada como falsa, contradizendo— 130 —


ADORNOtanto os interesses dos membros como do conjunto, todo conhecimentoque voluntariamente se submete às regras <strong>de</strong>stasocieda<strong>de</strong> solidificadas em ciência participa <strong>de</strong> sua falsida<strong>de</strong>.A usual e aca<strong>de</strong>micamente atraente distinção entre ocientífico e o pré-científico, <strong>de</strong> que também Albert se apropria,não se mantém. O fato sempre <strong>de</strong> novo observado etambém confirmado pelos próprios positivistas <strong>de</strong> uma cisão<strong>de</strong> seu pensamento enquanto falam como cientistas e enquantofalam extracientificamente, mas providos <strong>de</strong> razão,legitima a revisão daquela dicotomia. O classificado comopré-científico não é somente o que ainda não atravessou ouevita mesmo o trabalho autocrítico da ciência sustentado porPopper. Pelo contrário, enquadra-se nisto também tudo <strong>de</strong>racionalida<strong>de</strong> e experiência que é excluído pelas <strong>de</strong>terminaçõesinstrumentais da razão. Ambos os momentos são inseparáveis.Uma ciência que não acolhe <strong>de</strong> modo transformadorimpulsos pré-científicos con<strong>de</strong>na-se à indiferença nãomenos do que o faz o <strong>de</strong>scompromissamento amadorístico.No mal conceituado âmbito do pré-científico reúnem-se osinteresses copiados pelo processo <strong>de</strong> cientificação, e não setrata dos menos relevantes. Tão certo como sem disciplinacientífica não haveria progresso da consciência, é certo quea disciplina paralisa simultaneamente os órgãos do conhecimento.Quanto mais a ciência enrijece na carapaça profetizadaao mundo por Max Weber, tanto mais o proscrito comopré-científico se constitui em refúgio <strong>de</strong> conhecimento. A contradiçãona relação do espírito com a ciência respon<strong>de</strong> àquelaque é própria da ciência: ela postula uma conexão imanentee é momento da socieda<strong>de</strong> que lhe nega coerência. Subtraindo-se<strong>de</strong>sta antinomia, seja apagando o seu conteúdo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>mediante relativização da sociologia do saber, seja <strong>de</strong>sconhecendosua inter<strong>de</strong>pendência com os faits sociaux, fazendo-sepassar por algo absoluto e auto-suficiente, ela se satisfazcom ilusões prejudiciais à sua capacida<strong>de</strong>. Estes dois momentos,apesar <strong>de</strong> díspares, não são indiferentes um ao outro;para a objetivida<strong>de</strong> da ciência, tem utilida<strong>de</strong> unicamente o— 131 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>conhecimento das mediações sociais que nela resi<strong>de</strong>m, namedida em que <strong>de</strong> modo algum ela constitui simples veículo<strong>de</strong> relações e interesses sociais. Sua absolutização e sua instrumentação,ambas produtos da razão subjetiva, se complementam.Engajando-se unilateralmente como momento unificador<strong>de</strong> indivíduo e socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com a sistemáticalógica, e <strong>de</strong>svalorizando em epifenômeno o momento antagonistaque não se enquadra numa tal lógica, o cientificismotorna-se falso em face <strong>de</strong> estados <strong>de</strong> coisas centrais. Conformea lógica pré-dialética, o constitutum não po<strong>de</strong> ser constituens,0 condicionado não po<strong>de</strong> ser condição <strong>de</strong> sua própria condição.A reflexão acerca do valor posicionai do conhecimentosocial no interior do que é por ele conhecido impele paraalém <strong>de</strong>sta simples ausência <strong>de</strong> contradição. A imposição doparadoxo, na expressão franca <strong>de</strong> Wittgenstein, testemunhaque em geral a ausência <strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser aúltima palavra para o pensamento conseqüente, mesmo alion<strong>de</strong> ele sanciona a sua norma. Aqui se revela <strong>de</strong>cisivamentea superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Wittgenstein em relação aos positivistasdo círculo <strong>de</strong> Viena: o lógico percebe os limites da lógica.Em seus próprios limites, a relação <strong>de</strong> linguagem e mundo,tal como Wittgenstein a representava para si, não permitiatratamento unívoco. Pois, para ele, a linguagem forma umaconexão <strong>de</strong> imanência fechada em si mesma, através da qualestão mediatizados os momentos do conhecimento que nãosão linguagem, os dados sensíveis, por exemplo; contudo,não está menos inserido no sentido da linguagem o referir-seao que não é linguagem. Esta é tanto linguagem como algoautárquico, dotado das regras do jogo válidas apenas paraela, conforme a suposição cientificista, como também um momentono interior da socieda<strong>de</strong>, fait social.1 Wittgenstein pre-1 O caráter ambíguo da linguagem se expressa pela circunstância, em que está <strong>de</strong> acordocom os positivistas, <strong>de</strong> adquirir objetivida<strong>de</strong> unicamente mediante a intenção subjetiva.Somente quem expressa da melhor maneira possível o que quer dizer subjetivamenteproce<strong>de</strong> <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong> com a objetivida<strong>de</strong> da linguagem, fortalecendo-a enquanto todatentativa <strong>de</strong> se confiar ao ser-em-si da linguagem, bem como à sua essência ontológica.


ADORNOcisava dar-se conta <strong>de</strong> que ela se distingue <strong>de</strong> todo ser fático,porque ela é "dada" apenas por seu intermédio, e contudopo<strong>de</strong> ser pensada somente como momento do mundo, doqual, em conformida<strong>de</strong> com sua reflexão, nada po<strong>de</strong> ser conhecidoa não ser através da linguagem. Deste modo, eleatingiu o umbral <strong>de</strong> uma consciência dialética dos assim <strong>de</strong>nominadosproblemas <strong>de</strong> constituição, reduzindo ad absurdumo direito do cientificismo a amputar o pensamento dialético.Isto afeta igualmente a representação cientificista usualdo sujeito, inclusive <strong>de</strong> um sujeito transcen<strong>de</strong>ntal do conhecimento,que, em conformida<strong>de</strong>, é remetido ao seu objetocomo a uma condição da própria possibilida<strong>de</strong>, como tambéma do objeto. Não se constitui mais em um X cujo substratohaveria que compor a partir da conexão <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminaçõessubjetivas, mas também <strong>de</strong>termina, como algo por suavez <strong>de</strong>terminado, a função subjetiva.É certo que a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecimentos e não apenas<strong>de</strong> leis naturais é amplamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua gênese.Em Tübingen, relator e correlator concordavam na crítica àsociologia do saber e ao sociologismo do tipo <strong>de</strong> Pareto. Ateoria <strong>de</strong> Marx lhe é contrária: a doutrina da i<strong>de</strong>ologia, dafalsa consciência, da aparência socialmente necessária, seriacompletamente sem sentido quando <strong>de</strong>sprovida do conceito<strong>de</strong> consciência verda<strong>de</strong>ira e verda<strong>de</strong> objetiva. Apesar disto,gênese e valida<strong>de</strong> também não permitem separação isenta<strong>de</strong> contradição. A valida<strong>de</strong> objetiva preserva o momento <strong>de</strong>seu surgimento, que atua permanentemente nela. Por maisincontestável que seja a lógica, o processo <strong>de</strong> abstração quea subtrai à contestação é o da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória. Ele eliminaculmina no mau subjetivismo da hipóstase <strong>de</strong> figuras da linguagem. Já Benjamin o haviapercebido; no positivismo, exceção feita <strong>de</strong> Wittgenstein, único, qualquer motivo positivistase apresenta carente. A negligência estilística <strong>de</strong> muitos cientificistas, passível <strong>de</strong> racionalizaçãomediante o tabu a respeito do momento expressivo da linguagem, <strong>de</strong>nuncia umaconsciência coisificada. Uma vez que a ciência é dogmaticamente convertida em uma objetivida<strong>de</strong>,que não <strong>de</strong>ve ter passado pelo sujeito, a expressão da linguagem acaba bagatelizada.Quem sempre dispõe estados <strong>de</strong> coisas como sendo em-si, sem mediação subjetiva,para este a formulação torna-se indiferente, à custa da coisa <strong>de</strong>ificada.— 133 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>e <strong>de</strong>squalifica aquilo a respeito <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>. Conformeesta dimensão, a lógica é "inverídica"; sua incontestabilida<strong>de</strong>constitui, ela mesma, o anátema social espiritualizado. Seucaráter <strong>de</strong> aparência se manifesta nas contradições atingidaspela razão em seus objetos. No distanciamento do sujeitoem relação ao objeto, que realiza a história do espírito, osujeito se esquivava da superiorida<strong>de</strong> real da objetivida<strong>de</strong>.Sua dominação era <strong>de</strong> um mais fraco sobre um mais forte.De outro modo, talvez a auto-afirmação da espécie humananão teria sido possível, como, certamente, também o processoda objetivação científica. Mas, quanto mais o sujeito se apropriavadas <strong>de</strong>terminações do objeto, tanto mais ele se convertia,inconscientemente, em objeto. Eis a pré-história dacoisificação da consciência. O que o cientificismo simplesmenteapresenta como progresso sempre constitui-se tambémem sacrifício. Através das malhas escapa o que no objetonão é conforme ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um sujeito que é para si "puro",exteriorizado em relação à experiência viva própria; nestamedida, a consciência em progresso era acompanhada pelasombra do falso. A subjetivida<strong>de</strong> extirpou em si tudo o quenão é conforme à univocida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua pretensão<strong>de</strong> dominação; a si mesma, que em verda<strong>de</strong> também é objeto,não se reduziu menos do que os objetos. Há que recordarigualmente os momentos dos quais a metodologia científicaencurta a objetivida<strong>de</strong>, como também a perda da espontaneida<strong>de</strong>do conhecimento que o sujeito inflige a si mesmono intuito <strong>de</strong> dominar suas realizações. Carnap, um dos positivistasmais radicais, uma vez <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> afortunadoacaso que as leis da lógica e da matemática pura se aplicassemà realida<strong>de</strong>. Um pensamento que contém todo o seu pathosem sua ilustração cita em posição central um conceito-irracional-mítico,como é o do afortunado acaso, apenas paraevitar o discernimento, que abala a posição positivista, <strong>de</strong>que o pretenso acaso feliz não o é, mas sim produto do i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> dominação da natureza ou, na terminologia <strong>de</strong> Habermas,i<strong>de</strong>al "pragmático" <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>. A racionalida<strong>de</strong> da rea-— 134 —


ADORNOlida<strong>de</strong> efetiva tranqüilizadoramente registrada por Carnapnada mais é do que o espelhamento da ratio subjetiva. Ametacrítica da teoria do conhecimento <strong>de</strong>smente a valida<strong>de</strong>da pretensão subjetiva da apriorida<strong>de</strong> kantiana, mas confirmaKant <strong>de</strong> tal modo que sua teoria do conhecimento, entendidacomo aplicada à valida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>screve mui a<strong>de</strong>quadamentea gênese da razão cientificista. O que, numa grandiosaconseqüência da coisificação cientificista, lhe parece ser a forçada forma subjetiva, que constitui a realida<strong>de</strong> efetiva, emverda<strong>de</strong> constitui a summa daquele processo histórico emque a subjetivida<strong>de</strong> libertada e por isto coisificada se apresentavacomo soberana total da natureza, esquecendo a relação<strong>de</strong> dominação, e a transformando, <strong>de</strong>slumbrada, nacriação do dominado pelo dominador. Nos atos singularesdo conhecimento e nas disciplinas singulares, gênese e valida<strong>de</strong><strong>de</strong>vem ser distinguidas criticamente. Contudo, no âmbitodos assim <strong>de</strong>nominados problemas <strong>de</strong> constituição, elassão indissolúveis, por mais repugnante que isto seja à lógicadiscursiva. Por preten<strong>de</strong>r ser toda a verda<strong>de</strong>, a verda<strong>de</strong> cientificistanão o é. Disto a convence a mesma ratio que nuncase teria constituído <strong>de</strong> outro modo do que por meio daciência. Ela é capaz <strong>de</strong> crítica a seu próprio conceito e <strong>de</strong><strong>de</strong>signar concretamente o que escapa à ciência, a socieda<strong>de</strong>na sociologia.Na acentuação do conceito <strong>de</strong> crítica, houve concordânciaentre o relator e o correlator <strong>de</strong> Tübingen. 1 Em seguidaa uma observação <strong>de</strong> Peter Ludz, Dahrendorf atentou paraa utilização equívoca que <strong>de</strong>le fora feita. Em Popper ele significa,sem nenhuma <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> conteúdo, um "puromecanismo <strong>de</strong> confirmação provisória <strong>de</strong> proposições universaisda ciência", e no correlator, "o <strong>de</strong>sdobramento dascontradições da realida<strong>de</strong> efetiva através do conhecimento1 A vigésima primeira tese <strong>de</strong> Popper encena, numa universida<strong>de</strong> abstrata, algo como um<strong>de</strong>nominador comum entre ambos. Vi<strong>de</strong> Popper, "Die Logic <strong>de</strong>r Sozialwissenschften" CAlógica das ciências sociais"), em A Disputa do Positivismo..., p. 119.— 135 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong>sta"; <strong>de</strong> qualquer maneira, o co-relator já havia esclarecido0 equívoco. 1 Ele não é, porém, uma simples contaminação<strong>de</strong> significados diferentes na mesma palavra, mas é fundamentadono conteúdo. Se aceitamos o conceito popperiano<strong>de</strong> crítica, puramente cognitivo ou, se quisermos, "subjetivo",que preten<strong>de</strong> apenas a unanimida<strong>de</strong> do conhecimento e nãoa legitimação da coisa conhecida, então a tarefa do pensamentonão se <strong>de</strong>tém aqui. Pois aqui e ali a razão crítica é amesma; não são duas "faculda<strong>de</strong>s" que entram em ação; ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> não é mero acaso. A crítica cognitiva <strong>de</strong> conhecimentose sobretudo <strong>de</strong> teoremas também examina necessariamentese os objetos do conhecimento são o que postulam,<strong>de</strong> acordo com seu próprio conceito. Caso contrário seriamformalistas. Nunca a crítica imanente é apenas puramentelógica, mas sempre também <strong>de</strong> conteúdo, confrontação<strong>de</strong> conceito e coisa. Cabe-lhe perseguir a verda<strong>de</strong> que osconceitos, juízos e teoremas querem expressar por si mesmos;e ela não se esgota na harmonia hermética das formaçõesdo pensamento. Em uma socieda<strong>de</strong> amplamente irracionalestá em discussão precisamente o primado cientificamenteestipulado da lógica. O ater-se aos fatos do qual nenhumconhecimento, inclusive o procedimento puramente lógico,po<strong>de</strong> se libertar sem vestígios, exige que a crítica imanente,enquanto aplicada ao referido em proposições científicas enão a "proposições em si", não proceda apenas <strong>de</strong> modo argumentativo,mas examine se as coisas efetivamente se passamassim. Caso contrário, a argumentação cai naquela estupi<strong>de</strong>zque não raro observamos na perspicácia. O conceito<strong>de</strong> argumento não é constituído pelo óbvio, tal como o trataPopper, mas necessitaria <strong>de</strong> análise crítica; o lema fenomenológico"às coisas elas mesmas" já o dava a enten<strong>de</strong>r. A1 Inicialmente <strong>de</strong> se <strong>de</strong>clarou em concordância com a crítica <strong>de</strong> Popper ao "naturalismo oucientificismo metodológico errôneo ou ambíguo" (vi<strong>de</strong> Popper, loc. cit., p. 107 e Adorno."A lógica das ciências sociais", p. 128), mas em seguida não ocultou que, segundo seuconceito <strong>de</strong> critica, teria que ir além do endossado por Popper (vi<strong>de</strong> Adorno, loc. cit., pp.128 ss.).— 136 —


ADORNOargumentação torna-se questionável assim que supõe a lógicadiscursiva em face do conteúdo. Na Ciência da Lógica Hegelquase não argumentou no sentido referido; na introdução àFenomenologia do Espirito exigiu a "contemplação pura". Popper,pelo contrário, vislumbrando a objetivida<strong>de</strong> da ciênciana objetivida<strong>de</strong> do método crítico, a explica com a proposição"<strong>de</strong> que os meios lógicos auxiliares da crítica — a categoriada contradição lógica — são objetivos". 1 Nisto não se erigeuma pretensão <strong>de</strong> exclusivida<strong>de</strong> da lógica formal, como sea crítica possuísse unicamente nesta o seu organon, mas istoé, pelo menos, sugerido. Também Albert, da orientação <strong>de</strong>Popper, não interpretaria <strong>de</strong> outro modo a crítica. 2 Apesar<strong>de</strong> permitir "exames acerca <strong>de</strong> tais conexões fáticas", 3 tal comolembra Habermas, tenciona "mantê-las em separado" das lógicas.A unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos os tipos <strong>de</strong> crítica, que tem noconceito <strong>de</strong>stes seu indício, é escamoteada mediante or<strong>de</strong>mconceituai. Contudo, se nas sentenças das ciências sociais aparecemcontradições lógicas, tais como aquela não irrelevante,<strong>de</strong> que o mesmo sistema social libera e escraviza as forçasprodutivas, então a análise teórica se capacita a remeter taisdissonâncias lógicas a momentos estruturais da socieda<strong>de</strong>,não precisando eliminá-las como simples impertinências dopensamento científico, já que somente po<strong>de</strong>m ser suprimidasmediante transformação da realida<strong>de</strong>. Mesmo sendo possívelverter tais contradições em meramente semânticas, mostrando,portanto, que as proposições contraditórias referem-se<strong>de</strong> cada vez a algo diferente, sua configuração estampa aestrutura do objeto muito mais nitidamente do que um procedimentoque se torne cientificamente satisfatório na medidaem que se afasta da insatisfatorieda<strong>de</strong> do objeto do conhecimentoextracientífico. Além disto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transferircontradições objetivas à semântica po<strong>de</strong>-se vincular ao1 Popper, "A lógica das ciências sociais", em A Disputa do Positivismo..., p. 106.2 Vi<strong>de</strong> Albert, "Im Rücken <strong>de</strong>s Positivismus?" ("Pelas costas do positivismo?"), ibid.,pp. 286 s.3 Id., ibid., p. 288.— 137 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>fato <strong>de</strong> que o dialético Marx não cogita <strong>de</strong> uma representaçãoplenamente <strong>de</strong>senvolvida da dialética, com a qual julgavaapenas "flertar". Um pensamento que apren<strong>de</strong> que a seu própriosentido pertence o que por sua vez não constitui pensamento,rompe a lógica da não-contradição. Há janelas emsua prisão. A estreiteza do positivismo consiste em que elenão toma conhecimento disto, refugiando-se como em umaúltima alternativa, numa ontologia, mesmo sendo apenas ainteiramente formalizada e sem conteúdo da conexão <strong>de</strong>dutiva<strong>de</strong> proposições.A crítica à relação <strong>de</strong> proposições científicas àquilo aque se referem, converte-se contudo inevitavelmente em críticada coisa. Precisa <strong>de</strong>cidir racionalmente se as insuficiênciasque encontra são apenas científicas, ou se a coisa nãobasta ao que a ciência quer exprimir mediante seus conceitos.Quão pouco é absoluta a separação entre as formações daciência e da realida<strong>de</strong>, tão pouco o conceito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>veser atribuído unicamente àquelas. Tem tanto sentido falarda verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma instituição social como da dos teoremasque <strong>de</strong>la se ocupam. De modo legítimo o uso da linguagemna crítica não visa somente autocrítica — tal como suce<strong>de</strong>propriamente em Popper — mas também a crítica à coisa.Nisto se constitui o pathos da resposta <strong>de</strong> habermas a Albert. 10 conceito <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, especificamente burguês e antifeudal,implica a representação <strong>de</strong> uma associação <strong>de</strong> sujeitoslivres e autônomos em torno da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vidamelhor, e, <strong>de</strong>sta forma, implica crítica a relações sociais primitivas.O enrijecimento da socieda<strong>de</strong> civil em algo primitivoe impenetrável constitui sua involução imanente. Nas teoriascontratuais exprimia-se a intenção inversa. Por pouco quese verifiquem historicamente, lembram à socieda<strong>de</strong> insistentementeo conceito <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos, cujo consensopor fim postula sua razão, liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong>. E1 Vi<strong>de</strong> Juergen Habermas, "Gegen einen Positivistisch halbierten Rationalismus" ("Contraum radonalismo dividido pelo positivismo"), em A Disputa do Positivismo..., p. 249.— 138 —


