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minima moralia.pdf - MOM. Morar de Outras Maneiras.

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estão a salvo da suspeita <strong>de</strong> impostura. Nos cento e cinquentaanos que <strong>de</strong>correram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção <strong>de</strong> Hegel, algo da forçado protesto passou <strong>de</strong> novo para o indivíduo. Em comparaçãocom a mesquinhez patriarcal que em Hegel caracteriza otratamento do indivíduo, este ganhou em riqueza, diferenciação eforça, tanto como, por outro lado, foi <strong>de</strong>bilitado e minado pelasocialização da socieda<strong>de</strong>. Na era da sua <strong>de</strong>cadência, aexperiência que o indivíduo tem <strong>de</strong> si mesmo e do que lheacontece contribui, mais uma vez, para um conhecimento quesimplesmente lhe estava oculto, na altura em que, como categoriadominante, se exibia <strong>de</strong> um modo positivo e sem fissuras. Frenteà unanimida<strong>de</strong> totalitária, que proclama como fito a eliminação dadiferença, é possível que até algo da força social libertadora setenha concentrado na esfera do individual. Nela se <strong>de</strong>mora ateoria crítica, mas não com má consciência.Tudo isto não <strong>de</strong>ve negar o que <strong>de</strong> contestável há natentativa. Escrevi o livro, em gran<strong>de</strong> parte, ainda durante a guerra,em condições <strong>de</strong> contemplação. A violência, que me banira,impedia-me ao mesmo tempo o seu pleno conhecimento. Aindanão confessara a mim mesmo a cumplicida<strong>de</strong> em cujo círculomágico cai quem, em face do indizível que colectivamenteocorreu, fala do individual em geral.Em cada uma das três secções, parte-se do mais restritoâmbito privado, do intelectual na emigração. Nele se inscrevemconsi<strong>de</strong>rações da mais ampla esfera social e antropológica; elasconcernem à psicologia, à estética, à ciência na sua relação com osujeito. Os aforismos finais <strong>de</strong> cada secção conduzem tambémtematicamente à filosofia, mas sem se afirmarem como algoconclu<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>finitivo: todos preten<strong>de</strong>m marcar lugares <strong>de</strong>partida ou oferecer mo<strong>de</strong>los para o futuro esforço do conceito.A ocasião imediata para a redacção foi-me oferecida peloquin-quagésimo aniversário <strong>de</strong> Max Horkheimer a 14 <strong>de</strong>Fevereiro <strong>de</strong> 1945. A elaboração coincidiu com uma fase em que,<strong>de</strong>vido a circunstâncias externas, tivemos <strong>de</strong> interromper otrabalho comum. O livro quer expressar a gratidão e a lealda<strong>de</strong>,mas sem reconhecer a interrupção. É o testemunho <strong>de</strong> umdialogue intérieur: nenhum motivo nele há que não pertença tantoa Horkheimer como àquele que achou tempo para a formulação.7


O propósito específico dos Mínima Moralia, isto é, atentativa <strong>de</strong> expor momentos da comum filosofia a partir daexperiência subjectiva, implica que os fragmentos <strong>de</strong> nenhummodo subsistam antes da filosofia <strong>de</strong> que eles próprios são umfragmento. Eis o que a índole solta e <strong>de</strong>sprendida da forma, arenúncia à contextura teórica explícita, preten<strong>de</strong> expressar.Semelhante ascese aspira, ao mesmo tempo, a reparar a injustiça<strong>de</strong> que somente um tenha continuado a trabalhar em algo que,todavia, só po<strong>de</strong> ser levado a cabo por dois, e <strong>de</strong> que nós não<strong>de</strong>sistimos.8


PRIMEIRA PARTE1944A vida não vive, Ferdinand KurnbergerPara Marcel Proust. - O filho <strong>de</strong> pais abastados que, nãointeressa se por talento ou por fraqueza, adopta o que se chamauma vocação intelectual como artista ou homem <strong>de</strong> letras,encontra--se numa posição particularmente difícil entre os quetêm o <strong>de</strong>testável nome <strong>de</strong> colega. Não é só porque se lhe inveja ain<strong>de</strong>pendência, porque se <strong>de</strong>sconfia da serieda<strong>de</strong> do seu propósitoe se suspeita nele <strong>de</strong> um enviado secreto dos po<strong>de</strong>resestabelecidos. Tal <strong>de</strong>sconfiança revela, <strong>de</strong>certo, ressentimento,mas encontraria quase sempre a sua justificação. As verda<strong>de</strong>irasoposições resi<strong>de</strong>m, todavia, noutro lugar. A ocupação com ascoisas espirituais tornou-se, entretanto, "praticamente" um afazercom uma rigorosa divisão do trabalho, com ramos e numerusclausus. O materialmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que a escolhe por aversãoao opróbio <strong>de</strong> ganhar dinheiro não estará inclinado a reconhecêlo.É por tal punido. Não é nenhum "profissional", ocupa umlugar na hierarquia dos concorrentes como diletante,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quais forem os seus conhecimentosefectivos e, se preten<strong>de</strong> fazer carreira, <strong>de</strong>ve ainda, se possível,superar na mais resoluta estupi<strong>de</strong>z o mais obstinado especialista.A suspensão da divisão do trabalho, à qual se sente compelido eque, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos limites, o capacita para realizar a suasituação económica, surge como particularmente aviltante: revela19


a aversão a sancionar a função prescrita pela socieda<strong>de</strong>, e acompetência triunfante não admite tais idiossincrasias. A<strong>de</strong>partamentalização do espírito é um meio para abolir este on<strong>de</strong>,ex officio, não é estabelecida a sua função. Tal faz que os seusserviços sejam mais fi<strong>de</strong>dignos do que os daquele que <strong>de</strong>nuncia adivisão do trabalho - mesmo quando o seu trabalho lhe traz prazer- e, segundo a sua medida própria, lhe proporciona pontos fracosque são inseparáveis dos momentos da sua superiorida<strong>de</strong>. Assimse vela pela or<strong>de</strong>m: uns <strong>de</strong>vem cooperar porque, <strong>de</strong> outro modo,não po<strong>de</strong>m viver, e os que ainda assim conseguiriam viver sãomarginalizados, porque não querem cooperar. E como se a classe<strong>de</strong> que os intelectuais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>sertaram <strong>de</strong>les se vingasse,impondo coercivamente as suas exigências on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sertor buscarefúgio.Banco público. - A relação com os pais começa a mudar <strong>de</strong>forma triste e sombria. Devido à sua impotência económica, per<strong>de</strong>rameles o seu aspecto terrífico. Revoltámo-nos, outrora, contraa sua insistência no princípio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, a sobrieda<strong>de</strong>, queestava sempre pronta a virar-se enfurecidamente contra quem nãoacatava a renúncia. Mas, hoje, encontramo-nos perante umageração pretensamente jovem que, em cada um dos seusimpulsos, é insuportavelmente muito mais adulta do que o foramos pais; que, antes <strong>de</strong> ocorrer o conflito, já abdicou e,obstinadamente autoritária e imperturbável, daí extrai o seupo<strong>de</strong>r. Talvez em todas as épocas se tenha visto a geração dospais como inofensiva e impotente quando a sua força física<strong>de</strong>clinava, enquanto a própria parecia já ameaçada pela juventu<strong>de</strong>:na socieda<strong>de</strong> antagonista, a relação entre as gerações é tambémuma relação <strong>de</strong> concorrência, por <strong>de</strong>trás da qual se encontra a nuaviolência. Hoje, porém, começa a regredir para uma situação que,<strong>de</strong>certo, não conhece nenhum complexo <strong>de</strong> Édipo, mas oassassínio do pai. Entre os crimes simbólicos dos nazis acha-se o<strong>de</strong> matar pessoas velhinhas. Em semelhante clima estabelece-seum acordo tardio e consciente com os pais, o acordo dos entre sicon<strong>de</strong>nados, só perturbado pela angústia <strong>de</strong> alguma vez nãochegarmos, nós próprios impotentes, a ser capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>les cuidar210


tão bem como <strong>de</strong> nós eles cuidaram, quando possuíam algo. Aviolência que se lhes inflige faz esquecer a que eles exerceram.As suas racionalizações, as mentiras então odiadas, com queprocuraram justificar o seu interesse particular como interessegeral, <strong>de</strong>nunciam ainda o pressentimento da verda<strong>de</strong>, o impulsopara a reconciliação do conflito, que a positiva <strong>de</strong>scendênciaalegremente nega. O espírito esvaecido, inconsequente eautodifí<strong>de</strong>nte, dos mais velhos é ainda mais capaz <strong>de</strong> resposta doque a astuta estupi<strong>de</strong>z do júnior. As esquisitices e as <strong>de</strong>formaçõesneuróticas dos adultos mais velhos representam ainda o carácter,o humanamente conseguido, em comparação com a saú<strong>de</strong>enfática e o infantilismo elevado a norma. Com horror se <strong>de</strong>vereconhecer que muitas vezes já antes, na oposição aos pais,porque eles representavam o mundo, se encontrava em segredo oporta-voz <strong>de</strong> um mundo pior em face do mundo mau. Os intentosapolíticos <strong>de</strong> romper com a família burguesa quase sempre voltama cair ainda mais profundamente nas suas re<strong>de</strong>s e, por vezes,parece que a infeliz célula germinal da socieda<strong>de</strong>, a família, é aomesmo tempo a célula que nutre a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não secomprometer com os outros. Com a família, enquanto o sistemasubsiste, <strong>de</strong>sfez-se o agente mais eficaz da burguesia, e também aoposição que, sem dúvida, oprimia o indivíduo, mas também ofortalecia, se é que não o produzia. O fim da família paralisa asforças contrárias. A or<strong>de</strong>m colectivista ascen<strong>de</strong>nte é o sarcasmopara com os sem classe: no burguês, ela liquida ao mesmo tempoa utopia que, outrora, se alimentou do amor da mãe.Peixe na água. - Des<strong>de</strong> que o amplo aparelho <strong>de</strong> distribuiçãoda indústria altamente concentrada substitui a esfera dacirculação, inicia esta uma estranha pós-existência. Enquanto paraas profissões intermediárias se <strong>de</strong>svanece a base económica, avida privada <strong>de</strong> incontáveis pessoas transforma-se na dos agentese intermediários, mais ainda, o âmbito do privado é totalmenteengolido por uma misteriosa activida<strong>de</strong> que apresenta todos osrasgos da activida<strong>de</strong> comercial sem que nela haja, em rigor, algopara comercializar. Os angustiados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sempregado até aoproeminente que, no instante seguinte, po<strong>de</strong> atrair a cólera311


"É muito bom da sua parte, senhor doutor!" - Já nada há <strong>de</strong>inofensivo. As pequenas alegrias, as manifestações da vida queparecem isentas da responsabilida<strong>de</strong> do pensamento não só têmum momento <strong>de</strong> obstinada estupi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> autocegueira insensível,mas entram também imediatamente ao serviço da sua extremaoposição. Até a árvore que floresce mente no instante em que sepercepciona o seu florescer sem a sombra do espanto; até o "comoé belo!" inocente se converte em <strong>de</strong>sculpa da afronta da vida, queé diferente, e já não há beleza nem consolação alguma excepto noolhar que, ao virar-se para o horror, o <strong>de</strong>fronta e, na consciêncianão atenuada da negativida<strong>de</strong>, afirma a possibilida<strong>de</strong> do melhor.É aconselhável a <strong>de</strong>sconfiança perante todo o lhano, oespontâneo, em face <strong>de</strong> todo o <strong>de</strong>ixa-andar que encerre docilida<strong>de</strong>frente à prepotência do existente. O malevolente subsentido doconforto que, outrora, se limitava ao brin<strong>de</strong> da jovialida<strong>de</strong> já hámuito adquiriu sentimentos mais amistosos. O diálogo ocasionalcom o homem no comboio, que, para não <strong>de</strong>sembocar em disputa,consente apenas numas quantas frases a cujo respeito se sabe quenão terminarão em homicídio, é já um elemento <strong>de</strong>lator; nenhumpensamento é imune à sua comunicação, e basta já expressá-lonum falso lugar e num falso acordo para minar a sua verda<strong>de</strong>. Decada ida ao cinema volto, em plena consciência, mais estúpido e<strong>de</strong>pravado. A própria sociabilida<strong>de</strong> é participação na injustiça,porquanto dá a um mundo frio a aparência <strong>de</strong> um mundo em queainda se po<strong>de</strong> dialogar, e a palavra solta, cortês, contribui paraperpetuar o silêncio, pois, pelas concessões feitas ao en<strong>de</strong>reçado,este é ainda humilhado [na mente] do falante. O funesto princípioque já sempre resi<strong>de</strong> na con<strong>de</strong>scendência <strong>de</strong>sdobra-se no espíritoigualitário em toda a sua bestialida<strong>de</strong>. A con<strong>de</strong>scendência e o nãoter-se em gran<strong>de</strong> monta são a mesma coisa. Pela adaptação à<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> dos oprimidos confirma-se, em tal fraqueza, opressuposto da dominação e revela-se a medida da <strong>de</strong>scortesia, dainsensibilida<strong>de</strong> e da violência <strong>de</strong> que se necessita para o exercícioda dominação. Se, na mais recente fase, <strong>de</strong>cai o gesto <strong>de</strong>con<strong>de</strong>scendência e se torna visível apenas a igualação, então tantomais irreconciliavel-mente se impõe em tão perfeitoobscurecimento do po<strong>de</strong>r a negada relação <strong>de</strong> classe. Para o514


intelectual, a solidão inviolável é a única forma em que ainda sepo<strong>de</strong> verificar a solidarieda<strong>de</strong>. Toda a participação, toda ahumanida<strong>de</strong> do trato e da partilha são simples máscara da tácitaaceitação do inumano. Há que tornar-se consonante com osofrimento dos homens: o mais pequeno passo para o seucontentamento é ainda um passo para o endurecimento dosofrimento.Antítese. - Para quem não alinha existe o perigo <strong>de</strong> ele seconsi<strong>de</strong>rar melhor do que os outros e <strong>de</strong> utilizar a sua crítica dasocieda<strong>de</strong> como i<strong>de</strong>ologia em prol do seu interesse privado.Enquanto tacteia para fazer da própria existência uma pálidaimagem da existência recta, <strong>de</strong>veria ter sempre presente estapali<strong>de</strong>z e saber quão pouco tal imagem substitui a vida recta. Masa semelhante evocação opõe--se nele próprio a força do[elemento] burguês. Quem se distancia permanece tão enredadocomo o industrioso; perante este, aquele não tem outra vantagemexcepto o discernimento do seu enreda-mento e a sorte dadiminuta liberda<strong>de</strong> que resi<strong>de</strong> no conhecer enquanto tal. Adistância relativamente à azáfama é um luxo que a própriaazáfama rejeita. Justamente por isso, toda a tentativa <strong>de</strong> sesubtrair apresenta os rasgos do que é negado. A frieza, que se<strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver, não será diferente da frieza burguesa. Mesmoon<strong>de</strong> se protesta se oculta, no princípio monadológico, o universaldominante. A observação <strong>de</strong> Proust <strong>de</strong> que as fotografias dos avós<strong>de</strong> um duque e <strong>de</strong> um ju<strong>de</strong>u se revelam, a uma distância média,tão parecidas entre si que já ninguém pensa numa hierarquiasocial inci<strong>de</strong> num estado <strong>de</strong> coisas muito mais geral:objectivamente, <strong>de</strong>saparecem por trás da unida<strong>de</strong> da época todasas diferenças que <strong>de</strong>terminam a sorte, mais ainda, a substânciamoral da existência individual. Constatamos a <strong>de</strong>cadência dacultura e, no entanto, a nossa prosa, medida pela <strong>de</strong> Jacob Grimmou <strong>de</strong> Bachofen, é semelhante à da indústria cultural em giros quejá não advertimos. Além disso, também já há muito que nãosabemos latim e grego, como Wolff ou Kirchoff. Assinalamos atransição da civilização para o analfabetismo e <strong>de</strong>sconhecemos615


até como escrever cartas ou ler um texto <strong>de</strong> Jean Paul, como se<strong>de</strong>veria ler no seu tempo. Causa-nos horror o embrutecimento davida, mas a ausência <strong>de</strong> toda a moral objectivamente vinculanteimpele-nos, pouco a pouco, para modos <strong>de</strong> comportamento, paradiscursos e valorações que, segundo a medida do humano, sãobárbaras e, inclusive, para o crítico da boa socieda<strong>de</strong>, carentes <strong>de</strong>tacto. Com a dissolução do liberalismo, o princípio genuinamenteburguês, o da concorrência, não foi superado, mas daobjectivida<strong>de</strong> do processo social transitou para a constituição dosátomos que entre si chocam e se comprimem, ou seja, para aantropologia. A sujeição da vida ao processo <strong>de</strong> produção impõe acada qual, <strong>de</strong> forma humilhante, o isolamento e a solidão quetentámos consi<strong>de</strong>rar como assunto da nossa superior <strong>de</strong>cisão. Éum velho elemento da i<strong>de</strong>ologia burguesa que cada indivíduo, noseu interesse particular, se consi<strong>de</strong>re melhor do que todos osoutros, e que também sinta por eles, enquanto comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>todos os clientes, uma maior estima do que por si mesmo. Des<strong>de</strong>que a velha classe burguesa abdicou, a sua sobrevivência noespírito dos intelectuais - os últimos inimigos dos burgueses - e osúltimos burgueses vão a par. Ao aventurarem--se ainda a pensarperante a nua representação da existência, eles comportam-secomo privilegiados; mas, ao <strong>de</strong>terem-se no pensar, <strong>de</strong>claram anulida<strong>de</strong> do seu privilégio. A existência privada que aspira aassemelhar-se a uma existência digna do homem <strong>de</strong>nuncia aomesmo tempo tal nulida<strong>de</strong>, porquanto se subtrai a semelhança auma realização universal que, hoje mais do que antes, necessitada reflexão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Não há qualquer saída <strong>de</strong>staembrulhada. A única coisa que responsavelmente se po<strong>de</strong> fazer érecusar o abuso i<strong>de</strong>ológico da própria existência e, além disso,comportar-se em privado <strong>de</strong> um modo mo<strong>de</strong>sto, inconspícuo e<strong>de</strong>spretensioso, pois já há muito não é a educação, mas sim avergonha, que exige que, no inferno, se <strong>de</strong>ixe ao outro aindaalgum ar para respirar.They, the people. - A circunstância <strong>de</strong> os intelectuais teremgeralmente <strong>de</strong> lidar com intelectuais não os <strong>de</strong>veria levar a ter osseus congéneres por mais vulgares do que o resto da humanida<strong>de</strong>.716


Pois sentem-se reciprocamente na situação mais vergonhosa eindigna <strong>de</strong> todas, na situação dos solicitantes em concorrência, etornam-se mutuamente, quase por compulsão, as suas partes maisabomináveis. Os outros homens, sobretudo os simples, cujasqualida<strong>de</strong>s o intelectual é tão propenso a relevar, <strong>de</strong>param-se aeste sobretudo no papel <strong>de</strong> quem quer ven<strong>de</strong>r algo, sem recearque o cliente o possa molestar. O mecânico <strong>de</strong> automóveis, amenina do bar tem facilida<strong>de</strong> em eximir-se à insolência: <strong>de</strong>qualquer modo, a cordialida<strong>de</strong> vem-lhes imposta <strong>de</strong> cima. Se,pelo contrário, os analfabetos aco<strong>de</strong>m aos intelectuais para queestes lhes redijam cartas, po<strong>de</strong>m também <strong>de</strong>les ter experiênciassofrivelmente boas. Mas logo que as pessoas simples têm <strong>de</strong> lutarpela sua parte no produto social, superam em inveja e em rancortudo o que se po<strong>de</strong> observar entre literatos ou mestres <strong>de</strong> capela.A glorificação dos magníficos un<strong>de</strong>r-dogs <strong>de</strong>semboca na doesplêndido sistema que em tais os converte. Os justificadossentimentos <strong>de</strong> culpa dos que estão isentos do trabalho físico não<strong>de</strong>veriam servir <strong>de</strong> subterfúgio para a "idiotia da vida campesina".Os intelectuais que escrevem exclusivamente sobre os intelectuaise convertem o seu péssimo nome no da autenticida<strong>de</strong> reforçam amentira. Uma gran<strong>de</strong> parte do anti-intelectualismo e doirracionalismo dominantes até Huxley provém <strong>de</strong> que aqueles queescrevem acusam o mecanismo da concorrência, sem o examinare, por isso, a ele se ren<strong>de</strong>m. No seu ramo mais próprio, trancarama consciência do tat twam asi. Por isso, acorrem logo aos temploshindus.Se te atraem os rapazes maus. - Há um amor intellectualispelo pessoal <strong>de</strong> cozinha, a tentação dos que trabalham teórica ouartisticamente <strong>de</strong> afrouxar a exigência espiritual em si mesma, <strong>de</strong><strong>de</strong>scer abaixo do seu nível, <strong>de</strong> seguir no seu tema e na suaexpressão todos os possíveis hábitos que, enquanto atentosconhecedores, rejeitavam. Visto que nenhuma categoria, nemsequer a cultura, já está dada ao intelectual e milhares <strong>de</strong>exigências da activida<strong>de</strong> comprometem a sua concentração, oesforço para produzir algo razoavelmente sólido é tão gran<strong>de</strong> quejá mal resta alguém <strong>de</strong>le capaz. Além disso, a pressão do817


conformismo, que pesa sobre o produtor, diminui a exigênciasobre si mesmo. O centro da autodisciplina intelectual enquantotal entrou em <strong>de</strong>composição. Os tabus, que constituem a categoriaespiritual <strong>de</strong> um homem e são, muitas vezes, experiênciassedimentadas e conhecimentos inarticulados, dirigem-se semprecontra os próprios impulsos que ele apren<strong>de</strong>u a reprovar, masestes são tão fortes que só uma instância inquestionável einquestionada os consegue <strong>de</strong>ter. O que é válido para a vidapulsional não o é menos para a vida espiritual: o pintor e ocompositor que se interditam esta e aquela combinação <strong>de</strong> coresou <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s como vulgar, o escritor que se enerva em razão <strong>de</strong>certas configurações linguísticas por banais ou pedantes, reagemtão intensamente porque neles próprios há estratos que nessesentido os atraem. A recusa da inessência dominante da culturapressupõe que nela se participe o suficiente para a sentir, porassim dizer, palpitar entre os próprios <strong>de</strong>dos, mas que ao mesmotempo <strong>de</strong>ssa participação se extraíram forças para a <strong>de</strong>nunciar.Mas tais forças, que emergem como forças da resistênciaindividual, não são <strong>de</strong> índole meramente individual. Aconsciência intelectual em que elas se concentram tem ummomento social, tal como o superego moral. Constitui-se elenuma representação da socieda<strong>de</strong> justa e dos seus cidadãos. Se talrepresentação alguma vez esmorecer - e quem po<strong>de</strong>ria entregar-sea ela com uma confiança cega? -, o impulso intelectual para baixoper<strong>de</strong> a sua inibição e vem à luz toda a imundície que a culturabárbara <strong>de</strong>positara no indivíduo: a semi-formação, a indolência, acredulida<strong>de</strong> grosseira, a brutalida<strong>de</strong>. Na maioria dos casos,racionaliza-se também ainda como humanida<strong>de</strong>, como a vonta<strong>de</strong><strong>de</strong> buscar a compreensão dos outros homens, comoresponsabilida<strong>de</strong> cheia <strong>de</strong> experiência do mundo. Mas o sacrifícioda autodisciplina intelectual torna-se <strong>de</strong>masiado fácil para aqueleque o assume, <strong>de</strong> maneira que nele se possa acreditar que se trata<strong>de</strong> um sacrifício. A observação torna-se drástica para osintelectuais cuja situação material se alterou: logo que conseguem<strong>de</strong> algum modo persuadir-se <strong>de</strong> que ganharam o seu dinheiro aescrever e não <strong>de</strong> outra forma, <strong>de</strong>ixam que permaneça no mundo,até ao pormenor, o mesmo lixo que outrora, como acomodados,tinham veementemente proscrito. Assim como os emigrantes, queum dia foram ricos, são amiú<strong>de</strong>, no estrangeiro, tão18


complacentemente avarentos como já <strong>de</strong> bom grado o teriam sidona pátria, assim os empobrecidos no espírito marcham com entusiasmopara o inferno, que é o seu reino dos Céus.Acima <strong>de</strong> tudo uma coisa, meu filho. - A imoralida<strong>de</strong> damentira não consiste na violação da sacrossanta verda<strong>de</strong>. Ao fim eao cabo, tem direito a invocá-la uma socieda<strong>de</strong> que induz os seusmembros compulsivos a falar com franqueza para, logo a seguir,tanto mais seguramente os po<strong>de</strong>r surpreen<strong>de</strong>r. À universalinverda<strong>de</strong> não convém permanecer na verda<strong>de</strong> particular, queimediatamente transforma na sua contrária. Apesar <strong>de</strong> tudo, àmentira é inerente algo repugnante cuja consciência submetealguém ao açoite do antigo látego, mas que ao mesmo tempo dizalgo acerca do carcereiro. O erro resi<strong>de</strong> na excessiva sincerida<strong>de</strong>.Quem mente envergonha-se, porque em cada mentira <strong>de</strong>veexperimentar o indigno da organização do mundo, que o obriga amentir, se ele quiser viver, e ainda lhe canta: "Age sempre comlealda<strong>de</strong> e rectidão". Tal vergonha rouba a força às mentiras dosmais subtilmente organizados. Elas confun<strong>de</strong>m; por isso, amentira só no outro se torna imoralida<strong>de</strong> como tal. Toma este porestúpido e serve <strong>de</strong> expressão à irresponsabilida<strong>de</strong>. Entre osinsidiosos práticos <strong>de</strong> hoje, a mentira já há muito per<strong>de</strong>u a suahonrosa função <strong>de</strong> enganar acerca do real. Ninguém acredita emninguém, todos sabem a resposta. Mente-se só para dar a enten<strong>de</strong>rao outro que a alguém nada nele importa, que <strong>de</strong>le não senecessita, que lhe é indiferente o que ele pensa acerca <strong>de</strong> alguém.A mentira, que foi outrora um meio liberal <strong>de</strong> comunicação,transformou-se hoje numa das técnicas da insolência, graças àqual cada indivíduo esten<strong>de</strong> à sua volta a frieza, e sob cujaprotecção po<strong>de</strong> prosperar.Separados-unidos. - O casamento, cuja <strong>de</strong>negrida paródiasobrevive numa época que <strong>de</strong>ixou sem fundamento o direitohumano do matrimónio, serve hoje, quase sempre, <strong>de</strong> artimanhapara a autoconservação: cada um dos dois ajuramentados atribui91019


ao outro a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os males que ele perpetra,enquanto coexistem <strong>de</strong> um modo, para falar verda<strong>de</strong>, turvo elamacento. Casamento <strong>de</strong>cente seria só aquele em que ambostivessem a sua própria vida in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, sem a fusão que brotada comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses constrangida por factoreseconómicos, mas da qual assumiram livremente aresponsabilida<strong>de</strong> recíproca. O casamento como comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>interesses significa irrecusavelmente a <strong>de</strong>gradação dosinteressados, e a perfídia <strong>de</strong>sta instituição universal é queninguém, ainda que soubesse porquê, se po<strong>de</strong> subtrair a tal <strong>de</strong>gradação.Por isso, po<strong>de</strong>ria, às vezes, chegar-se a pensar que sóporque se livraram da perseguição <strong>de</strong> interesses, os ricos, têmreservada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um casamento sem vergonha. Masesta possibilida<strong>de</strong> é puramente formal; esses privilegiados sãojustamente aqueles em que a prossecução do interesse setransformou numa segunda natureza - <strong>de</strong> outro modo, não teriamafirmado o privilégio.Mesa e cama. - Logo que os seres humanos, mesmo os <strong>de</strong>bom feitio, amistosos e cultivados, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m separar-se, costumalevantar-se uma poeirada que cobre e <strong>de</strong>scolora tudo o que comela entra em contacto. E como se a esfera da intimida<strong>de</strong>, aletárgica confiança da vida em comum, se transformasse numasubstância venenosa com a rotura das relações em que assentava.A intimida<strong>de</strong> entre os humanos é indulgência, tolerância, redutodas singularida<strong>de</strong>s. Se ela se transtorna, o momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>aparece por si só, e com a separação é inevitável uma viragempara o exterior. Esta apropria--se <strong>de</strong> todo o inventário daconfi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong>. Coisas que uma vez foram símbolos <strong>de</strong>amorosa solicitu<strong>de</strong>, imagens <strong>de</strong> conciliação, tornam-se, <strong>de</strong> súbito,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes como valores e mostram o seu lado mau, frio e<strong>de</strong>letério. Professores que, após a separação, irrompem nahabitação da sua mulher para retirar objectos do escritório, damasbem dotadas que <strong>de</strong>nunciam os seus maridos por frau<strong>de</strong> nosimpostos. Se o casamento oferece uma das últimas possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> formar células humanas no seio do geral inumano, este vingasecom a sua <strong>de</strong>sintegração, apo<strong>de</strong>rando-se da aparente excepção,1120


submete-a aos alienados or<strong>de</strong>namentos do direito e daproprieda<strong>de</strong> e mofa dos que se julgavam a salvo. O maisprotegido transforma--se em cruel requisito do abandono. Quantomais "generosa" foi originariamente a relação mútua entre oscônjuges, quanto menos tinham pensado na proprieda<strong>de</strong> e naobrigação, tanto mais odiosa será a <strong>de</strong>gradação; pois é no âmbitodo juridicamente in<strong>de</strong>finido que prospera a disputa, a difamação,o incessante conflito dos interesses. Toda a obscurida<strong>de</strong> em cujacuja base assenta a instituição do casamento, a bárbara disposiçãoque o marido tem sobre a proprieda<strong>de</strong> e o trabalho da mulher, anão menos bárbara opressão sexual que, ten<strong>de</strong>ncialmente, força ohomem a assumir para toda a sua vida a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>dormir com aquela que uma vez lhe proporcionou prazer - tudoisso é o que se liberta dos sótãos e das caves, quando a casa é<strong>de</strong>molida. Os que um dia experimentaram a bonda<strong>de</strong> do geral naexclusiva pertença recíproca são agora obrigados pela socieda<strong>de</strong> aconsi<strong>de</strong>rar-se patifes e a apren<strong>de</strong>r que eles se assemelham aogeral da ilimitada vilania externa. Na separação, o geral revela-secomo a mácula do particular, porque o particular, o matrimónio,não consegue realizar o geral verda<strong>de</strong>iro em tal socieda<strong>de</strong>.Inter pares. - No âmbito das qualida<strong>de</strong>s eróticas parece levar--se a cabo uma transmutação <strong>de</strong> valores. Sob o liberalismo, equase até aos nossos dias, os homens casados da boa socieda<strong>de</strong>,aos quais a sua esmeradamente educada e correcta esposa poucopodia oferecer, costumavam encontrar satisfação nas artistas, nasboémias, nas meninas doces e cocotes. Com a racionalização dasocieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>svaneceu-se esta possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> nãoregulamentada. As cocotes extinguiram-se, as meninas docesnunca as houve nos países anglo-saxónicos e noutros <strong>de</strong>civilização técnica, mas as artistas, bem como a boémia instaladaparasitariamente em redor da cultura <strong>de</strong> massas, foram tãoperfeitamente penetradas pela razão <strong>de</strong> tal cultura que quem serefugiasse ansiosamente na sua anarquia - a livre disposição dopróprio valor <strong>de</strong> troca - corria o perigo <strong>de</strong> vir a acordar com aobrigação, se não as contratasse como secretárias, <strong>de</strong> ao menos asrecomendar a algum magnata do cinema ou plumitivo conhecido.1221


As únicas que ainda po<strong>de</strong>m permitir-se algo semelhante ao amorirracional são justamente aquelas damas <strong>de</strong> que os maridos seseparavam para ir ao Maxim's. Embora continuem a ser para osseus maridos, e por culpa sua, tão aborrecidas como as suas mães,conseguem pelo menos oferecer a outros o que a todas elas é subtraído.A libertina, há muito frígida, representa o negócio; acorrecta, a bem educada, a sexualida<strong>de</strong> ansiosa e anti-romântica.Por fim, as damas da socieda<strong>de</strong> ace<strong>de</strong>m a ser a honra da sua<strong>de</strong>sonra no momento em que já não há nem socieda<strong>de</strong> nemdamas.Protecção, ajuda e conselho. - Todo o intelectual no exílio é,sem excepção, prejudicado e faz bem em reconhecê-lo, se nãoquiser que lho façam saber <strong>de</strong> forma cruel por <strong>de</strong>trás das portashermeticamente fechadas da sua auto-estima. Vive num ambienteque lhe <strong>de</strong>ve permanecer incompreensível, por mais que saiba dasorganizações sindicais ou do tráfego urbano; estará sempre<strong>de</strong>sorientado. Entre a reprodução da sua própria vida sob omonopólio da cultura <strong>de</strong> massas e o trabalho responsável há umhiato irreconciliável. Descaracterizada é a sua língua e sepultadaestá a dimensão histórica on<strong>de</strong> o seu conhecimento ia buscarforças. O isolamento agrava-se tanto mais quanto mais grupossólidos e politicamente controlados se constituem; <strong>de</strong>sconfiadoperante os a<strong>de</strong>ptos e hostil com os já rotulados. A participação noproduto social que toca aos estrangeiros não será suficiente eempurra-os para uma <strong>de</strong>sesperada segunda concorrência entreeles no seio da geral concorrência. Tudo isso <strong>de</strong>ixa marcas emcada um. Mesmo quem se encontra subtraído ao opróbrio daimediata igualação transporta, como seu sinal particular, estaexclusão, uma existência aparente e irreal <strong>de</strong>ntro do processo vitalda socieda<strong>de</strong>. As relações entre os expatriados estão ainda maisenvenenadas do que as vigentes entre os autóctones. Todas asavaliações se tornam falsas, altera-se a óptica. O privado abre caminho<strong>de</strong> um modo inconveniente, febril, vampirino,simplesmente porque, em rigor, já não existe e preten<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modoconvulsivo, ostentar a sua vida. O público torna-se assuntopróprio <strong>de</strong> um juramento inexpresso <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> sobre a1322


plataforma. O olhar adopta o [semblante] mânico e, ao mesmotempo, a frieza do arrebatar, do <strong>de</strong>vorar e do reter. A única ajudaé a perseverante diagnose <strong>de</strong> si mesmo e dos outros, a tentativa<strong>de</strong>, pela consciência, escapar ao infortúnio ou, pelo menos, sesubtrair à sua fatal violência, a da cegueira. Uma extrema cautelaaumentou em especial na escolha do ambiente privado, na medidaem que ela a alguém é permitida. Importa sobretudo precaver-se<strong>de</strong> buscar os po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong> quem "há algo a esperar". A visão daspossíveis vantagens é o inimigo mortal da formação <strong>de</strong> relaçõeshumanas dignas; <strong>de</strong>stas po<strong>de</strong> brotar a solidarieda<strong>de</strong> e adisponibilida<strong>de</strong> recíproca, mas nunca elas po<strong>de</strong>m nascer daconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> objectivos práticos. Dificilmente menosperigosas são as imagens especulares do po<strong>de</strong>r, os lacaios, osaduladores e os pedinchões que se <strong>de</strong>dicam a agradar ao maisbem situado <strong>de</strong> um modo arcaico, como ele só po<strong>de</strong> prosperar nasrelações economicamente extraterritoriais próprias da emigração.Enquanto trazem ao protector pequenas vantagens, também lhasretiram logo que as aceita, coisa a que constantemente os induz asua própria inépcia no estrangeiro. Se na Europa o gesto esotéricoera, muitas vezes, só um pretexto para os mais cegos interessesparticulares, o <strong>de</strong>teriorado e pouco impermeável conceito daaustérité parece, na emigração, o mais aceitável salva-vidas. Sóque, <strong>de</strong>certo, está à disposição para muito poucos com o <strong>de</strong>vidoacondicionamento. À maioria dos que sobem para bordo ameaçaaa morte por inanição ou pela loucura.Le bourgeois revenant. - Nos regimes fascistas da primeirameta<strong>de</strong> do século XX, estabilizou-se absurdamente a formaobsoleta da economia, e multiplicou-se o terror <strong>de</strong> que elanecessita para se manter em pé, e agora o seu absurdo vemtotalmente à luz do dia. Mas também por ele está caracterizada avida privada. Com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> disposição implantou-se, uma vezmais e simultaneamente, a asfixiante or<strong>de</strong>m do privado, oparticularismo dos interesses, a já há muito ultrapassada forma dafamília, o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> e o seu reflexo no carácter. Mascom má consciência, com a dificilmente dissimulada consciênciada inverda<strong>de</strong>. O que na burguesia sempre se consi<strong>de</strong>rou bom e1423


<strong>de</strong>coroso, a in<strong>de</strong>pendência, a persistência, a previsão e aprudência, está corrupto até ao cerne. Pois enquanto as formasburguesas da existência se conservam com obstinação, o seupressuposto económico foi <strong>de</strong>rrubado. O privado transferiu-seinteiramente para o privativo que, no fundo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre foi, ecom o pertinaz apego ao interesse próprio misturou-se talobcecação que <strong>de</strong> nenhum modo já consegue perceber que épossível ser diferente e melhor. Os burgueses per<strong>de</strong>ram a suaingenuida<strong>de</strong>; torna-ram-se a tal respeito <strong>de</strong> todo insensíveis e malintencionados. A mão protectora que ainda cuida e cultiva o seupequeno jardim, como se este, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito, não se tivesseconvertido em «lote», mas que, timorata, mantém à distância ointruso <strong>de</strong>sconhecido, é a que já recusa o asilo ao refugiadopolítico. Como se tivessem objectivamente ameaçados, os<strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r e o seu séquito tornam-se subjectivamente <strong>de</strong>todo inumanos. A classe dobra-se assim sobre si mesma eapropria-se da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>struidora do curso do mundo. Osburgueses sobrevivem como fantasmas que anunciam o <strong>de</strong>sastre.Le nouvel avare. - Há duas classes <strong>de</strong> avareza. Uma é aarcaica, a paixão que nada conce<strong>de</strong> nem a si nem aos outros, cujorasgo fisionómico Molière eternizou, e Freud elucidou comocarácter anal. Realiza-se no miser, no mendigo, que em segredodispõe <strong>de</strong> milhões e que é, por assim dizer, a máscara puritana docalifa disfarçado do conto. Assemelha-se ele ao coleccionador, aomaniático e, por fim, ao gran<strong>de</strong> amador como Gobsek a Esther.Ainda se encontra, mas como curiosida<strong>de</strong>, nas colunas locais dosjornais. Nos nossos dias, o avaro é aquele para quem nada é, parasi, <strong>de</strong>masiado caro, e tudo o é para os outros. Pensa emequivalências, a sua vida privada encon-tra-se toda sob a lei <strong>de</strong>dar sempre menos do que se recebe, mas sempre bastante paraalgo po<strong>de</strong>r receber. Em toda a benevolência que possa conce<strong>de</strong>r<strong>de</strong>ixa-se notar a consi<strong>de</strong>ração: «será isto necessário?», «haveráque fazer isto?» A sua característica mais distinta é a pressa em«correspon<strong>de</strong>r» às atenções recebidas, a fim <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixaraparecer buraco algum na ca<strong>de</strong>ia dos actos <strong>de</strong> troca que <strong>de</strong>terminaos seus gastos. Porque neles tudo ocorre <strong>de</strong> modo racional e com1524


as coisas em regra, é impossível, como a Harpagon e a Scro-oge,convencê-los e convertê-los. A sua amabilida<strong>de</strong> é uma medida dasua inflexibilida<strong>de</strong>. Quando é imperativo, postam-se irrefutavelmenteno justo, e fundam o justo no injusto, ao passo que aloucura dos avarentos mesquinhos tinha o elemento conciliador<strong>de</strong> que a tendência para guardar o ouro na arca atraía o ladrão,mais, <strong>de</strong> que a sua paixão se apaziguava com o sacrifício ou coma perda, tal como o <strong>de</strong>sejo da posse erótica com a renúncia. Osnovos avarentos, porém, já não praticam a ascese como um vício,mas com previsão. Têm seguro.Sobre a dialéctica do tacto. - Goethe, com a sua clarividênciada impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as relações humanas que ameaçava ainsipiente socieda<strong>de</strong> industrializada, tentou, nas novelas dos anos<strong>de</strong> viagem, apresentar o tacto como a informação salvadora entreos homens alienados. Esta informação afigurou-se-lhe inseparávelda resignação, da renúncia à proximida<strong>de</strong> e à paixão nãodiminuídas e à felicida<strong>de</strong> duradoura. O humano consistia, paraele, numa auto-limitação que, conjurando-a, convertia em coisasua o inevitável curso da história - a inumanida<strong>de</strong> do progresso, aatrofia do sujeito. Mas o que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então aconteceu faz que aresignação goetheana pareça uma realização. Tacto e humanida<strong>de</strong>- nele idênticos - percorreram entretanto o caminho que, segundoa sua opinião, <strong>de</strong>viam evitar. O tacto, porém, tem a sua precisahora histórica. E aquela em que o indivíduo burguês se libertou dacoerção absolutista. Livre e solitário, respon<strong>de</strong> por si mesmo,enquanto as formas da consi<strong>de</strong>ração e do respeito hierárquicos,<strong>de</strong>senvolvidas pelo absolutismo, privadas do seu fundamentoeconómico e do seu po<strong>de</strong>r ameaçador, estavam ainda assazpresentes para tornar suportável a convivência <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> gruposprivilegiados. Semelhante empate, <strong>de</strong> certo modo paradoxal, entreabsolutismo e liberalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixa-se perceber, tal como noWilhelm Meister, também na posição <strong>de</strong> Beethoven relativamenteaos esquemas tradicionais da composição, e até no seio da próprialógica, na reconstrução subjectiva por Kant das i<strong>de</strong>iasobjectivamente vinculatórias. As repetições regulares <strong>de</strong>Beethoven <strong>de</strong>pois das passagens dinâmicas, a <strong>de</strong>dução <strong>de</strong> Kant1625


das categorias escolásticas a partir da unida<strong>de</strong> da consciência são,num sentido eminente, "cheias <strong>de</strong> tacto". O pressuposto do tacto éa convenção em si já rompida e, no entanto, ainda actual. Estaencontra-se agora irremissivelmente em <strong>de</strong>cadência e sobreviveapenas na paródia das formas, numa etiqueta para ignorantes,arbitrariamente inventada ou recordada, como a que pregam nosjornais conselheiros não requisitados, enquanto o consenso, queconseguiu suster aquelas convenções na sua hora humana, setransferiu para o cego conformismo dos automobilistas e ouvintesda rádio. O <strong>de</strong>clinar do momento cerimonial parece, em princípio,beneficiar o tacto. Este é assim emancipado <strong>de</strong> todo oheterónomo, do puramente externo; o comportamento cheio <strong>de</strong>tacto seria unicamente aquele que se rege pela natureza específica<strong>de</strong> cada relação humana. Todavia, este tacto emancipado, comotodo o nominalismo, está enredado em dificulda<strong>de</strong>s. O tacto nãosignificava só a submissão à convenção cerimonial, acerca daqual todos os humanistas incessantemente ironizaram. A funçãodo tacto era antes tão paradoxal como o seu lugar histórico.Aspirava à conciliação, em si impossível, entre a pretensão nãoratificada da convenção e a pretensão rebel<strong>de</strong> do indivíduo. Otacto só naquela convenção se podia ajustar. Ela representava,embora <strong>de</strong> forma muito atenuada, o universal, que constitui asubstância da própria pretensão individual. O tacto é uma<strong>de</strong>terminação da diferença. Consiste em divergências conscientes.Todavia, ao contrapor--se enquanto emancipado ao indivíduocomo algo absoluto, sem um universal <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse distinguirse,per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista o indivíduo e acaba por lhe cometer umainjustiça. A busca da condição, não mais exigida e esperada pelaeducação, converte-se em inquirição ou em ofensa; o silênciosobre objectos <strong>de</strong>licados, em vazia indiferença, logo que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>haver regras acerca daquilo <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong>, ou não, falar. Osindivíduos começam então, não sem motivo, a reagir hostilmenteao tacto: uma certa forma <strong>de</strong> cortesia faz que eles não se sintam jáconsi<strong>de</strong>rados como homens, mas que neles <strong>de</strong>sperte a suspeita dasituação inumana em que se encontram; e então o homem cortêscorre o risco <strong>de</strong> surgir como <strong>de</strong>scortês, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> usar acortesia como uma prerrogativa ultrapassada. Por fim, o tactoemancipado e puramente individual torna-se simples mentira. Oque <strong>de</strong>le se encontra hoje no indivíduo, e que este diligentemente26


silencia, é o po<strong>de</strong>r fáctico, e mais ainda o po<strong>de</strong>r potencial quecada qual incorpora. À exigência <strong>de</strong> tratar o indivíduo como tal,sem quaisquer preâmbulos, <strong>de</strong> forma absolutamente ajustada, estásubjacente o zeloso controlo <strong>de</strong> que cada palavra dê conta por simesma e tacitamente daquilo que o interlocutor representa naesclerosada hierarquia que todos abarca, e <strong>de</strong> quais são as suasoportunida<strong>de</strong>s. O nominalismo do tacto ajuda o mais geral, opo<strong>de</strong>r nu e cru <strong>de</strong> disposição, em prol do triunfo inclusive nasconstelações mais íntimas. O cancelamento das convenções comoum ornamento superado, inútil e superficial, apenas confirma asuperficialida<strong>de</strong> máxima, uma vida <strong>de</strong> dominação imediata. Que,todavia, o próprio colapso da caricatura do tacto na camaradagem<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ira torne ainda, como mofa da liberda<strong>de</strong>, maisinsuportável a existência é apenas um sinal mais <strong>de</strong> como setornou impossível a convivência dos homens nas actuaiscircunstâncias.Reserva <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>. - A marca da época é que nenhumhomem, sem qualquer excepção, po<strong>de</strong> já <strong>de</strong>terminar a sua vidanum sentido tão transparente como o que outrora havia naavaliação das relações <strong>de</strong> mercado. Em princípio todos sãoobjectos, mesmo os mais po<strong>de</strong>rosos. Até a profissão <strong>de</strong> general jánão oferece uma protecção suficiente. Na era fascista, nenhunsacordos são assaz vinculantes para proteger os quartéis generaisdos ataques aéreos, e os comandantes que conservam a tradicionalcircunspecção são enforcados por Hitler ou <strong>de</strong>capitados porTchan Kai-Chek. Don<strong>de</strong> imediatamente se segue que todo o quetenta sair ilibado - e a própria sobrevivência tem algo <strong>de</strong> absurdocomo os sonhos, em que se participa no fim do mundo para,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, sair rastejando <strong>de</strong> um buraco da cave - <strong>de</strong>veria aomesmo tempo viver <strong>de</strong> forma a estar em todo o momento dispostoa terminar com a sua vida. Eis algo que parece dimanar, comouma triste verda<strong>de</strong>, da exaltada doutrina <strong>de</strong> Zaratustra sobre amorte livre. A liberda<strong>de</strong> comprimiu-se em pura negativida<strong>de</strong>, e oque na época do Jugenstil se chamava morrer em beleza reduziuseao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> diminuir a <strong>de</strong>gradação infinda da existência e otormento ilimitado <strong>de</strong> morrer num mundo on<strong>de</strong>, já há muito, há1727


coisas piores a temer do que a morte. - O fim objectivo dahumanida<strong>de</strong> é apenas outra expressão para a mesma coisa.Significa que o indivíduo enquanto singular, enquantorepresentante da espécie 'homem', per<strong>de</strong>u a autonomia pela qualpodia realizar a espécie.Asilo para os sem abrigo. - O modo como hoje está asituação na vida privada mostra-se no seu cenário. Em rigor, jánão é possível o que se chama habitar. As habitações tradicionaisem que crescemos tornaram-se insuportáveis: cada sinal <strong>de</strong>conforto se paga nelas com a traição ao conhecimento, cadaforma <strong>de</strong> recolhimento com a bafi-enta comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interessesda família. As novas, que fizeram tabula rasa, são estojosfabricados por peritos para filisteus, ou alojamentos operáriostransviados na esfera do consumo, sem qualquer relação comquem os habita; fustigam na face o anelo, já inexistente, <strong>de</strong> umaexistência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. O homem mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong>seja dormir pertodo chão como um animal, <strong>de</strong>cretava com profético masoquismouma revista alemã anterior a Hitler, e com a cama suprimia olimiar entre a vigília e o sonho. Os que ali pernoitam estão sempredisponíveis e prontos para tudo sem nenhuma resistência, aomesmo tempo <strong>de</strong>spertos e aturdidos. Quem se refugia nas habitaçõesautênticas - mas também amontoadas - o que faz éembalsamar--se vivo. Se se preten<strong>de</strong> evitar a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>habitar uma casa, <strong>de</strong>slocando-se para o hotel ou para oapartamento mobilado, faz-se das condições impostas pelaemigração a norma da vida. Como em toda a parte, o pior cabeàqueles que não têm escolha. Habitam, se não em bairros <strong>de</strong> lata,então em bungalows que amanhã po<strong>de</strong>rão ser já as suas barracas,caravanas, automóveis, acampamentos, morada ao ar livre. A casafoi-se. As <strong>de</strong>struições das cida<strong>de</strong>s europeias, tal como os campostrabalho e <strong>de</strong> concentração, continuam apenas, como executores,o que já há muito o <strong>de</strong>senvolvimento imanente da técnica <strong>de</strong>cidiufazer com as casas. Estas servem só para serem lançadas fora,como velhas latas <strong>de</strong> conserva. A possibilida<strong>de</strong> do habitar é1828


aniquilada pela da socieda<strong>de</strong> socialista que, enquantopossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scurada, leva a socieda<strong>de</strong> burguesa a uma latente<strong>de</strong>sgraça. Nenhum indivíduo po<strong>de</strong>, contra isso, seja o que for. Jáquando procura projectar o mobiliário ou a <strong>de</strong>coração interior seaproxima do refinamento artístico industrial <strong>de</strong> tipo bibliófilo,embora esteja <strong>de</strong>cididamente contra a arte industrial em sentidoestrito. De longe já não é tão consi<strong>de</strong>rável a diferença entre asoficinas vienenses e o Bauhaus. Entretanto, as curvas da puraforma funcional tornaram-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da sua função epassaram a ornamento, como as formas cubistas. A melhor atitu<strong>de</strong>perante tudo isto parece ser ainda a in<strong>de</strong>pendência, a suspensão:levar a vida privada até on<strong>de</strong> o permitirem a or<strong>de</strong>m social e aspróprias necessida<strong>de</strong>s, mas não sobrecarregá-la como se fossealgo socialmente substancial e individualmente a<strong>de</strong>quado. "Éinerente à minha felicida<strong>de</strong> não ser proprietário <strong>de</strong> nenhumacasa", escrevera já Nietzsche na Gaia Ciência. Hoje, <strong>de</strong>veriaacrescentar-se: é um imperativo moral não estar em sua casaconsigo. Revela-se aqui alguma coisa da difícil situação em quese encontra o indivíduo com a sua proprieda<strong>de</strong>, enquantocontinuar ainda a possuir algo. A arte consistiria em pôr emevidência e em expressar o facto <strong>de</strong> que a proprieda<strong>de</strong> privada jánão pertence a ninguém, no sentido <strong>de</strong> que a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bens<strong>de</strong> consumo se tornou potencialmente tão gran<strong>de</strong> que já nenhumindivíduo tem o direito <strong>de</strong> se aferrar ao princípio da sua restrição;que, todavia, <strong>de</strong>ve ter proprieda<strong>de</strong>, se não quiser cair naquela<strong>de</strong>pendência e necessida<strong>de</strong> que beneficia a cega persistência darelação <strong>de</strong> posse. Mas a tese <strong>de</strong>ste paradoxo leva à <strong>de</strong>struição, aum frio <strong>de</strong>sdém pelas coisas que, forçosamente, se vira tambémcontra as pessoas, e a antítese, no momento em que se enuncia, éjá uma i<strong>de</strong>ologia para aqueles que, com má consciência, queremconservar o seu. Não há nenhuma vida recta na falsa.Não bater à porta. - Por enquanto, a tecnificação torna osgestos precisos e grosseiros e, com eles, os homens. Desaloja dosgestos toda a hesitação, todo o cuidado, toda a urbanida<strong>de</strong>.Submete-os às exigências implacáveis e, por assim dizer,anistóricas das coisas. Assim se <strong>de</strong>sapren<strong>de</strong>, por exemplo, como1929


fechar uma porta <strong>de</strong> forma suave, cuidadosa e completa. A dosautomóveis e dos frigoríficos <strong>de</strong>vem atirar-se; outras ten<strong>de</strong>m afechar-se por si mesmas, habituando assim os que entram àin<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong> não olharem para Irás, <strong>de</strong> não se fixarem nointerior da casa que os acolhe. Não se julgará imparcialmente onovo tipo humano sem a consciência do eleito que, <strong>de</strong> modoincessante, nele produzem, até às suas mais ocultas inervações, ascoisas do ambiente. Que significa, para o sujeito, que já nãoexistam janelas com caixilhos que se po<strong>de</strong>m abrir, mas apenasvidros que <strong>de</strong>slizam, que não existam trincos lentos masmaçanetas giratórias, que já não haja vestíbulo, limiar frente à ruaou muros que ro<strong>de</strong>iam os jardins? E que condutores não teria jálevado a força do seu motor à tentação <strong>de</strong> esmagar toda abicharada da rua, transeuntes, crianças ou ciclistas? Nosmovimentos que as máquinas exigem daqueles que as utilizamresi<strong>de</strong> já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maustratos fascistas. Da morte da experiência é em gran<strong>de</strong> parteresponsável o facto <strong>de</strong> as coisas, sob a lei da sua pura utilida<strong>de</strong>,adquirirem uma forma que restringe o trato com elas ao simplesmanejo, sem tolerância por um excesso, ou <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acçãoou <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência da coisa, e que po<strong>de</strong> subsistir como gérmen<strong>de</strong> experiência, porque não po<strong>de</strong> ser consumido pelo instante daacção.Struwwelpeter 1 . - Quando Hume, diante dos seus mundanoscompatriotas, tentou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a contemplação gnoseológica, a"filosofia pura", <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito <strong>de</strong>sacreditada entre os gentlemen,serviu--se <strong>de</strong>ste argumento: "A exactidão favorece sempre abeleza, e o pensamento exacto o sentimento <strong>de</strong>licado." Era em simesmo um argumento pragmatista e, no entanto, contém implícitae negativamente toda a verda<strong>de</strong> acerca do espírito da praxis. Asor<strong>de</strong>nações práticas da vida, que se apresentam como algobenéfico para os homens, produzem na economia do lucro umaatrofia do humano, e quanto mais se esten<strong>de</strong>m tanto maiscerceiam tudo o que há <strong>de</strong> <strong>de</strong>licado. Pois a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za entre os201 Ver N. T. ao parágrafo 56, p. 88.30


homens é apenas a consciência da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<strong>de</strong>sinteressadas, que inclusive acaricia consoladoramente osaferrados à utilida<strong>de</strong>; herança <strong>de</strong> antigos privilégios, que prometeuma situação isenta <strong>de</strong> privilégios. A eliminação do privilégiomediante a ratio burguesa <strong>de</strong>sfaz também, ao fim e ao cabo, essapromessa. Se o tempo é dinheiro, parece moral poupar tempo,sobretudo o próprio, e <strong>de</strong>sculpa-se tal poupança com aconsi<strong>de</strong>ração pelos outros. Vai-se a direito. Todo o véu que secorre no trato entre os homens é sentido como uma perturbaçãono funcionamento do aparelho, no qual não só estãoobjectivamente incorporados, mas em que também se olham comorgulho. Que em vez <strong>de</strong> levantar o chapéu se saú<strong>de</strong>m com um"olá" <strong>de</strong> habitual indiferença, que em vez <strong>de</strong> cartas se envieminter office comunications sem cabeçalho e sem assinatura, sãooutros tantos sintomas <strong>de</strong> uma enfermida<strong>de</strong> do contacto. Aalienação manifesta-se nos homens justamente no<strong>de</strong>saparecimento das distâncias. Pois só na medida em que elas<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> se assestar ao corpo com o dar e o tomar, com adiscussão e a execução, com a disposição e a função, resta espaçosuficiente para entre eles passar o fino fio que os une e em cujaexteriorida<strong>de</strong> apenas se cristaliza o interior. Reaccionários comoos discípulos <strong>de</strong> C. G. Jung <strong>de</strong>ram por tal. Assim num ensaio daEranos diz G. R. Heyer: "É um costume peculiar dos que nãoforam <strong>de</strong> todo moldados pela civilização não abordardirectamente um tema; mais ainda, nem sequer alu<strong>de</strong>m a ele<strong>de</strong>masiado <strong>de</strong>pressa; a conversação encaminha-se antes emespirais para o seu verda<strong>de</strong>iro objecto." Agora, pelo contrário, aligação mais curta entre duas pessoas é a correcta, como se estasfossem pontos. Do mesmo modo que hoje se constroiem pare<strong>de</strong>sassociadas numa só peça, também a argamassa é substituída entreos homens pela pressão que os mantém juntos. O que é diferentejá não se enten<strong>de</strong>, mas aparece, se não como especialida<strong>de</strong>vienense com um toque <strong>de</strong> alta cozinha, como puerilfamiliarida<strong>de</strong> ou aproximação ilícita. Na forma <strong>de</strong> umas quantasfrases sobre a saú<strong>de</strong> e o estado da esposa, que prece<strong>de</strong>m o almoçona conversa <strong>de</strong> negócios, está ainda aproveitada, inserida, aoposição à própria or<strong>de</strong>m dos fins. O tabu <strong>de</strong> falar só <strong>de</strong> assuntosprofissionais e a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conversa recíproca são, na realida<strong>de</strong>,a mesma coisa. Porque tudo é negócio, nada <strong>de</strong> mencionar o31


seu nome, como acontece com a corda na casa do enforcado. Por<strong>de</strong>trás da pseudo<strong>de</strong>mocrática supressão das fórmulas do trato, dacortesia antiquada, da conversação inútil e nem sequerinjustificadamente suspeita <strong>de</strong> palavreado, por <strong>de</strong>trás da aparenteclarida<strong>de</strong> e da transparência das relações humanas que nãotoleram qualquer in<strong>de</strong>finição, anuncia-se a nua crueza. A palavradirecta que, sem ro<strong>de</strong>ios, sem hesitação e sem reflexão, se diz aooutro em plena cara tem já a forma e o tom da voz <strong>de</strong> mando que,sob o fascismo, passa dos mudos aos que guardam silêncio. Osentido prático entre os homens que <strong>de</strong>saloja entre eles todo oornamento i<strong>de</strong>ológico, transformou-se em i<strong>de</strong>ologia para tratar oshomens como coisas.Não se permitem trocas. - Os homens estão a esquecer opresentear. A vulneração do princípio <strong>de</strong> troca tem algo <strong>de</strong> contra--senso e <strong>de</strong> incredibilida<strong>de</strong>; aqui e além até as crianças olhamcom <strong>de</strong>sconfiança aquele que dá algo como se o presente fosseum truque para lhes ven<strong>de</strong>r escovas ou sabão. Para tal exerce-se acharity, a beneficência administrada, que cose <strong>de</strong> uma formaplenificada as feridas visíveis da socieda<strong>de</strong>. No seufuncionamento organizado, já não há lugar para a emoçãohumana; mais, a doação está necessariamente ligada à humilhaçãopelo repartir, pelo partilhar <strong>de</strong> modo equitativo, em suma, pelotratamento do obsequiado como objecto. Até a prenda privada serebaixou a uma função social que se executa com ânimocontrafeito, com uma cuidadosa consi<strong>de</strong>ração do orçamentoatribuído, com uma avaliação céptica do outro e com o mínimoesforço. O verda<strong>de</strong>iro presentear tinha a sua ventura naimaginação da felicida<strong>de</strong> do obsequiado. Significava escolher,empregar tempo, sair do seu caminho, pensar no outro comosujeito: o contrário do esquecimento. Já dificilmente alguém <strong>de</strong>tal é capaz. No melhor dos casos oferecem como prenda o que<strong>de</strong>sejariam para si mesmos, só com alguns pormenores <strong>de</strong> menorqualida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>cadência do presentear reflecte-se no penosoinvento das prendas, já criadas contando com o facto <strong>de</strong> não sesaber que oferecer, porque no fundo não se quer. Taismercadorias carecem <strong>de</strong> relação, como os seus compradores.2132


Eram monos, logo no primeiro dia. De modo análogo a cláusulada troca, que para o obsequiado significa: "aqui tens a tuabugiganga, faz com ela o que quiseres, se não te agradar, a mimtanto me faz, troca-a por outra coisa". Perante o embaraço dasprendas habituais, a sua pura fungibilida<strong>de</strong> ainda representa anota mais humana, porque pelo menos permite ao obsequiadoofertar algo a si mesmo, facto que, ao mesmo tempo, traz em si aabsoluta contradição do presentear.Frente à ingente abundância <strong>de</strong> bens, que são acessíveismesmo aos pobres, po<strong>de</strong>ria parecer indiferente a <strong>de</strong>cadência dopresentear, e sentimental a sua consi<strong>de</strong>ração. Todavia, mesmo seno excesso ele fosse supérfluo - e tal é mentira, tanto no âmbitoprivado como no social, pois não existe hoje ninguém para quema fantasia não possa encontrar justamente a coisa que o torne maisfeliz - ficariam necessitados <strong>de</strong> prenda aqueles que já nãopresenteiam. Arruinam--se neles as qualida<strong>de</strong>s insubstituíveis quenão se po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver na cela isolada da pura interiorida<strong>de</strong>,mas só sentindo o calor das coisas. A frieza apossa-se <strong>de</strong> tudo oque eles fazem, na palavra amistosa, na inexpressa, na <strong>de</strong>ferênciaque fica sem efeito. Por fim, tal frieza reverte sobre aqueles <strong>de</strong>que provém. Toda a relação não <strong>de</strong>turpada, talvez inclusive o que<strong>de</strong> reconciliador há na própria vida orgânica, é um presentear.Quem <strong>de</strong>le se torna incapaz, <strong>de</strong>vido à lógica da consequência,transforma-se em coisa e morre <strong>de</strong> frio.Deitar fora a criança com a água. - Entre os motivos dacrítica da cultura, ocupa um lugar central, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os temposantigos, o da mentira: que a cultura cria a ficção <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> humanamente digna que não existe; que oculta ascondições materiais sobre as quais se erige todo o humano; e que,com a consolação e o sossego, serve para manter com vida aperniciosa <strong>de</strong>terminida<strong>de</strong> económica da existência. Tal é aconcepção da cultura como i<strong>de</strong>ologia que, à primeira vista, têmem comum a doutrina burguesa do po<strong>de</strong>r e a sua contrária:Nietzsche e Marx. Mas esta noção, <strong>de</strong> modo análogo a todo otrovejar contra a mentira, tem uma suspeita propensão para elaprópria se tornar i<strong>de</strong>ologia. Isso patenteia-se no privado. A2233


obsessão do dinheiro e todo o conflito que ela traz consigoimiscuem-se nas relações eróticas mais ternas e nas relaçõesespirituais mais sublimes. Por isso, a crítica cultural podia exigir,com a lógica da consequência e com opathos da verda<strong>de</strong>, que assituações se reduzissem <strong>de</strong> todo à sua origem material e seconfigurassem sem reservas e às claras sobre a base dos interessesdos implicados. O sentido não é, <strong>de</strong>certo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da suagénese; e em tudo o que se erige sobre o material ou o mediatiza éfácil encontrar o vestígio da insincerida<strong>de</strong>, do sentimentalismo,portanto, o interesse disfarçado e duplamente venenoso. Mas, sese quisesse agir <strong>de</strong> forma radical, então com o inverda<strong>de</strong>iroextirpar-se-ia também todo o verda<strong>de</strong>iro, tudo o que, embora <strong>de</strong>um modo impotente, se esforça por fugir ao âmbito da praxisuniversal, toda a quimérica antecipação <strong>de</strong> um estado mais nobre,e transitar-se-ia directamente para a barbárie que se censura àcultura como seu fruto. Nos críticos burgueses da cultura, apósNietszche, esta inversão foi sempre patente: Spengler subscreveuainspiradamente. Mas os marxistas também não são imunes.Uma vez curados da crença social<strong>de</strong>mocrata no progresso culturale confrontados com a crescente barbárie, vivem na permanentetentação <strong>de</strong>, por mor da "tendência objectiva", <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem aquelae, num acto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, esperarem a salvação do mortal inimigoque, como "antítese", <strong>de</strong>ve ajudar <strong>de</strong> forma cega e misteriosa apreparar o <strong>de</strong>sfecho feliz. A acentuação do elemento materialperante o espírito como mentira <strong>de</strong>senvolve, contudo, umaespécie <strong>de</strong> precária afinida<strong>de</strong> electiva com a economia política,cuja crítica imanente se pratica, comparável à conivência entre apolícia e o submundo. Des<strong>de</strong> que se eliminou a utopia e se exige aunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> teoria e praxis, tornámo-nos <strong>de</strong>masiado práticos. Aangústia frente à impotência da teoria proporciona o pretexto parase ren<strong>de</strong>r ao omnipotente processo da produção e admitir assimplenamente a impotência da teoria. Os rasgos malévolos já nãosão estranhos à linguagem marxista autêntica, e hoje está aromper uma semelhança entre o espírito comercial e a sóbriacrítica apreciativa, entre o materialismo vulgar e o outro, em quepor vezes é difícil manter separado o sujeito e o objecto. -I<strong>de</strong>ntificar a cultura unicamente com a mentira é, neste momento,uma das coisas mais funestas, porque a primeira está realmente aconverter-se na segunda e <strong>de</strong>safia zelosamente tal i<strong>de</strong>ntificação34


para comprometer toda a i<strong>de</strong>ia antagónica. Se se chamar àrealida<strong>de</strong> material o mundo do valor <strong>de</strong> troca, e à cultura aquiloque sempre se nega a aceitar a sua dominação, tal recusa éenganosa, enquanto persistir o existente. Mas como a própriatroca livre e legal é a mentira, então aquilo que a nega alinha aomesmo tempo pela verda<strong>de</strong>: perante a mentira do mundo damercadoria, a própria mentira transforma-se em correctivo que<strong>de</strong>nuncia aquela. Que até agora a cultura tenha fracassado não éuma justificação para fomentar o seu fiasco, enquanto, comoKatherlieschen, se espalha sobre a cerveja <strong>de</strong>rramada a reserva <strong>de</strong>preciosa farinha. Homens com afinida<strong>de</strong>s assim não <strong>de</strong>veriamnem silenciar os seus interesses materiais nem pôr-se ao seumesmo nível, mas assumi--los reflexivamente na sua relação eassim superá-los.Plurale tantum. - Se, como ensina uma teoria contemporânea,a socieda<strong>de</strong> é uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> rackets, então o seu mo<strong>de</strong>lo maisfiel é justamente o contrário do colectivo, a saber, o indivíduocomo mónada. Na prossecução dos interesses absolutamenteparticulares <strong>de</strong> cada indivíduo é on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> estudar com maiorprecisão a essência do colectivo na socieda<strong>de</strong> falsa; e pouco faltapara que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, se <strong>de</strong>va conceber a organização dosimpulsos divergentes sob o primado do eu ajustado à realida<strong>de</strong>como uma íntima quadrilha <strong>de</strong> bandidos com chefe, séquito,cerimonial, juramentos, traições, conflitos <strong>de</strong> interesses, intrigas etudo o mais. Observem-se apenas as emoções com que oindivíduo se afirma energicamente em face do seu meio, comopor exemplo a ira. O iracundo aparece sempre como o chefe dobando <strong>de</strong> si mesmo, que dá ao seu inconsciente a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>investir e em cujos olhos brilha a satisfação <strong>de</strong> falar pelos muitosque ele é. Quanto mais alguém situou em si mesmo o objecto dasua agressão, tanto mais perfeitamente representa o princípioopressor da socieda<strong>de</strong>. Nesse sentido, talvez mais do que emnenhum outro, é válida a afirmação <strong>de</strong> que o mais individual é omais geral.2335