ADORNO<strong>de</strong> uma maneira grandiosa que se efetua a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crítica,nos sentidos científico e metacientífico, na obra <strong>de</strong> Marx: estase <strong>de</strong>nomina Crítica <strong>de</strong> Economia Política porque preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstraro todo a ser criticado em seu direito <strong>de</strong> existência,a partir das formas da troca e da mercadoria e sua contraditorieda<strong>de</strong>imanente, "lógica". A afirmação da equivalênciado trocado, base <strong>de</strong> toda troca, é <strong>de</strong>sautorizada pela conseqüênciamesma <strong>de</strong>sta. Na medida em que o princípio datroca, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua dinâmica imanente, se esten<strong>de</strong> aotrabalho humano vivo, transforma-se obrigatoriamente em<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> objetiva, a das classes. A contradição se expressa<strong>de</strong> modo marcante: na troca tudo suce<strong>de</strong> <strong>de</strong> modocorreto e <strong>de</strong> modo não correto. A crítica lógica e a enfáticoprática,<strong>de</strong> que a socieda<strong>de</strong> precisa ser transformada, sãomomentos do mesmo movimento do conceito. Que tambémuma tal análise não po<strong>de</strong> simplesmente ignorar a separaçãodo vinculado, a <strong>de</strong> ciência e política, se confirma pelo procedimento<strong>de</strong> Marx. Ele tanto criticou como respeitou a separação;aquele que em sua juventu<strong>de</strong> escreveu as Teses <strong>de</strong>Feuerbach permaneceu por toda a sua vida um teórico daeconomia política. O conceito popperiano <strong>de</strong> crítica suspen<strong>de</strong>a lógica, restringindo-a a proposições científicas sem respeitara logicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu abstrato, que <strong>de</strong> acordo com seu própriosentido a exige. Seu "racionalismo crítico" tem algo <strong>de</strong> prékantiano,lógico-formal à custa do conteúdo. Constructs sociológicas,entretanto, discretas em sua ausência <strong>de</strong> contradiçõeslógicas, não resistiram à reflexão <strong>de</strong> conteúdo: <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> inteiramente funcional, porém se perpetuando unicamentead Kalendas graecas graças à severida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma repressãoininterrupta, porque a coação sob a qual mantémvivas a si e também a seus membros não reproduz a vida<strong>de</strong>stes da forma possível, <strong>de</strong> acordo com o estado <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>dos meios que precisamente a dominação burocráticaintegral pressupõe. Também o terror sem limites po<strong>de</strong>funcionar, mas funcionar como fim em si mesmo, separadodaquilo porque funciona; não é menos contraditório do que— 139 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>qualquer contradição lógica, e a ciência que silencia em facedisto seria irracional. Não é apenas a <strong>de</strong>cisão acerca da possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> mostrar a veracida<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> hipótesespropostas que se <strong>de</strong>nomina crítica: ela efetua uma transiçãotransparente em direção ao objeto. Se os teoremas são contraditórios,a variar a proposição <strong>de</strong> Lichtenberg, nem sempreeles são os culpados disto. A contradição dialética exprimeos antagonismos reais que não ficam visíveis no interior dosistema lógico-cientificista <strong>de</strong> pensamento. O sistema, conformeo mo<strong>de</strong>lo do lógico-<strong>de</strong>dutivo, constitui algo <strong>de</strong>sejável,algo positivo para os positivistas; já para os dialéticos, tantoreal como filosoficamente, constitui o cerne a ser criticado.Entre as formas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes do pensamento dialético no "Diamat"figura a sua repressão à crítica do sistema <strong>de</strong> or<strong>de</strong>msuperior. A teoria dialética precisa cada vez mais afastar-seda forma <strong>de</strong> sistema: a própria socieda<strong>de</strong> se afasta sempremais do mo<strong>de</strong>lo liberal que lhe imprimiu o caráter <strong>de</strong> sistema,e seu sistema cognitivo per<strong>de</strong> o caráter <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, porque, naconfiguração pós-liberal da socieda<strong>de</strong>, sua unida<strong>de</strong> sistemáticavai se amalgamar, como totalida<strong>de</strong>, com a repressão. Alion<strong>de</strong> atualmente o pensamento dialético, também e justamentena crítica, segue com excessiva inflexibilida<strong>de</strong> o caráter<strong>de</strong> sistema, inclina-se a ignorar o ente <strong>de</strong>terminado, entregando-sea representações fantásticas. Ter atentado para estefato constitui um dos méritos do positivismo, cujo conceito<strong>de</strong> sistema, como <strong>de</strong> simples classificação intracientífica, nãosucumbe da mesma forma à tentação da hipóstase. A dialéticahipostasiada torna-se antidialética e necessita <strong>de</strong> correção poraquele fact finding cujo interesse é percebido pela pesquisasocial, que por sua vez é em seguida injustamente hipostasiadapela doutrina positivista da ciência. A estrutura previamentedada, não proveniente apenas da classificação, oimpenetrável durkheimiano, é algo essencialmente negativo,inconciliável com seu próprio fim, a conservação e satisfaçãoda humanida<strong>de</strong>. Sem um tal fim, em verda<strong>de</strong>, o conceito dasocieda<strong>de</strong> seria, quanto ao conteúdo, o que os positivistas— 140 —


ADORNOcostumavam <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> sentido; nesta medidaa sociologia, também como teoria crítica da socieda<strong>de</strong>,é "lógica". O que obriga a ampliar o conceito <strong>de</strong> crítica além<strong>de</strong> suas limitações em Popper. A idéia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> científicanão po<strong>de</strong> ser dissociada da <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira.Apenas esta seria livre tanto da contradição como da nãocontradição.Esta última, resignadamente o cientificismo arelega unicamente às formas simples do conhecimento.Contra a crítica ao objeto, em vez <strong>de</strong> somente às discordânciaslógicas, o cientificismo se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> apelando à suaneutralida<strong>de</strong> social. Da problemática <strong>de</strong> uma tal limitaçãoda razão crítica, tanto Albert como Popper parecem dar-seconta; daquilo que Habermas exprimiu dizendo que a ascesecientificista favorece o <strong>de</strong>cisionismo dos fins, o irracionalismo,que já se imprimia na doutrina weberiana da ciência. Aconcessão <strong>de</strong> Popper segundo a qual "proposições protocolaresnão são intocáveis parece-me configurar um consi<strong>de</strong>rávelprogresso", 1 <strong>de</strong> que hipóteses <strong>de</strong> leis <strong>de</strong> caráter universalnuma prática plena <strong>de</strong> sentido não po<strong>de</strong>riam ser compreendidascomo verificáveis, e <strong>de</strong> que isto valeria inclusivepara as proposições protocolares, 2 efetivamente leva em frente,<strong>de</strong> modo produtivo, o conceito <strong>de</strong> crítica. Propositalmenteou não leva-se em conta que aquilo a que se referem as assim<strong>de</strong>nominadas proposições protocolares, as simples observações,são pré-formadas pela socieda<strong>de</strong>, que, por sua vez, novamentenão admite ser reduzida a proposições protocolares.Contudo, se substituímos o usual postulado positivista daverificação por aquele da "possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> confirmação", entãoo positivismo é privado <strong>de</strong> todo seu sal. Todo conhecimentonecessita <strong>de</strong> confirmação, todo conhecimento precisaracionalmente distinguir o verda<strong>de</strong>iro e o falso, sem disporautologicamente as categorias <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro e falso conforme1 Popper, A Lógica da Investigação Cientifica, Tübingen, 1966, p. 63.2 "O <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> ser eliminado também po<strong>de</strong> ocorrer a uma proposição protocolar."(Otto Neurath, "Proposições protocolares"; em Erkenntnis, editado por R. Carnap eHans Kluthenbach, tomo III, 1932-33, Leipzig, p. 209.— 141 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>as regras do jogo <strong>de</strong> ciências estabelecidas. Popper contrastaa sua "sociologia do saber" com a sociologia do conhecimento,usual <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Mannheim e Scheler. Ele sustenta uma "teoriada objetivida<strong>de</strong> científica". Ela porém não alcança além dosubjetivismo cientificista, 1 submetendo-se à proposição aindaválida <strong>de</strong> Durkheim, <strong>de</strong> que não existe "uma diferença essencialentre a proposição: eu aprecio isto, e a proposição:um <strong>de</strong>terminado número <strong>de</strong> nós aprecia isto". 2 Popper esclarecea objetivida<strong>de</strong> científica que sustenta: "Esta po<strong>de</strong> serexplicada somente mediante categorias sociais tais como:competição (tanto dos cientistas isolados, como das diversasescolas); tradição (a tradição crítica); instituição social (como,por exemplo, publicações em diferentes periódicos concorrentese por meio <strong>de</strong> diferentes editores concorrentes; discussõesem congressos); po<strong>de</strong>r do Estado (a tolerância políticadas discussões livres)". 3 Estas categorias são notoriamenteproblemáticas. Assim, a categoria <strong>de</strong> competição encerra todo0 mecanismo da concorrência, inclusive aquele funesto, <strong>de</strong>nunciadopor Marx, conforme o qual o sucesso no mercadotem primazia sobre as qualida<strong>de</strong>s da coisa, mesmo tratando-se<strong>de</strong> formações espirituais. A tradição em que Popperse apóia tornou-se indubitavelmente, no interior das universida<strong>de</strong>s,em freio das forças produtivas. Na Alemanha háuma ausência total <strong>de</strong> tradição crítica, para nem mencionaras "discussões em congressos", que Popper hesitaria em reconhecerempiricamente como instrumento da verda<strong>de</strong>, damesma forma como não superestimará o alcance efetivo da"tolerância política da discussão livre" na ciência. A forçada<strong>de</strong>spreocupação diante <strong>de</strong> tudo isto respira o otimismo do<strong>de</strong>sespero. A negação apriorística <strong>de</strong> uma estrutura objetivada socieda<strong>de</strong> e a sua substituição por esquemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>naçãoextirpa pensamentos que se voltam contra aquela estrutura,1 Vi<strong>de</strong> o texto acima, pp. 11 s.2 E. Durkheim, Sociologia e Filosofia, Frankfurt, 1967, p. 141.3 Popper, "A lógica das ciências sociais", em A Disputa do Positivismo..., p. 113.— 142 —


ADORNOenquanto o impulso popperiano <strong>de</strong> ilustração preten<strong>de</strong> justamentepensamentos <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m. A negação <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>social a mantém intacta em sua forma pura; a lógicaabsolutizada é i<strong>de</strong>ologia. Habermas afirma acerca <strong>de</strong> Popper:"Contra uma solução positivista do problema da base, Popperinsiste que as proposições observacionais a<strong>de</strong>quadas à falseação<strong>de</strong> hipóteses <strong>de</strong> leis não admitem justificação empíricaterminante; em lugar disto, <strong>de</strong>ve ser tomada uma <strong>de</strong>cisãoem cada caso, se a suposição <strong>de</strong> uma proposição <strong>de</strong> base ésuficientemente motivada pela experiência. No processo <strong>de</strong>pesquisa, todos os observadores que participam <strong>de</strong> tentativas<strong>de</strong> falseação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas teorias precisam chegar a umconsenso provisório e a qualquer momento refutável acerca<strong>de</strong> proposições observacionais relevantes: esta concordânciarepousa em última instância em uma opção que não po<strong>de</strong>ser forçada, nem empírica nem logicamente". 1 Ao que correspon<strong>de</strong>a comunicação <strong>de</strong> Popper, apesar <strong>de</strong> pleitear que:"É inteiramente errôneo supor que a objetivida<strong>de</strong> da ciência<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da objetivida<strong>de</strong> do cientista". 2 De fato, porém, aquelaobjetivida<strong>de</strong> sofre menos em virtu<strong>de</strong> da antiquada igualda<strong>de</strong>pessoal do que pela pré-formação objetivo-social doaparato científico coisificado. Para isto o nominalista Poppernão possui corretivo mais vigoroso do que a inter-subjetivida<strong>de</strong>no interior da ciência organizada: "O que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signarpor objetivida<strong>de</strong> científica repousa única e exclusivamentena tradição crítica; naquela tradição que, a <strong>de</strong>speito<strong>de</strong> todas as resistências, possibilita tantas vezes criticar umdogma vigente. Em outras palavras, a objetivida<strong>de</strong> da ciêncianão é um problema individual dos diversos cientistas, masum problema social <strong>de</strong> crítica recíproca, da amistosa-e-hostildivisão <strong>de</strong> trabalho dos cientistas, da sua cooperação e doseu confronto". 3 A confiança em que posições muito diver-1 Habermas, "Teoria analítica da ciência e dialética", ibid., pp. 178 s.2 Popper, üríd., p. 112.3 Id.— 143 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>gentes se conciliem graças às regras reconhecidas da cooperação,adquirindo assim o maior grau <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> possíveldo conhecimento, concorda inteiramente com o antiquadomo<strong>de</strong>lo liberal daqueles que se reúnem numa mesaredonda a negociar um compromisso. As formas da cooperaçãocientífica contêm um grau infinito da mediação social;apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominá-las "tema social", Popper não se preocupacom suas implicações. Estas vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong>seleção que controlam o acesso à carreira e ao renome acadêmicos— mecanismos em que obviamente <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a conformida<strong>de</strong>com a opinião do grupo dominante — até a conformaçãoda communis opinio e suas irracionalida<strong>de</strong>s. A sociologia,que tematicamente trata <strong>de</strong> interesses explosivostambém quanto à sua conformação própria, constitui, nãoapenas na esfera privada, mas precisamente em suas instituições,um microcosmo daqueles interesses. Disto já se encarregao princípio classificatório em si. O alcance <strong>de</strong> conceitosque preten<strong>de</strong>m somente ser abreviaturas <strong>de</strong> fatos encontradiços,não ultrapassam o âmbito <strong>de</strong>stes. Quanto maisprofundamente o método aprovado se introduz na matériasocial, tanto mais evi<strong>de</strong>nte seu partidarismo. Por exemplo,quando a sociologia dos "meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa"— o próprio título já difun<strong>de</strong> o preconceito <strong>de</strong> que o que<strong>de</strong>ve ser planejado e mantido na esfera da produção <strong>de</strong>veser obtido dos sujeitos, as massas <strong>de</strong> consumidores —, nadamais preten<strong>de</strong> do que investigar opiniões e atitu<strong>de</strong>s, para<strong>de</strong>las extrair conseqüências "crítico-sociais"; o sistema vigenteaten<strong>de</strong> silenciosamente a uma manipulação centralizada, e,reproduzindo-se por intermédio <strong>de</strong> reações <strong>de</strong> massa, erigeseem norma <strong>de</strong> si mesmo. A afinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda a esfera<strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> administrative research por Paul F. Lazarsfeldcom os objetivos da administração é quase tautológica; contudo,não é menos evi<strong>de</strong>nte, se o conceito <strong>de</strong> estrutura objetiva<strong>de</strong> dominação não é, a força, convertido em tabu, queestes objetivos são mo<strong>de</strong>lados conforme suas necessida<strong>de</strong>s,com freqüência passando por cima das cabeças dos admi-— 144 —


ADORNOnistradores individuais. A administrative research constitui oprotótipo <strong>de</strong> uma ciência social que se apóia sobre a teoriacientificista da ciência e que recai no âmbito <strong>de</strong>sta. Assimcomo quanto ao conteúdo social a apatia política se apresentacomo politicum, também acontece quanto à enaltecida neutralida<strong>de</strong>científica. Des<strong>de</strong> Pareto, o ceticismo positivista searranja com qualquer po<strong>de</strong>r vigente, inclusive o <strong>de</strong> Mussolini.Uma vez que toda teoria social está entrelaçada com a socieda<strong>de</strong>real, seguramente qualquer uma po<strong>de</strong> ser alvo <strong>de</strong>abuso i<strong>de</strong>ológico ou manipulação; mas o positivismo, comotoda tradição cético-nominalista, 1 presta-se especialmente àmanipulação i<strong>de</strong>ológica em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua in<strong>de</strong>terminação<strong>de</strong> conteúdo, seu procedimento or<strong>de</strong>nador, e finalmente apreferência pela certeza em face da verda<strong>de</strong>.A medida cientificista <strong>de</strong> todas as coisas, o fato comoaquele fixo, irredutível, em que o sujeito não <strong>de</strong>ve tocar, étomada <strong>de</strong> empréstimo ao mundo a ser constituído apenasmore scientifico a partir dos fatos e sua conexão formada conformepreceitos lógicos. O dado a que conduz a análise cientificista,o último fenômeno subjetivo postulado por um conhecimentocrítico, irredutível, constitui por sua vez a cópia<strong>de</strong>ficiente justamente daquela objetivida<strong>de</strong>, ali reduzida aosujeito. No espírito <strong>de</strong> uma imperturbável pretensão <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>,a sociologia não <strong>de</strong>ve se contentar com o merofato, somente na aparência o mais objetivo. Ali se conservaantii<strong>de</strong>alisticamente algo do conteúdo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> do i<strong>de</strong>alismo.A posição <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> objeto e sujeito é válidaaté o ponto em que o sujeito é objeto, <strong>de</strong> início no sentidoacentuado por Habermas <strong>de</strong> que a pesquisa sociológica épor sua vez pertinente à conexão objetiva que preten<strong>de</strong> investigar.2 Albert replica: "É sua intenção" — <strong>de</strong> Habermas— "<strong>de</strong>clarar o sadio entendimento humano, ou, numa ex-1 Vi<strong>de</strong> Max Horkheimer, "Montaigne e a função da 'Skepsis'" em Teoria Criptica, tomo II,loc. cit., p. 220 passem.2 Vi<strong>de</strong> Habermas, "Contra um racionalismo dividido ppio positivismo", em A Disputa doPositivismo.-— 145 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>pressão mais refinada, 'a hermenêutica natural do mundosocial' como sacrossanto? Caso contrário, em que consiste aparticularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu método? Em que medida nela 'a coisa'tem 'mais valor' quanto a 'seu próprio peso' do que nosmétodos usuais das ciências da realida<strong>de</strong>?" 1 Entretanto, <strong>de</strong>maneira alguma a teoria dialética suspen<strong>de</strong>, tal como outroraHegel, <strong>de</strong> modo artificial e dogmático, a crítica à assim <strong>de</strong>nominadaconsciência pré-científica. No congresso <strong>de</strong> sociologia<strong>de</strong> Frankfurt em 1968, Dahrendorf apostrofou ironicamenteos dialéticos: Eles sabem muito mais do que eu. Duvidaele do conhecimento <strong>de</strong> uma objetivida<strong>de</strong> social preexistente,uma vez que o social é em si mediatizado por categoriassubjetivas do entendimento. O predomínio do método,atacado pelos dialéticos, nada mais é do que reflexãoprogressiva da intentio recta, pela qual se realiza o progressoda ciência. Contudo, os dialéticos criticam justamente a criticadateoria do conhecimento, a intentio oblíqua, em sua própriaconseqüência. Nisto cobram todas as proibições em que0 cientificismo se aguçava até o recente <strong>de</strong>senvolvimento da"filosofia analítica", porque se realizam à custa do conhecimento.O conceito <strong>de</strong> coisa mesma não reanima, como preten<strong>de</strong>Albert, "<strong>de</strong>terminados preconceitos" ou mesmo a precedênciada "origem" espiritual em face do "rendimento", noque aliás o positivismo não é tão imponente na marcha dasociologia. A concepção popperiana citada por Albert, emconseqüência <strong>de</strong> que teoremas "po<strong>de</strong>m ser entendidos comotentativas <strong>de</strong> aclarar os traços estruturais da realida<strong>de</strong>", 2 nãodista tanto assim do conceito daquela coisa mesma. Poppernão renega, como a seu tempo fez Reichenbach, a tradiçãofilosófica. Critérios tais como o da "relevância" 3 ou da "forçaexplicativa", 4 que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> interpretar posteriormente1 Albert, "O mito da razão total", ibid., p. 204.2 Albert "Pelas costas do positivismo?", ibid., p. 285, nota 41: Vi<strong>de</strong> também Popper, "Oestabelecimento <strong>de</strong> objetivos pata a ciência experimental", em Ratio, ano 1,1957; reimpressoem "Theorie und Realitaet", editado por Hans Albert, Tübingen, 1964.3 Popper, "A lógica das ciências sociais", em A Disputa do Positivismo..., p. 114.4 id.— 146 —


ADORNOnum sentido aproximativo <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ciências naturais,diriam pouco se por trás não figurasse implicitamenteum conceito <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que muitos positivistas, como Kõnige Schelsky na Alemanha, prefeririam eliminar. A mentalida<strong>de</strong>fechada a toda estrutura objetiva da socieda<strong>de</strong> estremeceem face do objeto que transformou em tabu. Aomesmo tempo que os cientificistas caricaturizam seus opositorescomo metafísicos sonhadores, eles próprios <strong>de</strong>ixam<strong>de</strong> ser realistas. Técnicas operacionalmente i<strong>de</strong>ais distanciamseforçosamente das situações em que se situa o que <strong>de</strong>veser investigado; isto po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>monstrado sobretudo naexperiência sócio-psicológica, mas também na suposta melhorados índices. A objetivida<strong>de</strong> a que propriamente <strong>de</strong>veriaservir a afinação metodológica, o evitar fontes <strong>de</strong> erro, torna-sealgo secundário, que o i<strong>de</strong>al operacional piedosamentearrasta consigo; o que era central transforma-se em periférico.Dominando a vonta<strong>de</strong> metodológica, <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> maiorreflexão, <strong>de</strong> tornar problemas "falseáveis" univocamente <strong>de</strong>cidíveis,a ciência se atrofia em alternativas que emergemsomente graças à supressão <strong>de</strong> variables, abstraindo portantodo objeto, e assim transformando-o. De acordo com este esquema,o empirismo metodológico opera em direção opostaà experiência.Que sem referência à totalida<strong>de</strong>, ao sistema global realporém intraduzível em imediatez tangível, nada <strong>de</strong> socialpo<strong>de</strong> ser pensado, que no entanto só po<strong>de</strong> ser conhecidoenquanto apreendido no singular fático, constitui o que nasociologia confere peso à interpretação. Ela constitui a fisionomiasocial do que se manifesta. Interpretar significa, emprimeiro lugar, perceber a totalida<strong>de</strong> nos traços dos dadossociais. A idéia da "aproximação antecipada" à totalida<strong>de</strong>,que eventualmente um positivismo muito liberal aprovaria,não é suficiente: à lembrança <strong>de</strong> Kant, ela visa a totalida<strong>de</strong>como algo infinitamente abandonado e adiado, porém a serpreenchido <strong>de</strong> princípio por dados, sem consi<strong>de</strong>rar salto qualitativoentre essência e fenômeno na socieda<strong>de</strong>. A análise— 147 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>fisionômica lhe faz mais justiça, já que apresenta a totalida<strong>de</strong>que "é" e não uma simples síntese <strong>de</strong> operações lógicas, fazendo-asvaler em sua relação ambígua aos fatos que <strong>de</strong>cifra.Os fatos não são idênticos com ela, mas ela não existe alémdos fatos. Um conhecimento social que não começa com avisada fisionômica empobrece <strong>de</strong> maneira insustentável. Possuicaráter canônico para ele o soupçon quanto ao fenômenocomo aparência. O conhecimento não po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ter nisto.Desdobrando as mediações do fenômeno e do que nelas seexpressa, a interpretação freqüentemente se diferencia e seretifica <strong>de</strong> modo radical. Um conhecimento digno do homem,à diferença do registro obtuso, que em verda<strong>de</strong> é pré-científico,tem seu início ao ser aguçado o sentido para o queem todo fenômeno social se dá a conhecer: se algo po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>finido como o órgão da experiência científica, então seráisto. A sociologia estabelecida expulsa este sentido: don<strong>de</strong> asua esterilida<strong>de</strong>. Mas on<strong>de</strong> se encontra <strong>de</strong>senvolvido, há queser disciplinado. Sua disciplina requer tanto um alto grau<strong>de</strong> exatidão da observação empírica quanto também a forçada teoria que inspira a interpretação, e graças a esta se modifica.Muitos cientificistas concordariam generosamentecom isto, sem que isto implique o <strong>de</strong>saparecimento da divergência.Constitui uma das concepções possíveis. O positivismoencara a sociologia como uma ciência entre as outras,e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Comte, consi<strong>de</strong>ra os consagrados métodos da ciênciamais antiga, sobretudo a da natureza, como aplicáveis à sociologia.E aqui que está contido o engano propriamente dito.Pois a sociologia possui um caráter duplo: nela o sujeito <strong>de</strong>todo conhecimento, justamente a socieda<strong>de</strong>, o portador dauniversalida<strong>de</strong> lógica, é simultaneamente objeto. Subjetivamente,a socieda<strong>de</strong>, por remeter aos homens que a formam,e inclusive seus princípios <strong>de</strong> organização, remetendo à consciênciasubjetiva e sua forma <strong>de</strong> abstração mais universal, alógica, é algo essencialmente intersubjetiva. Ela é objetiva,porque na base <strong>de</strong> sua estrutura <strong>de</strong> apoio, sua própria subjetivida<strong>de</strong>não lhe é transparente, já que não possui sujeito— 148 —


ADORNOglobal e impe<strong>de</strong> a instauração <strong>de</strong>ste em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua organização.Um tal caráter duplo, porém, altera a relação <strong>de</strong>um conhecimento científico-social ao seu objeto, e disto opositivismo não toma notícia. Ele trata sem mais a socieda<strong>de</strong>,potencialmente o sujeito que se auto<strong>de</strong>termina, como se fosseum objeto a ser <strong>de</strong>terminado a partir do exterior. Literalmente,ele transforma em objeto, o que por sua vez causa aobjetivação e a partir da qual a objetivação há que ser explicada.Uma tal substituição <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> como sujeito, porsocieda<strong>de</strong> como objeto, constitui a consciência coisificada dasociologia. Desconsi<strong>de</strong>ra que, com a mudança em direção aosujeito como algo objetivamente oposto e estranho a si mesmo,necessariamente o sujeito consi<strong>de</strong>rado, se quisermos,precisamente o objeto da sociologia, se transforma em algooutro. Embora é certo que a alteração mediante o enfoquedo conhecimento tenha seu fundamentum in re. Por sua vez,a tendência evolutiva da socieda<strong>de</strong> corre em direção à coisificação;o que favorece a adaequatio a uma consciência coisificadadaquela. Mas a verda<strong>de</strong> exige a inclusão <strong>de</strong>ste quidpro quo. A socieda<strong>de</strong> como sujeito e a socieda<strong>de</strong> como objetosão a mesma coisa e também não são a mesma coisa. Osatos objetivadores da socieda<strong>de</strong> eliminam na socieda<strong>de</strong> o quefaz com que não seja apenas objeto, o que lança sua sombrapor sobre toda a objetivida<strong>de</strong> cientificista. Reconhecer isto éo mais difícil para uma doutrina cuja norma máxima é aausência <strong>de</strong> contraditorieda<strong>de</strong>. Eis aqui a diferença mais profundaentre uma teoria crítica da socieda<strong>de</strong> e o que na linguagemcorrente é <strong>de</strong>nominado sociologia: uma teoria crítica,apesar <strong>de</strong> toda experiência <strong>de</strong> coisificação, e mesmo justamenteao exteriorizar esta experiência, se orienta pela idéiada socieda<strong>de</strong> como sujeito, enquanto a sociologia aceita acoisificação, repetindo-a em seus métodos, per<strong>de</strong>ndo assima perspectiva em que a socieda<strong>de</strong> e sua lei unicamente serevelaram. Isto data regressivamente da pretensão <strong>de</strong> dominaçãoda sociologia anunciada por Comte, e que hoje se reproduzmais ou menos abertamente na convicção <strong>de</strong> que,— 149 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>por lhe ser possível o controle conseqüente <strong>de</strong> situações ecampos sociais singulares, a sociologia po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r seucontrole ao todo. Se uma tal transferência fosse <strong>de</strong> algummodo possível, se não <strong>de</strong>sprezasse grosseiramente as relações<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, em cuja realida<strong>de</strong> se mantém constitutiva, a socieda<strong>de</strong>totalmente controlada cientificamente permaneceriaobjeto, o da ciência, não emancipado como sempre. Mesmona racionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma condução científica dos negóciosda socieda<strong>de</strong> global, que se <strong>de</strong>sembaraçou aparentemente<strong>de</strong> todas as suas ca<strong>de</strong>iras, sobreviveu a dominação. A doscientistas se confundiu, mesmo contra sua vonta<strong>de</strong>, com osinteresses dos grupos po<strong>de</strong>rosos; uma tecnocracia dos sociólogosmanteria caráter elitista. Entre os momentos que precisampermanecer comuns à filosofia e à sociologia, evitandoque ambas <strong>de</strong>caiam — aquela à ausência <strong>de</strong> conteúdo, estaà ausência <strong>de</strong> conceito — <strong>de</strong>staca-se em primeiro lugar queem ambas resi<strong>de</strong> algo que não po<strong>de</strong> ser inteiramente convertidoem ciência. Aqui como ali, nada preten<strong>de</strong> ter expressãomuito literal, quer seja statement offact, quer seja a puravalida<strong>de</strong>. Este não-ser literal, uma peça <strong>de</strong> jogo segundoNietzsche, circunscreve o conceito <strong>de</strong> interpretação, a interpretarum ente sobre um não-ente. O não inteiramente literaltestemunha a tensa não i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> essência e fenômeno.O conhecimento enfático não cai no irracionalismo quandonão se <strong>de</strong>sliga da arte <strong>de</strong> modo absoluto. A adulta gozaçãocientificista acerca da "música dos pensamentos" apenas suplantao ranger das portas das estantes em que são guardadosos questionários, os ruídos do empreendimento <strong>de</strong> literalida<strong>de</strong>pura. Associa-se à experiente objeção ao solipsismo <strong>de</strong>um pensamento auto-satisfatório acerca da socieda<strong>de</strong>, quenem respeita o estado <strong>de</strong> coisas daquela nem preenche nelauma função útil. De qualquer maneira, há muitos indícios<strong>de</strong> que os estudantes <strong>de</strong> formação teórica, que possuem faropara a realida<strong>de</strong> e para o que a mantém conexa, tambémestão mais aptos a nela executar racionalmente as tarefasque lhes cabem, como o são os especialistas juramentados— 150 —


ADORNOpara quem o método vale antes <strong>de</strong> tudo. O tema solipsismo,contudo, inverte o estado <strong>de</strong> coisas. A dialética se satisfaztão pouco com o conceito subjetivo <strong>de</strong> razão quanto lhe serve<strong>de</strong> substrato o indivíduo, a que mesmo Max Weber pensaprecisar recorrer em sua <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> ação social; e é justamentenisto que repousa todo solipsismo. Tudo isto se encontra<strong>de</strong>tidamente explicitado nas publicações da escola <strong>de</strong>Frankfurt. A aparência <strong>de</strong> solipsismo produz a circunstâncianotória <strong>de</strong> que, na situação presente, unicamente o que nãose entusiasma com o prazer comunicativo generalizado dasociologia subjetiva rompe o anátema subjetivista. Algo distoparece manifestar-se na recente rebeldia da opinião públicaque reconhece como digno <strong>de</strong> crédito unicamente o que nãovisa, sob a forma <strong>de</strong> 'comunicação', os consumidores da culturaa serem seduzidos.O que soa como música dissonante aos ouvidos dospositivistas é o que não está inteiramente contido em estados<strong>de</strong> coisa, e que necessita da forma da linguagem. Quantomais estritamente esta se adapta aos estados <strong>de</strong> coisa, tantomais se distancia da mera significação e adota algo parecidoà expressão. Que a controvérsia do positivismo tenha atéagora permanecido infrutífera, <strong>de</strong>ve-se também em parte aque os conhecimentos dialéticos são tomados <strong>de</strong> modo excessivamenteliteral por parte <strong>de</strong> seus opositores; literalida<strong>de</strong>e precisão não significam o mesmo, antes são divergentes.Sem ruptura, e improprieda<strong>de</strong>, não existe conhecimento queseja mais do que repetição or<strong>de</strong>nadora. O fato <strong>de</strong> que aomesmo tempo não sacrifica a idéia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, tal como seriamuito mais <strong>de</strong> acordo com o positivismo conforme seus representantesmais conseqüentes, circunscreve uma contradiçãoessencial: o conhecimento, e isto <strong>de</strong> maneira alguma ocorreper acci<strong>de</strong>ns, constitui um exagero. Pois tão pouco comoalgo singular é 'verda<strong>de</strong>iro', mas, graças à sua mediação,também forma seu próprio outro, assim também o todo nãoé verda<strong>de</strong>iro. Sua permanência como inconciliável com o singularconstitui expressão <strong>de</strong> sua própria negativida<strong>de</strong>. A ver-— 151 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>da<strong>de</strong> é a articulação <strong>de</strong>sta relação. Antigamente ainda sabiadisto a gran<strong>de</strong> filosofia: a <strong>de</strong> Platão, que constitui a maiorpretensão pré-crítica <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, sabota incessantemente, soba forma <strong>de</strong> apresentação dos diálogos "aporéticos", esta pretensãotal como seria realizada literalmente; não seriam <strong>de</strong>scabidasespeculações que assim referissem igualmente a ironiasocrática. O pecado capital do i<strong>de</strong>alismo alemão, a sevingar atualmente por meio da crítica positivista àquele, foique iludiu a si e a seus seguidores através do páthos subjetivistada i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> plena com o objeto no conhecimentoabsoluto. Justamente assim a<strong>de</strong>ntrou o palco dos statementsoffact e das valida<strong>de</strong>s ferre à terre, em que é inevitavelmentebatido por uma ciência capaz <strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>monstrar a insuficiênciaprópria para seus <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ratos. O procedimento interpretativose <strong>de</strong>bilita no momento em que, aterrorizadopelo progresso das ciências singulares, afirma ser ele tambémciência como as outras. Nenhuma objeção a Hegel tem efeitomais estringidor do que a já expressa por Kierkegaard, <strong>de</strong>que aquele toma sua própria filosofia <strong>de</strong>masiado literalmente.Contudo, a interpretação tampouco é qualquer uma. Amediação se efetua entre o fenômeno e o seu conteúdo carente<strong>de</strong> interpretação pela história: o que aparece <strong>de</strong> essencial nofenômeno é aquilo por que veio a ser o que é, o que neleestava imobilizado e o que, no sofrimento <strong>de</strong> seu enrijecimento,origina o que unicamente vem a ser. A este imobilizado,a fenomenalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> segundo grau se dirige a visada<strong>de</strong> procedimento fisionômico. Sob a expressão "hermenêuticanatural do mundo social", 1 <strong>de</strong> Habermas, e alvo da censura<strong>de</strong> Albert, não há que pensar uma natureza primeira; massim a expressão que adquirem os processos do vir-a-ser social.Portanto, a interpretação também não <strong>de</strong>ve ser absolutizadaconforme o uso da invariância fenomenológica. Permaneceentrelaçada com o processo global dos conhecimen-1 Habermas, "Teoria analítica da ciência e dialética", 3rid., p. 158; Vi<strong>de</strong> também texto maisacima.— 152 —