Tough baby. - Há um <strong>de</strong>terminado gesto <strong>de</strong> masculinida<strong>de</strong>,quer da própria ou da alheia, que suscita a <strong>de</strong>sconfiança. E o queexpressa in<strong>de</strong>pendência, segurança no andar e a tácita conivênciaentre todos os varões. Antes, chamava-se a isto, com temerosaadmiração, o humor do amo e senhor; hoje <strong>de</strong>mocratizou-se, e osheróis cinematográficos ensinam-no até ao último empregado <strong>de</strong>banco. O arquétipo é constituído pelo sujeito bem parecido que, jáadiantada a noite e vestindo smoking, chega sozinho ao seu andar<strong>de</strong> solteiro, acen<strong>de</strong> a luz indirecta e prepara um uísque com soda.O fervilhar cuidadosamente registado da água mineral diz o que aboca arrogante cala: que <strong>de</strong>spreza tudo o que não cheira a fumo,couro e creme <strong>de</strong> barbear, sobretudo as mulheres, e que por issoestas correm para ele. O i<strong>de</strong>al das relações humanas resi<strong>de</strong>, paraele, no clube, nos lugares on<strong>de</strong> o respeito se funda numa atenta<strong>de</strong>satenção. As alegrias <strong>de</strong> semelhantes varões, ou antes dos seusmo<strong>de</strong>los, aos quais dificilmente algum vivo se assemelha, porqueos homens são sempre melhores do que a sua cultura, têm todasalgo <strong>de</strong> acção violenta latente. Aparentemente, esta ameaça ooutro <strong>de</strong> quem alguém, acachapado no seu sofá, há muito nãonecessita. Na verda<strong>de</strong>, é a violência passada contra si próprio. Setodo o prazer conserva em si o antigo <strong>de</strong>sprazer, então o<strong>de</strong>sprazer <strong>de</strong> o sobrelevar com orgulho é aqui, inesperadamente esem modificação, elevado a estereótipo do prazer: ao contrário doque acontece com o vinho, em cada copo <strong>de</strong> uísque, em cadabaforada <strong>de</strong> charuto, sente-se todo o dissabor que custou aoorganismo ace<strong>de</strong>r a tão intensas sensações, e só isso é registadocomo prazer. Os homens inteiriços seriam, pois, na suaconstituição, como geralmente os apresenta a projecçãocinematográfica, masoquistas. A mentira oculta-se no seusadismo, e só como mentirosos se tornam verda<strong>de</strong>iros sádicos,agentes da repressão. Mas tal mentira é apenas a <strong>de</strong> que a homossexualida<strong>de</strong>reprimida é a única forma que o heterossexualaprova. Em Oxford distingue-se entre duas classes <strong>de</strong> estudantes:os tough guys e os intelectuais; estes, por contraste, são quaseequiparados, sem mais, aos efeminados. Há muitos indícios <strong>de</strong>que a camada dominante no seu caminho para a ditadura se está apolarizar nestes dois extremos. Semelhante <strong>de</strong>sintegração é o2436


segredo da integração, da felicida<strong>de</strong> da unida<strong>de</strong> na ausência <strong>de</strong>felicida<strong>de</strong>. No fim <strong>de</strong> contas, os tough guys são os verda<strong>de</strong>irosefeminados, que necessitam dos molengas como suas vítimas paranão reconhecer que são iguais a eles. Totalida<strong>de</strong> ehomossexualida<strong>de</strong> confluem. Enquanto perece, o sujeito negatudo o que não é da sua própria índole. Os contrastes entre ohomem forte e o adolescente submisso dissolvem-se numa or<strong>de</strong>mque impõe a pureza do princípio masculino da dominação. Aofazer <strong>de</strong> todos sem excepção, inclusive dos pretensos sujeitos,objectos seus, cai na passivida<strong>de</strong> total, virtualmente no feminino.Nada <strong>de</strong> pensar neles. - Como se sabe, a vida passada doemigrante é anulada. Antes era o mandato <strong>de</strong> captura, hoje é aexperiência espiritual que se <strong>de</strong>clara intransferível e,simplesmente, exótica. O que não está coisificado, o que não se<strong>de</strong>ixa numerar nem medir, não conta. E como se não fossesuficiente, a própria coisificação esten<strong>de</strong>-se ao seu oposto, a vidaque não se po<strong>de</strong> actualizar <strong>de</strong> forma imediata; o que semprepervive como i<strong>de</strong>ia ou como recordação. Para isso inventaramuma rubrica especial. É a dos "antece<strong>de</strong>ntes", e surge comoapêndice dos questionários, <strong>de</strong>pois do sexo, da ida<strong>de</strong> e daprofissão. A já estigmatizada vida é ainda arrastada pelo carrotriunfal dos estatísticos unidos, e nem o próprio passado está jáseguro diante do presente que, ao recordá-lo, o vota mais uma vezao esquecimento.English spoken. - Na minha infância, recebia com frequência,como prenda, livros <strong>de</strong> velhas damas inglesas, com que os meuspais estavam relacionados: escritos juvenis ricamente ilustrados, etambém uma pequena Bíblia em marroquim. Todos no idioma dassuas doadoras: nenhuma pensara se eu conseguiria ler. A peculiarreserva dos livros, que me surpreendiam com as suas estampas,gran<strong>de</strong>s títulos e vinhetas sem ter conseguido <strong>de</strong>cifrar o texto,infundiu em mim a crença <strong>de</strong> que, em geral, os livros <strong>de</strong>sta classenão eram propriamente tais, mas reclames, talvez <strong>de</strong> máquinas252637


como as que o meu tio produzia na sua fábrica <strong>de</strong> Londres. Des<strong>de</strong>que vivo em países anglo-saxónicos e entendo o inglês, talconsciência não se <strong>de</strong>svaneceu, mas aumentou. Há um"Mädchenlied" <strong>de</strong> Brahms sobre um poema <strong>de</strong> Heyse em quefiguram os versos: "O Herzeleid, du Ewigkeit! / Selban<strong>de</strong>r nur istSeligkeit." Na edição americana, <strong>de</strong> maior difusão,transformaram-se nestes: "O misery, eternity! But two in onewere ecstasy." Das antigas e apaixonadas palavras do originalfizeram-se estribilhos <strong>de</strong> canções, que as recomendam. À sua luzartificial, brilha o carácter <strong>de</strong> reclame da cultura.On parle français. - Quem ler pornografia numa línguaestrangeira <strong>de</strong>scobre quão intimamente se entrosam o sexo e a linguagem.Para a leitura <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong> no original não é necessárionenhum dicionário. Até as expressões mais insólitas do in<strong>de</strong>cente,cujo conhecimento não nos é facultado pela escola, pela casapaterna ou por uma experiência literária, se enten<strong>de</strong>m num estado<strong>de</strong> sonambulismo, tal como na infância as mais <strong>de</strong>sviadas ilusõese observações acerca do sexual se con<strong>de</strong>nsam na justarepresentação. É como se as paixões aprisionadas, chamadas peloseu nome por aquelas palavras, saltassem, como o dique da suaprópria repressão, o das palavras cegas e embatessem, violenta eirresistivelmente, na mais recôndita cela do sentido, que a elas seassemelha.Paysage. - O <strong>de</strong>feito da paisagem americana não resi<strong>de</strong> tanto,como quer a ilusão romântica, na ausência <strong>de</strong> recordaçõeshistóricas quanto no facto <strong>de</strong> a mão não ter nela <strong>de</strong>ixado rastoalgum. Tal não se refere apenas à falta <strong>de</strong> campos cultivados, aosbosques rasteiros por <strong>de</strong>sbravar e amiú<strong>de</strong> constituídos porarbustos, mas sobretudo às estradas. Estas surgem semprerepentinamente dispersas pela paisagem, e quanto mais planas elargas são tanto mais excêntrica e violenta é a sua cintilantesuperfície, em contraste com o ambiente excessivamente agreste.Carecem <strong>de</strong> expressão. Não conhecendo nenhum vestígio <strong>de</strong> pés272838


ou <strong>de</strong> rodas, nenhuma ténue senda ao longo das suas margenscomo transição para a vegetação, nenhum caminho para o vale,prescin<strong>de</strong>m do amável, do aprazível, da falta <strong>de</strong> angu-losida<strong>de</strong> dascoisas em que intervieram as mãos ou os seus utensíliosimediatos. É como se ninguém houvesse passeado a sua figurapela paisagem. Uma paisagem <strong>de</strong>solada e <strong>de</strong>soladora. Está emconsonância com ela o modo da sua percepção. Pois o que o olhoapressado simplesmente viu a partir do carro não o conseguereter, e abisma--se sem rasto algum, como a ele próprio se lheesvaem os vestígios.Frutinha. - É uma cortesia <strong>de</strong> Proust poupar ao leitor ahumilhação <strong>de</strong> se julgar mais inteligente do que o autor.No século XIX, os Alemães pintaram os seus sonhos, e emtodos os casos lhes surgiu hortaliça. Aos Franceses bastou-lhespintar legumes, e logo foi um sonho.Nos países anglo-saxónicos, as meretrizes têm o aspecto <strong>de</strong>proporcionar, juntamente com o pecado, os castigos do inferno.Beleza da paisagem americana: no mais pequeno dos seussegmentos está inscrita, como expressão sua, a imensa gran<strong>de</strong>za<strong>de</strong> todo o país.Na memória do exílio, o veado assado alemão sabe como setivesse sido morto por um caçador furtivo.Na psicanálise nada é tão verda<strong>de</strong>iro como os seus exageros.Se alguém é ou não feliz, po<strong>de</strong> sabê-lo ouvindo o vento. Ao<strong>de</strong>sgraçado recorda-lhe a fragilida<strong>de</strong> da sua casa, arranca-o aosono leve e ao sonho violento. Ao felizardo, canta-lhe a canção doseu bem-estar: o seu impetuoso sopro comunica-lhe que já nãotem nenhum po<strong>de</strong>r sobre ele.O surdo rumor, sempre em nós presente, da nossa experiênciaonírica soa ao acordado nos títulos dos jornais.O mítico "correio <strong>de</strong> Job" renova-se com a rádio. Quemcomunica algo importante com voz autoritária anuncia a <strong>de</strong>sgraça.Em inglês solemn significa solene e ameaçador. O po<strong>de</strong>r dasocieda<strong>de</strong> por trás do locutor dirige-se por si só contra oauditório.2939


O passado recente surge-nos sempre como se tivesse sido<strong>de</strong>struído por uma catástrofe.A expressão do histórico nas coisas não é mais do que o tormentopassado.Em Hegel, a autoconsciência era a verda<strong>de</strong> da certeza <strong>de</strong> simesmo; nas palavras da Fenomenologia: "o reino nativo da verda<strong>de</strong>".Quando ela <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser compreensível, os burgueseseram autoconscientes pelo menos no orgulho <strong>de</strong> terem bens. Hoje,self-conscious significa apenas a reflexão do eu comoperplexida<strong>de</strong>, como percepção da impotência: saber que nada seé.Em muitos homens é já uma falta <strong>de</strong> vergonha dizer eu.O cisco no teu olho é a melhor lente <strong>de</strong> aumento.Até o homem mais infeliz é capaz <strong>de</strong> reconhecer as<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> quem mais sobressai, e o mais estúpido os erros domais inteligente.Primeiro e único princípio da ética sexual: o acusador nuncatem razão.O todo é o inverda<strong>de</strong>iro.Pro domo nostra. - Durante a primeira guerra, que comotodas as anteriores parece pacífica comparada com a subsequente,quando as orquestras sinfónicas <strong>de</strong> muitos países tinham fechadaa sua boca fanfarrona, Stravinsky escreveu a Histoire du Soldatpara um conjunto <strong>de</strong> câmara exíguo e cheio <strong>de</strong> efeitos chocantes.Tornou-se a sua melhor partitura, o único manifesto sobre-realistaconvincente, em que a compulsão onírica e convulsiva da suamúsica revelava alguma verda<strong>de</strong> negativa. O pressuposto da peçaera a pobreza: <strong>de</strong>smontava <strong>de</strong> uma forma tão drástica a culturaoficial porque, juntamente com os bens materiais, lhe estavatambém vedada a sua ostentação anticultural. Há nela uma alusãoà produção espiritual posterior à guerra que, na Europa, <strong>de</strong>ixouuma medida <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição que nem sequer os ocos <strong>de</strong>ssa músicapo<strong>de</strong>riam ter sonhado. Progresso e barbárie estão hoje tãoemaranhados na cultura <strong>de</strong> massas que só uma ascese bárbaracontrária a esta e ao progresso dos meios po<strong>de</strong> restabelecer aausência da barbárie. Nenhuma obra <strong>de</strong> arte, nenhum pensamento3040


tem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobreviver e que não implique a renúncia àfalsa riqueza e à produção <strong>de</strong> primeira qualida<strong>de</strong>, ao cinema acores e à televisão, às revistas milionárias e a Toscanini. Os meiosmais antigos, os que não se me<strong>de</strong>m pela produção em massa,ganham nova actualida<strong>de</strong>: a do inapreendido e da improvisação.Só eles po<strong>de</strong>riam esquivar-se à frente única do trust e da técnica.No mundo em que há muito os livros já não parecem livros, sóvalem como tais os que o não são. Se no início da era burguesateve lugar a invenção da imprensa, <strong>de</strong>pressa chegaria a suarevogação pela mimeografia, o único meio a<strong>de</strong>quado, discreto, <strong>de</strong>difusão.Gato por lebre. - Até a mais nobre conduta do socialismo, asolidarieda<strong>de</strong>, se encontra doente. Quis ela, uma vez, realizar odiscurso da fraternida<strong>de</strong>, resgatá-la da generalida<strong>de</strong> em que erauma i<strong>de</strong>ologia e reservá-la para o particular, para o partido, comoo único que <strong>de</strong>veria representar a generalida<strong>de</strong> num mundo <strong>de</strong>antagonismos. Solidários eram os grupos <strong>de</strong> homens queorganizavam a sua vida em comunida<strong>de</strong>, e para os quais, à vistada possibilida<strong>de</strong> alcançável, a própria vida não era o maisimportante, <strong>de</strong> modo que, sem a obsessão abstracta pela i<strong>de</strong>ia,mas também sem esperança individual, estavam ainda dispostos asacrificar-se uns pelos outros. Semelhante renúncia àautoconservação tinha como pressuposto o conhecimento e aliberda<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão: faltando estes, imediatamente se restabeleceo cego interesse particular. Mas, entretanto, a solidarieda<strong>de</strong>conver-teu-se na confiança em que o partido tem mil olhos, noapoio dos batalhões <strong>de</strong> trabalhadores - avançados ao ponto <strong>de</strong>trazerem uniforme - como os genuinamente fortes, no nadar coma corrente da história universal. O que por algum tempo se ganhaem segurança paga-se com a angústia permanente, com asubserviência, com o pacto e o ventriloquismo: as forças com quese po<strong>de</strong>riam aproveitar as fraquezas do adversário <strong>de</strong>sperdiçam-seem antecipar os movimentos dos próprios lí<strong>de</strong>res políticos, emcuja presença se treme no íntimo mais do que se tremia diante doantigo inimigo, pressentindo que os chefes, no fim, em ambos oslados se hão-<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r nas costas dos que por eles foram3141


integrados. Um reflexo <strong>de</strong>sta situação percebe-se entre osindivíduos. Quem, segundo os estereótipos com que hoje seclassificam previamente os homens, se conta entre osprogressistas sem ter assinado a <strong>de</strong>claração imaginária que pareceunir os ortodoxos - que se reconhecem por um elementoimpon<strong>de</strong>rável no gesto e na linguagem, por uma espécie <strong>de</strong>resignação feita <strong>de</strong> ru<strong>de</strong>za e docilida<strong>de</strong> qual santo-e-senha - fazcontinuamente a mesma experiência. Os ortodoxos, ou também os<strong>de</strong>svios <strong>de</strong>masiado parecidos com eles, saem-lhe ao encontro eesperam <strong>de</strong>le solidarieda<strong>de</strong>. Apelam expressa ou inexpressamentepara a compreensão progressista. Mas no instante em que <strong>de</strong>les seespera a mínima prova <strong>de</strong> idêntica solidarieda<strong>de</strong>, ou somentealguma simpatia pela própria participação no produto social dosofrimento, mostram-lhe o lado frio que, na era dos popesrestaurados, restou do materialismo e do ateísmo. Os organizadosquerem que o intelectual <strong>de</strong>cente se exponha por eles mas, logoque à distância se receia que serão eles que se <strong>de</strong>vem expor,aquele surge perante eles como o capitalista, e a própria <strong>de</strong>cênciaacerca da qual especulavam como ridículo sentimentalismo esimples parolice. A solidarieda<strong>de</strong> está polarizada na <strong>de</strong>sesperadafi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> dos que não po<strong>de</strong>m recuar e na virtual extorsão sobreaqueles a quem é impossível suscitar algo com os beleguins, semficar à mercê do bando.Os selvagens não são homens melhores, - Entre os estudantesnegros <strong>de</strong> economia política, os siameses em Oxford e, em geral,entre os laboriosos historiadores da arte e os musicólogos <strong>de</strong>origem pequeno-burguesa, po<strong>de</strong> encontrar-se a inclinação e aprontidão para associar à apropriação do que estudam, do novo,um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, peloreconhecido. A disposição anímica intransigente é o contrário doestado selvagem, do espírito <strong>de</strong> neófito ou dos "espaços nãocapitalistas".Pressupõe experiência, memória histórica,nervosismo <strong>de</strong> pensamento e, acima <strong>de</strong> tudo, uma substancialdose <strong>de</strong> tédio. Sempre foi possível observar como aqueles que,com sangue jovem e total candura, se integravam em gruposradicais <strong>de</strong>sertavam, logo que se apercebiam da força da tradição.3242


Há que ter esta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si para a po<strong>de</strong>r odiar. O facto <strong>de</strong> ossnobes mostrarem um maior sentido pelos movimentos vanguardistasna arte do que os proletários lança também alguma luzsobre a política. Os epígonos e os recém-chegados têm umaangustiante afinida<strong>de</strong> pelo positivismo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os admiradores <strong>de</strong>Carnap na índia até aos corajosos apologistas dos mestres alemãesMatthias Griinewald ou Heinrich Schiitz. Má psicologia seria aque admitisse que aquilo <strong>de</strong> que se está excluído <strong>de</strong>sperta apenasódio e ressentimento; suscita também um absorvente e impacientetipo <strong>de</strong> amor, e aqueles que não foram arrebanhados pela culturarepressiva facilmente se tornam a sua mais néscia tropa <strong>de</strong>fensiva.Até no pretensioso alemão do trabalhador que como socialistaquer "apren<strong>de</strong>r algo", participar na chamada herança, há dissocerta ressonância, e o filistismo dos a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> Bebei não assentatanto na sua estranheza à cultura quanto no zelo com que aaceitam como um facto, se i<strong>de</strong>ntificam com ela, e, <strong>de</strong>ste modo,subvertem o seu sentido. O socialismo acha-se em geral tão poucoresguardado <strong>de</strong>sta transformação como do <strong>de</strong>slize teórico para opositivismo. Com bastante facilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> acontecer que noExtremo Oriente Marx vá ocupar o lugar vago <strong>de</strong> Driesch e <strong>de</strong>Rickert. É <strong>de</strong> recear que, às vezes, a inclusão dos povos nãooci<strong>de</strong>ntais nas disputas da socieda<strong>de</strong> industrial se revele, a longoprazo, menos favorável ao crescimento em liberda<strong>de</strong> do que aocrescimento racional da produção e da circulação e à mo<strong>de</strong>stasubida do nível <strong>de</strong> vida. Em vez <strong>de</strong> esperar milagres dos povospré-capitalistas, <strong>de</strong>veriam as nações amadurecidas pôr-se <strong>de</strong>sobreaviso sobre a sua insipi<strong>de</strong>z, o seu indolente sentido para osbons resultados e as conquistas do Oci<strong>de</strong>nte.Longe do perigo. - Nos relatórios sobre ataques aéreos, rarasvezes faltam os nomes das empresas construtoras dos aviões: osnomes Focke-Wulff, Heinkel, Lancaster aparecem on<strong>de</strong> antes sefalava <strong>de</strong> couraceiros, ulanos e hussardos. O mecanismo da reproduçãoda vida, da sua dominação e da sua aniquilação, éexactamente o mesmo, e <strong>de</strong> harmonia com ele se fun<strong>de</strong>m aindústria, o Estado e a propaganda. Cumpriu-se o velho exagerodos liberais cépticos <strong>de</strong> que a guerra é um negócio: o próprio3343


po<strong>de</strong>r estatal <strong>de</strong>liu a aparência <strong>de</strong> ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos interessesparticulares e apresenta-se agora como o que na realida<strong>de</strong> semprefoi, como um po<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ologicamente ao seu serviço. A mençãoelogiosa da principal empresa que fomentou a <strong>de</strong>struição dascida<strong>de</strong>s contribui para lhe dar um bom nome, graças ao qual nareconstrução se lhe farão os melhores encargos.Como a dos Trinta Anos, esta guerra, <strong>de</strong> cujo começo já ninguémse po<strong>de</strong>rá recordar quando ela chegar ao fim, também seestá a fraccionar em campanhas <strong>de</strong>scontínuas separadas porpausas vazias: a polaca, a norueguesa, a francesa, a russa, atunisina, a invasão. O seu ritmo, a alternância <strong>de</strong> acçãocontun<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong> calma total por falta <strong>de</strong> inimigosgeograficamente apreensíveis, tem algo do ritmo mecânico quecaracteriza em especial a classe <strong>de</strong> meios bélicos utilizados e que,mais uma vez, ressuscitou a forma pré-liberal da campanhamilitar. Mas este ritmo mecânico <strong>de</strong>termina absolutamente ocomportamento humano perante a guerra, não só na <strong>de</strong>sproporçãoentre a força física individual e a energia dos motores, mastambém nas mais recônditas células dos modos <strong>de</strong> vivência. Já, navez passada, a ina<strong>de</strong>quação do corpo à batalha material tornaraimpossível a verda<strong>de</strong>ira experiência. Ninguém terá entãoconseguido relatar o que ainda se podia relatar das batalhas dogeneral <strong>de</strong> artilharia Bonaparte. O longo intervalo entre asprimeiras memórias da guerra e o tratado <strong>de</strong> paz não é casual: étestemunho da fatigante reconstrução da lembrança, que em todosaqueles livros traz anexa uma certa impotência e até adulteração,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da classe <strong>de</strong> horrores por que tenham passadoos narradores. Mas a Segunda Guerra subtrai-se já tãocompletamente à experiência como aos movimentos do corpo ofuncionamento duma máquina, que só em certos estadospatológicos se lhe assemelha. Quanto menos continuida<strong>de</strong>,história e elementos "épicos" há numa guerra, e quando em cadafase sua torna <strong>de</strong> certo modo a começar, tanto menos <strong>de</strong>ixará umaimpressão duradoura e inconsciente na recordação. Com cadaexplosão, <strong>de</strong>struiu em toda a parte o abrigo do estímulo sob o qualse constitui a experiência, a continuida<strong>de</strong> entre o sadioesquecimento e a saudável recordação. A vida converteu-se numasucessão intemporal <strong>de</strong> choques, entre os quais se abrem vazios,intervalos <strong>de</strong> paralisia. Mas talvez nada seja tão funesto para o44


futuro como o facto <strong>de</strong> literalmente ninguém conseguir já pensarnisso, pois todo o trauma, todo o choque não superado dos queregressam é um fermento <strong>de</strong> futura <strong>de</strong>struição. - Karl Kraus teve otino <strong>de</strong> intitular uma obra sua Os últimos dias da Humanida<strong>de</strong>. Oque hoje está a acontecer <strong>de</strong>veria intitular-se <strong>de</strong> "Depois do fimdo mundo".O total encobrimento da guerra mediante a informação, apropaganda, os cineastas instalados nos primeiros tanques e amorte heróica dos correspon<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> guerra, a mescla da opiniãopública sabiamente manipulada com a acção inconsciente, tudoisto é mais uma expressão da estiolada experiência, do vazio entreos homens e o seu <strong>de</strong>stino, em que propriamente consiste o<strong>de</strong>stino. Os acontecimentos são, por assim dizer, substituídos pelasua moldagem reificada, coalhada. Os homens tornam-se actores<strong>de</strong> um documentário monstruoso que já não tem espectadores,porque até o último <strong>de</strong>ve ter um papel na pantalha. Este momentoé justamente aquele que funda a expressão <strong>de</strong> phony war. Brotaela, <strong>de</strong>certo, da disposição fascista para rejeitar a realida<strong>de</strong> dohorror como "simples propaganda", a fim <strong>de</strong> que o horror se levea cabo sem a menor oposição. Mas como todas as tendências dofascismo, também esta tem a sua origem em elementos darealida<strong>de</strong> que se impõem precisamente em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong>fascista, que os assinala com cinismo. A guerra é, sem dúvida,phony, mas a sua phoniness é mais terrível do que todos oshorrores, e os que <strong>de</strong> tal troçam contribuem para a <strong>de</strong>sgraça.Se a filosofia da história <strong>de</strong> Hegel tivesse incluido esta época,as bombas-robô <strong>de</strong> Hitler teriam encontrado o seu lugar ao ladoda morte prematura <strong>de</strong> Alexandre e <strong>de</strong> outros quadros do mesmotipo, entre os factos empíricos seleccionados nos quais seexpressa <strong>de</strong> modo imediato e simbólico o estado do Espíritouniversal. Como o próprio fascismo, os robôs são lançados aomesmo tempo e sem participação do sujeito. Como aquele, unema extrema perfeição técnica a uma total cegueira. Como aquele,suscitam um terror mortal e são <strong>de</strong> todo inúteis. - "Vi o Espíritodo mundo", não a cavalo, mas com asas e sem cabeça, e istorefuta a filosofia da história <strong>de</strong> Hegel.O pensamento <strong>de</strong> que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sta guerra a vida po<strong>de</strong>rácontinuar "normalmente" ou que a cultura po<strong>de</strong>rá ser "restaurada"- como se a restauração da cultura não fosse já a sua negação - é45


idiota. Milhões <strong>de</strong> Ju<strong>de</strong>us foram exterminados, e isto é apenas uminterlúdio, não a verda<strong>de</strong>ira catástrofe. Que é que esta culturaainda aguarda? E embora para inúmeros haja um tempo <strong>de</strong> espera,po<strong>de</strong>ria imaginar-se que aquilo que aconteceu na Europa não temconsequências, que a quantida<strong>de</strong> dos sacrifícios não se transformanuma nova qualida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> inteira, na barbárie? Se amarcha continua, a catástrofe será perpétua. Pense-se na vingançados assassinados. Se se eliminar um número equivalente dosassassinos, o horror converter-se-á em instituição, e o esquemapré-capitalista da vingança sangrenta, que reinou ainda <strong>de</strong>s<strong>de</strong>tempos imemoriais nas remotas regiões montanhosas,reintroduzir-se-á em gran<strong>de</strong> escala com nações inteiras comosujeito sem sujeito. Se, pelo contrário, os mortos não sãovingados e se aplica o perdão, o fascismo impune sairá, apesar <strong>de</strong>tudo, vitorioso, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar quão fáceis lhe foram ascoisas propagar-se-á a outros lugares. A lógica da história é tão<strong>de</strong>struidora como os homens que produz: on<strong>de</strong> quer que penda asua força <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong>, reproduz o equivalente do infortúniopassado. O normal é a morte.À pergunta sobre o que se <strong>de</strong>ve fazer com a Alemanha <strong>de</strong>rrotada,eu só saberia respon<strong>de</strong>r duas coisas. Uma é: por nenhumpreço, sob nenhuma condição gostaria eu <strong>de</strong> ser verdugo ou dartítulo <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> ao verdugo. E a outra: também não <strong>de</strong>teriao braço <strong>de</strong> ninguém, nem com o aparelho da lei, que quisessevingar-se do acontecido. É uma resposta inteiramenteinsatisfatória, contraditória e que escarnece tanto da generalizaçãocomo da praxis. Mas talvez o <strong>de</strong>feito esteja na própria pergunta enão em mim.Espectáculo cinematográfico da semana: a invasão das ilhasMarianas. A impressão não é a dos combates, mas a dos trabalhosmecânicos <strong>de</strong> dinamitação e construção <strong>de</strong> estradas empreendidoscom veemência extrema, e ainda os <strong>de</strong> "fumigação", os <strong>de</strong>extermínio <strong>de</strong> insectos à escala telúrica. As operações prosseguematé que a erva <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> crescer. O inimigo faz ao mesmo tempo<strong>de</strong> paciente e <strong>de</strong> cadáver. Como os Ju<strong>de</strong>us sob o fascismo, éapenas o objecto <strong>de</strong> medidas técnico-administrativas; e se se<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, a sua reacção assume <strong>de</strong> imediato o mesmo carácter. Orasgo satânico consiste aqui em que, <strong>de</strong> certo modo, se exige maisiniciativa do que na guerra <strong>de</strong> velho estilo, e em que, por assim46


dizer, toda a energia do sujeito intenta suscitar a ausência <strong>de</strong>sujeito. A inumanida<strong>de</strong> consumada é a realização do sonhohumano <strong>de</strong> Edward Grey, da guerra sem ódio.Outono <strong>de</strong> 1944Hans-Guck-in~die-Luft 2 . - Entre o conhecimento e o po<strong>de</strong>rexiste não só a relação <strong>de</strong> servilismo, mas também <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.Muitos conhecimentos, embora formalmente verda<strong>de</strong>iros, sãonulos fora <strong>de</strong> toda a proporção com a repartição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res.Quando o médico expatriado diz - "Para mim, Adolf Hitler é umcaso patológico" -o resultado clínico acabará talvez por confirmaro seu juízo, mas a <strong>de</strong>sproporção <strong>de</strong>ste com a <strong>de</strong>sgraça objectivaque, em nome do paranóico, se espalha pelo mundo faz <strong>de</strong> taldiagnóstico, com que se incha o diagnosticador, algo ridículo.Talvez Hitler seja "em si" um caso patológico, mas certamentenão "para ele". A vaida<strong>de</strong> e a pobreza <strong>de</strong> muitas manifestações doexílio contra o fascismo ligam--se a este facto. Os que expressamos seus pensamentos na forma <strong>de</strong> juízo livre, distanciado e<strong>de</strong>sinteressado são os que não foram capazes <strong>de</strong> assumir nessaforma a experiência da violência, o que torna inútil talpensamento. O problema, quase insolúvel, consiste aqui em nãose <strong>de</strong>ixar imbecilizar nem pelo po<strong>de</strong>r dos outros nem pelaimpotência própria.Retorno à cultura. - A afirmação <strong>de</strong> que Hitler <strong>de</strong>struiu acultura alemã nada mais é do que um truque propagandístico dosque <strong>de</strong>sejam reedificá-la a partir das suas secretárias. O que Hitler34352À letra "João-Olha-para-o-ar",expressão coloquial para indicaruma pessoa muito distraída, uma"cabeça <strong>de</strong> ar e vento".[N. T.].47


erradicou na arte e no pensamento levava já há muito umaexistência cindida e apócrifa, cujos últimos escon<strong>de</strong>rijos ofascismo varreu. Quem não colaborava viu-se já forçado, anosantes da erupção do Terceiro Reich, à emigração interior: quandomuito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a estabilização monetária alemã, que coincidiu como fim do expressionismo, a cultura alemã ficara-se pelo espíritodas revistas ilustradas berli-nenses, não muito distante do espíritoda "força pela alegria", das auto-estradas do Reich ou do frescoclassicismo das exposições dos nazis. Em toda a sua amplitu<strong>de</strong>, acultura alemã, inclusive on<strong>de</strong> mais liberal era, ansiava pelo seuHitler, e comete-se uma injustiça contra os redactores <strong>de</strong> Mosse eUllstein e contra os reorganizadores do Frankfurter Zeitungquando se lhes censuram as suas cândidas e boas intenções. Eleseram já assim; a sua linha da mínima resistência às mercadoriasespirituais que produziam estava justamente em continuida<strong>de</strong> coma linha da mínima oposição à dominação política, entre cujosmétodos i<strong>de</strong>ológicos sobressaía, nas próprias palavras do Fuhrer,o <strong>de</strong> ter compreensão com os mais néscios. Isso levou a umaconfusão fatal. Hitler aniquilou a cultura, Hitler baniu HerrLudwig, logo Herr Ludwig é a cultura. E, <strong>de</strong> facto, assim é. Umolhar à produção literária dos exilados que, pela disciplina e pelarígida partilha das suas esferas <strong>de</strong> influência, se tomaram pelarepresentação do espírito alemão, mostra o que há a esperar dafeliz reconstrução: a introdução dos métodos da Broadway noKurfíirsten-damm que, já nos anos vinte, só se diferenciavadaquela pela sua escassez <strong>de</strong> meios, não porque fossem melhoresos seus fins. Quem quiser opor-se ao fascismo cultural terá <strong>de</strong>começar já por Weimar, por "Bombas em Montecarlo" e pelasfestas da imprensa, se não quiser acabar por <strong>de</strong>scobrir que figurastão ambíguas como Fallada disseram, sob o regime <strong>de</strong> Hitler,mais verda<strong>de</strong>s do que as inequívocas proeminências queconseguiram transferir o seu prestígio.A saú<strong>de</strong> para a morte. - Se fosse possível uma psicanálise dacultura prototípica dos nossos dias, se a predominância absolutada economia não escarnecesse <strong>de</strong> toda a tentativa <strong>de</strong> explicar asituação a partir da vida anímica das suas vítimas, e se os próprios3648


psicanalistas não tivessem, há muito, jurado fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a estasituação, tal investigação revelaria que a enfermida<strong>de</strong> actualconsiste justamente na normalida<strong>de</strong>. As prestações libidinosas,exigidas pelo indivíduo, que se comporta no corpo e na alma <strong>de</strong>forma sadia, são <strong>de</strong> tal índole que só po<strong>de</strong>m ser levadas a cabopor meio da mais profunda mutilação e <strong>de</strong> uma interiorização dacastração nos extroverts, frente à qual o velho tema dai<strong>de</strong>ntificação com o pai é o jogo infantil em que foi exercitada. Oregular guy e a popular girl não só <strong>de</strong>vem reprimir os seus<strong>de</strong>sejos e conhecimentos, mas também ainda todos os sintomasque na época burguesa se seguiam do recalcamento. Assim comoa antiga injustiça não se altera mediante a generosa oferta àsmassas <strong>de</strong> luz, ar e higiene, mas é antes dissimulada com areluzente transparência da fábrica racionalizada, a saú<strong>de</strong> íntima daépoca consiste em ter cortado a fuga para a enfermida<strong>de</strong>, sem quetenha modificado no mínimo a sua etiologia. As mais obscurassaídas foram eliminadas como um lamentável esbanjamento <strong>de</strong>espaço e relegadas para a casa <strong>de</strong> banho. A suspeita levantadapela psicanálise confirmou-se antes <strong>de</strong> ela própria se tornar parteda higiene. On<strong>de</strong> maior é a clarida<strong>de</strong> dominam secretamente asmatérias fecais. Os versos que rezam - "Persiste a miséria. Talcomo antes. / Não po<strong>de</strong>s extirpá-la <strong>de</strong> raiz, / mas po<strong>de</strong>s torná-lainvisível" - têm na economia da alma mais valida<strong>de</strong> do que on<strong>de</strong> aabundância <strong>de</strong> bens consegue, <strong>de</strong> vez em quando, iludir asdiferenças materiais em incontível aumento. Nenhum estudochega hoje ao inferno on<strong>de</strong> se forjam as <strong>de</strong>formações que, maistar<strong>de</strong>, aparecem como jocosida<strong>de</strong>, franqueza, sociabilida<strong>de</strong>, comoadaptação conseguida ao inevitável e como sentido prático isento<strong>de</strong> sinuosida<strong>de</strong>s. Há motivos para admitir que elas têm lugar emfases do <strong>de</strong>senvolvimento infantil mais têmporas do que naorigem das neuroses: se são os resultados <strong>de</strong> um conflito em que apulsão foi vencida, o estado, que é tão normal como a socieda<strong>de</strong>mutilada a que ele se assemelha, provém <strong>de</strong> uma intervenção, porassim dizer pré-histórica, que anula já as forças antes <strong>de</strong> se chegarao conflito, pelo que a ulterior ausência <strong>de</strong> conflitos reflecte opreviamente <strong>de</strong>cidido, o triunfo apriórico da instância colectiva, enão a cura por meio do conhecimento. A ausência <strong>de</strong> nervosismoe a calma, que já foram o pressuposto da atribuição aoscandidatos dos cargos mais bem remunerados, são a imagem do49


silêncio abafado que os clientes dos chefes <strong>de</strong> pessoalpoliticamente, mais tar<strong>de</strong>, dissimulam. A doença dos sãos só sepo<strong>de</strong> diagnosticar objectivamente na <strong>de</strong>sproporção entre o seumodo <strong>de</strong> vida racionalizado e a possível <strong>de</strong>terminação racional dasua vida. Mas o vestígio da enfermida<strong>de</strong> atraiçoa-se a si mesmo:na aparência, é como se a sua pele estivesse estampada com umamarca regularmente mo<strong>de</strong>lada, como se neles houvesse ummimetismo com o inorgânico. Pouco falta para se po<strong>de</strong>rconsi<strong>de</strong>rar os que se consomem na <strong>de</strong>monstração da sua ágilvitalida<strong>de</strong> e pujante força como cadáveres preparados, aos quaisse ocultou a notícia do seu não <strong>de</strong> todo conseguido falecimento,por consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> política <strong>de</strong>mográfica. No fundo da saú<strong>de</strong>imperante acha-se a morte. Todo o seu movimento se assemelhaaos movimentos reflexos <strong>de</strong> seres a que se imobilizou o coração.Dificilmente as <strong>de</strong>sfavoráveis rugas da fronte, testemunho doesforço tremendo e há muito esquecido, dificilmente ummomento <strong>de</strong> pática tolice no meio da lógica fixa ou um gesto<strong>de</strong>sesperado conservam alguma vez, e <strong>de</strong> forma perturbadora, ovestígio da vida <strong>de</strong>svanecida. Pois o sacrifício que a socieda<strong>de</strong>exige é tão universal que, <strong>de</strong> facto, só se manifesta na socieda<strong>de</strong>como um todo, e não no indivíduo. De certo modo, esta assumiu aenfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os indivíduos, e nela, na <strong>de</strong>mênciacongestionada das acções fascistas e dos seus inumeráveismo<strong>de</strong>los e mediações, a infelicida<strong>de</strong> subjectiva enterrada noindivíduo integra-se na calamida<strong>de</strong> objectiva visível.Desconsolador é, porém, pensar que à doença do normal não secontrapõe sem mais a saú<strong>de</strong> do enfermo, mas esta, na maioria dasvezes, representa apenas sob outra forma o esquema do mesmoinfortúnio.Aquém do princípio do prazer. - Os rasgos repressivos <strong>de</strong>Freud nada têm a ver com a falta <strong>de</strong> indulgência apontada peloshábeis negociantes que são os revisionistas da teoria sexualestrita. A indulgência profissional, por motivos <strong>de</strong> lucro, fingeproximida<strong>de</strong> e imediatida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> ninguém sabe <strong>de</strong> ninguém.Engana a sua vítima, ao afirmar na sua <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> o curso domundo, que a fez como é, e faz-lhe tanta injustiça quanta a sua3750


enúncia à verda<strong>de</strong>. Se Freud careceu <strong>de</strong> tal indulgência, pelomenos seria aqui na socieda<strong>de</strong> o crítico da economia política, queé melhor do que a <strong>de</strong> Tagore ou <strong>de</strong> Werfel. O fatal consiste antesem que ele rastreou <strong>de</strong> um modo materialista, e contra a i<strong>de</strong>ologiaburguesa, a acção consciente até ao fundo inconsciente dosimpulsos, mas a<strong>de</strong>rindo ao mesmo tempo a abjecção burguesa dapulsão, também ela produto das racionalizações que ele <strong>de</strong>moliu.Em palavras das suas lições, ele submete--se expressamente "àestima geral..., que coloca os objectivos sociais acima dossexuais, no fundo egoístas". Como especialista da psicologiaaceita em bloco, sem exame, a oposição entre social e egoísta.Também não é capaz <strong>de</strong> nela reconhecer a obra da socieda<strong>de</strong> repressivacomo o vestígio dos fatídicos mecanismos que elepróprio caracterizou. Ou antes, hesita, falho <strong>de</strong> teoria e ajustandoseao preconceito, entre negar a renúncia ao instinto comorepressão contrária à realida<strong>de</strong> ou louvá-la como sublimaçãofomentadora da cultura. Nesta contradição vive algo do carácter<strong>de</strong> Jânus peculiar à própria cultura, e nenhum elogio da sãsensualida<strong>de</strong> é capaz <strong>de</strong> a suavizar. Daí, em Freud a<strong>de</strong>svalorização do elemento crítico para o objectivo da análise. Anão esclarecida iluminação <strong>de</strong> Freud insinua-se na <strong>de</strong>silusãoburguesa. Como ulterior inimigo da hipocrisia, situa-se eleambiguamente entre a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma manifesta emancipação dooprimido e a apologia da opressão <strong>de</strong>scarada. A razão é para elesimples superstrutura, não tanto, como lhe censura a filosofiaoficial, por causa do seu psicologismo, o qual penetra bastanteprofundamente na verda<strong>de</strong> do momento histórico, quanto <strong>de</strong>vidoà sua recusa da finalida<strong>de</strong>, alheia ao signi-ficado e carente <strong>de</strong>razão, em que o meio que é a razão se po<strong>de</strong>ria mostrar racional: oprazer. Logo que este é pejorativamente colocado entre asartimanhas para a conservação da espécie e, por assim dizer,dissolvido na astuta razão, sem se nomear o momento que vaialém do círculo da caducida<strong>de</strong> natural, a ratio <strong>de</strong>grada-se emracionalização. A verda<strong>de</strong> é entregue à relativida<strong>de</strong> e os homensao po<strong>de</strong>r. Só quem conseguisse confinar a utopia ao cego prazersomático, que carece <strong>de</strong> intenção ao mesmo tempo que satisfaz aintenção última, seria capaz <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia da verda<strong>de</strong> que semantivesse inalterada. Na obra <strong>de</strong> Freud, porém, reproduz-seinvoluntariamente a dupla hostilida<strong>de</strong> para com o espírito e o51


prazer, cuja comum raiz foi possível conhecer justamente graçasao meio que a psicanálise facultou. A passagem <strong>de</strong> O futuro <strong>de</strong>uma ilusão em que, com a nada digna sabedoria <strong>de</strong> um velhosenhor escarmentado, se cita aquela frase, própria <strong>de</strong> um commisvoyageur, sobre o céu - <strong>de</strong>ixemo--lo para os anjos e para ospardais - forma um par com aquele parágrafo das suas liçõeson<strong>de</strong>, atrozmente, con<strong>de</strong>na as práticas perversas do gran<strong>de</strong>mundo. Aqueles que em igual medida se indispõem contra oprazer e o céu são os que, em seguida, melhor cumprem o seu papel<strong>de</strong> objectos: o vazio, o mecanizado, que tão amiú<strong>de</strong> se observanos perfeitamente analisados, não provém só da sua enfermida<strong>de</strong>,mas também da sua cura, a qual <strong>de</strong>strói o que liberta. O fenómenoda transferência, tão afamado na terapia, cuja provocação não emvão constitui a crux do trabalho analítico, a situação artificial emque o sujeito voluntária e penosamente realiza a auto-anulaçãoque antes se produzia <strong>de</strong> maneira involuntária e feliz noabandono, é já o esquema do comportamento reflexo que, qualmarcha atrás do guia, liquida, juntamente com o espírito, tambémos que lhe foram infiéis.Convite à valsa. - A psicanálise costuma ufanar-se <strong>de</strong><strong>de</strong>volver aos homens a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo, quando esta foiperturbada pela enfermida<strong>de</strong> da neurose. Como se a simplesexpressão capacida<strong>de</strong> gozo não bastasse já, se é que existe, paranotavelmente a diminuir. Como se uma felicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vida àespeculação sobre a felicida<strong>de</strong>, não fosse justamente o contrárioda felicida<strong>de</strong>: uma outra irrupção dos comportamentosinstitucionalmente planificados no âmbito cada vez mais restritoda experiência. Que situação não terá alcançado a consciênciadominante para que a <strong>de</strong>cidida proclamação da extravagância e ajocosida<strong>de</strong> acompanhada <strong>de</strong> champanhe antes reservada aosviciados nas operetas húngaras, se tenha elevado, com animalescaserieda<strong>de</strong>, à máxima da vida correcta. A felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cretada tem,além disso, este outro aspecto: para a po<strong>de</strong>r repartir, o neuróticorestituído à sua felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve também renunciar ao últimopedacinho <strong>de</strong> razão que o recalcamento e a regressão lhe tinham<strong>de</strong>ixado e, por mor do psicanalista, entusiasmar-se indiscri-3852


minadamente com filmes sórdidos, com os pratos, caros masmaus, nos restaurantes franceses, com o drink mais reputado ecom o sexo doseado. A frase <strong>de</strong> Schiller - "A vida, apesar <strong>de</strong> tudo,é bela" - que sempre foi papiermaché, tornou-se mera idiotia<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que é apregoada com cumplicida<strong>de</strong> pela propagandaomnipresente, a cujo lume também a psicanálise trouxe a suaacha, não obstante a sua outra possibilida<strong>de</strong> melhor. Visto que aspessoas têm cada vez menos inibições e não <strong>de</strong>masiadas, sem porisso estarem um pouco mais sãs, um método catártico, que nãoencontrasse a sua norma na perfeita adaptação e no êxitoeconómico, teria <strong>de</strong> ir encaminhado para <strong>de</strong>spertar nos homens aconsciência da infelicida<strong>de</strong>, da geral e da própria inseparável daprimeira, e <strong>de</strong> lhes tirar as falsas satisfações em virtu<strong>de</strong> das quaisse mantém nelas com vida a or<strong>de</strong>m abominável que, a partir <strong>de</strong>fora, dá a aparência <strong>de</strong> não as subjugar ao seu po<strong>de</strong>r. Só na náuseado falso gozo, na aversão ao que se oferece, e no pressentimentoda insuficiência <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, inclusive on<strong>de</strong> ainda alguma existe- para não falar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela se consegue com o esforço <strong>de</strong> umaresistência, supostamente patológica, aos seus sucedâneosimpostos - se teria uma i<strong>de</strong>ia do que se po<strong>de</strong>ria experimentar. Aexortação à happiness, na qual coinci<strong>de</strong>m o director do sanatório,homem do mundo e <strong>de</strong> ciência, e o nervoso chefe publicitário daindústria do prazer, tem os rasgos do pai temível que berra aosfilhos por não <strong>de</strong>scerem jubilosos as escadas quando ele, malhumorado,regressa do trabalho a casa. É próprio do mecanismo<strong>de</strong> dominação impedir o conhecimento do sofrimento queprovoca, e há um caminho directo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o evangelho da alegria<strong>de</strong> viver até à instalação <strong>de</strong> matadouros humanos, embora estesestejam, como na Polónia, tão distantes que cada um dos seushabitantes se po<strong>de</strong> convencer <strong>de</strong> que não ouve os gritos <strong>de</strong> dor.Eis o esquema da imperturbada capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo. A psicanálisepo<strong>de</strong> triunfantemente confirmar àquele que chama as coisas peloseu nome que pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> Édipo.O ego é o id. - Costuma fazer-se uma associação entre o<strong>de</strong>senvolvimento da psicologia e a ascensão do indivíduoburguês, tanto na Antiguida<strong>de</strong> como a partir do Renascimento. E3953


não <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>scurar-se o momento contrário que a psicologiatem em comum com a classe burguesa e que, hoje, se encaminhapara a exclusivida<strong>de</strong>: a opressão e a dissolução do indivíduo, acujo serviço estava a reversão do conhecimento ao sujeito domesmo. Se toda a psicologia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Protágoras, exaltou o homemmediante a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que este é a medida <strong>de</strong> todas as coisas, fezassim também <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, um objecto, matéria <strong>de</strong>análise; e uma vez integrado no meio das coisas, submeteu-o àsua niilida<strong>de</strong>. A negação da verda<strong>de</strong> objectiva pelo recurso aosujeito inclui a sua própria negação: nenhuma medida é já amedida <strong>de</strong> todas as coisas; esta cai na contingência e torna-seinverda<strong>de</strong>. Mas isto remete para o processo real da vida emsocieda<strong>de</strong>. O princípio da dominação humana, que evoluiu paraum princípio absoluto, virou assim a sua ponta contra o homemenquanto objecto absoluto, e a psicologia colaborou nisso afiandotal ponta. O eu, a sua i<strong>de</strong>ia directriz e o seu objecto apriórico,converteu--se sempre, sob o seu olhar, em algo ao mesmo temponão existente. Enquanto a psicologia se pô<strong>de</strong> apoiar no facto <strong>de</strong>que o sujeito na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> troca não é sujeito algum, mas sim,na realida<strong>de</strong>, seu objecto, conseguiu proporcionar a esta as armaspara fazer <strong>de</strong>ste um objecto e manter a sua submissão. Ofraccionamento do homem nas suas capacida<strong>de</strong>s é uma projecçãoda divisão do trabalho nos seus pretensos sujeitos, inseparável dointeresse em fornecer-lhes a máxima utilida<strong>de</strong>, para os po<strong>de</strong>rmanipular. A psicotécnica não é uma simples forma <strong>de</strong>generativada psicologia, mas o seu princípio imanente. Hume, cuja obraatesta em cada frase um humanismo real, ao mesmo tempo queacantona o eu entre os preconceitos, expressa em semelhantecontradição a essência da psicologia como tal. E ainda tem averda<strong>de</strong> do seu lado, pois o que a si mesmo se põe como eu é, narealida<strong>de</strong>, simples preconceito, a hipóstase i<strong>de</strong>ológica dos centrosabstractos <strong>de</strong> dominação, cuja crítica exige a <strong>de</strong>molição dai<strong>de</strong>ologia da "personalida<strong>de</strong>". Mas esta <strong>de</strong>molição torna tambémtanto mais domináveis os seus resíduos. Na psicanálise, issotorna--se flagrante. Ela inclui a personalida<strong>de</strong> como mentira davida, como a racionalização suprema que congrega asinumeráveis racionali-zações graças às quais o indivíduo leva acabo a sua renúncia aos impulsos e se ajusta ao princípio darealida<strong>de</strong>. Mas, ao mesmo tempo, nessa própria <strong>de</strong>monstração,54


confirma ao homem o seu não-ser. Aliena-o <strong>de</strong> si mesmo,<strong>de</strong>nuncia juntamente com a sua unida<strong>de</strong> a sua autonomia esubmete-o assim inteiramente ao mecanismo da racionalização, àadaptação. A ousada crítica do eu em si mesmo leva à exigência<strong>de</strong> capitulação do dos outros. Finalmente, a sabedoria dospsicanalistas transforma-se naquilo com que o inconscientefascista das revistas sensacionalistas a i<strong>de</strong>ntifica, na técnica <strong>de</strong> umracket especial entre outros para atrair os homens atormentados e<strong>de</strong>samparados, os manejar e explorar. A sugestão e a hipnose, queela repudia por apócrifas, o ilusionista <strong>de</strong> feira na sua barraca,retornam ao seu grandioso sistema como à superprodução ocinematógrafo. Quem ajuda porque sabe converte-se naquele querebaixa o outro mediante o privilégio da sua sapiência. Da críticada consciência burguesa só resta o encolher <strong>de</strong> ombros com quetodos os médicos manifestam a sua secreta familiarida<strong>de</strong> com amorte. - Na psicologia, na frau<strong>de</strong> abissal do puramente íntimo,que não em vão tem a ver com as "properties" dos homens,reflecte-se o que a organização da socieda<strong>de</strong> burguesa <strong>de</strong>s<strong>de</strong>sempre fez com a pro-prieda<strong>de</strong> exterior. Desenvolveu-a comoresultado da troca social, mas com uma cláusula objectiva <strong>de</strong>retenção, pela qual cada burguês anelava. O indivíduo recebeassim a investidura da classe, e os que a outorgam estão dispostosa retirar-lha, logo que a proprieda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>r tornar-se perigosa parao seu próprio princípio, que consiste justamente na retenção. Apsicologia repete nas qualida<strong>de</strong>s o que aconteceu com aproprieda<strong>de</strong>. Expropria o indivíduo, ao conce<strong>de</strong>r--lhe a suafelicida<strong>de</strong>.Falar sempre, pensar nunca. - Des<strong>de</strong> que, com a ajuda docinema, das soap operas e do horney, a psicologia profundapenetra nos últimos rincões, a cultura organizada corta aoshomens o acesso à <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira possibilida<strong>de</strong> da experiência <strong>de</strong> simesmo. O esclareci-mento já pronto transforma não só a reflexãoespontânea, mas o discernimento analítico, cuja força é igual àenergia e ao sofrimento com que eles se obtêm, em produtos <strong>de</strong>massas, e os dolorosos segredos da história individual, que ométodo ortodoxo se inclina já a reduzir a fórmulas, em vulgares4055


convenções. Até a própria dissolução das racionalizações setorna-se racionalização. Em vez <strong>de</strong> realizar o trabalho <strong>de</strong>autognose, os endoutrinados adquirem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subsumirtodos os conflitos em conceitos como complexo <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>pendência materna, extrovertido e introvertido, que, no fundo,são pouco menos do que incompreensíveis. O horror em face doabismo do eu é eliminado mediante a consciência <strong>de</strong> que não setrata mais do que <strong>de</strong> uma artrite ou <strong>de</strong> sinus troubles. Os conflitosper<strong>de</strong>m assim o seu aspecto ameaçador. São aceites; não sanados,mas encaixados somente na superfície da vida normalizada comoseu ingrediente inevitável. São, ao mesmo tempo, absorvidoscomo um mal universal pelo mecanismo da imediata i<strong>de</strong>ntificaçãodo indivíduo com a instância social; tal mecanismo já há muito<strong>de</strong>finiu as condutas pretensamente normais. Em vez da catarse,cujo êxito é, <strong>de</strong> qualquer modo, duvidoso, surge a conquista doprazer <strong>de</strong> até na própria <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> ser um exemplar da maioria econseguir assim não tanto, como outrora os internados nos sanatórios,o prestígio do interessante estado patológico quanto, justamenteem virtu<strong>de</strong> daquelas <strong>de</strong>ficiências, <strong>de</strong> se mostrar como nelaintegrado e transferir para si o po<strong>de</strong>r e a gran<strong>de</strong>za do colectivo. Onarcisismo, que com a <strong>de</strong>cadência do eu fica privado do seuobjecto libidinal, é substituído pelo prazer masoquista <strong>de</strong> nãomais ser um cu, e a geração ascen<strong>de</strong>nte vela pela sua ausência <strong>de</strong>eu com mais /elo do que por algum dos seus bens, como se fosseuma posse comum e duradoura. O reino da coisificação e danormalização expan<strong>de</strong>-se assim até à sua extrema contradição: osupostamente anormal e caótico. O incomensurável torna-secomo tal comensurável, e o indivíduo dificilmente é já capaz <strong>de</strong>impulso algum que não possa mencionar-se como exemplo <strong>de</strong>staou daquela constelação publicamente reconhecida. Estai<strong>de</strong>ntificação exteriormente aceite e, por assim dizer, levada acabo para além da dinâmica própria acaba por eliminar,juntamente com a genuína consciência que <strong>de</strong>le se tem, o impulsoem si. Este torna-se um reflexo provocável e revogável <strong>de</strong> átomosestereotipados a estímulos estereotipados. Por outro lado, aconvencionalização da psicanálise origina a sua própria castração:os motivos sexuais, em parte negados, em parte aprovados,tornam-se inteiramente inofensivos, e também <strong>de</strong> todo fúteis.Junto com a angústia que eles produ-zem, <strong>de</strong>svanece-se56


igualmente o prazer que po<strong>de</strong>riam produzir. A psicanálise tornase,pois, a vítima da substituição do superego assimilado mediantea aceitação tenaz <strong>de</strong> uma exteriorida<strong>de</strong> carente <strong>de</strong> relação, que elaprópria ensinou a compreen<strong>de</strong>r. O último dos gran<strong>de</strong>s teoremasda autocrítica burguesa transformou-se num meio para tornarabsoluta a auto-alienação burguesa nas suas últimas fases efrustrar ainda a recordação da ferida primigénia on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> aesperança <strong>de</strong> algo melhor no futuro.Dentro e fora. - Por pieda<strong>de</strong>, negligência e cálculo permite-seà filosofia continuar a emporcalhar-se em âmbitos académicoscada vez mais estreitos, e até aí se tenta cada vez mais substituí-lapela tautologia organizada. Quem se entrega à reflexão <strong>de</strong>funcionário fica, como há cem anos, sujeito à coacção <strong>de</strong>, emcada instante, ser tão ingénuo como os colegas <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>a carreira. Mas o pensamento extra-académico, que conseguiusubtrair-se a semelhante obrigação e à contradição entre temaspomposos e o seu tratamento pequeno-burguês, é ameaçado porum perigo não muito menor: a pressão económica do mercado, daqual, pelo menos na Europa, os professores estavam a salvo. Ofilósofo que, como escritor, <strong>de</strong>seja ganhar o seu sustento <strong>de</strong>ve,por assim dizer, oferecer em cada momento algo fino e selecto,afirmar-se mediante o monopólio da rareza frente ao oficial. Oconceito repulsivo <strong>de</strong> acepipe espiritual, excogitado pelospedantes, acaba por obter, entre os seus opositores, o seuvergonhoso direito. Quando o antigo articulista resmunga perantea exigência do director do jornal <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve escrever com brilho,<strong>de</strong>nuncia com toda a naturalida<strong>de</strong> a lei que, tacitamente, imperapor trás das obras sobre o Eros cosmogónico e o cosmos atheos, ametamorfose dos <strong>de</strong>uses e o mistério do Evangelho <strong>de</strong> S. João. Oestilo <strong>de</strong> vida do boémio atrasado, a que se vê forçado o filósofonão académico, leva-o <strong>de</strong> qualquer modo a uma fatal afinida<strong>de</strong>com a arte industrial, a vulgarida<strong>de</strong> psíquica e a pseudo--erudiçãosectária. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Munique anterior à I Guerra Mundial foi umalfobre daquela espiritualida<strong>de</strong> cujo protesto contra oracionalismo das escolas mediante o culto dos bailes <strong>de</strong> máscaras<strong>de</strong>saguou com maior rapi<strong>de</strong>z no fascismo do que o pusilânime4157


sistema do velho Rickert. Tão gran<strong>de</strong> é o po<strong>de</strong>r da progressivaorganização do pensamento que, aos que querem ficar <strong>de</strong> fora, osempurra para a inutilida<strong>de</strong> do ressentimento, para a garrulice doauto-elogio e, finalmente, aos subordinados, para a simulação. Seos professores ordinários propõem o princípio do sum ergo cogitoe, em seguida, se sujeitam ao sistema aberto da agorafobia e aomergulho na comunida<strong>de</strong> do povo, extraviam-se também os seusadversários, se não estiverem alerta, no domínio da grafologia eda ginástica rítmica. Aos obcecados além correspon<strong>de</strong>m aqui osparanóicos. A nostálgica oposição à investigação dos factos, alegítima consciência <strong>de</strong> que no cientismo se esquece o melhor,favorece, na sua ingenuida<strong>de</strong>, a cisão <strong>de</strong> que pa<strong>de</strong>ce. Em vez <strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r os factos, atrás dos quais os outros se entrincheiram,recolhe <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente o que na pressa se lhe <strong>de</strong>para,empreen<strong>de</strong> a fuga e joga com os conhecimentos apócrifos, comumas quantas categorias isoladas e hipostasiadas e consigomesma <strong>de</strong> forma tão acrítica que, em seguida, a referência aosfactos inflexíveis acaba por ganhar. E assim se per<strong>de</strong> o elementocrítico no pensar aparentemente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. A insistência nomistério cósmico oculto sob a superfície, que <strong>de</strong>ixarespeitosamente intacta a sua relação com a crosta, confirmabastantes vezes, justamente graças a esta abstenção, que talrelação tem também o seu bom sentido, que importa admitir semmais questões. Entre o <strong>de</strong>leite no vazio e a mentira da abundância,a classe dominante do espírito não admite nenhum terceiro.Apesar <strong>de</strong> tudo, a visão do longínquo, o ódio à banalida<strong>de</strong>, abusca do intocado, do ainda não apreendido pelo esquemaconceptual universal, constituem a última oportunida<strong>de</strong> para opensamento. Numa hierarquia espiritual que incessantementereclama a responsabilida<strong>de</strong>, só a irresponsabilida<strong>de</strong> é capaz <strong>de</strong>chamar pelo seu nome essa mesma hierarquia. A esfera dacirculação, cujas marcas os intelectuais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes ostentam,abre ao espírito com que negoceia os seus últimos refúgios nomomento em que estes, em rigor, já não existem. Quem oferecealgo único que já ninguém quer comprar representa, mesmocontra sua vonta<strong>de</strong>, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> troca.58


Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento. - A suplantação da filosofia pelaciência levou, como se sabe, a uma separação dos dois elementos,cuja unida<strong>de</strong> constitui, segundo Hegel, a vida da filosofia: areflexão e a especulação. Às <strong>de</strong>terminações reflexivas conce<strong>de</strong>-se,com <strong>de</strong>sencanto, o reino da verda<strong>de</strong>, e a especulação é aí tolerada<strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> só em vista da formulação <strong>de</strong> hipóteses, as quaisterão <strong>de</strong> se excogitar fora do tempo <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> se aprontartão <strong>de</strong>pressa quanto possível. Mas quem julgasse que o domínioespeculativo se manteria incontestado na sua formaextracientífica, como que <strong>de</strong>ixado em paz pelas activida<strong>de</strong> daestatística universal, equivocar--se-ia <strong>de</strong> cabo a rabo. Paracomeçar, a dissociação da reflexão é já por si assaz nociva para aespeculação. Esta, ou fica <strong>de</strong>gradada a um papagueio erudito <strong>de</strong>projectos filosóficos tradicionais ou, no seu distanciamento dosfactos cegos, <strong>de</strong>genera em lengalenga <strong>de</strong> uma visão do mundoprivada e <strong>de</strong>scomprometida. Mas, não contente com isso, aprópria activida<strong>de</strong> científica, encorpora em si a especulação.Entre as funções públicas da psicanálise, essa encorporação não éa última. O seu meio é a livre associação. O caminho para oinconsciente dos pacientes é aplanado, ao <strong>de</strong>sculpá-los daresponsabilida<strong>de</strong> da reflexão, e a própria teoria analítica segue omesmo trilho, quer porque <strong>de</strong>ixa que os seus diagnósticos lhesejam indicados pelo curso ou pela estagnação daquelasassociações, quer porque os analistas, e justamente os maisdotados como Grod<strong>de</strong>ck, confiam na sua própria associação. Nodivã exibe-se, distenso, o que um dia na cátedra suscitou aextrema tensão do pensamento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Schelling e Hegel: a<strong>de</strong>cifração do fenómeno. Mas tal afrouxamento da tensão afecta aqualida<strong>de</strong> das i<strong>de</strong>ias: a diferença dificilmente é menor do que aque existe entre a filosofia da revelação e o palavreado da sogra.O mesmo momento do espírito que, outrora, teve <strong>de</strong> elevar o seu"material" a conceito é agora rebaixado a simples material para aor<strong>de</strong>nação conceptual. O que a alguém ocorrer chega para que osperitos <strong>de</strong>cidam se o produtor é um carácter obsessivo, um tipooral ou um histérico. Em virtu<strong>de</strong> da mitigação daresponsabilida<strong>de</strong>, que consiste em soltar-se da reflexão e docontrolo do entendimento, a própria especulação enquanto4259


objecto <strong>de</strong>ixa-se à ciência, e a sua subjectivida<strong>de</strong> é nela extinta. Ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> esquema director da análise, ao abandonar-se à evocaçãodas suas origens inconscientes, esquece--se <strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ia. De juízoverda<strong>de</strong>iro torna-se matéria neutra. Em vez <strong>de</strong> levar a cabo otrabalho do conceito para se apossar <strong>de</strong> si mesmo, confia-se,impotente, ao labor do médico que, seja como for, já tudo sabe.Assim se dissipa a especulação e se converte num facto que,como documento do imodifícável, se inclui num dos ramos daclassificação.Não vale alarmar-se. - Assaz difícil é <strong>de</strong>cidir o que sejaobjectivamente a verda<strong>de</strong>, mas, no trato com os homens, não háque se <strong>de</strong>ixar aterrorizar por isso. Existem critérios que para oprimeiro são suficientes. Um dos mais seguros consiste emobjectar a alguém que uma asserção sua é "<strong>de</strong>masiadosubjectiva". Se se utilizar, e com aquela indignação em que ressoaa furiosa harmonia <strong>de</strong> todas as pessoas sensatas, então há motivopara se ficar alguns instantes em paz consigo. Os conceitos dosubjectivo e objectivo inverteram-se por completo. Diz-seobjectiva a parte incontroversa do fenómeno, a sua efígieinquestionavelmente aceite, a fachada composta <strong>de</strong> dadosclassificados, portanto, o subjectivo; e <strong>de</strong>nomina-se subjectivo oque tal <strong>de</strong>smorona, ace<strong>de</strong> à experiência específica da coisa, selivra das opiniões convencionais a seu respeito e instaura arelação com o objecto em substituição da <strong>de</strong>cisão maioritáriadaqueles que nem sequer chegam a intuí-lo, e menos ainda apensá-lo - logo, o objectivo. A futilida<strong>de</strong> da objecção formal darelativida<strong>de</strong> subjectiva patenteia-se no seu próprio terreno, o dosjuízos estéticos. Quem alguma vez, pela força da sua precisareacção em face da serieda<strong>de</strong> da disciplina <strong>de</strong> uma obra artística,se submete à sua lei formal imanente, à coerção da suaconfiguração, vê <strong>de</strong>svanecer-se-lhe a prevenção do meramentesubjectivo da sua experiência como uma mísera ilusão, e cadapasso que dá, graças à sua inervação extremamente subjectiva,para se a<strong>de</strong>ntrar na obra, tem uma força objectivaincomparavelmente muito maior do que as gran<strong>de</strong>s e consagradas4360


conceptualizações acerca, por exemplo, do "estilo", cujapretensão científica se impõe à custa <strong>de</strong> tal experiência. Isto éduplamente verda<strong>de</strong>iro na era do positivismo e da indústriacultural, cuja objectivida<strong>de</strong> é calculada pelos sujeitos que aorganizam. Perante esta, a razão refugiou-se toda, e sem janelas,nas idiossincrasias, acusadas <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong> pela arbitrarieda<strong>de</strong>dos po<strong>de</strong>rosos, porque eles querem a impotência dos sujeitos, emvirtu<strong>de</strong> da angústia frente à objectivida<strong>de</strong> que só em tais sujeitosse encontra preservada.Para pós-socráticos. - Para o intelectual que se propõe fazero que outrora se chamou filosofia nada é mais incongruente doque, na discussão, e quase se po<strong>de</strong>ria dizer na argumentação,querer ter razão. O próprio querer ter razão é, até à mais subtilforma lógica da reflexão, uma expressão daquele espírito <strong>de</strong> autoafirmação,cuja dissolução constitui justamente a preocupação dafilosofia. Conheci alguém que convidava, uma após outra, todasas celebrida<strong>de</strong>s na filosofia do conhecimento, na ciência natural enas ciências do espírito, discutia com cada uma o seu sistema e,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> já nenhum se atrever a apresentar argumentos contra oseu formalismo, tinha como irrefutavelmente válido o seu caso.Algo <strong>de</strong>sta ingenuida<strong>de</strong> actua ainda on<strong>de</strong> quer que a filosofia,mesmo só <strong>de</strong> longe, imita o gesto da convicção. Está a estesubjacente o pressuposto <strong>de</strong> uma universitas litterarum, <strong>de</strong> umacordo a priori entre os espíritos que po<strong>de</strong>m entre si comunicar e,por conseguinte, o conformismo total. Quando os filósofos, paraquem, como se sabe, é sempre já tão difícil o silêncio, se lançamna discussão, <strong>de</strong>viam dar a enten<strong>de</strong>r que nunca têm razão, mas <strong>de</strong>um modo que induza o antagonista à inverda<strong>de</strong>. Importaria terconhecimentos que não fossem absolutamente exactos einvulneráveis - estes <strong>de</strong>sembocam sem remédio na tautologia -,mas tais que, diante <strong>de</strong>les, se levantasse por si só a questão da suaexactidão. - Não se aspira assim ao irracionalismo, à proposta <strong>de</strong>teses arbitrárias, justificadas pela fé reveladora da intuição, mas àeliminação da diferença entre tese e argumento. Pensardialecticamente significa, sob este aspecto, que o argumento <strong>de</strong>ve4461


obter o carácter trágico da tese, e a tese conter em si a plenitu<strong>de</strong>do seu fundamento. Deveriam <strong>de</strong>scurar-se todos os conceitosponte,todas as ligações e operações lógicas secundárias, que nãoradicam no próprio objecto. Num texto filosófico, todos osenunciados <strong>de</strong>viam estar à mesma distância do centro. Sem terchegado a expressá--lo, o procedimento <strong>de</strong> Hegel é, no seu todo,um testemunho <strong>de</strong>sta intenção. Como ela não admitia nenhumprimeiro, também não podia, em rigor, aceitar nenhum segundonem algo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivado, e trasladou directamente o conceito <strong>de</strong>mediação das <strong>de</strong>terminações formais intermédias para as própriascoisas; pretendia <strong>de</strong>ste modo superar a sua diferença <strong>de</strong> umpensamento mediador, a elas exterior. Os limites que, na filosofiahegeliana, me<strong>de</strong>m a realização <strong>de</strong> tal intenção são, ao mesmotempo, os limites da sua verda<strong>de</strong>, a saber, as relíquias da primaphilosophia, da suposição do sujeito enquanto, apesar <strong>de</strong> tudo, um"primeiro". Entre as tarefas da lógica dialéctica encontra-se a <strong>de</strong>acabar com os últimos vestígios do sistema <strong>de</strong>dutivo, juntamentecom os últimos gestos advocatórios do pensamento."Quão doente parece tudo o que nasce 3 ." - O pensamentodialéctico opõe-se também a toda a coisificação no sentido <strong>de</strong> quese recusa a confirmar um indivíduo no seu isolamento e na suaseparação: <strong>de</strong>fine, sim, o seu isolamento como produto do geral.Actua assim como um correctivo da fixação maníaca, bem comodo rasgo vazio e sem oposição do espírito paranóico, queremunera o juízo absoluto à custa da experiência da coisa. Masnem por isso a dialéctica é aquilo que chegou a ser na escolahegeliana inglesa e, em seguida, <strong>de</strong> forma consumada, no forçadopragmatismo <strong>de</strong> Dewey, a saber, o sense of proportions, aor<strong>de</strong>nação das coisas na sua perspectiva exacta, o simples, mastenaz, são senso comum. Se Hegel, em diálogo com Goethe, estáaparentemente perto <strong>de</strong> tal concepção, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a sua filosofiaperante o platonismo goethe-ano - "no fundo, ela seria apenas oespírito <strong>de</strong> contradição regulado e metodicamente <strong>de</strong>senvolvidoque, como um dom, existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada homem, e cujo valor se453 Georg Trakl, Heiterer Fruhling(Gedichte). (N. T.)62


evela sobretudo na distinção do verda<strong>de</strong>iro frente ao falso" -então esta subtil formulação encerra astutamente, no elogio doque "existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada homem", a <strong>de</strong>núncia do common sense,a cuja caracterização mais funda se proce<strong>de</strong> não justamente<strong>de</strong>ixando-se guiar pelo common sense, mas contradizendo-o. Ocommon sense, a apreciação das justas proporções, o olharamestrado no mercado e exercitado nas relações mundanas têmem comum com a dialéctica a libertação do dogma, da limitação eda extravagância. Na sua sobrieda<strong>de</strong>, há um momentoincondicional <strong>de</strong> pensamento crítico. Mas a renúncia à cega obstinaçãoé também o seu inconciliável inimigo. A universalida<strong>de</strong> daopinião, tomada imediatamente como uma universalida<strong>de</strong>radicada na socieda<strong>de</strong>, tem necessariamente por conteúdoconcreto o consenso. Não foi por acaso que, no século XIX, odogmatismo já bafiento e <strong>de</strong>slocado, com má consciência, pelaIlustração, apelou ao sadio senso comum, ao ponto <strong>de</strong> umarquipositivista como Mill se ver obrigado a polemizar contra omesmo. O sense of proportions refere-se inteiramente ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>pensar em proporções mensuráveis e or<strong>de</strong>nações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za quesejam firmes. É necessário ter, alguma vez, ouvido dizer a umobstinado membro <strong>de</strong> uma camarilha influente: "Isso não é assimtão importante"; basta apenas observar quando os burguesesfalam <strong>de</strong> exagero, <strong>de</strong> histeria ou <strong>de</strong> loucura, para saber que on<strong>de</strong>com maior ligeireza se evoca a razão aí também, <strong>de</strong> um modotanto mais inevitável, se faz a apologia da irrazão. Hegel <strong>de</strong>u apreeminência ao são espírito da contradição com a teimosia docamponês que, durante séculos, apren<strong>de</strong>u a suportar a caça e ostributos dos po<strong>de</strong>rosos senhores feudais. A incumbência dadialéctica é preservar as opiniões sadias, guardas tardias da inalterabilida<strong>de</strong>do curso do mundo, iludi-las e <strong>de</strong>cifrar nas suaspropor-tions o reflexo fiel e reduzido das <strong>de</strong>sproporções que<strong>de</strong>smedidamente se avolumaram. A razão dialéctica, frente àrazão dominante, é a irrazão: só quando a ultrapassa e supera setorna racional. Quão extravagante e talmúdica já era, em plenofuncionamento da economia <strong>de</strong> troca, a insistência na diferençaentre o tempo <strong>de</strong> trabalho gasto pelo operário e o temponecessário para a reprodução da sua vida! Não é verda<strong>de</strong> queNietszche embridou pela cauda todos os cavalos sobre os quaisempreen<strong>de</strong>u os seus ataques, e que Karl Kraus, Kafka, o próprio63