ADORNOtos; segundo Habermas, "a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>stas idéias e in-terpretações das disposições <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> uma conexãoobjetiva da reprodução social...", proíbe "permanecer em umahermenêutica <strong>de</strong> interpretação subjetiva dos sentidos; umateoria <strong>de</strong> interpretação objetiva dos sentidos também precisadar conta daquele momento da coisificação, visado exclusivamentepelos procedimentos objetivadores". 1 A sociologiatem a ver apenas perifericamente com a relação meio-fimperseguida subjetivamente pelos agentes; tem a ver muitomais com as leis que se realizam através e contra tais intenções.A interpretação é o contrário da doação subjetiva <strong>de</strong>sentido pelo conhecedor ou pelo agente social. O conceito<strong>de</strong> uma tal doação <strong>de</strong> sentido induz à falsa conclusão afirmativa<strong>de</strong> que o processo social e a or<strong>de</strong>m social constituemalgo compreensível a partir do sujeito, próprio do sujeito,justificado e conciliado com o sujeito. Um conceito dialético<strong>de</strong> sentido não seria um correlato do entendimento weberiano<strong>de</strong> sentido, mas essência social que cunha os fenômenos,que neles se manifesta e se oculta. Ela <strong>de</strong>termina osfenômenos, e não uma lei geral no enten<strong>de</strong>r cientificista usual.Seu mo<strong>de</strong>lo seria algo já como a lei da ruína' <strong>de</strong> Marx, <strong>de</strong>duzidaa partir da tendência da queda das taxas <strong>de</strong> lucro,por mais irreconhecível que seja atualmente. Seus abrandamentoshaveriam <strong>de</strong> ser por sua vez <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong>la, comoesforços prescritos imanentes ao sistema, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar ou adiara tendência imanente própria do sistema. De maneira algumaé seguro que isto seja duradouramente possível; se não ocorresseque tais esforços acabariam por realizar a "lei da ruína"contra a sua própria vonta<strong>de</strong>. Legível é unicamente o momento<strong>de</strong> uma lenta ruína inflacionária.jO uso <strong>de</strong> categoria como totalida<strong>de</strong> e essência fortalece0 preconceito <strong>de</strong> que os dialéticos se ocupam do global <strong>de</strong>scompromissado,enquanto os positivistas se entretêm com1 ld„ íbid., p. 480.— 153 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong>talhes sólidos, que purificam os fatos <strong>de</strong> todo etéreo acréscimoconceituai. Ao hábito cientificista <strong>de</strong> estigmatizar a dialéticacomo teologia introduzida furtivamente, há que opora diferença do caráter social <strong>de</strong> sistema e o assim chamadopensamento globalizante. A socieda<strong>de</strong> é sistema como síntese<strong>de</strong> um diverso atomizado, como sinopse real, mas abstrata,<strong>de</strong> algo não reunido "organicamente", imediatamente. A relação<strong>de</strong> troca confere em ampla medida caráter mecânicoao sistema: é disposta objetivamente sobre seus elementos,<strong>de</strong> modo absolutamente diverso <strong>de</strong> como figura no conceito<strong>de</strong> organismo, similar ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> uma teleologia divina,mediante a qual todo órgão teria sua função no todo, quelhe atribuiria sentido. A mesma conexão que perpetua a vida,simultaneamente a dilacera, e por isto já possui em si aquelealgo da morte em cuja direção se move sua dinâmica. Nacrítica à i<strong>de</strong>ologia globalizante e organizatória, a dialéticanão per<strong>de</strong> em agu<strong>de</strong>za dos positivistas. A não ontologizaçãodo conceito da totalida<strong>de</strong> social, a não admissão <strong>de</strong> ser porsua vez tornado num início que é em-si, constitui uma variantedo mesmo estado <strong>de</strong> coisas. Positivistas que atribuemisto à teoria dialética, tais como recentemente Scheuch, simplesmentea <strong>de</strong>sconhecem. O conceito <strong>de</strong> um início que éem-si, a dialética o aceita ainda menos do que o fazem ospositivistas. O télos do modo dialético <strong>de</strong> encarar a socieda<strong>de</strong>é contrário ao global. Apesar da reflexão sobre a totalida<strong>de</strong>,a dialética não proce<strong>de</strong> a partir do alto, mas trata <strong>de</strong> dominarteoricamente pelo seu procedimento a relação antinômica douniversal e do particular. Os cientificistas <strong>de</strong>sconfiam queos dialéticos sejam megalômanos: em vez <strong>de</strong> percorrerem ofinito em todas as direções, à viril maneira <strong>de</strong> Goethe, e realizaremas exigências do dia no que está ao alcance, <strong>de</strong>ram-sepor satisfeitos no <strong>de</strong>scompromissado infinito. Contudo, comomediação <strong>de</strong> todos os fatos sociais, a totalida<strong>de</strong> não é infinita,mas precisamente graças a seu caráter <strong>de</strong> sistema, é fechada<strong>de</strong> modo finito, ainda que não permita ser apresada. Se asgran<strong>de</strong>s categorias metafísicas eram projeções da experiência— 154 —


ADORNOsocial mundana sobre o espírito, por sua vez socialmenteoriginado, é certo que também não conservam, uma vez restituídasà socieda<strong>de</strong>, a aparência do absoluto produzida poraquela projeção. Nenhum conhecimento social po<strong>de</strong> se atribuiro domínio do incondicionado. Sua crítica à filosofia tambémnão preten<strong>de</strong> que esta nela se dissolva sem vestígios.A consciência que se retrai no domínio do social liberta peloseu autoconhecimento em filosofia o que não se resolve semmais na socieda<strong>de</strong>. Contudo, quando se contrapõe ao conceitosocial <strong>de</strong> sistema como <strong>de</strong> algo objetivo, o fato <strong>de</strong> queele seculariza o conceito <strong>de</strong> sistema da metafísica, isto certamenteé verda<strong>de</strong>iro, porém se aplica a tudo, e portanto anada. Com igual direito po<strong>de</strong>r-se-ia repreen<strong>de</strong>r ao positivismoque seu conceito <strong>de</strong> consciência moral <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong>dúvida é secularização da verda<strong>de</strong> divina. A recriminação<strong>de</strong> criptoteologia se <strong>de</strong>tém a meio caminho. Os sistemas metafísicostinham projetado apologeticamente sobre o ser social<strong>de</strong> coação. Quem preten<strong>de</strong> se distanciar do sistema pela viado pensamento, precisa traduzi-lo da filosofia i<strong>de</strong>alista paraa realida<strong>de</strong> social, <strong>de</strong> que se encontrava abstraído. Destemodo o conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>, conservado na idéia do sistema<strong>de</strong>dutivo justamente por cientificistas como Popper, éconfrontado com o iluminismo; no que é <strong>de</strong>cidível o que háali <strong>de</strong> não verda<strong>de</strong>iro, mas também <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro.Não menos injusta é a recriminação da megalomania arespeito do conteúdo. A lógica <strong>de</strong> Hegel entendia a totalida<strong>de</strong>como aquilo que ela também é socialmente: nada previamenteor<strong>de</strong>nado ao singular, aos momentos, como dizia Hegel,mas pelo contrário, inseparável daqueles e <strong>de</strong> seu movimento.O concreto singular pesa mais à concepção dialéticado que à cientificista, que o fetichiza pela teoria do conhecimento,e trata como matéria-prima ou exemplo através daprática do conhecimento. O modo dialético <strong>de</strong> encarar a socieda<strong>de</strong>consi<strong>de</strong>ra mais a micrologia do que faz o positivista,que, apesar <strong>de</strong> in abstracto atribuir ao ente singular o primadosobre seu conceito, no seu modo <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r passa rapida-— 155 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>mente por isto munido <strong>de</strong> uma pressa atemporal, tal comoa realizada nos computadores. Porque o fenômeno singularencerra em si toda a socieda<strong>de</strong>, a micrologia e a mediaçãoconstituem contrapontos mútuos através da totalida<strong>de</strong>. Umacontribuição sobre o conflito social contemporâneo pretendiaesclarecer isto; 1 a antiga controvérsia com Benjamin acercada interpretação dialética <strong>de</strong> fenômenos sociais movimentava-seem torno da mesma questão: 2 o tratamento fisionômico<strong>de</strong> Benjamin era criticado como excessivamente imediato,<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> reflexão sobre a mediação social global. Estapo<strong>de</strong>ria lhe parecer suspeita <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alismo, mas sem ela, aconstrução materialista <strong>de</strong> fenômenos sociais se movimentaráclaudicante atrás da teoria. O empe<strong>de</strong>rnido nominalismo, querelega o conceito à aparência ou à abreviação, e apresentaos fatos como algo <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> conceito, in<strong>de</strong>terminado,no entendimento enfático, torna-se necessariamente abstratoem virtu<strong>de</strong> disto; a abstração constitui o corte irrefletido entre0 universal e o particular, e não a visão sobre o universalcomo sobre a <strong>de</strong>terminação do particular em si. Na medidaem que po<strong>de</strong> ser atribuída abstração ao método dialético,como, por exemplo, em face da <strong>de</strong>scrição sociográfica <strong>de</strong> dadossingulares, ela é ditada pelo objeto, pela constante igualda<strong>de</strong><strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, que não tolera nada qualitativamentediferente e retorna monotonamente através do <strong>de</strong>talhe. Todavia,os fenômenos singulares que expressam o universosão muito mais substanciais do que se fossem somente seusrepresentantes lógicos. De acordo com a ênfase sobre o singular,que por causa <strong>de</strong> sua universalida<strong>de</strong> imanente, elanão sacrifica à universalida<strong>de</strong> comparativa, a formulação dialética<strong>de</strong> leis sociais é mais concreta do ponto <strong>de</strong> vista histórico.A <strong>de</strong>terminação dialética do singular como algo simultaneamenteparticular e universal altera o conceito social1 Vi<strong>de</strong> Adorno e Ursula Jaerisch, "Notas acerca do conflito social contemporâneo", em Socieda<strong>de</strong>,Direito e Política; Neuwied e Berlim, 1968, pp. 1 ss.2 Vi<strong>de</strong> Walter Benjamin, Correspondência, Frankfurt, pp. 782 ss.— 156 —


ADORNO<strong>de</strong> lei. Já não mais <strong>de</strong>tém a forma do "sempre que... então"mas sim do "dado que... é preciso"; em princípio ela valeapenas sob a condição <strong>de</strong> não-liberda<strong>de</strong>, uma vez que osmomentos singulares em si já contêm uma <strong>de</strong>terminada conformida<strong>de</strong>a leis proveniente da estrutura social específica,e não apenas produto <strong>de</strong> sua síntese científica. Assim há quecompreen<strong>de</strong>r as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Habermas acerca das leisdo movimento histórico, no contexto da <strong>de</strong>terminação imanente-objetivado singular ele próprio. 1 A teoria dialética serecusa a simplesmente contrastar o conhecimento históricoe social como <strong>de</strong> algo individual, o conhecimento <strong>de</strong> leis,porque o pretensamente apenas individual — a individuaçãoé uma categoria social — encerra em si mesmo um particulare um universal: a necessária distinção <strong>de</strong> ambos já tem o caráter<strong>de</strong> falsa abstração. Mo<strong>de</strong>los do processo do universal e do particularsão tendências <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong>, taiscomo a tendência para a concentração, a superacumulação ea crise. De há muito a sociologia empírica percebeu o que per<strong>de</strong>em conteúdo específico <strong>de</strong>vido à generalização estatística. Freqüentementeaparece no <strong>de</strong>talhe algo <strong>de</strong>cisivo acerca do universal,que escapa à simples generalização.Don<strong>de</strong> a fundamental complementação <strong>de</strong> levantamentosestatísticos mediante os case studies. O objetivo, inclusive<strong>de</strong> métodos sociais quantitativos, seria o discernimento qualitativo;a quantificação não constitui um fim em si mesmomas um meio para tanto. Os estatísticos estão mais dispostosa reconhecê-lo, do que o é a lógica corrente das ciências sociais.O comportamento do pensar dialético em relação aosingular po<strong>de</strong> talvez ser assinalado da melhor maneira emoposição a uma formulação <strong>de</strong> Wittgenstein citada por Wellmer:"A proposição mais simples, a proposição elementar,afirma a subsistência <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> coisas". 2 A aparente1 Vi<strong>de</strong> Habermas, 'Teoria analítica da ciência e dialética", loc. cit., p. 163; Vi<strong>de</strong> também Adorno,"Soziologie und empirische Foischung" ("Sociologia e pesquisa empírica"), em A Disputado Positivismo..., p. 90.2 Wittgenstein, Tractatus, 4.21.— 157 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>evidência <strong>de</strong> que a análise lógica <strong>de</strong> proposições conduz aproposições elementares é tudo, menos evi<strong>de</strong>nte. Até mesmoWittgenstein ainda atribui ao Discours <strong>de</strong> La Métho<strong>de</strong> cartesianoo dogma segundo o qual o mais simples — qualquercoisa que isto represente para nós — é "mais verda<strong>de</strong>iro" doque o composto e por isto é <strong>de</strong> serventia a priori a reduçãodo complexo ao simples. De fato para os cientificistas a simplicida<strong>de</strong>constitui um critério <strong>de</strong> valor do conhecimento sócio-científico;assim ocorre, por exemplo, na quinta tese <strong>de</strong>Popper na exposição <strong>de</strong> Tübingen. 1 Através da associaçãocom a honestida<strong>de</strong>, a simplicida<strong>de</strong> se torna virtu<strong>de</strong> científica;impossível não ouvir a <strong>de</strong>claração concomitante <strong>de</strong> que ocomplicado brota da confusão ou presunção do observador.Contudo, se teoremas sociais precisam ser simples ou complexos,constitui objetivamente <strong>de</strong>cisão dos próprios objetos.A proposição popperiana: "O que existe efetivamentesão os problemas e as tradições científicas", 2 permanece bemrecuada em face do seu discernimento imediatamente anterior,segundo o qual uma assim chamada matéria científicaé um conglomerado <strong>de</strong> problemas e tentativas <strong>de</strong> solução.A segregação <strong>de</strong> problemas silenciosamente <strong>de</strong>limitadoscomo sendo "o único efetivamente real" do ponto <strong>de</strong> vistacientificista, instala como norma a simplificação. A ciência<strong>de</strong>ve se ocupar unicamente com questões passíveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão.Raramente o material as coloca <strong>de</strong> modo tão conclu<strong>de</strong>nte.No mesmo espírito, Popper <strong>de</strong>fine o método das ciênciassociais "como também das ciências naturais". Ele consistiriaem "ensaiar tentativas <strong>de</strong> solução para os seus problemasque formam seu ponto <strong>de</strong> partida. As soluções são propostase criticadas. Quando uma tentativa <strong>de</strong> solução não é acessívelà crítica com objetivida<strong>de</strong>, isto implica em ser eliminada comonão científica, embora talvez apenas provisoriamente". 3 O1 Vi<strong>de</strong> Popper, "A lógica das ciências sociais", loc. cit., p. 105.2 li., ibid., p. 108.3 Id., ibid., pp. 105 s.— 158 —


ADORNOconceito <strong>de</strong> problema aqui utilizado não é menos atomistado que o critério <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Wittgenstein. Postula-se quetudo que se situa legitimamente no âmbito da sociologia po<strong>de</strong>ser <strong>de</strong>composto em problemas singulares. Tomada rigorosamente,a tese popperiana torna-se, apesar do common sensea recomendá-la à primeira vista, uma censura inibidora dopensamento científico. Marx não sugeriu "a solução <strong>de</strong> umproblema" — no conceito <strong>de</strong> sugestão se imiscui a ficção doconsensus como fiador da verda<strong>de</strong>; e por isto O Capital nãoconstitui ciência social? No contexto da socieda<strong>de</strong>, a assimchamada solução <strong>de</strong> qualquer problema pressupõe aquelecontexto. A panacéia <strong>de</strong> trial and error se efetua à custa <strong>de</strong>momentos, após cuja supressão os problemas ficam arrumadosad usum scientiae e se convertem possivelmente em problemasaparentes. A teoria há que pensar também as conexõesque <strong>de</strong>saparecem <strong>de</strong>vido à <strong>de</strong>composição cartesiana emproblemas singulares, e mediatizá-la aos fatos. Mesmo quandouma tentativa <strong>de</strong> solução da "crítica com objetivida<strong>de</strong>",tal como a coloca Popper, não é sem mais acessível à refutação,o problema a partir do ponto <strong>de</strong> vista da coisa po<strong>de</strong>ser central. Se, como ensinou Marx, a socieda<strong>de</strong> capitalistaé ou não conduzida à sua ruína mediante sua dinâmica própria,não constitui somente uma questão racional, enquantoainda não manipulamos o questionar: constitui uma das maisimportantes questões <strong>de</strong> que a ciência social po<strong>de</strong> se ocupar.Mesmo as teses mais mo<strong>de</strong>stas, e portanto mais convincentes,do cientificismo sócio-científico, <strong>de</strong>slizam por sobre os problemasverda<strong>de</strong>iramente mais difíceis, logo que tratam doconceito <strong>de</strong> problema. Conceitos como o <strong>de</strong> hipótese, e o <strong>de</strong>testabilida<strong>de</strong>, que lhe é subordinado, não admitem uma simplestransferência das ciências naturais às da socieda<strong>de</strong>. Oque não implica concordância com a i<strong>de</strong>ologia das ciênciasdo espírito, segundo a qual a dignida<strong>de</strong> superior do homemnão tolera qualquer quantificação. A socieda<strong>de</strong> dominantenão <strong>de</strong>spojou a si e aos homens, coagidos em seus membros,daquela dignida<strong>de</strong>, mas nunca permitiu que se convertesse— 159 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>num dos seres emancipados a que, conforme Kant, correspon<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong>. O que lhes suce<strong>de</strong> como história naturalprolongada, hoje como outrora, certamente não figura acimada lei dos gran<strong>de</strong>s números, que se impõe <strong>de</strong> maneira tãoconsternadora em análises <strong>de</strong> eleições. Porém é certo que aconexão possui em si ao menos uma configuração, seguramentecognoscível, diversa da encontrada na ciência da naturezamais antiga, don<strong>de</strong> se adotaram os mo<strong>de</strong>los da sociologiacientificista. Como relação entre homens, esta conexãoestá igualmente fundada neles, no modo <strong>de</strong> circunscrevê-lose constituí-los. Leis sociais são incomensuráveis parao conceito <strong>de</strong> hipótese. A confusão babilônica entre os positivistase os crítico-teóricos começa ali on<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> aquelesafirmarem tolerância em face da teoria, a <strong>de</strong>spojam, mediantetransformação, em hipóteses daquele momento <strong>de</strong> autonomiaque lhes confere a supremacia objetiva <strong>de</strong> sociais.Além disto, e Horkheimer foi o primeiro a assinalá-lo, fatossociais não previsíveis da mesma maneira que o são fatosdas ciências naturais no interior dos seus contínuos mais oumenos homogêneos. Entre a objetiva conformida<strong>de</strong> às leisda socieda<strong>de</strong>, conta-se seu caráter contraditório, e finalmentea sua irracionalida<strong>de</strong>. Cabe à teoria da socieda<strong>de</strong> refleti-la epossivelmente <strong>de</strong>rivá-la; mas não discuti-la através da excessivamentezelosa a<strong>de</strong>quação ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> prognósticos aserem confirmados ou refutados.De modo análogo, o conceito, igualmente proce<strong>de</strong>ntedas ciências naturais, <strong>de</strong> ratificação universal e quase <strong>de</strong>mocrática<strong>de</strong> operações do conhecimento e discernimentos daciência social, <strong>de</strong> maneira alguma é tão axiomático quantopreten<strong>de</strong> ser. Ignora a violência da consciência necessariamentefalsa, ela própria a ser criticamente perscrutada, quea socieda<strong>de</strong> erige sobre os seus; no tipo ambicioso do pesquisador<strong>de</strong> ciências sociais ela se encarna sob a figura temporalmentecorrespon<strong>de</strong>nte do espírito do mundo. Quem se<strong>de</strong>senvolveu tão inteiramente sob as condições da indústriacultural que estas se tornaram sua segunda natureza, <strong>de</strong> iní-— 160 —