Proust falsearam preconceituosamente, cada qual à sua maneira, aimagem do mundo para abalar a sua falsida<strong>de</strong> e confusão! Adialéctica não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ter-se em face dos conceitos <strong>de</strong> são e <strong>de</strong>enfermo, e também não diante do irracional e do racionalirmanados com os primeiros. Se reconheceu como doentes o universaldominante e as suas proporções - e, em sentido literal, osi<strong>de</strong>ntificou com a paranóia, com a "projecção pática" - entãoaquilo que conforme à medida da or<strong>de</strong>m surge como doente,<strong>de</strong>sviado, paranói<strong>de</strong>, e até "<strong>de</strong>slocado", converte-se no únicogerme <strong>de</strong> cura, e tão certo é hoje como na Ida<strong>de</strong> Média que só osloucos dizem a verda<strong>de</strong> diante do po<strong>de</strong>r. Sob este aspecto o <strong>de</strong>verdo dialéctico seria levar esta verda<strong>de</strong> do louco à consciência dasua própria razão; sem tal consciência, ela afundar-se-ia noabismo daquela enfermida<strong>de</strong> que o sadio senso comum dita, semmisericórdia, aos outros.Para uma moral do pensamento. - O ingénuo e o nãoingénuo são conceitos tão infinitamente entrelaçados que <strong>de</strong> nadaserve confrontá-los entre si. A <strong>de</strong>fesa do ingénuo, tal como é feitapor todo o tipo <strong>de</strong> irracionalistas e <strong>de</strong>voradores <strong>de</strong> intelectuais, éindigna. A reflexão que toma partido pela ingenuida<strong>de</strong> concordacom o seguinte: a astúcia e o obscurantismo são sempre a mesmacoisa. Afirmar a imediatida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma mediata, em vez <strong>de</strong> aconceber como em si mediada, inverte o pensamento em apologiada sua própria antítese, em mentira imediata. Esta presta-se a todoo mal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a renitência privada <strong>de</strong> "as coisas são assim" até àjustificação da injustiça social como natureza. Se, apesar <strong>de</strong> tudo,se quisesse elevar o oposto a princípio e chamar à filosofia -como eu próprio fiz uma vez - a obrigação categórica à nãoingenuida<strong>de</strong>, dificilmente se ganharia alguma coisa. A nãoingenuida<strong>de</strong>, no sentido <strong>de</strong> ser versado, <strong>de</strong> estar escarmentado ou<strong>de</strong> ser matreiro, é um duvidoso meio <strong>de</strong> conhecimento que, pelaafinida<strong>de</strong> com as or<strong>de</strong>ns práticas da vida, pela cabal reservamental frente à teoria, está predisposto a rejeitar, na ingenuida<strong>de</strong>,todo o apego a fins. Também uma nuvem paira on<strong>de</strong> a nãoingenuida<strong>de</strong> se concebe no sentido teoreticamente responsável doque vai mais além, do que não se <strong>de</strong>tém no fenómeno isolado, do4664


que pensa a totalida<strong>de</strong>. É justamente aquele prosseguir e já nãopo<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ter-se, aquele tácito reconhecimento do primado do geralfrente ao particular, em que consiste não só o engano doi<strong>de</strong>alismo, que hipostasia os conceitos, mas também a suainumanida<strong>de</strong> que, uma vez apreendido o particular, o rebaixa alugar <strong>de</strong> passagem e, finalmente, se resigna com <strong>de</strong>masiadarapi<strong>de</strong>z, com dor e morte, a uma reconciliação que só existe nareflexão -em última análise, a frieza burguesa, que com excessivacomplacência subscreve o inevitável. O conhecimento sóconsegue esten-<strong>de</strong>r-se até on<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal modo se aferra ao indivíduoque, por causa da insistência, se quebra o seu isolamento.Também isso supõe uma relação com o geral, não uma relação <strong>de</strong>subsunção, mas quase a sua contrária. A mediação dialéctica nãoé o recurso a algo mais abstracto, mas o processo <strong>de</strong> dissoluçãodo concreto em si mesmo. Nietszche, que muitas vezes pensava<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> horizontes <strong>de</strong>masiado vastos, sabia-o muito bem:"Quem tenta mediar entre dois pensadores audazes - diz na GaiaCiência - revela-se como medíocre: não tem olho para ver oúnico; o andar à busca <strong>de</strong> semelhanças e afinida<strong>de</strong>s écaracterístico dos olhos fracos." A moral do pensamento consistenum procedimento nem teimoso nem soberano, nem cego nemvazio, nem atomístico nem consequente. A duplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>método, que acarretou à Fenomenologia <strong>de</strong> Hegel a fama <strong>de</strong> obra<strong>de</strong> abissal dificulda<strong>de</strong> entre as pessoas sensatas, isto é, a exigência<strong>de</strong> ao mesmo tempo <strong>de</strong>ixar falar os fenómenos como tais - o"puro contemplar" - e, em cada instante, ter presente a sua relaçãoà consciência como sujeito, à reflexão, expressa essa moral domodo mais preciso e em toda a profundida<strong>de</strong> da contradição. Masquão mais difícil se tornou querer segui-la, pois já não é possívelpreten<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito e objecto, essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> graçasa cuja aceitação final Hegel <strong>de</strong>u guarida às exigências antagónicasdo contemplar e do construir. O que hoje se exige ao pensador éapenas que esteja em cada instante nas coisas e fora das coisas - ogesto <strong>de</strong> Munchausen puxando pelos cabelos para sair do poçoconverte-se no esquema <strong>de</strong> todo o conhecimento que quer sermais do que comprovação ou projecto. E, em seguida, ainda vêmos filósofos assalariados que nos censuram a falta <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong>vista sólido.65


De gustibus est disputandum. - Quem está convencido daincomparabilida<strong>de</strong> das obras <strong>de</strong> arte ver-se-á também sempreenredado em <strong>de</strong>bates em que as obras <strong>de</strong> arte, e justamente damais alta e portanto incomparável categoria, são comparadasumas às outras e valorizadas umas em face das outras. A objecção<strong>de</strong> que em semelhantes consi<strong>de</strong>rações, feitas <strong>de</strong> modoparticularmente compulsivo, se trata <strong>de</strong> instintos mercantis, <strong>de</strong>medir com vara, tem quase sempre apenas o sentido <strong>de</strong> quesólidos burgueses, para quem a arte nunca po<strong>de</strong> ser assazirracional, <strong>de</strong>sejam manter longe das obras toda a reflexão e apretensão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Mas pressão que impele a taisconsi<strong>de</strong>rações resi<strong>de</strong> nas próprias obras <strong>de</strong> arte. Se tal forverda<strong>de</strong>, não admitem ser comparadas. Querem, sim, aniquilar--seumas às outras. Não foi em vão que os antigos reservaram para os<strong>de</strong>uses ou para as i<strong>de</strong>ias o panteão do compatível, enquanto asobras <strong>de</strong> arte, entre si inimigas mortais, as empurraram para oagón. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um «panteão do classicismo», que Kierkegaardainda abrigava, é uma ficção da cultura neutralizada. Se a i<strong>de</strong>ia dobelo se representa simplesmente repartida em múltiplas obras,cada uma em particular intenta incondicionalmente a i<strong>de</strong>ia total,reclama para si a beleza na sua unicida<strong>de</strong> e nunca po<strong>de</strong> admitir oseu parcelamento, sem a si mesma se anular. Enquanto una,verda<strong>de</strong>ira e inaparente, livre <strong>de</strong> tal individuação, a beleza não serepresenta na síntese <strong>de</strong> todas as obras, na unida<strong>de</strong> das artes e daarte, mas <strong>de</strong> forma viva e real: no ocaso da própria arte. Toda aobra <strong>de</strong> arte aspira a tal ocaso, ao querer levar a morte a todas asoutras. Que com toda a arte se visa o seu próprio fim é outraexpressão para o mesmo facto. Este impulso <strong>de</strong> auto-aniquilaçãodas obras artísticas - o seu mais íntimo intento, que as impele paraa forma inaparente do belo, é o que sempre <strong>de</strong> novo excita assupostamente inúteis disputas estéticas. Estas, enquanto obstinadae tenazmente <strong>de</strong>sejam encontrar a justeza estética, enredando-seassim numa interminável dialéctica, obtêm involuntariamente asua melhor justeza, porque <strong>de</strong>ste modo, graças à força das obras<strong>de</strong> arte que em si as assumem e elevam a conceito, fixam oslimites <strong>de</strong> cada uma e colaboram assim na <strong>de</strong>struição da arte, queé a sua salvação. A tolerância estética, ao valorizar directamente4766


as obras artísticas na sua limitação, mas sem a romper, leva estassomente ao falso ocaso, o da adjacência recíproca, em que a cadauma é negada a pretensão da verda<strong>de</strong> única.Para Anatole France. - Até virtu<strong>de</strong>s como a receptivida<strong>de</strong>, acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir o belo on<strong>de</strong> quer que se apresente, aindano mais quotidiano e mais insignificante, e nele se regozijar,começam a exibir um momento problemático. Outrora, na época<strong>de</strong> trasbordante plenitu<strong>de</strong> subjectiva, expressava-se na indiferençaestética quanto à eleição do objecto, juntamente com a força <strong>de</strong>arrancar o sentido a todo o experimentado, a relação com opróprio mundo objectivo, o qual, embora em todas as suasporções ainda antagónico ao sujeito, lhe era todavia próximo edotado <strong>de</strong> significado. Na fase em que o sujeito abdica perante oalienado predomínio das coisas, a sua disposição para perceberem toda a parte o positivo ou o belo mostra a resignação tanto dacapacida<strong>de</strong> crítica como da fantasia interpretativa, que daquela éinseparável. Quem tudo acha belo está em perigo <strong>de</strong> nada acharbelo. O universal da beleza não po<strong>de</strong> comunicar-se ao sujeito <strong>de</strong>outra forma excepto na obsessão pelo particular. Nenhum olharalcança o belo, se não for acompanhado <strong>de</strong> indiferença, mais, <strong>de</strong><strong>de</strong>sprezo por tudo quanto é extrínseco ao objecto contemplado.Só pelo <strong>de</strong>slumbramento, pela injusta oclusão do olhar àexigência feita por todo o existente, é que se faz justiça aoexistente. Ao tomar-se na sua parcialida<strong>de</strong> como o que ele é, estasua parcialida<strong>de</strong> é concebida - e reconciliada - como a suaessência. O olhar que se per<strong>de</strong> num beleza única é um olharsabático. Salva no objecto algo do <strong>de</strong>scanso do dia da sua criação.Mas se a parcialida<strong>de</strong> é superada pela consciência do universalintroduzida a partir <strong>de</strong> fora, e que afecta, substitui e equilibra oparticular, então a justa vista da totalida<strong>de</strong> faz sua a injustiçauniversal que resi<strong>de</strong> na própria alteração e substituição.Semelhante justiça torna-se a introdutora do mito no criado.Nenhum pensamento está dispensado <strong>de</strong> tal enovelamento,nenhum <strong>de</strong>ve torpemente persistir. Mas tudo radica no modo datransição. A corrupção provém do pensamento como violência, <strong>de</strong>encurtar o caminho que só através do impenetrável encontra o4867


universal, cujo conteúdo se preserva na própriaimpenetrabilida<strong>de</strong>, e não na coincidência abstracta <strong>de</strong> objectosdiferentes. Quase se po<strong>de</strong>ria dizer que a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> dotempo, da paciência e da duração do permanecer no indivíduo: oque vai mais além, sem antes se ter totalmente perdido, o queavança para o juízo sem antes se ter tornado culpado da injustiçada contemplação, acaba por se per<strong>de</strong>r no vazio. A liberalida<strong>de</strong>, aoconservar indiscriminadamente para os homens o seu direito,<strong>de</strong>semboca na aniquilação, tal como a vonta<strong>de</strong> da maioria causadano à minoria, mofando assim da <strong>de</strong>mocracia, segundo cujoprincípio actua. Da bonda<strong>de</strong> indiscriminada para com tudo nascesempre também a frieza, a estranheza em relação a cada um, aqual, em seguida, se comunica ao todo. A injustiça é o meio dajustiça efectiva. A bonda<strong>de</strong> irrestrita torna-se ratificação <strong>de</strong> tudo oque <strong>de</strong> mal existe, ao reduzir a sua diferença com os vestígios dobom e ao nivelar-se naquela generalida<strong>de</strong> que ganha umaexpressão <strong>de</strong>sesperada na sabedoria mefistofélico-burguesa,segundo a qual tudo quanto existe merece ser <strong>de</strong>struído. Asalvação do belo, mesmo na apatia ou na indiferença, pareceassim muito mais nobre do que a tenaz persistência na crítica e naespecificação, que na verda<strong>de</strong> se mostra mais inclinada para asor<strong>de</strong>nações da vida.A isto costuma contrapor-se a sacralida<strong>de</strong> do vivo, que sereflecte até no mais feio e disforme. O seu reflexo, porém, não éimediato, mas apenas fragmentário: que algo seja belo só porquevive implica já, justamente por isso, a fealda<strong>de</strong>. O conceito <strong>de</strong>vida na sua abstracção, ao qual se recorre, não se <strong>de</strong>ve separar doopressivo, do <strong>de</strong>sapiedado, do mortífero e <strong>de</strong>strutivo. O culto davida em si leva sempre ao culto daqueles po<strong>de</strong>res. O que é assimmanifestação <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fecundida<strong>de</strong> inesgotável e os vivosimpulsos das crianças até à aptidão daqueles que levam a caboalgo notável, ou ao temperamento da mulher, que é <strong>de</strong>ificadaporque nela o apetite se apresenta em estado puro, tudo isso,consi<strong>de</strong>rado absolutamente, tem algo do acto <strong>de</strong> tirar a umpossível outro a luz, num gesto <strong>de</strong> cega auto-afirmação. Aproliferação do sadio é enquanto tal, já sempre e ao mesmotempo, a proliferação da enfermida<strong>de</strong>. O seu antídoto é aenfermida<strong>de</strong> enquanto <strong>de</strong> si consciente, a restrição da própriavida. Semelhante enfermida<strong>de</strong> curativa é o belo. Este põe freio à68


vida e, <strong>de</strong>ste modo, ao seu colapso. Mas se se negar aenfermida<strong>de</strong> por mor da vida, então a vida hipostasiada, pelo seucego afã <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do outro momento, entrega-se a este,ao pernicioso e ao <strong>de</strong>strutivo, ao cínico e ao arrogante. Quemo<strong>de</strong>ia o <strong>de</strong>strutivo tem <strong>de</strong> odiar também a vida: só o morto seassemelha ao vivo não <strong>de</strong>formado. Anatole France, à sua lúcidamaneira, conhecia tal contradição. "Não - faz ele dizer ao afávelsenhor Bergeret -, prefiro crer que a vida orgânica é umaenfermida<strong>de</strong> específica do nosso feio planeta. Seria insuportávelcrer que também no todo infinito só existisse o <strong>de</strong>vorar ou o ser<strong>de</strong>vorado." A repugnância ao niilismo que há nas suas palavrasnão é só a condição psicológica, mas também a condição efectivada humanida<strong>de</strong> como utopia.Moral e or<strong>de</strong>m temporal - A literatura, que já tratou todas asformas psicológicas <strong>de</strong> conflitos eróticos, <strong>de</strong>scurou o maiselementar dos conflitos externos, <strong>de</strong>vido ao seu carácter óbvio. Éele o fenómeno do estar ocupado: que um ente querido nosrejeite, não por inibições ou antagonismos internos, por excessivafrieza ou excessivo ardor reprimido, mas porque existe já umarelação que exclui outra nova. A or<strong>de</strong>m temporal abstracta<strong>de</strong>sempenha, na verda<strong>de</strong>, o papel que gostaríamos <strong>de</strong> atribuir auma hierarquia dos sentimentos. Há no estar ocupado, fora daliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> eleição e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, algo inteiramente aci<strong>de</strong>ntal queparece contradizer <strong>de</strong> todo a pretensão <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Numasocieda<strong>de</strong> curada da anarquia da produção <strong>de</strong> mercadorias,dificilmente haveria regras que cuidassem da or<strong>de</strong>m em que sehão-<strong>de</strong> conhecer as pessoas. De outro modo, semelhanteregulamentação equivaleria a uma intolerável interferência naliberda<strong>de</strong>. Daí que a priorida<strong>de</strong> do aci<strong>de</strong>ntal tenha tambémpo<strong>de</strong>rosas razões do seu lado: se a uma pessoa se prefere outra,aquela sofre o dano <strong>de</strong> ver anulado o passado da vida em comume, por assim dizer, é riscada a própria experiência. Airreversibilida<strong>de</strong> do tempo proporciona um critério moralobjectivo. Mas este está irmanado ao mito, tal como o própriotempo abstracto. A exclusivida<strong>de</strong> nele situada <strong>de</strong>sdobra-sesegundo seu próprio conceito no domínio exclusivo <strong>de</strong> grupos4969


hermeticamente fechados e, por fim, da gran<strong>de</strong> indústria. Nadamais patético do que o temor dos amantes <strong>de</strong> que os novospossam atrair para si amor e ternura, a melhor das suas posses,precisamente porque não se <strong>de</strong>ixam possuir, justamente por causada novida<strong>de</strong>, que é suscitada pelo privilégio do mais velho. Mas<strong>de</strong>ste motivo patético, com o qual se <strong>de</strong>svanece todo o calor etodo o refúgio, sai um caminho irresistível que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a aversãodo irmãozinho ao recém-nascido e do <strong>de</strong>sprezo do estudanteavançado ao novato, e passando pelas leis <strong>de</strong> imigração que naAustrália social-<strong>de</strong>mocrata excluem quem não seja <strong>de</strong> raçacaucásica, chega até ao extermínio fascista da minoria racial, peloque todo o calor e todo o refúgio se <strong>de</strong>sfazem no nada. Não sótodas as coisas boas, como sabia Nietzsche, foram alguma vezmás: as mais <strong>de</strong>licadas, abandonadas ao seu próprio peso, têm atendência para terminar numa brutalida<strong>de</strong> insuspeitada.Seria inútil querer indicar a saída <strong>de</strong> semelhante embrulhada.Todavia, é possível assinalar o momento insalubre que todaaquela dialéctica põe em jogo. Resi<strong>de</strong> no carácter exclu<strong>de</strong>nte doprimeiro. A relação originária supõe já, na sua simplesimediatida<strong>de</strong>, a or<strong>de</strong>m temporal abstracta. O próprio conceito dotempo formou-se historicamente sobre a base do or<strong>de</strong>namento daproprieda<strong>de</strong>. Mas a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> posse reflecte o tempo comoangústia frente à perda, à irrecupera-bilida<strong>de</strong>. O que existe éexperimentado em relação ao seu possível não-ser. Motivo <strong>de</strong>sobra para o transformar em posse e, em virtu<strong>de</strong> da sua rigi<strong>de</strong>z,numa posse funcional capaz <strong>de</strong> se trocar por outra equivalente.Uma vez convertida em posse, o ser amado <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se ver. Noamor, a abstracção é o complemento da exclusivida<strong>de</strong>, queenganadoramente surge como o contrário, como o agarrar-se aeste existente único. Neste apego, o objecto escorre das mãos aotornar-se objecto, per<strong>de</strong>-se o ser amado ao esgotar-se no seu "sermeu". Se os homens já não fossem uma posse, <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> sertambém objecto <strong>de</strong> troca. O verda<strong>de</strong>iro afecto seria aquele que sedirige ao outro <strong>de</strong> modo específico, que se fixa nos traçospreferidos e não no ídolo da personalida<strong>de</strong>, reflexo da posse. Oespecífico não é exclusivo: falta-lhe o ímpeto para a totalida<strong>de</strong>.Mas, noutro sentido, sim, é exclusivo: quando <strong>de</strong>certo não proíbea substituição da experiência indissoluvelmente a ele unida, mastambém não a tolera mediante o seu conceito puro. A protecção70


do completamente <strong>de</strong>terminado consiste em que ele não po<strong>de</strong> serrepetido, e por isso suporta o outro. Da relação <strong>de</strong> posse entre oshomens, do direito exclusivo <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> faz parte a sabedoria:por Deus, todos são seres humanos, importa pouco <strong>de</strong> quem setrate! A inclinação que nada soubesse <strong>de</strong> tal sabedoria não precisa<strong>de</strong> temer a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, porque estaria imunizada contra aausência <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>.Lacunas. - A exortação ao exercício da honra<strong>de</strong>z intelectual,termina, na maioria dos casos, na sabotagem das i<strong>de</strong>ias. O seusentido consiste em acostumar o escritor a explicitar todos ospassos que o levaram a uma afirmação sua, para assim tornar cadaleitor capaz <strong>de</strong> repetir o mesmo processo e, se é possível - naactivida<strong>de</strong> académica -, duplicá-lo. Tal não só funciona com aficção liberal da comunicabilida<strong>de</strong> livre e universal <strong>de</strong> cadapensamento e impe<strong>de</strong> a sua concreta e a<strong>de</strong>quada expressão, mastambém se revela falso como princípio da própria exposição. Poiso valor <strong>de</strong> um pensamento me<strong>de</strong>-se pela sua distância àcontinuida<strong>de</strong> do conhecido. Objectivamente per<strong>de</strong> com adiminuição <strong>de</strong>ssa distância; quanto mais se aproxima do padrãopré-estabelecido, tanto mais se esbate sua função antitética, e sónela, na relação explícita com a sua antítese, e não na suaexistência isolada, se funda a sua pretensão. Os textos queansiosamente se empenham em reproduzir sem omissões cadapassagem, caem irremediavelmente na banalida<strong>de</strong> e num tédioque não só afecta a tensão da leitura, mas também a sua própriasubstância. Os escritos <strong>de</strong> Simmel, por exemplo, adoecem no seuconjunto <strong>de</strong> uma incompatibilida<strong>de</strong> entre os seus objectosparticulares e o tratamento escrupulosamente diáfano dosmesmos. Ostentam o singular como o verda<strong>de</strong>iro complementodaquela mediania em que Simmel, erradamente, via o segredo <strong>de</strong>Goethe. Mas, acima <strong>de</strong> tudo, a exigência <strong>de</strong> honra<strong>de</strong>z intelectualcarece ela própria <strong>de</strong> honra<strong>de</strong>z. Se alguma vez se ace<strong>de</strong>sse aseguir o duvidoso preceito <strong>de</strong> que a exposição <strong>de</strong>ve reproduzir oprocesso do pensamento, este processo também não seria o <strong>de</strong> umprogresso discursivo <strong>de</strong> grau em grau nem, ao invés, a ocorrênciadas i<strong>de</strong>ias ao conhecedor a partir do céu. O conhecimento tem5071


antes lugar numa trama <strong>de</strong> preconceitos, instituições, inervações,auto-correcções, antecipações e exageros, em suma, naexperiência intensa, fundada, mas <strong>de</strong> nenhum modo transparenteem todas as suas direcções. Dela oferece a regra cartesiana,segundo a qual importa dirigir-se somente aos objectos, "paracujo conhecimento claro e indubitável parece bastar o nossoespírito", juntamente com a or<strong>de</strong>m e a disposição a que faz referência,um conceito tão falso como a doutrina oposta, mas nofundo afim, da intuição essencial. Se esta nega o direito lógicoque, apesar <strong>de</strong> tudo, se impõe em todo o pensamento, aquelatoma-o na sua imediatida<strong>de</strong>, referido a cada acto intelectualsingular e não mediado pela corrente da vida consciente <strong>de</strong> quemconhece. Mas aí resi<strong>de</strong> também a confissão da mais radicalinsuficiência. Pois se os pensamentos honestos <strong>de</strong>sembocamirremediavelmente na mera repetição, quer do <strong>de</strong>scoberto, querdas formas categoriais, o pensamento que renuncia à totaltransparência da sua génese lógica em prol da relação ao seuobjecto torna-se sempre um tanto culpado. Quebra a promessaincluída na própria forma do juízo. Esta insuficiência assemelhaseà da linha da vida que, torcida, <strong>de</strong>sviada, corre <strong>de</strong>siludidafrente às suas premissas, e que todavia só no seu curso, ao sersempre menos do que <strong>de</strong>veria ser, consegue representar, sob ascondições dadas à existência, uma linha não regulamentada. Se avida realizasse <strong>de</strong> modo rectilíneo o seu <strong>de</strong>stino, malográ-lo-ia.Quem morresse velho e com a consciência <strong>de</strong> ter chegado a umaplenitu<strong>de</strong> sem culpa seria como um garoto mo<strong>de</strong>lo que, com umasacola invisível às costas, tivesse atravessado sem falhas todos asetapas. Mas em todo o pensamento que não é ocioso fica gravadacomo uma marca a impossibilida<strong>de</strong> da plena legitimação, talcomo no sonho sabemos que há horas <strong>de</strong> matemática que<strong>de</strong>sperdiçamos por passar uma manhã feliz na cama, e que jánunca se po<strong>de</strong>m recuperar. O pensamento espera que, um dia, alembrança do negligenciado o <strong>de</strong>sperte e o transforme emdoutrina.72


SEGUNDA PARTE1945"Where everything is badit must be goodto know the worst."F. H. BradleyAtrás do espelho. - Primeira medida precaucional do escritor:inspeccionar em cada texto, em cada passagem, em cadaparágrafo se o motivo central surge suficientemente claro. Quemquer expressar algo encontra-se tão impelido pelo motivo que se<strong>de</strong>ixa levar sem sobre ele reflectir. «No pensamento» está-se<strong>de</strong>masiado perto da intenção, e esquece-se <strong>de</strong> dizer o que sepreten<strong>de</strong> dizer.Nenhuma correcção é <strong>de</strong>masiado pequena ou fútil para não se<strong>de</strong>ver realizar. Entre cem alterações, cada uma isoladamentepo<strong>de</strong>rá parecer pueril ou pedante; juntas po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminar umnovo nível do texto.Nunca ser mesquinho com as riscaduras. A extensão é indiferente,e o receio <strong>de</strong> que o escrito não seja bastante, pueril. Porisso, nada ter por valioso pelo facto <strong>de</strong> estar aí, escrito sobrepapel. Se muitas frases parecem variações da mesma i<strong>de</strong>ia,amiú<strong>de</strong> significam apenas diferentes tentativas <strong>de</strong> plasmar algo <strong>de</strong>que o autor ainda não se apropriou. Deve então escolher-se amelhor formulação e continuar com ela a trabalhar. Uma das5173


técnicas do escritor é po<strong>de</strong>r renunciar inclusive a i<strong>de</strong>ias fecundas,quando a construção o exige. Para a sua plenitu<strong>de</strong> e forçacontribuem justamente as i<strong>de</strong>ias suprimidas. Tal como à mesa nãose <strong>de</strong>ve comer até ao último bocado nem beber o copo até aofundo. De outro modo, torna-se suspeito <strong>de</strong> pobreza.Quem <strong>de</strong>seja evitar os clichés não <strong>de</strong>ve limitar-se às palavras,se não quiser incorrer em vulgar coqueteria. A gran<strong>de</strong> prosafrancesa do século XIX era nisto particularmente susceptível. Apalavra isolada raramente se revela banal: também na música osom isolado resiste à erosão. Os clichés mais odiosos são antesuniões <strong>de</strong> palavras do tipo das que Karl Kraus proferiu: plena etotalmente, para o melhor ou para o pior, construídas eaprofundadas. Nelas cicia, por assim dizer, o fluxo inerte dalinguagem batida, em vez <strong>de</strong> o escritor, mediante o rigor daexpressão, asserir a resistência exigida on<strong>de</strong> a linguagem se <strong>de</strong>verealçar. Isto não vale só para as uniões <strong>de</strong> palavras, mas tambémpara a construção <strong>de</strong> formas inteiras. Se um dialéctico, porexemplo, quisesse assinalar a mudança do pensamento no seuavanço, começando após cada cesura com um 'mas', o esquemaliterário <strong>de</strong>smentiria o propósito esquemático do raciocínio.O matagal não é nenhum bosque sagrado. E um <strong>de</strong>vereliminar dificulda<strong>de</strong>s que surgem simplesmente da comodida<strong>de</strong>na auto--compreensão. Não basta distinguir sem mais entre avonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever em forma <strong>de</strong>nsa e a<strong>de</strong>quada à profundida<strong>de</strong>do objecto, a tentação do particular e a pretensiosa<strong>de</strong>spreocupação: a insistência suspeitosa é sempre saudável.Quem não quiser fazer nenhuma concessão à estupi<strong>de</strong>z do sadiosenso comum <strong>de</strong>ve resguardar-se <strong>de</strong> adornar estilisticamentei<strong>de</strong>ias que <strong>de</strong> per si induzem à banalida<strong>de</strong>. As trivialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>Locke não justificam o giro críptico <strong>de</strong> Hamann.Se houver apenas objecções mínimas contra um trabalhoconcluído, indiferentemente da sua extensão, há que encará-lascom uma serieda<strong>de</strong> incomum, fora <strong>de</strong> toda a relação com arelevância que possam ter. A carga afectiva do texto e a vaida<strong>de</strong>ten<strong>de</strong>m a minimizar todo o escrúpulo. O que se <strong>de</strong>ixa passarcomo uma dúvida mínima po<strong>de</strong> <strong>de</strong>notar o escasso valor objectivodo todo.74


A procissão saltitante <strong>de</strong> Echternach 4 não é a marcha doespírito do mundo; a limitação e a retracção não são meios <strong>de</strong>representação da dialéctica. Esta move-se antes entre os extremose, mediante consequências extremas, impulsiona o pensamentopara a alteração, em vez <strong>de</strong> o qualificar. A prudência que proíbe ir<strong>de</strong>masiado longe numa sentença quase sempre é agente docontrolo social e, portanto, da estupidificação.Cepticismo frente à objecção predilecta <strong>de</strong> que um texto ouuma formulação são "<strong>de</strong>masiado belos". O respeito pelo tema, ouaté pelo sofrimento, facilmente racionaliza apenas o rancor contraaquele para quem é insuportável encontrar, na forma reificada dalinguagem, o vestígio do que os homens pa<strong>de</strong>cem, daindignida<strong>de</strong>. O sonho <strong>de</strong> uma existência sem ignomínia, que seafirma na paixão linguística, quando lhe é já proibido visualizarsecomo conteúdo, <strong>de</strong>ve ser dissimuladamente estrangulado. Oescritor não po<strong>de</strong> aceitar a distinção entre expressão bela eexpressão exacta. Não <strong>de</strong>vem presumi-la num crítico timoratonem tolerá-la em si mesmo. Se consegue dizer cabalmente o quepensa, há nisso já beleza. Na expressão, a beleza pela belezanunca é "<strong>de</strong>masiado bela", mas ornamental, artificial, odiosa. Masquem com o pretexto <strong>de</strong> estar absorvido no tema renuncia àpureza da expressão, o que faz é atraiçoá-lo.Os textos assaz elaborados são como as teias <strong>de</strong> aranha:<strong>de</strong>nsos, concêntricos, transparentes, bem arquitravados e firmes.Absorvem em si tudo quanto ali vive. As metáforas queesquivamente passam por eles convertem-se em presa nutritiva. Aeles aco<strong>de</strong>m todos os materiais. A soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> uma concepção po<strong>de</strong>julgar-se segundo o recurso às citações. On<strong>de</strong> o pensamento abriuum compartimento da realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve penetrar sem violência dosujeito na câmara contígua. Preserva a sua relação com o objecto,logo que outros objectos se cristalizam à sua volta. Com a luz quedirige para o seu objecto <strong>de</strong>terminado começam outros a brilhar.O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-senos seus pensamentos como faz com os seus papéis,livros, lápis, tapetes, que leva <strong>de</strong> um quarto para o outro,4Tem lugar na Terça-feira <strong>de</strong>Pentecostes, nesta localida<strong>de</strong> doLuxemburgo, e consiste em dartrês passos em frente e dois saltospara trás. (N. T.)75


produzindo uma certa <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Para ele, tornam-se peças <strong>de</strong>mobiliário em que se acomoda, com gosto ou <strong>de</strong>sprazer. Acariciaoscom <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, serve-se <strong>de</strong>les, revira-os, muda-os <strong>de</strong> sítio,<strong>de</strong>sfá-los. Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrevera sua habitação. E aí inevitavelmente produz, como outrora afamília, <strong>de</strong>sperdícios e lixo. Mas já não dispõe <strong>de</strong> <strong>de</strong>svão e é-lhemuitíssimo difícil livrar-se da escória. Por isso, ao tirá-la da suafrente, corre o risco <strong>de</strong> acabar por encher com ela as suas páginas.A exigência <strong>de</strong> resistir à auto--compaixão inclui a exigênciatécnica <strong>de</strong> <strong>de</strong>frontar com extrema atenção o relaxamento datensão intelectual e <strong>de</strong> eliminar tudo quanto tenda a fixar-se comouma crosta no trabalho, tudo o que <strong>de</strong>corre no vazio, o que talvezsuscitasse, num estádio anterior, como palavriado, a calorosaatmosfera em que emerge, mas agora permanece bafiento einsípido. Por fim, já nem sequer é permitido ao escritor habitarnos seus escritos.On<strong>de</strong> a cegonha vai buscar os meninos. - Para cada serhumano existe um protótipo nos contos; basta apenas ir procurálo.Lá está a bela que pergunta ao espelho se é a mais bela <strong>de</strong>todas, como a rainha da Branca <strong>de</strong> Neve. É ansiosa e chata até àmorte; foi criada à imagem da cabra que repete uma e outra vez:"Estou farta, não quero mais nenhuma folha, mé, mé." Lá está ohomem cheio <strong>de</strong> preocupações, mas incansável, parecido com avelha e enrugada mulher do lenhador, que encontra o bom Deussem o reconhecer e é abençoada com todos os seus por lhe terprestado ajuda. Outro é o homem que, como moço, percorre omundo à busca da sua felicida<strong>de</strong>, vence muitos gigantes, masacaba os seus dias em Nova Iorque.Uma mergulha na selva dacida<strong>de</strong> qual Capuchinho vermelho levando à avó um pedaço <strong>de</strong>bolo e uma garrafa <strong>de</strong> vinho; e outra <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> para o amor com amesma infantil inocência que a menina dos táleres <strong>de</strong> prata. Oespertalhão <strong>de</strong>scobre a sua po<strong>de</strong>rosa alma selvagem, não po<strong>de</strong>per<strong>de</strong>r-se com os amigos, forma o grupo <strong>de</strong> músicos <strong>de</strong> Bremen,leva-o à cova dos ladrões, ganha em astúcia aos meliantes, masacaba por voltar a casa. Com olhos nostálgicos contempla o rei rã,5276


um snob incurável, a princesa e não po<strong>de</strong> renunciar à esperança<strong>de</strong> que ela o liberte.Patetices. - O hábito idiomático <strong>de</strong> Schiller recorda ao jovemque vem <strong>de</strong> baixo e, timidamente, começa bradar na boasocieda<strong>de</strong> para se fazer notar: mo<strong>de</strong>sto e insolente. A tirada e asentenciosida<strong>de</strong> alemãs são imitações dos Franceses, maspraticadas na mesa reservada. O pequeno-burguês que sei<strong>de</strong>ntifica com o po<strong>de</strong>r que não tem e, pela arrogância, oengran<strong>de</strong>ce até ao espírito absoluto e ao absoluto horror, exibe-semediante exigências infinitas e inflexíveis. Entre o humanamentegrandioso e sublime, que em comum têm todos os i<strong>de</strong>alistas, eque sempre querem pisar inumanamente o pequeno como meraexistência, e a ru<strong>de</strong> ostentação dos potentados burgueses existe omais íntimo consenso. É próprio da dignida<strong>de</strong> dos gigantes doespírito rir estrondosamente, explodir, <strong>de</strong>stroçar. Se falam <strong>de</strong>criação referem-se à vonta<strong>de</strong> convulsiva com que se incham eforçam as questões: do primado da razão prática ao ódio à teoriahouve sempre apenas um passo. Tal dinâmica habita em toda amarcha i<strong>de</strong>alista do pensamento: até o imenso esforço <strong>de</strong> Hegelpor <strong>de</strong>tê-la mediante si mesmo a ela sucumbiu. Preten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>duziro mundo em palavras a partir <strong>de</strong> um princípio é a forma <strong>de</strong>comportamento <strong>de</strong> quem quer usurpar o po<strong>de</strong>r, em vez <strong>de</strong> lheresistir. Os usurpadores foram uma ocupação muito frequente <strong>de</strong>Schiller. Na glorificação classicista da soberania sobre a natureza,reflecte--se o vulgar e o inferior por meio da sistemática aplicaçãoda negação. Imediatamente por trás do i<strong>de</strong>al está a vida. Osaromas das rosas do Elísio, <strong>de</strong>masiado louvados para os atribuir àexperiência <strong>de</strong> uma única rosa, cheiram a tabaco <strong>de</strong> oficina, e omístico requisito lunar criou-se à imagem da lâmpada <strong>de</strong> azeite, acuja exígua luz o estudante marra para o exame. A fraqueza jáutilizou a sua força para <strong>de</strong>nunciar como i<strong>de</strong>ologia as concepçõesda burguesia supostamente ascen<strong>de</strong>nte, nos tempos em que troavacontra a tirania. No mais intimo recanto do humanismo, qual suagenuína alma, agita-se prisioneiro o energúmeno que, comofascista, converterá o mundo em prisão.5377


Os bandidos. - O kantiano Schiller é em igual medida menossensual e mais sensual do que Goethe: tão abstracto como o quese ren<strong>de</strong> à sexualida<strong>de</strong>. Esta, enquanto <strong>de</strong>sejo imediato,transforma tudo em objecto <strong>de</strong> acção, e <strong>de</strong>sse modo torna-o igual."Amália para o bando" - por isso, Luísa fica pálida comolimonada. As mulheres <strong>de</strong> Casanova, que, não sem razão, muitasvezes surgem com iniciais em vez <strong>de</strong> nomes, dificilmente sedistinguem umas das outras; o mesmo se passa com as estatuetasque, <strong>de</strong> harmonia com o órgão mecânico <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>, formamcomplicadas pirâmi<strong>de</strong>s. Algo <strong>de</strong>sta grosseria sexual, <strong>de</strong>staincapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> distinguir, existe também nos gran<strong>de</strong>s sistemasespeculativos do i<strong>de</strong>alismo, pese a todos os imperativos, eenca<strong>de</strong>ia o espírito alemão à barbárie alemã. O ardor docamponês, dificilmente mantido na or<strong>de</strong>m pelas ameaças dosclérigos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u como autonomia na metafísica o seu direito areduzir à sua essência tudo o que se lhe opunha, com tão poucosescrúpulos como os lansquenetes faziam às mulheres da cida<strong>de</strong>conquistada. A pura acção é a vileza projectada no "céu estreladosobre nós". Todavia, o olhar <strong>de</strong> longo alcance, contemplativo,diante do qual se <strong>de</strong>sfraldam os homens e as coisas, é sempreaquele em que o impulso para o objecto é interrompido e sujeito areflexão. A contemplação sem violência, <strong>de</strong> que emana todo ogozo da verda<strong>de</strong>, está sujeita à condição <strong>de</strong> que o contempladornão se assimile ao objecto: proximida<strong>de</strong> na distância. Só porqueTasso, a quem os psicanalistas atribuiriam um carácter <strong>de</strong>strutivo,se acobardava perante a princesa e foi, como civilizado, vítima daimpossibilida<strong>de</strong> do imediato, falam A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, Clara e Margarida alinguagem directa e <strong>de</strong>sembaraçada que as converte em imagemda pré-história. A aparência do vital nas mulheres <strong>de</strong> Goethe teve<strong>de</strong> se pagar com a renúncia e o afastamento, e há nisso algo maisdo que a mera resignação perante a vitória da or<strong>de</strong>m. A oposiçãoabsoluta, símbolo da unida<strong>de</strong> do sensível e do abstracto, é DonJuan. Quando Kierkegaard diz que nele a sensibilida<strong>de</strong> é sóprincípio, toca no segredo da própria sensibilida<strong>de</strong>. Na rígidaperspectiva <strong>de</strong>sta, enquanto não <strong>de</strong>ixa lugar para a auto-reflexão,acha-se o anónimo, o <strong>de</strong>sditadamente universal que, no negativoda actuante soberania do pensamento, fatalmente se reproduz.5478


Po<strong>de</strong>rei ousar. - Quando na comédia <strong>de</strong> Schnitzler, Reigen, opoeta se aproxima com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za da doce donzela - querepresenta a risonha oposição da puritana -, diz-lhe: "Anda, nãoqueres tocar piano?" Ela nem <strong>de</strong>sconhece a finalida<strong>de</strong> daproposição nem propriamente oferece resistência alguma. A suareacção vai mais fundo do que os interditos convencionais oupsicológicos. Delata a frigi<strong>de</strong>z arcaica, o temor da fêmea animal àcópula, que apenas lhe causa dor. O prazer é uma aquisiçãotardia, dificilmente mais antiga do que a consciência. Quando seobserva o modo <strong>de</strong> os animais se unirem compulsivamente, comosob feitiço, compreen<strong>de</strong>-se que a afirmação - "O prazer foi dadoao verme" - é mais uma mentira i<strong>de</strong>alista, pelo menos no tocanteàs jovens que vivem o amor a partir da falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e não oconhecem excepto como objecto <strong>de</strong> coacção. Algo distopermaneceu nas mulheres, sobretudo nas da pequena burguesia,até à época industrial tardia. A recordação do antigo traumapersiste, apesar <strong>de</strong> a dor física e a angústia imediata terem sidoeliminadas pela civilização. A socieda<strong>de</strong> continua a reduzir aentrega feminina à situação do sacrifício, <strong>de</strong> que libertou asmulheres. Nenhum homem que convença uma infeliz rapariga a ircom ele <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> reconhecer na oposição <strong>de</strong>sta - a menos queseja um bronco rematado - o momento imperceptível do seudireito à única prerrogativa que a socieda<strong>de</strong> patriarcal conce<strong>de</strong> àmulher, a qual, uma vez persuadida após o breve triunfo do "não",<strong>de</strong>ve automaticamente arcar com as consequências. Ela sabe que,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios, por ser a que consente é ao mesmo tempo aenganada. E se, por disso, se recolhe em si mesma, tanto mais seenganará. Eis o que encerra o conselho à novata que We<strong>de</strong>kindpõe na boca da Madame <strong>de</strong> um bor<strong>de</strong>l: "Só há um caminho nestemundo para ser feliz, e é fazer tudo para que os outros sejam omais felizes possível". O prazer próprio tem como pressupostorebaixar-se sem limites, situação <strong>de</strong> que as mulheres, pela suaangústia arcaica, são tão pouco senhoras como os homens na suapresunção. Não só a possibilida<strong>de</strong> objectiva - também acapacida<strong>de</strong> subjectiva <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> pertence primariamente àliberda<strong>de</strong>.5579


Árvore genealógica. - Entre Ibsen e Struwwelpeter 5 existe amais profunda afinida<strong>de</strong>. Esta é do mesmo género que a rígidasemelhança dos instantâneos <strong>de</strong> todos os caracteres que enchemtodos os álbuns do século XIX. Não é Zappel-Philipp 6 , pelo qualpo<strong>de</strong>m passar os espectros, um verda<strong>de</strong>iro drama familiar? Não<strong>de</strong>screvem os versos "e a mãe olhava, calada / para cada lado damesa" o semblante da esposa do banqueiro Borkmann? A que sepo<strong>de</strong>rá atribuir que Suppen-Kaspar acabe exausto senão aospecados <strong>de</strong> seu pai e à memória herdada da culpa? A Frie<strong>de</strong>rich,o furioso, prescreve a amarga, mas curativa medicina do inimigodo povo, o doctor Stockmann, que para isso dá a sua salsicha aocão. Paulin-chen, dançando com o isqueiro, é a fotografiacolorida da pequena Hil<strong>de</strong> Wangel do tempo em que a suamadrasta, a dama do mar, a <strong>de</strong>ixou só em casa, e o pequenoRobert voando mais alto do que a torre da igreja, o seu criador empessoa. E que outra coisa <strong>de</strong>seja Hans Guk-in-die-Luft senão ver osol? Quem, aliás, o atraiu para a água, a não ser a Rattenmanseldo pequeno Eyolf, da mesma estirpe que o alfaiate com a suatesoura? Mas o severo poeta comporta-se como <strong>de</strong>r grosseNikola; submerge as imagens infantis da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> no seugran<strong>de</strong> tinteiro, enegrece-as com as suas faltas, tira-as comomarionetes irrequietas, e <strong>de</strong>ste modo abre o seu própriojulgamento.565 F. Schiller, An die Freu<strong>de</strong>, 31.(N. T.)6 Personagem da obra infantil <strong>de</strong>Heinrich Hoffman (1798-1874);juntamente com Struwwelpeter,representam os dois, numa históriaem verso, as <strong>de</strong>ficiências eincorrecções do comportamentoinfantil. O segundo faz <strong>de</strong> criança<strong>de</strong>sregrada, e o primeiro <strong>de</strong>menino revoltado; por seu turno,Supper-Kaspar representa aqueleque se nega a comer, e Hans-Gukin-die-Luft, a criança distraída e'cabeça-<strong>de</strong>-ar--e-vento'. (N. T.)80


Escavação. - Logo que se pronuncia um nome como o <strong>de</strong>Ibsen, imediatamente se levantam vozes que o acusam, a ele e àssuas personagens, <strong>de</strong> antiquados e ultrapassados. São as mesmasque, há sessenta anos, se escandalizavam com o elementomo<strong>de</strong>rnista <strong>de</strong>sagregador e moralmente atrevido <strong>de</strong> Nora e <strong>de</strong>Espectros. Ibsen, o burguês encarniçado, soltou o seuencarniçamento sobre a socieda<strong>de</strong>, a cujos princípios foi buscar asua inflexibilida<strong>de</strong> e os seus i<strong>de</strong>ais. Retratou os <strong>de</strong>putados damaioria compacta, que assobiava o inimigo do povo, num patéticomas granítico monumento, e esses ainda não se sentem adulados.Continuam, pois, a estar na or<strong>de</strong>m do dia. On<strong>de</strong> as pessoassensatas são unânimes em qualificar a conduta dos não--sensatospo<strong>de</strong> sempre ter-se a suspeita <strong>de</strong> um não conseguido arrombamento,<strong>de</strong> algumas dolorosas cicatrizes. Tal acontece com aquestão da mulher. Em virtu<strong>de</strong> da dissolução da economiacompetitiva liberal "masculina", da participação das mulheres nofuncionalismo - que as torna tão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes quão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntessão os homens -, em virtu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sencantamento da família e doabrandamento dos tabus sexuais, o problema já não é, nasuperfície, tão "agudo". Mas a persistência da socieda<strong>de</strong>tradicional distorceu ao mesmo tempo a emancipação da mulher.Nada é tão sintomático da <strong>de</strong>cadência do movimento operáriocomo a sua inadvertência a tal respeito. No permissão às mulheres<strong>de</strong> todas as activida<strong>de</strong>s controladas possíveis oculta-se apermanência da sua <strong>de</strong>sumanização. Na gran<strong>de</strong> empresa,continuam a ser o que foram na família: objectos. Não se <strong>de</strong>vepensar unicamente no seu miserável dia <strong>de</strong> trabalho e na sua vidaem tal ocupação, que estabelece umas condições laborais <strong>de</strong> tipodoméstico fechado no meio da absurda situação industrial, mastambém nelas próprias. Docilmente, sem nenhum impulso contra,reflectem a dominação e com ela se i<strong>de</strong>ntificam. Em vez <strong>de</strong>resolver o problema da mulher, a socieda<strong>de</strong> masculina alargou <strong>de</strong>tal maneira o seu princípio que as vítimas já não conseguemquestionar a própria questão. Na medida em que se lhes conce<strong>de</strong>certa cópia <strong>de</strong> bens mercantis aceitam, com entusiasmo unânime,a sua sorte, <strong>de</strong>ixam o pensamento para os homens, difamamqualquer reflexão como infracção contra o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> feminida<strong>de</strong>5781


propagado pela indústria cultural e abandonam-se <strong>de</strong> bom grado epor inteiro à escravidão, que têm por realização do seu sexo. Os<strong>de</strong>feitos resultantes, com que têm <strong>de</strong> pagar, e antes <strong>de</strong> mais aestultícia neurótica, contribuem para a permanência da situação.Já na época <strong>de</strong> Ibsen a maioria das mulheres que representavamalgo na burguesia estava pronta a arremeter contra a irmãhistérica que, no seu lugar, optava pela <strong>de</strong>sesperada tentativa <strong>de</strong>escapar da prisão da socieda<strong>de</strong> que tão severamente opunha atodas elas as suas quatro pare<strong>de</strong>s. Mas as netas rir-se-ãointeligentemente da histérica, sem se sentirem afectadas, eentregá-la-ão à assistência social em vista <strong>de</strong> um benéficotratamento. A histérica, que <strong>de</strong>sejava o maravilhoso, é entãorelevada pela louca furiosamente activa, que nem sequer po<strong>de</strong>esperar o triunfo do infortúnio. - Mas talvez isso seja o queacontece com toda a caducida<strong>de</strong>. Esta não se explica pela simplesdistância temporal, mas pelo juízo da história. A sua expressãonas coisas é a vergonha que se apo<strong>de</strong>ra do <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte à vista dapossibilida<strong>de</strong> passada, para cuja realização ele tar<strong>de</strong> chegou. Oconsumado po<strong>de</strong> esquecer-se e, ao mesmo tempo, conservar-se nopresente. Antiquado é sempre apenas o que fracassou, a promessarompida <strong>de</strong> algo novo. Não em vão se dizem "mo<strong>de</strong>rnas" asmulheres <strong>de</strong> Ibsen. O ódio ao mo<strong>de</strong>rno e o ódio ao antiquado sãoa mesma coisa.A verda<strong>de</strong> sobre Hedda Gabler. - O esteticismo do séc. XIX,na história do espírito, não se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong> si mesmo,mas só em relação com a realida<strong>de</strong> que o sustentou: os conflitossociais. Na base da amoralida<strong>de</strong> está a má consciência. A críticaapenas confrontou a socieda<strong>de</strong> burguesa, tanto no económicocomo no moral, com as suas próprias normas. Em contrapartida, àclasse dominante, por não querer cair simplesmente na mentiraapologética e na sua impotência à maneira dos poetas cortesãos edos romancistas conservadores, restou-lhe unicamente a rejeiçãodo princípio pelo qual se regia a socieda<strong>de</strong>, isto é, a sua própriamoral. Mas a nova posição que ocupou o pensamento burguêsradical sob a pressão do que começava a abrir passagem não seesgotou na mera substituição da aparência i<strong>de</strong>ológica por uma5882


verda<strong>de</strong> proclamada com a fúria da auto<strong>de</strong>struição, empermanente irritabilida<strong>de</strong> e pronta à capitulação. A rebelião dobelo contra o bom na acepção burguesa foi uma rebelião contra abonda<strong>de</strong>. A própria bonda<strong>de</strong> é a <strong>de</strong>formação do bom. Ao separaro princípio moral do princípio social e ao trasladá-lo para adisposição anímica privada limita-o em sentido duplo. Renuncia àrealização do estado <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> humana co-afirmado noprincípio moral. Em cada um dos seus actos há inscrito algo <strong>de</strong>consoladora resignação: ten<strong>de</strong> para a mitigação, não para a cura, ea consciência da incurabilida<strong>de</strong> acaba por pactuar com aquela.Deste modo a bonda<strong>de</strong> é limitada também em si mesma. A suaculpa resi<strong>de</strong> na familiarida<strong>de</strong>. Reflecte relações directas entre oshomens e salta por cima da distância na qual unicamente oindivíduo se consegue proteger da manipulação do geral. Nocontacto mais estreito é on<strong>de</strong> mais dolorosamente experimenta adiferença não superada. A condição <strong>de</strong> alheio é o único antídotoda alienação. A efémera imagem <strong>de</strong> harmonia com que se <strong>de</strong>leitaa bonda<strong>de</strong> não faz mais do que realçar tanto mais cruelmente nainconciliação o sofrimento que loucamente nega. O atentado aobom gosto e ao respeito - <strong>de</strong> que nenhuma acção bondosa se livra- consuma o nivelamento a que se opõe a impotente utopia dobelo. Assim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os começos da socieda<strong>de</strong> industrializada, a<strong>de</strong>cisão pelo mal foi sempre não só precursora da barbárie, mastambém máscara do bom. A sua nobreza transmutou-se emmalda<strong>de</strong>, ao atrair todo o ódio e todo o ressentimento da or<strong>de</strong>mque inculcava nos seus subordinados o bem, para po<strong>de</strong>r continuara ser impunemente mau. Quando Hedda Gabler mortifica a sua tiaJulle, pessoa imbuída até à medula <strong>de</strong> bons sentimentos; quandointencionalmente lhe diz que o espantoso chapéu que pôs parahonrar a filha do general será o da criada, a insatisfeita não<strong>de</strong>safoga sadicamente o seu ódio ao viscoso matrimónio nain<strong>de</strong>fesa. Ofen<strong>de</strong> o que <strong>de</strong> melhor tem a fazer, porque no melhorse reconhece o agravo do bom. De modo inconsciente e absurdo,frente à velha que adora os seus obtusos sobrinhos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ela oabsoluto. A vítima é Hedda Gabler, e não Julle. O belo, que quali<strong>de</strong>ia fixa domina Hedda, confronta-se com a moral, já antes <strong>de</strong> aridicularizar; fecha-se a todo o geral e impõe <strong>de</strong> maneira absolutaa <strong>de</strong>terminação diferencial da simples existência, o acaso que<strong>de</strong>ixou acontecer uma coisa, e não a outra. No belo, o83


indiscernivelmente particular afirma--se como norma, como oúnico geral, porque a generalida<strong>de</strong> normal se tornou <strong>de</strong>masiadotransparente. Exige, por isso, a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo o que não élivre. Mas torna-se também culpado, ao cercear, com o geral, apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir além daquela mera existência, cujaindiscernibilida<strong>de</strong> apenas reflecte a inverda<strong>de</strong> do mau universal.O belo representa assim o injusto perante o justo, e todavia comrazão o faz. No belo, o incerto futuro sacrifica a sua vítima aoMoloch do presente: porque no seu reino nada <strong>de</strong> per si bom po<strong>de</strong>haver, ele próprio se torna mau para, enquanto <strong>de</strong>rrotado, tornarculpado o juiz. A pretensão do belo em face do bom é a formasecularizada que, na burguesia, adquire a obcecação do herói datragédia. Na imanência da socieda<strong>de</strong> está aprisionada aconsciência da sua essência negativa, e apenas a negaçãoabstracta está em vez da verda<strong>de</strong>. O antimoral, ao rejeitar oamoral da moral - a repressão -, apropria-se ao mesmo tempo doseu mais íntimo motivo: que, juntamente com toda a restrição, se<strong>de</strong>svaneça também toda a violência. Por isso, os motivos dainflexível autocrítica burguesa coinci<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> facto, com osmaterialistas, que trazem aqueles à consciência <strong>de</strong> si mesmos.Des<strong>de</strong> que o vi. - O carácter feminino e o i<strong>de</strong>al dafeminilida<strong>de</strong>, segundo o qual ele está mo<strong>de</strong>lado, são produtos dasocieda<strong>de</strong> masculina. A imagem da natureza não <strong>de</strong>sfiguradabrota, antes <strong>de</strong> mais, da <strong>de</strong>formação como sua antítese. On<strong>de</strong> querque tal natureza pretenda ser humana, a socieda<strong>de</strong> masculinacultiva soberanamente nas mulheres o seu próprio correctivo e,com a sua restrição, revela-se como um mestre rigoroso. Ocarácter feminino é uma cópia do positivo da dominação. Tão mácomo este. O que na ilusória textura burguesa se <strong>de</strong>nomina emgeral natureza é apenas a cicatriz da mutilação social. Se forcorrecto o teorema psicanalítico, segundo o qual as mulheresapreen<strong>de</strong>m a sua constituição psíquica como consequência dacastração, então elas têm na sua neurose um vislumbre daverda<strong>de</strong>. Aquela que, quando sangra, se sente como uma feridasabe mais <strong>de</strong> si do que uma mulher que se acha uma flor, porqueao seu marido assim convém. A mentira não resi<strong>de</strong> só em dizer5984


que a natureza se afirma on<strong>de</strong> ela sofre e se acomoda; o que nacivilização se enten<strong>de</strong> por natureza é, na sua substância, o maisafastado <strong>de</strong> toda a natureza, o puro converter-se a si mesmo emobjecto. O tipo <strong>de</strong> feminida<strong>de</strong> baseado no instinto constituisempre aquilo a que cada mulher, com toda a violência - comviolência masculina- se <strong>de</strong>ve forçar: as mulherzinhas são oshomenzinhos. Basta apenas observar, sob o efeito dos ciúmes,como tais mulheres femininas dispõem da sua feminilida<strong>de</strong>, comoa acentuam segundo a sua conveniência, como fazem brilhar osseus olhos e e se servem do seu temperamento, para saber quãoescassa relação há nisso com um inconsciente resguardado e nãoestropiado pelo intelecto. A sua integrida<strong>de</strong> e pureza são obra doeu, da censura, do intelecto, e é por isso que a mulher se adaptacom tão poucos conflitos ao princípio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>mracional. As naturezas femininas são, sem excepção,conformistas. Que a insistência <strong>de</strong> Nietzsche se <strong>de</strong>tivesse aqui efosse buscar o mo<strong>de</strong>lo da natureza feminina, sem exame e semexperiência, à civilização cristã - da qual, aliás, tão fundamente<strong>de</strong>sconfiava - foi o que acabou por subordinar o esforço do seupensamento à socieda<strong>de</strong> burguesa. Caiu no engano <strong>de</strong> dizer "amulher", quando falava das mulheres. Daí o pérfido conselho <strong>de</strong>não se esquecer o chicote: a própria mulher é já o efeito dochicote. A libertação da natureza consistiria em eliminar a suaautoposição. A glorificação do carácter feminino traz consigo ahumilhação <strong>de</strong> todas as que o possuem.Uma palavra a favor da moral. - O amoralismo com queNietzsche investiu contra a antiga falsida<strong>de</strong> também incorre noveredicto da História. Com a dissolução da religião e as suasmanifestas secularizações filosóficas, as proibições restritivasper<strong>de</strong>ram a sua acreditada essência, a sua substancialida<strong>de</strong>.Todavia, a produção material estava, <strong>de</strong> início, tão pouco<strong>de</strong>senvolvida que tinha motivos para anunciar que não havia obastante para todos. Quem não criticava a economia políticaenquanto tal tinha <strong>de</strong> se apoiar no princípio restritivo, que entãose expressava como apropriação não racionalizada à custa domais fraco. Os pressupostos objectivos <strong>de</strong>sta situação6085


modificaram-se. Não é só aos olhos do não conformista social, oudo burguês sujeito a restrições, que a restrição <strong>de</strong>ve parecer algosupérfluo quando tem à vista a possibilida<strong>de</strong> imediata dasuperabundância. O sentido implícito da moral dos senhores,segundo o qual quem quiser viver tem <strong>de</strong> se impor, foi-seconvertendo numa mentira pior do que a sabedoria dos pastores,no século XIX. Se na Alemanha os pequeno-burgueses seconfirmaram como 'bestas loiras', tal não <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> modo algumdas peculiarida<strong>de</strong>s nacionais, mas do facto <strong>de</strong> a bestialida<strong>de</strong> loira,a rapina social, se ter transformado, frente à manifestaabundância, na atitu<strong>de</strong> do provinciano, do filisteu <strong>de</strong>slumbrado;em suma, daquele que "ficou a per<strong>de</strong>r", contra o qual se inventoua moral dos senhores". Se Cesare Borgia ressuscitasse,assemelhar-se-ia a David Friedrich Strauss e chamar-se-ia AdolfHitler. Pregar a amoralida<strong>de</strong> foi coisa dos darwinistas queNietzsche <strong>de</strong>sprezava e que proclamavam espasmodicamentecomo máxima a bárbara luta pela existência, só porque já <strong>de</strong>lanão tinham necessida<strong>de</strong>. A virtu<strong>de</strong> da elegância já não po<strong>de</strong>consistir em apossar-se, diante dos outros, do melhor, mas emcansar-se <strong>de</strong>sse tomar e em praticar realmente a virtu<strong>de</strong> da dádivaque, para Nietzsche, era a única virtu<strong>de</strong> imbuída <strong>de</strong> espírito. Osi<strong>de</strong>ais ascéticos encerram hoje uma maior medida <strong>de</strong> resistência à<strong>de</strong>mência da economia do lucro do que, há sessenta anos, a extenuaçãona luta contra a repressão liberal. O amoralista po<strong>de</strong>ria,por fim, permitir-se ser tão bondoso, tão <strong>de</strong>licado, não egoísta eaberto como já Nietzsche foi. Este, como garantia da suainalterada resistência, encontra-se ainda tão solitário como nosdias em que contrapôs ao mundo normal a máscara do mal, paraensinar à norma o temor da sua própria perversão.Instância <strong>de</strong> apelação. - Nietzsche expressou no Anticristo omais vigoroso argumento não só contra a teologia, mas tambémcontra a metafísica: que a esperança é confundida com a verda<strong>de</strong>;que a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver feliz ou simplesmente viver, sempensar num absoluto, não suscita a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> talpensamento. Refuta nos cristãos a "prova da força", segundo aqual a fé é verda<strong>de</strong>ira porque produz a bem-aventurança. "Seria6186


alguma vez a bem--aventurança - ou, falando tecnicamente, oprazer - uma prova da verda<strong>de</strong>? Tão longe está <strong>de</strong> o ser que quasefornece a prova contrária; em todo o caso, induz à máximasuspeita acerca da "verda<strong>de</strong>" quando, na pergunta "Que éverda<strong>de</strong>iro?", se imiscuem também sentimentos <strong>de</strong> prazer. Aprova do "prazer" é uma prova <strong>de</strong> "prazer" - nada mais; com quefundamento se teria <strong>de</strong>terminado que os juízos verda<strong>de</strong>iroscausam mais gosto do que os falsos e que, <strong>de</strong> acordo com umaharmonia pré-estabelecida, arrastam atrás <strong>de</strong> si necessariamentesentimentos agradáveis?"(Af. 50). Mas foi o próprio Nietzscheque ensinou o amor fati, o "<strong>de</strong>ves amar o teu <strong>de</strong>stino". Esta é,como afirma no epílogo ao Crepúsculo dos ídolos, a sua naturezamais íntima. E haveria então que perguntar se há algum outromotivo que leva a amar o que a alguém acontece, e a afirmar oexistente porque existe, excepto o ter por verda<strong>de</strong>iro aquilo emque alguém espera. Não leva isto da existência <strong>de</strong> stubborn facts àsua instalação como valor supremo, à mesma falácia queNietzsche rejeita, isto é, à transição da esperança para a verda<strong>de</strong>?Se ele envia para o manicómio a "bem-aventurança que dimana<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia fixa", a origem do amor fati po<strong>de</strong>ria buscar-se nopresídio. Aquele que nem vê nem tem nada para amar acaba poramar as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pedra e as janelas gra<strong>de</strong>adas. Em ambos oscasos domina a mesma incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação que, para sepo<strong>de</strong>r manter em pleno horror do mundo, atribui realida<strong>de</strong> ao<strong>de</strong>sejo e sentido ao contra--senso da coerção. Não menos do queno credo quia absurdum rasteja a resignação no amor fati, para aglorificação do supremo absurdo, para a cruz frente à dominação.Por fim, a esperança, tal como ela se arranca à realida<strong>de</strong>,enquanto esta nega aquela, é a única figura em que a verda<strong>de</strong>aparece. Sem esperança, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> dificilmente seriapensável, e a inverda<strong>de</strong> cardinal é fazer passar a existência malconhecida pela verda<strong>de</strong>, só porque foi conhecida. Aqui, muitomais do que no contrário, é on<strong>de</strong> radica o crime da teologia,contra o qual Nietzsche moveu o enérgico processo, sem terchegado à última instância. Numa das mais po<strong>de</strong>rosas passagensda sua crítica, apodou o cristianismo <strong>de</strong> mitologia: "O sacrifícioexpiatório, e na sua forma mais repugnante, mais bárbara, osacrifício do inocente pelo pecado dos culpados! Que horrendopaganismo!" (Af. 41). Mas o amor ao <strong>de</strong>stino nada mais é do que87


a sanção absoluta da infinitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal sacrifício. É o mito quesepara da verda<strong>de</strong> a crítica <strong>de</strong> Nietzsche aos mitos.Breves comentários. - Quando se relê um dos livros maisreflexivos <strong>de</strong> Anatole France, como o Jardin d'Épicure, não épossível, apesar da gratidão plena pela amarga explicação,eximir-se a uma sensação penosa que não chega a explicar-sesuficientemente nem pela faceta antiquada, que os renegadosirracionalistas franceses tão zelosamente realçam, nem pelavaida<strong>de</strong> pessoal. Mas por esta servir <strong>de</strong> pretexto à inveja - pois emtodo o espírito surge necessariamente um momento <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> -,logo que aparece se revela a razão da incomodida<strong>de</strong>. Esta cola-seao contemplativo, ao arranjar tempo para si, à normalmentedispersa homilética, ao <strong>de</strong>do indicador indulgentementelevantado. O conteúdo crítico das i<strong>de</strong>ias é <strong>de</strong>smentido pelo gestodivagatório, já familiar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aparecimento dos professores aoserviço do Estado, e a ironia com que o imitador <strong>de</strong> Voltaireconfessa nas portadas dos seus livros a sua pertença à AcadémieFrançaise vira-se contra o sarcástico. Na sua exposição oculta-se,em toda a acentuada humanida<strong>de</strong>, um elemento <strong>de</strong> violência:po<strong>de</strong> permitir-se falar assim, ninguém interrompe o mestre. Algoda usurpação que é inerente a toda a docência e a toda a leitura <strong>de</strong>viva voz se encontra concentrado ha lúcida construção dosperíodos, que tanto ócio reserva para as coisas mais fastidiosas.Sinal inequívoco do latente <strong>de</strong>sprezo do humano no último<strong>de</strong>fensor da dignida<strong>de</strong> humana é a impavi<strong>de</strong>z com que escrevetrivialida<strong>de</strong>s, como se ninguém se atrevesse a assinalá-las: "L'artiste doit aimer la vie et nous montrer qu'elle est belle. Sans lui,nous en douterions." Mas o que nas meditações arcaicamenteestilizadas <strong>de</strong> France sobressai afecta em segredo toda a reflexãoque <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o privilégio <strong>de</strong> se subtrair à imediatida<strong>de</strong> dosobjectivos. A serenida<strong>de</strong> converte--se na mesma mentira em que,<strong>de</strong> qualquer modo, incorre a pressa da imediatida<strong>de</strong>. Enquanto opensamento, no seu conteúdo, se opõe à incontível e crescentemaré do horror, po<strong>de</strong>m os nervos, o órgão táctil da consciênciahistórica, perceber na forma do próprio pensamento, mais ainda,no facto <strong>de</strong> que ainda se permite ser pensamento, o vestígio da6288


cumplicida<strong>de</strong> com o mundo, ao qual se fazem já concessões nomesmo instante em que alguém <strong>de</strong>le se retira, para o transformarem objecto <strong>de</strong> filosofia. Na soberania, sem a qual é impossívelpensar, intensifíca-se o privilégio que a alguém se conce<strong>de</strong>. Aaversão ao mesmo foi-se convertendo pouco a pouco no maisgrave impedimento para a teoria: se alguém nela persiste, <strong>de</strong>veemu<strong>de</strong>cer, e se tal não acontecer, torna-se grosseiro e vulgar pelaconfiança na própria cultura. Até a abominável cisão do discursoem conversa profissional e estritamente convencional fazsuspeitar da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer o que se pensa semarrogância, sem profanar o tempo do outro. A mais prementeexigência que, como mínimo, se <strong>de</strong>ve manter numa forma <strong>de</strong>exposição é não fechar os olhos a tais experiências, trazê-las àexpressão por meio do ritmo, da concisão, da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>, e até da<strong>de</strong>scortesia.Morte da imortalida<strong>de</strong>. - Flaubert, <strong>de</strong> quem se relata aopinião <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sprezava a fama, adoptada por ele como base dasua vida, sentiu-se na consciência <strong>de</strong> semelhante contradição tãobem como o burguês acomodado, autor da Madame Bovary. Emface da corrupta opinião pública, da imprensa, contra a qual járeagia à maneira <strong>de</strong> Kraus, julgou po<strong>de</strong>r confiar na posterida<strong>de</strong>,na <strong>de</strong> uma burguesia liberta do feitiço da estupi<strong>de</strong>z, que ohonraria como seu autêntico crítico. Mas subestimou a estupi<strong>de</strong>z:a socieda<strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>fendia não po<strong>de</strong> chamar-se pelo nome, ecom a sua expansão para totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfraldou também <strong>de</strong> modoabsoluto a estupi<strong>de</strong>z da inteligência. Isso consome os centros <strong>de</strong>energia do intelectual. Já não po<strong>de</strong> esperar na posterida<strong>de</strong> semcair, ainda que fosse só na forma <strong>de</strong> uma concordância com osgran<strong>de</strong>s espíritos, no conformismo. Mas logo que renuncia a talesperança, imiscui-se no seu trabalho um elemento <strong>de</strong> cegueira e<strong>de</strong> intransigência, predisposto já a transmutar-se em cínicacapitulação. A fama, enquanto resultado <strong>de</strong> processos objectivosno seio da socieda<strong>de</strong> mercantil, que tinha algo <strong>de</strong> contingente, eamiú<strong>de</strong> versátil, mas também o esplendor da justiça e da livreescolha, está liquidada. Converteu-se inteiramente numa funçãodos órgãos <strong>de</strong> propaganda assalariados e me<strong>de</strong>-se pelo6389


investimento arriscado pelo portador do nome ou dos grupos <strong>de</strong>interesse que por trás <strong>de</strong>le há. Entretanto, o claqueur, que aindaparecia aos olhos <strong>de</strong> Daumier uma aberração, per<strong>de</strong>u, comoagente oficial do sistema cultural, a sua irrespeitabilida<strong>de</strong>. Osescritores <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> fazer carreira falam dos seus agentes comtanta naturalida<strong>de</strong> como os seus antepassados do editor, que, atécerto ponto, já se apoiava na publicida<strong>de</strong>. Encara-se o serconhecido, e portanto, <strong>de</strong> algum modo, a perpetuação - pois queprobabilida<strong>de</strong> teria <strong>de</strong> ser recordado, na socieda<strong>de</strong> hiperorganizada,quem antes não fosse conhecido? - como questão <strong>de</strong>gestão pessoal; como outrora na Igreja, compra-se agora aoslacaios dos trusts a expectativa da imortalida<strong>de</strong>. Má sorte. Assimcomo a memória caprichosa e o total esquecimento sempreandaram juntos, assim a disposição planificada relativa à fama e àrecordação leva irremissivelmente ao nada, cujo sabor já <strong>de</strong>antemão se po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r na constituição héctica <strong>de</strong> todas ascelebrida<strong>de</strong>s. Os célebres não se sentem nada bem. Transformamseem artigos <strong>de</strong> mercado, em estranhos e incompreensíveis a simesmos, como imagens vivas mas mortos. Na pretensiosasolicitu<strong>de</strong> pelo seu nimbo, <strong>de</strong>sperdiçam a energia eficaz, a únicaque po<strong>de</strong>ria perdurar. A inumana indiferença e o <strong>de</strong>sprezo, que <strong>de</strong>imediato se votam às <strong>de</strong>rrubadas gran<strong>de</strong>zas da indústria cultural,expõem a verda<strong>de</strong> sobre a sua fama, sem que por isso os querecusam ter parte nessa indústria <strong>de</strong>vam abrigar maioresesperanças quanto à posterida<strong>de</strong>. O intelectual experimenta assima fragilida<strong>de</strong> da sua secreta motivação, e perante tal nada maispo<strong>de</strong> fazer do que expressar este discernimento.Moral e estilo. - Como escritor, po<strong>de</strong>rá alguém fazer aexperiência <strong>de</strong> que quanto mais precisa, esmerada ea<strong>de</strong>quadamente se expressar, tanto mais difícil <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r será oresultado literário, ao passo que quando o faz <strong>de</strong> forma laxa eirresponsável se vê recompensado com uma segurainteligibilida<strong>de</strong>. De nada serve evitar asceticamente todos oselementos da linguagem especializada e todas as alusões a esferasculturais não estabelecidas. O rigor e a pureza da textura verbal,inclusive na extrema simplicida<strong>de</strong>, criam antes um vazio. O6490


<strong>de</strong>smazelo, o nadar com a corrente familiar do discurso, é umsinal <strong>de</strong> vinculação e <strong>de</strong> contacto: sabe-se o que se quer porque sesabe o que o outro quer. Enfrentar a coisa na expressão, em vezda comunicação, é suspeitoso: o específico, o que não estáacolhido no esquematismo, parece uma <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração, umsintoma <strong>de</strong> excentricida<strong>de</strong>, quase <strong>de</strong> confusão. A lógica do nossotempo, que tanto se ufana da sua clarida<strong>de</strong>, acolheu ingenuamentetal perversão na categoria da linguagem quotidiana. A expressãovaga permite a quem a ouve ter uma i<strong>de</strong>ia aproximada do que éque lhe agrada e do que, <strong>de</strong> qualquer modo, opina. A rigorosaexige a univocida<strong>de</strong> da concepção, o esforço do conceito,qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que os homens conscientemente se <strong>de</strong>sacostumam,e encoraja-os à suspensão dos juízos correntes perante todo oconteúdo e, assim, a uma automarginalização a queenergicamente resistem. É-lhes inteligível só o que não precisam<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r; só o verda<strong>de</strong>iramente alienado, a palavracunhada pelo comércio, os afecta como familiar que é. Poucascoisas há que tanto contribuam para a <strong>de</strong>smoralização dosintelectuais. Quem preten<strong>de</strong>r evitá-la <strong>de</strong>verá, em todo o conselho<strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r só à comunicação, vislumbrar uma traição aocomunicado.Fome. - Opor a gíria dos trabalhadores à linguagem culta éreaccionário. O ócio, e até o orgulho e a arrogância, conferiram àlinguagem do estrato superior algo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> autodisciplina.Entra assim em contradição com a sua própria esferasocial. Ao querer dar or<strong>de</strong>ns, volta-se contra os senhores que autilizam para or<strong>de</strong>nar e <strong>de</strong>mite do serviço os seus interesses. Masna linguagem dos submissos só o domínio <strong>de</strong>ixou a suaexpressão, arrebatando-lhes até a justiça que a palavra nãomutilada e autónoma promete a quantos são assaz livres para semrancor a pronunciarem. A linguagem proletária é ditada pelafome. O pobre mastiga as palavras para com elas se saciar. Esperado seu espírito objectivo o po<strong>de</strong>roso alimento que a socieda<strong>de</strong> lhenega; enche a boca que nada tem para mor<strong>de</strong>r. Vinga-se, por isso,na linguagem. Ultraja o corpo da língua que não lhe <strong>de</strong>ixam amar,e repete com violência impotente o ultraje que a si mesmo é feito.6591


Até o melhor dos calões do norte berlinense ou dos cockneys, afacúndia e a graça natural, se sente mal, para conseguir sobreporsesem <strong>de</strong>sespero a situações <strong>de</strong>sesperadas, ao rir-se juntamentecom o inimigo também <strong>de</strong> si mesmo e ao dar assim razão ao cursodo mundo. Se a linguagem escrita codifica a alienação dasclasses, esta não po<strong>de</strong> eliminar-se pela regressão à linguagemfalada, mas só como consequência da mais rigorosa objectivida<strong>de</strong>linguística. Só o falar que em si preserva a escrita liberta a falahumana da mentira <strong>de</strong> que ela é já humana.Mélange. - O argumento habitual da tolerância, <strong>de</strong> que todosos homens e todas as raças são iguais, é um bumerangue. Expõeseà cómoda refutação pelos sentidos, e até as mais conclu<strong>de</strong>ntesprovas antropológicas <strong>de</strong> que os Ju<strong>de</strong>us não constituem raçaalguma dificilmente po<strong>de</strong>rão modificar, no caso do pogrom, ofacto <strong>de</strong> os totalitários saberem perfeitamente a quem querem, ounão, eliminar. Perante isto, <strong>de</strong> pouco serviria querer proclamarcomo i<strong>de</strong>al a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo o que tem rosto humano, em vez<strong>de</strong> a supor como um facto. A utopia abstracta seria <strong>de</strong>masiadofacilmente compatível com as mais astutas tendências dasocieda<strong>de</strong>. Que todos os homens sejam iguais é justamente o quea ela se ajusta. Consi<strong>de</strong>ra ela as diferenças reais ou imagináriascomo estigmas que testemunham que as coisas ainda não selevaram <strong>de</strong>masiado longe; que há algo subtraído à maquinaria,algo não inteiramente <strong>de</strong>terminado pela totalida<strong>de</strong>. A técnica docampo <strong>de</strong> concentração acaba por fazer dos prisioneiros os seusguardas, dos assassinados os assassinos. A diferença racial levaseao absoluto a fim <strong>de</strong> absolutamente se po<strong>de</strong>r eliminar, o queaconteceria quando já nada restasse <strong>de</strong> diferente. Uma socieda<strong>de</strong>emancipada não seria, todavia, um estado uniforme, mas arealização do geral na conciliação das diferenças. A política, quetal tomasse a sério, nem sequer <strong>de</strong>veria, por isso, propagar aigualda<strong>de</strong> abstracta dos homens como i<strong>de</strong>ia. Deveria antesassinalar a má igualda<strong>de</strong> hoje existente, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dosinteressados em filmes e em armas, mas concebendo a melhorsituação como aquela em que sem angústia se possa ser diferente.Se ao negro se certifica que ele é exactamente igual ao branco,6692


quando não é, comete-se já contra ele, <strong>de</strong> forma larvada, umanova injustiça. É amistosamente humilhado mediante uma normaatrás da qual necessariamente sobreviverá sob a pressão dosistema, e cujo cumprimento seria, além disso, <strong>de</strong> méritoduvidoso. Os partidários da tolerância unita-rista estão assiminclinados a tornar-se intolerantes para com todo o grupo que comeles não condiga: o pujante entusiasmo pelos negros torna-secompatível com a indignação relativamente à falta <strong>de</strong> maneirasdos Ju<strong>de</strong>us. O melting pot foi um arranjo do capitalismo industrial<strong>de</strong>senfreado. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> nele se envencilhar conjura o martírio,não a <strong>de</strong>mocracia.Excesso por excesso. - O que os Alemães fizeram esquiva-seà compreensão, sobretudo à psicológica, pois as atrocida<strong>de</strong>sparecem <strong>de</strong> facto ter sido praticadas mais como medidas <strong>de</strong> terrorcegamente planificadas e alienadas do que como satisfaçõesespontâneas. Segundo os relatos <strong>de</strong> algumas testemunhas, semprazer se torturava, sem prazer se assassinava, e justamente porisso para lá <strong>de</strong> toda a medida. No entanto, a consciência que<strong>de</strong>sejar resistir ao indizível ver-se-á, uma e outra vez, remetidapara a tentativa <strong>de</strong> o explicar, se não quiser cair subjectivamentena <strong>de</strong>mência que objectivamente domina. Impõe-se então a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> que o horror alemão é uma vingança antecipada. O sistema <strong>de</strong>crédito, em que tudo se po<strong>de</strong> antecipar, inclusive a conquista domundo, <strong>de</strong>termina igualmente as acções que preparam o seupróprio final e o <strong>de</strong> toda a economia <strong>de</strong> mercado, até ao suicídioda ditadura. Nos campos <strong>de</strong> concentração e nas câmaras <strong>de</strong> gás,<strong>de</strong>sconta-se <strong>de</strong> certo modo o <strong>de</strong>rrube da Alemanha. A ninguém,que tivesse assistido em Berlim aos primeiros meses dadominação nacional-socialista em 1933, pô<strong>de</strong> passar inadvertidoo momento <strong>de</strong> mortal tristeza e o abandono semi-incons-ciente àatmosfera fatídica que acompanhavam a embriaguez <strong>de</strong>sencabrestada,os <strong>de</strong>sfiles <strong>de</strong> tochas e o reboar dos tambores. Quão<strong>de</strong>sesperadamente soava a canção alemã favorita daqueles meses,a canção do "Povo às armas", na avenida Unter <strong>de</strong>n Lin<strong>de</strong>nl Asalvação da pátria, anunciada <strong>de</strong> um dia para o outro, levava,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro momento, a expressão da catástrofe, e esta6793


exercia-se nos campos <strong>de</strong> concentração, enquanto o triunfoafogava nas ruas o seu pressentimento. Tal pressentimento nãoprecisa <strong>de</strong> se explicar com o inconsciente colectivo, que <strong>de</strong>certoterá intervindo <strong>de</strong> forma bem perceptível. A situação alemã noseio da concorrência imperialista era, na guerra e na paz,<strong>de</strong>sesperada tanto no tocante às matérias primas disponíveis comoao potencial industrial. Todos e ninguém foram <strong>de</strong>masiadoestúpidos para o reconhecer. Imicuir-se na luta final daconcorrência significava saltar para o abismo, e optou-se antespor empurrar os outros para o mesmo, na fé <strong>de</strong> assim se po<strong>de</strong>rdissuadir. Era minúscula a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o empreendimentonacional-socialista compensar, mediante uma frente do terror euma priorida<strong>de</strong> temporal, a <strong>de</strong>svantagem no volume total daprodução. Os outros acreditaram nela mais do que os Alemães,que nem sequer se alegraram pela tomada <strong>de</strong> Paris. À medida queiam ganhando tudo faziam os seus estragos como quem nada tema per<strong>de</strong>r. No início do imperialismo alemão, surge o "Crepúsculodos <strong>de</strong>uses" wagneriano, a inspirada profecia do próprio ocaso,cuja composição foi empreendida ao mesmo tempo que a vitóriana guerra dos anos 70. No mesmo espírito, dois anos antes daSegunda Guerra Mundial, exibia-se ao povo alemão a película daqueda do seu zeppelin em Lakehurst. Tranquila, imperturbável,segue a nau o seu rumo quando, <strong>de</strong> repente, se afunda a pique.Quando não há saída, ao impulso <strong>de</strong> aniquilação é totalmenteindiferente o que nunca com clareza distinguiu: se se dirige contraoutros ou contra o próprio sujeito.94


Observam-te os homens. - A indignação pelas atrocida<strong>de</strong>scometidas torna-se tanto menor quanto mais dissemelhantes doleitor normal são os afectados, quanto mais obscuros, "sujos" edagos 7 . Isto diz tanto do crime em si como dos que o presenciam.Nos anti-semitas, talvez o esquematismo social da percepçãoesteja configurado <strong>de</strong> tal modo que não conseguem ver os Ju<strong>de</strong>uscomo homens. A tão ouvida afirmação <strong>de</strong> que os selvagens, osnegros ou os Japoneses parecem animais, porventura macacos,contém já a chave do pogrom. A sua possibilida<strong>de</strong> fica já <strong>de</strong>cididano momento em que o olho <strong>de</strong> um animal mortalmente ferido dácom o homem. A obstinação com que este <strong>de</strong>svia <strong>de</strong> si esse olhar- "é apenas um animal" - repete-se sem excepção nas cruelda<strong>de</strong>sinfligidas aos homens, nas quais os executores têm continuamente<strong>de</strong> se persuadir do "é só um animal", porque já nisso não podiamacreditar nem sequer no animal. Na socieda<strong>de</strong> repressiva, opróprio conceito do homem é a paródia da semelhança humana.Deve-se ao mecanismo da "projecção pática" que os <strong>de</strong>tentores dopo<strong>de</strong>r reconheçam como homens só a sua própria imagemreflectida, em vez <strong>de</strong> reflectirem o humano como o diferente. Oassassínio é, então, o intento reiterado <strong>de</strong> dissimular na razão ainsânia <strong>de</strong>ssa falsa percepção, mediante uma insânia maior: o quenão se viu como homem, mas todavia é homem, torna-se coisapara que já não possa contradizer, por meio <strong>de</strong> movimento algum,a maníaca visão.Gente vulgar. - Quem nega as forças históricas objectivasfacilmente utilizará como argumento o <strong>de</strong>senlace da guerra. OsAlemães po<strong>de</strong>riam ter ganho: o seu fiasco <strong>de</strong>veu-se à estupi<strong>de</strong>zdos seus dirigentes. As "estupi<strong>de</strong>zes" <strong>de</strong>cisivas <strong>de</strong> Hitler, a sua68697 Vocabulário americano, <strong>de</strong>rivado<strong>de</strong> Diego, nome hispânico muitocorrente; utiliza-se, em tom<strong>de</strong>preciativo, para indicar, nasocieda<strong>de</strong> dos Estados Unidos,pessoas <strong>de</strong> origem espanhola,portuguesa e italiana. [N. T.]95


ecusa em plena guerra <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r a luta contra a Inglaterra, oseu ataque à Rússia e à América, têm agora o seu exacto sentidosocial que, <strong>de</strong> forma inevitável, se <strong>de</strong>sfraldou na sua própriadialéctica <strong>de</strong> cada passo racional ao seguinte até <strong>de</strong>sembocar nacatástrofe. Mas se tudo isso tivesse sido estupi<strong>de</strong>z, esta seriahistoricamente explicável: a estupi<strong>de</strong>z não é <strong>de</strong> modo algum umaqualida<strong>de</strong> natural, mas algo produzido e reforçado pela socieda<strong>de</strong>.A pandilha dominante na Alemanha levou à guerra porque seencontrava excluída das posições do po<strong>de</strong>r imperialista. Mas foinesta exclusão que justamente residiu a razão do provincianismo,da inépcia e da cegueira que tornaram a política <strong>de</strong> Hitler e <strong>de</strong>Ribbentrop incapaz <strong>de</strong> competir, e a sua guerra um azar. A máinformação <strong>de</strong>les, e das suas massas por trás do cordão do IIIReich, acerca do equilíbrio entre o interesse económico global e ointeresse particular britânico dos tones e sobre o po<strong>de</strong>r do exércitovermelho, é inseparável da <strong>de</strong>terminação histórica do nacionalsocialismoe, quase se po<strong>de</strong>ria dizer, da sua força. A probabilida<strong>de</strong>da acção ousada baseava-se apenas em que eles nadadisto sabiam, e foi essa a razão do seu fracasso. O atrasoindustrial da Alemanha reduziu os políticos que queriam tomar adianteira, e que para tal não estavam mais qualificados do que osinfelizes, à sua imediata e limitada experiência, a da fachadapolítica. Não viam diante <strong>de</strong> si outra coisa, excepto a multidãoque os aclamava e os seus intimidados parceiros <strong>de</strong> negociação:isto impediu-os <strong>de</strong> discernir o po<strong>de</strong>r objectivo das gran<strong>de</strong>s massas<strong>de</strong> capital. A vingança imanente em Hitler resi<strong>de</strong> em que ele,verdugo da socieda<strong>de</strong> liberal, era todavia, pelo seu estado <strong>de</strong>consciência, <strong>de</strong>masiado "liberal" para reconhecer como, sob acapa do liberalismo, se constituía no exterior a dominaçãoirresistível do potencial industrial. Ele, que como nenhum outroburguês adivinhou a falsida<strong>de</strong> do liberalismo, não chegou aentrever o po<strong>de</strong>r que há atrás <strong>de</strong>le, a tendência social que teverealmente em Hitler o seu pregoeiro. A sua consciência estavareduzida à situação do competidor <strong>de</strong>rrotado e míope, <strong>de</strong>la partiupara a reorganizar mediante um procedimento sumário. Soounecessariamente para os Alemães a hora <strong>de</strong> semelhante estupi<strong>de</strong>z.Pois só aqueles que na economia mundial e no conhecimento domundo eram em igual medida limitados os pu<strong>de</strong>ram atrair àguerra e encaminhar a sua obstinação para uma empresa não96


inibida por reflexão alguma. A estupi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Hitler foi uma astúciada razão.Opinião <strong>de</strong> diletante. - O Terceiro Reich não conseguiuproduzir nenhuma obra <strong>de</strong> arte, nenhuma criação do pensamentoque tivesse satisfeito sequer a mísera exigência liberal do "nível".A <strong>de</strong>sagregação da humanida<strong>de</strong> e a conservação dos bens doespírito eram tão pouco compatíveis como o refúgio anti-aéreo eo ninho da cegonha, e a cultura belicosamente renovada tinha já,no primeiro dia, o aspecto que nos últimos as cida<strong>de</strong>sapresentavam: um montão <strong>de</strong> escombros. A população opôs-lhepelo menos uma resistência passiva. Mas as energias culturaissupostamente libertas <strong>de</strong> modo algum foram absorvidas pelodomínio técnico, político e militar. A barbárie é realmente o todoe triunfa ainda sobre o seu próprio espírito. Tal po<strong>de</strong> perceber-sena estratégia. A era fascista não a levou ao seu florescimento, masacabou com ela. As gran<strong>de</strong>s concepções militares eraminseparáveis da astúcia, da fantasia: quase da sagacida<strong>de</strong> e dainiciativa privadas. Pertenciam a uma disciplina relativamentein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do processo da produção. A norma era que a<strong>de</strong>cisão dimanasse <strong>de</strong> inovações especializadas, como a disposiçãodiagonal das tropas na batalha ou o aperfeiçoamento da artilharia.Havia em tudo isto algo das qualida<strong>de</strong>s do empresárioburguês autónomo. Aníbal provinha <strong>de</strong> mercadores, não <strong>de</strong>heróis, e Napoleão da revolução <strong>de</strong>mocrática. O momento daconcorrência burguesa na condução da guerra afundou-se com ofascismo. Este elevou ao absoluto a i<strong>de</strong>ia básica da estratégia: oaproveitamento da <strong>de</strong>sproporção temporal entre a frenteorganizada para o assassínio <strong>de</strong> uma nação e o potencial total dasoutras. Mas os fascistas, ao inventarem, como consequência <strong>de</strong>stai<strong>de</strong>ia, a guerra total, e ao suprimirem a diferença entre o exércitoe a indústria, liquidaram a estratégia. Esta é antiquada como osom das bandas militares e a imagem das fragatas. Hitler intentoua dominação mundial mediante a concentração do terror. Mas osmeios <strong>de</strong> que para tal se serviu eram já <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> estratégia:a acumulação do material mais po<strong>de</strong>roso em pontos singulares, otosco avanço frontal e o confinamento mecânico dos adversários7097


eduzidos atrás das linhas <strong>de</strong> avanço. Este princípio, puramentequantitativo, positivista, sem surpresa, e por isso em toda a parte"público" e fundido com a propaganda, já não era suficiente. OsAliados, infinitamente mais ricos em recursos económicos, sóprecisaram <strong>de</strong> sobrepujar a táctica alemã para esmagar Hitler. Ainércia e o <strong>de</strong>sânimo da guerra, o <strong>de</strong>rrotismo generalizado, quecontribuiu para a perduração do infortúnio, estavamcondicionados pela <strong>de</strong>cadência da estratégia. Quando todas asacções são matematicamente calculadas adquirem um carácterestúpido. Para escárnio da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que qualquer um <strong>de</strong>veria po<strong>de</strong>radministrar o Estado, a guerra é conduzida com a ajuda do radar ecom plataformas artificiais da maneira como a representa umestudante que espeta ban<strong>de</strong>irinhas. Spengler esperava da<strong>de</strong>cadência do Oci<strong>de</strong>nte a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro dos engenheiros. Mascomo sua perspectiva apenas se po<strong>de</strong> vislumbrar a <strong>de</strong>cadência daprópria técnica.Pseudómenos. - O po<strong>de</strong>r magnético que sobre os homensexercem as i<strong>de</strong>ologias, embora já se lhes tenham tornado<strong>de</strong>crépitas, explica-se, para lá da psicologia, pelo <strong>de</strong>rrubeobjectivamente <strong>de</strong>terminado da evidência lógica como tal.Chegou-se ao ponto em que a mentira soa como verda<strong>de</strong>, e averda<strong>de</strong> como mentira. Cada expressão, cada notícia e cadapensamento estão preformados pelos centros da indústria cultural.O que não traz o vestígio familiar <strong>de</strong> tal preformação é, <strong>de</strong>antemão, indigno <strong>de</strong> crédito, e tanto mais quanto as instituiçõesda opinião pública acompanham o que <strong>de</strong>las sai com mil dadosfactuais e com todas as provas <strong>de</strong> que a manipulação total po<strong>de</strong>dispor. A verda<strong>de</strong> que intenta opor-se não tem apenas o carácter<strong>de</strong> inverosímil, mas é, além disso, <strong>de</strong>masiado pobre para entrarem concorrência com o altamente concentrado aparelho dadifusão. O extremo alemão ilustra bem todo este mecanismo.Quando os nacional-socialistas começaram a torturar, não sóaterrorizaram a população <strong>de</strong>ntro e fora, mas sentiam-se aomesmo tempo tanto mais seguros, frente a toda a revelação,quanto mais selvagens se tornavam as atrocida<strong>de</strong>s. A sua escassacredibilida<strong>de</strong> tornou fácil não acreditar naquilo em que, por mor7198


da <strong>de</strong>sejada paz, não se queria acreditar, enquanto ao mesmotempo se capitulava diante dos factos. Os timoratos ten<strong>de</strong>m agarantir que há muito exagero: até em plena guerra eramin<strong>de</strong>sejados na imprensa inglesa os pormenores sobre os campos<strong>de</strong> concentração. No mundo ilustrado, toda a atrocida<strong>de</strong> se tornanecessariamente uma invenção. Pois a inverda<strong>de</strong> da verda<strong>de</strong> temum núcleo a que o inconsciente reage com ansieda<strong>de</strong>. Este nãoanseia apenas pelo horror. O fascismo é, <strong>de</strong> facto, tanto menos"i<strong>de</strong>ológico" quanto mais directamente proclama o princípio dadominação, que noutros lugares se mantém oculto. O que as<strong>de</strong>mocracias sempre têm <strong>de</strong> lhe contrapor como humano po<strong>de</strong> elecom facilida<strong>de</strong> recusá-lo, assinalando que não se <strong>de</strong>sfez resolutamente<strong>de</strong> toda a humanida<strong>de</strong>, mas apenas da sua imagem ilusória.Os homens, porém, chegaram a tal <strong>de</strong>sespero na cultura que, aoapelo que se lhes faz, <strong>de</strong>itam fora o melhor frágil, quando omundo apenas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> comprazer à sua malda<strong>de</strong> confessando quãomau é. As forças políticas contrárias estão, todavia, obrigadas aservir-se uma e outra vez da mentira, se não quiserem ver-se <strong>de</strong>todo anuladas como <strong>de</strong>strutivas. Quanto mais profunda é a suadiferença relativamente ao estabelecido, que todavia lhes garanterefúgio perante o futuro ingrato, tanto mais fácil se torna aosfascistas aferrá-las a falsida<strong>de</strong>s. Só a mentira absoluta tem ainda aliberda<strong>de</strong> para dizer <strong>de</strong> qualquer modo a verda<strong>de</strong>. Na confusão <strong>de</strong>verda<strong>de</strong> e mentira, que quase exclui a conservação da diferença etransforma a fixação do mais simples conhecimento num trabalho<strong>de</strong> Sísifo, anuncia-se a vitória, na organização lógica, do princípioque militarmente foi <strong>de</strong>rrubado. As mentiras têm pernascompridas: adiantam-se ao tempo. A transmutação <strong>de</strong> todas asquestões da verda<strong>de</strong> para questões <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a que a própriaverda<strong>de</strong> não se po<strong>de</strong> subtrair, se não quiser ser aniquilada pelopo<strong>de</strong>r, não se limita a reprimi-la, como nos antigos <strong>de</strong>spotismos,mas apo<strong>de</strong>ra-se até ao mais íntimo da disjunção entre overda<strong>de</strong>iro e o falso, em cuja eliminação cooperam activamenteos mercenários da lógica. Hitler, <strong>de</strong> que ninguém po<strong>de</strong> dizer semorreu ou escapou, está ainda vivo.99


Segunda colheita. - A dotação nada mais é, porventura, doque um furor afortunadamente sublimado, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> concentrarnuma paciente contemplação as energias que, noutrotempo, se intensificavam até à <strong>de</strong>smesura para a <strong>de</strong>struição dosobjectos refractários, e <strong>de</strong> renunciar ao mistério dos objectos namesma escassa medida em que antes se estava contente enquantonão se arrancasse ao maltratado brinquedo a voz queixosa. Quemnão advertiu no rosto <strong>de</strong> quem está mergulhado nos seuspensamentos, do afastado dos objectos práticos, traços da mesmaagressão que, aliás, se manifesta na prática? Não é verda<strong>de</strong> que oprodutor se sente a si mesmo em plena exaltação comoembrutecido, como "furioso trabalhador"? Não necessita elejustamente <strong>de</strong> tal furor para se libertar da perplexida<strong>de</strong> e da fúriada perplexida<strong>de</strong>? Não se arrebata primeiro o conciliador ao<strong>de</strong>struidor?Hoje, a maioria dá coices com o aguilhão.Em várias coisas há gestos registados e, portanto, modos <strong>de</strong>comportamento. As pantufas - "Schlappen", slippers - estãoconcebidas para meter os pés sem a ajuda da mão. Sãomonumentos do ódio contra o vergar-se.Que na socieda<strong>de</strong> repressiva a liberda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>sfaçatez levamao mesmo atestam-no os gestos <strong>de</strong>spreocupados dos adolescentesque perguntam "quanto custa a vida", quando ainda não ven<strong>de</strong>m oseu trabalho. Como sinal <strong>de</strong> não estarem sujeitos a ninguém e,portanto, <strong>de</strong> a ninguém <strong>de</strong>verem respeito, põem as mãos nosbolsos. Mas os cotovelos, que se viram para fora, estão jápreparados para empurrar quem quer que se interponha no seucaminho.Um alemão é um homem que não po<strong>de</strong> proferir uma mentira,sem nela pessoalmente acreditar.A frase "Isso não vem a propósito", que po<strong>de</strong>ria ter surgidona Berlim dos anos vinte, é já potencialmente uma tomada dopo<strong>de</strong>r. Preten<strong>de</strong> que a vonta<strong>de</strong> privada, apoiada por vezes emdireitos reais <strong>de</strong> disposição, quase sempre na mera <strong>de</strong>sfaçatez,represente directamente a necessida<strong>de</strong> objectiva, que não admitequalquer objecção. No fundo, é a recusa do homem <strong>de</strong> negóciosem bancarrota a pagar ao outro sócio um só tostão, na orgulhosa72100


consciência <strong>de</strong> que a eleja nada se lhe po<strong>de</strong> tirar. O embuste doadvogado trapaceiro apresenta-se jactanciosamente como heróicainteireza: forma verbal da usurpação. Tal <strong>de</strong>scoco <strong>de</strong>fineigualmente o êxito e o colapso do nacional-socialismo.Que à vista da existência <strong>de</strong> oficinas panificadoras o pedidodo pão nosso <strong>de</strong> cada dia se tenha convertido numa simplesmetáfora e, ao mesmo tempo, em vivo <strong>de</strong>sespero diz mais contraa possibilida<strong>de</strong> do cristianismo do que toda a crítica ilustrada davida <strong>de</strong> Jesus.O anti-semitismo é o boato sobre os Ju<strong>de</strong>us.Os estrangeirismos são os ju<strong>de</strong>us da língua.Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> inapreensível tristeza, surpreendi-me a mimmesmo no uso do conjuntivo ridiculamente incorrecto <strong>de</strong> umverbo, já <strong>de</strong>susado em alemão, peculiar ao dialecto da minhacida<strong>de</strong> natal. Des<strong>de</strong> os primeiros anos da escola, não mais voltaraa ouvir esse familiar barbarismo, e menos ainda a empregá-lo. Amelancolia que, irresistível, <strong>de</strong>scia ao abismo da infância<strong>de</strong>spertou, bem no fundo, a velha voz que, impotente, mereclamava. A linguagem <strong>de</strong>-volveu-me, como um eco, ahumilhação que a <strong>de</strong>sventura me causava, esquecendo-se do queeu era.A segunda parte do Fausto, tida pejorativamente por obscurae alegórica, está tão cheia <strong>de</strong> expressões correntes como só oGuilherme Tell. A transparência, a simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto nãoestá em proporção directa com o facto <strong>de</strong> se integrar na tradição.O esotérico, o que sempre exige uma nova interpretação, po<strong>de</strong>criar essa autorida<strong>de</strong> que, ora numa frase ora numa obra, seatribui ao que alcança a posterida<strong>de</strong>.Toda a obra <strong>de</strong> arte é um crime a baixo preço.As tragédias que, pelo "estilo", mais rigorosamentepreservam a distância do meramente existente são ao mesmotempo aquelas que, com procissões colectivas, com máscaras evítimas, mais fielmente conservam a memória da <strong>de</strong>monologiados selvagens.A pobreza do nascer do Sol na Sinfonia dos Alpes <strong>de</strong> RichardStrauss não é apenas efeito <strong>de</strong> sequências banais, mas do próprioesplendor. Nenhuma alvorada, mesmo nas altas montanhas, épomposa, triunfal, majestosa, mas cada uma surge débil e tímida,como a esperança <strong>de</strong> que o que vai acontecer seja bom; em tão101


inaparente visibilida<strong>de</strong> da luz fortíssima é que radica justamente asua emocionante grandiosida<strong>de</strong>.A voz <strong>de</strong> uma mulher ao telefone permite dizer se quem falaé bonita. O timbre reflecte como segurança, naturalida<strong>de</strong> etranquilida<strong>de</strong> todos os olhares <strong>de</strong> admiração e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo quealguma expressa lhe foram dirigidos. Ela expressa o duplo sentidoda palavra latina gratia: agra<strong>de</strong>cimento e graça. O ouvido percebeo que é próprio do olho, porque ambos vivem da experiência <strong>de</strong>uma mesma beleza. Esta é reconhecida já no primeiro momento:notificação íntima do nunca visto.Se alguém <strong>de</strong>sperta em pleno sonho, até no mais<strong>de</strong>sagradável, sente-se <strong>de</strong>siludido, como se tivesse sido enganadopara seu bem. Sonhos felizes, realizados, existem, <strong>de</strong> facto, tãopoucos como, na expressão <strong>de</strong> Schubert, música feliz. Até aomais belo é inerente, qual mácula, a sua diferença da realida<strong>de</strong>, aconsciência da simples aparência do que ele garante. Por isso, ossonhos mais belos parecem estropiados. Esta experiência estáinsuperavelmente plasmada na <strong>de</strong>scrição do teatro ao ar livre <strong>de</strong>Ohklahoma, em América <strong>de</strong> Kafka.Com a felicida<strong>de</strong> acontece o mesmo que com a verda<strong>de</strong>: nãose possui, mas está-se nela. Sim, a felicida<strong>de</strong> não é mais do que oestar envolvido, reflexo da segurança do seio materno. Por isso,nenhum ser feliz po<strong>de</strong> saber que o é. Para ver a felicida<strong>de</strong>, teria <strong>de</strong><strong>de</strong>la sair: seria então como um recém-nascido. Quem diz que éfeliz mente, na medida em que jura, e peca assim contra afelicida<strong>de</strong>. Só lhe é fiel quem diz: fui feliz. A única relação daconsciência com a felicida<strong>de</strong> é o agra<strong>de</strong>cimento: tal constitui asua incomparável dignida<strong>de</strong>.A casa, à criança que regressa das férias, parece-lhe nova,fresca, festiva. Mas nada nela mudou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>ixara. Osimples facto <strong>de</strong> esquecer as obrigações, que cada móvel, cadajanela, cada lâmpada lhe recorda, restitui a estes a sua pazsabática, e por uns minutos, na multiplicação <strong>de</strong> quartos, <strong>de</strong>habitações e do corredor, alguém se sente em casa, como ao longo<strong>de</strong> toda a vida apenas afirma a mentira. Não <strong>de</strong> outro modosurgirá o mundo - quase sem mudança alguma -, à perpétua luz dasua festivida<strong>de</strong>, quando já não estiver sob a lei do trabalho, e paraquem regressa a casa as obrigações são tão fáceis como o jogonas férias.102


Des<strong>de</strong> que já não se po<strong>de</strong> cortar flores para adorno da amada,como oferta, que é compensada enquanto o entusiasmo por umatoma livremente sobre si a injustiça para com todas, juntar florestornou-se algo funesto. Só serve para eternizar o passageiro,aprisionando-o. Mas nada é mais nocivo: o ramo sem fragrância,a recordação celebrada mata o que resta, justamente pela suaconservação. O instante fugaz po<strong>de</strong> reviver no esquecimento murmurante,na ausência do raio <strong>de</strong> luz que o faz brilhar; quererpossuir esse instante é já perdê-lo. O ramo sumptuoso que, poror<strong>de</strong>m da mãe, a criança leva para casa po<strong>de</strong>ria suscitar ufaniacomo o ramo artificial <strong>de</strong> há sessenta anos; no fim <strong>de</strong> contas, écomo nas fotografias avidamente tiradas durante a viagem, emque pela paisagem se dispersam, como <strong>de</strong>sperdícios, os que <strong>de</strong>lanada viram, e como recordação recolhem o que, sem memória, se<strong>de</strong>spenhou no nada. Mas quem, arrebatado, envia flores, iráinstintivamente buscar aquelas que parecem mortais.Temos <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer a nossa vida à diferença entre a estruturaeconómica, o industrialismo tardio e a fachada política. Para acrítica teórica, a diferença é <strong>de</strong> pouca monta: em toda a parte sepo<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar o carácter aparente da pretensa opinião pública, oprimado da economia nas <strong>de</strong>cisões essenciais. Mas, parainumeráveis indivíduos, essa <strong>de</strong>lgada e efémera envoltura é ofundamento <strong>de</strong> toda a sua existência. Aqueles <strong>de</strong> cujo pensamentoe acção <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a mudança - a única coisa essencial -, <strong>de</strong>vemjustamente a sua existência ao inessencial, à aparência, naverda<strong>de</strong> ao que, segundo o critério das gran<strong>de</strong>s leis da evoluçãohistórica, po<strong>de</strong> surgir como simples aci<strong>de</strong>nte. Mas não é assimafectada toda a construção <strong>de</strong> essência e aparência? Medido peloconceito, o individual tornou-se, <strong>de</strong> facto, algo tão inteiramentenulo, como antecipara a filosofia hegeliana; sub specieindividuationis, porém, o essencial é a absoluta contingência, osobreviver resignado e, por assim dizer, anormal. O mundo é osistema do horror; por isso, <strong>de</strong>masiado o honra quem o pensatotalmente como sistema, pois o seu princípio unificador é a<strong>de</strong>sunião, e esta concilia ao impor a inconciliabilida<strong>de</strong> douniversal e do particular. A sua essência (Wesen) é amonstruosida<strong>de</strong> (Unwe-sen); mas a sua aparência, a mentira, é,em virtu<strong>de</strong> da sua persistência, o lugar da verda<strong>de</strong>.103


Desvio. - A <strong>de</strong>cadência do movimento operário revela-se nooptimismo oficial dos seus militantes. Parece aumentar com afirme consolidação do mundo capitalista. Os iniciadores nuncativeram o seu êxito por garantido; por isso, durante toda a suavida, não disseram inconveniências às organizações operárias.Hoje, visto que a posição do adversário e o seu po<strong>de</strong>r sobre aconsciência das massas se fortaleceram infinitamente, consi<strong>de</strong>rasereaccionária toda a tentativa <strong>de</strong>, pela <strong>de</strong>núncia dacumplicida<strong>de</strong>, modificar precipitadamente essa consciência. Todoaquele que combina a crítica do capitalismo com a crítica doproletariado - a qual reflecte cada vez mais as tendênciasevolutivas do capitalismo -, torna-se suspeito. É interdito oelemento negativo do pensamento, quando se sai das fronteiras <strong>de</strong>classe. A sabedoria do kaiser Guilherme - "não suporto os pessimistas"- introduziu-se nas fileiras daqueles que ele quis <strong>de</strong>struir.A quem apontava a cessação <strong>de</strong> toda a oposição espontânea dostrabalhadores alemães replicava-se que tudo estava a <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>um modo que tornava impossível juízo algum; a quem não está nolugar e na situação on<strong>de</strong> se encontram as <strong>de</strong>sgraçadas vítimasalemãs da guerra aérea, e a quem nisso se comprazeu enquantoela se dirigia contra os outros, que tenha a coragem <strong>de</strong> se conter eque, além disso, estavam iminentes as reformas agrárias daRoménia e da Jugoslávia. Todavia, quanto mais se esvai aexpectativa racional <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>stino da socieda<strong>de</strong> tomerealmente outro rumo, com tanto maior fervor repetem os velhostermos <strong>de</strong> massa, solidarieda<strong>de</strong>, partido, luta <strong>de</strong> classes. Quando,entre os militantes da plataforma <strong>de</strong> esquerda, já não persistenenhuma concepção crítica da economia política; quando os seusjornais proclamam diariamente, sem a menor suspeita, teses quesobrepujam todo o revisionismo, mas nada significam e, porrevogação, se po<strong>de</strong>m substituir no dia seguinte por outrascontrárias, os ouvidos dos fiéis a esta linha mostram a suasubtileza musical, logo que se trate da mais leve falta <strong>de</strong> respeitopara com as alienadas palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m da teoria. O optimismovociferante é próprio do patriotismo internacional. O leal <strong>de</strong>ve<strong>de</strong>cidir-se por um povo, seja ele qual for. Mas no conceitodogmático do povo, no reconhecimento da suposta comunida<strong>de</strong>73104


<strong>de</strong> <strong>de</strong>stino entre os homens como instância para a acção, éimplicitamente negada a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> emancipada dacoacção da natureza.O optimismo vociferante é a perversão <strong>de</strong> um motivo quenoutros dias se impôs: o <strong>de</strong> que não era possível esperar.Confiando no estado da técnica, concebia-se a mudança comoalgo iminente, como a possibilida<strong>de</strong> mais imediata. Asconcepções que implicavam longos períodos <strong>de</strong> tempo, cautelas emedidas pedagógicas circunstanciadas para a população caíamsob a suspeita <strong>de</strong> abandonarem a meta que se tinham proposto. Avonta<strong>de</strong> autónoma expressou-se então num optimismo que eraequivalente ao <strong>de</strong>sprezo da morte. De tudo isso só restou oenvoltório, a fé no po<strong>de</strong>r e a gran<strong>de</strong>za da organização em si, semdisposição para agir e, além disso, impregnada da convicção<strong>de</strong>struidora <strong>de</strong> que a espontaneida<strong>de</strong> já não é possível, emboravenha, no fim, a vencer o exército vermelho. O persistentecontrolo <strong>de</strong> que cada um admita que as coisas sairão bem fazincorrer os inflexíveis na suspeita <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotistas e renegados. Noscontos, os anunciadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraças, vindos do abismo, erammensageiros das maiores venturas. Hoje, que o abandono dautopia se assemelha tanto à sua realização como o Anticristo aoParáclito, a palavra agoirento tornou-se um insulto, até entre osque estão em baixo. O optimismo <strong>de</strong> esquerda repete a insidiosasuperstição burguesa <strong>de</strong> que não se <strong>de</strong>ve pintar o diabo na pare<strong>de</strong>,mas aferrar-se ao positivo. "Não te agrada o mundo? Então, buscaoutro melhor" - tal é a linguagem coloquial do realismo socialista.Mamute. - Há alguns anos, circulava nos jornais americanos anotícia do achado <strong>de</strong> um dinossauro muito bem conservado, noEstado <strong>de</strong> Utah. Afirmava-se que o exemplar sobrevivera aos doseu género e era milhões <strong>de</strong> anos mais jovem do que os até entãoconhecidos. Notícias <strong>de</strong>ste jaez, tal como a insuportável modahumorística do monstro do lago Ness e o filme King Kong, sãoprojecções colectivas do monstruoso Estado total. Pela habituaçãoa figuras gigantescas, faz-se a preparação para os seus horrores.Na absurda inclinação para as aceitar, a humanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sfalecidana impotência, tenta <strong>de</strong>sesperadamente incorporar na experiência74105


o que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha toda a experiência. Mas a representação <strong>de</strong>animais primordiais vivos ou extintos há poucos milhões <strong>de</strong> anosnão se esgota aí. A esperança, que a actualida<strong>de</strong> do mais remotosuscita, aponta para a convicção <strong>de</strong> que a criação animal possasuperar a injustiça que contra ela cometeu o homem, se não a elepróprio, e surja uma espécie melhor que, por fim, o consiga.Desta mesma esperança nasceram já os jardins zoológicos. Estessão organizados segundo o mo<strong>de</strong>lo da arca <strong>de</strong> Noé, pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que eles existem, a classe burguesa aguarda o dilúvio. Fracopretexto se afigura a utilida<strong>de</strong> dos jardins zoológicos para oentretenimento e o ensino. Eles são alegorias <strong>de</strong> que um exemplarou um casal resiste ao <strong>de</strong>stino, que à espécie enquanto espécieestá <strong>de</strong>terminado. Daí que os jardins zoológicos, tãoexcessivamente providos, das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s europeias actuemcomo formas <strong>de</strong>generativas: mais <strong>de</strong> dois elefantes, <strong>de</strong> duasgirafas ou <strong>de</strong> um hipopótamo é prejudicial. Não há tambémbenção alguma nas instalações <strong>de</strong> Hagenbeck com fossos e semgra<strong>de</strong>s, que atraiçoam o mo<strong>de</strong>lo da arca, ao propor uma salvaçãoque só o Ararat promete. Negam a liberda<strong>de</strong> da criatura tantomais perfeitamente quanto mais invisíveis tornam as fronteirascuja visão podia atear a nostalgia do espaço aberto. Comportamse,relativamente a jardins zoológicos aceitáveis, como os jardinsbotânicos relativamente às selvas tropicais. Quanto maispuramente a civilização conserva e transplanta a natureza tantomais inexoravelmente esta fica dominada. Po<strong>de</strong> permitir-seabarcar unida<strong>de</strong>s naturais cada vez maiores e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> tal<strong>de</strong>limitação, <strong>de</strong>ixá-las aparentemente intactas, ao passo que antesa selecção e a exploração <strong>de</strong> porções isoladas testificavam anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se impor à natureza. O tigre, que, sem parar, vai<strong>de</strong> um lado para o outro na sua jaula, reflecte ainda <strong>de</strong> formanegativa, com a sua errância, algo <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, mas nãoaquele que se agita por trás dos fossos intransponíveis. A arcaicabeleza da vida animal <strong>de</strong> Brehm radica no facto <strong>de</strong> <strong>de</strong>screvertodos os animais tal como se mostram através das gra<strong>de</strong>s dosjardins zoológicos, e sobretudo quando se citam naturalistasimaginativos com as <strong>de</strong>scrições da vida animal no estadoselvagem. Mas também o facto <strong>de</strong> que o animal na jaula sofremais do que nas instalações livres, <strong>de</strong> que Hagenbeck representaum progresso efectivo da humanida<strong>de</strong>, diz algo sobre a106


inevitabilida<strong>de</strong> do cativeiro. Eis uma consequência da História.Os jardins zoológicos são, na sua organização autêntica, produtosdo imperialismo colonial do século XIX. Floresceram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aabertura <strong>de</strong> regiões selvagens <strong>de</strong> Africa e da Ásia Central, quepagavam os seus tributos simbólicos com formas animais. O valordo tributo media-se pelo exótico, pelo difícil <strong>de</strong> encontrar. O<strong>de</strong>senvolvimento da técnica <strong>de</strong>salojou assim o exótico. O leãocriado na quinta está tão domesticado como o cavalo, submetidohá muito a um controlo <strong>de</strong> natalida<strong>de</strong>. Mas o milénio ainda nãochegou. Só na própria irracionalida<strong>de</strong> da cultura, nos rincões enos muros, a que a<strong>de</strong>mais se <strong>de</strong>vem acrescentar as valas, torres ebastiões dos jardins zoológicos dispersos por cida<strong>de</strong>s, se po<strong>de</strong>conservar a natureza. A racionalização da cultura, que abre assuas janelas à natureza, absorve-a <strong>de</strong> modo cabal eliminando,juntamente com a diferença, o próprio princípio da cultura, apossibilida<strong>de</strong> da reconciliação.Frio albergue. - Ominosamente, o romantismo <strong>de</strong>siludido <strong>de</strong>Schubert, no ciclo em cujo centro estão as palavras "Acabei comtodos os sonhos", escolheu o nome <strong>de</strong> pousada já só para ocemitério. A fata morgana do país da abundância é presa darigi<strong>de</strong>z cadavérica. Hóspe<strong>de</strong>s e hospe<strong>de</strong>iro estão embruxados.Aqueles têm pressa. Quanto muito, tirariam o chapéu. Sobreincómodos assentos, intima--se-lhes, mediante a retenção <strong>de</strong>cheques e a pressão moral dos que esperam atrás, que abandonemo mais <strong>de</strong>pressa possível o local, que, por ironia, continua achamar-se café. O hospe<strong>de</strong>iro, com todos os seus colaboradores,em rigor já não o é, mas um empregado. Provavelmente a<strong>de</strong>cadência da hospedaria data da dissolução da antiga unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>albergue e bor<strong>de</strong>l, cuja recordação persiste, nostálgica, em cadaolhar que se lança à empregada <strong>de</strong> bar, proposta para espectáculo,e aos gestos <strong>de</strong>latores das camareiras. Mas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ao ofício <strong>de</strong>hospe<strong>de</strong>iro, a mais digna profissão da esfera da circulação, seretirou a última ambiguida<strong>de</strong>, como a que ainda está afixa àpalavra tráfico, as coisas pioraram. Passo a passo, e sempre comargumentos irrefutáveis, os meios aniquilam o fim. A divisão dotrabalho, o sistema <strong>de</strong> funções automatizadas, faz que a ninguém75107


interesse o bem-estar do cliente. Já ninguém consegue ler no seurosto o que lhe apetece, pois o empregado já não conhece ospratos, e se lhe acontece recomendar alguma coisa, tem <strong>de</strong>aguentar as censuras por haver excedido as suas competências.Ninguém se apressa a servir o cliente que espera durante muitotempo quando quem o aten<strong>de</strong> está ocupado: o cuidado dainstituição, que se realiza plenamente na prisão, assemelha-se aoexistente na clínica em torno do sujeito, que é administrado comoum objecto. É compreensível que o 'restaurante' esteja separadodo hotel por abismos hostis, as cápsulas vazias dos quartos, eigualmente as limitações do tempo na comida e no insofrívelroom service, do qual se foge para o drugstore, o aparatosoestabelecimento por trás <strong>de</strong> cujo inospitaleiro balcão ummalabarista <strong>de</strong> ovos fritos, presunto duro e bolas <strong>de</strong> gelado seapresenta como o último resquício <strong>de</strong> hospitalida<strong>de</strong>. Mas, nohotel, toda a pergunta imprevista é respondida pelo próprioporteiro indicando parcimoniosamente outro balcão quase sempreabandonado. A objecção <strong>de</strong> que em tudo isto se <strong>de</strong>ve ver somenteuma rezingona laudatio temporis acti não é convincente. Quemnão preferiria o Blauer Stern <strong>de</strong> Praga ou o Õsterreichischer Hof<strong>de</strong> Salzburgo, embora tivesse <strong>de</strong> percorrer o corredor para ir àcasa <strong>de</strong> banho e não o <strong>de</strong>spertasse <strong>de</strong> manhãzinha o infalívelaquecimento central? Quanto mais nos aproximamos da esfera daexistência mediata, corpórea, tanto mais questionável se torna oprogresso, pírrica vitória da produção feiticizada. Por vezes, talprogresso horroriza-se <strong>de</strong> si mesmo e procura agregar <strong>de</strong> novo,embora <strong>de</strong> modo puramente simbólico, as funções do trabalhopremeditadamente separadas. Surgem então figuras como ahostess, uma hospe<strong>de</strong>ira sintética. Como esta, na realida<strong>de</strong>, nãocuida <strong>de</strong> nada, não reúne, mediante qualquer disposição real, asfunções cindidas e esfriadas, mas limita-se aos inúteis gestos <strong>de</strong>boas vindas e, <strong>de</strong> qualquer modo, ao controlo dos empregados, oseu aspecto é o <strong>de</strong> uma mulher tediosamente amável,robustamente esbelta, forçadamente juvenil e um tanto flácida. Oseu verda<strong>de</strong>iro fim é velar por que o cliente que entra nem sequerpossa escolher ele próprio a sua mesa, pois o negócio está acima<strong>de</strong>le. O seu encanto é o reverso da dignida<strong>de</strong> do encarregado daexpulsão.108


Jantar <strong>de</strong> gala. - O modo como hoje se cruzam o progresso ea regressão discerne-se no conceito das possibilida<strong>de</strong>s técnicas.Os processos mecânicos <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong>senvolveram-se eestabele-ceram-se in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente daquilo que se reproduz.Passam por progressistas, e quem neles não participa, porreaccionário e provinciano. Semelhante crença é fomentada comtanto maior empenho quando os super-aparelhos, logo queper<strong>de</strong>m utilida<strong>de</strong>, ameaçam converter-se numa mau investimento.Mas como o seu <strong>de</strong>senvolvimento concerne <strong>de</strong> forma essencial aoque sob o liberalismo se chamava apresentação, e ao mesmotempo o seu peso esmaga o próprio produto, a que, ao fim e aocabo, o equipamento mecânico permanece externo, a a<strong>de</strong>quaçãodas necessida<strong>de</strong>s ao mesmo tem por consequência a morte daexigência material. O zelo fascinado com que se consome cadanovo procedimento não só gera indiferença para com otransmitido, mas também favorece o refugo estacionário e aidiotia calculada. Confirma o antigo kitsch em paráfrases semprenovas como haute nouveauté. Ao progresso técnico respon<strong>de</strong> oobstinado e estúpido <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nunca adquirir baratezas, <strong>de</strong> nãoficar <strong>de</strong> costas para o processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado, naplena indiferença quanto ao sentido do produzido. Em toda aparte a concorrência, o congestionamento, as filas <strong>de</strong> esperasubstituem a necessida<strong>de</strong> um tanto racional. Dificilmente menordo que a aversão para com uma composição radical ou <strong>de</strong>masiadomo<strong>de</strong>rna é a aversão para com um filme com apenas três mesesem cartaz, preferindo-se, seja a que preço for, o mais recente,embora em nada se distinga do anterior. Como os clientes dasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massas <strong>de</strong>sejam estar imediatamente em dia, nadapo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar escapar. Se o afeiçoado do século XIX assistiasomente a um acto da ópera, pela atitu<strong>de</strong> um tanto bárbara <strong>de</strong> nãopermitir que nenhum espectáculo pu<strong>de</strong>sse encurtar o seu jantar, abarbárie, entretanto, que ficou privada do recurso ao jantar, jánem sequer consegue saciar-se com a sua cultura. Todo oprograma se <strong>de</strong>ve seguir até ao fim, todo o best-seller se <strong>de</strong>ve ler,todo o filme se há-<strong>de</strong> presenciar, enquanto estiver na berra, nasprincipais salas. A abundância do que indiscriminadamente seconsome torna-se funesta. Impossibilita orientar-se nela, e assim76109


como nos monstruosos armazéns há que buscar um guia, tambéma população, afogada em ofertas, espera o seu.Leilão. - A técnica solta elimina o luxo, não porque concedao privilégio ao direito do homem, mas porque na elevação geraldo padrão amputa a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfação. O comboiorápido, que atravessa o continente em dois dias e três noites, é ummilagre, mas a viagem nele nada tem do extinto esplendor dotrain bleu. O que constituía o prazer <strong>de</strong> viajar, começando pelossinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida através da janela aberta, a atenta solicitu<strong>de</strong>dos que recebiam as gorjetas, o cerimonial da refeição, a sensaçãoconstante <strong>de</strong> gozar <strong>de</strong> um privilégio que nada tira a ninguém, tudo<strong>de</strong>sapareceu juntamente com a gente elegante que, antes dapartida, costumava passear pelos perrons, e que agora em vão sebusca nos halls dos mais distintos hotéis. O acto <strong>de</strong> dobrar asescadinhas do comboio significa, até para o passageiro doexpresso mais caro, que ele <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer como um prisioneiroàs múltiplas instruções da companhia. Esta <strong>de</strong>volve-lhe emserviços o valor exactamente calculado do seu dinheiro, mas nadase conce<strong>de</strong> que não esteja estabelecido como um direito mínimo.A quem ocorreria, conhecendo tais condições, fazer comoantigamente uma viagem com a sua amada <strong>de</strong> Paris a Nice? Não épossível, porém, libertar-se da suspeita <strong>de</strong> que o luxo dissi<strong>de</strong>nte,ruidosamente anunciado, tem sempre mesclado em si umelemento <strong>de</strong> arbitrarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> artificial ostentação. Deve antespermitir aos endinheirados, segundo a teoria <strong>de</strong> Veblen,<strong>de</strong>monstrar a si mesmos e aos outros o seu status, em vez <strong>de</strong>satisfazer as suas cada vez mais indiferenciadas necessida<strong>de</strong>s. Seo Cadillac ultrapassa o Chevrolet porque é mais caro, talsuperiorida<strong>de</strong> provém, diferentemente do velho Rolls Royce, <strong>de</strong>um plano geral estabelecido que, com astúcia, emprega alémmelhores cilindros, porcas e acessórios do que aqui, sem que oesquema básico do produto <strong>de</strong> massas se tenha alterado: seriamprecisas apenas umas ligeiras mudanças na produção paratransformar o Chevrolet num Cadillac. Assim corroído fica oluxo. Em plena fungibilida<strong>de</strong> geral, a felicida<strong>de</strong> assedia, semexcepção, o não fungível. Nenhum esforço da humanida<strong>de</strong>,77110


nenhum raciocínio formal po<strong>de</strong> impedir que o faustoso vestido <strong>de</strong>uma seja levado por vinte mil. Sob o capitalismo, a utopia doqualitativo - o que <strong>de</strong>vido à sua diferença e singularida<strong>de</strong> não seimiscui nas relações <strong>de</strong> troca dominantes - acoita-se no carácterfeiticista. Mas a promessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> ínsita no luxo pressupõe,por seu turno, o privilégio, a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> económica, isto é, asocieda<strong>de</strong> baseada na fungibilida<strong>de</strong>. Por isso, o próprioqualitativo converte-se num caso especial da quantificação, o nãofungível em fungível, o luxo em conforto e, por fim, numabugiganga sem sentido. Em semelhante círculo, o princípio doluxo sucumbiria ainda sem a tendência niveladora da socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> massas, acerca da qual os reaccionários sentimentalmente seindignam. A consistência íntima do luxo não é indiferente ao queacontece ao inútil mediante a sua total integração na esfera doútil. Os seus resíduos, incluindo objectos da maior qualida<strong>de</strong>, jáparecem lixo. As preciosida<strong>de</strong>s com que os mais ricos enchem assuas habitações anseiam, <strong>de</strong>samparadas, por um museu que,todavia, e como bem observa Valéry, mata o sentido da esculturae da pintura, que só a sua mãe, a arquitectura, colocava no seulugar. Mas imobilizadas nas casas daqueles a quem nada as une,lançam-lhes em rosto a forma <strong>de</strong> existência que a proprieda<strong>de</strong>privada, entretanto, lhes foi dando. Se as antiguida<strong>de</strong>s, com queos milionários <strong>de</strong>coravam as suas residências até à PrimeiraGuerra mundial, ainda tinham interesse, porque elevaram a sonhoa i<strong>de</strong>ia da vivenda burguesa - um sonho angustiado -, sem chegara fazê--la rebentar, as chinesices a que entretanto se chegousuportam mal o proprietário, que só se sente bem na luz e no arobstruídos pelo luxo. O novo luxo é um contra-senso, em que jásó po<strong>de</strong>m viver os falsos príncipes russos, indigitados como<strong>de</strong>coradores <strong>de</strong> interiores entre as pessoas <strong>de</strong> Hollywood. Aslinhas do gosto avançado convergem na ascese. A criança queantes se embriagava com rubis e esmeraldas na leitura das Mil eUma Noites interroga-se agora em que consiste a felicida<strong>de</strong> que aposse <strong>de</strong> tais pedras suscita, as quais nem sequer surgem <strong>de</strong>scritascomo meios <strong>de</strong> troca, mas como tesouros. Nesta pergunta entraem jogo toda a dialéctica da Ilustração. Esta é tão racional comoirracional: racional, enquanto dá pela idolatria, e irracional, aovirar-se contra o seu próprio objectivo, que só está presente on<strong>de</strong>não precisa <strong>de</strong> se comprovar perante nenhuma instância e,111


inclusive, perante nenhuma intenção: não há felicida<strong>de</strong> semfeiticismo. Mas, pouco a pouco, a céptica pergunta infantilesten<strong>de</strong>u-se a todo o luxo, e nem sequer o nu prazer sensorial está<strong>de</strong>la resguardado. Para o olho estético, que representa o inútilfrente ao útil, o estético, separado com violência dos fins, torna-seanti-estético, porque expressa violência: o luxo torna-sebrutalida<strong>de</strong>. Por fim, é absorvido pela servidão ou conservadonuma caricatura. O que no belo ainda floresce sob o horror ésarcasmo e odioso em si mesmo. Apesar <strong>de</strong> tudo, a sua efémerafigura participa na evitação do horror. Algo <strong>de</strong>ste paradoxo subjaza toda a arte; ele emerge hoje na asserção <strong>de</strong> que a arte aindaexiste. A i<strong>de</strong>ia arreigada do belo exige que ao mesmo tempo seafirme e se recuse a felicida<strong>de</strong>.Entre as montanhas. - O conto da 'Branca <strong>de</strong> Neve' exprimemelhor do que nenhum outro a melancolia. A sua imagem pura éa rainha que, através da janela, contempla a neve e <strong>de</strong>seja para asua filha a beleza viva e inanimada dos flocos, a sombria tristezado caixilho da janela, o sangue vermelho da sua picada; e, emseguida, morre no parto. O final feliz nada disso apaga. Como aconcessão significa a morte, a salvação permanece aparência.Pois a percepção profunda não acredita que <strong>de</strong>sperte a que, qualadormecida, jaz no sarcófago <strong>de</strong> cristal. O pedaço <strong>de</strong> maçãenvenenado, que lhe sai da garganta com as sacudi<strong>de</strong>las daviagem, muito mais do que um meio para o crime, não será oresto <strong>de</strong> uma vida negligenciada e proscrita, da qual ela sóverda<strong>de</strong>iramente se refaz quando já não se <strong>de</strong>ixa atrair porpérfidas ven<strong>de</strong>doras? E quão débil ressoa a felicida<strong>de</strong>: "Pareceubem a Branca <strong>de</strong> Neve e foi-se com ele". E não a <strong>de</strong>smente omaligno triunfo sobre a malda<strong>de</strong>. Por isso, uma voz nos diz,quando esperamos a salvação, que a esperança é vã; e todavia sóela, a impotente, é que nos permite respirar. Toda a contemplaçãojá só consegue reproduzir pacientemente a ambiguida<strong>de</strong> damelancolia em figuras e aproximações sempre novas. A verda<strong>de</strong> éinseparável da ilusão <strong>de</strong> que, das figuras da aparência, irrompaalguma vez, sem aparência, a salvação.78112


Intellectus sacrificium intellectus. - Supor que o pensar na<strong>de</strong>cadência das emoções <strong>de</strong>vido à crescente objectivida<strong>de</strong>beneficia estas, ou que simplesmente lhes é indiferente, é já em siuma expressão do processo <strong>de</strong> embotamento. A divisão social dotrabalho vira-se contra o homem, por mais que fomente orendimento aconselhável. As capacida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>senvolvidasmediante os efeitos recíprocos, diminuem quando entre si se<strong>de</strong>svinculam. O aforismo <strong>de</strong> Nietzsche - "O grau e o tipo <strong>de</strong>sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um homem chegam ao último pino do seuespírito" - é algo mais do que um simples facto psicológico.Porque as mais distantes objectivações do pensamento se nutremdos impulsos, ele <strong>de</strong>strói nestes a condição <strong>de</strong> si mesmo. Não é amemória inseparável do amor, que <strong>de</strong>seja conservar o que se<strong>de</strong>svanece? Não é cada movimento da fantasia gerado pelo <strong>de</strong>sejoque, ao <strong>de</strong>slocar os seus elementos, vai do existente para a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>?Não é, inclusive, a mais simples percepção mo<strong>de</strong>lada pelotemor frente ao percebido ou ao apetite do mesmo? Com aobjecti-vação do mundo, o sentido objectivo dos conhecimentosfoi-se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>ndo cada vez mais do fundo pulsional; oconhecimento fracassa também on<strong>de</strong> a sua realizaçãoobjectivadora permanece sobre o encanto dos <strong>de</strong>sejos. Mas se osimpulsos não se conservarem ao mesmo tempo no pensamento,que se subtrai a tal encantamento, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser matéria doconhecimento, e o pensamento, que mata o seu pai, o <strong>de</strong>sejo, éinvadido pela vingança da estupi<strong>de</strong>z. A memória, enquanto nãocalculável, versátil e irracional, é objecto <strong>de</strong> tabu. A subsequentedispneia intelectual, que se consuma na perda da dimensãohistórica da consciência, imediatamente reduz a apercep-çãosintética, que, segundo Kant, é inseparável da "reprodução naimaginação", do recordar. A fantasia, hoje atribuída ao recinto doinconsciente e proscrita no conhecimento como rudimento puerilincapaz <strong>de</strong> juízo, é a única que entre os objectos funda a relaçãoem que incondicionalmente se origina todo o juízo: se forexcluída, exorcisa-se ao mesmo tempo o juízo, o próprio acto doconhecimento. Mas a castração da percepção mediante a instância<strong>de</strong> controlo, que lhe nega toda a antecipação <strong>de</strong>sejante, impeleesta ao esquema da repetição impotente do já conhecido. O facto79113


<strong>de</strong> já não ser possível ver <strong>de</strong>semboca no sacrifício do intelecto.Assim como sob o <strong>de</strong>senfreado primado do processo da produçãose esvai o para quê da razão, ao ponto <strong>de</strong> esta se rebaixar aofeiticismo <strong>de</strong> si mesma e do po<strong>de</strong>r exterior, assim ela própria se<strong>de</strong>grada como instrumento e se assemelha aos seus funcionários,cujo aparelho mental só se presta ao objectivo <strong>de</strong> impedir opensar. Uma vez apagado o último vestígio emocional, do pensarresta apenas a tautologia absoluta. A razão inteiramente pura dosque se livraram por completo da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> "representar umobjecto sem a sua presença", convergirá para a purainconsciência, para a imbecilida<strong>de</strong> no sentido mais literal dapalavra, pois, medido pelo extravagante i<strong>de</strong>al realista do dadoisento <strong>de</strong> categorias, todo o conhecimento se revela falso, e certosó aquilo a que já nem sequer se po<strong>de</strong> aplicar a pergunta <strong>de</strong> se écerto ou falso. Que aqui se trata <strong>de</strong> tendências <strong>de</strong> amplapenetração mostra-se, passo a passo, na activida<strong>de</strong> científica, queintenta subjugar também os restos do mundo, ruínas in<strong>de</strong>fesas.Diagnóstico. - Que o mundo se converteu entretanto nosistema que os nacional-socialistas injustamente vituperaram nalaxa república <strong>de</strong> Weimar, manifesta-se na harmonia préestabelecidaentre as instituições e os que as servem.Silenciosamente, amadureceu uma humanida<strong>de</strong> que anseia pelacoacção e pela limitação que a absurda persistência do domíniolhe impõe. Mas esses homens, favorecidos pela organizaçãoobjectiva, usurparam pouco a pouco as funções que, em rigor,<strong>de</strong>viam introduzir a dissonância no seio da harmonia préestabelecida.Entre todos os motes registados encontra-se tambémeste: "a pressão produz uma contrapressão": se aquela ésuficientemente gran<strong>de</strong>, esta resvai-se, e a socieda<strong>de</strong> parecequerer prevenir consi<strong>de</strong>ravelmente a entropia mediante o mortalequilíbrio das tensões. A activida<strong>de</strong> científica tem a sua exactacorrespondência no tipo <strong>de</strong> espírito que põe em tensão: oscientistas já não precisam <strong>de</strong> exercer violência alguma sobre sipara se acreditarem como voluntários e zelosos controladores <strong>de</strong>si mesmos. Inclusive quando, fora da sua activida<strong>de</strong>, se revelamcomo seres totalmente humanos e racionais, no momento em que80114


pensam por obrigação profissional, ancilosam numa apáticaestupi<strong>de</strong>z. Mas, longe <strong>de</strong> ver na proibição <strong>de</strong> pensar algo hostil, oque os aspirantes ao cargo - e são-no todos os cientistas - sentemé alívio. Porque o pensar lhes traz uma responsabilida<strong>de</strong>subjectiva que os impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r à sua posição objectivano processo <strong>de</strong> produção, renunciam a fazê-lo, encolhem osombros e passam para o adversário. Do <strong>de</strong>sprazer <strong>de</strong> pensar brotaautomaticamente a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar: pessoas que semesforço encontram as mais refinadas objecções estatísticas quandose trata <strong>de</strong> sabotar algum conhecimento, mostram-se incapazes <strong>de</strong>fazer ex cathedra as mais simples predições. Fustigam aespeculação e matam nela o são sentido comum. Os maisinteligentes advertem o adoecimento da sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar,pois esta não entra em activida<strong>de</strong> universalmente, mas só nosórgãos cujos serviços eles ven<strong>de</strong>m. Alguns até esperam comreceio e vergonha que lhes façam admitir o seu <strong>de</strong>feito. Mas todoso acham publicamente elevado a mérito moral e vêem como selhes reconhece por um ascetismo científico que para eles não étal, mas o secreto perfil da sua <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>. O seu ressentimento ésocialmente racionalizado sob esta fórmula: pensar é acientífico.O mecanismo <strong>de</strong> controlo incrementou assim certas dimensões dasua força intelectiva até limites extremos. A estupi<strong>de</strong>z colectivados técnicos investigadores não é apenas ausência ou regressãodas suas capacida<strong>de</strong>s intelectuais, mas uma tumefacção da própriacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar que corrói esta com a sua própria força. Amalda<strong>de</strong> masoquista dos jovens intelectuais promana do caráctermaligno da sua enfermida<strong>de</strong>.Gran<strong>de</strong> e pequeno. - Entre as fatais transferências do âmbitoda planificação económica para o da teoria, que já não sediferencia do esboço do todo, encontra-se a crença naadministrabilida<strong>de</strong> do trabalho intelectual em função daquilo <strong>de</strong>que é necessário ou racional ocupar-se. Opina-se sobre a or<strong>de</strong>mdas priorida<strong>de</strong>s. Mas ao <strong>de</strong>spojar-se o pensamento do momentoda espontaneida<strong>de</strong>, é anulada a sua necessida<strong>de</strong>. O pensamentoreduz-se a disposições soltas, mutáveis. Assim como na economia<strong>de</strong> guerra se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre as priorida<strong>de</strong>s na distribuição das81115


matérias primas, na fabricação <strong>de</strong>ste ou daquele tipo <strong>de</strong>armamento, assim na construção <strong>de</strong> teorias se infiltra umahierarquia <strong>de</strong> coisas importantes, com vantagem para o que é <strong>de</strong>especial actualida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> particular relevância, e com adiamentoou indulgente tolerância do não principal, que só po<strong>de</strong> passarenquanto ornamento dos factos fundamentais, como finesse. Anoção do relevante estabelece-se segundo pontos <strong>de</strong> vista organizativos,e a do actual me<strong>de</strong>-se pela tendência objectiva maispo<strong>de</strong>rosa. A esquematização do importante e do acessóriosubscreve, quanto à forma, a or<strong>de</strong>m axiológica da praxisdominante, embora esta a contradiga no seu conteúdo. Nasorigens da filosofia progressista, em Bacon e Descartes, encontrasejá estabelecido o culto do importante. Mas, no fim <strong>de</strong> contas,ele revela algo <strong>de</strong> não livre, <strong>de</strong> regressivo. A importância po<strong>de</strong>ilustrá-la o cão que, durante o passeio, passa minutos inteiros afarejar em todos os sítios <strong>de</strong> modo atento, obstinado,enfadonhamente sério, para, no fim, fazer as suas necessida<strong>de</strong>s,escavar com as patas e seguir o seu caminho, como se nada setivesse passado. Em eras primitivas, disso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram a vida e amorte; após milénios <strong>de</strong> domesticação, tornou-se um ritual vão.Quem em tal não pensará ao ver uma entida<strong>de</strong> séria discutir sobrea premência dos problemas, antes <strong>de</strong> se dispor a equipa <strong>de</strong>colaboradores para a execução das tarefas cuidadosamente<strong>de</strong>lineadas e marcadas. Todo o importante tem algo <strong>de</strong>staanacrónica teimosia, e a sua fixação fascinada, a renúncia à autoreflexão,surge como critério do pensamento. Mas os gran<strong>de</strong>stemas nada mais são do que os odores primitivos que levam oanimal a <strong>de</strong>ter-se e, se possível, a produzi-los. Não quer isto dizerque se <strong>de</strong>va ignorar a hierarquia das priorida<strong>de</strong>s. Tal como a suatrivialida<strong>de</strong> reflecte a do sistema, também saturada está <strong>de</strong> toda aviolência e constrição do mesmo. O pensamento, porém, não <strong>de</strong>verepeti-la, mas diluí-la na reprodução. A divisão do mundo emcoisas principais e acessórias, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre serviu paraneutralizar os fenómenos fulcrais da mais extrema injustiça socialcomo simples excepções, há que secundá-la até ser convencida dasua própria inverda<strong>de</strong>. Ela própria, que tudo transforma emobjecto, tem <strong>de</strong> se converter em objecto do pensamento, em vez<strong>de</strong> o controlar. Os gran<strong>de</strong>s temas hão-<strong>de</strong> nele ainda apresentar-se,mas dificilmente <strong>de</strong> modo "temático" na acepção tradicional, só116