ADORNOcio, não encontra aptidão nem vonta<strong>de</strong> para discernimentosválidos para sua função e estrutura social à maneira da açãoreflexa, e recusará tais discernimentos, apelando <strong>de</strong> preferênciajustamente à regra do jogo cientificista da ratificaçãouniversal. Passaram-se trinta anos até que a teoria crítica daindústria cultural se impusesse; ainda hoje numerosas instânciase agências procuram asfixiá-la, por ser ela prejudicialao negócio. O conhecimento da conformida<strong>de</strong> objetiva socialàs leis, sobretudo sua apresentação <strong>de</strong>scompromissada purae não diluída, <strong>de</strong> modo algum se me<strong>de</strong> pelo consensus omnium.Resistência à tendência global repressiva reserva-se apequenas minorias, ainda passíveis <strong>de</strong> recriminação por seapresentarem <strong>de</strong> maneira elitista. A ratificabilida<strong>de</strong> constituium potencial da humanida<strong>de</strong>, não presente agora, aqui, sobas circunstâncias vigentes. É bem verda<strong>de</strong> que o que um po<strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r, conforme a possibilida<strong>de</strong> também qualquer outropo<strong>de</strong> fazê-lo, pois no que está enten<strong>de</strong>ndo opera aquele todopelo qual também é posta a universalida<strong>de</strong>. Porém, para atualizaresta possibilida<strong>de</strong>, não é suficiente o apelo ao entendimentodos outros, tais como são, e nem mesmo à educação;possivelmente necessitar-se-ia da transformação daqueletodo que, <strong>de</strong> acordo com sua própria lei, hoje <strong>de</strong>sdobra menosa consciência do que a <strong>de</strong>forma. O postulado da simplicida<strong>de</strong>harmoniza com este tipo regressivo <strong>de</strong> sentido. Incapaz <strong>de</strong>operações do pensamento outras que as proce<strong>de</strong>m com inteiraperfeição mecânica, ele ainda sente orgulho quanto àsua integrida<strong>de</strong> intelectual. Nega espontaneamente a complexida<strong>de</strong>precisamente <strong>de</strong> relações sociais tais como indicadaspor termos, entrementes supersolicitados, como o sãoestranhamente 1 coisificação, funcionalida<strong>de</strong>, estrutura. O métodológico da redução a elementos a partir dos quais algosocial se constrói, elimina virtualmente contradições objetivas.Um acordo secreto vigora entre o elogio da vida simples1 Wittgenstein, Tractatus, 2.021.— 161 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>e a preferência antiintelectual pelo simples como o obtidopelo pensamento; a tendência direcional obriga sob juramentoo próprio pensamento à simplicida<strong>de</strong>. Contudo o conhecimentodas ciências sociais, que exprime a complexa constituiçãodo processo <strong>de</strong> produção e distribuição, é evi<strong>de</strong>ntementemais frutífero do que a <strong>de</strong>composição em elementossingulares da produção mediante levantamentos <strong>de</strong> fábricas,socieda<strong>de</strong>s isoladas, trabalhadores individuais e coisas parecidas;mais frutífera também do que a redução ao conceitouniversal <strong>de</strong> tais elementos, que <strong>de</strong> sua parte encontram seuvalor apenas na conexão estrutural mais complexa. Para sabero que é um operário, é preciso saber o que é a socieda<strong>de</strong>capitalista; por outro lado, esta também seguramente não é"mais elementar" do que os operários. Quando Wittgensteinfundamenta seu método com a proposição: "Os objetos formama substância do mundo, por isto não po<strong>de</strong>m ser compostos",1 com isto acompanha na ingenuida<strong>de</strong> histórica dopositivista, o racionalismo dogmático do século <strong>de</strong>zessete.Apesar <strong>de</strong> o cientificismo consi<strong>de</strong>rar as res, os objetos singulares,como sendo o que é única e verda<strong>de</strong>iramente, eleas <strong>de</strong>spoja em virtu<strong>de</strong> disto <strong>de</strong> tal modo <strong>de</strong> todas as suas<strong>de</strong>terminações, como simples superestrutura conceituai, queo único efetivamente real se lhe converte numa nulida<strong>de</strong> total,que então <strong>de</strong> fato não serve para nada mais do que comprovante<strong>de</strong> uma universalida<strong>de</strong> igualmente nula conformea crença nominalista.Os críticos positivistas da dialética exigem com insistênciaao menos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> procedimentos sociológicos que,embora não constituídos <strong>de</strong> acordo com as regras empiristasdo jogo, se revelam plenas <strong>de</strong> sentido; é certo que aqui haveriaque se alterar o "critério <strong>de</strong> sentido" assim <strong>de</strong>nominadopelo empirista. O In<strong>de</strong>x verborum prohibitorum requerido porOtto Neurath em nome do círculo <strong>de</strong> Viena estaria então1 Entfremdung; a se distinguir <strong>de</strong> Entãusserung, alienação. (N. do T.)— 162 —


ADORNOeliminado. Como mo<strong>de</strong>lo po<strong>de</strong> ser indicado o que seguramentenão se apresentava como ciência, a crítica da linguagem,exercitada durante <strong>de</strong>cênios por Karl Kraus, e que muitoimpressionou Wittgenstein. É introduzida <strong>de</strong> modo imanente,em gran<strong>de</strong> parte orientada pelas infrações jornalísticas àgramática. A crítica estética, entretanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início possuíasua dimensão social: a <strong>de</strong>vastação da linguagem constituíapara Kraus o mensageiro da <strong>de</strong>vastação real; já na PrimeiraGuerra via se instalarem as <strong>de</strong>formações e frases vazias cujogrito silencioso percebera <strong>de</strong> há muito. Este constitui o protótipo<strong>de</strong> um procedimento não verbal; o mui experienteKraus sabia que a língua, por mais que seja constituinte daexperiência, não cria a realida<strong>de</strong>. Pela sua absolutização, aanálise da linguagem se tornou para ele o espelho <strong>de</strong>formante<strong>de</strong> tendências reais, tanto como o meio em que se concretizouem segunda imediatez a sua crítica ao capitalismo. Os horroresda linguagem que configurava e cuja <strong>de</strong>sproporção emrelação aos reais é ressaltada <strong>de</strong> preferência por aqueles quequerem ocultar os reais, são excreções sociais, que aparecemoriginalmente nas palavras, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>struírem rispidamentea vida pretensamente normal da socieda<strong>de</strong> civil, em queamadureceram quase <strong>de</strong>spercebidamente, longe da observaçãocientífica corrente. A análise fisionômica da linguagem<strong>de</strong>senvolvida por Kraus possui, portanto, mais força <strong>de</strong>cifradoraacerca da socieda<strong>de</strong> do que resultados mormenteempírico-sociológicos, porque assinala sismograficamente a<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> que a ciência, movida por vã objetivida<strong>de</strong>, serecusa obstinadamente a tratar.As figuras da linguagem, citadas e apregoadas porKraus, parodiam e ultrapassam o que a research <strong>de</strong>ixa escaparsob a rubrica negligente <strong>de</strong>juicy quotes; a não-ciência <strong>de</strong> Krausenvergonha a ciência. A sociologia po<strong>de</strong> trazer mediações,<strong>de</strong>sprezadas por Kraus como abrandamentos <strong>de</strong> suas diagnoses,que apesar <strong>de</strong> tudo ainda se moviam claudicantes portrás da realida<strong>de</strong>; ele ainda estava vivo quando o jornal operáriosocialista <strong>de</strong> Viena assinalava as condições sociais que— 163 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>transformavam o jornalismo vienense naquilo vislumbradopor Kraus, e numa observação <strong>de</strong> História e Consciência <strong>de</strong>Classe Lukács reconhecia o tipo social do jornalista como extremodialético da coisificação: nele o caráter <strong>de</strong> mercadoriacobria o que em si é contrário à essência da mercadoria,<strong>de</strong>vorando-a, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reação primária, espontâneados sujeitos, que se ven<strong>de</strong> no mercado. A análise fisionômicada linguagem <strong>de</strong> Kraus não teria influenciado tão profundamentea ciência e filosofia da história, <strong>de</strong>sprovida do conteúdo<strong>de</strong> verda<strong>de</strong> das experiências portadoras, relegadas comaltivez subalterna pelas corporações como simples arte. 1 Asanálises obtidas micrologicamente por Kraus <strong>de</strong> maneira algumasão tão "<strong>de</strong>sligadas" da ciência, como esta <strong>de</strong>sejariaque fosse. De modo específico suas teses <strong>de</strong> análises da linguagemacerca da mentalida<strong>de</strong> do commis — que passa aser posteriormente, o empregado — <strong>de</strong>veriam se encontrarcomo norma neobárbara com aspectos <strong>de</strong> sociologia da culturada doutrina weberiana da irrupção da dominação burocráticae do <strong>de</strong>scenso cultural assim explicado. A referênciarígida das análises <strong>de</strong> Kraus à linguagem e sua objetivida<strong>de</strong>as conduz além do imediata e automaticamente referido aca-1 O uso positivista do conceito arte requer uma análise critica. Aos positivistas serve <strong>de</strong>lixeira para tudo que é excluído pelo conceito limitado <strong>de</strong> ciência, que, por tomar muiprazerosamente a vida espiritual como fato, precisa reconhecer que a vida espiritual nãose esgota naquilo que ele tolera. No conceito positivista <strong>de</strong> arte, acentua-se a pretensalivre invenção <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> fictícia. Esta sempre foi secundária nas obras <strong>de</strong> arte, ena pintura e literatura <strong>de</strong> hoje está completamente recuada. Como complemento disto,não se dá a importância <strong>de</strong>vida à participação da arte no conhecimento; ou então se arecusa <strong>de</strong> antemão, conforme critérios científicos hipostasiados: do essencial que a artepo<strong>de</strong> exprimir e que escapa i ciência, pelo que aquela <strong>de</strong>ve pagar o seu preço. A se atertão estritamente a estados <strong>de</strong> coisa dados, tal como o positivismo implica, haveria quefazê-lo também em relação à arte. Assim ela não <strong>de</strong>veria ser situada como negação abstratada ciência. Raras vezes o rigorismo dos positivistas chega ao ponto <strong>de</strong> proibirem seriamentea arte, por eles tratada en canaille e <strong>de</strong> que revelam tão pouco conhecimento, como aliásseria conseqüente. Responsável por isto é sua posição <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> não crítica, namaioria das vezes favorável à indústria cultural; tal como Schiller, consi<strong>de</strong>ram a arte ingenuamenteum reino da liberda<strong>de</strong>. Se bem que não o façam completamente: muitas vezesse comportam <strong>de</strong> modo hostil em relação à arte mo<strong>de</strong>rna radical, que se afasta do realismofigurativo; mesmo o que não é científico é medido secretamente conforme mo<strong>de</strong>los científicos,tais como o da efetivida<strong>de</strong> ou até mesmo do figurativo, <strong>de</strong> estranha configuraçãona doutrina da ciência <strong>de</strong> Wittgenstein. Tanto aqui como ali, se automatiza neles o gestodo "isto eu não entendo". O cerne da hostilida<strong>de</strong> à arte e à teoria, no fundo, é idêntico.— 164 —


ADORNOso <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> reação simplesmente subjetivas. A partir <strong>de</strong>fenômenos singulares, extrapolam o todo, a cujo respeito auniversalida<strong>de</strong> comparativa é impotente e que no começoda análise <strong>de</strong> Kraus é experimentado como preexistente. Suaobra po<strong>de</strong> não ser ciência, mas para fazer jus a este nome,uma ciência <strong>de</strong>veria ser como ela. — A teoria <strong>de</strong> Freud nafase <strong>de</strong> sua expansão foi proscrita por Kraus. Apesar distoe apesar da mentalida<strong>de</strong> positivista própria <strong>de</strong> Freud, elaestá tão atravessada em face da ciência estabelecida quantoaquele. Desenvolvida a partir <strong>de</strong> um número relativamentepequeno <strong>de</strong> casos singulares, da primeira à última proposiçãolhe correspon<strong>de</strong>ria segundo o sistema <strong>de</strong> regras cientificistaso veredito <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> uma falsa generalização. Sema sua produtivida<strong>de</strong> para o entendimento <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> comportamentosocial, sobretudo o do "cimento" da socieda<strong>de</strong>,não seria possível imaginar contudo o que po<strong>de</strong> ser contabilizadocomo progresso <strong>de</strong> fato da sociologia durante os últimos<strong>de</strong>cênios. Ela, que por motivos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m complexa provocou0 menosprezo da ciência estabelecida — costume que a psiquiatriaainda <strong>de</strong>tém —, forneceu hipóteses intracientíficas praticáveispara a explicação, doutro modo inexplicável, <strong>de</strong> quea predominante maioria dos homens suporta relações <strong>de</strong> dominação,se i<strong>de</strong>ntifica com elas e por elas se <strong>de</strong>ixa induzir aatitu<strong>de</strong>s irracionais, cuja contraditorieda<strong>de</strong> quanto aos maissimples interesses <strong>de</strong> sua autoconservação é evi<strong>de</strong>nte. Aliás, éduvidoso que pela transformação da psicanálise em hipótesesse faça justiça ao seú tipo <strong>de</strong> conhecimento. Sua utilização emprocessos <strong>de</strong> levantamento se dá à custa daquele aprofundamentono <strong>de</strong>talhe a que <strong>de</strong>ve sua riqueza em conhecimentosocial novo, apesar <strong>de</strong> ela própria almejar uma conformida<strong>de</strong>a leis gerais <strong>de</strong> acordo com o esquema da teoria tradicional.Albert parece conciliador diante <strong>de</strong> tais mo<strong>de</strong>los. 1 Mas acontrovérsia propriamente se oculta em seu conceito da com-1 Albert, "O mito da razão total", toe. cit., p. 207.— 165 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> princípio. Se um pensador sociológico observarepetidamente nas estações do metrô <strong>de</strong> Nova York quedos luminosos <strong>de</strong>ntes alvos <strong>de</strong> uma belda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cartaz, um seencontra rabiscado <strong>de</strong> preto, extrairá disto conclusões como a<strong>de</strong> que o glamour da indústria cultural, como simples satisfaçãocompensatória, pela qual o espectador se sente previamenteenganado, <strong>de</strong>sperta ao mesmo tempo a agressão <strong>de</strong>ste último.De acordo com o princípio epistemológico, não foi <strong>de</strong> outromodo que Freud construiu seus teoremas. Dificilmente tais extrapolaçõessão comprováveis do ponto <strong>de</strong> vista empirista, anão ser que se imaginem experimentos particularmente engenhosos.Contudo, tais observações po<strong>de</strong>m se cristalizar em estruturassódo-psicológicas do pensamento, que então, numcontexto alterado e con<strong>de</strong>nsado em itens, tornam-se novamenteacessíveis a métodos clínicos e <strong>de</strong> questionário. Se, em facedisto, os positivistas insistem em que os dialéticos, em oposiçãoa eles, não são capazes <strong>de</strong> indicar regras vinculadoras do comportamentodo conhecimento sociológico, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo por isto oaperçu, então o postulado supõe aquela separação estrita entre coisae método, alvo do ataque da dialética. Quem tendonasse aconchegarà estrutura <strong>de</strong> seu objeto, pensando-o como móvel em si,não dispõe <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> procedimento in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>le.Como contrapartida à tese geral positivista da verificabilida<strong>de</strong>do sentido, seja citado um mo<strong>de</strong>lo exposto no trabalho<strong>de</strong> sociologia da música do autor; não porque superestimea sua dignida<strong>de</strong>, mas porque naturalmente um sociólogocompreen<strong>de</strong> o intricar <strong>de</strong> motivos materiais e metódicosda melhor maneira em suas próprias pesquisas. Notrabalho "Sobre o jazz" publicado na Zeitschrift fuer Sozialforschung,em 1936, e reimpresso nos Moments Musicaux, utilizou-seo conceito <strong>de</strong> um "sujeito do jazz", uma imagem doeu que se apresenta, em geral naquele tipo <strong>de</strong> música; o jazzseria uma realização simbólica, em que este sujeito do jazzfracassa ante exigências coletivas, representadas pelo ritmofundamental, tropeçando, "caindo fora", porém como algoque cai fora revelando-se numa espécie <strong>de</strong> ritual, como algo— 166 —


ADORNOigual a todos os outros impotentes e que, por sua auto-supressão,é integrado no coletivo. Nem o sujeito do jazz permiteser assinalado com proposições protocolares, nem o simbolismoda realização po<strong>de</strong> ser reduzido em pleno rigor adados sensíveis. Apesar disto, a construção que explica oesmerado idioma do jazz, cujos estereótipos aguardam tal<strong>de</strong>cifração à maneira <strong>de</strong> uma escrita em código, dificilmenteé <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> sentido. Para explicar o âmago do fenômenodo jazz, aquilo que significa socialmente, ela será <strong>de</strong> maiorutilida<strong>de</strong> do que levantamentos acerca das opiniões sobre ojazz, <strong>de</strong> diferentes grupos etários e da população, mesmoquando baseados em sólidas proposições protocolares taiscomo as afirmações originais <strong>de</strong> participantes <strong>de</strong> amostragemprévia. Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>cidir acerca da irreconciliabilida<strong>de</strong> daoposição entre posições e critérios, apenas feitas insistentestentativas <strong>de</strong> transpor teoremas <strong>de</strong>ste tipo em projetos empíricos<strong>de</strong> pesquisa. Até o momento isto foi pouco atraenteao social research, embora dificilmente se possa negar o possívelganho em discernimentos conclu<strong>de</strong>ntes. Sem entregarsea maus compromissos, saltam à vista critérios <strong>de</strong> sentidopassíveis <strong>de</strong> tais interpretações: assim, por exemplo, extrapolaçõesda análise tecnológica <strong>de</strong> um fenômeno <strong>de</strong> cultura<strong>de</strong> massà — o que está em jogo na teoria do sujeito do jazz— ou a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vinculação dos teoremas com outrosfenômenos mais próximos aos critérios usuais, tais como ocloum excêntrico e <strong>de</strong>terminados tipos mais antigos do cinema.Em todo caso, o pretendido por uma tese como a dosujeito do jazz como portador latente <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> músicaligeira é inteligível mesmo quando não verificado oufalseado pelas reações <strong>de</strong> ouvintes <strong>de</strong> jazz; reações subjetivas<strong>de</strong> maneira alguma precisam coincidir com o conteúdo <strong>de</strong>termináveldos fenômenos espirituais a que se reage. Há quecitar os momentos que motivam a construção i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> umsujeito do jazz; e isso se tentou, embora <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>ficiente,no antigo texto sobre o jazz. Como critério evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sentido<strong>de</strong>staca-se e até que ponto um teorema revela conexões— 167 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>que sem ele permaneceriam ocultas; se por seu intermédiose esclarecem alternadamente aspectos díspares do mesmofenômeno. A construção po<strong>de</strong> recorrer a experiências sociaismuito abrangentes, como a da integração da socieda<strong>de</strong> emsua fase monopolista às expensas e através dos indivíduosvirtualmente impotentes. Num estudo posterior sobre as"óperas <strong>de</strong> sabonete" — uma transmissão seriada para donas<strong>de</strong> casa, então muito popular no rádio norte-americano —Herta Herzog aplicou a fórmula, muito similar à teoria dojazz, getting into trouble and out of it a uma content analysisempírica conforme os critérios usuais, e obteve resultadosanálogos. Se a ampliação intrapositivista do assim chamadocritério <strong>de</strong> verificabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal maneira que não se restrinjaa observações a serem verificadas, mas inclua proposiçõespara as quais é possível produzir condições objetivas <strong>de</strong> verificação,1 cria espaço para os mo<strong>de</strong>los referidos, ou se a verificabilida<strong>de</strong>daquelas proposições, em certas circunstânciasexcessivamente indiretas e sobrecarregadas por variáveis suplementares,continua a torná-las insuportáveis aos positivistas,constitui assunto a respeito do qual eles próprios <strong>de</strong>vemse manifestar. À sociologia caberia analisar quais problemaspermitem tratamento empírico a<strong>de</strong>quado, e quais não0 permitem sem sacrifício <strong>de</strong> sentido; não é possível um julgamentoestritamente a priori a respeito. Cabe supor umaruptura entre a pesquisa empírica objetivamente realizada ea metodologia positivista. Que esta até hoje tenha sido tãopouco produtiva para a pesquisa sociológica, inclusive sobsua forma <strong>de</strong> "filosofia analítica", teria como causa que napesquisa, e às vezes por puras consi<strong>de</strong>rações pragmáticas, ointeresse pela coisa acaba se firmando contra a obsessão metodológica;antes seria preciso salvar a ciência viva, do quea filosofia que nela tem suas origens e em seguida tencionatutelá-la. Haveria que se perguntar, unicamente, se a escala-F1 Vi<strong>de</strong> Wellmer, loc. cit., p. 15.— 168 —


ADORNOda authoritarian personality a operar com métodos empíricos,com todas as suas <strong>de</strong>ficiências, po<strong>de</strong>ria ter sido introduzidae aperfeiçoada se <strong>de</strong> início tivesse sido esboçada conformeo critério positivista da escala-Gutman. A expressão daqueleprofessor acadêmico: "Os senhores estão aqui para fazer pesquisae não para pensar", constitui a mediação entre o carátersubalterno <strong>de</strong> inumeráveis levantamentos sócio-científicos esua posição social. O espírito que <strong>de</strong>scuida o quê em benefíciodo como, ou o objetivo do conhecimento em benefício dosmeios do conhecimento, ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>teriorar-se a si mesmo.Engrenagem heterônoma, sacrifica no maquinário toda a liberda<strong>de</strong>.Através da racionalização torna-se <strong>de</strong>sespiritualizado.1 Um pensamento a serviço do funcionalismo converte-senum pensamento <strong>de</strong> funcionários em si. Virtualmente0 espírito <strong>de</strong>sespiritualizado <strong>de</strong>veria se conduzir ad absurdum,por fracassar ante suas próprias tarefas pragmáticas. A difamaçãoda fantasia, a impotência <strong>de</strong> representar o que aindanão é, transformam-se em areia na engrenagem do aparelho,logo que se percebem em confronto com fenômenos não previstosem seus esquemas. Ao <strong>de</strong>samparo dos americanos naguerrilha vietnamita, contribui sem dúvida o que ali <strong>de</strong>nominambrass. Generais burocráticos conduzem uma estratégiacalculista, que não po<strong>de</strong> antecipar a tática <strong>de</strong> Giap, irracional<strong>de</strong> acordo com suas normas; a condução científica dos negócios,em que se converteu a condução da guerra, torna-seuma <strong>de</strong>svantagem militar. Aliás, socialmente a proibição dafantasia se harmoniza da melhor maneira com a estática social1 No ápice do racionalismo filosófico, Pascal distingue com ênfase dois tipos <strong>de</strong> espírito, oesprit <strong>de</strong> géametris e o esprit <strong>de</strong> finesse. A crer no discernimento antecipador do gran<strong>de</strong>matemático, ambos raramente se apresentam juntos na mesma pessoa, mas são perfeitamenteconciliáveis. No início <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então não encontrou resistência,Pascal vislumbrou a parcela das forças produtivas intelectuais que caía vítimado processo <strong>de</strong> quantificação, concebendo o entendimento humano sadio, "pré-cienlífico"como ressource, tão útil ao espírito da matemática, como inversamente. A coisificação daciência nós trezentos anos seguintes suprimiu uma tal interação; o esprit <strong>de</strong> finesse se encontra<strong>de</strong>squalificado; o simples fato <strong>de</strong> que o termo é vertido na tradução <strong>de</strong> Wasmuth como"espírito <strong>de</strong> engenhosida<strong>de</strong>" revela tanto o crescimento raquítico do último, como a <strong>de</strong>cadênciada finesse como o momento qualitativo da raí -ralida<strong>de</strong>.— 169 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>ao se <strong>de</strong>linear, apesar <strong>de</strong> todas as afirmações em contrário,0 retrocesso da expansão capitalista. Torna-se igualmente supérfluoo que <strong>de</strong> acordo com a própria constituição, o quepor sua vez prejudica os interesses do capital, que, para semanter, precisa se expandir. Quem se comporta em conformida<strong>de</strong>com a máxima safety first corre o risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>rtudo, microcosmo do sistema dominante, cuja estagnação éproduzida tanto pelas situações <strong>de</strong> perigo em torno, comopelas <strong>de</strong>formações, que são imanentes ao progresso.Valeria a pena escrever uma história espiritual da fantasia,o que está propriamente em jogo nas proibições positivistas.No século <strong>de</strong>zoito, tanto em Saint-Simon como noDiscours Préliminaire <strong>de</strong> d'Alembert, ela é contada entre otrabalho produtivo, em conjunto com a arte, participa daidéia do <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento das forças produtivas; como inimigoda metafísica, Comte, cuja sociologia se reverte nummodo apologético-estático, é o primeiro inimigo da fantasia.Sua difamação, ou repressão num campo espacial da divisãodo trabalho, constitui um fenômeno originário da regressãodo espírito burguês, mas não como engano evitável, e simno curso <strong>de</strong> uma fatalida<strong>de</strong> que acopla com aquele tabu arazão instrumental <strong>de</strong> que a socieda<strong>de</strong> necessita. Que a fantasiaainda seja tolerada apenas como coisificada, isto é, opostaabstratamente à realida<strong>de</strong>, pesa sobre a arte não menosque sobre a ciência; <strong>de</strong>sesperada, a legítima arte procura saldara hipoteca. A fantasia não é tanto inventar livremente,como operar espiritualmente sem o equivalente <strong>de</strong> uma faticida<strong>de</strong>urgentemente cumprida. Justamente isto é recusadopela doutrina positivista do assim chamado critério <strong>de</strong> sentido.Assim, num modo inteiramente formal, pelo famosopostulado da clareza: "Tudo o que po<strong>de</strong> ser pensado, po<strong>de</strong>ser pensado claramente. Tudo o que se <strong>de</strong>ixa exprimir, po<strong>de</strong>ser expresso claramente". 1 Mas tudo que não é resolvido pe-1 Wittgenstein, Tractatus, 4116.— 170 —


ADORNOlos sentidos, mantém uma área <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação; nenhumaabstração consegue ser inteiramente clara, qualquer uma tambémé imprecisa, graças à multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possíveis conteúdos.Além disto, surpreen<strong>de</strong> o apriorismo da tese da filosofiada linguagem <strong>de</strong> Wittgenstein. Um conhecimento queé tão livre <strong>de</strong> preconceitos, como preten<strong>de</strong> ser o positivismo,teria que contar com estados <strong>de</strong> coisas que em si são tudo,menos claros, que em si são confusos. Nada garante quepermitem expressão clara. A exigência disto, ou antes, <strong>de</strong>que a expressão precisa ser rigorosamente conforme à coisa,é legítima. Contudo, é possível satisfazê-la apenas gradativamente,não mediante uma imediatez que espera da línguaunicamente uma visão estranha da linguagem, na medidaem que não consi<strong>de</strong>ra dogmaticamente estabelecida a prerrogativado instrumento do conhecimento até no âmbito darelação sujeito-objeto, em conformida<strong>de</strong> com a doutrina cartesianada clara et distincta perceptio. Tão seguramente comoé estruturado o objeto da sociologia, a socieda<strong>de</strong> contemporânea,assim indubitavelmente ela porta traços inconciliáveiscom sua pretensão imanente <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>. Quando muito,estes levam ao esforço <strong>de</strong> pensar claramente o que nãoé claro; mas isto não po<strong>de</strong> ser convertido em critério da coisamesma. Wittgenstein seria o último a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> perceber oabismai, se o pensamento <strong>de</strong> algo que em si não é claroconsegue ser claro para si. Por último, novas experiências,ainda em formação, escarnecem no interior da ciência socialdo critério <strong>de</strong> clareza; medi-las agora e aqui, <strong>de</strong> acordo comeste, seria imobilizar a experiência ainda titubeante. A clarezaconstitui um momento no processo do conhecimento, e nãosua referência única e total. A formulação wittgensteineanaobscurece o horizonte à expressão mediatizada, complexa,em constelações do que não po<strong>de</strong> ser expresso imediatamentee com clareza. Nisto seu comportamento próprio era bemmais flexível do que a sua palavra; assim, por exemplo, eleescrevia a Ludwig Ficker, que havia transmitido a GeorgeTrakl uma contribuição doada por Wittgenstein, que apesar— 171 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong><strong>de</strong> não enten<strong>de</strong>r as poesias <strong>de</strong> Trakl, estava convencido <strong>de</strong>sua qualida<strong>de</strong>. Uma vez que o meio da poesia é a linguagemem geral, e não unicamente da ciência, ele confirma involuntariamenteque é possível expressar o que não é possívelexpressar; um tal paradoxo era pouco estranho aos seus hábitos<strong>de</strong> pensamento. Retrair-se diante disso, na irrevogáveldicotomia <strong>de</strong> conhecimento e poesia, seria uma simples fuga.A arte constitui um conhecimento sui generis; precisamentena poesia é enfática a linguagem, sobre o que inci<strong>de</strong> todo oacento da doutrina da ciência <strong>de</strong> Wittgenstein.A hipótese da clareza, como momento do conhecimento,0 cânone do conhecimento por Wittgenstein coli<strong>de</strong> com outrosteoremas fundamentais seus. A sua formulação: "O mundoé tudo o que é o caso", <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então dogma do positivismo,é em si tão ambígua que não é suficiente como "critério <strong>de</strong>sentido", <strong>de</strong> acordo com o próprio postulado <strong>de</strong> clareza <strong>de</strong>Wittgenstein. Sua invulnerabilida<strong>de</strong> aparente e sua ambigüida<strong>de</strong>encontram-se intimamente unidas: a proposição possuina forma da linguagem uma couraça que impe<strong>de</strong> a fixação<strong>de</strong> seu conteúdo. Ser "o caso" po<strong>de</strong> <strong>de</strong> um lado significarser aí objetivamente, no sentido do ente da filosofia, tà ónta,mas também valida<strong>de</strong> lógica; "é o caso" que duas vezes doissão quatro. Assim o princípio fundamental dos positivistasoculta o conflito entre empirismo e logicismo, também nãosolucionado por eles, e que em verda<strong>de</strong> percorre toda a tradiçãofilosófica, introduzindo-se como novida<strong>de</strong> no positivismo, somenteporque este nada quer saber daquela. A proposição <strong>de</strong>Wittgenstein está fundamentada em seu atomismo lógico, muicorretamente criticado no interior do positivismo; apenas eventossingulares po<strong>de</strong>m ser "o caso", algo por sua vez abstraído.Recentemente Wellmer fez ver que no Tractatus <strong>de</strong> Wittgensteiné inútil a procura <strong>de</strong> proposições elementares: 1 pois não "há"nenhuma com a concisão requerida pela existência daquele.1 Vi<strong>de</strong> Wellmer, loc. cit., p. 8.— 172 —


ADORNOPela sua renúncia a exemplos, se impõe implicitamente acrítica à categoria do originário; este se oculta tão logo procurado.Em confronto com os positivistas do Círculo <strong>de</strong> Vienapropriamente dito, Wittgenstein se recusou a transpor, peloprimado do conceito <strong>de</strong> percepção, o positivismo hostil à filosofia,em direção a uma filosofia por sua vez duvidosa, emúltima análise, a sensualista. Por outro lado, as assim chamadasproposições protocolares transcen<strong>de</strong>m a linguagem em cujaimanência Wittgenstein procura se entrincheirar a antinomiaé inevitável. O círculo mágico da reflexão da linguagem nãose rompe recorrendo a conceitos crus e duvidosos tais comoo do imediatamente "dado". Categorias filosóficas, como a daidéia e do sensível, inclusive a dialética, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Teeteto<strong>de</strong> Platão <strong>de</strong>ram os seus frutos, originam-se novamente na doutrinada ciência hostil à filosofia, anulando assim esta hostilida<strong>de</strong>.Não se resolvem questões filosóficas forçando-as ao esquecimentoe re<strong>de</strong>scobrindo-as com o efeito da <strong>de</strong>rrtière nouveauté.A alteração <strong>de</strong> Carnap no critério do sentido <strong>de</strong> Wittgensteinconstitui um retrocesso. Reprime a questão da verda<strong>de</strong>,pela questão dos critérios <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>; <strong>de</strong> preferência <strong>de</strong>sejariarelegar aquela à metafísica. Conforme Carnap, "proposições metafísicasnão são 'proposições da experiência'". 1 simples tautologia.O que motiva a metafísica não é a experiência sensível, àqual Carnap em última análise reduz todo conhecimento, mas0 que a mediatiza. Kant não se cansou <strong>de</strong> lembrá-lo.O fato <strong>de</strong> os positivistas, num gigantesco círculo, extrapolaremda ciência as regras que <strong>de</strong>verão fundamentá-la ejustificá-la, possui conseqüências fatais também para a ciência,cujo progresso efetivo inclui tipos <strong>de</strong> experiência quepor sua vez não são prescritos e aprovados pela ciência. O<strong>de</strong>senvolvimento posterior do positivismo confirmou quãopouco sustentável é a afirmação <strong>de</strong> Carnap <strong>de</strong> que "as proposiçõesprotocolares... não requerem uma confirmação, mas1 ld., p. 10.— 173 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>servem <strong>de</strong> fundamento para todas as outras proposições daciência". 1 É certo que, tanto logicamente como no interior daciência, não se po<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r sem imediatez; caso contrário,a categoria <strong>de</strong> mediação por sua vez não teria sentido razoável.Mesmo categorias tão distantes da imediatez como a da socieda<strong>de</strong>,se <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> iam imediato, não po<strong>de</strong>riam ser pensadas;quem não percebe primariamente a referência à socieda<strong>de</strong>expressa nos fenômenos sociais não po<strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r a umautêntico conceito <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>. Contudo, o momento <strong>de</strong> imediatezhaverá que ser superado (aufzuheben) 2 durante o prosseguimentodo conhecimento. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contradizeros enunciados protocolares, que constitui a objeção dos cientistassociais, <strong>de</strong> Neurath e Popper a Carnap, é um sintomada sua própria mediação, inicialmente mediante o sujeito dapercepção, representado conforme o mo<strong>de</strong>lo físico, e a cujorespeito o positivismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Hume, consi<strong>de</strong>rou supérfluopensar, motivo por que continuamente se insinua sorrateiramentecomo pressuposto <strong>de</strong>spercebido. Isto acaba afetando0 conteúdo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> das proposições protocolares: elassão verda<strong>de</strong>iras e não o são. O que po<strong>de</strong>ria ser explicitadocom base em muitos questionários <strong>de</strong> levantamentos da sociologiapolítica. Certamente as respostas, como material inicial,são "verda<strong>de</strong>iras", apesar <strong>de</strong> sua referência a opiniõessubjetivas, elas próprias são uma parte da objetivida<strong>de</strong> sociala que pertencem inclusive as opiniões. Os questionados afirmaramou assinalaram isto e não aquilo. Mas por outro lado,no contexto dos questionários, as respostas são muitas vezescontraditórias e não concordantes, por exemplo, pró-<strong>de</strong>mocráticasa um nível abstrato, mas anti<strong>de</strong>mocráticas em face<strong>de</strong> itens mais concretos. Nesta medida a sociologia não po<strong>de</strong>1 ld., p. 14.2 Aujheben constitui no dizer <strong>de</strong> Adorno "a ambigüida<strong>de</strong> funcional mais habitual na linguagem<strong>de</strong> Hegel", e <strong>de</strong>ste modo é utilizada também aqui. Manter a ambigüida<strong>de</strong> seria vertê-la por"suspen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>ixar em suspenso". Preferimos contudo acentuar ora o momento da conservação,ora o momento da supressão, superação. E notório que numa socieda<strong>de</strong> que valoriza o acúmulo<strong>de</strong> riqueza, o significado mais corrente <strong>de</strong> aufheben é guardar. (N. do T.)— 174 —