<strong>de</strong> forma fragmentária e excêntrica. A barbárie da gran<strong>de</strong>zaimediata permaneceu na filosofia como um legado parcial da suatêmpora aliança com administradores e matemáticos: o que nãoleva o selo <strong>de</strong> um inchado processo da história universal confia-seaos procedimentos das ciências positivas. A filosofia comporta-seentão como a má pintura, a qual imagina que a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaobra e a celebrida<strong>de</strong> por esta alcançada <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da dignida<strong>de</strong>dos objectos; um quadro da batalha <strong>de</strong> Leipzig valeria mais doque uma ca<strong>de</strong>ira em perspectiva transversal. A diferença entre omeio conceptual e o artístico em nada altera a má ingenuida<strong>de</strong>.Quando o processo <strong>de</strong> abstracção carrega toda a conceptualizaçãocom a ilusão da gran<strong>de</strong>za, preserva-se nele ao mesmo tempo,graças à reflexão e à visão clara, o antídoto: a autocrítica da razãoé a sua mais autêntica moral. O contrário <strong>de</strong>la, na fase recente <strong>de</strong>um pensamento que dispõe <strong>de</strong> si mesmo, nada mais é do que aeliminação do sujeito. O gesto do trabalho teórico, que dispõe dostemas segundo a sua importância, prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem trabalha. O<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um número cada vez menor <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>stécnicas bastará para o equipar suficientemente na realização dastarefas assinaladas. Mas a subjectivida<strong>de</strong> pensante é o que não sepo<strong>de</strong> integrar no círculo <strong>de</strong> tarefas heteronomamente imposto apartir <strong>de</strong> cima: aquela supera este só na medida em que não lhepertence, e assim a sua existência é o pressuposto <strong>de</strong> cada verda<strong>de</strong>objectivamente vinculante. A funcionalida<strong>de</strong> soberana, que na<strong>de</strong>terminação da verda<strong>de</strong> sacrifica o sujeito, rejeita ao mesmotempo a verda<strong>de</strong> e objectivida<strong>de</strong> em si mesmas.A dois passos. - O positivismo reduz ainda mais a distânciado pensamento à realida<strong>de</strong>, uma distância que já não é toleradapela própria realida<strong>de</strong>. Ao não preten<strong>de</strong>rem ser mais do que algoprovisório, simples abreviaturas do fáctico que eles subsumem,aos tímidos pensamentos esvai-se, juntamente com a autonomiaquanto à realida<strong>de</strong>, a força para a penetrar. Só na distância à vidatem lugar a do pensamento, que verda<strong>de</strong>iramente se insere na vidaempírica. Se o pensamento se refere aos factos e se move nacrítica dos mesmos, não menos se move graças à diferença queestabelece. Expressa assim que o que é nunca é totalmente como82117


ele o expressa. E-lhe essencial um momento <strong>de</strong> exagero, <strong>de</strong>trasbordamento das coisas, <strong>de</strong> libertação do peso do fáctico emvirtu<strong>de</strong> do qual, em vez <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r à simples reprodução do ser,o <strong>de</strong>termina <strong>de</strong> um modo ao mesmo tempo estrito e livre. Nistotodo o pensamento se assemelha ao jogo com que Hegel, nãomenos do que Nietzsche, comparou a obra do espírito. A vertentenão bárbara da filosofia radica na tácita consciência <strong>de</strong>sseelemento <strong>de</strong> irresponsabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong>, que mana dafugacida<strong>de</strong> do pensamento, que sempre se subtrai àquele quejulga. Semelhante excesso é censurado pelo espírito positivista eatribuído a um <strong>de</strong>svario. A diferença quanto aos factos converte--se em simples falsida<strong>de</strong>, o momento <strong>de</strong> jogo em luxo num mundoperante o qual as funções intelectuais <strong>de</strong>vem prestar contas <strong>de</strong>cada minuto no seu relógio registador. Mas logo que opensamento nega a sua insuprimível distância e preten<strong>de</strong><strong>de</strong>sculpar-se com mil argumentos subtis na exactidão literal,<strong>de</strong>sfigura-se. E se sai do plano do virtual, <strong>de</strong> uma antecipação quenenhum dado particular consegue plenamente cumular, se o quepreten<strong>de</strong> é, em suma, ser, em vez <strong>de</strong> interpretação, um simplesenunciado, tudo quanto enuncia se torna realmente falso. A suaapologética, inspirada pela insegurança e pela má consciência,<strong>de</strong>ixa-se refutar em todos os seus passos, comprovando a nãoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que ele repele e que, todavia, o constitui comopensamento. Se, pelo contrário, se <strong>de</strong>sculpasse na distância comoum privilégio, nada ganharia, mas proclamava duas classes <strong>de</strong>verda<strong>de</strong>, a dos factos e a dos conceitos. Isso dissolveria a verda<strong>de</strong>e <strong>de</strong>nunciaria ainda mais o pensamento. A distância não é umazona <strong>de</strong> segurança, mas um campo <strong>de</strong> tensões. Não se manifestatanto na míngua da pretensão <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> dos conceitos quanto na<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e na fragilida<strong>de</strong> do pensar. Em face do positivismo nãoé conveniente nem o ergotismo nem a presunção, mas a provateórico-cognoscitiva da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma coincidênciaentre o conceito e aquilo que o enche. A <strong>de</strong>manda da unificaçãodo dissemelhante não é o esforço sempre insatisfeito que, por fim,acha a sua compensação, mas algo ingénuo e inexperiente. O queo positivismo censura ao pensamento é algo que o pensamentomil vezes soube e esqueceu, e só neste saber e esquecer ele setornou pensamento. A distância do pensamento à realida<strong>de</strong> nadamais é do que o precipitado da História nos conceitos. Operar118


com estes sem distanciamento é, com tudo o que <strong>de</strong> resignação aípossa haver - ou talvez justamente por causa <strong>de</strong>la - coisa <strong>de</strong>crianças. Pois o pensamento <strong>de</strong>ve apontar mais além do seuobjecto, precisamente porque nunca o alcança; o positivismo éacrítico na sua esperança <strong>de</strong> o alcançar e ao imaginar que as suasvacilações se <strong>de</strong>vem apenas à escrupulosida<strong>de</strong>. O pensamento quetranscen<strong>de</strong> tem mais radicalmente em conta a sua própriainsuficiência do que o pensamento dirigido pelo aparelhocientífico <strong>de</strong> controlo. Extrapola a fim <strong>de</strong> superar, quase sempresem esperanças, o inevitável <strong>de</strong>masiado pouco mediante o<strong>de</strong>sproporcionado esforço do <strong>de</strong>masiado. O que à filosofia secensura como absolutismo ilegítimo, o seu cunho pretensamente<strong>de</strong>finitivo, brota justamente no abismo da relativida<strong>de</strong>. Osexageros da metafísica especulativa são cicatrizes doentendimento reflexivo, e só o in<strong>de</strong>monstrado <strong>de</strong>smascara a<strong>de</strong>monstração como tautologia. Pelo contrário, a preservaçãoimediata da relativida<strong>de</strong>, o limitativo, o que permanece numâmbito conceptual <strong>de</strong>marcado, subtrai-se, justamente por essacautela, à experiência do limite, pois pensar este e ultrapassá-lo éa mesma coisa, segundo a grandiosa visão <strong>de</strong> Hegel. Porconseguinte, os relativistas seriam os verda<strong>de</strong>iros - os mausabsolutistas, além dos burgueses, que querem certificar--se do seuconhecimento como <strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong>, para logo maiscompletamente a per<strong>de</strong>rem. Só a exigência do incondicionado, osalto por cima da sombra, po<strong>de</strong> fazer justiça ao relativo. Aoassumir assim a falsida<strong>de</strong>, ele chega ao limiar da verda<strong>de</strong> naconsciência concreta da condicionalida<strong>de</strong> do conhecimentohumano.Vice-presi<strong>de</strong>nte. - Conselho ao intelectual: não <strong>de</strong>ixes que terepresentem. A fungibilida<strong>de</strong> das obras e das pessoas e a crençadaí <strong>de</strong>rivada <strong>de</strong> que todos têm <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer tudo revelam-se noseio do estado vigente como grilhões. O i<strong>de</strong>al igualitário darepresentativida<strong>de</strong> é uma frau<strong>de</strong>, se não for sustentado peloprincípio da revogabilida<strong>de</strong> e da responsabilida<strong>de</strong> do rank andfile. O mais po<strong>de</strong>roso é justamente o que menos faz, o que mais sepo<strong>de</strong> encarregar daquele a que se <strong>de</strong>dica e sua vantagem arrecada.83119


Parece colectivismo e fica-se apenas pela <strong>de</strong>masiado boa opinião<strong>de</strong> si mesmo, pela exclusão do trabalho, graças à disposição dotrabalho alheio. Na produção material está solidamenteimplantada a substituibilida<strong>de</strong>. A quantificação dos processoslaborais diminui ten<strong>de</strong>ncialmente a diferença entre o encargo dodirector geral e o do empregado <strong>de</strong> uma estação <strong>de</strong> serviço. É umai<strong>de</strong>ologia miserável pensar que, nas actuais condições, para aadministração <strong>de</strong> um trust se requer mais inteligência, experiênciae preparação do que para ler um manómetro. Mas enquanto naprodução material há um apego tenaz a esta i<strong>de</strong>ologia, o espíritoda que lhe é contrária cai na submissão. Tal é a cada vez maisruinosa doutrina da universitas litterarum, da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todosna república das ciências, que não só faz <strong>de</strong> cada um controladordo outro, mas, além disso, <strong>de</strong>ve capacitá-lo para fazer igualmentebem o que o outro faz. A substituibilida<strong>de</strong> submete as i<strong>de</strong>ias aomesmo processo que a troca as coisas. É excluído o incumensurável.Mas como o pensamento tem, antes <strong>de</strong> mais, <strong>de</strong>criticar a omnímoda comensurabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>rivada da relação <strong>de</strong>troca, volta-se então, enquanto relação produtiva espiritual, contraa força produtiva. No plano material, a substituibilida<strong>de</strong> é o jápossível, e a insubstituibilida<strong>de</strong> é o pretexto que o impe<strong>de</strong>; nateoria, à qual cabe compreen<strong>de</strong>r este quid pro quo, asubstituibilida<strong>de</strong> ajuda o aparelho a prolongar-se ainda até on<strong>de</strong>resi<strong>de</strong> a sua oposição objectiva. Só a insubstituibilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riacontrabalançar a inserção do espírito na área do emprego. Aexigência, admitida como evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> que toda a realizaçãoespiritual se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar dominar por qualquer membroqualificado da organização faz do mais obtuso técnico científico amedida do espírito: on<strong>de</strong> iria ele buscar a capacida<strong>de</strong> para acrítica da sua própria tecnificação? A economia suscita assim anivelação <strong>de</strong> que, em seguida, se indigna com o gesto do "Agarra,que é ladrão!" A <strong>de</strong>manda da individualida<strong>de</strong> tem <strong>de</strong> se projectar<strong>de</strong> forma nova na época da sua liquidação. Quando o indivíduo,como todos os processos individualistas <strong>de</strong> produção, surgehistoricamente antiquado e na retaguarda da técnica, chega-lhe <strong>de</strong>novo, enquanto sentenciado, o momento <strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong>perante o vencedor. Pois só ele conserva, <strong>de</strong> um modo geralmentedistorcido, o vestígio daquilo que conce<strong>de</strong> o seu direito a toda atecnificação, e <strong>de</strong> que esta elimina, ao mesmo tempo, a120


consciência. Como o progresso <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado não se revelaimediatamente idêntico ao da humanida<strong>de</strong>, o seu oposto po<strong>de</strong> darapoio ao progresso. O lápis e a borracha <strong>de</strong> apagar são mais úteisao pensamento do que uma equipa <strong>de</strong> assistentes. Os que não<strong>de</strong>sejam votar-se plenamente ao individualismo da produçãoespiritual nem arrojar-se <strong>de</strong> cabeça ao colectivismo dasubstituibilida<strong>de</strong> igualitária e <strong>de</strong>sprezadora do homem estãoobrigados a um trabalho conjunto livre e solidário sob umacomum responsabilida<strong>de</strong>. Tudo o mais troca o espírito pelasformas do comércio e, finalmente, pelos seus interesses.Horário. - Poucas coisas distinguem tão profundamente omodo <strong>de</strong> vida, que correspon<strong>de</strong>ria ao intelectual, do do burguêscomo o facto <strong>de</strong> que aquele não reconhece a alternativa entre otrabalho e o prazer. O trabalho que - para ser justo com arealida<strong>de</strong> - não faz ao sujeito do mesmo o mal que <strong>de</strong>pois fará aoutro, é prazer ainda no esforço mais <strong>de</strong>sesperado. A liberda<strong>de</strong>por ele intentada é a mesma que a socieda<strong>de</strong> burguesa reserva sópara o <strong>de</strong>scanso, ao mesmo tempo que, mediante talregulamentação, a aniquila. Ao invés, para quem sabe daliberda<strong>de</strong>, todo o prazer que esta socieda<strong>de</strong> tolera é insuportável,e fora do seu trabalho, que <strong>de</strong>certo inclui o que os burgueses<strong>de</strong>ixam para o serão sob o nome <strong>de</strong> "cultura", não po<strong>de</strong> entregarsea nenhum prazer <strong>de</strong> substituição. Work while you work, playwhile you play - tal é uma das regras básicas da autodisciplinarepressiva. Os pais, para quem as boas notas que um filho traziapara casa eram uma questão <strong>de</strong> prestígio, não podiam tolerar queele lesse longamente pela noite <strong>de</strong>ntro ou, segundo o seuconceito, caísse no cansaço mental. Mas pela sua tolice falava ogénio da sua classe. A doutrina, apurada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Aristóteles, dojusto meio como a virtu<strong>de</strong> conforme à razão é, ao lado <strong>de</strong> outras,uma tentativa <strong>de</strong> fundamentar a classificação socialmentenecessária do homem por funções in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes entre si <strong>de</strong> modotão rígido que ninguém consiga passar <strong>de</strong> umas para outras nemlembrar-se do homem. Mas é tão difícil imaginar Nietzschesentado à mesa até às cinco horas, num escritório, em cujaantecâmara a secretária aten<strong>de</strong> o telefone, como jogando golfe84121


após o dia <strong>de</strong> trabalho. Sob a pressão da socieda<strong>de</strong>, só aengenhosa combinação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> e trabalho po<strong>de</strong> ainda <strong>de</strong>ixaraberto o caminho à genuína experiência. Esta tolera-se cada vezmenos. Até as chamadas profissões intelectuais surgem <strong>de</strong> todo<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> prazer pela sua semelhança com o comércio. Aatomização abre caminho não só entre os homens, mas tambémno próprio indivíduo, entre as suas esferas vitais. Nenhumasatisfação po<strong>de</strong> ser inerente ao trabalho que, aliás, per<strong>de</strong> a suamodéstia funcional na totalida<strong>de</strong> dos fins, nenhuma faísca dareflexão po<strong>de</strong> irromper durante o tempo livre, porque po<strong>de</strong>riasaltar para o mundo do trabalho e pô-lo em chamas. Embora otrabalho e o prazer, quanto à estrutura, se assemelhem cada vezmais, são ao mesmo tempo mais estritamente separados por meio<strong>de</strong> invisíveis linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação. De ambos foram igualmenteexcluídos o prazer e o espírito. Aqui como além, imperam aserieda<strong>de</strong> animal e a pseudo-activida<strong>de</strong>.Exame. - Quem, como se diz, se atém à praxis, e teminteresses a perseguir, planos a realizar, faz que as pessoas comque entra em contacto automaticamente se convertam em amigosou inimigos. Ao divisar como eles se ajustam aos seus propósitos,redu-los, por assim dizer, <strong>de</strong> antemão a objectos: utilizáveis uns,empecilhos os outros. Toda a opinião discrepante surge nosistema <strong>de</strong> referência dos fins já propostos, sem o qual nenhumapraxis emerge, como molesta oposição, como sabotagem, comointriga; e toda a a<strong>de</strong>são, e ainda que <strong>de</strong>rivasse do interesse maisvulgar, se torna estímulo, utilida<strong>de</strong>, cre<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> confe<strong>de</strong>ração.Surge assim um empobrecimento na relação com os outroshomens: a capacida<strong>de</strong> para ver os outros como tais e não comouma função da própria vonta<strong>de</strong>, mas sobretudo a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma oposição fecunda, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir além <strong>de</strong> si mesmomediante a assunção do contrário, atrofiam-se. Em seu lugarinstala-se o conhecimento judicioso dos homens para o qual, emúltima análise, o melhor é o menos mau e o pior não é o mais.Mas esta reacção, esquema <strong>de</strong> toda a administração e <strong>de</strong> toda a"política pessoal", por si só ten<strong>de</strong> já, antes <strong>de</strong> toda a formaçãopolítica da vonta<strong>de</strong> e <strong>de</strong> toda a fixação <strong>de</strong> rótulos, para o85122


fascismo. Quem do juízo sobre as aptidões faz uma coisa sua vêos julgados, por uma espécie <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> tecnológica, comoseus ou estranhos, como congéneres ou indivíduos <strong>de</strong> outraespécie, como seus cúmplices ou suas vítimas. O olharrigidamente inquisidor, enfeitiçante e enfeitiçado, que é próprio<strong>de</strong> todos os caudilhos do terror tem o seu mo<strong>de</strong>lo no olharavaliador do manager, que indica ao aspirante o seu lugar - cujorosto se ilumina <strong>de</strong> tal forma que implacavelmente se apagará naclarida<strong>de</strong> da utilida<strong>de</strong> prática, na obscurida<strong>de</strong> e no <strong>de</strong>scrédito dainépcia. O termo é o exame médico segundo a alternativa:<strong>de</strong>missão ou eliminação. A frase do Novo Testamento - "Quemnão é por mim é contra mim"- foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre pronunciada nocoração do anti-semitismo. A nota fundamental da dominaçãoconsiste em remeter para o campo inimigo todo aquele que, porquestão <strong>de</strong> simples diferença, não se i<strong>de</strong>ntifica com ela: não é emvão que catolicismo é uma palavra grega para a latina totalida<strong>de</strong> -que os nacional-socialistas realizaram. Significa a equivalência dodiferente, quer por "<strong>de</strong>svio" quer por raça, ao adverso. O nacionalismoalcançou assim a consciência histórica <strong>de</strong> si mesmo. CariSchmitt <strong>de</strong>finiu justamente a essência do político por meio dascategorias do amigo e do inimigo. A progressão para talconsciência implica a regressão para a conduta da criança que ouse sente bem ou sente medo. A redução a priori à relação amigo -inimigo é um dos fenómenos primordiais da nova antropologia. Aliberda<strong>de</strong> não consiste em escolher entre branco e preto, mas emescapar a toda a alternativa pré-estabelecida.Hãnschen klein 8 . - O intelectual, e até o filosoficamenteorientado, está <strong>de</strong>sligado da praxis material: a repugnânciaperante ela leva-o a ocupar-se das chamadas coisas espirituais.Mas a praxis material não é apenas o pressuposto da sua própriaexistência; constitui também a base do mundo com cuja crítica oseu trabalho coinci<strong>de</strong>. Se nada sabe da base, então aponta para ovazio. Encontra-se perante a alternativa <strong>de</strong> se informar ou <strong>de</strong>voltar as costas ao que <strong>de</strong>testa. Se se informa, faz violência a si868 Nome <strong>de</strong> uma canção infantilalemã, muito popular. (N. T.)123


mesmo, pensa contra os seus impulsos e expõe-se, aliás, ao perigo<strong>de</strong> se tornar ele próprio tão vulgar como aquilo <strong>de</strong> que se ocupa,pois a economia não tolera brinca<strong>de</strong>ira alguma, e quem quisercompreendê-la tem <strong>de</strong> pensar "economicamente". Mas se talomitir, hipostasia o seu espírito, configurado, no fim <strong>de</strong> contas,pela realida<strong>de</strong> económica, pela abstracta relação <strong>de</strong> troca, comoalgo absoluto, quando unicamente se po<strong>de</strong> constituir comoespírito na reflexão sobre a própria condi-cionalida<strong>de</strong>. O homemespiritual vê-se assim induzido a confundir <strong>de</strong> forma vã e<strong>de</strong>sconexa o reflexo com a coisa. A importância sim-ploriamentefalaz, tal como se atribui aos produtos do espírito na activida<strong>de</strong>cultural pública, apenas acrescenta mais pedras ao muro queimpe<strong>de</strong> o conhecimento da brutalida<strong>de</strong> económica. Isolar o espíritodos afazeres induz a ocupação espiritual à i<strong>de</strong>ologia cómoda.O dilema transmite-se às formas <strong>de</strong> comportamento intelectual aténas mais subtis das suas reacções. Só quem até certo ponto semantém puro tem suficiente aversão, fibra, liberda<strong>de</strong> emobilida<strong>de</strong> para se opor ao mundo; mas justamente em virtu<strong>de</strong> dailusão <strong>de</strong> pureza -pois vive como "terceira pessoa" - permite que omundo triunfe não só fora, mas inclusive no mais íntimo dos seuspensamentos. Quem conhece <strong>de</strong>masiado bem o mecanismo ten<strong>de</strong>a ignorá-lo; esvaiem-se-lhe as capacida<strong>de</strong>s para a diferença e,como ao outro o feiticismo da cultura, ameaça-o a recaída nabarbárie. Que os intelectuais sejam os beneficiados da másocieda<strong>de</strong> e ainda aqueles <strong>de</strong> cujo inútil trabalho social <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>em gran<strong>de</strong> medida a realização <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> emancipada dautilida<strong>de</strong>, não é uma contradição que tenha <strong>de</strong> aceitar <strong>de</strong> uma vezpor todas e, em seguida, irrelevante. Ele vive incessantemente daqualida<strong>de</strong> objectiva. O procedimento do intelectual é falso.Experimenta <strong>de</strong> uma maneira drástica como questão vital alamentável alternativa perante a qual o capitalismo tardio,dissimuladamente, coloca todos os seus <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes: tornar-seadulto ou permanecer na infância.Clube <strong>de</strong> luta. - Há um tipo <strong>de</strong> intelectuais que <strong>de</strong>ve suscitaruma <strong>de</strong>sconfiança tanto maior quanto mais cativa pela honra<strong>de</strong>zdo esforço, pela "serieda<strong>de</strong> intelectual" e, amiú<strong>de</strong>, também graças87124


ao temperado realismo. São os homens combativos que vivem empermanente luta consigo próprios, no meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões quecomprometem toda a sua pessoa. Mas as coisas não se passamassim <strong>de</strong> modo tão terrível. Para este jogo tão radical têm à suadisposição uma segura armadura, cujo emprego fácil <strong>de</strong>smente asua "luta com o anjo": basta folhear os livros do editor EugenDie<strong>de</strong>rich ou os <strong>de</strong> uma certa espécie <strong>de</strong> teólogos santarrõesemancipados. O vocabulário substancioso <strong>de</strong>sperta dúvidas sobrea equida<strong>de</strong> nesses combates que se organizam e resolvem naintimida<strong>de</strong>. As expressões foram todas buscar-se à guerra, aoperigo físico, à aniquilação, mas <strong>de</strong>screvem apenas processos <strong>de</strong>reflexão que em Kierkegaard ou em Nietzsche, por quem esteslutadores mostram predilecção, <strong>de</strong>viam estar ligados a umresultado mortal - o que não acontece com os seus resistentesseguidores, que tanto invocam o risco. Embora a si atribuam asublimação da luta pela existência como uma dupla honra, a daespiritualização e a da coragem, o momento <strong>de</strong> perigo éneutralizado pela interiorização e reduzido a ingrediente <strong>de</strong> umamundividência vaidosamente radical e nuclearmente sã. Perante omundo exterior está-se numa indiferente superiorida<strong>de</strong>, pois não étomado em consi<strong>de</strong>ração pela serieda<strong>de</strong> da <strong>de</strong>cisão; <strong>de</strong>ixa--seficar como está e, por fim, aceita-se. As expressões incontroladassão adornos reproduzíveis, como os cauris das ginastas com queos lutadores tanto gostam <strong>de</strong> se encontrar. A dança das espadasestá <strong>de</strong> antemão <strong>de</strong>cidida. É igual se vence o imperativo ou odireito do indivíduo - se o candidato consegue libertar-se da fépessoal em Deus ou se a recupera; se está perante o abismo do serou a comovente vivência do sentido: sempre se mantém em pé.Pois o po<strong>de</strong>r que dirige o conflito - o ethos da responsabilida<strong>de</strong> eda sincerida<strong>de</strong> - é sempre <strong>de</strong> índole autoritária, uma máscara doEstado. Se escolhem os valores reconhecidos, então tudo está emor<strong>de</strong>m. E se chegam a <strong>de</strong>terminações rebel<strong>de</strong>s, então respon<strong>de</strong>mtriunfantes à <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> homens vistosos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Emtodos os casos reconhecem, como bons filhos, as passagens quelhes podiam fazer contrair uma responsabilida<strong>de</strong>, e em cujo nomese iniciou, em rigor, todo o processo interno: o olhar sob o qualparecem lutar como dois estudantes revoltosos é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, oolhar severo. Nenhum combate sem árbitro: toda a rixa estáencenada pela socieda<strong>de</strong> no indivíduo entremetida, a qual ao125


mesmo tempo vigia o combate e nele participa. Triunfa <strong>de</strong> modotanto mais fatal quanto mais se lhe opõem os resultados: osclérigos e os mestres, cuja consciência os constrangia a confissões<strong>de</strong> visão do mundo que lhes criavam problemas com asautorida<strong>de</strong>s, sempre simpatizaram com a perseguição e com acontra--revolução. Assim como ao conflito autoconfírmado estáassociado um elemento <strong>de</strong>lirante, assim também no início dadinâmica do autotormento está a repressão. Eles <strong>de</strong>sdobram todaa sua activida<strong>de</strong> anímica só porque não lhes foi permitidoextravasar o <strong>de</strong>lírio e a raiva, e estão prontos a traduzir na acção aluta com o inimigo interior, pois, na sua opinião, no princípio eraa acção. O seu protótipo é Lutero, o inventor da interiorida<strong>de</strong>, queatirava o seu tinteiro à cabeça do <strong>de</strong>mónio incarnado, que nãoexiste, e visava já os camponeses e os Ju<strong>de</strong>us. Só o espírito<strong>de</strong>forme necessita do ódio a si mesmo para, com uma forçabraquial, manifestar o seu modo <strong>de</strong> ser espiritual, que é o dafalsida<strong>de</strong>.Palhaço Augusto. - Ainda se pensa com excessivo optimismoa plena e total liquidação do indivíduo. Na sua simples negação,na eliminação da mónada mediante a solidarieda<strong>de</strong>, estaria aomesmo tempo a salvação do ser individual, que só na sua relaçãoao geral se tornaria um particular. Muito longe disso está asituação actual. A <strong>de</strong>sgraça não sobrevêm como extinção radicaldo passado, mas quando o historicamente con<strong>de</strong>nado é arrastadocomo morto, neutralizado, impotente e <strong>de</strong>negrido <strong>de</strong> modoindigno. No meio das unida<strong>de</strong>s humanas estandardizadas eadministradas, o indivíduo persiste. Está até sob protecção eadquire valor <strong>de</strong> monopólio. Mas, na realida<strong>de</strong>, é ainda só afunção da sua própria singularida<strong>de</strong>, uma peça <strong>de</strong> exposição,como os fetos que outrora suscitavam o assombro ou o riso dascrianças. Como já não tem uma existência economicamentein<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, o seu carácter entra em contradição com o seupapel social objectivo. Justamente por causa <strong>de</strong> tal contradição, éprotegido num parque natural, <strong>de</strong>sfrutando <strong>de</strong> uma ociosacontemplação. Na América, às individualida<strong>de</strong>s importadas - que,em virtu<strong>de</strong> da importação, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser tais - dá-se-lhes o nome88126


<strong>de</strong> colorful personality. O seu temperamento marcadamenteimpulsivo, as suas faiscantes ocorrências, a sua "originalida<strong>de</strong>",embora consista apenas numa especial fealda<strong>de</strong>, e até a suaalgaraviada utilizam o humano como um traje <strong>de</strong> palhaço. Porestarem sujeitos ao mecanismo universal da concorrência e nãopo<strong>de</strong>rem moldar-se e ajustar--se ao mercado, excepto graças aoseu rígido ser-outro, agarram-se com paixão ao privilégio do seuSi mesmo e exce<strong>de</strong>m-se <strong>de</strong> tal modo que aniquilam <strong>de</strong> todo o quesão. Alar<strong>de</strong>iam astutamente a sua ingenuida<strong>de</strong> que, como<strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>scobrem, tanto agrada aos que ditam as normas.Ven<strong>de</strong>m-se como corações ar<strong>de</strong>ntes no seio da frieza comercial,sentem-se adulados <strong>de</strong>vido às suas graças agressivas, <strong>de</strong> que osseus protectores masoquisticamente <strong>de</strong>sfrutam, e rectificam com asua sarcástica falta <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> a séria dignida<strong>de</strong> do povo que osacolhe. De modo parecido se terão comportado os graeculi noimpério romano. Juízes <strong>de</strong> si mesmos, os que prostituem a suaindividualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bom grado aceitam a con<strong>de</strong>nação que asocieda<strong>de</strong> lhes impôs. Justificam assim, também objectivamente,a injustiça que pa<strong>de</strong>ceram. A regressão geral reduzem-na aoregredido privado, e até a sua sincera oposição é apenas, namaioria dos casos, um meio mais dissimulado <strong>de</strong> adaptação por<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>.Correio negro. - A quem não se <strong>de</strong>ve aconselhar, tambémnão se po<strong>de</strong> ajudar, diziam os burgueses; estes, com o conselho,que nada custa, dispensavam-se <strong>de</strong> prestar ajuda e, ao mesmotempo, obtinham po<strong>de</strong>r sobre o <strong>de</strong>svalido que a eles acudia. Mas,ao menos, latia ainda ali o apelo à razão, que no solicitador enaquele que nada concedia se apresentava como idêntica erecordava <strong>de</strong> longe a justiça: quem seguia o conselho sensatopodia, por vezes, encontrar uma saída. Isto acabou. Quem nãopo<strong>de</strong> ajudar também não <strong>de</strong>veria, pois, aconselhar: numa or<strong>de</strong>m,on<strong>de</strong> todas as ratoeiras estão tapadas, o simples conselhotransforma-se <strong>de</strong> imediato num juízo con<strong>de</strong>natório. De modoinevitável, leva a que quem pe<strong>de</strong> tenha <strong>de</strong> fazer aquilo a que maisenergicamente resiste - a única coisa que ainda lhe resta do seueu. Instruído por situações mil, sabe já tudo o que lhe po<strong>de</strong>m89127


aconselhar, e só vem quando esgotou toda a sensatez e algo <strong>de</strong>veacontecer. Nem assim se sente bem. Quem uma vez quis conselhoe já com nenhuma ajuda <strong>de</strong>para, o mais débil, no fim <strong>de</strong> contas,surge <strong>de</strong> antemão como um extorsionário, cujo modo <strong>de</strong> condutase difun<strong>de</strong>, <strong>de</strong> facto, imparavelmente com a cartelização. Tal po<strong>de</strong>observar-se <strong>de</strong> modo mais nítido num <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong>altruístas que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os interesses <strong>de</strong> amigos necessitados eimpotentes, mas em cujo zelo aceitam um obscuro elemento <strong>de</strong>coacção. Até a sua virtu<strong>de</strong> última, o <strong>de</strong>sinteresse, é ambígua. Enquantocom razão intervém a favor <strong>de</strong> quem não se <strong>de</strong>ve afundar,por trás do firme "<strong>de</strong>ves ajudar" oculta-se já o tácito apelo à prepotênciados grupos e colectivos com os quais já ninguém po<strong>de</strong>ter <strong>de</strong>savenças. Não conseguindo iludir os inclementes, oscompassivos convertem-se em mensageiros da inclemência.Instituição para surdos-mudos. - Enquanto as escolas treinamos homens no discurso, como também nos primeiros auxílios àsvítimas dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> tráfego e na construção <strong>de</strong> planadores, osinstruídos tornam-se cada vez mais mudos. Po<strong>de</strong>m darconferências, cada frase qualifica-os para o microfone diante doqual se postam como representantes da média, mas estanca-selhesa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falarem entre si. Esta supunha a experiênciadigna <strong>de</strong> se comunicar, a liberda<strong>de</strong> na expressão, a in<strong>de</strong>pendênciae, ao mesmo tempo, a relação. No sistema omni-abarcante, aconversação torna-se ventriloquismo. Cada um é o seu próprioCharlie McCarthy: daí a sua popularida<strong>de</strong>. As palavras, no seuconjunto, assemelham-se às fórmulas que outrora se reservavampara a saudação e a <strong>de</strong>spedida. Assim, uma jovem educada <strong>de</strong>harmonia com os mais recentes <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ratos <strong>de</strong>ve, em cadamomento, dizer o a<strong>de</strong>quado à "situação" correspon<strong>de</strong>nte; e paratal há instruções idóneas. Mas semelhante <strong>de</strong>terminismo dalinguagem mediante a adaptação é o seu fim: rompe-se a relaçãoentre a coisa e a expressão, e assim como os conceitos dospositivistas são meros bocados, os da humanida<strong>de</strong> positivistatransformaram-se literalmente em moedas. Às vozes dos falantesacontece o mesmo que, segundo o entendimento da psicologia, àsda consciência (moral), <strong>de</strong> cuja ressonância vive todo o discurso:90128


até na sua mais imperceptível cadência são substituídas por ummecanismo socialmente disposto. Logo que este <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>funcionar, surgem pausas, que não estavam previstas nos códigosnão escritos, segue-se o pânico. Todos se entregam, por isso, ajogos complicados e a outras ocupações <strong>de</strong> tempo livre para sedispensar do lastro <strong>de</strong> consciência inerente à linguagem. Mas asombra da angústia projecta-se fatalmente sobre o discurso queainda resta. A imparcialida<strong>de</strong> e o realismo na discussão <strong>de</strong>objectos <strong>de</strong>svanecem--se até no círculo mais estrito, tal como napolítica há muito que a discussão foi substituída pela palavra dopo<strong>de</strong>r. O falar adopta um gesto perverso. Faz-se <strong>de</strong>le um<strong>de</strong>sporto. Deseja-se alcançar as maiores pontuações: não háconversação em que não se insinue como um veneno a ocasião daaposta. Os afectos, que num diálogo dignamente humanocontavam no [tema] tratado, encaixam-se tenazmente no puro terrazão, fora <strong>de</strong> toda a relação com a relevância do que é dito. Mas,como meios do po<strong>de</strong>r, as palavras <strong>de</strong>sencantadas exercem umaforça mágica sobre quem as usa. Continuamente se po<strong>de</strong> observarque o dito numa ocasião, por mais absurdo, casual ou falso queseja, só porque uma vez foi dito tiraniza quem o disse <strong>de</strong> talmaneira que, como posse sua, lhe é impossível <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se<strong>de</strong>le. Palavras, números, termos, uma vez inventados e exteriorizados,tornam-se autónomos e trazem a <strong>de</strong>sgraça a tudo o queesteja perto. Criam uma zona <strong>de</strong> contágio paranóico, e necessitaseda razão inteira para quebrar o seu feitiço. A transformação daspalavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m políticas, grandiosas e nulas, em algo mágicoreproduz--se em privado, nos objectos aparentemente maisneutros: a rigi<strong>de</strong>z cadavérica da socieda<strong>de</strong> afecta ainda a célula daintimida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>la se julga protegida. Nada acontece àhumanida<strong>de</strong> só a partir <strong>de</strong> fora: o emu<strong>de</strong>cimento é o espíritoobjectivo.Vândalos. - O que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o aparecimento das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>sse observou como pressa, nervosismo e instabilida<strong>de</strong>, esten<strong>de</strong>-seagora <strong>de</strong> um modo epidémico, como outrora a peste ou a cólera.Emergem também forças, com que os apressados viajantes doséculo XIX nem sequer podiam sonhar. Todos <strong>de</strong>vem ter sempre91129


algo que fazer. O tempo livre há que aproveitá-lo. É planeado,assemelha-se a empreendimentos, enche-se com a visita <strong>de</strong> todasas organizações possíveis ou, sem mais, indo daqui para ali emrápidos movimentos. A sombra <strong>de</strong> tudo isto projecta-se notrabalho intelectual. Este <strong>de</strong>corre com má consciência, como sefosse algo roubado a alguma ocupação urgente, ainda que sóimaginária. Para se justificar diante <strong>de</strong> si mesmo, o intelectual fazo gesto da excitação, do sobre-esforço, da activida<strong>de</strong> contrarelógio,que impe<strong>de</strong> toda e qualquer reflexão, portanto, o seutrabalho intelectual. Amiú<strong>de</strong>, é como se os intelectuaisreservassem para a sua própria produção as horas que lhes sobramdas obrigações, das saídas, das nomeações e das inevitáveiscelebrações. É algo <strong>de</strong>testável, mas até certo ponto racional, oganho <strong>de</strong> prestígio <strong>de</strong> quem se po<strong>de</strong> apresentar como homem tãoimportante que lhe é forçoso estar em toda a parte. Ele estiliza asua vida com um <strong>de</strong>scontentamento intencionalmente malrepresentado como único acte <strong>de</strong> présence. A alegria com querecusa um convite alegando ter já aceite outro proclama o seutriunfo na concorrência. Como nesta, as formas do processo <strong>de</strong>produção repetem-se geralmente na vida privada ou nos âmbitosdo trabalho alheios a tais formas. A vida inteira <strong>de</strong>ve assemelharseà profissão e, mediante esta aparência, ocultar o que não estádirectamente consagrado ao ganho. Mas a angústia que aí seexpressa é só um reflexo <strong>de</strong> outra muito mais profunda. Osenervamentos inconscientes que, para lá dos processos dopensamento, regulam a existência individual segundo o ritmohistórico, discernem a crescente colectivização do mundo. Asocieda<strong>de</strong> integral, porém, não preserva em si <strong>de</strong> forma positivaos indivíduos, antes os comprime numa massa amorfa e maleável;por isso, cada indivíduo sente horror a este processo <strong>de</strong> absorçãoolhado como inevitável. Doing things and going places é umatentativa do sensorium <strong>de</strong> instaurar uma forma <strong>de</strong> protecção doestímulo contra a ameaçadora colectivização, <strong>de</strong> nela se exercitarcomportando-se, nas horas aparentemente reservadas à liberda<strong>de</strong>,como um membro da massa. A técnica consiste aqui em evitarquanto possível o risco. De certo modo, vive-se ainda pior - isto é,com menos eu - do que se <strong>de</strong>veria esperar viver. Ao mesmotempo, graças ao caprichoso excesso <strong>de</strong> tarefas, apren<strong>de</strong>-se que,<strong>de</strong> facto, não se revela a alguém mais difícil, mas sim mais fácil,130


viver sem eu. E sempre com muita pressa, pois num terramotonão há aviso. Se não se tem essa disposição, ou seja, se não seestá materialmente a nadar na torrente dos homens, surge o receio- como quando se entra <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong> num partido totalitário -<strong>de</strong> já não entrar e <strong>de</strong> atrair sobre si a vingança do colectivo. Apseudo-activida<strong>de</strong> é como um resseguro, expressão da disposiçãoà auto-renúncia, mediante a qual apenas se vislumbra apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantir a autoconser-vação. A segurançainsinua-se na adaptação à extrema insegurança. É como um salvoconduto que, na fuga, leva alguém mais <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong> um sítio paraoutro. Na paixão fanática pelos automóveis ressoa o sentimentodo <strong>de</strong>samparo físico. Subjacente a tudo isto está o que osburgueses costumavam, sem razão, chamar a fuga perante simesmo, perante o vazio interior. Quem acompanha na fuga nãopo<strong>de</strong> diferenciar-se. O próprio vazio psicológico é apenas oresultado da falsa absorção social. O tédio <strong>de</strong> que os homensfogem reflecte unicamente o processo <strong>de</strong> fuga a que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> hámuito, estão sujeitos. Só assim se mantém vivo, inchando cadavez mais, o monstruoso aparelho <strong>de</strong> distracção, sem que hajaalguém que aí encontre prazer. Ele canaliza o impulso para aparticipação que, <strong>de</strong> outro modo, se lançaria <strong>de</strong> maneiraindiscriminada e anárquica, como promiscuida<strong>de</strong> ou agressãoselvagem, sobre o colectivo que não consta <strong>de</strong> ninguém a não serdos que estão <strong>de</strong> passagem. Assemelham-se estes sobremaneiraaos drogados. O seu impulso reage exactamente à <strong>de</strong>slocação dahumanida<strong>de</strong>, tal como ela conduz do turvo esvaneci-mento dadiferença entre a cida<strong>de</strong> e o campo ao <strong>de</strong>saparecimento da casa, edos magotes <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados às <strong>de</strong>portações e àsdiásporas, no <strong>de</strong>vastado continente europeu. O nulo, o inane <strong>de</strong>todos os rituais colectivos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Jugendbewegung acaba por seexpressar como confusa antecipação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosos abaloshistóricos. As inumeráveis pessoas que, <strong>de</strong> repente, sucumbem àsua quantida<strong>de</strong> e mobilida<strong>de</strong> abstractas, caem no <strong>de</strong>lírio como sobo efeito <strong>de</strong> um estupefaciente, são os recrutas daVõlkerwan<strong>de</strong>rung em cujos espaços florestados a históriaburguesa se prepara para morrer.131


Livro <strong>de</strong> imagens sem imagens. - A tendência objectiva doIluminismo para suprimir o po<strong>de</strong>r das imagens sobre os homensnão correspon<strong>de</strong> a nenhum progresso subjectivo do pensamentoilustrado para a ausência <strong>de</strong> imagens. Enquanto a iconoclastiacontra as i<strong>de</strong>ias metafísicas proce<strong>de</strong> sem cessar à <strong>de</strong>molição dosconceitos outrora tidos por racionais - os conceitosverda<strong>de</strong>iramente pensados -, o pensamento solto pela Ilustração evacinado contra o pensamento dá lugar a uma segundafigurabilida<strong>de</strong>, obstinada e sem imagens. Em plena re<strong>de</strong> dasrelações, inteiramente abstractas já, dos homens entre si e com ascoisas, esfuma-se a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abstracção. A alienação dosdados inseridos em esquemas e classificações, isto é, a puraquantida<strong>de</strong> do material elaborado, que se tornou <strong>de</strong> todoincomensurável com o domínio da experiência humanaindividual, força incessantemente a uma arcaica retradução parasinais sensoriais. Os homenzinhos e as casinhas que, qualhieróglifos, figuram nas estatísticas po<strong>de</strong>rão, em cada casoparticular, parecer acessórios, meros recursos auxiliares. Mas nãoé em vão que se revelam tão parecidos com os inumeráveisreclames, com os estereótipos jornalísticos ou com as figuras <strong>de</strong>brinquedo. Prevalece neles a representação sobre o representado.A sua esmagadora, simplista e, por isso mesmo, falsainteligibilida<strong>de</strong> corrobora a ininteligibilida<strong>de</strong> dos própriosprocessos intelectuais, que não se po<strong>de</strong>m separar da sua falsida<strong>de</strong>- a subsunção cega e carente <strong>de</strong> conceito. As omnipresentesimagens não são tais, porque ao mesmo tempo apresentam eridicularizam o inteiramente geral, o termo médio, o mo<strong>de</strong>loestandardizado como coisa única, particular. O particular produzsesardonicamente a partir da eliminação do particular. A sua<strong>de</strong>manda sedimentou-se já em necessida<strong>de</strong>, e em toda a parte acultura <strong>de</strong> massas o multiplica segundo o mo<strong>de</strong>lo os funnies. AIlustração substitui o que antes era o espírito. Não é só porque oshomens já não po<strong>de</strong>m imaginar o que não se lhes mostra <strong>de</strong> formaesquematizada nem lhes entra pelos olhos; também o chiste, on<strong>de</strong>outrora a liberda<strong>de</strong> do espírito entrava em colisão com os factos eos fazia explodir, se transferiu para a Ilustração. As graçolas queenchem as revistas carecem, na sua maior parte, <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za e <strong>de</strong>92132


sentido. Não consistem noutra coisa a não ser no <strong>de</strong>safio ao olhopara lutar com a situação. Treinado como se está por inumeráveiscasos prece<strong>de</strong>ntes, importa ver "o que se passa" com mais rapi<strong>de</strong>zdo que com aquela com que acontecem os momentossignificativos da situação. O que tais imagens propõem, o que<strong>de</strong>pois fará o precavido espectador, é livrar-se <strong>de</strong> todo o sentidocomo <strong>de</strong> um lastro no <strong>de</strong>sgosto pela situação, na submissão semresistências ao oco predomínio das coisas. O chiste do presente éo suicídio da intenção. Quem o faz vê-se recompensado com aadmissão no colectivo dos que riem, e que têm, do seu lado, ascoisas cruéis. Se alguém quisesse compreen<strong>de</strong>r reflexivamentetais chistes atrasar-se-ia sem remédio relativamente ao tempo dascoisas abandonadas, que ainda na mais simples caricatura seagitam como nas perseguições, no final dos filmes <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhosanimados. Em face do progresso regressivo, a inteligênciatransforma-se <strong>de</strong> imediato em estupi<strong>de</strong>z. Ao pensamento não restaoutra compreensão a não ser o espanto perante o incompreensível.Assim como o olhar reflexivo, ao incidir no cartaz sorri<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>uma beleza <strong>de</strong> pasta <strong>de</strong>ntífrica, capta no seu amplo esgar a dor datortura, assim também em cada chiste, e mais ainda em cadarepresentação gráfica, se lhe <strong>de</strong>para a sentença <strong>de</strong> morte dosujeito, inscrita na vitória universal da razão subjectiva.Intenção e cópia. - O pseudo-realismo da indústria cultural, oseu estilo, não só necessita da fraudulenta organização dosmagnates do cinema e dos seus lacaios mas, sob as condiçõesimperantes da produção, assim o exige o próprio princípioestilístico do naturalismo. Se o cinema, <strong>de</strong> harmonia com aexigência <strong>de</strong> Zola, se ren<strong>de</strong>sse cegamente à representação da vidaquotidiana, algo inteiramente exequível com os meios dafotografia em movimento e do registo sonoro, o produto seria umquadro estranho ao que o público está habituado a ver, um quadrodifuso e sem ligação com o que lhe é exterior. O naturalismoradical que a técnica do cinema sugere dissolveria na superfícietoda a conexão <strong>de</strong> sentido e enredar-se-ia na mais extremacontradição com a realida<strong>de</strong> familiar. O filme ingressaria natorrente associativa <strong>de</strong> imagens e receberia a sua forma apenas da93133


sua pura construção imanente. Se, em contrapartida, se guia porconsi<strong>de</strong>rações comerciais, ou então por uma intenção objectiva,em vez <strong>de</strong> escolher as suas palavras e os seus gestos para que serefiram a uma i<strong>de</strong>ia que lhes dá sentido, tal tentativa, porventurainevitável, incorre numa igualmente inevitável contradição com opressuposto naturalista. A mínima <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> do reproduzido naliteratura naturalista ainda <strong>de</strong>ixava espaço para as intenções: naespessa trama da duplicação da realida<strong>de</strong> graças ao instrumentaltécnico do filme toda a intenção, mesmo que se trate <strong>de</strong> umaverda<strong>de</strong>, se transforma em mentira. A palavra, que <strong>de</strong>ve inculcarno ouvinte a personagem daquele que fala ou, inclusive, osignificado do todo, comparada com a literal fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> daimagem, soa "maturai". Justifica já o mundo como algoigualmente pleno <strong>de</strong> sentido, antes <strong>de</strong> se cometer a primeirafrau<strong>de</strong>, a primeira <strong>de</strong>formação. Ninguém assim fala, nenhumhomem assim se move, mas o filme constantemente incita a quetodos o façam. Cai-se num engano: o conformismo é a priorisuscitado pelo significar em si, seja qual for o significadoconcreto, enquanto só através do [acto <strong>de</strong>] significar se po<strong>de</strong>riaabalar o conformismo, a respeitosa significação do fáctico. Asverda<strong>de</strong>iras intenções só seriam possíveis renunciando à intenção.Que esta seja incompatível com o realismo, que a sua síntese setorne mentira, vê-se na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong>. Esta é ambígua.Refere--se indiferentemente à organização da coisa como tal ou àsua transmissão ao público. Mas tal ambiguida<strong>de</strong> não é aci<strong>de</strong>ntal.A clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>signa o ponto <strong>de</strong> indiferença entre a razão objectivae a comunicação. Nela está contidaa razão <strong>de</strong> que a formaobjectiva, a expressão realizada, se vire <strong>de</strong> si para fora <strong>de</strong> si efale, e a incongruência <strong>de</strong> que a forma se arruine pela inclusãonela do en<strong>de</strong>reçado. O trabalho artístico, também teórico, <strong>de</strong>verevelar-se superior ao inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tal duplicida<strong>de</strong>. Aconfiguração clara, por mais esotérica que seja, ce<strong>de</strong> ao consumo;a pouco clara é diletante, <strong>de</strong> harmonia com os seus critériosimanentes. A qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>-se segundo a profundida<strong>de</strong>, emque a criação incorpora em si a alternativa e, <strong>de</strong>sse modo, adomina.134


Drama político. - Em prol da extinção da arte fala a crescenteimpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar o histórico. Que não existanenhum drama suficiente sobre o fascismo não se <strong>de</strong>ve à míngua<strong>de</strong> talento, mas ao facto <strong>de</strong> o talento se atrofiar perante ainsolubilida<strong>de</strong> dos problemas mais prementes do poeta. Este tem<strong>de</strong> escolher entre dois princípios, ambos igualmente ina<strong>de</strong>quados:a psicologia e o infantilismo. Aquela, que com o tempo ficouesteticamente antiquada, utilizaram-na os criadores <strong>de</strong> maiorrelevo, e não sem má consciência, como um artifício a partir doqual o drama mo<strong>de</strong>rno começou a ver o seu objecto na política.No prólogo <strong>de</strong> Schiller ao seu Fiesco, lê-se: "Se é verda<strong>de</strong> que sóo sentimento <strong>de</strong>sperta o sentimento, o herói político, a meu ver,não <strong>de</strong>veria ser sujeito <strong>de</strong> teatro no mesmo grau em que <strong>de</strong>venegligenciar o homem, para ser o herói político. Não era intentomeu infundir na minha fábula o vivo ardor que nela domina comopuro produto do entusiasmo, mas, sim, <strong>de</strong>sfiar a fria e árida acçãopolítica a partir do coração humano e, <strong>de</strong>sse modo, estabelecer <strong>de</strong>novo uma ligação com o mesmo coração humano - enredar ohomem através da cabeça calculadora do político - e <strong>de</strong>rivar daintriga inventada situações para a humanida<strong>de</strong>. A minha relaçãocom o mundo burguês familiarizou--me mais com o coração doque com o gabinete, e talvez essa fragilida<strong>de</strong> política se tenhaconvertido numa virtu<strong>de</strong> poética." Dificilmente. O enlace dahistória alienada com o coração humano era já em Schiller umpretexto para justificar, <strong>de</strong> um modo humanamentecompreensível, a inumanida<strong>de</strong> da história, e foi dramaticamente<strong>de</strong>smentido sempre que a técnica associou o "homem" e a "cabeçacalculadora do político"; assim, no burlescamente aci<strong>de</strong>ntalassassinato <strong>de</strong> Leonor, pelo traidor da sua própria conspiração. Atendência para a reprivatização estética tira à arte o chão <strong>de</strong>baixodos pés, enquanto procura conservar o humanismo. As cabalasdas <strong>de</strong>masiado bem construídas peças <strong>de</strong> Schiller são impotentesconstruções auxiliares entre as paixões dos homens e a realida<strong>de</strong>social e política que lhes era incomensurável e, portanto, já nãointerpretável a partir <strong>de</strong> motivações humanas. Daí brotou, não hámuito, o empenho da pseudoliteratura biográfica em aproximarhumanamente as personagens célebres das pessoas chãs. Ao94135


mesmo impulso para a falsa humanização obe<strong>de</strong>ce a calculadareintrodução da trama, da acção como uma concor<strong>de</strong> ereproduzível conexão <strong>de</strong> sentido. Esta não conseguiria aguentarsea partir dos pressupostos do realismo fotográfico no cinema.Ao restaurá-la arbitrariamente, fica muito aquém das experiênciasdos gran<strong>de</strong>s romances, <strong>de</strong> que o filme parasitariamente vive; taisexperiências tinham o seu sentido justamente na dissolução daconexão <strong>de</strong> sentido.Mas se se fizer tábua rasa <strong>de</strong> tudo isso e se buscar a representaçãoda esfera política na sua abstracção e extra-humanida<strong>de</strong>,excluindo as sofísticas mediações do interior, o que se conseguenão é melhor. A essencial abstracção do que realmente acontece éque, em rigor, resiste à imagem estética. A fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>la fazer algosusceptível <strong>de</strong> expressão, o literato vê-se forçado a traduzi-la parauma espécie <strong>de</strong> linguagem infantil à base <strong>de</strong> arquétipos e, <strong>de</strong>ssemodo, a "evi<strong>de</strong>nciá-la" uma segunda vez - não já para a empatia,mas para as instâncias da visão interpretativa anteriores àconstituição da linguagem <strong>de</strong> que, inclusive, o teatro épico nãopo<strong>de</strong> prescindir. O apelo a tais instâncias sanciona já formalmentea dissolução do sujeito na socieda<strong>de</strong> colectiva. Neste trabalho <strong>de</strong>tradução, porém, o objecto dificilmente se revela menosfalsificado do que uma guerra <strong>de</strong> religião <strong>de</strong>duzida das privaçõeseróticas da rainha. É que os homens não são hoje tão infantiscomo a simplista dramaturgia, que renuncia a representá-los.Todavia, a economia política, cuja representação se propõe aquelacomo alternativa, é em princípio sempre a mesma, embora tãodiferenciada e evoluída em cada um dos seus momentos que sesubtrai à parábola esquemática. Apresentar os processos que têmlugar no seio da gran<strong>de</strong> indústria como os que ocorrem entretrapaceiros comerciantes <strong>de</strong> legumes só serve para provocar umshock momentâneo, e não para criar um drama dialéctico. Ailustração do capitalismo tardio através <strong>de</strong> quadros extraídos dorepertório cénico agrário ou criminal não põe em relevo, em todaa sua pureza, a disformida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> actual embuçada nosseus complicados fenómenos. A inadvertência dos fenómenos que<strong>de</strong>rivam da essência é que <strong>de</strong>forma tal essência. Interpretaingenuamente a tomada do po<strong>de</strong>r pelos fortes como umamaquinação <strong>de</strong> rackets à margem da socieda<strong>de</strong>, e não como um"voltar a si mesma" da socieda<strong>de</strong> em si. Mas a136


irrepresentabilida<strong>de</strong> do fascismo radica em que nele há tão poucaliberda<strong>de</strong> do sujeito como na sua observação. A absoluta falta <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> conhecer-se, mas não representar-se. Quando nosrelatos políticos aparece hoje a liberda<strong>de</strong> como motivo, este tem,como no louvor da resistência heróica, o rasgo envergonhado <strong>de</strong>uma promessa impossível. O <strong>de</strong>senlace está sempre traçado <strong>de</strong>antemão pela gran<strong>de</strong> política, e a própria liberda<strong>de</strong> surgei<strong>de</strong>ologicamente tingida, como discurso sobre a liberda<strong>de</strong> com assuas <strong>de</strong>clarações estereotipadas, e não mediante acçõeshumanamente comensuráveis. A pior maneira <strong>de</strong> salvar a arteapós a extinção do sujeito é dissecá-lo; e o único objecto hojedigno da arte, o puro inumano, subtrai-se a ela no seu excesso ena sua inumanida<strong>de</strong>.Surdina e bombo. - O gosto é o mais fiel sismógrafo daexperiência histórica. Como nenhuma outra faculda<strong>de</strong> é capaz <strong>de</strong>registar até o seu próprio comportamento. Reage contra si mesmoe i<strong>de</strong>ntifica-se como falta <strong>de</strong> gosto. Artistas que repugnam,chocam, porta-vozes <strong>de</strong> atrocida<strong>de</strong>s sem medida, <strong>de</strong>ixam-segovernar na sua idiossincrasia pelo gosto: o modo sereno e<strong>de</strong>licado, pelo contrário, o domínio dos neo-românticos nervosose sensíveis surge nos seus protagonistas tão bruto e insipientecomo o verso <strong>de</strong> Rilke: "A pobreza é um gran<strong>de</strong> fulgor que vem<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro..." O <strong>de</strong>licado estremecimento e o pathos da diferençasão apenas máscaras convencionais no culto da repressão. Para osnervos esteticamente evoluídos, a enfatuação estética tornou-seinsuportável. O indivíduo é tão acabadamente histórico queconsegue revoltar-se contra a fina fieira da sua organização tardoburguesa.Na aversão a todo o subjectivismo artístico, à expressãoe à inspiração, eriçam-se os cabelos perante a falta <strong>de</strong> tactohistórico, <strong>de</strong> um modo não diferente da anterior sublevação dosubjectivismo em face dos convenus burgueses. Mas a recusa damimese, íntima motivação da nova objectivida<strong>de</strong>, é mimética. Ojuízo sobre a expressão subjectiva não se emite a partir <strong>de</strong> fora, nareflexão político-social, mas nas reacções emocionais directas,cada uma das quais, obrigada a enver-gonhar-se à vista daindústria cultural, <strong>de</strong>svia o rosto da sua imagem reflectida. Em95137


primeiro lugar, está a proscrição do pathos erótico, da qual a<strong>de</strong>slocação dos acentos líricos não é menos testemunho do que asexualida<strong>de</strong> submetida a uma con<strong>de</strong>nação colectiva nos escritos<strong>de</strong> Kafka. Des<strong>de</strong> o expressionismo, a prostituta tornou-se na arteuma figura central, enquanto na realida<strong>de</strong> se extingue, porque sóna impudica po<strong>de</strong> o sexo adquirir forma, sem o pudor estético.Tais <strong>de</strong>slocações das reacções mais profundas levaram a que aarte <strong>de</strong>caísse na sua forma individualista, sem que fosse possívelenquanto colectiva. Na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e na in<strong>de</strong>pendência do artistaindividual é improce<strong>de</strong>nte aferrar-se firmemente à esfera doexpressivo e opor-se à coacção brutal da colectivização; por isso,ele, até nos mais íntimos compartimentos do seu isolamento eainda contra sua vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve aperceber-se <strong>de</strong>sta coerção, se nãoquiser permanecer na falsida<strong>de</strong> e na impotência <strong>de</strong> umahumanida<strong>de</strong> anacrónica por trás do inumano. Até o intransigenteexpressionismo literário, a lírica <strong>de</strong> Stramm e os dramas <strong>de</strong>Kokoschka mostram como reverso do seu autêntico radicalismoum aspecto ingénuo e liberalmente fi<strong>de</strong>digno. Mas o progressopara lá dos mesmos não é menos duvidoso. As obras <strong>de</strong> arte queconscientemente <strong>de</strong>sejam evitar a ingenuida<strong>de</strong> da subjectivida<strong>de</strong>absoluta preten<strong>de</strong>m assim uma comunida<strong>de</strong> positiva que nemsequer nelas próprias está presente, mas sim arbitrariamenteinvocada. Isso faz <strong>de</strong>las simples porta-vozes da fatalida<strong>de</strong> e<strong>de</strong>spojo da última ingenuida<strong>de</strong>, que as ab-roga. A aporia dotrabalho responsável favorece o trabalho irresponsável. Se algumavez se conseguisse eliminar <strong>de</strong> todo os nervos, o renascimento dolirismo seria incontível, e nem a frente popular que vai dofuturismo bárbaro à i<strong>de</strong>ologia do cinema se lhe po<strong>de</strong>ria já opor.Palácio <strong>de</strong> Jânus. - Se se fizesse a tentativa <strong>de</strong> acomodar osistema da indústria cultural nas gran<strong>de</strong>s perspectivas da históriauniversal, <strong>de</strong>veria ele <strong>de</strong>finir-se como a exploração planificada davelha ruptura entre os homens e a sua cultura. O duplo carácter doprogresso, que sempre <strong>de</strong>senvolveu o potencial da liberda<strong>de</strong> e arealida<strong>de</strong> da opressão, fez que os povos se or<strong>de</strong>nassem cada vezmais perfeitamente à dominação da natureza e à organização dasocieda<strong>de</strong>, mas fossem ao mesmo tempo, graças à coacção que a96138


cultura exercia, incapazes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r aquilo com que acultura traspassava tal integração. O humano, o mais imediato, oque representa o seu fito próprio frente ao mundo, tornou-se nacultura estranho aos homens. Estes fazem com o mundo causacomum contra si mesmos, e o mais alienado, a omnipresença dasmercadorias, a sua própria disposição como apêndices damaquinaria, convertem-se em imagem enganadora daimediatida<strong>de</strong>. As gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> arte e as gran<strong>de</strong>s construçõesfilosóficas não permaneceram incompreendidas pela suaexcessiva distância do núcleo da experiência humana, masjustamente pelo contrário, e a própria incompreensão po<strong>de</strong>ria,com facilida<strong>de</strong>, reduzir-se a uma bem manifesta compreensão: avergonha pela participação na injustiça universal, que seintensificaria se se permitisse o compreen<strong>de</strong>r. Por isso, os homensaferram-se a algo que, confirmando a figura mutilada da suaessência na lhanura da sua aparência, <strong>de</strong>les mofa. Desta inevitávelofuscação viveram parasitariamente em todas as épocas <strong>de</strong>civilização urbana os lacaios do estabelecido: a comédia áticatardia e a indústria da arte do helenismo caiem já <strong>de</strong>ntro do kitsch,sem dispor ainda da técnica da reprodução mecânica nem doaparelho industrial cujo protótipo parecem evocar directamente asruínas <strong>de</strong> Pompeia. Leiam-se os centenários romances <strong>de</strong>aventura, como os <strong>de</strong> Cooper, e en-contrar-se-á neles <strong>de</strong> formarudimentar o esquema inteiro <strong>de</strong> Hollywood. Provavelmente, aestagnação da indústria cultural não é o resultado da suamonopolização, mas foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, algo peculiar ao que sechama entretenimento. O kitsch é o sistema <strong>de</strong> invariantes comque a mentira filosófica reveste os seus festivos projectos. Nada aíse po<strong>de</strong> basicamente modificar, pois a indisciplina total dahumanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve por força convencer <strong>de</strong> que nada se po<strong>de</strong>modificar. Mas, enquanto a marcha da civilização se <strong>de</strong>senvolviasem plano e <strong>de</strong> modo anónimo, o espírito objectivo não eraconsciente do elemento bárbaro como necessariamente a eleinerente. Na ilusão <strong>de</strong> estar a fomentar a liberda<strong>de</strong>, quando o quefazia era facilitar a dominação, recusava pelo menos contribuirdirectamente para a sua reprodução. Proscreveu o kitsch que oacompanhava como sua sombra com um zelo que, na realida<strong>de</strong>,apenas expressava <strong>de</strong> outro modo a má consciência da altacultura, a qual julga não estar sob a dominação e <strong>de</strong> cuja139


<strong>de</strong>formida<strong>de</strong> o kitsch é um recordo. Hoje, quando a consciênciados dominadores começa a coincidir com a tendência geral dasocieda<strong>de</strong>, a tensão entre a cultura e o kitsch esvai-se. A cultura jáhá muito que não arrasta atrás <strong>de</strong> si, impotente, o seu <strong>de</strong>sprezadoadversário, mas toma-o sob a sua direcção. Ao administrar ahumanida<strong>de</strong> inteira, administra também o hiato entre humanida<strong>de</strong>e cultura. Com subjectiva soberania dispõe-se, com humor, até daru<strong>de</strong>za, da apatia e da limitação objectivamente impostas aossubmetidos. Nada caracteriza tão fielmente esta situação, aomesmo tempo integradora e antagónica, como a instalação dabarbárie. Mas, além disso, a vonta<strong>de</strong> dos que dispõem po<strong>de</strong> apelarpara a vonta<strong>de</strong> universal. A sua socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massas não obtémsó escória para os clientes; criou ainda os próprios clientes. Estestornaram-se famintos <strong>de</strong> cinema, <strong>de</strong> rádio e <strong>de</strong> revistas ilustradas;o que sempre os <strong>de</strong>ixou insatisfeitos mediante a or<strong>de</strong>m, que a elesvai buscar, sem dar, o que lhes promete, atiçou apenas o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>que o carcereiro <strong>de</strong>les se lembre e lhes ofereça pedras com a mãoesquerda para acalmar a sua fome, enquanto com a direita retém opão. Des<strong>de</strong> há um quarto <strong>de</strong> século os velhos burgueses, queainda <strong>de</strong>vem conhecer outras situações, acorrem sem resistência àindústria cultural, cujo perfeito cálculo inclui os coraçõesnecessitados. Não têm nenhum motivo para se indignar contra ajuventu<strong>de</strong> corrompida até à medula pelo fascismo. Os privados dasua subjectivida<strong>de</strong>, os culturalmente <strong>de</strong>serdados, são os legítimosher<strong>de</strong>iros da cultura.Mónada. - O indivíduo <strong>de</strong>ve a sua cristalização às formas daeconomia política, sobretudo ao mercado urbano. Até enquantoadverso à pressão da socialização é ele o seu mais autênticoproduto e a ela se assemelha. Esse rasgo <strong>de</strong> autonomia que lhepermite tal resistência dimana do interesse individualmonadológico e da sua sedimentação como carácter. Na suaindividuação, reflecte o indivíduo a lei social inexplícita da aindabem conduzida exploração. Quer isto também dizer que a sua<strong>de</strong>cadência na fase actual não <strong>de</strong>riva do indivíduo, mas datendência social, tal como toma corpo através da individuação, enão como um simples inimigo <strong>de</strong>sta. Eis o que separa a crítica97140


eaccionária da cultura da outra crítica. A crítica reaccionáriaconsegue, com bastante frequência, a compreensão da <strong>de</strong>cadênciada individualida<strong>de</strong> e da crise da socieda<strong>de</strong>, mas aresponsabilida<strong>de</strong> ontológica põe-na sobre o indivíduo em si comoin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e virado para <strong>de</strong>ntro: daí que a censura <strong>de</strong>superficialida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença, <strong>de</strong> insubstancialida<strong>de</strong> seja a últimapalavra que tem a dizer, e a conversão o seu consolo.Individualistas como Huxley e Jaspers con<strong>de</strong>nam o indivíduopelo seu vazio mecânico e pela sua <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> neurótica, mas osentido do seu juízo con<strong>de</strong>natório está mais perto <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>leuma vítima do que exercer a crítica do principium individuationisda socieda<strong>de</strong>. Como meia verda<strong>de</strong>, a sua polémica é já umafalsida<strong>de</strong> plena. Fala-se da socieda<strong>de</strong> como <strong>de</strong> uma imediataconvivência dos homens <strong>de</strong> cuja atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>riva o todo, em vez <strong>de</strong>a consi<strong>de</strong>rar como um sistema que não só os engloba e <strong>de</strong>formamas, além disso, alcança aquela humanida<strong>de</strong> que uma vez os<strong>de</strong>terminou como indivíduos. Na interpretação pan--humana <strong>de</strong>stasituação como tal, ainda se admite na acusação a crua realida<strong>de</strong>material, que religa o ser humano à inumanida<strong>de</strong>. Nos seusmelhores dias, a burguesia, ao reflectir historicamente, foi bemconsciente <strong>de</strong> tal entrosamento, e só <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a sua doutrina<strong>de</strong>generou em tenaz apologética frente ao socialismo a esqueceu.Entre os méritos da História da cultura grega <strong>de</strong> JakobBurckhardt, o menor não foi ter ele associado a extinção daindividualida<strong>de</strong> helenística à <strong>de</strong>cadência objectiva da polis, mastambém ao culto do indivíduo: "Des<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> Demóstenes e<strong>de</strong> Fócio, a cida<strong>de</strong> ficou surpreen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong>serta <strong>de</strong>personalida<strong>de</strong>s políticas, e não só <strong>de</strong>stas, pois já Epicuro, nascidoem 342 no seio <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> clérucos <strong>de</strong> origem ática emSamos, é o último ateniense universal" (3 a edição, tomo IV, p.515). A situação em que <strong>de</strong>saparece o indivíduo é a doindividualismo <strong>de</strong>senfreado, na qual "tudo é possível": "Agoraren<strong>de</strong>r-se-á culto sobretudo aos indivíduos, e não aos <strong>de</strong>uses"(ibid., p. 516). Que a libertação do indivíduo napolis abalada nãoreforça a resistência, mas a elimina e, com ela, a própriaindividualida<strong>de</strong>, como em seguida acontecerá nos Estados ditatoriais,constitui o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> uma das contradições centrais que,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, impelirão ao fascismo. A música <strong>de</strong>Beethoven, cujo cenário é constituído pelas formas socialmente141


transmitidas e que, asceticamente oposta à expressão dosentimento privado, <strong>de</strong>ixa ouvir o eco resolutamente orquestradoda luta social, extrai <strong>de</strong>sse ascetismo toda a plenitu<strong>de</strong> e força doindividual. A <strong>de</strong> Richard Strauss, inteiramente ao serviço dapretensão individual e votada à glorificação do indivíduo autosuficiente,reduz este a mero órgão receptivo do mercado, aimitador <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> estilos escolhidos fora <strong>de</strong> todo ocompromisso. Em plena socieda<strong>de</strong> repressiva, a emancipação doindivíduo não o beneficia, mas antes o prejudica. A liberda<strong>de</strong>perante a socieda<strong>de</strong> rouba-lhe a força <strong>de</strong> ser livre. Pois, por realque possa ser o indivíduo na sua relação com os outros,concebido como absoluto, é uma simples abstracção. Nele não háconteúdo algum que não esteja socialmente constituído, nemmovimento algum que prescinda da socieda<strong>de</strong>, que não estejaorientado <strong>de</strong> modo que a situação social o anule a ele. Até adoutrina cristã da morte e da imortalida<strong>de</strong>, na qual se funda aconcepção da individualida<strong>de</strong> absoluta, careceria inteiramente <strong>de</strong>valor, se não abrangesse toda a humanida<strong>de</strong>. O indivíduo queespera a imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um modo absoluto, e para si só, levariaem semelhante restrição o princípio <strong>de</strong> autoconservação a umabsurdo a que só, tirando-o da cabeça, se po<strong>de</strong> pôr freio.Socialmente consi<strong>de</strong>rada, a absolutização do indivíduo <strong>de</strong>nuncia apassagem da mediação universal da relação social, que, enquantotroca, exige ao mesmo tempo a restrição <strong>de</strong> cada interesseparticular nela realizado, à dominação imediata <strong>de</strong> que seapo<strong>de</strong>ram os mais fortes. Mediante a dissolução no indivíduo <strong>de</strong>todo o mediador, graças ao qual este pô<strong>de</strong> ser uma parte dosujeito social, ele empobrece-se, regri<strong>de</strong> ao estado <strong>de</strong> simplesobjecto social. Enquanto abstractamente realizado no sentidohegeliano, o indivíduo elimina-se a si mesmo: os inúmeros, quese conhecem apenas a si mesmos e ao seu <strong>de</strong>sembaraçado eerrabundo interesse, são os mesmos que capitulam logo que osarrebanham a organização e o terror. Se hoje parece persistir umvestígio do humano unicamente no indivíduo enquanto perece, talvestígio exorta a pôr termo à fatalida<strong>de</strong> que individua os homenssó para os po<strong>de</strong>r separar tanto mais perfeitamente no seuisolamento. O princípio <strong>de</strong> preservação revela-se, pois, ab-rogadono seu contrário.142