ADORNOse restringir aos dados, mas precisa procurar <strong>de</strong>sviar as contradições;a pesquisa empírica proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo. Que a teoriada ciência <strong>de</strong>spreze ab ovo tais consi<strong>de</strong>rações habituais àciência, constitui, encarado subjetivamente, o ponto <strong>de</strong> apoioda crítica dialética. Nunca os positivistas conseguiram se libertarinteiramente daquele antiintelectualismo latente, jápreformado na <strong>de</strong>gradação dogmática das i<strong>de</strong>as em Hume,representações convertidas em simples cópias das impressions.Para eles o pensamento não passa <strong>de</strong> uma ratificaçãoposterior, além do que já constitui um mal. Um antiintelectualismoassim camuflado, com suas involuntárias coloraçõespolíticas, favorece indubitavelmente o efeito da doutrina positivista;um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> seus seguidores se distinguepela ausência da dimensão da reflexão, e pelo rancorcontra procedimentos espirituais, que se movimentam essencialmentesobre aquela.O positivismo interioriza as pressões para uma posturaespiritual, exercida pela socieda<strong>de</strong> totalmente socializada sobreo pensamento, no intuito <strong>de</strong> fazê-lo funcionar nela. Eleé o puritanismo do conhecimento. 1 0 que este efetua na esfera1 No congresso realizado em 1968 em Frankfurt, sobretudo Erwin Scheuch <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u umasociologia que "nada mais almeja, senão ser sociologia". Determinadas posturas científicasrecordam por vezes pavor neurótico ao contato. Exagera-se excessivamente a importânciada limpeza. Subtraído da sociologia tudo o que não correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Weber noinício <strong>de</strong> Economia e Socieda<strong>de</strong>, nada restaria. Desprovida <strong>de</strong> todos os momentos econômicos,históricos, sociais e psicológicos, nada mais faria a sociologia do que ro<strong>de</strong>ar temerosamentequalquer fenômeno social. A sua raison d'être não é a <strong>de</strong> um domínio especializado, <strong>de</strong>uma "matéria específica", mas o inter-relacionamento constitutivo daqueles domínios <strong>de</strong>estilo mais antigo; uma parcela <strong>de</strong> reparação espiritual da divisão do trabalho, que nãopo<strong>de</strong> ser por seu lado fixada incondicionalmente por uma divisão do trabalho. Contudo,tampouco apenas contata mais ou menos frutiferamente os diversos domínios. O que se<strong>de</strong>signa por cooperação interdisciplinar não é sociologia. A esta cabe <strong>de</strong>svelar em si asmediações das categorias objetivas, cada uma das quais conduz â outra. Ela visa à interaçãoimanente dos elementos operados <strong>de</strong> um modo relativamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte pela economia,história, psicologia, antropologia; procura restaurar cientificamente a unida<strong>de</strong> que constituemem si por serem sociais, e que per<strong>de</strong>m por intermédio da ciência, se bem que não<strong>de</strong> início por sua causa. Po<strong>de</strong>-se percebê-lo mais facilmente no exemplo da psicologia.Mesmo na escola freudiana, <strong>de</strong> começo monadológico, a socieda<strong>de</strong> "está contida" em inumeráveismomentos. O indivíduo, seu substrato, tomou-se autônomo perante a socieda<strong>de</strong>por motivos sociais. Foi o formalismo, em que <strong>de</strong>semboca irremediavelmente a instrumentalizaçãoda razão sociológica, a virtual maternatização, que completou a liquidação dadiferença qualitativa da sociologia em relação a outras ciências, e <strong>de</strong>ste modo também asua autarquia proclamada pelos <strong>de</strong>ntificistas.— 175 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>moral, no positivismo se sublima nas normas do conhecimento.A advertência <strong>de</strong> Kant, equívoca em sua linguagem,<strong>de</strong> não se per<strong>de</strong>r em mundos inteligíveis, a cujo respeitoHegel já falava ironicamente das "casas <strong>de</strong> perdição", é umprelúdio daquilo; embora somente como voz isolada no tecidopolifônico da partitura filosófica, enquanto com os positivistasisto se converteu na melodia da voz dominante trivialmenteimportuna. O que o conhecimento quer, o que almeja,ele se recusa <strong>de</strong> antemão, porque o <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato do trabalhosocialmente útil lho proíbe, e em seguida projeta sobreo objetivo o tabu que se impôs, en<strong>de</strong>moninhando o que lheé inacessível. O processo que doutro modo seria insuportávelao sujeito: a integração do pensamento no que lhe é oposto,no que por ele <strong>de</strong>ve ser atravessado, é integrado no sujeitopelo positivismo, convertido em assunto próprio <strong>de</strong>ste. Afelicida<strong>de</strong> do conhecimento não <strong>de</strong>ve existir. Quiséssemossubmeter o positivismo àquela reductio ad hominem, que tantolhe apraz realizar com a metafísica, po<strong>de</strong>r-se-ia suspeitar queele logiciza os tabus sexuais, não convertidos apenas hojeem proibições do pensamento. Que não se <strong>de</strong>ve comer daárvore do conhecimento, torna-se no positivismo a máximado próprio conhecimento. A curiosida<strong>de</strong> é punida na novaface do pensamento, a utopia <strong>de</strong>le <strong>de</strong>ve ser expulsa sob qualquerconfiguração, inclusive a da negação. O conhecimentose resigna à reconstrução repetitiva. Ele empobrece do mesmomodo que a vida empobrece sob a moral do trabalho.Na compreensão dos fatos, a que há que se ater, sem sedistanciar, mesmo através <strong>de</strong> sua interpolação, o conhecimentoé consi<strong>de</strong>rado simples reprodução do que já existe<strong>de</strong> qualquer maneira. O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong>dutivo e completo,que não <strong>de</strong>ixa nada <strong>de</strong> fora, constitui para tanto aexpressão reduzida à lógica. Um iluminismo <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong>reflexão vira reflexão. O que há <strong>de</strong> subalterno e melindrosona doutrina positivista não é culpa <strong>de</strong> seus representantes;freqüentemente eles nada têm disto ao abandonarem a toga.O espírito burguês objetivo enfunou-se em substituto da fi-— 176 —


ADORNOlosofia. No que é inconfundível o parti pris pelo princípio <strong>de</strong>troca, abstraído naquela norma do ser-para-outro, a que obe<strong>de</strong>cecomo medida <strong>de</strong> todo espiritual o critério da ratificaçãoposterior e o conceito <strong>de</strong> comunicação formado ultimamentena indústria cultural. Dificilmente seria <strong>de</strong>sleal <strong>de</strong>terminaro que os positivistas consi<strong>de</strong>ram empírico, como sendo oque é para um outro, a própria coisa nunca <strong>de</strong>ve ser concebida.A simples <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> o conhecimento não atingir oseu objeto, mas apenas pôr em relações que lhe são exteriores,é contabilizada, em reação como imediatez, pureza, ganho,virtu<strong>de</strong>. A repressão que o espírito positivista prepara a simesmo subjuga o que não lhe é igual. Isto marcará nele opolítico, apesar <strong>de</strong> todas as suas <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong>,quando não o fará em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>las. Suas categorias constituem<strong>de</strong> um modo latente aquelas categorias práticas daclasse burguesa, em cujo iluminismo figurava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inícioa negativa daqueles pensamentos que colocassem em dúvidaa racionalida<strong>de</strong> da ratio dominante.Uma tal análise fisionômica do positivismo é tambéma <strong>de</strong> seu próprio conceito central, o empírico, a experiência.De um modo geral, categorias tornam-se temáticas, quandonão mais são substanciais, conforme a terminologia <strong>de</strong> Hegel,não mais são inquestionavelmente vivas. No positivismo estádocumentada uma constituição histórica do espírito, que nãomais conhece a experiência, motivo por que tanto eliminaseus rudimentos como se oferece como seu substituto, comoúnica forma legítima <strong>de</strong> experiência. A imanência do sistemaque virtualmente se imobiliza não tolera sequer algo qualitativamenteoutro, que po<strong>de</strong>ria ser experimentado, nem capacitaos sujeitos que lhe são a<strong>de</strong>quados a uma experiêncianão regulamentada. A situação <strong>de</strong> mediação universal dacoisificação <strong>de</strong> todas as relações entre homens, está sabotandoa possibilida<strong>de</strong> objetiva <strong>de</strong> uma experiência específica da coisa— este mundo ainda é passível <strong>de</strong> uma experiência viva?— incluída a aptidão antropológica. Com razão Schelsky <strong>de</strong>nominouo conceito <strong>de</strong> experiência não regulamentada um— 177 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>dos pontos centrais da controvérsia entre os dialéticos e ospositivistas. A experiência regulamentada que o positivismoprescreve anula a própria experiência, elimina na intençãoo sujeito que experimenta. O correlato da experiência emface do objeto é a eliminação do sujeito, sem cuja receptivida<strong>de</strong>espontânea nada <strong>de</strong> objetivo se dá. Como fenômenosocial, o positivismo está aferido para aquele tipo <strong>de</strong> homem<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> experiência e continuida<strong>de</strong>, animando-o a seconsi<strong>de</strong>rar, à maneira <strong>de</strong> Babbit, como a coroação da criação.Nesta sua adaptação apriorista àquele tipo, haveria que procuraro appeal do positivismo. Ajunta-se um pseudo-radicalismo,que proce<strong>de</strong> por tabula rasa, sem atacar conteúdo algum,e que dá conta <strong>de</strong> qualquer pensamento <strong>de</strong> conteúdoradical, <strong>de</strong>nunciando-o como mitológico, i<strong>de</strong>ológico, superado.A consciência coisificada se instaura automaticamentecom todo pensamento que <strong>de</strong> antemão não possua o aval<strong>de</strong> facts and figures, mediante a objeção: where is the evi<strong>de</strong>nce?A prática empírica vulgar <strong>de</strong> uma ciência social <strong>de</strong>sprovida<strong>de</strong> conceitos, que geralmente não toma notícia <strong>de</strong> filosofiaanalítica, revela algo acerca <strong>de</strong>sta. O positivismo é espíritodo tempo análogo à mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fãs do jazz; semelhantetambém é a atração que exerce sobre os jovens. Tem a introduzi-loa segurança absoluta que promete após a <strong>de</strong>rrocadada metafísica tradicional. Porém ela é aparente: a puraausência <strong>de</strong> contraditorieda<strong>de</strong>, em que se resume, nada maisé do que tautologia, a forçada repetição sem conteúdo convertidaem conceito. A segurança torna-se algo inteiramenteabstrato e se anula Qiebt sich auf): o anseio <strong>de</strong> viver nummundo sem medo se satisfaz com a pura igualda<strong>de</strong> do pensamentoconsigo mesmo. Paradoxalmente, o fascinante dopositivismo, a segurança, se assemelha à pretensa confiançaque os zelosos funcionários da autenticida<strong>de</strong> auferem da teologia,e pela qual advogam uma teologia em que não crêem.Na dialética histórica do iluminismo, a ontologia se reduz aponto adimensional; ele, em verda<strong>de</strong> um nada, converte-seem bastion, no ineffabile dos <strong>de</strong>ntificistas. Isto se harmoniza— 178 —


ADORNOcom a consciência das massas, que ao mesmo tempo se sentemcomo socialmente supérfluas, nulas, apegando-se mesmoassim ao sistema que, querendo subsistir, não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixá-lasmorrer <strong>de</strong> fome. A nulida<strong>de</strong> é usufruída também como <strong>de</strong>struição,enquanto o formalismo vazio é indiferente diante<strong>de</strong> qualquer existente, motivo por que é conciliável: a impotênciareal converte-se numa atitu<strong>de</strong> espiritual autoritária.Talvez o vazio objetivo exerça uma atração específica sobreo tipo antropológico ascen<strong>de</strong>nte do vazio <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> experiência.A ocupação afetiva do pensar instrumental, alienado<strong>de</strong> sua coisa, é mediatizada pela sua tecnicização: elao apresenta como sendo <strong>de</strong> vanguarda. Popper postula umasocieda<strong>de</strong> "aberta". Sua idéia contudo contradiz o pensar regulamentado,não aberto, postulado por sua lógica científicacomo "sistema <strong>de</strong>dutivo". O positivismo mais recente encontra-seinscrito sobre o corpo mesmo do mundo governado.Se nos primórdios do nominalismo, e mesmo ainda para aburguesia nascente, o empirismo <strong>de</strong> Bacon opinava pela liberaçãoda experiência em face da ordo <strong>de</strong> conceitos preestabelecidos,o aberto como escape da estrutura hierárquicada socieda<strong>de</strong> feudal, hoje, uma vez que a dinâmica <strong>de</strong>senfreadada (socieda<strong>de</strong>) burguesa caminha para uma nova estática,aquela abertura é obstruída pela síndrome do pensamentocientificista, através da restituição <strong>de</strong> sistemas fechados<strong>de</strong> controle espiritual. Aplicando ao positivismo seu próprioprincípio fundamental: por afinida<strong>de</strong> com a burguesiaele é contraditório em si, na medida em que <strong>de</strong>clara a experiênciacomo o único e exclusivamente importante, e, aomesmo tempo, a proíbe. A exclusivida<strong>de</strong> que atribui ao i<strong>de</strong>alda experiência, o sistematiza e assim potencialmente o suprime(hebt es auf).A teoria <strong>de</strong> Popper é mais ágil do que o positivismousual. Não insiste tão irrefletidamente na neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>valores como a tradição mais influente da sociologia alemã,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Weber Albert, por exemplo, <strong>de</strong>clara: "O juízo <strong>de</strong> Adorno,<strong>de</strong> que todo o problema dos valores está disposto erro-— 179 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>neamente, não tem referência a uma formulação <strong>de</strong>terminada<strong>de</strong>ste problema, motivo por que quase não se po<strong>de</strong> julgá-lo:uma afirmação <strong>de</strong> tom abrangente, mas isenta <strong>de</strong> riscos". Aoque há a retrucar que a criticada abstração da formulaçãocorrespon<strong>de</strong> à dicotomia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Weber sacrossanta na Alemanha,e po<strong>de</strong> ser colocada por conta apenas <strong>de</strong> seus inauguradorese não <strong>de</strong> seus críticos. Entretanto, as antinomiasem que o positivismo incorre, graças à norma da neutralida<strong>de</strong><strong>de</strong> valores, são inteiramente concretizáveis. Assim como nojogo político <strong>de</strong> forças uma posição estritamente apolítica seconverte em politikum, em capitulação em face do po<strong>de</strong>r, assimuma neutralida<strong>de</strong> geral <strong>de</strong> valores se subordina irrefletidamenteao que para os positivistas se chama sistemas vigentes<strong>de</strong> valores. Inclusive Popper, com sua exigência "<strong>de</strong>que precisa ser uma das tarefas da crítica científica expormesclas <strong>de</strong> valores, e separar as questões <strong>de</strong> valor puramentecientífico conforme verda<strong>de</strong>, relevância, simplicida<strong>de</strong> etc.,das questões extracientíficas", retira <strong>de</strong> certa maneira o queinicialmente havia permitido. De fato a problemática daqueladicotomia há que ser seguida concretamente nas ciências sociais.Manuseando-se tão rigorosamente neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores,como o fazia indubitavelmente Max Weber em ocasiõespúblicas — nem sempre em seus textos — as pesquisas sociológicaspecam facilmente contra o critério da relevância,todo modo apresentado por Popper. Por exemplo, se a sociologiada arte quer afastar <strong>de</strong> si a questão da hierarquiadas formações, <strong>de</strong> cujos efeitos se ocupa, então, a ela se subtraemcomplexos tão relevantes como o da manipulação daconsciência pela indústria, o conteúdo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> ou inverda<strong>de</strong>dos estímulos, a que os investigados estão expostos,por fim, todo discernimento <strong>de</strong>terminado da i<strong>de</strong>ologia comoconsciência socialmente falsa. Uma sociologia da arte quenão po<strong>de</strong>, ou não quer, distinguir entre a hierarquia <strong>de</strong> umaobra íntegra e significativa e a <strong>de</strong> um produto kitsch calculadoem conformida<strong>de</strong> com relações <strong>de</strong> efeito, não se atribui afunção crítica que preten<strong>de</strong> exercer, mas adota o conheci-— 180 —