Testamento. - O pensamento dialéctico é a tentativa <strong>de</strong>romper o carácter coercivo da lógica com os meios <strong>de</strong>sta. Mas, aoter <strong>de</strong> se servir <strong>de</strong> tais meios, corre a cada momento o perigo <strong>de</strong>ele próprio sucumbir a esse carácter coercivo: a astúcia da razão écapaz <strong>de</strong> se impor ainda à dialéctica. O existente só po<strong>de</strong> superarsemediante o geral obtido a partir do próprio existente. O geraltriunfa sobre o existente graças ao seu próprio conceito, e é porisso que em semelhante triunfo o po<strong>de</strong>r do simplesmente existenteameaça sempre renascer da mesma violência que o quebrou. Noabsolutismo da negação, o movimento do pensamento, tal como oda historia, é conduzido <strong>de</strong> harmonia com o esquema da antíteseimanente <strong>de</strong> uma maneira unívoca, exclusiva, e com umapositivida<strong>de</strong> inexorável. Tudo é subsumido nas fases económicasessenciais, historicamente <strong>de</strong>terminantes na socieda<strong>de</strong> inteira, eno seu <strong>de</strong>senvolvimento: o pensamento na sua totalida<strong>de</strong> tem algodaquilo que os artistas parisienses chamam le genre chefd'oeuvre.Que a infelicida<strong>de</strong> é causada pelo rigor <strong>de</strong> tal<strong>de</strong>sfraldamento; que ele se encontra em ligação directa com adominação, é algo que na teoria crítica, pelo menos, não estáexplícito, pois é uma teoria que, como a tradicional, tambémespera a salvação através <strong>de</strong> um processo escalonado. O rigor e atotalida<strong>de</strong>, os i<strong>de</strong>ais, próprios do pensamento burguês, <strong>de</strong>necessida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong> reproduzem a fórmula da história,mas por isso mesmo a constituição da socieda<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nsa-se nosfixos e grandiosos conceitos contra os quais se dirigem a crítica ea prática dialécticas. Quando W. Benjamin falava <strong>de</strong> que, atéagora, a história foi escrita do ponto <strong>de</strong> vista do vencedor e queera preciso escrevê-la sob a perspectiva do vencido, <strong>de</strong>via teracrescentado que o conhecimento tem, sem dúvida, <strong>de</strong> reproduzira infeliz linearida<strong>de</strong> da sucessão <strong>de</strong> vitória e <strong>de</strong>rrota e, ao mesmotempo, virar-se para o que nesta dinâmica não interveio, ficando -por assim dizer - à beira do caminho os materiais <strong>de</strong> refugo e ospontos cegos que se subtraem à dialéctica. É constitutivo daessência do vencido parecer essencial, <strong>de</strong>slocado e grotesco nasua impotência. O que transcen<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> dominante não é sóa potencialida<strong>de</strong> por esta <strong>de</strong>senvolvida, mas também e em igualmedida o que não encaixa <strong>de</strong> todo nas leis do movimento98143


histórico. A teoria vê-se assim remetida para o oblíquo, o opaco,o inapreensível que, como tal, tem em si algo <strong>de</strong> anacrónico, masque não se <strong>de</strong>tém no antiquado, pois conseguiu iludir a dinâmicahistórica. Isto vê-se muito antes na arte. Livros infantis comoAlice in Won<strong>de</strong>rland ou Struwwelpeter, perante os quais apergunta pelo progresso ou pela reacção seria ridícula, contêmcifras da história incomparavelmente mais sugestivas do que ogran<strong>de</strong> teatro montado por Hebbel com a temática oficial da culpatrágica, a mudança dos tempos, o curso do mundo e o indivíduo, enas aborrecidas e insípidas obras para piano <strong>de</strong> Satie coruscamexperiências com as quais a continuação da escola <strong>de</strong> Schõnberg,por trás da qual se encontra todo o pathos da evolução musical,nem sequer po<strong>de</strong> sonhar. A grandiosida<strong>de</strong> das conclusões po<strong>de</strong>tomar, quando menos se pensa, o carácter do provinciano. Osescritos <strong>de</strong> Benjamin são a tentativa <strong>de</strong> tornar filosoficamentefecundo, por meio <strong>de</strong> focagens sempre novas, o não <strong>de</strong>terminadopelas gran<strong>de</strong>s intenções. O seu testamento consiste na tarefa <strong>de</strong>não <strong>de</strong>ixar que tal tentativa se fique apenas por estranhas imagensenigmáticas do pensamento e, mediante o conceito, <strong>de</strong> revelar o<strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> intenção: na intimação a pensar <strong>de</strong> forma aomesmo tempo dialéctica e não dialéctica.Prova do ouro. - Entre os conceitos em que se contrai amoral burguesa após a dissolução das suas normas religiosas e aformalização das suas normas autónomas, sobressai acima <strong>de</strong>todos a autenticida<strong>de</strong>. Quando já nada <strong>de</strong> obrigatório se po<strong>de</strong>exigir do homem, ao menos que este seja integramente o que é.Na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada indivíduo consigo mesmo, o postulado daverda<strong>de</strong> íntegra, bem como a glorificação do fáctico, é transpostodo conhecimento ilustrado para a ética. Coinci<strong>de</strong>m nisto ospensadores da burguesia tardia criticamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes efartos dos juízos tradicionais e das frases i<strong>de</strong>alistas. O veredicto<strong>de</strong> Ibsen, aliás parcial, sobre a mentira da vida e a doutrinaexistencial <strong>de</strong> Kierkegaard fizeram do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> oelemento essencial da metafísica. Na análise <strong>de</strong> Nietszche, apalavra 'autêntico' surge já como algo inquestionável, dispensadodo trabalho do conceito. Nos confessos e inconfessos filósofos do99144


fascismo, valores como a autenticida<strong>de</strong>, a perseverança heróica na"<strong>de</strong>jecção" da existência individual ou na situação-limite acabampor se converter num meio para usurpar opathos religioso--autoritário, sem qualquer conteúdo religioso. Isso incita à<strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> tudo o que não é assaz substancial, do que não é <strong>de</strong>boa cepa, por fim, dos Ju<strong>de</strong>us: já Richard Wagner pusera em jogoa autêntica maneira alemã contra a bagatela latina, <strong>de</strong>svirtuandoassim a crítica no mercado cultural para fazer a apologia dabarbárie. Mas tal utilização falsa não é alheia ao conceito daautenticida<strong>de</strong>. Vendida a sua gasta vestimenta, surgem remendose partes <strong>de</strong>feituosas que já existiam embora invisíveis, nosgran<strong>de</strong>s dias da oposição. A inverda<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> no próprio substratoda autenticida<strong>de</strong>, no indivíduo. Se no principium individuationisse oculta a lei do curso do mundo, como reconheceram à uma osdois antípodas Hegel e Schopenhauer, a intuição dasubstancialida<strong>de</strong> última e absoluta do eu é vítima <strong>de</strong> uma ilusãoque protege a or<strong>de</strong>m existente, enquanto rui a sua essência. Éinsustentável a equiparação <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Aserena auto-reflexão - aquele modo <strong>de</strong> comportamento queNietzsche chamava psicologia -, a insistência na verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> simesmo, produz sempre o resultado, já nas primeiras experiênciasconfiantes da infância, <strong>de</strong> que os actos, sobre os quais se reflecte,não são <strong>de</strong> todo "autênticos", contêm sempre algo <strong>de</strong> imitação, <strong>de</strong>jogo, <strong>de</strong> querer ser outro. A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar aoincondicionalmente firme, ao ser do ente, mediante uma imersãona própria individualida<strong>de</strong> em vez <strong>de</strong> chegar a um conhecimentosocial da mesma, leva àquela má infinitu<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>Kierkegaard, terá <strong>de</strong> exorcizar o conceito <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>.Ninguém expressou isto tão <strong>de</strong>scaradamente como Schopenhauer.O atrabiliário precursor da filosofia existencial e maliciosoher<strong>de</strong>iro da gran<strong>de</strong> especulação foi um magnífico conhecedor dosfossos e abismos do absolutismo individual. A sua visão estáassociada à tese especulativa <strong>de</strong> que o indivíduo é só fenómeno,não coisa em si. "Todo o indivíduo - diz-se numa nota do quartolivro <strong>de</strong> O mundo como vonta<strong>de</strong> e representação - é, por um lado,o sujeito do conhecimento, isto é, uma condição integrante dapossibilida<strong>de</strong> do mundo objectivo e, por outro, fenómenoindividual da vonta<strong>de</strong>, da mesma, que se objectiva em todas ascoisas. Mas esta duplicida<strong>de</strong> do nosso ser não assenta numa145


unida<strong>de</strong> existente por si mesma: se assim fosse, po<strong>de</strong>ríamoschegar á consciência <strong>de</strong> nós mesmos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dosobjectos do querer e do conhecer - o que nos é impossível, poislogo que tentamos entrar em nós e pensar-nos <strong>de</strong> modo pleno,orientando o conhecer para o interior, per<strong>de</strong>mo-nos num vaziosem fundo, <strong>de</strong>scobrimo-nos semelhantes a uma esfera oca <strong>de</strong>cristal na qual ressoa uma voz cuja origem não resi<strong>de</strong> lá <strong>de</strong>ntro e,ao tentarmos assim apreen<strong>de</strong>r-nos a nós mesmos, <strong>de</strong>paramos,estarrecidos, com um fantasma sem consistência" (Grossherzog-Wilhelm-Ernst-Ausgabe, I , pp. 371 e s.). Ele patenteou assim ocarácter mítico do puro ego, a sua nulida<strong>de</strong>. Este é umaabstracção. O que surge como entida<strong>de</strong> originária, como mónada,é só o resultado <strong>de</strong> uma separação social do processo social.Como absoluto, o indivíduo é mera forma reflexa das relações <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong>. Eleva-se nele a pretensão fictícia <strong>de</strong> que o unobiológico prece<strong>de</strong>, quanto ao sentido, o todo social, <strong>de</strong> que só aviolência o isola e cuja contingência passa por medida daverda<strong>de</strong>. O eu não está apenas en<strong>de</strong>ntado na socieda<strong>de</strong>; <strong>de</strong>ve aesta, na acepção mais literal, a sua existência. Todo o seuconteúdo promana <strong>de</strong>la ou, concretamente, da relação ao objecto.Torna-se tanto mais rico quanto mais livremente nela se <strong>de</strong>sfraldareflectindo-a, ao passo que a <strong>de</strong>limitação e a solidificação, que oindivíduo exige como sua origem, o limitam, o empobrecem e oreduzem. Tentativas como a <strong>de</strong> Kierke-gaard <strong>de</strong> obter a plenitu<strong>de</strong>do indivíduo no insulamento <strong>de</strong>ste em si mesmo acabam por<strong>de</strong>sembocar no sacrifício do indivíduo e na mesma abstracção,que ele difamava nos sistemas i<strong>de</strong>alistas. A autenticida<strong>de</strong> éunicamente o obstinado e altaneiro encastelamento na formamonadológica a que a opressão social força o homem. Quem nãoquer murchar prefere levar o estigma do inautêntico. Vive entãoda herança mimética. O humano aferra-se à imitação: um homemtorna-se verda<strong>de</strong>iramente homem só quando imita os outroshomens. Neste comportamento, forma primigénia do amor,cheiram os sacerdotes da autenticida<strong>de</strong> vestígios da utopia quepo<strong>de</strong>ria abalar a estrutura da dominação. Que Nietzsche, cujareflexão se a<strong>de</strong>ntrou pelo conceito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, se <strong>de</strong>tivessedogmaticamente no conceito <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> é algo que otransforma na última coisa que <strong>de</strong>sejaria ser, num luterano, e asua animosida<strong>de</strong> contra o histrionismo é do mesmo cunho que o146


anti-semitismo que, no arqui-histrião Wagner, chegava a subleválo.A Wagner não se lhe <strong>de</strong>veria censurar o histrionismo - poistoda a arte, e <strong>de</strong> um modo saliente a música, é afim àrepresentação, e em todos os períodos <strong>de</strong> Nietzsche ressoa o ecomilenário das vozes retóricas do senado romano -, mas a negaçãodo histrionismo por parte do actor. Mais ainda, o inautêntico quealar<strong>de</strong>ia um conteúdo genuíno não consistiria primariamente emtrasladar-se para a mentira; o autêntico em si é que se transformaem mentira, logo que se torna autêntico, isto é, na reflexão <strong>de</strong> simesmo, na sua posição como autêntico, em que já ultrapassa aautenticida<strong>de</strong> que no mesmo instante afirma. Não se <strong>de</strong>veria falardo Si mesmo como do fundamento ontológico mas, <strong>de</strong> qualquermodo, apenas teológico - em nome da semelhança <strong>de</strong> Deus.Quem liberto dos conceitos teológicos se aferra ainda ao Simesmo contribui para a justificação do diabolicamente positivo,do frio interesse. Empresta-lhe a aura do sentido, faz do mandatoda razão em si mesma preservada uma avantajada superstrutura,enquanto no mundo o Si mesmo real se converteu no queSchopenhauer viu que se transformava, ao abismar-se em simesmo: em espectro. O seu carácter ilusório po<strong>de</strong> observar-se nasimplicações históricas do conceito <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong> como tal. Aele subjaz a i<strong>de</strong>ia da supremacia da origem sobre o <strong>de</strong>rivado. Masesta representação está sempre associada ao legitimismo social.Todas as camadas dominantes, instaladas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os temposantigos, preten<strong>de</strong>m ser autónomas. Toda a filosofia dainteriorida<strong>de</strong>, com a presunção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo do mundo, é a últimasublimação da brutalida<strong>de</strong> bárbara, no sentido <strong>de</strong> que quem estavaprimeiro é quem tem mais direito, e a priorida<strong>de</strong> do Si mesmo étão falsa como a <strong>de</strong> todos os que fazem <strong>de</strong> si a sua casa. Nadaaqui se altera quando a autenticida<strong>de</strong> se refugia na oposiçãophysey-thesei, no argumento <strong>de</strong> que o que existe sem intervençãohumana é melhor do que o artificial. Quanto mais espessamente omundo é coberto pela re<strong>de</strong> do que é feito pelos homens, tantomais convulsamente os responsáveis por isso acentuam a suanaturalida<strong>de</strong> e primitivida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>scoberta da autenticida<strong>de</strong> qualúltimo baluarte da ética individualista é um reflexo da produçãoindustrial em massa. Só quando incontáveis bens estandardizadosfingem, em prol do benefício, ser algo único, se constitui comoantítese, mas seguindo os mesmos critérios, a i<strong>de</strong>ia do não147


eproduzível como o genuinamente autêntico. Antes, a questão daautenticida<strong>de</strong> em face das criações do espírito levantava-se tãopouco como a da originalida<strong>de</strong>, ainda <strong>de</strong>sconhecida para a época<strong>de</strong> Bach. O engano da autenticida<strong>de</strong> tem a sua origem naofuscação burguesa causada pelo processo <strong>de</strong> troca. O autêntico, aque se reduzem as mercadorias e outros meios <strong>de</strong> troca, adquire ovalor do ouro. Mas como o ouro, a autenticida<strong>de</strong> abstraída do seupadrão converte-se em feitiço. Ambos são tratados como sefossem o substrato, quando na realida<strong>de</strong> são apenas uma relaçãosocial, ao passo que o ouro e a autenticida<strong>de</strong> são justamente aexpressão da fungibilida<strong>de</strong>, da comparabilida<strong>de</strong> das coisas; nãosão, pois, em si, mas por outro. A inautenticida<strong>de</strong> do autêntico<strong>de</strong>ve-se, por conseguinte, a que na socieda<strong>de</strong> dominada pela trocao autêntico preten<strong>de</strong> ser aquilo que substitui, não po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>modo algum sê-lo. Os apóstolos da autenticida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r, queimpele à circulação, bailam, nos funerais <strong>de</strong>sta, a dança do véu dodinheiro.100Sur l' eau. - À pergunta pelo objectivo da socieda<strong>de</strong>emancipada recebem-se respostas como a realização daspossibilida<strong>de</strong>s humanas ou o enriquecimento da vida. Tãoilegítima a inevitável pergunta quão inevitável a repulsa e otriunfo da resposta, que faz recordar o i<strong>de</strong>al social<strong>de</strong>mocrata <strong>de</strong>personalida<strong>de</strong> dos barbudos naturalistas dos anos noventa, quequeriam gozar a vida. O <strong>de</strong>licado seria assim o mais grosseiro:que ninguém passe fome. Para um estado que se <strong>de</strong>fine em termosdas necessida<strong>de</strong>s humanas, tudo o mais fica do lado <strong>de</strong> umaconduta humana conformada ao mo<strong>de</strong>lo da produção como fimem si. No i<strong>de</strong>al do homem liberto, cheio <strong>de</strong> força, criativo,infiltrou-se o feiticismo da mercadoria que, na socieda<strong>de</strong>burguesa, traz consigo a inibição, a impotência, a esterilida<strong>de</strong> dosempre igual. O conceito <strong>de</strong> dinamismo, complementar da"anistoricida<strong>de</strong>" burguesa, é elevado ao absoluto quando, comoreflexo antropológico das leis da produção, teria na socieda<strong>de</strong>emancipada <strong>de</strong> se confrontar criticamente com as necessida<strong>de</strong>s. Ai<strong>de</strong>ia da activida<strong>de</strong> sem ré<strong>de</strong>as, do fazer ininterrupto, darechonchuda insaciabilida<strong>de</strong>, da liberda<strong>de</strong> como efervescência148


nutre-se do conceito burguês <strong>de</strong> natureza, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre sóserviu para proclamar a violência social como algo imodificável,como um elemento <strong>de</strong> sadia perenida<strong>de</strong>. Neste estado, e não napretensa igualação, se <strong>de</strong>tiveram os projectos positivos dosocialismo, a que Marx resistiu: na barbárie. De recear não é oenervamento da humanida<strong>de</strong> na vida folgada, mas o <strong>de</strong>soladoprolongamento do social embuçado na mãe natureza, acolectivida<strong>de</strong> enquanto cego furor do fazer. A ingenuamentesuposta univocida<strong>de</strong> da tendência evolutiva para o incremento daprodução é também uma parte da cultura burguesa, que admiteapenas o <strong>de</strong>senvolvimento numa só direcção, porque ela, comototalida<strong>de</strong> fechada, é dominada pela quantificação hostil àdiferença qualitativa. Se se conceber a socieda<strong>de</strong> emancipadacomo emancipação <strong>de</strong> semelhante totalida<strong>de</strong>, tornam-se entãovisíveis umas linhas <strong>de</strong> fuga que pouco têm a ver com oincremento da produção e com o seu reflexo nos homens. Se aspessoas <strong>de</strong>sinibidas não são as mais agradáveis, nem sequer asmais livres, bem po<strong>de</strong>ria então a socieda<strong>de</strong> liberta das suasca<strong>de</strong>ias dar-se conta <strong>de</strong> que as forças produtivas não revelam osubstrato último do homem, mas a sua figura historicamenterecortada para a produção <strong>de</strong> mercadorias. Talvez a verda<strong>de</strong>irasocieda<strong>de</strong> chegue a fartar-se do <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>ixe, porpura liberda<strong>de</strong>, sem aproveitar algumas possibilida<strong>de</strong>s, em vez <strong>de</strong>preten<strong>de</strong>r alcançar, com ímpeto <strong>de</strong>svairado, estrelas<strong>de</strong>sconhecidas. Para uma humanida<strong>de</strong>, que já não conheça anecessida<strong>de</strong>, amanhece algo do <strong>de</strong>lírio e da futilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas asorganizações até então concebidas para fugir à necessida<strong>de</strong>, e quereproduziam, engran<strong>de</strong>cida, a necessida<strong>de</strong> juntamente com ariqueza. A própria fruição seria afectada, tal como o seu esquemaactual não se po<strong>de</strong> separar da laboriosida<strong>de</strong>, da planificação, daarbitrarieda<strong>de</strong> e da submissão. Rien faire comme une bête, flutuarna água e olhar pacatamente para o céu, "nada mais ser, sem outra<strong>de</strong>terminação ou plenitu<strong>de</strong>" 9 , po<strong>de</strong>ria substituir o processo, ofazer, o cumprir, tornando assim efectiva a promessa da lógicadialéctica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembocar na sua origem. Nenhum entre osconceitos abstractos está tão próximo da utopia realizada como oda paz perpétua. Espectadores do progresso como Maupassant e9 Hegel, Lógica, I, A doutrina doser. [N. T.]149


Sternheim contribuíram para dar expressão a esta intenção <strong>de</strong>forma tímida, a única forma que a sua fragilida<strong>de</strong> permite.150


TERCEIRA PARTE1946-47Avalanche, veux-tu m'emporter dans ta chute?(Bau<strong>de</strong>laire)101Planta <strong>de</strong> estufa. - Falar <strong>de</strong> precocida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> atraso,raramente isento do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morte para a primeira, éinconveniente. Quem <strong>de</strong>pressa amadurece vive na antecipação. Asua experiência é apriorística, sensibilida<strong>de</strong> divinatória quetenteia na imagem e na palavra o que só, mais tar<strong>de</strong>, executarão ohomem e a coisa. Tal antecipação, até certo ponto satisfeita <strong>de</strong> simesma, absorve do mundo exterior e facilmente dá à sua relaçãocom ele a cor do neu-roticamente lúdico. Se o precoce é mais doque um possuidor <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s, está por isso mesmo obrigado asuperar-se a si próprio, obrigação que os normais gostam <strong>de</strong>ornamentar como <strong>de</strong>ver moral. Deve com esforço reconquistarpara a relação com os objectos o espaço ocupado pela suarepresentação: tem <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a sofrer. O contacto com o nãoeu,com a pretensa maturida<strong>de</strong> tardia a custo perturbadainteriormente, transforma-se, para o precoce, em necessida<strong>de</strong>. Apropensão narcisista, revelada pela prepon<strong>de</strong>rância da imaginaçãona sua experiência, atrasa a sua maturação. Só posteriormentepassará, com crassa violência, por situações, angústias esofrimentos que, na antecipação, estavam atenuados e que, aoentrar em conflito com o seu narcisismo, se tornarãodoentiamente <strong>de</strong>struidores. Cai assim no infantil, que uma vez151


dominara com muitíssimo menos esforço e que agora exige o seupreço; torna-se ele imaturo e amadurecidos os outros que, naquelafase, tiveram <strong>de</strong> ser, como <strong>de</strong>les se esperava, até tontos, e aosquais parece imperdoável o que, fora <strong>de</strong> toda a proporção,acontece ao outrora precoce. Agora é açoitado pela paixão;<strong>de</strong>masiado tempo agitado na segurança da sua autarcia, cambaleia<strong>de</strong>svalido on<strong>de</strong> uma vez levantou pontes aéreas. Não em vãoacusam as letras dos precoces rasgos infantis. Eles são umaofensa à or<strong>de</strong>m natural, e a saú<strong>de</strong> transtornada nutre--se do perigoque os ameaça, tal como a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>les <strong>de</strong>sconfia enquantonegação visível da equação <strong>de</strong> êxito e esforço. Na sua economiainterna cumpre-se <strong>de</strong> modo inconsciente, mas inexorável, ocastigo que sempre mereceram. O que com enganadora bonda<strong>de</strong>se lhes ofereceu é-lhes agora retirado. Até no <strong>de</strong>stino psicológicouma instância vela para que tudo seja pago. A lei individual é umhieróglifo da troca <strong>de</strong> equivalentes.102Sempre em frente <strong>de</strong>vagar- Correr pela rua fora tem aexpressão do terror. É já o tombo da vítima imitado na suatentativa <strong>de</strong> se esquivar ao <strong>de</strong>rrube. A postura da cabeça, que quermanter-se direita, é a <strong>de</strong> quem se afoga, e o rosto crispado imita oesgar da dor. Deve olhar para a frente, dificilmente se po<strong>de</strong> virarpara trás sem escorregar, como se na rectaguarda se encontrasse operseguidor, cujo rosto faz paralisar. Outrora fugia-se, correndo,dos perigos <strong>de</strong>masiado graves para os enfrentar; sem saber, é oque ainda faz quem corre atrás do autocarro que lhe foge. Ocódigo do tráfego já não conta com os animais selvagens; masainda não pacificou o correr. Este alienou o andar burguês. Averda<strong>de</strong> transparece no facto <strong>de</strong> que o correr não se compa<strong>de</strong>cecom a segurança; <strong>de</strong> que nele, como sempre, se foge apenas dasforças <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas da vida, embora se trate só <strong>de</strong> veículos. Ohábito corporal do andar como algo normal é coisa dos bonsvelhos tempos. Era a maneira burguesa <strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocar: a<strong>de</strong>smitologização física, liberta do feitiço do passo hierático, do<strong>de</strong>ambular sem tecto, da fuga ofegante. A dignida<strong>de</strong> humanaconsistia no direito ao passeio, num ritmo que não era imposto aocorpo pela or<strong>de</strong>m ou pelo horror. O passeio, o <strong>de</strong>ambular era no152


século XIX passatempo privado, herança do aprazívelvagabun<strong>de</strong>ar feudal. Com a era liberal, o andar extingue-se, semainda ter aparecido o automóvel. O Jugendbewegung, quetenteava estas tendências com infalível masoquismo, impugnou asexcursões dominicais paternas e substituiu-as por marchasforçadas voluntárias que baptizou com a <strong>de</strong>signação medieval <strong>de</strong>Fahrt, embora <strong>de</strong>pressa tivesse já à sua disposição o mo<strong>de</strong>loFord. Talvez no culto das velocida<strong>de</strong>s possibilitadas pela técnica -tal como no <strong>de</strong>sporto - se esconda o impulso <strong>de</strong> dominar o horrordo correr, separando este do próprio corpo e exce<strong>de</strong>ndo-o <strong>de</strong> ummodo soberano: o triunfo do velocímetro a subir acalmaritualmente a angústia do perseguido. Mas se a uma pessoa segritar - "corre!" - <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a criança, que <strong>de</strong>ve ir buscar a bolsa que asua mãe esqueceu no primeiro andar, até ao prisioneiro, a quem oguarda or<strong>de</strong>na a fuga a fim <strong>de</strong> ter um pretexto para o matar, entãoressoa a violência arcaica que, aliás, dirige silenciosa cada passo.103Infeliz. - O que sem fundamento real, aparentementepossuído por i<strong>de</strong>ias fixas, mais se teme tem a impertinentetendência para se tornar acontecimento. A pergunta que pornenhum preço se gosta <strong>de</strong> ouvir é a que formulará o subalternocom um interesse perfidamente amável; a pessoa <strong>de</strong> quem maisansiosamente se <strong>de</strong>seja manter afastada a mulher amada serájustamente a que convidará esta, embora se encontre a mais <strong>de</strong>três mil léguas, com recomendações bem intencionadas, e a quesuscitará o tipo <strong>de</strong> relações on<strong>de</strong> espreita o perigo. Está por saberaté que ponto se fomenta semelhante terror; se, porventura, pondoaquela pergunta na boca do malicioso graças ao nosso apaixonadosilêncio ou provocando, então, o fatal contacto ao pedir aomediador, com uma confiança tontamente <strong>de</strong>struidora, que nãolhe ocorra fazê-lo. A psicologia sabe que quem para si pinta a<strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> algum modo a <strong>de</strong>seja. Mas porque é que vai tãoinevitavelmente ao seu encontro? Algo há na fantasia paranói<strong>de</strong>que correspon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong> que ela torce. O sadismo latente <strong>de</strong>todos <strong>de</strong>nuncia infalivelmente a latente <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos. E o<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> perseguição contagia-se: sempre que aparecemos espectadoressentem-se irresistivelmente impelidos a imitá-lo. Isso153


ocorre com a máxima facilida<strong>de</strong> quando se lhe dá uma razão,fazendo aquilo que o outro teme. "Um louco faz muitos" - aabismática solidão do <strong>de</strong>lírio tem uma tendência para acolectivização, que traz à vida o quadro <strong>de</strong>lirante. Estemecanismo pático harmoniza-se com o mecanismo social hoje<strong>de</strong>terminante, pois os indivíduos socializados no seu <strong>de</strong>sesperadoisolamento têm fome <strong>de</strong> convivência e apinham--se em friasaglomerações. Assim se torna epidémica a loucura: as seitaslunáticas crescem ao mesmo ritmo que as gran<strong>de</strong>s organizações: oritmo da <strong>de</strong>struição total. O cumprimento das fantasias <strong>de</strong>perseguição promana da sua afinida<strong>de</strong> com a essênciasanguinária. A violência baseada na civilização significa aperseguição <strong>de</strong> todos por todos, e quem sofre <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong>perseguição fica em em <strong>de</strong>svantagem, ao atribuir ao próximo algodisposto pela totalida<strong>de</strong>, na <strong>de</strong>sesperada tentativa <strong>de</strong> tornarcomensurável a incomensura-bilida<strong>de</strong>. Consome-se porque queraprisionar <strong>de</strong> forma imediata, com as suas próprias mãos, o<strong>de</strong>lírio objectivo, a que se assemelha, quando o absurdo resi<strong>de</strong>justamente na pura mediação. Ele é a vítima escolhida para aperpetuação da ofuscação feita sistema. Ainda a pior e a maisabsurda imaginação <strong>de</strong> acontecimentos, a mais selvagemprojecção encerra o esforço inconsciente da consciência porconhecer a mortal lei em virtu<strong>de</strong> da qual a socieda<strong>de</strong> perpetua asua vida. A aberração é, em rigor, apenas o curto-circuito daadaptação: a loucura patente <strong>de</strong> um chama erroneamente no outro,pelo seu nome verda<strong>de</strong>iro, a loucura da totalida<strong>de</strong>, e o paranóico éa imagem irrisória da vida justa, ao tentar por sua própriainiciativa i<strong>de</strong>ntificá--la com a vida falsa. Mas assim como numcurto-circuito saltam faíscas, também na verda<strong>de</strong> insânia e insâniacomunicam à maneira dos relâmpagos. Os pontos <strong>de</strong>comunicação são as brutais confirmações dos <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong>perseguição, que ilu<strong>de</strong>m quem <strong>de</strong>les pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> que tem razão, etanto mais profundamente o levam apenas a <strong>de</strong>s-penhar-se. Asuperfície da existência <strong>de</strong>pressa torna a cicratizar e <strong>de</strong>monstralheque esta não é assim tão má; e ele enlouquece. Subjectivamenteantecipa a situação em que, <strong>de</strong> súbito, a loucuraobjectiva e a impotência do indivíduo se tornam convertíveis, talcomo o fascismo, enquanto ditadura dos afectados <strong>de</strong> maniapersecutória, materializa todos os temores <strong>de</strong> perseguição das154


vítimas. Decidir, portanto, se um receio extremo é paranóico outem uma base real - o eco impotente do grito da história - sóulteriormente po<strong>de</strong>rá fazer-se. A psicologia não chega ao horror.104Gol<strong>de</strong>n Gate. - No humilhado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhado, há algo que sefaz notar com a mesma clarida<strong>de</strong> com que as dores intensasiluminam o próprio corpo. Reconhece ele que no mais íntimo doamor cego, que nada sabe nem po<strong>de</strong> saber, palpita a exigência <strong>de</strong>verda<strong>de</strong>. Pa<strong>de</strong>ceu injustiça; aí vai buscar a exigência <strong>de</strong> justiça e,ao mesmo tempo, vê obrigado a rejeitá-la, pois o que ele <strong>de</strong>seja sópo<strong>de</strong> provir da liberda<strong>de</strong>. Nesta agonia, o rejeitado torna-sehomem. Como invariavelmente o amor <strong>de</strong>svenda o geral noparticular, único lugar on<strong>de</strong> se honra o geral, este, comoautonomia do próximo, volta-se mortiferamente contra o amor. Ofracasso, em que se impôs o geral, surge ao indivíduo como umestar-excluído do geral; quem per<strong>de</strong>u o amor sabe-se abandonado<strong>de</strong> todos, por isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha a consolação. No absurdo da privaçãochega a vislumbrar a inverda<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda a satisfação meramenteindividual. Desperta assim nele a consciência paradoxal do geral:do inalienável e irrecusável direito humano <strong>de</strong> ser amado pelaamada. Com a sua aspiração, não fundada em título ouprerrogativa alguma, a ser correspondido apela para uma instância<strong>de</strong>sconhecida que graciosamente lhe conceda o que lhe pertence -e, todavia, não lhe pertence. O mistério da justiça no amor é a abrogaçãodo direito que o amor reclama nos seus gestos sempalavras. "Em toda a parte, mais do que / <strong>de</strong>satinado, <strong>de</strong>ve o amorexistir."105Só um quarto <strong>de</strong> hora. - Noite <strong>de</strong> insónia: há para tal umafórmula capaz <strong>de</strong> fazer esquecer as horas penosas e a alvoradalongamente adiada no esforço vão, a duração vazia. Mas o queorigina essas noites <strong>de</strong> insónia, em que o tempo se contrai e foge,inútil, das mãos, são os terrores. Alguém apaga a luz com aesperança <strong>de</strong> dilatadas e reparadoras horas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso. Masquando não po<strong>de</strong> serenar os pensamentos, <strong>de</strong>sperdiça o valioso155


provimento da noite, e até conseguir não ver já nada por trás dosolhos fechados e avermelhados sabe que é muito tar<strong>de</strong>, que<strong>de</strong>pressa o <strong>de</strong>spertará com sobressalto a manhã. De um modosemelhante, implacável, inútil, se esgota talvez, para o con<strong>de</strong>nadoà morte, o último prazo. Mas o que nesta contracção das horas semanifesta é o antítipo do tempo cumulado. Se neste o po<strong>de</strong>r daexperiência quebra o feitiço da duração e reúne o passado e ofuturo no presente, nas impacientes noites <strong>de</strong> insónia a duraçãoorigina um horror insuportável. A vida humana torna-se uminstante, não por ab-rogar a duração, antes por resvalar para onada, <strong>de</strong>sperta para a sua inanida<strong>de</strong> em face da má infinitu<strong>de</strong> dopróprio tempo. No ruidoso tique-taque do relógio percebe-se o<strong>de</strong>sdém dos anos-luz pelo espaço da própria existência. As horas,que já passaram como segundos antes <strong>de</strong> o sentido interno as terassimilado, anunciam a este, arrastando-o na sua precipitação, queele, com toda a memória, está votado ao esquecimento na noitecósmica. Deste esquecimento se precatam hoje, obsessivamente,os homens. No estado <strong>de</strong> total impotência, o que ao indivíduo se<strong>de</strong>ixou para ainda viver surge-lhe como uma breve prorrogação.Não espera viver por si mesmo a sua vida até ao fim. Aperspectiva da morte violenta e do martírio, presente a cada um,persiste na angústia <strong>de</strong> saber que os dias estão contados, <strong>de</strong> que aduração da vida individual é estabelecida nas estatísticas; <strong>de</strong> queo envelhecimento se transformou <strong>de</strong> certo modo numa vantagemilícita, que importa extrair ardilosamente dos valores médios.Talvez esteja já esgotada a quota <strong>de</strong> vida disposta, com carácterrevogável, pela socieda<strong>de</strong>. Uma angústia assim regista-a o corpona fuga das horas. O tempo voa.106As florinhas todas. - A frase, <strong>de</strong> Jean Paul certamente, <strong>de</strong> queas recordações são a única posse que ninguém nos po<strong>de</strong> arrebatarpertence ao provimento <strong>de</strong> consolações impotentementesentimentais, que preten<strong>de</strong> fazer crer ao sujeito que o retrocessoresignado para a interiorida<strong>de</strong> supõe para ele uma satisfação <strong>de</strong>que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir. Com a disposição do arquivo <strong>de</strong> si mesmo, osujeito toma posse do seu <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> experiências e faz domesmo uma proprieda<strong>de</strong>; converte-o assim em algo totalmente156


exterior ao próprio sujeito. A vida interior passada transforma-seem mobiliário, tal como, inversamente, toda a peça estiloBie<strong>de</strong>rmeier se convertia em recordação feita ma<strong>de</strong>ira. Ointérieur, em que a alma guarda a colecção dos seusacontecimentos e curiosida<strong>de</strong>s, é algo caduco. As recordações nãose conservam em caixas ou em leques, mas nelas o pretéritocombina-se intimamente com o presente. Ninguém dispõe comliberda<strong>de</strong> ou arbítrio daquilo em cujo elogio tanto abundam asfrases <strong>de</strong> Jean Paul. Quando as recordações se tornam manejáveise objectivas, quando o sujeito julga estar <strong>de</strong>las completamenteseguro, é que elas per<strong>de</strong>m a cor como <strong>de</strong>licados tapetes expostosà violenta luz solar. Mas quando, protegidas pelo esquecimento,conservam a sua força, estão expostas a riscos como todo o servivo. A concepção <strong>de</strong> Bergson e <strong>de</strong> Proust dirigida contra areificação, segundo a qual o presente, a imediatida<strong>de</strong>, só seconstitui pela memória, pela interacção do agora e do antes, temnão só um aspecto salvador, mas também infernal. Assim comonão é real nenhuma vivência anterior, que não tenha sido libertadapor involuntária rememoração da rigi<strong>de</strong>z cadavérica da suaexistência isolada, assim também, ao invés, nenhuma recordaçãoestá garantida como algo em si existente, indiferente ao futuro <strong>de</strong>quem a preserva; nenhum passado, pela sua conversão em merarepresentação, é imune à maldição do presente empírico. A maisfeliz recordação <strong>de</strong> uma pessoa po<strong>de</strong> ser substancialmenteanulada por uma experiência ulterior. Quem amou e atraiçoa oamor não só inflige um dano à imagem do passado, mas tambéma este. Quando a recordação <strong>de</strong>sperta, introduz-se nela comincontrastável evidência um gesto involuntário, um tom <strong>de</strong>ausência, uma vaga hipocrisia do prazer, que faz da proximida<strong>de</strong><strong>de</strong> ontem a estranheza <strong>de</strong> hoje. O <strong>de</strong>sespero não tem a expressãodo irrevogável porque a situação não po<strong>de</strong> chegar a melhorar, masporque arrasta para o seu abismo o tempo passado. Por isso, éestulto e sentimental querer manter o passado limpo da suja marédo presente. Ao passado não resta outra esperança a não ser a <strong>de</strong>,abandonado sem <strong>de</strong>fesa ao infortúnio, ressurgir <strong>de</strong>letransformado. Mas quem morre <strong>de</strong>sesperado é porque a sua vidainteira foi inútil.157


107Ne cherchez plus mon coeur. - O her<strong>de</strong>iro da obsessãobalzaquiana, Proust, a quem todo o convite mundano parece abriro sésamo da vida recuperada, introduz-se num labirinto on<strong>de</strong> omexerico pré-histórico lhe revela os mais obscuros segredos <strong>de</strong>todo o esplendor, até este parecer <strong>de</strong>senxabido e gretado aos olhos<strong>de</strong>masiado próximos e nostálgicos. Mas o placet futile, asolicitu<strong>de</strong> por uma classe ociosa historicamente con<strong>de</strong>nada, <strong>de</strong>que todo o burguês <strong>de</strong>staca a sua superfluida<strong>de</strong>, a absurda energiadissipada nos dissipadores, vê-se muito mais recompensada doque a serena atenção ao relevante. O esquema da <strong>de</strong>cadência emque Proust enquadra a imagem da sua society revela-se como o <strong>de</strong>uma po<strong>de</strong>rosa tendência evolutiva. O que em Charlus, Saint-Loupe Swan rui é o mesmo que falta a toda a geração posterior, que jánão sabe o nome do último poeta. A excêntrica psicologia dadéca<strong>de</strong>nce esboça a antropologia negativa da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>massas: Proust apresenta um relato alérgico do que <strong>de</strong>pois se faráa todo o amor. A relação <strong>de</strong> troca, a que o amor parcialmente seopôs ao longo da época burguesa, acabou por absorvê-lo; a últimaimediatida<strong>de</strong> torna-se vítima da lonjura <strong>de</strong> todos os contraentesrelativamente a todos. O amor esfria no valor que o próprio eu asi adjudica. O seu amor surge-lhe como mais um amor, e quemmais ama posta-se na injustiça. Torna-se suspeito aos olhos daamada; remetida para si mesma, a sua inclinação adoece <strong>de</strong><strong>de</strong>spotismo possessivo e <strong>de</strong> imaginação auto<strong>de</strong>struidora. "Asrelações com a mulher amada - lemos em Le temps retrouvé -po<strong>de</strong>m ser platónicas por uma razão alheia à virtu<strong>de</strong> da mulher ouà natureza pouco sensual do amor que esta inspira. Tal razão po<strong>de</strong>ser a <strong>de</strong> que o enamorado, <strong>de</strong>masiado impaciente, não sabe,<strong>de</strong>vido ao excesso do seu amor, esperar, mediante a simulação <strong>de</strong>indiferença, o momento em que alcançará o que <strong>de</strong>seja. Voltacontinuamente à carga, não pára <strong>de</strong> escrever à mulher amada,tenta a cada momento, rejeita-o ela, <strong>de</strong>sespera ele. Compreen<strong>de</strong>então ela que se lhe conce<strong>de</strong>r a sua companhia, a sua amiza<strong>de</strong>,estes bens se afigurarão já tão consi<strong>de</strong>ráveis a quem os tinha porinalcançáveis que a mulher po<strong>de</strong> evitar dar mais, e aproveitar ummomento em que o homem não consiga passar sem vê-la, em quequeira, custe o que custar, terminar a guerra, impondo-lhe uma158


paz, cuja primeira condição será o platonismo das relações [...] Asmulheres adivinham tudo isto e sabem que po<strong>de</strong>m dar-se ao luxo<strong>de</strong> nunca se entregarem àqueles em quem notam, se estiverem<strong>de</strong>masiado nervosos para o ocultar nos primeiros dias, o incurável<strong>de</strong>sejo que <strong>de</strong>las sentem." O jovem Morei é mais forte do que asua influente amante. "... era ele quem mandava, se não queriaren<strong>de</strong>r-se. E para se negar, bastava talvez que se sentisse amado".O motivo privado da balzaquiana duquesa <strong>de</strong> Langeais teve umadifusão universal. À qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um dos incontáveisautomóveis que nas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Domingo regressam a Nova Yorkcorrespon<strong>de</strong> o atractivo da jovem que o ocupa. - A dissoluçãoobjectiva da socieda<strong>de</strong> manifesta-se subjectivamente em que oimpulso erótico se <strong>de</strong>bilitou <strong>de</strong>masiado para unir as mónadasauto-suficientes, como se a humanida<strong>de</strong> imitasse a teoria física douniverso em expansão. À frígida inatingibili-da<strong>de</strong> do ente amado,entretanto transformada em instituição reconhecida da cultura <strong>de</strong>massas, respon<strong>de</strong> o "incurável <strong>de</strong>sejo" do amante. Casanova, aodizer <strong>de</strong> uma mulher que não tinha preconceitos, queria dizer quenenhuma convenção religiosa a impedia <strong>de</strong> se entregar; hoje,mulher sem preconceitos seria aquela que já não acredita no amore não dá ocasião a que a enganem, investindo mais do que po<strong>de</strong>ráesperar em troca. A sexualida<strong>de</strong>, pela qual supostamente semantém a tensão, tornou-se a ilusão que antes residia na renúncia.Quando a organização da vida já não <strong>de</strong>ixa tempo para o prazerconsciente <strong>de</strong> si mesmo e o substitui pelas práticas fisiológicas, opróprio sexo <strong>de</strong>sinibido <strong>de</strong>ssexualiza-se. Em rigor, eles já não<strong>de</strong>sejam o inebriamento, mas apenas a compensação resultante daocupação que prefeririam poupar a si por supérflua.108Princesa plebeia. - Só excitam a fantasia as mulheres<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> fantasia. O nimbo mais colorido é o daquelas que,permanentemente viradas para fora, se revelam sem substância. Asua atracção <strong>de</strong>riva da escassez <strong>de</strong> consciência <strong>de</strong> si mesmas, eaté <strong>de</strong> um Si mesmo em geral: Oscar Wil<strong>de</strong> falava, a este repeito,da esfinge sem enigma. Reproduzem uma imagempre<strong>de</strong>terminada: quanto mais pura aparência são, sem qualqueremoção própria perturbadora, tanto mais se assemelham aos159


arquétipos - Preciosa, Peregrina, Albertina - que <strong>de</strong>ixam prevertoda a individuação como simples aparência e acabam sempre por<strong>de</strong>fraudar, quando se <strong>de</strong>scobre o que são. A sua vida toma oaspecto das ilustrações ou o <strong>de</strong> uma perpétua festa infantil, e talaspecto faz injustiça à sua necessitada existência empírica. Stormabordou este tema no seu livro Pole Poppenspäler, uma históriainfantil com fundo. O rapaz frísio enamora-se da rapariguinha dosviandantes bávaros. "Quando por fim me voltei, vi um vestidovermelho que <strong>de</strong> mim se aproximava; e era ela, ela, a pequenapalhaça. Não obstante o seu traje <strong>de</strong>scolorido, parecia-me saída <strong>de</strong>um mundo <strong>de</strong> sonho. Enchi-me <strong>de</strong> valor e disse-lhe: Queres darum passeio, Lisei? Olhou-me <strong>de</strong>sconfiada, com os seus olhosnegros. Um passeio?, repetiu, comedida. Ah, és esperto! On<strong>de</strong>queres ir, então? - Ao lojista. Queres comprar um vestido novo?,perguntei um tanto <strong>de</strong>sajeitadamente. Ela soltou uma gargalhada.Ah, vamos! - Não, só farrapos, assim. Farrapos, Lisei? - Claro,são os restos dos trajes que trazem os bonecos; assim sai maisbarato." A pobreza obriga Lisei a contentar-se com o já gasto - os"farrapos" -, embora gostasse <strong>de</strong> outras coisas. Inconscientemente,<strong>de</strong>sconfiará ela <strong>de</strong> tudo o que não se justifique naprática, como <strong>de</strong> um excesso. A fantasia é a companheira dapobreza. O roto só tem encanto para quem o contempla. E,todavia, a fantasia necessita da pobreza, sobre a qual exerceviolência: a felicida<strong>de</strong>, a que ela a<strong>de</strong>re, <strong>de</strong>screve-a com os traçosdo sofrimento. A Justina <strong>de</strong> Sa<strong>de</strong>, que passa <strong>de</strong> um leito <strong>de</strong> torturapara outro, é aqui a notre intéressante heroïne, bem comoMignon, no momento em que é açoitada, a criatura interessante.A princesa dos sonhos e a menina dos açoites i<strong>de</strong>ntificam-se, mas<strong>de</strong> tal nada suspeitam. Disso há ainda vestígios nas relações dospovos nórdicos com os meridionais: os endinheirados puritanosem vão buscam nas morenas vindas do estrangeiro o que o cursodo mundo, por eles comandado, lhes impe<strong>de</strong> não só a eles, mastambém e sobretudo às errantes. O se<strong>de</strong>ntário inveja onomadismo, a busca <strong>de</strong> pastagens frescas, e o carro ver<strong>de</strong> é a casasobre rodas, cuja rota é acompanhada pelas estrelas. Ainfantilida<strong>de</strong>, banida em movimento inconsi<strong>de</strong>rado, para oimpulso penosamente instável, momentâneo, da sobrevi-vência,respon<strong>de</strong> pelo não <strong>de</strong>formado, pela plenitu<strong>de</strong>; e no entanto excluia,justamente no mais íntimo da autoconservação, da qual160


preten<strong>de</strong> libertá-la. Tal é o círculo da nostalgia burguesa doingénuo. A ausência <strong>de</strong> alma daqueles a quem, à margem dacultura, o quotidiano proíbe toda a auto<strong>de</strong>terminação - ao mesmotempo <strong>de</strong>lícia e tormento - converte-se em fantasmagoria da alma,para os bem instalados, que apren<strong>de</strong>ram da cultura a envergonharseda alma. O amor per<strong>de</strong>-se na ausência <strong>de</strong> alma enquanto cifrado animificado, porque nele os vivos são espectáculo para os<strong>de</strong>sesperados <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> salvação, que só no perdido têm o seuobjecto: para o amor, a alma <strong>de</strong>sponta só na sua ausência. Porisso, é humana a expressão dos olhos que mais se chegam aos doanimal, ao criatural, longe da reflexão do eu. Em última análise, aprópria alma é a ânsia <strong>de</strong> salvação do <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> alma.109L' inutile beauté. - As mulheres <strong>de</strong> singular beleza estãocon<strong>de</strong>nadas à infelicida<strong>de</strong>. Até aquelas que as circunstânciasbeneficiam, as favorecidas pelo nascimento, pela riqueza e pelotalento, parecem perseguidas ou possuídas por um impulso <strong>de</strong><strong>de</strong>struição <strong>de</strong>las próprias e <strong>de</strong> todas as relações humanas em queentram. Um oráculo põe-nas perante uma alternativa <strong>de</strong>fatalida<strong>de</strong>s. Ou utilizam a beleza para conseguir o êxito, e entãopagam com a infelicida<strong>de</strong> essa condição; como já não po<strong>de</strong>mamar envenenam o amor para com elas e ficam <strong>de</strong> mãos vazias.Ou então o privilégio da beleza dá-lhes ânimo e segurança paraassumir a troca. Tomam a sério a felicida<strong>de</strong> que nelas se prometee nada escamoteiam <strong>de</strong> si mesmas, confirmadas pela inclinação<strong>de</strong> todos, no sentido <strong>de</strong> que o seu valor não o <strong>de</strong>vem apenasmostrar. Na sua juventu<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m escolher. Isso torna-asvolúveis: nada é <strong>de</strong>finitivo, tudo po<strong>de</strong> em qualquer momentosubstituir-se por outra coisa. Muito cedo, e sem muitaconsi<strong>de</strong>ração, casam-se e submetem-se assim a condiçõespe<strong>de</strong>stres, <strong>de</strong>spojam-se em certo sentido do privilégio dapossibilida<strong>de</strong> infinita, rebaixam--se a seres humanos. Mas, aomesmo tempo, agarram-se ao sonho infantil da omnipotência quea sua vida lhes parecia prometer, e não cessam <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar - <strong>de</strong>um modo não burguês - o que amanhã po<strong>de</strong>ria ser melhor. Eis oseu tipo <strong>de</strong> carácter <strong>de</strong>strutivo. O facto <strong>de</strong> uma vez terem estadohors <strong>de</strong> concours situa-as no segundo plano da competição, a que161


agora maniacamente se entregam. Resta-lhes o gesto dairresistibilida<strong>de</strong>, quando esta já se <strong>de</strong>svaneceu; <strong>de</strong>cai o encantologo que, em vez <strong>de</strong> representar uma esperança, se instala nodoméstico. Mas a vítima é agora a resistível: encontra-se submetidaà or<strong>de</strong>m sobre a qual antes <strong>de</strong>slizava. A sua generosida<strong>de</strong>sofre o castigo. A perdida e a possuída são mártires da felicida<strong>de</strong>.A beleza integrada transformou-se entretanto em elemento calculávelda existência, em mero sucedâneo da vida inexistente, semir <strong>minima</strong>mente além <strong>de</strong>la. Quebrou, para si mesma e para os<strong>de</strong>mais, a sua promessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. A que ainda aprova estasituação ro<strong>de</strong>ia-se <strong>de</strong> uma aura <strong>de</strong> infelicida<strong>de</strong> e pela infelicida<strong>de</strong>é ela própria atingida. O mundo ilustrado absorveu aquiinteiramente o mito. Sobreviveu apenas a inveja dos <strong>de</strong>uses.110Constanze. - A socieda<strong>de</strong> burguesa assenta em toda a parteno esforço da vonta<strong>de</strong>; só o amor <strong>de</strong>ve ser involuntário, puraimediati-da<strong>de</strong> do sentimento. Na ânsia <strong>de</strong>le, que significa adispensa do trabalho, a i<strong>de</strong>ia burguesa do amor transcen<strong>de</strong> asocieda<strong>de</strong> burguesa. Mas, ao inserir directamente o verda<strong>de</strong>iro nofalso geral, troca aquele por este. Não é só porque o purosentimento, se é que ainda é possível num sistemaeconomicamente <strong>de</strong>terminado, se converte assim socialmente emálibi para a dominação do interesse na socieda<strong>de</strong> e dá testemunho<strong>de</strong> uma humanida<strong>de</strong> que não existe. Mas também porque ocarácter involuntário do próprio amor, mesmo on<strong>de</strong> não está <strong>de</strong>antemão mesclado com fins práticos, contribui para aquela totalida<strong>de</strong>,logo que se estabelece como princípio. Se o amor <strong>de</strong>ve serrepresentação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> melhor <strong>de</strong>ntro da existente, não opo<strong>de</strong> ser como um enclave <strong>de</strong> paz, mas só na oposição consciente.Exige esta justamente esse momento <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> que osburgueses, para os quais o amor nunca será assaz natural, lheproíbem. Amar significa ser capaz <strong>de</strong> fazer que a imediatida<strong>de</strong>não se atrofie pela omnímoda pressão da mediação, pelaeconomia, e nesse empenhamento a imediatida<strong>de</strong>, consigo mesmamediada, torna-se uma tenaz pressão contrária. Só ama quem temforças para persistir no amor. Se a vantagem social, sublimada,conforma ainda o impulso sexual, e o faz espontaneamente162


aparecer atractivo ora a estes ora àqueles, graças a mil matizes dosancionado pela or<strong>de</strong>m, opõe-se-lhe então a inclinação, uma vezsuscitada, ao perseverar on<strong>de</strong> a gravitação da socieda<strong>de</strong> - antes <strong>de</strong>toda a intriga, que então normalmente põe ao seu serviço - não opermite. Para o sentimento é a prova que tal atitu<strong>de</strong>, enquantodura, vai além do sentimento, ainda que seja na forma daobsessão. Mas aquela tendência que, sob a aparência daespontaneida<strong>de</strong> reflexiva e orgulhosa da sua suposta sincerida<strong>de</strong>,se abandona inteiramente à suposta voz do coração e <strong>de</strong>sertaquando lhe parece não escutar essa voz, é, nessa soberanain<strong>de</strong>pendência, o instrumento da socieda<strong>de</strong>. Passivamente, e semsaber, regista os números que saem na roleta dos interesses. Aoatraiçoar a pessoa amada, atraiçoa-se a si mesmo. O mandamentoda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, que a socieda<strong>de</strong> reparte, é um meio para a privação<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, mas só pela fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> realiza a liberda<strong>de</strong> ainsubordinação perante o mandamento da socieda<strong>de</strong>.111Filémon e Baucis. - O tirano da casa <strong>de</strong>ixa que a sua mulhero aju<strong>de</strong> a agasalhar-se. Ela realiza solicitamente o serviço doamor, acompanha-o com o olhar que diz: é o que <strong>de</strong>vo fazer, darlheesta pequena alegria; ele é apenas um homem. O matrimóniopatriarcal vinga-se do senhor com a indulgência que a mulherexercita e que se tornou fórmula no irónico lamento pelo<strong>de</strong>scontentamento e pela falta <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do marido. Sob afalaz i<strong>de</strong>ologia que apresenta o homem como superior há outrai<strong>de</strong>ologia secreta, não menos falsa, que o reduz a inferior, avítima da manipulação, da manobra, do engano. O herói empantufas é a sombra daquele que tem <strong>de</strong> arrostar uma vida hostil.Com a mesma obtusa inteligência com que a esposa julga oesposo, julgam geralmente as crianças os adultos. Na<strong>de</strong>sproporção que há entre a sua pretensão autoritária e a suaimpotência, <strong>de</strong>sproporção que necessariamente se manifesta naesfera privada, há algo ridículo. Todo o casal que aparece com umar comum é cómico, e isto é o que visa equilibrar a pacientecompreensão da mulher. Dificilmente existe uma mulher, já hámuito casada, que não <strong>de</strong>saprove com os seus cochichos aspequenas <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>s do marido. A falsa proximida<strong>de</strong> estimula a163


malignida<strong>de</strong>, e no âmbito do consumo o mais forte é quem tem amão nas coisas. A dialéctica hegeliana do senhor e do servoimpera, hoje como ontem, na or<strong>de</strong>m arcaica da casa, acentuadaa<strong>de</strong>mais pelo facto <strong>de</strong> a mulher se aferrar obstinadamente aoanacronismo. Como matriarca reprimida transforma-se, on<strong>de</strong><strong>de</strong>ve servir, em patroa, enquanto o patriarca apenas necessita <strong>de</strong> oparecer para ser uma caricatura. Esta dialéctica, comum a todas asépocas, apresentou-se sempre perante a visão individualista como"guerra dos sexos". Nenhum dos adversários tem razão. No<strong>de</strong>sencanto do homem, cujo po<strong>de</strong>r assenta no facto <strong>de</strong> ganhardinheiro, que é o que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a hierarquia humana, a mulherexpressa a inverda<strong>de</strong> do matrimónio, no qual ela busca a suaintegral verda<strong>de</strong>. Não há emancipação possível sem aemancipação da socieda<strong>de</strong>.112Et dona ferentes. - Os filisteus alemães da liberda<strong>de</strong> semprecelebraram <strong>de</strong> modo muito especial o poema do <strong>de</strong>us e da baila<strong>de</strong>ira10 , com a sua fanfarra final <strong>de</strong> que os imortais elevarão aocéu com os seus ígneos braços os filhos pecadores. Nada <strong>de</strong>confiar na generosida<strong>de</strong> aprovada. Esta faz seu sem reservas ojuízo burguês sobre o amor vendido; o efeito da compreensão edo perdão divinos só o consegue ao <strong>de</strong>nigrir a amável resgatada,com arrebatada inspiração, como perdida. O acto <strong>de</strong> clemênciaarrasta umas cautelas que o tornam ilusório. Para alcançar asalvação - como se uma salvação ganha fosse verda<strong>de</strong>iramente talsalvação -, permite-se à jovem participar na "festa aprazível dotálamo", mas "não por prazer nem lucro". E porquê assim? Não<strong>de</strong>sfaz grosseiramente o amor puro que ela exige o encanto comque os ritmos <strong>de</strong> dança <strong>de</strong> Goethe envolvem a figura do poema eque a referência à profunda abjecção certamente não po<strong>de</strong><strong>de</strong>struir? Mas há também que fazer <strong>de</strong>la uma alma boa querenuncie ao que é. Para ser readmitida no recinto da humanida<strong>de</strong>,a hetera, <strong>de</strong> cuja tolerância a humanida<strong>de</strong> se ufana, <strong>de</strong>ve primeiro10 Referência a Der Gott und dieBaja<strong>de</strong>re (Indische Legen<strong>de</strong>),poema <strong>de</strong> Goethe.[N.T.]164


<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> o ser. A divinda<strong>de</strong> alegra-se do pecador contrito. Toda aincursão ao lugar on<strong>de</strong> se encontram as últimas casas é umaespécie <strong>de</strong> slumming party metafísico, um arranjo da perversida<strong>de</strong>patriarcal para se afigurar duplamente gran<strong>de</strong>, acentuando até aoextremo a distância entre o espírito masculino e a naturezafeminina e reafirmando então, adornado <strong>de</strong> magnanimida<strong>de</strong>, oindiscutível do próprio po<strong>de</strong>r, a diferença criada. O burguêsprecisa da baila<strong>de</strong>ira não só para o prazer, que ao mesmo temponela inveja, mas também para se sentir Deus. Quanto mais seacerca da borda do seu reino e esquece a sua dignida<strong>de</strong> tanto maisgrosseiro é o ritual da violência. A noite tem o seu prazer, mas arameira é queimada. O resto é a i<strong>de</strong>ia.113Desmancha-prazeres. - A afinida<strong>de</strong> entre o ascetismo e aembriaguez, que a universal sabedoria psicológica sempreobservou, a fobofilia dos santos e das prostitutas tem umfundamento objectivamente indiscutível no facto <strong>de</strong> o ascetismooferecer uma maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> satisfação do que opagamento às prestações da cultura. A hostilida<strong>de</strong> para com oprazer não se po<strong>de</strong> separar da anuência à disciplina <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> a cuja essência pertence mais o exigir do que oconce<strong>de</strong>r. Mas há também uma <strong>de</strong>sconfiança para com o prazerque dimana da suspeita <strong>de</strong> que não há prazer algum neste mundo.Uma construção <strong>de</strong> Schopenhauer expressa inconscientementealgo <strong>de</strong>sta suspeita. A passagem da afirmação à negação davonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver ocorre no <strong>de</strong>sfraldar da i<strong>de</strong>ia segundo a qual emtoda a inibição da vonta<strong>de</strong> esta sofre por causa <strong>de</strong> um obstáculo"que se interpõe entre ela e o objectivo que persegue, ao passoque, ao invés, a consecução do seu objectivo tem por resultado asatisfação, o bem-estar, a felicida<strong>de</strong>". Mas se, por um lado, e <strong>de</strong>acordo com a intransigente concepção <strong>de</strong> Schopenhauer, tal"sofrimento" ten<strong>de</strong> a acrescentar-se a ponto <strong>de</strong> amiú<strong>de</strong> tornar<strong>de</strong>sejável a morte, por outro, o mesmo estado <strong>de</strong> "satisfação" éinsatisfatório, porque "logo que a necessida<strong>de</strong> e o sofrimentoconce<strong>de</strong>m ao homem uma trégua, o tédio está tão perto que lhesuscita a necessida<strong>de</strong> do passatempo. A luta pela vida é o queocupa e põe em movimento todo o ser vivo. Mas uma vez165


garantida a existência, não sabemos que fazer; daí que o segundoimpulso que a põe em movimento seja o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sacudir a cargado existir, <strong>de</strong> a tornar insensível, <strong>de</strong> "matar o tempo", isto é, <strong>de</strong> sesubtrair ao tédio" (Sämtliche Werke, Insel-Verlag, Leipzig, I, DieWelt als Wille und Vorstellung, p. 415). Mas o conceito do tédio,elevado a tão insuspeita dignida<strong>de</strong>, é - coisa que a aversão <strong>de</strong>Schopenhauer à história seria a última a admitir - <strong>de</strong> todo em todoburguês. O tédio é um complemento do trabalho alienadoenquanto experiência do antitético "tempo livre", quer porque esteé o encarregado <strong>de</strong> reproduzir a força gasta, quer porque sobre elepesa como hipoteca a apropriação do trabalho alheio. O tempolivre é o reflexo do ritmo da produção heteronoma-mente impostoao sujeito, ritmo que compulsivamente se mantém também naspausas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso. A consciência da ausência <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> daexistência inteira, que a pressão das exigências aquisitivas, isto é,da própria falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, não permite que <strong>de</strong>sperte, surgecomo um intermezzo da liberda<strong>de</strong>. A nostalgie du dimanche não éa nostalgia da semana laboral, mas <strong>de</strong>sse estado <strong>de</strong> emancipação;o domingo <strong>de</strong>ixa insatisfeito, não porque nele se festeje, masporque a sua promessa não se apresenta ao mesmo tempo comoimediatamente cumprida; como o inglês, todo o domingo é<strong>de</strong>masiado pouco. Aquele para quem o tempo penosamente sealonga, espera em vão, frustrado <strong>de</strong> que o domingo persista, queamanhã seja outra vez como ontem. Mas o tédio dos que nãonecessitam <strong>de</strong> trabalhar não é essencialmente distinto. Asocieda<strong>de</strong> como totalida<strong>de</strong> impõe aos po<strong>de</strong>rosos o que elesaplicam aos <strong>de</strong>mais, e, o que a estes não se conce<strong>de</strong> dificilmente asi mesmos o permitem. Os burgueses da sacieda<strong>de</strong>, aparentada àbeatitu<strong>de</strong>, fizeram uma blasfémia. Porque os outros pa<strong>de</strong>cemfome, preten<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ologia que a ausência <strong>de</strong> fome seja umagrosseria. Por isso, os burgueses acusam o burguês. A sua própriaisenção do trabalho proíbe-lhes o elogio da preguiça: esta éaborrecida. A activida<strong>de</strong> febril, a que se refere Schopenhauer, temmenos a ver com a insuportabilida<strong>de</strong> da situação privilegiada doque com a sua ostentação, a qual, segundo a conjuntura histórica,aumentará as distâncias sociais ou as reduzirá a mera aparênciamediante organizações supostamente importantes, confirmarão autilida<strong>de</strong> dos senhores. Se quem está em cima realmente seaborrece, tal não é consequência do excesso <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, mas do166


facto <strong>de</strong> esta ser caracterizada pela infelicida<strong>de</strong> geral; pelo seucarácter <strong>de</strong> mercadoria, que relega as diversões para a idiotia; pelabrutalida<strong>de</strong> dos comandos, cujo eco ressoa estentóreo nosalvoroços dos dominadores; finalmente, pelo medo <strong>de</strong>stes à suaprópria superfluida<strong>de</strong>. Ninguém que ganhe com o sistema <strong>de</strong>proveito po<strong>de</strong> existir no seu seio sem vergonha, e esta <strong>de</strong>formaaté o prazer não <strong>de</strong>formado, embora os excessos que os filósofosinvejam não terão sido em algumas épocas tão aborrecidos comoeles asseguram. Certas experiências que foram arrebatadas àcivilização provam que na liberda<strong>de</strong> realizada o tédio se<strong>de</strong>svanece. O adágio omne animal post coitum triste é umainvenção do <strong>de</strong>sprezo burguês pelo homem: em nenhum outrolugar se distingue mais o humano da tristeza da criatura. A náuseanão se segue à embriaguez, mas ao amor socialmente aprovado:este é, no dizer <strong>de</strong> Ibsen, viscoso. No eroticamente arrebatado ocansaço transforma-se em pedido <strong>de</strong> ternura, e a momentâneaimpotência do sexo olha-se como aci<strong>de</strong>ntal e algo totalmenteexterior à paixão. Não em vão combinou Bau<strong>de</strong>laire aescravizante obsessão erótica com a espiritualização e chamouigualmente imortais ao beijo, ao perfume e à conversação. Afugacida<strong>de</strong> do prazer, que o ascetismo sublinha, respon<strong>de</strong> ao facto<strong>de</strong> que, fora dos minutes heureuses em que a vida esquecida doamante revive nos joelhos da amada 11 , não há prazer algum. Nemsequer as cristãs <strong>de</strong>núncias do sexo na Sonata a Kreutzer <strong>de</strong>Tolstoi conseguem, entre todas as prédicas capuchinhas, apagar<strong>de</strong> todo a sua recordação. O que Tolstoi censura ao amor sensualnão é só o motivo teológico, que grandiosamente aparece uma eoutra vez, da abnegação, <strong>de</strong> que nenhum homem fará <strong>de</strong> outro umobjecto - o que em rigor constitui um protesto contra a disposiçãopatriarcal; tal motivo surge também mesclado com consi<strong>de</strong>raçõesacerca da <strong>de</strong>formação burguesa do sexo, da sua turva mescla comtodo o tipo <strong>de</strong> interesses materiais, do matrimónio comocompromisso indigno, e ainda do ressentimento rousseaunianocontra o gozo acrescentado na reflexão. O ataque ao período <strong>de</strong>noivado atinge a fotografia da família, que recorda a palavranoivo. "A isto acrescentava-se o costume <strong>de</strong>sagradável <strong>de</strong> levarbolos, <strong>de</strong> carregar com toda a classe <strong>de</strong> guloseimas, e todos os11 Ch. Bau<strong>de</strong>laire, Le balcon. [N.T.]167


<strong>de</strong>testáveis preparativos da boda: à volta, só se ouvia falar dahabitacão, do quarto <strong>de</strong> dormir, das camas, da roupa <strong>de</strong> casa, <strong>de</strong>dormir, dos lençóis, dos artigos <strong>de</strong> higiene". Mofa igualmente dalua-<strong>de</strong>--mel, que é comparável ao <strong>de</strong>sengano após a visita a umlugar <strong>de</strong> férias dolorosamente recomendado e "extremamenteaborrecido". Deste dégoút são menos culpados os sentidosesgotados do que o institucional, o permitido, o instalado, a falsaimanência do prazer no seio <strong>de</strong> um or<strong>de</strong>namento que o regula e otorna mortalmente triste no próprio momento em que o or<strong>de</strong>na.Semelhante repugnância po<strong>de</strong> aumentar <strong>de</strong> tal modo que, por fim,toda a embriaguez, no meio <strong>de</strong> tantas <strong>de</strong>núncias, prefere ficar naomissão do que, mediante a realização, injuriar o seu conceito.114Heliótropo. - À criança, cujos pais recebem hóspe<strong>de</strong>s, batelheo coração com mais ansieda<strong>de</strong> do que na véspera <strong>de</strong> Natal.Não pelas prendas, mas pela mudança na sua vida. O perfume quea dama convidada <strong>de</strong>ixa na cómoda, enquanto lhe é permitidoolhar na abertura da sua bagagem tem, ao respirá-lo pela primeiravez, um aroma que é uma evocação. As malas com insígnias daSuvre-tathaus e da Madonna di Campiglio são cofres em que aspedras preciosas <strong>de</strong> Aladino e Ali-Bábá, envolvidas em ricospanos, e os quimonos da visitante, trazidos em vagões <strong>de</strong> liteirasdas caravanas da Suíça e do sul do Tirol, ficam à mercê dainsaciável curiosida<strong>de</strong>. E assim como nos contos as fadas falamaos meninos, assim fala a convidada, séria e sem afectuosida<strong>de</strong>, àcriança da casa. Esta, logicamente, pergunta pelos países e pelospovos, e a dama, que não está familiarizada com ela e vê nos seusolhos simples fascínio, respon<strong>de</strong>--lhe com observações fatalistassobre o enfraquecimento cerebral do cunhado ou os assuntosmatrimoniais do sobrinho. A criança sente-se assim, <strong>de</strong> repente,incluída na po<strong>de</strong>rosa e misteriosa comunida<strong>de</strong> dos adultos, nocírculo mágico da gente sensata. Com a or<strong>de</strong>m do dia - talvez noseguinte possa faltar à escola - suspen<strong>de</strong>m-se as fronteiras entreas gerações, e aquele que às onze ainda não mandam para a camapressente a verda<strong>de</strong>ira promiscuida<strong>de</strong>. A visita faz <strong>de</strong> Quinta-feiraum dia <strong>de</strong> festa, em cujo bulício se está pretensamente sentado àmesa com a humanida<strong>de</strong> inteira. Porque o hóspe<strong>de</strong> vem <strong>de</strong> muito168


longe, a sua aparição promete à criança a experiência do que estápara além da família e recorda-lhe que esta não é o último[limite]. A ânsia <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> informe, na bolsa das salamandrase das cegonhas, que a criança apren<strong>de</strong>ra a reprimir e a dissimularmediante a imagem temerosa do negro, do monstro, que o querraptar - encontra-a aqui <strong>de</strong> novo, mas sem angústia. A figura doque é diferente surge agora entre os seus e na intimida<strong>de</strong> comeles. A cigana que lê a sina, admitida pela porta principal, éliberta na dama visitante que se transfigura em anjo salvador. Elaretira a maldição que acompanha a felicida<strong>de</strong> da proximida<strong>de</strong>imediata, ao ligá-la à estrema lonjura. Por isto espera toda aexistência da criança, e assim continuará <strong>de</strong>pois a esperar quemnão esquece o melhor da infância. O amor conta as horas atéàquela em que a visita atravessará o limiar e há-<strong>de</strong> restaurar avida <strong>de</strong>scolorida com um imperceptível: "Eis me aqui <strong>de</strong> novo /<strong>de</strong> volta do vasto mundo."115Vinho puro. - Para saber se alguém pensa bem <strong>de</strong> ti há umcritério quase infalível: é o modo como refere as manifestações<strong>de</strong>sfavoráveis ou hostis que a teu respeito ouve. Quase sempretais informações carecem <strong>de</strong> importância e não são mais do quepretextos para abrir as portas à malevolência semresponsabilida<strong>de</strong>, e até em nome do bem. Como todos osconhecidos sentem a inclinação para falar mal <strong>de</strong> vez em quandouns dos outros - embora também o façam como protesto contra ainsipi<strong>de</strong>z do trato -, cada um é sensível às opiniões do outro e,secretamente, <strong>de</strong>seja ser estimado on<strong>de</strong> ele próprio a ninguémestima: não menos indiscriminada e geral do que a alienação entreos homens é a ânsia <strong>de</strong> a superar. Neste clima prospera ocolporteur, a quem nunca falta o material nem a pouca sorte, eque sempre po<strong>de</strong> calcular que aquele que quer que todos lhequeiram <strong>de</strong>sejoso está <strong>de</strong> experimentar o contrário. Os comentários<strong>de</strong>sfavoráveis só <strong>de</strong>veriam referir-se quando <strong>de</strong> forma clarae taxativa se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões comuns, do juízo <strong>de</strong> pessoas emque 6 preciso confiar ou com as quais se tem <strong>de</strong> trabalhar. Quantomenos interessada parece a informação, tanto mais turvo é ointeresse, o prazer reprimido <strong>de</strong> causar dor. Isso é inofensivo169


quando o informador quer predispor alguém contra as outras duaspartes e, ao mesmo tempo, trazer à luz as suas qualida<strong>de</strong>spessoais. Com maior frequência, apresenta-se como virtual portavozda opinião pública, que com <strong>de</strong>sapiedada objectivida<strong>de</strong> dá aenten<strong>de</strong>r à vítima toda a violência do anónimo, perante o qual esta<strong>de</strong>ve baixar a cabeça. A mentira torna-se patente na inútilpreocupação do injuriado, que nada sabe da injúria, pela suahonra, pela clarida<strong>de</strong> das relações, pela pureza íntima: logo queesta surge enredada no emaranhado do mundo, não faz mais,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Gregers Werle 12 , do que aumentar o enredamento. Com oseu zelo moral, o bem-intencionado converte-se em <strong>de</strong>struidor.116E vê lá como era mau. - Quem passou por perigosimprevistos, por súbitas catástrofes, refere muitas vezes que, <strong>de</strong>modo muito surpreen<strong>de</strong>nte, não sentiu angústia. O terror geral nãose volta especificamente contra eles, mas atinge-os como simpleshabitantes <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>, como membros <strong>de</strong> alguma gran<strong>de</strong>colectivida<strong>de</strong>. Eles habituam-se ao aci<strong>de</strong>ntal, geralmenteinanimado, como se em rigor não lhes importasse.Psicologicamente, a ausência <strong>de</strong> angústia expli-ca-se como falta<strong>de</strong> impressionabilida<strong>de</strong> perante o golpe arrasadorl. A liberda<strong>de</strong>das testemunhas oculares tem algo <strong>de</strong> traumático, afim à apatia. Oorganismo psíquico, <strong>de</strong> modo semelhante ao corpo, está emcorrespondência com vivências <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, que<strong>de</strong> algum modo lhe é peculiar. Se o objecto da experiência seeleva sobre as proporções do indivíduo, este em rigor já não oexperimenta, mas regista-o automaticamente, mediante umconceito sem intuição, como algo a ele externo, incomensurável,em relação ao qual se comporta tão friamente como o choquecatastrófico em relação a ele. No moral acontece algo semelhante.Quem comete acções que, segundo as normas reconhecidas, sãocontrárias à rectidão, como a vingança contra os inimigos, a falta<strong>de</strong> compaixão, dificilmente é consciente da culpa, e só medianteum penoso esforço a po<strong>de</strong> imaginar. A doutrina da razão doEstado, a separação <strong>de</strong> moral e política não é alheia a este facto.12 Personagem do drama O patoselvagem <strong>de</strong> H. Ibsen. [N. T.]170


No seu sentido concebe ela a extrema antítese <strong>de</strong> entida<strong>de</strong> públicapública e <strong>de</strong> existência individual. O gran<strong>de</strong> crime apresenta-se aoindivíduo em maior medida como simples ofensa à convenção,não só porque as normas que ele lesa mostram um aspectoconvencional, rígido e <strong>de</strong>spreocupado do sujeito vivo, mas porquea sua objectivação enquanto tal, inclusive on<strong>de</strong> se lhes po<strong>de</strong>encontrar certa substância, as coloca fora <strong>de</strong> toda a inervaçãomoral, fora do recinto da consciência. Todavia, a noção <strong>de</strong> faltaspessoais <strong>de</strong> tacto, microorganismos <strong>de</strong> injustiça, que talvezninguém advertiu, como ter-se sentado <strong>de</strong>masiado <strong>de</strong>pressa àmesa numa reunião ou ter posto bilhetes com os nomes dosconvidados a tomar o chá quando só se <strong>de</strong>ve fazer numa refeição- tais bagatelas po<strong>de</strong>m encher o <strong>de</strong>linquente <strong>de</strong> contínuoarrependimento e <strong>de</strong> insuportável má consciência, e por vezes, emocasiões <strong>de</strong> tão sufocante vergonha que seria capaz <strong>de</strong> a ninguémo confessar, nem sequer a si mesmo. Mas a sua atitu<strong>de</strong> está muitolonge <strong>de</strong> ser nobre, pois ele sabe que a socieda<strong>de</strong> nada temabsolutamente que censurar contra a inumanida<strong>de</strong> e muito contraas faltas <strong>de</strong> comportamento, e que um homem que rompe com asua amante e se apresenta como um senhor correcto po<strong>de</strong> estarcerto da aprovação social, enquanto outro que beijarespeitosamente a mão <strong>de</strong> uma ainda muito jovem mulher <strong>de</strong> boafamília se expõe ao ridículo. Mas as preocupações luxuriosamentenarcisistas apresentam ainda um segundo aspecto: o <strong>de</strong> refúgio daexperiência que ressalta da or<strong>de</strong>m objectivada. O sujeito chega aperceber os mínimos pormenores do impróprio ou do correcto, epo<strong>de</strong> neles confirmar se a sua acção é correcta ou incorrecta; masa sua indiferença perante a culpa moral surge matizada pelaconsciência <strong>de</strong> que a impotência da própria <strong>de</strong>cisão cresce com adimensão do seu objecto. Se posteriormente comprova que antes,ao romper com a amante e não mais a contactar, <strong>de</strong> facto já atinha rejeitado, a representação do facto tem em si algo cómico;recorda a muda <strong>de</strong> Portici. "Mur<strong>de</strong>r - diz-se num romance policial<strong>de</strong> Ellery Queen -is so... newspapery. It doesn't happen to you.You read about it in a paper, or in a <strong>de</strong>tective story, and it makesyou wriggle with disgust, or simpathy. But it doesn 't meenanything" Por isso, autores como Thomas Mann fizeram<strong>de</strong>scrições grotescas <strong>de</strong> catástrofes para sair nos jornais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oaci<strong>de</strong>nte ferroviário ao crime passional e, por assim dizer,171


aniram o riso que inevitavelmente provocam os acontecimentossolenes, como o enterro, ao fazer <strong>de</strong>les um tema poético. Asmínimas infracções, pelo contrário, são tão relevantes, porquenelas po<strong>de</strong>mos ser bons ou maus sem a seu respeito nos rirmos,embora a nossa serieda<strong>de</strong> seja um tanto maníaca. Apren<strong>de</strong>mosnelas a lidar com o moral, a senti-lo - como rubor - na nossa pele,a atribuí-lo ao sujeito, que olha a gigantesca lei moral <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sicom o mesmo <strong>de</strong>samparo com que contempla o céu estrelado, queaquela imita mal. Que estes pormenores sejam em si amorais,embora ocorram espontaneamente bons sentimentos, a simpatiahumana sem o pathos da máxima, não <strong>de</strong>svaloriza a <strong>de</strong>voção pelo<strong>de</strong>coroso. Os bons sentimentos, quando expressam o geral sem sepreocupar com a própria alienação, facilmente fazem que osujeito surja como alienado <strong>de</strong> si mesmo, como simples agentedos mandamentos com que se i<strong>de</strong>ntifica. Pelo contrário, aquelecujo impulso moral obe<strong>de</strong>ce ao inteiramente exterior, àconvenção feiticizada, consegue captar o geral no sofrimento<strong>de</strong>rivado da insuperável divergência entre o interno e o externo,em cuja rigi<strong>de</strong>z encontra apoio, sem o sacrifício <strong>de</strong> si mesmo e daverda<strong>de</strong> da sua experiência. Extremar todas as distâncias significaa reconciliação. O monomaníaco comporta-se aqui não semalguma justificação através do objecto. Na esfera do trato, on<strong>de</strong>fixa o seu capricho, reaparecem todas as aporias da vida falsa, e asua obcecação tem relação com o todo só porque aqui po<strong>de</strong>canalizar <strong>de</strong> forma paradigmática, com or<strong>de</strong>m e liberda<strong>de</strong>, o seualiás incontrolável conflito. Em contrapartida, quem <strong>de</strong> acordocom o seu modo reactivo se conforma com a realida<strong>de</strong> socialactua na sua vida privada com o mesmo jeito informe com que aavaliação das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r lhe impõe a sua forma. Sempreque escapa à vigilância do mundo exterior, sempre que se senteem casa no círculo alargado do seu eu, tem a tendência para semostrar <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rado e brutal. Vinga-se, nos que lhe são maischegados, <strong>de</strong> toda a disciplina e <strong>de</strong> toda a renúncia àexteriorização directa da agressão, que os que estão longe lheimpõem. Para fora, perante os inimigos objectivos, comporta-se<strong>de</strong> modo amistoso e cortês, mas em terra <strong>de</strong> amigos é frio e hostil.On<strong>de</strong> a civilização como auto-conservação não o força àcivilização como humanida<strong>de</strong> dá ré<strong>de</strong>a solta ao seu furor contraesta e contradiz a sua i<strong>de</strong>ologia do lar, da família e da172


comunida<strong>de</strong>. A esta i<strong>de</strong>ologia se opõe a moral micrologicamenteofuscada. No ambiente distensamente familiar, informe, encontrao pretexto para a violência, a ocasião <strong>de</strong>, visto serem bonsuns para os outros, ele po<strong>de</strong>r ser mau à discreção. Submete oíntimo à exigência crítica, porque as intimida<strong>de</strong>s alienam,mancham a aura <strong>de</strong>licada e subtil do outro, que é o único que opo<strong>de</strong> coroar como sujeito. Só mediante o reconhecimento dolonge no próximo se mitiga a alienida<strong>de</strong>: incorporando-a naconsciência. Mas a pretensão da proximida<strong>de</strong> perfeita econseguida, a negação da alienida<strong>de</strong>, comete contra o outro amáxima injustiça, nega-o virtualmente como pessoa singular e,portanto, o humano nele; "conta com ele", incor-pora-o noinventário da proprieda<strong>de</strong>. On<strong>de</strong> o imediato se afirma e resguarda,impõe-se sombriamente a má mediatida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>. Só amais precavida reflexão se po<strong>de</strong> encarregar da imediatida<strong>de</strong>. Paraisso se faz a prova no mais pequeno.117Il servo padrone. - Dos trabalhos embrutecedores, que acultura senhorial exige das classes baixas, tornam-se estascapazes só mediante uma permanente regressão. O informe nelasé produto da forma social. Mas a produção <strong>de</strong> bárbaros pelacultura sempre a aproveita esta para manter viva a sua própriaessência bárbara. A dominação <strong>de</strong>lega nos dominados a violênciafísica em que se apoia. Ao dar-lhes a satisfação <strong>de</strong> <strong>de</strong>safogar osseus instintos ocultos como algo colectivamente justo eequitativo, apren<strong>de</strong>m a fazer aquilo <strong>de</strong> que os nobres necessitamque façam para eles po<strong>de</strong>rem continuar a ser nobres. A autoeducaçãodos grupos dominantes com tudo o que exige disciplina,afogamento <strong>de</strong> toda a agitação directa, cepticismo cínico e cegoapetite <strong>de</strong> mando, seria inviável se os opressores não exercessemcontra si mesmos, por meio <strong>de</strong> oprimidos contratados, uma parteda opressão que exercem contra os outros. Daí que as diferençaspsicológicas entre as classes sejam muito menores do que aseconómico-objectivas. A harmonia do irreconciliável favorece aperpetuação da má totalida<strong>de</strong>. A vileza do superior enten<strong>de</strong>-secom a arrogância do vil. Há uma linha recta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as criadas e asgovernantas, que engodam as crianças das boas famílias para lhes173


incutir a serieda<strong>de</strong> da vida, passando pelos professores doWesterwald que lhes roubam tanto o uso <strong>de</strong> palavras estrangeirascomo o apreço <strong>de</strong> toda e qualquer língua, pelos funcionários eempregados que fazem bicha, pelos sub-oficiais que nelas entram,até aos torturadores da Gestapo e aos burocratas das câmaras <strong>de</strong>gás. Os movimentos dos <strong>de</strong> cima <strong>de</strong>pressa respon<strong>de</strong>m à <strong>de</strong>legaçãodo po<strong>de</strong>r nos <strong>de</strong>baixo. Quem se horroriza com os bons modos dospais foge para a cozinha à busca do calor das expressões fortes dacozinheira que, secretamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nham òs princípios da boaeducação paterna. A gente fina é atraída pela grosseira, cuja ru<strong>de</strong>zenganosamente lhe oferece a ocasião <strong>de</strong> matar a própria cultura.Não sabe que o ru<strong>de</strong>, que se lhe apresenta como naturezaanárquica, não passa do reflexo da coacção, a que se resiste. Entrea solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe dos <strong>de</strong> cima e a sua imposição aos<strong>de</strong>legados das classes baixas me<strong>de</strong>ia o justo sentimento <strong>de</strong> culpaperante os pobres. Mas quem apren<strong>de</strong>u a adaptar-se à grosseria,quem se <strong>de</strong>ixou invadir até ao mais íntimo pelo "É assim que sefaz aqui", acabou por ele próprio se tornar grosseiro. Aobservação <strong>de</strong> Bettelheim sobre a i<strong>de</strong>ntificação das vítimas comos verdugos dos campos nazis encerra o juízo acerca dosestimados alfobres da cultura: a public school inglesa, a aca<strong>de</strong>miamilitar alemã. O absurdo perpetua-se por meio <strong>de</strong> si mesmo: adominação transmite-se através dos dominados.118Sempre e cada vez mais baixo. - As relações privadas entreos homens formam-se, parece, segundo o mo<strong>de</strong>lo do bottleneckindustrial. Até na mais reduzida comunida<strong>de</strong>, o nível obe<strong>de</strong>ce aodo mais subalterno dos seus membros. Assim, quem naconversação fala <strong>de</strong> coisas fora do alcance <strong>de</strong> um só que sejacomete uma falta <strong>de</strong> tacto. O diálogo limita-se, por motivos <strong>de</strong>humanida<strong>de</strong>, ao mais chão, ao mais monótono e banal, quando napresença <strong>de</strong> um só "inumano". Des<strong>de</strong> que o mundo emu<strong>de</strong>ceu ohomem, tem razão o incapaz <strong>de</strong> argumentar. Não necessita maisdo que ser pertinaz no seu interesse e na sua condição paraprevalecer. Basta que o outro, num vão esforço por estabelecercontacto, adopte um tom argumentativo ou panfletário para setransformar na parte mais débil. Visto que o bottleneck não174


conhece nenhuma instância que vá além do factual, quando opensamento e o discurso remetem forçosamente para semelhanteinstância, a inteligência torna-se ingenuida<strong>de</strong>, e isso até osimbecis enten<strong>de</strong>m. A conjura pelo positivo actua como uma forçagravitatória, que tudo atrai para baixo. Mostra-se superior aomovimento que se lhe opõe, quando com ele já não entra em<strong>de</strong>bate. O diferenciado que não quer passar inadvertido persistenuma atitu<strong>de</strong> estrita <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração para com todos os <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rados.Estes já não precisam <strong>de</strong> sentir nenhuma intranquilida<strong>de</strong>da consciência. A <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> espiritual, confirmada comoprincípio universal, surge como força <strong>de</strong> vida. O expedienteformalisto--administrativo, a separação em compartimentos <strong>de</strong>tudo quanto pelo seu sentido é inseparável, a insistência fanáticana opinião pessoal na ausência <strong>de</strong> qualquer fundamento, a prática,em suma, <strong>de</strong> reificar todo o traço da frustrada formação do eu, <strong>de</strong>se subtrair ao processo da experiência e <strong>de</strong> afirmar o "sou assim"como algo <strong>de</strong>finitivo, é suficiente para conquistar posiçõesinexpugnáveis. Po<strong>de</strong> estar-se seguro do acordo dos outros,igualmente <strong>de</strong>formados, como da vantagem própria. Na cínicareivindicação do <strong>de</strong>feito pessoal pulsa a suspeita <strong>de</strong> que o espíritoobjectivo, no estádio actual, liquida o subjectivo. Estão down toearth, como os antepassados zoológicos, antes <strong>de</strong> se alçaremsobre as patas traseiras.119Espelho <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s. - É <strong>de</strong> todos conhecida acorrespondência entre a repressão e a moral como renúncia aosimpulsos. As i<strong>de</strong>ias morais não só reprimem os outros, mas<strong>de</strong>rivam ainda directamente da existência dos repressores. Des<strong>de</strong>Homero a língua grega usava os conceitos <strong>de</strong> bom e rico como sefossem convertíveis. A kaloka-gathia, que os humanistas dasocieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna propunham como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> harmoniaestética e moral, sempre pôs o acento na proprieda<strong>de</strong>, e a Política<strong>de</strong> Aristóteles reconhece abertamente a fusão do valor interiorcom o status na caracterização da nobreza, ao dizer que "aexcelência está unida à riqueza herdada". A concepção da polis naépoca clássica, na qual se afirmavam como unida<strong>de</strong> o interior e oexterior, o valor do indivíduo na cida<strong>de</strong>-Estado e o seu Si mesmo,175


tornou possível a atribuição <strong>de</strong> categoria moral à riqueza, sem seexpor à danosa suspeita que esta doutrina já então teria<strong>de</strong>spertado. Se no Estado então existente, o efeito visível é amedida do homem, então nada mais consequente do que valorizara riqueza material, que cria <strong>de</strong> um modo tangível esse seu efeito,como qualida<strong>de</strong>, pois a sua própria substância moral, não <strong>de</strong>modo diferente como, mais tar<strong>de</strong>, na filosofia <strong>de</strong> Hegel, <strong>de</strong>ve serconstituida pela sua participação na social e objectiva. Só ocristianismo negou essa i<strong>de</strong>ntificação na sentença <strong>de</strong> que é maisfácil que um camelo passe pelo olho <strong>de</strong> uma agulha do que umrico entrar no reino dos céus. Mas a singular valoração teológicada pobreza voluntária mostra quão profundamente está marcadapela consciência universal da moralida<strong>de</strong> da posse. A proprieda<strong>de</strong>fixa difere da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m nómada, com que toda a norma se<strong>de</strong>fronta; ser bom e ter bens coinci<strong>de</strong>m <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio. Bom éaquele que se domina a si mesmo, tal como domina a sua posse: oseu ser autónomo é uma cópia da sua disposição material. Daí quenão se <strong>de</strong>va acusar os ricos <strong>de</strong> imoralida<strong>de</strong> - tal censura serviusempre <strong>de</strong> escudo à repressão política - mas, sim, tomarconsciência <strong>de</strong> que são eles os que representam a moral para osoutros. Nela se reflecte a proprieda<strong>de</strong>. A riqueza como bonda<strong>de</strong> éum elemento aglutinador do mundo: a aparência sólida <strong>de</strong>ssai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> impe<strong>de</strong> a confrontação das i<strong>de</strong>ias morais com a or<strong>de</strong>mem que os ricos têm razão, ao mesmo tempo que outras<strong>de</strong>terminações concretas do moral, distintas das <strong>de</strong>rivadas dariqueza, são impossíveis <strong>de</strong> conceber. Quanto mais, ulteriormente,indivíduo e socieda<strong>de</strong> se separam na concorrência dos interesses,e quanto mais o indivíduo se acoita, em si mesmo, tanto maistenazmente se aferrará este à i<strong>de</strong>ia da essência moral da riqueza.Esta <strong>de</strong>ve garantir, <strong>de</strong>ntro e fora, a reunificação do cindido. Eis osegredo do ascetismo intramundano, do esforço ilimitado -falsamente hispostasiado por Max Weber - do comerciante admajorem Dei gloriam. O êxito material une indivíduo e socieda<strong>de</strong>não apenas no cómodo e cada vez mais duvidoso sentido <strong>de</strong> que orico po<strong>de</strong> fugir à solidão, mas noutro muito mais radical: se ointeresse particular cego e isolado se leva assaz longe, então opo<strong>de</strong>r económico passa a po<strong>de</strong>r social e revela-se comoencarnação do princípio unificador do todo. Quem é rico ouobtém riquezas sente-se como aquele que "com as próprias176


forças" realiza, enquanto Eu, aquilo que quer o espírito objectivo,a genuinamente irracional pre<strong>de</strong>stinação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> cujacoesão radica na brutal <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> económica. O rico po<strong>de</strong>assim atribuir a si como bonda<strong>de</strong> o que, todavia, apenas testifica asua ausência. Vê em si mesmo, e os outros nele, a realização doprincípio universal. E como tal princípio é a injustiça, o injustotorna-se regularmente justo, não já com ilusão, mas levado pelopo<strong>de</strong>r universal da lei segundo a qual a socieda<strong>de</strong> se reproduz. Ariqueza do indivíduo é inseparável do progresso na socieda<strong>de</strong> da"pré-história". Os ricos dispõem dos meios <strong>de</strong> produção. Os progressostécnicos <strong>de</strong> que participa a socieda<strong>de</strong> inteira são, pois,primariamente os "seus" progressos, hoje garantidos à indústria, eos Fords hão-<strong>de</strong> necessariamente parecer tanto mais benfeitores,como <strong>de</strong> facto são no marco das relações <strong>de</strong> produção existentes.O seu privilégio preestabelecido cria a aparência <strong>de</strong> que dãomuito do seu - ou seja, o crescimento pelo lado do valor <strong>de</strong> uso -,quando as benções por eles repartidas consistem apenas em fazerrefluir parte do lucro. Tal é a razão do carácter <strong>de</strong>slumbrante dahierarquia moral. A pobreza foi sempre, <strong>de</strong>certo, dignificadacomo ascese, a condição social para a aquisição da riqueza, naqual se manifesta a moralida<strong>de</strong>; mas, como se sabe, "what a manis worth " significa a conta bancária e, na gíria do tráficocomercial alemão, "<strong>de</strong>r Mann ist gut" indica que po<strong>de</strong> pagar. Oque a razão <strong>de</strong> Estado da todo-po<strong>de</strong>rosa economia tãocinicamente <strong>de</strong>clara atinge, inconfessadamente, os modos <strong>de</strong>conduta dos indivíduos. Nas relações privadas, a generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>que supostamente são capazes os ricos, a auréola <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>que os ro<strong>de</strong>ia, e da qual algo se transmite aos que eles acolhem,fazem <strong>de</strong> véu. Os ricos surgem como pessoas agradáveis, therightpeople, a gente bem, os bons. A riqueza distancia daimediata injustiça. O polícia, com o seu cassetete, dispersa osgrevistas, o filho do fabricante po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> vez em quando, tomar umuísque com o escritor progressista. Segundo todos os <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ratada moral privada, e ainda dos mais avançados, o rico po<strong>de</strong>ria, sequisesse, ser <strong>de</strong> facto melhor do que o pobre. Essa possibilida<strong>de</strong>real, sem dúvida <strong>de</strong>sperdiçada, <strong>de</strong>sempenha o seu papel nai<strong>de</strong>ologia dos que a não têm: até ao impostor <strong>de</strong>scoberto que, aofim e ao cabo, se po<strong>de</strong> preferir aos gran<strong>de</strong>s empresários legítimos,se <strong>de</strong>ve reconhecer o mérito <strong>de</strong> ter tido uma casa bonita, e o177


executivo bem pago torna-se um homem caloroso, quando serveopulentas ceias. A bárbara religião actual do êxito não é, pois,somente contrária à moral; o Oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>scobre também nela umcaminho para regressar aos honrosos costumes dos pais. Até asnormas que reprovam a organização do mundo lhe <strong>de</strong>vem a sua<strong>de</strong>formida<strong>de</strong>. Toda a moral se configurou sempre pelo mo<strong>de</strong>lo doimoral, e até hoje o reproduziu em todas as fases. A moral dosescravos é, <strong>de</strong> facto, má: é ainda e sempre a moral dos senhores.120O cavaleiro da rosa. - Das pessoas elegantes espera-se que,na sua vida privada, estejam isentas da ânsia <strong>de</strong> benefícios que,pela sua posição, a elas afluem <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro modo, e doestólido enredamento nas circunstâncias mais imediatas, que a sualimitação cria. Delas se espera o gosto aventureiro pelas i<strong>de</strong>ias, asoberania relativamente à situação dos interesses particulares, orefinamento das formas <strong>de</strong> reagir, e supõe-se que a suasensibilida<strong>de</strong> é contrária, pelo menos em espírito, à brutalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>que o seu próprio privilégio <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, ao passo que as vítimasdificilmente contam com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber o que é que asconverte em tais. Mas se a separação entre a produção e a esferaprivada acaba por se revelar como um elemento da necessáriaaparência social, tal expectativa <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> livre ver-se-á<strong>de</strong>fraudada. Nem o mais subtil snobismo tem algo <strong>de</strong> dégoût peloseu pressuposto objectivo, antes se fecha ao seu conhecimento.Ainda está por saber em que medida a nobreza francesa do séculoXVIII teve, <strong>de</strong> facto, na Ilustração e nos preparativos darevolução, aquela participação frivolamente suicida, que arepugnância pelos terroristas da virtu<strong>de</strong> tanto gosta <strong>de</strong> imaginar.Em todo o caso, a burguesia, também na sua fase tardia,conservou--se pura <strong>de</strong> tais inclinações. Já ninguém da série dançasobre o vulcão, se fosse um <strong>de</strong>sclassificado. Também no planosubjectivo está a society tão inteiramente mo<strong>de</strong>lada pelo princípioeconómico, cujo tipo <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> visa o todo, que lhe estávedada a sua emancipação do interesse, fosse só como mero luxointelectual. Assim como [os seus membros] são incapazes <strong>de</strong>saborear a riqueza enormemente acrescentada, assim são aomesmo tempo incapazes <strong>de</strong> pensar contra si mesmos. Vã é a178


usca da frivolida<strong>de</strong>. A eternização da diferença real entre o emcima e o em baixo é ajudada pelo facto <strong>de</strong> que ela, tanto aquicomo além, se <strong>de</strong>svanece sempre como diferença entre as formas<strong>de</strong> consciência. Os pobres são impedidos <strong>de</strong> pensar pela disciplinados outros, e os ricos pela sua própria. A consciência dosdominadores faz perante todo o espírito o que antes fazia com areligião. A cultura, para a gran<strong>de</strong> burguesia, torna-se um elementoda representação. Que alguém seja sagaz ou culto figura entre asqualida<strong>de</strong>s que o tornam apto para a vida social ou para omatrimónio, como ser bom cavaleiro, amar a natureza, ter encantoou vestir um fraque impecável. Carecem <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>intelectual. Na sua maioria, os isentos <strong>de</strong> preocupaçõessubmergem--se no quotidiano como os pequeno-burgueses.Arrumam as suas casas, organizam reuniões, buscamescrupulosamente as reservas para o hotel ou avião.Normalmente, alimentam-se do refugo do irracionalismo europeu.Justificam toscamente a sua hostilida<strong>de</strong> ao espírito, que já nopróprio pensamento, na in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> tudo o que é dado, doexistente, fareja a subversão, e não sem razão. Assim como notempo <strong>de</strong> Nietzsche, os filisteus da cultura acreditavam noprogresso, no ininterrupto <strong>de</strong>senvolvimento superior das massas ena máxima felicida<strong>de</strong> possível para o maior número possível,acreditam agora, sem eles próprios saberem, no contrário, na<strong>de</strong>rrogação <strong>de</strong> 1789, na incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> melhoria da naturezahumana, na impossibilida<strong>de</strong> antropológica da felicida<strong>de</strong> - ou sóem que esta, <strong>de</strong> qualquer modo, seria boa para os trabalhadores. Aprofundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> anteontem transformou-se em extremabanalida<strong>de</strong>. De Nietzsche e <strong>de</strong> Bergson, as últimas filosofiasrecebidas, nada mais resta do que o turvo anti-intelectualismo emnome <strong>de</strong> uma natureza sequestrada pelos seus apologetas. "Nadame incomoda tanto no III Reich - dizia em 1933 uma mulherjudia, esposa <strong>de</strong> um director geral, que <strong>de</strong>pois morreriaassassinada na Polónia - como o facto <strong>de</strong> agora não po<strong>de</strong>rmosutilizar a palavra telúrico, porque os nacionais-socialistas <strong>de</strong>la seapropriaram"; e ainda após a <strong>de</strong>rrota fascista, à hirta damaaustríaca, proprietária <strong>de</strong> um castelo, que encontrara num cocktailparty um dirigente operário, tido erradamente por radical, não lheocorreu, fascinada pela sua personalida<strong>de</strong>, fazer nada melhor doque repetir atoleimadamente "e é inintelectual, <strong>de</strong> todo179


inintelectual". Recordo ainda o meu espanto quando uma jovemaristocrata <strong>de</strong> vaga ascendência, que a custo conseguia falaralemão sem um afectado sotaque estrangeiro, me confessou a suasimpatia por Hitler, com cuja figura tão incompatível se afiguravaa sua. Pensei então que a sua encantadora imbecilida<strong>de</strong> a impedia<strong>de</strong> se dar conta <strong>de</strong> quem ela própria era. Mas era mais esperta doque eu, pois o que ela representava já não existia; a suaconsciência <strong>de</strong> classe, ao riscar o seu <strong>de</strong>stino individual, fez que oseu ser em si, a sua condição social, ficasse patente. É tão durointegrar-se em cima que a possibilida<strong>de</strong> da divergência subjectivase anula, e não há modo <strong>de</strong> buscar a diferença para lá do cortesubtil do vestido <strong>de</strong> noite.121Requiem por O<strong>de</strong>te. - A anglomania da camada superior daEuropa continental provém <strong>de</strong> que, na ilha, se ritualizaram certaspráticas feudais, que a si mesmas se bastam. A cultura não seafirma aí como esfera cindida do espírito objectivo, comoparticipação na arte ou na filosofia, mas como forma da existênciaempírica. A high life quer ser a vida bela. A quem nela participaproporciona-lhe um prazer i<strong>de</strong>ológico. Visto que a configuraçãoda existência se torna uma tarefa em que é preciso respeitar asregras do jogo, preservar artificialmente um estilo e manter um<strong>de</strong>licado equilíbrio entre a confecção e a in<strong>de</strong>pendência, a própriaexistência parece cheia <strong>de</strong> sentido e tranquiliza a má consciênciados socialmente supérfluos. A constante exigência <strong>de</strong> fazer edizer exactamente o a<strong>de</strong>quado ao status e à situação exige umaespécie <strong>de</strong> esforço moral. Suscitam-se até dificulda<strong>de</strong>s para se sero que se é, e assim se julga satisfazer o patriarcal noblesse oblige.Ao mesmo tempo, a <strong>de</strong>slocação da cultura das suas manifestaçõesobjectivas para a vida imediata evita o risco do transtorno daprópria imediatida<strong>de</strong> pelo espírito. Este rejeita-se comoperturbador do estilo seguro, como <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> gosto, e nãocom a penosa rusticida<strong>de</strong> do Junker a leste do Elba, mas <strong>de</strong>acordo com um critério, <strong>de</strong> certo modo espiritual, <strong>de</strong> estetizaçãoda vida quotidiana. Emerge assim a fagueira ilusão <strong>de</strong> se tersuperado a dissociação entre superstrutura e infra--estrutura, entrecultura e realida<strong>de</strong> corpórea. Mas, nos maneirismos aristocráticos,180


o ritual cai no costume tardo-burguês <strong>de</strong> hipostasiar como sentidoa realização <strong>de</strong> algo em si <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> sentido, <strong>de</strong> <strong>de</strong>bilitar oespírito na duplicação do que, sem mais, existe. A norma que sesegue é fictícia; <strong>de</strong>sapareceram os seus pressupostos sociais, talcomo o seu mo<strong>de</strong>lo, o cerimonial <strong>de</strong> corte; e se aquela se aceita,não é porque se experimente nela obrigatorieda<strong>de</strong> alguma, masporque legitima uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cuja ilegitimida<strong>de</strong> se tiravantagem, Proust, com a integrida<strong>de</strong> do facilmente seduzível,observou que a anglomania se encontra menos entre osaristocratas do que entre os que <strong>de</strong>sejam subir: do snob aoparvenu é apenas um passo. Daí a afinida<strong>de</strong> do snobismo com oJugendstil, com a tentativa da classe <strong>de</strong>finida pela troca <strong>de</strong> seprojectar numa imagem <strong>de</strong> beleza não contaminada pela troca, <strong>de</strong>beleza por assim dizer vegetal. Que a vida que se auto-organizanão é o 'mais' como vida revela-se no tédio dos cocktail parties edos convites para week-ends no campo, do simbólico golf paratoda a esfera e da organização <strong>de</strong> social affairs - privilégios emque ninguém encontra verda<strong>de</strong>ira diversão e com que osprivilegiados não fazem mais do que ocultar a si próprios arealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, na totalida<strong>de</strong> infeliz, também eles carecem dapossibilida<strong>de</strong> da alegria. No seu estádio mais recente, a vida belareduz-se ao que Veblen quis ver através das ida<strong>de</strong>s: a ostentação,o simples 'pertencer a'; e o parque não faculta já outro prazer anão ser o dos muros, contra os quais os <strong>de</strong> fora amachucam onariz. As camadas superiores, cujas malda<strong>de</strong>s se foram, semcessar, <strong>de</strong>mocratizando, <strong>de</strong>ixam ver cruamente o que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> háalgum tempo, se po<strong>de</strong> aplicar à socieda<strong>de</strong>: a vida tornou-se ai<strong>de</strong>ologia da sua própria ausência.122Monogramas. - Odiprofanum vulgus et arceo 13 , dizia o filho<strong>de</strong> um liberto.É difícil imaginar que os homens muito maus morram.Dizer nós, pensando no eu, é uma das humilhações maisselectas.13 Horácio, Carmina, lib. III. [N.T.]181


Entre "sonhei" e "pus-me a sonhar" inscrevem-se todas asida<strong>de</strong>s do mundo. Mas o que é mais verda<strong>de</strong>iro? Quanto menossonhos os espíritos enviam tanto menos é o eu que sonha.Por ocasião dos oitenta e cinco anos <strong>de</strong> um homem em todosos aspectos muito bem cuidado, interroguei-me em sonhos sobreo que lhe po<strong>de</strong>ria oferecer para lhe dar uma verda<strong>de</strong>ira alegria e,<strong>de</strong> imediato, me veio a resposta: um guia para entrar no reino dosmortos.Que Leporello tenha <strong>de</strong> se queixar da escassa comida e dopouco dinheiro <strong>de</strong>ixa dúvidas sobre a existência <strong>de</strong> Don Juan.Bem cedo, na minha infância, vi pela primeira vez osvarredores, limpando a neve com umas roupas ligeiras e coçadas.À minha pergunta respon<strong>de</strong>u-se que eram homens sem trabalho, eque lhes era dada essa ocupação para ganhar o pão. "Então, aindabem que têm <strong>de</strong> limpar a neve", exclamei furioso, para logochorar <strong>de</strong>sconsoladamente.O amor é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber o semelhante no dissemelhante.Propaganda <strong>de</strong> um circo em Paris, antes da Segunda Guerra:Plus sport que le théatre, plus vivant que le cinema.Um filme que satisfizesse rigorosamente o co<strong>de</strong> da HaysOffice po<strong>de</strong>ria talvez consi<strong>de</strong>rar-se uma gran<strong>de</strong> obra <strong>de</strong> arte, masnão no mundo on<strong>de</strong> existe uma Hays Office.Verlaine: o pecado mortal perdoável.Bri<strong>de</strong>shead Revisited <strong>de</strong> Evelyn Waugh: o esnobismosocializado.Zille açoita a miséria no rabo.Scheler: Le boudoir dans la philosophie.Num poema <strong>de</strong> Liliencron <strong>de</strong>screve-se a música militar.Começa assim: "E pela esquina irrompe atroadora, qual trombetado Juízo Final"; e conclui: "Alguma borboleta multicolor, / chim,chim, bum, dobrou a esquina?" Filosofia poética da violência nahistória, com o Dia do Juízo no começo e a mariposa no final.No Entlang <strong>de</strong> Trakl encontra-se este verso: "Diz-me <strong>de</strong>s<strong>de</strong>quando estamos mortos"; e nos Gol<strong>de</strong>ne Sonette <strong>de</strong> Dãubler:"Quão certo é que já há muito morremos." A unida<strong>de</strong> doexpressionimo consiste na expressão <strong>de</strong> que homens totalmenteestranhos uns aos outros, que a vida abandonou, se transformaramassim em mortos."182


Entre as formas que Borchardt experimentou não faltamelaborações da canção popular. Receia dizer "em tom popular" e,em seu lugar, diz "no tom do povo". Mas tal soa como "em nomeda lei". O poeta restaurador acaba em polícia prussiano.A <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira tarefa que o pensamento tem diante <strong>de</strong> si não épôr todos os argumentos reaccionários contra a cultura oci<strong>de</strong>ntalao serviço da ilustração progressista.Só são verda<strong>de</strong>iros os pensamentos que a si mesmos não secompreen<strong>de</strong>m.Quando a velhinha levava a lenha para a fogueira, Husexclamou: sancta simplicitas! Mas qual foi a causa do seusacrifício, a comunhão sob as duas espécies? Toda a reflexão seafigura ingénua perante outra mais alta, e nada há que sejasimples, porque tudo se torna simples na pesarosa fuga doesquecimento.Só serás amado on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>s mostrar-te débil, sem provocar aforça.123O mau camarada. - Em rigor, eu <strong>de</strong>veria po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>duzir ofascismo das recordações da minha infância. Como umconquistador nas províncias mais longínquas, ele tinha para alienviado os seus emissários, muito antes <strong>de</strong> aparecer: os meuscolegas <strong>de</strong> escola. Se a classe burguesa abrigava já, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> temposimemoriais, o sonho da ru<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> do povo, da opressão <strong>de</strong>todos por todos, então foram crianças, <strong>de</strong> nome Horst e Jíirgen e<strong>de</strong> apelido Bergenroth, Bojunga e Eckhardt, que encenaram osonho, antes <strong>de</strong> os adultos estarem historicamente amadurecidospara o realizar. Senti a violência da imagem terrível, a queaspiravam, com tal evidência que toda a sorte ulterior me pareceuprovisória ou falsa. A irrupção do Terceiro Reich colheu <strong>de</strong>surpresa o meu juízo político, mas não a minha angústiainconsciente. Todos os motivos da permanente catástrofe osvivera tão <strong>de</strong> perto, tão in<strong>de</strong>léveis estavam em mim as marcas <strong>de</strong>fogo do <strong>de</strong>spertar alemão, que imediatamente os pu<strong>de</strong> reconhecernos traços da ditadura hitleriana; e no meu louco assombroimaginava amiú<strong>de</strong> que o Estado total tivesse sido expressamenteinventado contra mim, para ainda me fazer aquilo <strong>de</strong> que na183


minha infância, na minha pré-história, ficara temporalmentedispensado. Os cinco patriotas que se lançaram contra umcompanheiro sozinho, o espancaram e, quando ele se queixou aoprofessor, o acusaram <strong>de</strong> traidor, não são os mesmos quetorturaram os prisioneiros para <strong>de</strong>smentir aos estrangeiros, quefalavam da tortura daqueles? A sua gritaria não tinha fim, quandoo primeiro da turma falhava - não eram os mesmos que,surpreendidos e sarcásticos, ro<strong>de</strong>aram o ju<strong>de</strong>u retido para <strong>de</strong>leescarnecer quando, com pouca habilida<strong>de</strong>, tentara enforcar-se? Osque não sabiam construir uma frase correcta, mas achavam asminhas <strong>de</strong>masiado compridas - não eram os que acabaram com aliteratura alemã, substituindo-a pelos seus gata-funhos? Algunscobriam o peito <strong>de</strong> insígnias enigmáticas e queriam ser oficiais damarinha em terra, quando já há muito não havia marinha:<strong>de</strong>claravam-se chefes <strong>de</strong> batalhão e porta-estandartes, legitimistasda ilegitimida<strong>de</strong>. Os inteligentes macilentos que na aulativeram tão pouco êxito como no liberalismo o amador dotado,mas sem contactos; que, por isso, e para agradar aos pais, se<strong>de</strong>dicaram a trabalhos <strong>de</strong> marchetaria ou, para prazer próprio, apassar longas tar<strong>de</strong>s diante do quadro fazendo complicados<strong>de</strong>senhos com tintas <strong>de</strong> cores, todos eles ofereceram ao TerceiroReich as suas sinistras aptidões a fim <strong>de</strong>, mais uma vez, seremenganados. Mas os que incessantemente se revoltavam contra oprofessor e, como se dizia, perturbavam as aulas, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia,ou melhor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a hora do ano terminal do liceu formaram umaaliança com os mesmos professores à mesma mesa, com a mesmacerveja, tornaram-se apaniguados, rebel<strong>de</strong>s, em cujo impacientesoco sobre a mesa ressoava já a adoração dos senhores. Bastavalhesestar sentados para ultrapassarem os que tinham acabado ocurso, e <strong>de</strong>les assim se vingarem. Des<strong>de</strong> que, como funcionários ecandidatos da morte, emergiram visíveis do sonho e me<strong>de</strong>sapropriaram da minha vida passada e da minha língua, já nãopreciso <strong>de</strong> sonhar com eles. No fascismo, o pesa<strong>de</strong>lo da infânciavoltou a si próprio.1935.184


124Quebra-cabeças. - Po<strong>de</strong> adivinhar-se a partir <strong>de</strong> algumasobservações a razão por que, não obstante o avanço da evoluçãohistórica para a oligarquia, os trabalhadores sabem cada vezmenos o que são. Quando as relações do proprietário e dosprodutores com o aparelho da produção se consolidamobjectivamente <strong>de</strong> um modo cada vez mais rígido, tanto maisflutuante se torna a pertença subjectiva a uma classe. Estasituação é favorecida pelo próprio <strong>de</strong>senvolvimento económico.A estrutura orgânica do capital, como amiú<strong>de</strong> se constatou, requerum controlo pelos organizadores técnicos mais do que pelosproprietários das fábricas. Estes eram, por assim dizer, a parteoposta ao trabalho vivo; aqueles representam a participação dasmáquinas no capital. Mas a quantificação dos processos técnicos,a sua <strong>de</strong>composição em operações mais pequenas e, em gran<strong>de</strong>medida, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da formação e da experiência faz, em grauconsi<strong>de</strong>rável, das habilida<strong>de</strong>s dos directores <strong>de</strong> novo estilo umamera ilusão, por trás da qual se escon<strong>de</strong> o privilégio <strong>de</strong> seradmitido.O facto <strong>de</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento técnico ter alcançado umestádio que permite a todos <strong>de</strong>sempenhar todas as funções é umelemento imanentemente socialista do progresso que, sob o industrialismotardio, surge travestido. A pertença à elite é algo que atodos parece acessível. Basta apenas esperar pela cooptação. Aidoneida<strong>de</strong> consiste na afinida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a ocupação libidinosa queconstitui todo o manejar até à fresca e alegre Realpolitik,passando pela sã convicção tecnocrata. Peritos só o são enquantotais no controlo. Que toda a gente possa ser um <strong>de</strong>les não levou àsua extinção, mas à probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser chamado. O preferido éo que melhor encaixa. Os eleitos permanecem, <strong>de</strong>certo, umaínfima minoria, mas a possibilida<strong>de</strong> estrutural chega paraassegurar com êxito, <strong>de</strong>ntro do sistema, a aparência da igualda<strong>de</strong><strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s que a livre concorrência, que vivia <strong>de</strong> talaparência, eliminara. Que as forças técnicas permitam umasituação <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> privilégios atribuem--no todosten<strong>de</strong>ncialmente, inclusive os que estão na sombra, às relaçõessociais que a impe<strong>de</strong>m. A pertença subjectiva a uma classe mostrahoje, em geral, uma mobilida<strong>de</strong> que faz esquecer a rigi<strong>de</strong>z daprópria or<strong>de</strong>m económica: o rígido é sempre, ao mesmo tempo, o185


<strong>de</strong>slocável. Até a impotência do indivíduo para calcularpreviamente o seu <strong>de</strong>stino económico contribuiu para estaconfortante mobilida<strong>de</strong>. Não é a falta <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> asua ruína, mas uma trama opaca e hierarquizada em que ninguém,nem sequer os que estão na cúspi<strong>de</strong>, se po<strong>de</strong> sentir seguro:igualda<strong>de</strong> na ameaça. Quando, no mais bem sucedido filme <strong>de</strong> umdado ano, o heróico capitão <strong>de</strong> aviação regressa para se <strong>de</strong>ixaratormentar como um drugstore jerk por caricaturas <strong>de</strong> pequenoburgueses,não causa apenas satisfação à inconscientemalignida<strong>de</strong> dos espectadores; confirma-os também naconsciência <strong>de</strong> que todos os homens são irmãos. A extrema injustiçaconverte-se em imagem enganadora da justiça, e a <strong>de</strong>squalificaçãodos homens na da sua igualda<strong>de</strong>. Mas os sociólogos estãoperante uma <strong>de</strong>sconcertante adivinha: on<strong>de</strong> está o proletariado?125Olet. - Na Europa, o passado pré-burguês sobrevivera navergonha <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar pagar por serviços ou favores pessoais.Disso já nada sabe o Novo Continente. No velho, sem dúvida,ninguém fazia nada sem compensação, mas isso sentia-se comouma ferida. A nobreza, que não provém <strong>de</strong> nada melhor do que domonopólio do solo, era i<strong>de</strong>ologia. Mas impregnara assazprofundamente os caracteres para não os levar a dobrar a cervizperante o mercado. A classe dominante alemã, até bem <strong>de</strong>ntro doséculo XX, só permitia obter dinheiro através dos privilégios oudo controlo sobre a produção. O que para os artistas e os literatosconstituía um <strong>de</strong>scrédito, e contra tal eles próprios quase semprese revoltaram, era a remuneração; e o preceptor Höl<strong>de</strong>rlin, comotambém o pianista Liszt, tiveram aquelas experiências que, emseguida, se transformariam, na sua antítese, em consciênciadominante. Até hoje, o que cruamente <strong>de</strong>terminou a pertença <strong>de</strong>um homem à classe superior ou à inferior foi ganhar ou nãodinheiro. Às vezes, a altivez má tornava-se crítica consciente.Todas as crianças da classe alta europeia enrubesciam quando osseus pais lhes davam dinheiro, e embora o predomínio dautilida<strong>de</strong> burguesa tenha interrompido tais reacções, sobrecompensando-as,ainda permanecia <strong>de</strong>sperta a dúvida <strong>de</strong> se o homemteria sido criado para a troca. Na consciência europeia, os186


esquícios do antigo foram os fermentos do novo. Na América,pelo contrário, nenhuma criança <strong>de</strong> pais bem colocados temescrúpulos que a impeçam <strong>de</strong> ganhar alguns cêntimosdistribuindo jornais, e tal inconsi<strong>de</strong>ração tornou-se um hábito nosadultos. Por isso, ao europeu não avisado todos os Americanosparecem gente sem dignida<strong>de</strong>, disposta a realizar serviçosrecompensados; e estes ten<strong>de</strong>m, pelo contrário, a consi<strong>de</strong>rar oeuropeu como um vagabundo e imitador <strong>de</strong> príncipes. Aevidência da máxima <strong>de</strong> que o trabalho não <strong>de</strong>sonra, a cândidaausência <strong>de</strong> todo o snobismo perante o contrário à honra - nosentido feudal - das relações <strong>de</strong> mercado e à <strong>de</strong>mocracia doprincípio aquisitivo contribuem para a perpetuação do elementoanti<strong>de</strong>mocrático por excelência, da injustiça económica, da <strong>de</strong>gradaçãohumana. A ninguém ocorre pensar que po<strong>de</strong>ria fazeralguma coisa não expressável em valor <strong>de</strong> troca. Tal é opressuposto real do triunfo da razão subjectiva, que é incapaz <strong>de</strong>conceber sequer algo verda<strong>de</strong>iro valioso em si e o apreen<strong>de</strong>sempre como para outro, como trocável. Se além o orgulho era ai<strong>de</strong>ologia, aqui é o atendimento do cliente. Isto vale igualmentepara os produtos do espírito objectivo. A vantagem imediata eparticular no acto da troca, o mais limitado subjectivamente,interdiz a expressão subjectiva. A negociabilida<strong>de</strong> - o a priori daprodução consequentemente ajustada ao mercado - não permiteque surja a necessida<strong>de</strong> espontânea daquela, da própria coisa. Atéos produtos da cultura exibidos e repartidos pelo mundo com amaior ostentação repetem, embora por obra <strong>de</strong> uma maquinariaindiscernível, os gestos do músico <strong>de</strong> restaurante, que olha <strong>de</strong>soslaio para o pratinho em cima do piano, enquanto toca asmelodias favoritas dos seus patrões. Os orçamentos da indústriacultural contam-se em milhares <strong>de</strong> milhões, mas a lei formal dassuas realizações é a gorjeta. O brilho excessivo, a limpezahigiénica da cultura industrializada é o único rudimento que restadaquela vergonha, uma imagem evocadora comparável à dosfracs dos altos managers <strong>de</strong> hotel, que, para não se confundiremcom os maîtres, ultrapassam em elegância os aristocratas, <strong>de</strong>modo que acabam por serem confundidos com os maítres.187


126Q. I. - As formas <strong>de</strong> comportamento a<strong>de</strong>quadas ao estádiomais avançado do <strong>de</strong>senvolvimento técnico não se limitam aosectores on<strong>de</strong>, em rigor, se exigem. O pensamento não sesubmete, pois, ao controlo social da produção, on<strong>de</strong> este seencontra profissionalmente constrangido, mas aproxima-se <strong>de</strong>toda a sua complexida<strong>de</strong>. Porque o pensamento se vira para ocumprimento <strong>de</strong> tarefas assinaladas, também o não assinalado étratado segundo o esquema da tarefa. O pensamento, que per<strong>de</strong>u aautonomia, não se atreve já a conceber em liberda<strong>de</strong> o real pormor <strong>de</strong>le mesmo. Deixa isso, com respeitosa ilusão, para os maisbem pagos, e, por conseguinte, torna-se a si mesmo medível. Porsi comporta-se já ten<strong>de</strong>ncialmente como se, <strong>de</strong> modo incessante,tivesse <strong>de</strong> dar provas da sua aptidão. E on<strong>de</strong> nada há a resolver, opensamento transforma-se em treino perante qualquer exercícioque importa realizar. Comporta-se com os seus objectos como sefossem simples barreiras, como um permanente teste <strong>de</strong> si própriona forma <strong>de</strong> ser. Consi<strong>de</strong>rações que preten<strong>de</strong>m dar conta da suarelação ao tema e, portanto, ser responsáveis <strong>de</strong> si mesmassuscitam a suspeita <strong>de</strong> não passarem <strong>de</strong> uma auto-satisfaçãovaidosa, fútil e associai. Assim como para os neopositivistas oconhecimento se cin<strong>de</strong> em empiria cumulativa e formalismológico, assim também a activida<strong>de</strong> espiritual do tipo a que seatribui a ciência unificada se polariza em inventário do sabido ecomprovação da capacida<strong>de</strong> cogitativa: todo o pensamento setransforma para eles em concurso sobre a instrução e aidoneida<strong>de</strong>. Algures terão <strong>de</strong> constar já as respostas correctas. Oinstrumentalismo, a mais recente versão do pragmatismo, hámuito que já não é uma simples questão da aplicação dopensamento, mas o a priori da sua própria forma. Quando osintelectuais da oposição preten<strong>de</strong>m, a partir do interior <strong>de</strong>sseciclo, mudar o conteúdo da socieda<strong>de</strong>, esta paralisa a forma dasua própria consciência, mo<strong>de</strong>lada <strong>de</strong> antemão pelas necessida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> tal socieda<strong>de</strong>. Ao esquecer-se <strong>de</strong> a si mesmo se pensar, opensamento tornou-se ao mesmo tempo uma instância absoluta <strong>de</strong>auto-exame. Pensar nada mais significa do que estar a cadainstante alerta <strong>de</strong> se ainda se po<strong>de</strong>rá pensar. Daí o aspectoestrangulado que ainda possui toda a produção espiritual188


aparentemente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, tanto teórica como artística. Asocialização do espírito mantém este resguardado, banido, sobuma redoma, enquanto a própria socieda<strong>de</strong> continuar prisioneira.Assim como antes o pensar interiorizava as obrigaçõesparticulares estabelecidas a partir <strong>de</strong> fora, hoje a sua integraçãoincorpora-se no aparelho englobante e nele perece, ainda antes <strong>de</strong>o afectarem os veredictos económicos e políticos.127Wishful Thinking. - A inteligência é uma categoria moral. Aseparação <strong>de</strong> sentimento e entendimento, que permite ao imbecilfalar livremente e com <strong>de</strong>leite, hipostasia a cisão historicamenteconsumada do homem nas suas funções. No elogio dasimplicida<strong>de</strong> refulge a preocupação <strong>de</strong> que o separado se torne aencontrar e <strong>de</strong>rrube a <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>. "Se tens intelecto e umcoração - diz um dístico <strong>de</strong> Höl<strong>de</strong>rlin -, mostra apenas um <strong>de</strong>les. /Porque ambos te amaldiçoarão, se juntos os mostrares." O<strong>de</strong>sprezo do entendimento limitado comparado com a razãoinfinita, mas enquanto infinita sempre imperscrutável para osujeito finito, <strong>de</strong> que a filosofia se faz eco, ressoa, pese ao seuconteúdo crítico, no mote: "Age sempre com lealda<strong>de</strong> e rectidão".Quando Hegel mostra ao entendimento a sua própria estupi<strong>de</strong>z,não está apenas a revelar à <strong>de</strong>terminação isolada da reflexão, atodo o tipo <strong>de</strong> positivismo, a sua medida <strong>de</strong> inverda<strong>de</strong>, mas tornaseao mesmo tempo cúmplice na proibição <strong>de</strong> pensar, <strong>de</strong>tém otrabalho negativo do conceito, que o próprio método exige levar acabo e, no mais alto pico da especulação, intima o pastorprotestante a recomendar ao seu rebanho que persista comorebanho, em vez <strong>de</strong> confiar nas suas débeis luzes. Conviria mais àfilosofia buscar, na contraposição <strong>de</strong> entendimento e sentimento,a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos: a unida<strong>de</strong> moral. A inteligência, comofaculda<strong>de</strong> do juízo, no seu cumprimento, opõe-se ao dado, aomesmo tempo que o expressa. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> julgar que se aparta domovimento pulsional serve justamente este graças a um momento<strong>de</strong> reacção contra o social. A faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar me<strong>de</strong>-se pelafirmeza do eu. Mas também assim se me<strong>de</strong> pela dinâmica daspulsões, que a divisão do trabalho da alma <strong>de</strong>ixa para osentimento. O instinto, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> perserverar, é uma189


implicação sensitiva da lógica. Quando nela o sujeito que julga seesquece <strong>de</strong> si mesmo, mostra-se incorruptível, celebra a suavitória. Como, pelo contrário, no âmbito mais estreito, os homensse tornam estúpidos on<strong>de</strong> justamente começa o seu interesse e, emseguida, dirigem o seu ressentimento contra o que não querementen<strong>de</strong>r, porque receiam entendê-lo <strong>de</strong>masiado bem, a estupi<strong>de</strong>zplanetária, impedida pelo mundo presente <strong>de</strong> ver o absurdo da suaprópria instituição, continua ainda a ser o produto do interessenão sublimado nem superado dos dominadores. A curto--prazo, e<strong>de</strong> forma irresistível, o interesse ir-se-á fossilizando num esquemaanónimo do curso da história. Correspon<strong>de</strong>-lhe a estupi<strong>de</strong>z e ateimosia do indivíduo; a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> unificar conscientementeo po<strong>de</strong>r do preconceito e a ocupação. Tal incapacida<strong>de</strong>acompanha regularmente o moralmente <strong>de</strong>feituoso, a falta <strong>de</strong>autonomia e <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>; encontra-se ao mesmo tempotão imbuída <strong>de</strong> racionalismo socrático que com dificulda<strong>de</strong> lhe épossível imaginar que seres humanos verda<strong>de</strong>iramente sensatos,cujos pensamentos se voltam para os seus objectos sem secentrarem formalis-ticamente a si mesmos, possam ser maus. Poisa motivação do mal, a cega submissão à contingência do pessoal,ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>svanecer-se no meio do pensamento. A frase <strong>de</strong> Scheler<strong>de</strong> que todo o conhecimento se funda no amor era mentira, porquepostulava <strong>de</strong> modo imediato o amor ao intuído. Seria verda<strong>de</strong>ira,se o amor impelisse à dissolução <strong>de</strong> toda a aparência <strong>de</strong>imediatida<strong>de</strong> e fosse, assim, inconciliável com o objecto doconhecimento. Contra a cisão do pensamento <strong>de</strong> nada serve asíntese <strong>de</strong> forças psíquicas mutuamente estranhas, nem acontaminação terapêutica da ratio com fermentos irracionais, masa auto-reflexão aplicada ao elemento do <strong>de</strong>sejo, o pensarenquanto pensar antiteticamente constituído. Só quando aqueleelemento puro, sem resto heterónomo, se dilui na objectivida<strong>de</strong>do pensamento, impele à utopia.128Regressões. - A minha mais antiga recordação <strong>de</strong> Brahms, ecertamente não só a minha, é o "Guten Abend, gut' Nacht". Umatotal incompreensão do texto: eu não sabia que Nägleinsignificava lilás ou, em algumas regiões, cravo, e imaginava190


pequenos pregui-nhos e, entre eles, as tachas com que estavamseguras as cortinas do dossel das camas como a minha, nas quaisa criança, ainda numa obscurida<strong>de</strong> protegida <strong>de</strong> todo o raio <strong>de</strong> luz,podia dormir sem luz durante muito tempo - "até que a vaca valhaalgum dinheiro", diz--se em Hessen. Quão para trás da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<strong>de</strong> tais cortinas ficam as flores. Nada nos aparece como a maisperfeita clarida<strong>de</strong> do que a obscurida<strong>de</strong> inconsciente, nadasubstitui o que alguma vez po<strong>de</strong>ríamos ser excepto o sonho <strong>de</strong>jamais termos nascido."Dorme em paz, / fecha os olhinhos / ouve a chuva a cair, /escuta o cãozinho do vizinho a ladrar. / O cãozinho mor<strong>de</strong>u nohomem, / rasgou as roupas do mendigo, / o mendigo corre para oportão. / Dorme em paz."A primeira estrofe da canção <strong>de</strong> embalar <strong>de</strong> Taubert causaarrepio. Todavia, os seus dois últimos versos bendizem o sonocom a promessa da paz. Esta não se <strong>de</strong>ve inteiramente à dureza doburguês, à tranquilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter afastado o intruso. A criança,cansada e serena, já quase esqueceu a expulsão do estranho que,no Lie<strong>de</strong>rbuch <strong>de</strong> Schott surge como um ju<strong>de</strong>u - e no verso "omendigo corre para o portão" pressente o <strong>de</strong>scanso, sem pensar namiséria dos outros. Enquanto houver um só mendigo, diz-se numfragmento <strong>de</strong> Benjamin, continuará a existir o mito; só com o<strong>de</strong>saparecimento do último seria o mito reconciliado. Mas não seesqueceria assim toda a violência, como no suave adormecer dacriança? Chegará o <strong>de</strong>saparecimento do mendigo a reparar o danoque se lhe fez, quando este é em si irreparável? Não se oculta emtoda a perseguição por meio dos homens, que com o cãozitoaçulam a natureza inteira contra o mais débil, a esperança <strong>de</strong> seeliminar o último vestígio <strong>de</strong> perseguição, que é também a partedo natural? Não estaria o mendigo, que é expulso das portas dacivilização, resguardado no seu domicílio, livre da maldição daterra? "Agora po<strong>de</strong>s dormir tranquilo, o mendigo encontra asilo."Des<strong>de</strong> que consigo pensar, sempre me amargurou ouvir acanção Zwischen Berg und tiefem, tiefem Tal, a canção das duaslebres comendo felizes na erva, atingidas pelo tiro do caçador eque, ao advertir que ainda estavam vivas, dali fugiram. Mas sómais tar<strong>de</strong> compreendi a lição: a razão só po<strong>de</strong> admitir isso no<strong>de</strong>sespero ou na exaltação; necessita do absurdo para nãosucumbir ao contra--senso objectivo. Há que imitar as duas191


lebres; quando soa o tira, dar-se por morto, voltar a si, reflectir e,se ainda restar alento, fugir dali. É a mesma a força da angústia eda felicida<strong>de</strong>, o ilimitado e crescente estar aberto à experiência atéao abandono <strong>de</strong> si, a uma experiência em que o caído sereencontra. Que felicida<strong>de</strong> seria aquela que não se me<strong>de</strong> pelaimensa dor do existente? Pois o curso do mundo estátranstornado. Quem a ele cuidadosamente se adapta torna-separticipante <strong>de</strong>sse contra-senso, ao passo que só o excêntrico sepo<strong>de</strong> manter firme e pôr algum freio ao <strong>de</strong>svario. Só ele po<strong>de</strong>riareflectir sobre a aparência do infortúnio, sobre a "irrealida<strong>de</strong> do<strong>de</strong>sespero", aperceber-se não só <strong>de</strong> que ainda vive, mas, a<strong>de</strong>mais,<strong>de</strong> que ainda existe a vida. A astúcia das impotentes lebres redimetambém o caçador, a quem ela surripia a sua culpa.129Serviço ao cliente. - A indústria cultural preten<strong>de</strong> hipocritamenteacomodar-se aos consumidores e subministrar-lhes o que<strong>de</strong>sejam. Mas enquanto diligentemente evita toda a i<strong>de</strong>ia relativaà sua autonomia e proclama juizes as suas vítimas, a suadissimulada soberania ultrapassa todos os excessos da arteautónoma. A indústria cultural não se adapta tanto às reacções dosclientes quanto os inventa. Exercita-se neles, comportando-secomo se ela própria fosse um cliente. Po<strong>de</strong>ria levantar-se asuspeita <strong>de</strong> que todo o ajustamento a que ela própria asseveraobe<strong>de</strong>cer é i<strong>de</strong>ologia; os homens tratariam tanto mais <strong>de</strong> se ajustaruns aos outros e ao todo quanto, mediante a extrema igualda<strong>de</strong>, e<strong>de</strong>claração reveladora da impotência social, mais procuramparticipar no po<strong>de</strong>r e impedir a igualda<strong>de</strong>. "A música ressoa parao ouvinte", e o cinema utiliza à escala do trust a repugnanteartimanha dos adultos que, quando querem bajular as crianças, asassaltam com a linguagem que esperariam <strong>de</strong>las se lhes falassem,apresentando-lhes obsequiosos a quase sempre duvidosa prendacom a expressão <strong>de</strong> encanto barulhento que nelas <strong>de</strong>sejamprovocar. A indústria cultural está moldada pela regressãomimética, pela manipulação <strong>de</strong> impulsos imitativos recalcados.Para tal serve-se do método que consiste em antecipar a imitaçãoque <strong>de</strong>la fazem os espectadores, criando a impressão <strong>de</strong> que oconsenso que <strong>de</strong>seja suscitar é algo já existente. Por isso, é tanto192


mais eficaz quanto num sistema estável po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> facto, contarcom semelhante consenso, e reiterá-lo <strong>de</strong> modo ritual, antes <strong>de</strong> osuscitar. O seu produto não é um estímulo, mas um mo<strong>de</strong>lo paraas formas <strong>de</strong> reagir a um estímulo inexistente. Daí o inspiradotítulo musical no cinema, a ridícula linguagem infantil, opopulismo chocarreiro; até os gran<strong>de</strong>s planos do começo parecemexclamar: que bonito! Com este procedimento, a máquina culturalaproxima-se tanto do corpo do espectador como o comboiofotografado <strong>de</strong> frente no momento <strong>de</strong> tensão. Mas o tom <strong>de</strong> cadafilme é o da bruxa que oferece aos pequenos que quer enfeitiçarou <strong>de</strong>vorar o prato com o murmúrio terrífico: "Está boa a sopinha,gostas da sopinha? Oh, far-te-á bem, muito bem <strong>de</strong>certo!" Na arte,este fogo enfeitiçado <strong>de</strong> cozinha inventou-o Wagner, cujasintimida<strong>de</strong>s idiomáticas e a<strong>de</strong>reços musicais se <strong>de</strong>gustamcontinuamente a si mesmos; e, com genial impulso <strong>de</strong> confissão,chegou a mostrar todo o processo na cena do Anel, em que Mimeoferece a Siegfried a beberagem envenenada. Mas quem cortará acabeça ao monstro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> já há tanto tempo estar com a loiracabeleira <strong>de</strong>baixo da tília?130Cinzento e cinzento. - Também a sua má consciência em nadaajuda a indústria cultural. O seu espírito é tão objectivo quemagoa os seus próprios sujeitos, <strong>de</strong> modo que estes, todos agentesseus, sabem com que têm <strong>de</strong> lidar e procuram distanciar-se comreservas mentais da aberração que instituíram. O reconhecimento<strong>de</strong> que os filmes difun<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ologias é igualmente uma i<strong>de</strong>ologiajá difundida. É administrativamente manipulada mediante adistinção rígida entre, por um lado, os sintéticos sonhos diurnos,veículos para a fuga do quotidiano, "escape " e, por outro, os bemintencionados produtos que estimulam o correcto comportamentosocial, que transmitem uma mensagem, "conveying a message". Apronta subsunção sob os conceitos <strong>de</strong> escape e <strong>de</strong> messageexpressa a falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos. A zombaria sobre o escape, asublevação estandardizada contra a superficialida<strong>de</strong>, não passa <strong>de</strong>um pobre eco do inveterado ethos que abomina o jogo, porquenenhum jogo leva a cabo na práxis dominante. Se os filmes <strong>de</strong>escape são aborrecíveis, não é por voltarem as costas a uma193


existência <strong>de</strong>scolorida, mas por não o fazerem com suficienteenergia, e tal porque eles próprios são <strong>de</strong>scoloridos, porque asgratificações que parecem prometer coinci<strong>de</strong>m com a infâmia darealida<strong>de</strong>, da privação. Os sonhos não encerram sonho algum.Assim como os heróis do tecnicolor nem sequer por um segundo<strong>de</strong>ixam esquecer que são homens normais, rostos proeminentestipificados e investimentos, assim sob a <strong>de</strong>lgada lâmina dafantasia produzida segundo esquemas adivinha-seinequivocamente o esqueleto da ontologia do cinema, a hierarquiaintegral <strong>de</strong> valores impostos, o cânone do in<strong>de</strong>sejável e doimitável. Nada mais prático do que o escape, nada maisintimamente comprometido com a ocupação: é-se transportadopara longe só para pôr à distância na consciência, seminterferência <strong>de</strong> <strong>de</strong>svios empíricos, as leis da conduta vitalempírica. O escape é integralmente message. Deste modo, amessage parece o contrário, o que quer fugir da fuga. Reifica aresistência à coisificação. Basta ouvir os especialistas elogiar queesta ou outra magnífica obra cinematográfica tem, entre outrosméritos, também o da reflexão com o mesmo tom com que a umabonita actriz se garante que, além do mais, tem personality. Opo<strong>de</strong>r executivo bem po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>cidir comodamente numa reuniãoque à dispendiosa parceria do filme <strong>de</strong> escape se acrescentasseum i<strong>de</strong>al como: "Nobre seja o homem, compassivo e bom".Separado da lógica imanente da imagem e do tema, o próprioi<strong>de</strong>al converte-se em algo que se <strong>de</strong>ve constituir a partir do fundo,e por isso mesmo, em algo ao mesmo tempo palpável e fátuo:reforma <strong>de</strong> abusos elimináveis, assistência social transfigurada.Anunciam preferentemente a integração <strong>de</strong> alcoólicos, aos quaisse inveja a sua mísera ebrieda<strong>de</strong>. Quando se representa asocieda<strong>de</strong> endurecida nas suas leis anónimas como se nelabastasse a boa vonta<strong>de</strong>, está ainda a ser <strong>de</strong>fendida <strong>de</strong> ataquesjustificados. Cria-se assim a ilusão <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> frentepopular <strong>de</strong> todos os que pensam <strong>de</strong> forma recta e justa. O espíritoprático da message, a sólida <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> como se <strong>de</strong>vemfazer as coisas, pactua com o sistema na ficção <strong>de</strong> que um sujeitosocial total, que <strong>de</strong> nenhum modo existe no presente, po<strong>de</strong> pôrtudo em or<strong>de</strong>m, se cada qual a ele a<strong>de</strong>rir e fizer uma i<strong>de</strong>ia clarasobre as raízes do mal. Sente-se alguém bem on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> mos-trarsecomo excelente. A message converte-se em escape: quem só194


aten<strong>de</strong> à limpeza da casa on<strong>de</strong> habita esquece os alicerces sobreos quais está construída. E o que <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> seria um escape, aoposição feita imagem contra o todo até nas suas constituintesformais, po<strong>de</strong>, sem o preten<strong>de</strong>r, transformar-se em message; ejustamente mediante a obstinada ascese contra a proposta.131O lobo como avozinha. - Os apologetas do cinema têm porargumento mais po<strong>de</strong>roso o mais grosseiro <strong>de</strong> todos, o consumo<strong>de</strong> massas. Declaram o cinema, o médium mais drástico daindústria cultural, arte popular. A in<strong>de</strong>pendência quanto àsnormas da obra autónoma exime-a da responsabilida<strong>de</strong> estética,cujos cânones lhe parecem reaccionários, porquanto todas as suasintenções <strong>de</strong> enobrecimento artístico têm um aspecto oblíquo,pouco estável e esquivo à forma - algo importado para oconnaisseur. Quanto mais o filme preten<strong>de</strong> ser uma arte tantomais se assemelha a pechisbeque. Assim o po<strong>de</strong>m indicar osprotagonistas e ainda se apresentam como vanguarda, enquantocríticos <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> que com o tempo se tornou kitsch,com a sua grosseira afectação material. Se alguém só a este nívelse expõe, então eles, fortalecidos pela experiência técnica e pelaproximida<strong>de</strong> do material, são quase irresistíveis. Será o cinemanão uma arte <strong>de</strong> massas, mas apenas algo manipulado para oengano das massas? Mas os <strong>de</strong>sejos do público foram-se impondono mercado; a simples produção colectiva garante já o caráctercolectivo; só a estranheza em face do mundo permite ver nosprodutores astutos maquinadores; a maioria <strong>de</strong>les carece <strong>de</strong>talento, mas on<strong>de</strong> os verda<strong>de</strong>iramente dotados se reúnem o êxitoestará assegurado, não obstante todas as limitações do sistema. Ogosto das massas, a que o cinema obe<strong>de</strong>ce, não será das própriasmassas, mas imposto? Falar, porém, <strong>de</strong> outro gosto das massas anão ser do que elas têm é insensato, e o que alguma vez sechamou arte popular foi sempre um reflexo da dominação. Só nacompetente adaptação da produção às necessida<strong>de</strong>s existentes, enão na atenção a uma audiência utópica, po<strong>de</strong>, segundo tal lógica,ganhar forma a anónima vonta<strong>de</strong> geral. Será o cinema apenas amentira da estereo-tipia? Mas a estereotipia é a essência da artepopular, os contos falam do príncipe salvador e do diabo, tal195


como o cinema conhece o herói e o canalha; e até a bárbaracruelda<strong>de</strong> com que se divi<strong>de</strong> o mundo numa parte boa e noutramá é algo que o cinema tem em comum com os contos maisedificantes, que fazem bailar a madrasta com o sapato <strong>de</strong> ferro aorubro até morrer.Tudo isto se <strong>de</strong>veria enfrentar só mediante a consi<strong>de</strong>raçãodos conceitos fundamentais pressupostos pelos apologetas. Osmaus filmes não se <strong>de</strong>ixam acusar <strong>de</strong> incompetência: o maiortalento é vencido pelo negócio, e que os pouco dotados acudam aele em massa explica-se pela afinida<strong>de</strong> existente entre a mentira eo embusteiro. A imbecilida<strong>de</strong> é objectiva; as melhoras pessoaisnão po<strong>de</strong>riam instituir nenhuma arte popular. A sua i<strong>de</strong>iaconstitui-se nas relações agrárias ou na simples economia baseadana mercadoria. Tais relações, e os caracteres que as expressam,são as existentes entre senhores e servos, beneficiados eprejudicados, mas <strong>de</strong> uma forma imediata, não inteiramenteobjectivada. Não estão, claro está, menos sulcadas pelasdiferenças <strong>de</strong> classe do que a socieda<strong>de</strong> industrial tardia, mas osseus membros ainda não estão inseridos na estrutura total, quereduz os sujeitos individuais a simples momentos, a fim <strong>de</strong>, emseguida, como indivíduos impotentes e separados, os reunir numcolectivo. Que já não exista um povo não significa, todavia, queas massas sejam piores, segundo a propaganda do romantismo.Antes acontece que na forma nova, radicalmente alienada, que asocieda<strong>de</strong> adquire, e só nela, se revela a falsida<strong>de</strong> da antiga. Atéos rasgos da indústria cultural que reclamam a herança da artepopular se tornam suspeitos em tal socieda<strong>de</strong>. O cinema tem umaforça retroactiva: a sua cruelda<strong>de</strong> optimista manifesta no conto oque sempre esteve ao serviço da injustiça, e nos malvadosestereotipados insinua-se o rosto daqueles que a socieda<strong>de</strong>integral con<strong>de</strong>na - e cuja con<strong>de</strong>nação foi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, o sonhoda socialização. Daí que a morte da arte individualista nãoconstitua nenhuma justificação para uma arte que se comportacomo se o sujeito que a cria, que reage <strong>de</strong> maneira arcaica, fosse osujeito natural, quando este representa apenas o sindicato, <strong>de</strong>certoinconsciente, <strong>de</strong> umas quantas empresas. Se as próprias massastêm, enquanto clientes, alguma influência sobre o cinema, esta étão abstracta como os bilhetes, que chegaram a substituir oaplauso matizado: a mera <strong>de</strong>cisão pelo sim ou pelo não a uma196