ADORNOmento <strong>de</strong> tais faits sociaux como da autonomia ou heteronomia<strong>de</strong> formações espirituais, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua posiçãosocial e <strong>de</strong>termina seu efeito social. Abstraindo disto, permaneceo resto insípido <strong>de</strong>, quando muito, um matematicamenteaperfeiçoado nose counting conforme likes and dislikes,inconseqüente para a significância social das preferências eaversões constatadas. Não há que suprimir a crítica ao comportamentovalorativo das ciências sociais, e restaurar, porexemplo, a doutrina ontológica dos valores do Scheler intermediárioem norma para as ciências sociais. O que é insustentávelé a dicotomia <strong>de</strong> valor e neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores, enão um <strong>de</strong>les em separado. Se Popper conce<strong>de</strong> que os i<strong>de</strong>aiscientificistas <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores constituempor sua vez valores, isto atinge a própria verda<strong>de</strong>dos juízos; o sentido <strong>de</strong>stes implica a representação "valorativa"<strong>de</strong> que algo verda<strong>de</strong>iro é melhor do que algo falso. Aanálise <strong>de</strong> quaisquer teoremas plenos <strong>de</strong> conteúdo das ciênciassociais precisaria tocar seus elementos axiológicos, mesmoque os teoremas não os justifiquem. Mas este momentoaxiológico não se opõe abstratamente à realização do juízo,mas lhe é imanente. Valor e neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valor não estãoseparados, mas inter-relacionados; isoladamente cada um seriafalso, tanto o juízo preso a um valor exterior a ele, comotambém aquele que se paralisou pela extirpação do momentovalorativo a ele imanente e ineliminável. O thema probandum,juntamente com a argumentação do ensaio weberiano acercada ética protestante, po<strong>de</strong> apenas em total cegueira ser separadoda intenção, <strong>de</strong> maneira alguma <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> valores,<strong>de</strong> sua crítica à doutrina marxista <strong>de</strong> superestrutura einfra-estrutura.Ela nutre os argumentos isolados mas sobretudo tambéma impermeabilida<strong>de</strong> daquela investigação em face daprocedência sócio-econômica dos theologúmenas, que, segundoela, constituíram o capitalismo. A posição fundamentalantimaterialista <strong>de</strong> Weber não motiva somente — como elereconheceria — a temática <strong>de</strong> sua sociologia da religião, mas— 181 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>também a sua orientação, a escolha dos materiais, a tramado pensamento; sua argumentação situa com embaraço <strong>de</strong>ponta-cabeça a <strong>de</strong>rivação econômica. A rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um conceito<strong>de</strong> valor externo ao pensamento, como à coisa, constitui-seem ambos os lados em motivo da insatisfatorieda<strong>de</strong>do <strong>de</strong>bate sobre a neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores; aliás, um positivistacomo Durkheim <strong>de</strong>clara sem ro<strong>de</strong>ios, não citando Weber,que a razão cognitiva e valorativa são a mesma, motivoporque a distinção absoluta entre valor e conhecimento éimproce<strong>de</strong>nte. A seu respeito, positivistas e ontológicos concordam.A solução do suposto problema do valor, não encontradapor Albert nos dialéticos, consistiria em que, utilizando<strong>de</strong>sta vez somente um conceito positivista, a alternativaé concebida como pseudoproblema, como abstração, <strong>de</strong>svanecendo-secom a visão concreta sobre a socieda<strong>de</strong> e coma reflexão acerca <strong>de</strong> sua consciência. Eis o que mirava a teseda coisificação do problema do valor: que os assim chamadosvalores, quer encarados como algo a ser eliminado das ciênciassociais, quer como bênção das mesmas, são elevados àautonomia, quase o-que-é-em-si, enquanto não o são nemdo ponto <strong>de</strong> vista histórico-real, nem como categorias doconhecimento. O relativismo dos valores constitui o correlatoà apoteose absolutista dos valores: tão logo, proce<strong>de</strong>ntes daarbitrarieda<strong>de</strong> e da indigência da consciência cognitiva, sãoarrancados à sua reflexão e ao contexto histórico em queatuam, caem justamente sob aquela relativida<strong>de</strong> que sua conjuraçãoqueria banir. O conceito econômico <strong>de</strong> valor, queserviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo à disputa filosófica <strong>de</strong> Lotze, dos alemães<strong>de</strong> sudoeste e em seguida à da objetivida<strong>de</strong>, constitui o fenômenooriginário da coisificação, o valor <strong>de</strong> troca da mercadoria.A ele Marx associou a análise do fetichismo, que<strong>de</strong>cifrou o conceito <strong>de</strong> valor como espelhamento <strong>de</strong> uma relaçãoentre pessoas, tal como se fosse uma proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>coisas. Os problemas normativos erguem-se a partir <strong>de</strong> constelaçõeshistóricas, que <strong>de</strong> igual maneira exigem silenciosae "objetivamente" a partir <strong>de</strong> si próprias a sua transformação.— 182 —


ADORNOO que posteriormente se solidifica em valores para a memóriahistórica na verda<strong>de</strong> constitui questões da realida<strong>de</strong>, formalmentenão muito distintas do conceito popperiano do problema.Não seria possível, por exemplo, <strong>de</strong>cretar abstratamenteque todos os homens precisariam ter o que comer,enquanto as forças produtivas não fossem suficientes paraa satisfação das necessida<strong>de</strong>s primitivas <strong>de</strong> todos. Contudo,quando, numa socieda<strong>de</strong> em que a fome seria inevitável,aqui e agora, em face da abundância <strong>de</strong> bens existentes eevi<strong>de</strong>ntemente possível, da mesma maneira existe a fome,então isto exige a abolição da fome pela intervenção nas relações<strong>de</strong> produção. Esta exigência brota da situação, <strong>de</strong> suaanálise em todas as dimensões, sem que para tanto se precisasseda universalida<strong>de</strong> e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma representação<strong>de</strong> valor. Os valores sobre os quais é projetada aquelaexigência surgida da situação constituem a sua imitaçãodébil e em geral falsificadora. A categoria da mediação écrítica imanente. Ela contém o momento da neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>valores na figura <strong>de</strong> sua razão não dogmática, acentuadapela confrontação daquilo por que uma socieda<strong>de</strong> se apresentae o que ela é; o momento do valor, contudo, vive naintimação prática a ser apreendida da situação, e para cujaapreensão se requer a teoria social. A falsa cisão entre neutralida<strong>de</strong><strong>de</strong> valores e valor revela-se igual à cisão entre teoriae prática. A socieda<strong>de</strong>, enquanto entendida como conexãofuncional <strong>de</strong> autoconservação humana, "quer dizer": tem porfim objetivamente a reprodução <strong>de</strong> sua vida a<strong>de</strong>quada aoestado <strong>de</strong> suas forças; fora isto qualquer realização social, emesmo socialização, constitui um contrasenso no mais simplesentendimento cognitivo. A razão subjetiva da relaçãofins-meios se transformaria, tão logo não fosse <strong>de</strong>tida efetivamentepor imperativos sociais ou cientificistas, naquela razãoobjetiva, que contém o momento axiológico como o própriomomento do conhecimento. O valor e a ausência <strong>de</strong>valores são mediatizados entre si dialeticamente. Conhecimentoalgum dirigido à essência imediata da socieda<strong>de</strong> seria— 183 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>verda<strong>de</strong>iro, se não o quisesse assim, medida em que seriaportanto "valorativo"; nada há que exigir da socieda<strong>de</strong>, quenão proviesse da relação <strong>de</strong> conceito e empiria, que não sejaportanto essencialmente conhecimento.Assim como uma teoria dialética não apaga simplesmenteo <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores, mas trata <strong>de</strong>preservá-lo suprimindo-o em si (an sich aufzuheben trachtet)em conjunto com o oposto, assim ela <strong>de</strong>veria se comportarem relação ao positivismo como um todo. A distinção operadapor Marx entre apresentação e origem dos conhecimentos,pela qual queria afastar a censura <strong>de</strong> projetar um sistema<strong>de</strong>dutivo, po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a dialética filosoficamente comfrivolida<strong>de</strong> excessiva, por dégout pela filosofia, <strong>de</strong> todos osmodos, o que há <strong>de</strong> certo nisto é o pesado acento sobre oente face do conceito liberado, a acentuação da teoria críticaante o i<strong>de</strong>alismo. Ao pensamento <strong>de</strong> imanente movimentoprogressivo é inata a tentação <strong>de</strong> menosprezar os fatos. Oconceito dialético, contudo, é mediação, e não ser-em-si; oque lhe impõe a obrigação <strong>de</strong> não preten<strong>de</strong>r nenhuma verda<strong>de</strong>chorís dos mediatizados, os fatos. A crítica dialética aopositivismo tem seu ponto <strong>de</strong> aplicação mais importuno nacoisificação, a da ciência e da faticida<strong>de</strong> não refletida; tantomenos ela por sua vez po<strong>de</strong> coisificar os seus conceitos. Albertpercebe corretamente que conceitos centrais, mas nãoverificáveis pelos sentidos, tais como socieda<strong>de</strong> ou coletivida<strong>de</strong>,não <strong>de</strong>vem ser hipostasiados, postos ou fixados comum realismo ingênuo, como ser-em-si. Uma teoria expostaao perigo <strong>de</strong> uma tal coisificação, em todo caso, é induzidaàquela do objeto, na medida em que este se encontra tãoenrijecido, como sói se repetir no dogmatismo da teoria, noque esta apenas "reflete". Se a socieda<strong>de</strong>, um conceito <strong>de</strong>função e não <strong>de</strong> substância, permanece preor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> igualmodo objetivamente a todos os fenômenos singulares, entãotambém a sociologia dialética não po<strong>de</strong> se abster do aspecto<strong>de</strong> sua coisida<strong>de</strong>; caso contrário falsifica o <strong>de</strong>cisivo, as relações<strong>de</strong> dominação. Mesmo o conceito durkheimiano <strong>de</strong>— 184 —


ADORNOconsciência coletiva que coisifica eminentemente fenômenosespirituais tem seu conteúdo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> na coação exercidapelos mores sociais; só que esta coação por sua vez haveriaque ser <strong>de</strong>rivada das relações <strong>de</strong> dominação no processo <strong>de</strong>vida real, e não ser aceita como "coisa", algo a ser encontradopor último. Em socieda<strong>de</strong>s primitivas, a carência <strong>de</strong> alimentos— talvez — exija traços organizatórios <strong>de</strong> coação, que retornamnas situações <strong>de</strong> carência provocadas pelas relações <strong>de</strong>produção, e portanto <strong>de</strong>snecessárias, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s supostamentemaduras. A questão quanto à precedência da divisãosocialmente necessária <strong>de</strong> trabalho físico e intelectual ou doprivilégio usurpatório do feiticeiro tem algo da questão doprimado do ovo ou da galinha; <strong>de</strong> qualquer maneira o xamãnecessita <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, sem o que as coisas não funcionariam.Em benefício da teoria sacrossanta, <strong>de</strong> modo algum há queexorcizar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a coação social seja herançabiológico-animal; o <strong>de</strong>sterro sem saída do mundo animal sereproduz na dominação brutal <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> ainda sujeitaà história natural. Don<strong>de</strong> contudo não há que concluirapologeticamente a irremediabilida<strong>de</strong> da coação. Afinal, omomento <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> mais profundo do positivismo, emboraresista a ela como à palavra sob cujo feitiço se encontra, éque os fatos, o que é assim e não <strong>de</strong> outro modo, assumiramunicamente numa socieda<strong>de</strong> não livre, que escapa ao po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> seus próprios sujeitos, aquela violência in<strong>de</strong>vassável, aseguir duplicada no pensamento científico pelo culto cientificistados fatos. Até mesmo a re<strong>de</strong>nção filosófica do positivismonecessitaria do procedimento por ele <strong>de</strong>sprezado, dainterpretação daquilo que no curso do mundo dificulta ainterpretação. O positivismo é o fenômeno sem conceito dasocieda<strong>de</strong> negativa na ciência social. No transcorrer do <strong>de</strong>bate,a dialética, encoraja o positivismo à consciência <strong>de</strong> umatal negativida<strong>de</strong>, a sua própria. Em Wittgenstein não há carência<strong>de</strong> vestígios <strong>de</strong> uma tal consciência. Quanto mais longese leva o positivismo, tanto mais energicamente ele impelepara além <strong>de</strong> si. A proposição <strong>de</strong> Wittgenstein ressaltada— 185 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>por Wellmer, <strong>de</strong> "que precisa haver muito preparo na linguagem,para que o simples <strong>de</strong>nominar tenha um sentido", 1nada mais quer dizer senão que, para a linguagem, a tradiçãoé constitutiva, e assim, precisamente no sentido <strong>de</strong> Wittgenstein,também para o conhecimento em geral. Wellmer tocaem um ponto nevrálgico ao <strong>de</strong>rivar disto uma recusa objetivaao reducionismo da escola <strong>de</strong> Viena e ao critério <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>das proposições protocolares; tanto menos o reducionismoconstitui um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> para as ciências sociais.Inclusive Carnap renuncia, <strong>de</strong>vido a Wellmer, ao princípioda redução <strong>de</strong> todos os termos a predicados observacionais,e introduz paralelamente à linguagem observacional uma linguagemteórica apenas parcialmente interpretada. 2 Po<strong>de</strong>-seentrever nisto uma tendência <strong>de</strong>terminante do <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> todo o positivismo. Ele se consome mediante umaprogressiva diferenciação e auto-reflexão. Mesmo disto seaproveita sua apologética, conforme um tópos ampliado: objeçõescentrais à escola são postas <strong>de</strong> lado como superadaspelo próprio estado evolutivo <strong>de</strong>sta. Recentemente Dahrendorfafirmava, não literalmente, que o positivismo criticadopela escola <strong>de</strong> Frankfurt já nem existia mais. Entretanto,quanto menos os positivistas são capazes <strong>de</strong> manter suasnormas sugestivamente ríspidas, tanto mais <strong>de</strong>saparece aaparência <strong>de</strong> uma legitimação <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sapreço pela filosofiae pelos procedimentos por esta permeados. Também Albert,analogamente a Popper, parece abrir mão das normas proibitivas.3 Junto ao término <strong>de</strong> seu trabalho O Mito da RazãoTotal torna-se difícil traçar um limite nítido entre o conceitopopper-albertiano da ciência e o pensamento dialético sobrea socieda<strong>de</strong>. O que sobra como diferença: "O culto dialético<strong>de</strong> razão total é excessivamente exigente para se satisfazercom soluções 'particulares'. Não havendo soluções que sa-1 Wellmer, loc. cit., p. 1Z2 Id., pp. 23 s.3 Albert, "Pelas costas do positivismo?", loc. cit., p. 268.— 186 —


ADORNOtisfaçam suas exigências, ele se vê obrigado a se contentarcom indicações, alusões e metáforas". 1 Contudo, a teoria dialéticanão pratica nenhum culto da razão total; mas a critica.A altivez ante soluções particulares lhe é estranha, apenasnão admite que estas lhe tapem a boca.Ao mesmo tempo não se <strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o quedo positivismo se mantém imo<strong>de</strong>rado. A afirmação <strong>de</strong> Dahrendorfa respeito da escola <strong>de</strong> Frankfurt como sendo a últimada sociologia é sintomática. Preten<strong>de</strong>ria dizer que o tempoda formação escolar no interior da sociologia já passou, quea ciência unificada suplanta triunfalmente as escolas comosendo arcaicamente qualitativas. Por mais <strong>de</strong>mocrática eigualitária que seja esta profecia a seu próprio enten<strong>de</strong>r, suarealização seria intelectualmente totalitária, impedindo precisamenteaquela discussão que justamente Dahrendorf consi<strong>de</strong>raagente <strong>de</strong> todo progresso. O i<strong>de</strong>al da racionalizaçãotécnica progressiva, inclusive da ciência, <strong>de</strong>sautoriza as representaçõespluralistas, a que em outras situações os opositoresda dialética <strong>de</strong>dicam apreço. Não há que se entregara psicologismo sociológico algum, quem em face do sloganda última escola se recorda da menina perguntando ao verum cachorro imenso: quantos anos po<strong>de</strong> viver um cachorrocomo este?Apesar da vonta<strong>de</strong>, manifestada <strong>de</strong> ambos os lados, <strong>de</strong>conduzir a controvérsia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um espírito racional, elamantém seu ferrão aterrorizante. Nos comentários da imprensaà disputa do positivismo, sobretudo os posterioresao décimo-sexto congresso alemão <strong>de</strong> sociólogos, que aliásfreqüentemente nem sequer correspondiam ao transcorrerdos <strong>de</strong>bates, repetia-se estereotipadamente que não houveraprogressos, os argumentos já eram conhecidos, nenhuma mediaçãodos argumentos opostos era prevista, tornando-se duvidosaa fertilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>bate. Tais consi<strong>de</strong>rações plenas <strong>de</strong>1 Albert, "O mito da razão total", loc. cit., p. 233.— 187 —


<strong>OS</strong> <strong>PENSADORES</strong>rancor não atingem o alvo. Aguardam progressos tangíveisda ciência, ali on<strong>de</strong> se questiona tanto a tangibilida<strong>de</strong> comoa concepção vigente <strong>de</strong>sta. Não parece claro que é possívelsatisfazer ambas as posições mediante uma crítica recíproca,tal como se daria em conformida<strong>de</strong> ao mo<strong>de</strong>lo popperiano;os comentários <strong>de</strong> Albert dirigidos gratuitamente ad spectatoresa respeito do complexo hegeliano, para não falar dosmais recentes, não alimentam muito esta esperança. Asseverarhaver sido incompreendido é da mesma eficácia que oapelo à concordância mediante um piscar <strong>de</strong> olhos, com vistasà afamada ininteligibilida<strong>de</strong> do opositor. A contaminaçãoentre dialética e irracionalismo se opõe cegamente a que acrítica à lógica da não contradição não a elimina, mas a reflete.O que já havia sido observado em Tübingen a respeito dosequívocos do termo crítica, precisa ser generalizado: mesmoambos os conceitos se tornam afins, e mesmo on<strong>de</strong> por cimadisto se estabelece uma concordância, na verda<strong>de</strong> os opositoresteriam em mente coisas tão diferentes, que o consensopermaneceria simples achada <strong>de</strong> antagonismos. Um prosseguimentoda controvérsia teria por tarefa tornar visíveisaqueles antagonismos básicos, <strong>de</strong> maneira alguma já inteiramentearticulados. Muitas vezes se observou na históriada filosofia que doutrinas, <strong>de</strong> que uma se sente como exposiçãofiel da outra, divergem até o âmago através do clima<strong>de</strong> conexão espiritual; o exemplo mais notório disto seria arelação <strong>de</strong> Fichte a Kant. Na sociologia as coisas não ocorremdiferentemente. Se como ciência <strong>de</strong>ve manter a socieda<strong>de</strong> naformação em que se encontra em funcionamento, tal comoa tradição <strong>de</strong> Comte a Parsons, ou se a partir da experiênciasocial impele em direção à transformação <strong>de</strong> suas estruturascentrais, irá <strong>de</strong>terminar em todas as suas categorias a teoriada ciência, motivo por que dificilmente será <strong>de</strong>cidível noâmbito da teoria da ciência. Nem sequer a relação imediatacom a prática é <strong>de</strong>cisiva; muito antes, que valor posicionaise atribui à ciência na vida do espírito, e por fim na realida<strong>de</strong>.Estas não constituem divergências <strong>de</strong> visão do mundo. Têm— 188 —


ADORNOseu lugar nas questões da lógica e da teoria do conhecimento,concernentes à concepção <strong>de</strong> contradição e não-contradição,essência e fenômeno, observação e interpretação. A dialéticase comporta <strong>de</strong> modo intransigente durante a disputa, porqueacredita continuar pensando ali on<strong>de</strong> seus opositores se<strong>de</strong>têm, em face da não questionada autorida<strong>de</strong> do empreendimentocientífico.— 189 —


IIL


ÍNDICEADORNO — Vida e Obra 5Cronologia 13Bibliografia 15Conceito <strong>de</strong> Iluminismo (Em parceria comHorkheimer) 17O Fetichismo na Música e a Regressão daAudição 65Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo naSociologia Alemã 109— 191 —

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