oferta montada na <strong>de</strong>sproporção entre o po<strong>de</strong>r concentrado e aimpotência dispersa. Finalmente, que no cinema tenham <strong>de</strong>intervir numerosos peritos, inclusive simples técnicos, garante tãopouco a sua integrida<strong>de</strong> como a <strong>de</strong>cisão dos grémios científicoscompetentes a das bombas e dos gases tóxicos.O refinado palavreado sobre a arte cinematográfica é, semdúvida, coisa <strong>de</strong> plumitivos que querem sobressair, mas o apeloconsciente à ingenuida<strong>de</strong>, à apatia dos servos, que há algumtempo se está a introduzir entre as i<strong>de</strong>ias dos senhores, já não temvalida<strong>de</strong>. O cinema, que hoje acompanha inevitavelmente oshomens como se fosse uma parte <strong>de</strong>les, é ao mesmo tempo o maisafastado do seu <strong>de</strong>stino humano, do que se vai realizando dia apósdia, e a apologética vive da resistência a pensar essa antinomia.Que as pessoas que fazem os filmes não sejam <strong>de</strong> modo algumintrigantes não con-tradiz o facto. O espírito objectivo damanipulação impõe-se com regras experimentais, valorações <strong>de</strong>cada situação, critérios técnicos, cálculos economicamenteinevitáveis e todo o peso do aparelho industrial, sem antes sesubmeter ele próprio a alguma censura, e se alguém consultasseas massas, estas <strong>de</strong>volveriam reflectida a ubiquida<strong>de</strong> do sistema.Os produtores agem como sujeitos em tão escasso grau como osseus trabalhadores e os seus consumidores, visto que sãounicamente partes da maquinaria autonomizada. Mas o mandamento<strong>de</strong> tom hegeliano <strong>de</strong> que a arte das massas <strong>de</strong>ve respeitar ogosto real das massas, e não o dos intelectuais negadores domesmo, é uma usurpação. A contraposição do cinema comoi<strong>de</strong>ologia omni--englobante aos interesses objectivos dos homens,a engrenagem com o status quo do lucro, a má consciência e oengano po<strong>de</strong>m reconhecer-se <strong>de</strong> uma maneira directa. Nenhumapelo para um estado efectivo e prévio da consciência teriaalguma vez direito ao veto contra o discernimento que vai além<strong>de</strong>ste estado da consciência, ao pôr o <strong>de</strong>do na sua contradiçãoconsigo mesmo e com as relações objectivas. É possível que oprofessor alemão e fascista tivesse razão, e que também ascanções populares que tais foram vivessem já do <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntepatrimónio cultural da camada superior. Não <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> é toda a artepopular inconsistente e, como os filmes, "não orgânica". Masentre a antiga injustiça, cuja voz lamurienta se po<strong>de</strong> ainda ouviron<strong>de</strong> persiste transfigurada, e a alienação que se afirma a si197


mesma como solidarieda<strong>de</strong> e que astutamente cria a aparência <strong>de</strong>proximida<strong>de</strong> humana, servindo-se <strong>de</strong> megafones e da psicologia<strong>de</strong> propaganda, há uma diferença semelhante à que existe entre amãe que, para tranquilizar a criança do seu medo aos duen<strong>de</strong>s, lhenarra um conto em que os bons são premiados e os maus castigados,e a produção cinematográfica que <strong>de</strong> modo barulhento eagressivo mete pelos olhos e pelos ouvidos dos espectadores ajustiça que impera em cada or<strong>de</strong>namento do mundo <strong>de</strong> cada paíspara lhes infundir <strong>de</strong> forma nova e mais eficaz o antigo temor. Ossonhos próprios dos contos, que tão facilmente invocam a criançano homem, são apenas a regressão organizada pela ilustraçãototal, e on<strong>de</strong> com maior confiança tocam no ombro aosespectadores é on<strong>de</strong> ela mais radicalmente é <strong>de</strong>nunciada. Aimediatida<strong>de</strong>, a comunida<strong>de</strong> do povo criada pelo cinema<strong>de</strong>semboca sem resquícios na mediação que rebaixa os homens etodo o humano à condição <strong>de</strong> coisas, <strong>de</strong> modo tão perfeito que setorna impossível perceber a sua contraposição às coisas, o feitiçoda própria reificação. O cinema conseguiu transformar os sujeitosem funções sociais tão inteiramente que os apanhados, esquecidosjá <strong>de</strong> todo o conflito, saboreiam a própria <strong>de</strong>sumanização comoalgo humano, como a felicida<strong>de</strong> do caloroso. A total interconexãoda indústria cultural, que nada <strong>de</strong>ixa fora, é una com a totalobcecação social. Daí que se revele tão fácil rebater osargumentos a ela contrários.132Edição Piper 14 . - A socieda<strong>de</strong> é integral já antes <strong>de</strong> sergovernada <strong>de</strong> modo totalitário. A sua organização abrange aindaos que a <strong>de</strong>safiam, e normaliza a sua consciência. Também osintelectuais que têm preparados politicamente todos osargumentos contra a i<strong>de</strong>ologia burguesa ficam sujeitos a umprocesso <strong>de</strong> padronização que, até quando o seu conteúdo ofereceo mais flagrante contraste, pela sua disposição à acomodação seaproxima <strong>de</strong> tal modo do espírito objectivo que a sua perspectivase torna, <strong>de</strong> facto, cada mais contingente e, inclusive, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntedas suas mais ligeiras preferências ou da avaliação das suas14 Nome <strong>de</strong> uma já antiga e muitoconhecida editora alemã. [N. T.]198


possibilida<strong>de</strong>s. O que se lhes afigura subjectivamente radicalobe<strong>de</strong>ce objectivamente <strong>de</strong> modo tão completo a uma parcela doesquema reservado a eles e aos seus iguais que o radicalismo<strong>de</strong>sce ao nível <strong>de</strong> um prestígio abstracto, <strong>de</strong> uma legitimação <strong>de</strong>quem sabe a favor ou contra aquilo que <strong>de</strong>ve estar hoje umintelectual. Os bens pelos quais optam são já há muitoreconhecidos, <strong>de</strong>terminados em número e fixados na hierarquiados valores como os das irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> estudantes. Enquantobradam contra o kitsch oficial, a sua disposição anímica submete--se como uma criança obediente ao regime previamente buscado,aos clichés dos inimigos dos clichés. A habitação <strong>de</strong>stes jovensbohémiens assemelha-se ao seu lar intelectual. Na pare<strong>de</strong>, asreproduções enganadoramente fiéis ao original <strong>de</strong> célebres VanGoghs, como os Girassóis ou o Café <strong>de</strong> Aries; na estante, a<strong>de</strong>cocção <strong>de</strong> socialismo e <strong>de</strong> psicanálise e um pouco <strong>de</strong> sexologiapara <strong>de</strong>sinibidos com inibições. Além disso, a edição <strong>de</strong> Proustpela Random House - a tradução <strong>de</strong> Scott-Moncrieff <strong>de</strong>veria termerecido melhor sorte -, o exclusivismo pelos preços módicos, sópelo aspecto, pela forma económico-compacta do omnibus, amofa do autor, que em cada frase aniquila as opiniões correntesenquanto, como homossexual laureado, tem agora entre osadolescentes um significado semelhante ao dos livros <strong>de</strong> animaisdos nossos bosques e da expedição ao Pólo Norte no lar alemão.Além disso, o gramofone com a cantata a Lincoln, obra <strong>de</strong> umvalente, em que tudo se reduz a umas quantas estações <strong>de</strong>caminho <strong>de</strong> ferro, com o obrigatoriamente admirado folclore <strong>de</strong>Oklahoma e alguns ruidosos discos <strong>de</strong> jazz, com que se sentem aomesmo tempo colectivos, atrevidos e cómodos. Cada juízo tem aaprovação dos amigos, todos os argumentos os sabem já <strong>de</strong>antemão. Que todos os produtos da cultura, inclusive os nãoconformistas, estejam incorporados no mecanismo <strong>de</strong> distribuiçãodo gran<strong>de</strong> capital, que nos países mais <strong>de</strong>senvolvidos um produtoque não ostente o imprimatur da produção em massa dificilmenteencontre mais um leitor, um espectador ou um ouvinte, subtraiantecipadamente o material à nostalgia discrepante. Até Kafka setransforma em peça <strong>de</strong> inventário do estúdio subalugado. Ospróprios intelectuais estão já tão assentes no estabelecido da suaisolada esfera que unicamente acolhem o que se lhes serve com amarca <strong>de</strong> algum highbrow. A ambição limita-se a <strong>de</strong>senvolver-se199


entre o repertório aceite, a encontrar o santo e senha correcto. 0secessionismo dos consagrados é pura ilusão e mera expectação.Estão ainda <strong>de</strong>masiado longe <strong>de</strong> ser renegados; trazem óculos <strong>de</strong>vidros planos perante o rosto da mediocrida<strong>de</strong> só para pareceremmais "brilhantes" em face <strong>de</strong> si mesmos e no seio da concorrênciauniversal. A pré-condição subjectiva para a oposição, o juízo nãonormalizado, extingue-se enquanto a sua conduta se leva a cabocomo um ritual <strong>de</strong> grupo. Estaline precisa apenas <strong>de</strong> pigarrearpara atirarem Kafka e van Gogh ao lixo.133Contributo para a história das i<strong>de</strong>ias. - No meu exemplar doZaratustra do ano <strong>de</strong> 1910 encontram-se, no fim, anúncios daeditorial. Todos eles estão dirigidos à tribo dos leitores <strong>de</strong>Nietzsche, tal como em Leipzig a imaginava Alfred Kröner, que aconheceria a fundo. "Os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> Adalbert Svoboda.Svoboda ateou com a sua obra uma alta chama iluminadora quearroja uma potente luz sobre todos os problemas do inquiridorespírito humano e põe claramente diante dos nossos olhos osverda<strong>de</strong>iros i<strong>de</strong>ais da razão, da arte e da cultura. O livro, emformato gran<strong>de</strong> e luxuosamente apresentado, está escrito doprincípio ao fim num estilo atraente, cativante, sugestivo edidáctico, e produzirá um efeito estimulante em todos os espíritosverda<strong>de</strong>iramente livres, como um banho tonificante ou o ar frescoda montanha." O seu rótulo: a humanida<strong>de</strong>, e uma humanida<strong>de</strong>quase tão recomendável como David Friedrich Strauss. "Sobre oZaratustra, por Max Zerbst. Há dois Nietzsche. Um é ouniversalmente conhecido "filósofo <strong>de</strong> moda", o <strong>de</strong>slumbranteescritor e expressivo mestre do estilo, cujo nome está agora emtodas as bocas, e os títulos das suas obras transformaram-se nunsquantos tópicos mal entendidos que engrossaram o instávelpatrimónio das pessoas 'cultas'. O outro Nietzsche é o abismáticoe inesgotável pensador e psicólogo, o perscrutador dos gran<strong>de</strong>shomens e dos valores vitais, <strong>de</strong> uma força espiritual e <strong>de</strong> umapotência intelectual sem igual, que dominará o futuro aindalongínquo. O propósito das duas conferências contidas nestelivrinho é tornar compreensível este outro Nietzsche aos maissérios e perspicazes homens mo<strong>de</strong>rnos." Todavia, eu preferiria o200


primeiro. O outro é "o filósofo e o aristocrata, uma contribuiçãopara a caracterização <strong>de</strong> Friedrich Nietzsche <strong>de</strong>vida a Meta vonSalis-Marschlins. O livro atrai pela sua honesta interpretação <strong>de</strong>todos os sentimentos que a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nietzsche <strong>de</strong>spertounuma alma feminina consciente <strong>de</strong> si mesma". Não esqueças olátego, advertia Zaratustra. Outra opção é esta: "A filosofia doprazer <strong>de</strong> Max Zerbst. O doutor Max Zerbst parte <strong>de</strong> Nietzsche,mas tenta ultrapassar certas parcialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Nietzsche... O autornão se entrega à fria abstracção; trata--se antes <strong>de</strong> um hino, <strong>de</strong> umhino filosófico ao prazer." Como uma piada estudantil. Nada <strong>de</strong>parcialida<strong>de</strong>s. É melhor irmos direitos ao céu dos ateus: "Osquatro Evangelhos em alemão com introdução e notas do Dr.Heinrich Schmidt. Perante a forma corrompida, repetidas vezesalterada em que se nos transmitiu o Evangelho, esta nova ediçãoremonta às fontes, por isso será <strong>de</strong> um inestimável valor não sópara os homens verda<strong>de</strong>iramente religiosos, mas também para os"anticristos" que perseguem fins sociais." A eleição torna-sedifícil, mas po<strong>de</strong> admitir-se com toda a calma que ambas as elitessão tão compatíveis como os Sinópticos: "O evangelho do homemnovo (uma síntese <strong>de</strong> Nietzsche e <strong>de</strong> Cristo), por Carl Martin. Ummaravilhoso <strong>de</strong>vocionário. Tudo o que na ciência e na artecontemporâneas entrou em polémica com os espíritos do passadoconseguiu lançar raízes e florescer neste ânimo maduro, nãoobstante a sua juventu<strong>de</strong>. E o mais notável: este homem "novo",novo em todos os aspectos, obtém para si e para nós a poçãorefrescante <strong>de</strong> um antiquíssimo manancial: daquela mensagemsalvadora cujos acentos mais puros ressoaram no sermão damontanha... Até na forma encontramos a simplicida<strong>de</strong> e agran<strong>de</strong>za daquelas palavras." O seu rótulo: cultura ética. Omilagre aconteceu vai já para quarenta anos, e ainda há vinte,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ingenium em Nietzsche se ter, com razão, <strong>de</strong>cidido acortar a comunicação com o mundo. De nada serviu - fogosos e<strong>de</strong>screntes eclesiásticos e expoentes daquela cultura éticaorganizada, que, mais tar<strong>de</strong>, em Nova York treinou as emigrantesque tiveram a sorte <strong>de</strong> ser criadas, apropriaram-se da herança<strong>de</strong>ixada por aquele que sentia horror em pensar que alguém opu<strong>de</strong>sse ouvir como se estivesse a cantar "furtivamente umabarcarola". Já então a esperança <strong>de</strong> lançar a garrafa com umamensagem na preia-mar da iminente barbárie era uma visão201


optimista: as letras <strong>de</strong>sesperadas ficaram enterradas no barro domanancial, e foram transformadas em <strong>de</strong>coração artística, masbarata, por um bando <strong>de</strong> aristocratas e por outros malandros.Des<strong>de</strong> então, o progresso da comunicação ganhou um novoimpulso. Ao fim e ao cabo, quem é que <strong>de</strong>seja levar a mal osespíritos libertos, se eles já não escrevem para uma posterida<strong>de</strong>imaginária, cuja familiarida<strong>de</strong> supera, se possível, oscontemporâneos, mas só para o Deus morto?134O erro <strong>de</strong> Juvenal. - É difícil escrever uma sátira. Não apenasporque a situação que <strong>de</strong>la mais carecia se mofa <strong>de</strong> toda a mofa.O próprio meio da ironia entrou em contradição com a verda<strong>de</strong>. Aironia culpa o objecto ao apresentá-lo como algo existente e, semqualquer juízo, poupando por assim dizer o sujeito que ocontempla, ao medi-lo pelo seu ser-em-si. O negativo entra nelaenquanto confronta o positivo com a sua própria pretensão <strong>de</strong>positivida<strong>de</strong>. Anula-se a si, logo que inclui termos interpretativos.Por outro lado, pressupõe a i<strong>de</strong>ia do evi<strong>de</strong>nte, que originariamenteé apenas a ressonância social. Só on<strong>de</strong> se aceita o consensoforçado dos sujeitos é supérflua a reflexão subjectiva, a execuçãodo acto conceptual. Quem conta com a gargalhada à sua voltanada precisa <strong>de</strong> provar. Como consequência, a sátira mantevehistoricamente durante milénios, até há época <strong>de</strong> Voltaire, boasrelações com os po<strong>de</strong>rosos em que confiava, com a autorida<strong>de</strong>.Esteve quase sempre do lado das camadas mais velhas ameaçadaspelas primeiras fases da Ilustração, que tratavam <strong>de</strong> escorar o seutradicionalismo com meios ilustrados: o seu objecto invariável eraa <strong>de</strong>cadência dos costumes. Por isso, o que outrora se manejavacomo um florete surgirá perante as novas gerações com a forma<strong>de</strong> uma tosca estaca. A ambígua espiritualização do fenómeno<strong>de</strong>seja sempre mostrar o satírico como gracioso, à altura doprogresso; mas o normal é que esteja ameaçado a cada momentopelo progresso, que a tal ponto se dá por suposto como i<strong>de</strong>ologiavigente que o fenómeno, <strong>de</strong>generado, é rejeitado, sem se lheconce<strong>de</strong>r a justiça <strong>de</strong> um tratamento racional. A comédia <strong>de</strong>Aristófanes, on<strong>de</strong> a obscenida<strong>de</strong> põe a ridículo a lascívia,contava, enquanto laudatio temporis acti mo<strong>de</strong>rnista, com a plebe202


vil que ela <strong>de</strong>negria. Na era cristã, com o triunfo da classeburguesa, a função da ironia relaxou-se. Por vezes, pôs-se do ladodos oprimidos, sobretudo on<strong>de</strong> eles já não se encontravam. Semdúvida, cativa como era da sua própria forma, nunca se <strong>de</strong>sfez <strong>de</strong>todo da herança autoritária, da incontestada malícia. Só com a<strong>de</strong>cadência burguesa se sublimou mediante o apelo a i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>humanida<strong>de</strong> que já não permitiam nenhuma reconciliação com oexistente e com a sua consciência. Mas entre estas i<strong>de</strong>ias contavaseo subentendido: nenhuma dúvida acerca da evidênciaobjectivo-imediata; nenhuma subtileza <strong>de</strong> Karl Kraus vacila sobrequem é <strong>de</strong>cente e quem é um velhaco, sobre o que é espírito e oque é estupi<strong>de</strong>z, sobre o que é língua e o que é jornal. O po<strong>de</strong>r dassuas frases é tributário daquele estado <strong>de</strong> espírito. Como a suaconsciência instantânea da situação não se <strong>de</strong>tém em nenhumainterrogação, elas não <strong>de</strong>ixam para a interrogação lugar algum.Todavia, quanto mais enfaticamente a prosa <strong>de</strong> Kraus afirma oseu humanismo como algo invariante, tanto mais rasgos restauradoresadquire. Con<strong>de</strong>na ela a corrupção e a <strong>de</strong>cadência, literatos efuturistas, sem possuir, perante os zelotas da naturalida<strong>de</strong>espiritual, outra vantagem excepto o conhecimento da suainferiorida<strong>de</strong>. Que, por fim, a intransigência perante Hitler semostrasse indulgente com Schuschnigg, não atesta a <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>no valente, mas a antinomia da sátira. Esta precisa <strong>de</strong> algo on<strong>de</strong>se possa afirmar, e quem a si mesmo se chamava o critiqueiroverga-se à sua positivida<strong>de</strong>. Até a <strong>de</strong>núncia do Schmock 15 contém,além da sua verda<strong>de</strong>, além do elemento crítico, algo do commonsense, que não po<strong>de</strong> tolerar que alguém continue a falar por aícom tanta presunção. A aversão àquele que quer aparentar maisdo que é acorrenta este ao factum da sua condição. Aincorruptibilida<strong>de</strong> perante quem faz fortuna, frente à pretensão vãe ao mesmo tempo comercialmente <strong>de</strong>stacada do espírito,<strong>de</strong>smascara aqueles que não conseguiram i<strong>de</strong>ntificar-se com oque, a seus olhos, surge como o mais alto. Este mais alto é opo<strong>de</strong>r e o êxito, e através da malograda i<strong>de</strong>ntificação revela-secomo mentira. Mas, ao mesmo tempo, significa para o faiseur a15 Assim se <strong>de</strong>signa o jornalistasem princípios, tirado da comédia<strong>de</strong> Gustav Freytag DieJournalisten. [N. T.]203


materialização da utopia: até os falsos brilhantes reflectem oimpossível sonho infantil, e também este é con<strong>de</strong>nado pelo seufracasso, no momento <strong>de</strong> comparecer no foro do êxito. Toda asátira é cega para as forças que se libertam na ruína. Daí que atotal <strong>de</strong>cadência tenha atraído a si o po<strong>de</strong>r da sátira. O últimoexemplo temo-lo nos lí<strong>de</strong>res do Terceiro Reich, um Estado cujaforça era puramente braquial, e na sua mofa acerca dos exilados edos políticos liberais. A culpa <strong>de</strong> a sátira ser hoje impossível nãoé, como quer o sentimentalismo, do relativismo dos valores, daausência <strong>de</strong> normas vinculativas. O próprio consenso, o a prioriformal da ironia, tornou-se um consenso universal no conteúdo.Este, enquanto tal, seria o único objecto digno da ironia, mas aomesmo tempo <strong>de</strong>ixa esta sem base. O meio da ironia, a diferençaentre i<strong>de</strong>ologia e realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sapareceu. Esta resigna-se aconfirmar a realida<strong>de</strong> mediante o seu mero duplicado. Eis comose expressava a ironia: se tal afirma ser, é porque o é; hoje,todavia, o mundo, até na mentira radical, <strong>de</strong>clara que justamenteassim é, e este simples diagnóstico coinci<strong>de</strong>, para ele, com o bem.Nenhuma fractura na rocha do existente, a que a garra do ironistase possa pren<strong>de</strong>r. Quem se <strong>de</strong>spenha ouve a gargalhada domalicioso objecto que o privou do seu po<strong>de</strong>r. O gesto do "assimé" <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> conceito é o mesmo para o qual o mundo remetecada uma das suas vítimas, e o consenso transcen<strong>de</strong>ntal, implícitona ironia, torna-se ridículo perante o consenso real daqueles queesta teria atacado. Contra a sanguinolenta serieda<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>total, que incorporou a instância que se lhe opõe qual inútilprotesto, que outrora a ironia reprimia, só resta a sanguinolentaserieda<strong>de</strong>, a verda<strong>de</strong> ínsita no conceito.135Abutre-dos-alpes. - Ditar não só é mais cómodo e estimula aconcentração, mas tem, a<strong>de</strong>mais, uma vantagem material. Oditado permite ao escritor, nas etapas iniciais do processo <strong>de</strong>produção, intrometer-se na posição <strong>de</strong> crítico. O que propõe não ocompromete, é provisório, simples material para <strong>de</strong>pois elaborar;mas também é certo que, uma vez transcrito, surge como algoestranho e, em certa medida, objectivo. Nem sequer precisa <strong>de</strong>recear que <strong>de</strong>pois permaneça, pois não tem <strong>de</strong> o escrever: esta204


partida fá-la por responsabilida<strong>de</strong>. O risco da formulação adquire,primeiro, a forma inofensiva do memorial redigido com ligeirezae, em seguida, a do trabalho sobre algo que já está aí, <strong>de</strong> modoque já não se apercebe da sua temerida<strong>de</strong>. Em face da dificulda<strong>de</strong><strong>de</strong> uma exposição teórica, capaz <strong>de</strong> induzir ao <strong>de</strong>sespero, estestruques são como uma benção. São os meios técnicos doprocedimento dialéctico, que enuncia algo para em seguida oretirar e, não obstante, o <strong>de</strong>ixar ficar. Mas quem recebe o ditadomerece toda a gratidão quando, mediante a contradição, a ironia,os nervos, a impaciência e a falta <strong>de</strong> respeito, produz sobressaltosno escritor no momento justo. Atrai sobre si a ira. Esta sai dasreservas da má consciência, com a qual, <strong>de</strong> outro modo, o autor<strong>de</strong>sconfiaria da sua própria criação e que o levaria a aferrar-secom tanto maior tenacida<strong>de</strong> ao texto pretensamente sagrado. Oafecto que, <strong>de</strong>sagra<strong>de</strong>cido, se vira contra o fastidioso ajudantepurifica beneficamente a relação com o tema.136Exibicionista. - Os artistas não sublimam. Que nãosatisfaçam os seus <strong>de</strong>sejos nem os reprimam, mas os transformemem produtos socialmente <strong>de</strong>sejáveis - as suas criações - é umailusão da psicanálise; além disso, as legítimas obras <strong>de</strong> arte sãohoje, sem excepção, socialmente in<strong>de</strong>sejáveis. Os artistasmostram antes instintos veementes, qualificadamente neuróticos,intermitentes e, ao mesmo tempo, em colisão com a realida<strong>de</strong>.Até o sonho burguês <strong>de</strong> se tornar actor ou violinista como umasíntese <strong>de</strong> um feixe <strong>de</strong> nervos e <strong>de</strong> quebra-corações é maisconvincente do que a não menos burguesa economia pulsional,segundo a qual os felizardos da renúncia se compensam comsinfonias ou romances. O seu lote é, pelo contrário, ahistericamente exagerada ausência <strong>de</strong> inibição que ultrapassatodas as angústias imagináveis; é o narcisismo levado aos limitesda paranóia. Quanto à sublimação têm as suas idiossincrasias. Sãoirreconciliáveis com os estetas, indiferentes aos ambientescultivados e reconhecem no bom gosto a forma reactiva inferiorfrente à propensão para o inferior com a mesma segurança que ospsicólogos, que, por outro lado, os ignoram. Deixam-se seduzir<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as cartas <strong>de</strong> Mozart à augsburguesa Bäsle até aos jogos <strong>de</strong>205


palavras do amargado maestro repetidor com expressõesgrosseiras, néscias e in<strong>de</strong>centes. Não se ajustam à teoriafreudiana, porque a esta lhe falta um conceito suficiente daexpressão, não obstante toda a sua perspicácia sobre a função dossímbolos no sonho e na neurose. É evi<strong>de</strong>nte que um movimentopulsional subtraído à censura também não se po<strong>de</strong> chamarreprimido, se não lhe interessa alcançar uma meta que nãoencontra. Por outro lado, a distinção analítica entre satisfaçãomotora - "real" - e alucinatória aponta para a diferença entresatisfação e expressão não <strong>de</strong>formada. Mas expressão não éalucinação. É aparência medida pelo princípio da realida<strong>de</strong>, doqual se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar. Mas o subjectivo nunca procura ocuparilusoriamente, mediante a aparência, nem pelo sintoma, o lugar darealida<strong>de</strong>. A expressão nega a realida<strong>de</strong>, ao lançar-lhe à cara oque a ela se não assemelha, mas não a <strong>de</strong>sconhece; tem diante dosolhos o conflito, que no sintoma é cego. A expressão tem emcomum com a repressão o facto <strong>de</strong> nela o impulso se encontrarbloqueado pela realida<strong>de</strong>. Este impulso, com toda a trama <strong>de</strong>experiências em que se inscreve, impe<strong>de</strong> a comunicação directacom o objecto. Como expressão, o impulso converte-se emfenómeno não falsificado <strong>de</strong> si mesmo e, assim, da oposição, porimitação sensível. É tão forte que a modificação em meraimagem, preço da sobrevivência, lhe acontece sem ficar mutiladona sua exteriorização. No lugar da meta da sua peculiar"resolução subjectivo-sensorial" põe a objectiva: a sua manifestaçãopolémica. Isto distingue-o da sublimação: toda a expressãoconseguida do sujeito, po<strong>de</strong>ria dizer-se, é uma pequena vitóriasobre o jogo <strong>de</strong> forças da sua própria psicologia. O pathos da arteassenta em que, graças à sua retirada para a imaginação, dá àprepotência da realida<strong>de</strong> o que é seu, mas sem se resignar àadaptação nem continuar a violência do externo na <strong>de</strong>formação dointerno. Os que tal levam a cabo têm, sem excepção, <strong>de</strong> pagá-locaro como indivíduos, ficar <strong>de</strong>svalidos por trás da sua própriaexpressão, que se subtrai à sua psicologia. Mas <strong>de</strong>spertam assim,não menos do que os seus produtos, a dúvida sobre a inclusão dasobras artísticas entre as produções culturais ex <strong>de</strong>finitione.Nenhuma obra artística po<strong>de</strong> evitar, na organização social, a suapertença à cultura, mas também não há nenhuma, que seja maisdo que arte industrial, que não tenha feito à cultura um gesto <strong>de</strong>206


epúdio - pelo que se tornou obra <strong>de</strong> arte. A arte é tão antiartísticacomo os artistas. Na renúncia à meta do instinto preservapara este a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>smascaradora do socialmente <strong>de</strong>sejado,que Freud com ingenuida<strong>de</strong> exalta como a sublimação que,provavelmente, não existe.137Pequenas dores, gran<strong>de</strong>s cantos. - A actual cultura <strong>de</strong> massasé historicamente necessária não só como resultado do cercoimposto à totalida<strong>de</strong> da vida pelas empresas monstruosas, mastambém como consequência do que parece o extremo oposto àhoje dominante estandardização da consciência: a subjectivizaçãoestética. É certo que os artistas, enquanto se foram internando emsi mesmos, apren<strong>de</strong>ram a renunciar ao jogo infantil da imitaçãodo externo. Mas, ao mesmo tempo, apren<strong>de</strong>ram também, porefeito da reflexão da alma, a dispor cada vez mais <strong>de</strong> si mesmos.O progresso da sua técnica, que lhes trouxe uma liberda<strong>de</strong> e umain<strong>de</strong>pendência cada vez maiores quanto ao heterogéneo, teve porresultado uma espécie <strong>de</strong> reificação, <strong>de</strong> tecnificação dainteriorida<strong>de</strong> como tal. Quanto maior é a superiorida<strong>de</strong> com que oartista se expressa, tanto menos tem <strong>de</strong> "ser o que expressa", e emtanto maior medida se transforma o expressado, isto é, o conteúdoda própria subjectivida<strong>de</strong>, numa simples função do processo <strong>de</strong>produção. Foi o que Nietzsche advertiu, ao acusar Wagner, odompteur da expressão, <strong>de</strong> hipocrisia, sem se dar conta <strong>de</strong> quenão era uma questão <strong>de</strong> psicologia, mas da tendência histórica.Mas a metamorfose do conteúdo da experiência em que, <strong>de</strong>emoção difusa, passa a ser material manipulável, faz do mesmoalgo robusto, exibível, comercializável. A subjectivização dalírica em Heine, por exemplo, não está em simples contradiçãocom os seus rasgos comerciais, mas o comercial é a própriasubjectivida<strong>de</strong> administrada pela subjectivida<strong>de</strong>. O uso virtuosoda "escala" que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, <strong>de</strong>fine os artistas transmutase,a partir do impulso próprio, em jornalismo, espectáculo ecálculo, e não primariamente por <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong>. A lei domovimento da arte que equivale ao controlo e, assim, àobjectivação do sujeito, significa a sua <strong>de</strong>cadência: o antagonismoartístico do cinema, que regista administrativamente todos os207


materiais e todas as emoções para os ven<strong>de</strong>r, a segundaexteriorida<strong>de</strong>, surge na arte como crescente dominação sobre anatureza interior. O tão apregoado histrionismo dos artistascontemporâneos, o seu exibicionismo, é o gesto com que nomercado se expõem a si mesmos como mercadoria.138Who is who. - A bajuladora convicção acerca da ingenuida<strong>de</strong>e da pureza do artista ou do literato sobrevive na inclinação <strong>de</strong>stespara expor as suas dificulda<strong>de</strong>s com interesse solapado, e noespírito prático-calculador dos assinantes <strong>de</strong> um contrato. Mascomo toda a construção em que se dá razão a si mesmo e se negaao mundo, como todo o apoio no título próprio ten<strong>de</strong> justamente adar a razão ao mundo, assim também ten<strong>de</strong> a dá-la a antítese entrea vonta<strong>de</strong> pura e a dissimulação. Hoje, o marginalizadointelectual, que sabe o que se po<strong>de</strong> esperar, comporta-se <strong>de</strong> ummodo reflexivo, guiado por mil consi<strong>de</strong>rações políticas e tácticas,cauteloso e suspicaz. Mas os que estão conformes, cujo império jáhá muito se fechou num espaço vital que exce<strong>de</strong> os limites dospartidos, já não têm necessida<strong>de</strong> do cálculo <strong>de</strong> que seconsi<strong>de</strong>raram capazes. Confiam tanto nas regras <strong>de</strong> jogo da razão,os seus interesses sedimentaram-se <strong>de</strong> modo tão natural no seupensamento que tornaram a ser inofensivos. Se se indagarem osseus obscuros planos, há que julgá-los meta-fisicamenteverda<strong>de</strong>iros, pois seguem o tenebroso curso do mundo, maspsicologicamente falsos: cai-se num <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> perseguiçãoobjectivamente crescente. Aqueles cuja função consiste na<strong>de</strong>lação e na difamação e em ven<strong>de</strong>rem-se a si mesmos e aos seusamigos ao po<strong>de</strong>r não necessitam para tal <strong>de</strong> nenhuma astúcia nemmalícia, <strong>de</strong> nenhuma organização planificada do eu; pelocontrário, basta--lhes abandonar-se às suas reacções e cumprirsem reparos a exigência do momento para levar a cabo, como se<strong>de</strong> um jogo se tratasse, o que outros só po<strong>de</strong>m fazer apósprofundas reflexões. Inspiram confiança, ao mesmo tempo que amostram. Vêem o que para eles po<strong>de</strong> sobrar, vivem dia a dia efazem-se recomendar como <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> egoísmo, comosubscritores <strong>de</strong> uma situação que já nada lhes <strong>de</strong>ixará faltar.Porque todos eles se <strong>de</strong>ixam levar sem o menor conflito208


unicamente pelo interesse particular, surge este como interessegeral e, <strong>de</strong> certo modo, <strong>de</strong>sinteressado. Os seus gestos sãofrancos, espontâneos, gestos que <strong>de</strong>sarmam. São-lhes também,tanto os amáveis como os ásperos, antagónicos. Como já não têmin<strong>de</strong>pendência para <strong>de</strong>senvolver nenhuma acção que seja opostaao interesse, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da boa vonta<strong>de</strong> dos outros e, inclusive, <strong>de</strong>boa vonta<strong>de</strong>. O completamente mediado, o interesse abstracto,cria uma segunda imediatida<strong>de</strong>, enquanto o ainda não <strong>de</strong> todocaptado se vê comprometido como inatural. Mas para não serapanhado entre as rodas <strong>de</strong>ve cerimoniosamente superar o mundoem mundanida<strong>de</strong>, pelo que com facilida<strong>de</strong> é acusado dos maistorpes excessos. Censurar-se-lhe-á forçosamente a <strong>de</strong>sconfiança,a ânsia <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a falta <strong>de</strong> camaradagem, a falsida<strong>de</strong>, a vaida<strong>de</strong> ea inconsequência. A magia social in<strong>de</strong>fectivelmente convertequem não entra no jogo em egoísta, e ao que sem Si mesmo seajusta ao princípio da realida<strong>de</strong> chama-se-lhe <strong>de</strong>sinteressado.139Inaceitável. - Os filistinos cultos costumam exigir à obra <strong>de</strong>arte que lhes dê algo. Já não se indignam com o radical, retiramsepara a afirmação impudicamente mo<strong>de</strong>sta <strong>de</strong> que nãoenten<strong>de</strong>m. Esta suprime a oposição, última relação negativa coma verda<strong>de</strong>, e o objecto escandaloso é catalogado com um sorrisoentre os objectos mais distantes <strong>de</strong>le, como são os bens <strong>de</strong> uso,entre os quais se po<strong>de</strong> escolher ou rejeitar, sem arcar comqualquer responsabilida<strong>de</strong>. É-se <strong>de</strong>masiado bronco para enten<strong>de</strong>r,<strong>de</strong>masiado antiquado, simplesmente não se po<strong>de</strong> com isso, equanto mais se empequenece, tanto mais resolutamente participano po<strong>de</strong>roso uníssono da vox inhumana populi, no po<strong>de</strong>r dirigentedo petrificado espírito do tempo. O ininteligível, <strong>de</strong> que ninguémconsegue nada, converte-se <strong>de</strong> provocador atentado em loucuradigna <strong>de</strong> compaixão. Com o aguilhão afasta-se a tentação. Que aalguém se <strong>de</strong>va dar algo, segundo a aparência o postulado <strong>de</strong>substancialida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong>, impe<strong>de</strong> precisamente ambas ascoisas e empobrece quem dá. Aqui a relação com os homens éanáloga à relação estética. A censura <strong>de</strong> que alguém não dá nada é<strong>de</strong>plorável. Se a relação foi estéril, há que dissolvê-la. Mas aquem a mantém, embora lamentando-se, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> funcionar o209


órgão da recepção: fantasia. Ambas as partes <strong>de</strong>vem dar algo, afelicida<strong>de</strong> como algo não sujeito à troca, nem também exigível;mas este dar é inseparável do tomar. E cessa quando o que se tempara o outro não consegue este recebê-lo. Não há amor que nãoseja eco. Nos mitos, a aceitação da oferenda era a garantia dagraça; e tal aceitação é o que pe<strong>de</strong> o amor, réplica do acto daoferta, se não quiser ver-se amaldiçoado. A <strong>de</strong>cadência da dádivacorrespon<strong>de</strong> hoje à relutância em aceitar. Mas esta <strong>de</strong>semboca nanegação da própria felicida<strong>de</strong> que, como tal negação, é que fazque os homens continuem aferrados ao seu tipo <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Omuro <strong>de</strong>rribar-se--ia se recebessem um do outro aquilo que,mor<strong>de</strong>ndo os lábios, têm <strong>de</strong> se proibir a si. Mas isto é-lhes difícilpor causa do esforço que o aceitar exige. Sugestionados pelatécnica, transferem o ódio ao esforço supérfluo da sua existênciapara um dispêndio <strong>de</strong> energia que o prazer requer, até em todas assuas sublimações, como momento da sua essência. Apesar dasnumerosas facilida<strong>de</strong>s, a sua práxis é absurda fadiga; todavia, odispêndio <strong>de</strong> energia na felicida<strong>de</strong> - o segredo <strong>de</strong>sta - não osuportam. Por isso, têm <strong>de</strong> se reduzir às formas inglesas do relaxe do take it easy, <strong>de</strong>rivados da linguagem das enfermeiras, não doentusiasmo. A felicida<strong>de</strong> está antiquada: não é económica. Pois asua i<strong>de</strong>ia, a união sexual, é o contrário do cindido, é venturosoesforço, assim como todo o trabalho escravizante é esforço<strong>de</strong>sventurado.140Consecutio temporum. - Quando o meu primeiro professor <strong>de</strong>composição tentou dissuadir-me dos meus <strong>de</strong>vaneios atonais enão o conseguiu com as suas escandalosas histórias eróticas sobreos atonalistas, pensou que po<strong>de</strong>ria agarrar-me on<strong>de</strong> supunha estaro meu lado débil: o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> parecer mo<strong>de</strong>rno. O ultramo<strong>de</strong>rno,rezava o seu argumento, <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> ser mo<strong>de</strong>rno; os estímulos queeu buscava já tinham perdido o seu vigor; as formas <strong>de</strong> expressãoque me atraíam eram sentimentalismo antiquado, e a novajuventu<strong>de</strong>, como lhe agradava dizer, tinha mais glóbulosvermelhos no sangue. As suas próprias peças, cujos temasorientais foram prosseguindo na escala cromática, mostravam queaquelas mordazes consi<strong>de</strong>rações eram a manobra <strong>de</strong> um director210


<strong>de</strong> conservatório com má consciência. Mas <strong>de</strong>pressa tive <strong>de</strong><strong>de</strong>scobrir que a moda que ele opunha ao meu mo<strong>de</strong>rnismo seassemelhava, na capital dos gran<strong>de</strong>s salões, ao que ele inventaranas províncias. O neoclassicismo, esse tipo <strong>de</strong> reacção que não seconfessa como tal, mas faz, além disso, passar por avançado omomento reaccionário, era a ponta <strong>de</strong> lança <strong>de</strong> uma tendênciamaciça que, tanto sob o fascismo como na cultura <strong>de</strong> massas,rapidamente apren<strong>de</strong>u a prescindir do <strong>de</strong>licado respeito aos ainda<strong>de</strong>masiado sensíveis artistas e a unificar o espírito dos pintorescortesãos com o do progresso técnico. O mo<strong>de</strong>rno tornou-se realmenteantiquado. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é uma categoria qualitativa, nãocronológica. Quanto menos se <strong>de</strong>ixa persuadir pela formaabstracta, tanto mais necessária lhe é a renúncia à composiçãoconven-cional <strong>de</strong> superfícies, à aparência <strong>de</strong> harmonia, à or<strong>de</strong>mconfirmada pela mera cópia. As ligas fascistas que galhardamenteclamavam contra o futurismo tinham, na sua fúria, compreendidomelhor do que os censores <strong>de</strong> Moscovo, que põem o cubismo noíndice, porque ele, no in<strong>de</strong>coro privado, ficara aquém do espíritoda era colectivista, ou que os impertinentes críticos teatrais, queachavam passe um drama <strong>de</strong> Strindberg ou <strong>de</strong> We<strong>de</strong>kind,enquanto uma reportagem sobre o submundo lhes parece up todate. A indolente trivialida<strong>de</strong> expressa, não obstante, uma atrozverda<strong>de</strong>: que por trás do ímpeto da socieda<strong>de</strong> total, que trata <strong>de</strong>impor a sua organização a todas as manifestações, fica proteladoo que resiste àquilo que a esposa <strong>de</strong> Lindberg chamava "onda dofuturo", a construção crítica da essência. Esta <strong>de</strong> nenhum modo éproscrita pela opinião pública corrompida; acontece até que o<strong>de</strong>satino afecta a coisa. A prepotência do existente, que induz oespírito a rivalizar com ele, é tão avassaladora que até amanifestação não assimilada do protesto toma perante ela ocarácter <strong>de</strong> algo rústico, <strong>de</strong>sorientado e <strong>de</strong>sprevenido, recordandoaquele provincianismo em que outrora o mo<strong>de</strong>rno profeticamentevia um atraso. A regressão psicológica dos indivíduos, queexistem sem eu, correspon<strong>de</strong> a uma regressão do espíritoobjectivo em que o embrutecimento, o primitivismo e avenalida<strong>de</strong> impõem o que historicamente estava já em <strong>de</strong>cadênciacomo a tendência histórica mais recente, sujeitando ao veredictodo ante-ontem o que não alinha incondicionalmente com amarcha da regressão. Semelhante quid pro quo <strong>de</strong> progresso e211


eacção faz <strong>de</strong> toda a orientação <strong>de</strong>ntro da arte contemporâneaalgo quase tão difícil como a orientação na política, além <strong>de</strong>entorpecer a própria produção, na qual quem alimenta intençõesextremas tem <strong>de</strong> se sentir como um provinciano, ao passo que oconformista já não se sente envergonhado no caramanchão, mastoma o reactor para o mais que perfeito.141La nuance - encore. - A exigência <strong>de</strong> que o pensamento ou ainformação renuncie aos matizes não há que rejeitá-lasumariamente, dizendo que se ren<strong>de</strong> ao embrutecimento reinante.Se o matiz linguístico não se po<strong>de</strong> perceber, isso é coisa dopróprio matiz e não da sua recepção. A linguagem é, pela suaprópria substância objectiva, expressão social, inclusive quando,como expressão individual, se separa ariscamente da socieda<strong>de</strong>.As alterações que sofre na comunicação afectam o material nãocomunicativo do escritor. O que nas palavras e nas formaslinguísticas vem alterado pelo uso entra <strong>de</strong>teriorado na oficinaisolada. Mas nela não po<strong>de</strong>m reparar-se os danos históricos. Ahistória não roça tangencialmente a linguagem, mas acontece noseu seio. O que contra o uso se continua a utilizar surge comoingenuamente provinciano ou comodamente restaurativo. Todosos matizes são convertidos em "flavor" e malbaratados a tal grauque até as subtilezas literárias <strong>de</strong> vanguarda nos recordampalavras em <strong>de</strong>cadência, como Glast, versonnen, lauschig,wiirzig 16 . As disposições contra o kitsch tornam-se elas própriaskitsch, próximas da arte industrial e com uma ressonânciatolamente consoladora, afim ao daquele mundo feminino cujocarácter anímico se consolidou na Alemanha juntamente com otom <strong>de</strong> voz e a indumentária. Na acalentada baixa <strong>de</strong> nível comque, além, os felizardos intelectuais sobreviventes concorrem aoslugares vagos da cultura, o que ontem se apresentava ainda comolinguagem esmerada e anticonvencional surge como afectaçãorançosa. O alemão parece achar-se perante a alternativa <strong>de</strong> umsegundo e horrendo Bie<strong>de</strong>rmeier ou a trivialida<strong>de</strong> administrativo-16 Equivalem mais ou menos a"esplendor", "pensativo", "pacato","temperado". [N.T.]212


urocrática. Todavia, a simplificação, que não está sugeridaapenas pelo interesse comercial, mas a<strong>de</strong>mais por motivospolíticos fundados e, em última análise, pelo estádio histórico daprópria linguagem, não ultrapassa tanto o matiz quanto fomentatiranicamente a sua <strong>de</strong>cadência. Faz o sacrifício à omnipotênciada socieda<strong>de</strong>. Mas esta, justamente pela sua omnipotência, é tãoincomensurável e alheia ao sujeito do conhecimento e à expressãocomo o foi em épocas mais inofensivas, quando ele evitava alinguagem quotidiana. Que os homens sejam absorvidos pelatotalida<strong>de</strong> sem, como homens, serem donos da totalida<strong>de</strong> faz dasformas idiomáticas institucionalizadas algo tão nulo como osvalores ingenuamente individuais, e em igual medida permaneceinfrutífera a tentativa <strong>de</strong> modificar a sua função, admitin-do-as nomeio literário: pose <strong>de</strong> engenheiro em quem não sabe ler umdiagrama. A linguagem colectiva que atrai o escritor, que receia oseu isolamento vendo nele um romantismo, não é menos romântica:o escritor usurpa aqui a voz daqueles pelos quais, como maisum <strong>de</strong>les, não po<strong>de</strong> directamente falar, porque a sua linguagemestá <strong>de</strong>les tão separada pela reificação como todos o estão uns dosoutros; porque a figura actual do colectivo em si mesma carece <strong>de</strong>linguagem. Hoje, nenhum colectivo, ao qual se confie a expressãodo sujeito, é já sujeito. Quem não subscreva o tom hímnico eoficial dos festejos <strong>de</strong> libertação totalitariamente controlados, mastome a sério esta aridité que ambiguamente Roger Cailloisrecomenda, vive a disciplina objectiva só <strong>de</strong> modo privado, semconseguir ace<strong>de</strong>r a nenhum universal concreto. A contradiçãoentre o carácter abstracto daquela linguagem, que <strong>de</strong>seja acabarcom o subjectivo burguês, e os seus objectos rigorosamenteconcretos não radica na incapacida<strong>de</strong> do escritor, mas naantinomia histórica. Aquele sujeito <strong>de</strong>ve fazer a cessão <strong>de</strong> simesmo ao colectivo, sem ser anulado em tal colectivo. Daí que asua renúncia ao privado conserve precisamente um carácterprivado, quimérico. A sua linguagem imita por conta própria arígida construção da socieda<strong>de</strong> e cria assim a ilusão <strong>de</strong> fazer falaro betão. Como castigo, a linguagem não oficial da comunida<strong>de</strong>acaba sempre por dar um faux pas, impondo o realismo à custa dacoisa, não <strong>de</strong> modo diferente <strong>de</strong> como o fazia o burguês quando<strong>de</strong>clamava em estilo grandiloquente. A consequência <strong>de</strong>correnteda <strong>de</strong>cadência do matiz não seria a <strong>de</strong> se aferrar obstinadamente213


ao matiz caduco, nem também a <strong>de</strong> extirpar todo o matiz, mas a<strong>de</strong> o exce<strong>de</strong>r, se possível, em indícios, a <strong>de</strong> o exagerar a ponto <strong>de</strong>o transformar <strong>de</strong> inflexão subjectiva em pura <strong>de</strong>terminaçãoespecífica do objecto. Quem escreve <strong>de</strong>ve conjugar o mais estritocontrolo para que a palavra refira a coisa e só ela, sem a olhar <strong>de</strong>soslaio, com a <strong>de</strong>sarticulação <strong>de</strong> toda a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> vigilânciadaquilo que o paciente esforço na sua significação linguísticaconota, e o que não. Mas, em face do temor <strong>de</strong> ficar atrás doespírito do tempo e <strong>de</strong> ser lançado ao montão do lixo dasubjectivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>salojada, é preciso recordar que o contemporâneoarrivista e o que tem um conteúdo progressista já nãosão a mesma coisa. Numa or<strong>de</strong>m, que liquida o mo<strong>de</strong>rno por atrasado,po<strong>de</strong> a semelhante atrasado, uma vez ajuizado, advir averda<strong>de</strong> sobre a qual o processo histórico patina. Porque não sepo<strong>de</strong> expressar nenhuma outra verda<strong>de</strong> excepto a que o sujeitoconsegue realizar, o anacronismo transforma-se em refúgio domo<strong>de</strong>rno.142Para on<strong>de</strong> vai o canto alemão. - Artistas como Georgerecusaram o verso livre por consi<strong>de</strong>rá-lo contrário à forma,produto híbrido <strong>de</strong> expressão contida e prosa. Mas Goethe e oshinos posteriores <strong>de</strong> Höl<strong>de</strong>rlin <strong>de</strong>smentem-no. A sua visão técnicatoma o verso libre tal como se oferece. Fazem ouvidos moucos àhistória, que configura o verso na sua expressão. Só na época dasua <strong>de</strong>cadência os ritmos livres se reduzem a períodos <strong>de</strong> prosa <strong>de</strong>tons elevados postos uns atrás dos outros. On<strong>de</strong> o verso libre serevela como forma com essência própria, trata-se <strong>de</strong> um verso quesai da estrofe ligada e transcen<strong>de</strong> a subjectivida<strong>de</strong>. Vira o pathosdo métron contra a sua peculiar pretensão, estrita negação do<strong>de</strong>masiado estrito, do mesmo modo que a prosa musical,emancipada da simetria da oitava, <strong>de</strong>ve a sua emancipação aosinexoráveis princípios construtivos que amadureceram naarticulação da regularida<strong>de</strong> tonal. Nos ritmos livres falam asruínas das primorosas estrofes antigas não sujeitas à rima. Estesparecem estranhos às línguas novas, e em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssaestranheza servem para a expressão <strong>de</strong> tudo o que não se esgotana comunicação. Mas ce<strong>de</strong>m irremediavelmente à maré das214


línguas em que estão compostos. Só <strong>de</strong> modo fragmentário, empleno reino da comunicação e sem que nenhum arbítrio <strong>de</strong>le ossepare, implicam distância e estilização <strong>de</strong> incógnito e semprivilégios - até numa lírica como a <strong>de</strong> Trakl, on<strong>de</strong> as ondas dosonho afogam os inválidos versos. Não foi em vão que a épocados ritmos livres foi a da Revolução Francesa, a do empate entre adignida<strong>de</strong> e a igualda<strong>de</strong> humanas. Mas não se assemelha oprocedimento consciente <strong>de</strong> tais versos à lei a que obe<strong>de</strong>ce alinguagem em geral na sua história inconsciente? Não é, em rigor,toda a prosa elaborada um sistema <strong>de</strong> ritmos livres, o intento <strong>de</strong>chegar a uma ajuste entre o mágico encantamento do absoluto e anegação da sua aparência, um esforço do espírito que visa salvaro po<strong>de</strong>r metafísico da expressão, graças à sua própriasecularização? Se assim é, arrojaria um raio <strong>de</strong> luz <strong>de</strong> esperançasobre o trabalho <strong>de</strong> Sísifo que todo o escritor em prosa toma sobresi, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>smitologização se transformou na <strong>de</strong>struição daprópria linguagem. O quixotismo literário tornou-se umimperativo, porque todo o período textual contribui para <strong>de</strong>cidirse a linguagem como tal estava, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos primitivos,ambiguamente à mercê da exploração e da mentira consagradaque era inerente, ou se preparava o texto sagrado, enquantominimizava o elemento sacral <strong>de</strong> que vive. O ascéticoenclausuramento da prosa perante o verso é apenas a evocação docanto.143In nuce. - A missão da arte é, hoje, introduzir o caos naor<strong>de</strong>m.A produtivida<strong>de</strong> artística é a capacida<strong>de</strong> do arbitrário <strong>de</strong>ntrodo involuntário.A arte é magia, liberta da mentira <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>.Se as obras <strong>de</strong> arte <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>m dos feitiços, <strong>de</strong>vem os artistascensurar-se por eles se comportarem <strong>de</strong> um modo feiticistarelativamente aos seus produtos?A forma artística que, como representação da i<strong>de</strong>ia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ostempos mais antigos, exige para si a suprema espiritualização, odrama, está ao mesmo tempo, em virtu<strong>de</strong> dos seus pressupostosmais íntimos, inexoravelmente dirigida a um público.215


Se, como diz Benjamin, na pintura e na escultura alinguagem muda das coisas surge traduzida para outra superior,mas semelhante, então po<strong>de</strong> admitir-se, relativamente à música,que ela salva o nome como puro som - mas à custa <strong>de</strong> o separardas coisas.O conceito estrito e puro da arte <strong>de</strong>ve talvez extrair-se só damúsica, enquanto a gran<strong>de</strong> poesia e a gran<strong>de</strong> pintura -justamente agran<strong>de</strong> - traz consigo uma componente material que transborda ajurisdição estética, sem ficar dissolvida na autonomia da forma.Quanto mais profunda e consequente é a estética, tanto menosa<strong>de</strong>quada é para explicar, por exemplo, os romances maissignificativos do século XIX. Hegel percebeu este interesse nasua polémica contra Kant.A crença difundida pelos estetas <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte se <strong>de</strong>veenten<strong>de</strong>r só a partir <strong>de</strong> si mesma, como objecto <strong>de</strong> intuiçãoimediata, carece <strong>de</strong> fundamento. A sua limitação não está apenasnos pressupostos culturais <strong>de</strong> uma criação, na sua linguagem', quesó o iniciado po<strong>de</strong> assimilar. Inclusive, quando não hádificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse jaez, a obra <strong>de</strong> arte exige algo mais do queabandonar-se a ela. Quem chega a achar belo o 'morcego' tem <strong>de</strong>saber o que é o 'morcego': a sua mãe <strong>de</strong>ve ter-lhe explicado quenão se trata do animal voador, mas <strong>de</strong> um disfarce; tem <strong>de</strong>recordar o que uma vez lhe disse: amanhã, po<strong>de</strong>rás vestir-te <strong>de</strong>morcego. Seguir a tradição significava experimentar a obraartística como algo aprovado, vigente; participar nela dasreacções <strong>de</strong> todos os que a viram com anteriorida<strong>de</strong>. Quando istoacaba, a obra surge em toda a sua nu<strong>de</strong>z e <strong>de</strong>ficiência. A acçãopassa <strong>de</strong> ritual a idiotia, e a música <strong>de</strong> um cânone <strong>de</strong> evoluçõessignifícativas torna-se rançosa e insípida. Então já não é tão bela.Nisto baseia a cultura <strong>de</strong> massas o seu direito à adaptação. A<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda a cultura tradicional arrancada à sua tradiçãoproporciona o pretexto para a melhorar e, <strong>de</strong>sse modo,barbaramente a estropiar.O elemento consolador das gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> arte resi<strong>de</strong>menos no que dizem do que no facto <strong>de</strong> se arrancarem àexistência. A esperança habita sobretudo nos que não encontramconsolação.Kafka: o solipsista sem ipse.216


Kafka foi um ávido leitor <strong>de</strong> Kierkegaard, mas com afilosofia existencial coinci<strong>de</strong> só no tema das 'existênciasaniquiladas'.O surrealismo quebra a promesse du bonheur. Sacrifica aaparência <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> que toda a forma integral suscita aopensamento da sua verda<strong>de</strong>.144Flauta Mágica. - A i<strong>de</strong>ologia culturalmente conservadora,que estabelece uma oposição simplista entre arte e ilustração, éfalsa também por ignorar o momento da ilustração na génese dobelo. A ilustração não dissolve simplesmente todas as qualida<strong>de</strong>sinerentes ao belo, mas estabelece ao mesmo tempo a própriaqualida<strong>de</strong> do belo. A satisfação <strong>de</strong>sinteressada que, segundo Kant,produzem as obras <strong>de</strong> arte só po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se graças a umaantitética histórica que continua a vibrar em todo o objectoestético. O que se contempla <strong>de</strong>sinteressadamente causasatisfação porque exigiu uma vez o interesse extremo e sesubtraiu assim à contemplação. Esta é um triunfo daautodisciplina ilustrada. O ouro e as pedras preciosas, em cujapercepção a beleza e o luxo se encontram ainda indiferenciados,eram venerados como <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r mágico. A luz queirradiam era a sua essência. Qualquer coisa que recebesse aquelaluz obe<strong>de</strong>cia a um feitiço. Dele se serviu o primitivo domíniosobre a natureza. Este via neles instrumentos para influir no cursodo mundo com um po<strong>de</strong>r arrebatado ao próprio mundo. Oencantamento assentava na ilusão <strong>de</strong> omnipotência. Tal ilusão<strong>de</strong>svaneceu-se com a auto-ilustração do espírito, mas oencantamento persistiu como po<strong>de</strong>r das coisas resplan<strong>de</strong>centessobre os homens, perante as quais outrora estremeciam e cujosolhos permanecem sob o feitiço <strong>de</strong> tal estremecimento, inclusiveapós se ter lobrigado o seu afã <strong>de</strong> dominação. A contemplação,enquanto resto da adoração feiticista, constitui ao mesmo tempoum estádio da sua superação. Com a perda da sua pretensãomágica, com a renúncia <strong>de</strong> certo modo ao po<strong>de</strong>r que o sujeito lhesatribuía e com cuja ajuda tentava ele próprio exercê-lo, as coisasresplan<strong>de</strong>centes transformam-se em figuras da impotência, empromessa <strong>de</strong> uma felicida<strong>de</strong> que gozou do domínio sobre a217


natureza. Tal é a pré-história do luxo, transferida para o sentido<strong>de</strong> toda a arte. Na magia do que se <strong>de</strong>scobre como impotênciaabsoluta, a do belo, perfeito e nulo ao mesmo tempo, a aparência<strong>de</strong> omnipotência reflecte-se negativamente como esperança.Esquivou--se a toda a prova <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A total ausência.<strong>de</strong>finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>smente a totalida<strong>de</strong> do teleológico no mundo dadominação, e só em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal negação, que o existenteintroduz no seu próprio princípio racional como consequênciasua, a socieda<strong>de</strong> real tomou, até aos nossos dias, consciência <strong>de</strong>outra socieda<strong>de</strong> possível. A beatitu<strong>de</strong> da contemplação consisteno encantamento <strong>de</strong>sencantado. O que resplan<strong>de</strong>ce é areconciliação do mito.145Figura artística. - Aos <strong>de</strong>sprevenidos espanta-os aacumulação <strong>de</strong> objectos caseiros horrendos pelo seu parentescocom as obras <strong>de</strong> arte. Até o pisa-papéis semi-esférico <strong>de</strong> vidro quemostra no seu interior uma paisagem <strong>de</strong> abetos com a inscrição'Recordação <strong>de</strong> Bad Wildungen' evoca a planície <strong>de</strong> Stifter, e opolícromo anão do jardim alguma criatura <strong>de</strong> Balzac ou <strong>de</strong>Dickens. Da aparência estética não são culpados nem os motivoscomo tais nem a semelhança abstracta. A existência <strong>de</strong>sta escóriaexpressa antes <strong>de</strong> forma néscia e sem rebuço o triunfo <strong>de</strong> que aoshomens é possível tirar <strong>de</strong> si mesmos uma porção <strong>de</strong> algo a que,<strong>de</strong> outro modo, estariam penosamente con<strong>de</strong>nados e quebrarsimbolicamente a coerção da adaptação, criando eles próprios oque os atemoriza; e um eco do mesmo triunfo ressoa nas obrasmais po<strong>de</strong>rosas, que o recusam a si mesmas e se pensam comoum puro Si mesmo, sem relação com o imitado. Aqui e além secelebra a liberda<strong>de</strong> perante a natureza, mas permanece-se nelamiticamente enredado. O que mantinha o homem no horrorconverte-se em coisa própria e disponível. Os quadros e os quadrinhostêm em comum tornar manipuláveis as imagensprimigénias. A ilustração <strong>de</strong> "L' automne" no livro é um <strong>de</strong>jà vu;A Heróica, tal como a gran<strong>de</strong> filosofia, representa a i<strong>de</strong>ia comoprocesso total, mas como se este fosse imediato e sensivelmentepresente. Em última análise, a indignação que o kitsch provoca é afúria contra o facto <strong>de</strong> se <strong>de</strong>leitar na felicida<strong>de</strong> da imitação, que218


entretanto foi ultrapassada como tabu, enquanto a força das obras<strong>de</strong> arte continua ainda, secretamente, a alimentar-se da imitação.O que se subtrai à con<strong>de</strong>nação da existência, aos seus fins, não ésó o melhor que protesta, mas também o incapaz <strong>de</strong> autoafirmação,o estúpido. Esta estupi<strong>de</strong>z torna-se tanto maior quantomais a arte autónoma faz da sua afirmação superada esupostamente inocente um ídolo frente à real, culpada e <strong>de</strong>spótica.Ao apresentar-se como efectiva salvação do sentido objectivo, ainstância subjectiva torna-se inverda<strong>de</strong>ira. Disso a acusa o kitsch,cuja mentira não consiste em fingir a verda<strong>de</strong>. Ele atrai para si ainimiza<strong>de</strong>, porque divulga o segredo da arte e algo do parentescoda cultura com os selvagens. Toda a obra <strong>de</strong> arte tem a suacontradição insolúvel na "finalida<strong>de</strong> sem fim", pela qual Kant<strong>de</strong>finia o estético; no facto <strong>de</strong> representar uma apoteose do fazer,da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dominação natural que, qual criação <strong>de</strong> uma segundanatureza, se afirma absoluta, carente <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong> e em si,enquanto o próprio fazer, a auréola do artefacto, é ao mesmotempo inseparável da racionalida<strong>de</strong> teleológica <strong>de</strong> que a arte sepreten<strong>de</strong> libertar. A contradição entre o que é feito e o existente éo elemento vital da arte e encerra a lei do seu <strong>de</strong>senvolvimento,mas é também a sua miséria: ao seguir, embora <strong>de</strong> formamediada, o esquema preexistente da produção material e ao 'fazer'os seus objectos, não po<strong>de</strong> iludir, como a ela semelhante, aquestão do para quê, cuja negação é justamente o seu fito. Quantomais o modo <strong>de</strong> produção do artefacto se aproxima da produçãomaterial em massa, tanto mais ingenuamente suscita aquelamortal questão. Mas as obras <strong>de</strong> arte tentam silenciá-la. 'Operfeito', segundo a expressão <strong>de</strong> Nietzsche, 'nunca se <strong>de</strong>vealcançar' (Menschliches, Allzumenschliches, I, afor. 145), isto é,nunca <strong>de</strong>ve aparecer como algo feito. Todavia, quanto maisconsequentemente se distancia da perfeição do fazer, tanto maisfrágil se há-<strong>de</strong> necessariamente tornar o seu própria ser feito: oesforço infindo por apagar o vestígio do fazer <strong>de</strong>forma as obras <strong>de</strong>arte, con<strong>de</strong>nando-as ao fragmentário. Após a dissolução da magia,a arte empenhou-se em transmitir a herança das imagens. Mas sóse <strong>de</strong>dica a tal em virtu<strong>de</strong> do mesmo princípio que <strong>de</strong>struiu asimagens: o étimo do seu nome grego é idêntico ao da palavra"técnica". O seu paradoxal enredamento no processocivilizacional fá-la entrar em conflito com a sua própria i<strong>de</strong>ia. Os219


arquétipos <strong>de</strong> hoje, que o cinema e a canção da moda suscitampara a <strong>de</strong>solada intuição peculiar à fase do industrialismo tardio,não liquidam apenas a arte, mas trazem à luz, com vistosaimbecilida<strong>de</strong>, a ilusão que já nas obras <strong>de</strong> arte primigénias viviaemparedada, e que ainda às mais maduras confere o seu po<strong>de</strong>r. O<strong>de</strong>albar do final ilumina estri<strong>de</strong>ntemente o engano da origem. - Aoportunida<strong>de</strong> e as limitações da arte francesa radicam em que estanunca se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u <strong>de</strong> todo da vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer pequenasfiguras; distingue-se nitidamente da alemã por não reconhecer oconceito <strong>de</strong> kitsch. Em inúmeras manifestações significativaslança um olhar con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte ao que apenas agrada por estarfeito com <strong>de</strong>streza: o sublime artístico mantém-se na vida sensualgraças a um momento <strong>de</strong> inofensiva complacência no bien fait.Enquanto <strong>de</strong>ste modo se renuncia à pretensão absoluta do perfeito,que nunca o chega a ser, à dialéctica da verda<strong>de</strong> e daaparência, evita-se ao mesmo tempo a falsida<strong>de</strong> do que Haydnchamava os "gran<strong>de</strong>s mongóis", que, não querendo apreciar nadada graça <strong>de</strong> homenzinhos e figurinhas, caiem no feiticismo, aotentar expulsar os feitiços. O gosto é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> equilibrar naarte a contradição entre o feito e a aparência do inacabado; mas asverda<strong>de</strong>iras obras <strong>de</strong> arte, jamais concor<strong>de</strong>s com o gosto, são asque acentuam ao máximo aquela contradição e chegam a ser oque são, nela perecendo.146Mercearia. - Numa surpreen<strong>de</strong>nte anotação do seu diário,Hebbel lança a interrogação sobre o que "rouba à vida o seuencanto, nos anos <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros". "Porque em todas as bonecasvistosas, quando <strong>de</strong>sventradas, vemos o mecanismo que as põeem movimento, e porque a estimulante varieda<strong>de</strong> do mundo sedilui assim numa insípida uniformida<strong>de</strong>. Quando uma criança vêos saltimbancos a cantar, os músicos a tocar, as raparigas a trazerágua e as carruagens a <strong>de</strong>slizar, pensa que tudo isso acontece parapuro prazer e alegria <strong>de</strong> o fazer; não po<strong>de</strong> imaginar que essa gentetambém come e bebe, vai para a cama e se levanta. Mas nóssabemos <strong>de</strong> que se trata. "Tudo é por lucro, que se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>todas essas activida<strong>de</strong>s como simples meios e as reduz igualmentea tempo abstracto <strong>de</strong> trabalho. A qualida<strong>de</strong> das coisas sai da sua220


essência para se transformar no fenómeno contingente do seuvalor. A "forma equivalente" distorce todas as percepções: aquiloem que já não resplan<strong>de</strong>ce a luz da própria <strong>de</strong>terminação como"prazer <strong>de</strong> o fazer" empali<strong>de</strong>ce diante dos olhos. Os órgãos nãoapreen<strong>de</strong>m elemento sensível algum como algo isolado, mastomam nota da cor, do som, do movimento - se este é por si oupor outro -; cansam-se na falsa multiplicida<strong>de</strong> e submergem tudono cinzento, <strong>de</strong>siludidos pela enganadora pretensão dasqualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> continuarem a existir como tais, enquanto se guiampor fins <strong>de</strong> apropriação e, mais ainda, a eles <strong>de</strong>vem, em últimaanálise, a sua existência. O <strong>de</strong>sencanto do mundo intuitivo é areacção do sensorium à <strong>de</strong>terminação objectiva daquele como"mundo da mercadoria". Só as coisas purificadas da apropriaçãoteriam cor e seriam ao mesmo tempo úteis: sob a universalcoacção ambas as coisas são irreconciliáveis. Mas as crianças nãoestão, como opina Hebbel, tão enredadas nas ilusões da"estimulante varieda<strong>de</strong>" para que a sua percepção espontânea nãoapreenda a contradição entre o fenómeno e a sua fungibilida<strong>de</strong>,que a percepção resignada dos adultos já não consegue registar,nem tente a ela subtrair-se. O jogo é a sua <strong>de</strong>fesa. À criança nãocorrompida causa estranheza a "peculiarida<strong>de</strong> da formaequivalente": "O valor <strong>de</strong> uso torna-se a forma fenoménica do seucontrário, do valor" (Marx, Kapital I, Viena, 1932, p. 61). Na suaactivida<strong>de</strong> sem finalida<strong>de</strong> toma partido, mediante uma artimanha,pelo valor <strong>de</strong> uso contra o valor <strong>de</strong> troca. Ao <strong>de</strong>spojar as coisascom que se entretém da sua utilida<strong>de</strong> mediata, procura resgatar,graças ao seu trato com elas, aquilo que as torna boas para oshomens, e não para a relação <strong>de</strong> troca, que <strong>de</strong>forma igualmentehomens e coisas. O carrinho não vai a nenhum lado, e ospequenos pipos que transporta estão vazios; mas são fiéis à sua<strong>de</strong>terminação enquanto não a põem em prática, enquanto nãoparticipam no processo <strong>de</strong> abstracção que nivela aquela<strong>de</strong>terminação com tal abstracção, mas permanecem suspensosquais alegorias daquilo para que especificamente existem.Dispersos, <strong>de</strong>certo, mas não implicados, esperam que um dia asocieda<strong>de</strong> elimine <strong>de</strong>les o estigma social, que um dia o processovital entre homem e coisa, a praxis, <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser prática. Airrealida<strong>de</strong> dos jogos <strong>de</strong>nuncia que o real ainda não o é. Sãoexercícios inconscientes da vida justa. A comparação das crianças221


com os animais assenta inteiramente em que a utopia palpitaembuçada naqueles a quem Marx nem sequer conce<strong>de</strong> quepossam, como trabalhadores, gerar mais-valia. Os animais, porexistirem sem realizar qualquer tarefa que o homem lhesreconheça, expressam, por assim dizer, o próprio nome, o pura esimplesmente não susceptível <strong>de</strong> troca. Tal faz que as crianças osamem e que a sua contemplação seja ditosa. Sou um rinoceronte,significa a figura do rinoceronte. Os contos e as operetasconhecem estas figuras, e a cómica pergunta da mulher sobrecomo sabemos que Orion se chama efectivamente Orion eleva-seàs estrelas.147Novissimum Organum. - Já há muito se <strong>de</strong>monstrou que otrabalho assalariado conformou as massas mo<strong>de</strong>rnas, mais, queproduziu o próprio trabalhador. Em geral o indivíduo não é só osubstrato biológico mas, ao mesmo tempo, a forma reflexa doprocesso social, e a sua consciência <strong>de</strong> si mesmo como indivíduoexistente em si é a aparência <strong>de</strong> que tal processo necessita paraaumentar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção, ao passo que oindividualizado tem na economia mo<strong>de</strong>rna a função <strong>de</strong> meroagente da lei do valor. Daqui haveria que inferir a composiçãointerna do indivíduo em si, e não apenas do seu papel social. O<strong>de</strong>cisivo na fase actual é a categoria da composição orgânica docapital. A teoria da acumulação entendia por tal "o crescimento namassa dos meios <strong>de</strong> produção comparado com a massa, que lhesdá vida, da força do trabalho" (Marx, Kapital I, Viena, 1932, p.655). Se a integração da socieda<strong>de</strong>, sobretudo nos Estadostotalitários, <strong>de</strong>termina os sujeitos <strong>de</strong> forma cada vez maisexclusiva como momentos parciais no contexto da produçãomaterial, então "a troca na composição técnica do capital"prossegue nos sujeitos absorvidos pelas exigências tecnológicasdo processo da produção - e só assim, justamente, constituídos.Aumenta a composição orgânica do homem. O que faz que ossujeitos estejam <strong>de</strong>terminados em si mesmos como meios <strong>de</strong>produção, e não como fins vivos, aumenta tal como cresce aparticipação das máquinas relativamente ao capital variável. Odiscurso corrente sobre a "mecanização" do homem é enganador,222


porque concebe o homem como algo estático que, por "influxo"exterior, se vê submetido a certas <strong>de</strong>formações, na adaptação àscondições da produção a ele externas. Mas não há substratoalgum <strong>de</strong> tais "<strong>de</strong>formações, nada onticamente interior sobre oqual actuem, a partir <strong>de</strong> fora, os mecanismos sociais: a<strong>de</strong>formação não é nenhuma doença <strong>de</strong> que sofrem os homens,mas da socieda<strong>de</strong>, que gera os seus filhos, segundo a projecçãoque o biologismo faz em face da natureza: com "tarashereditárias". Só enquanto o processo, que se implanta com atransformação da força <strong>de</strong> trabalho em mercadoria, se impõe atodos os homens sem excepção, reifica e torna ao mesmo tempocomensurável a priori cada um dos seus movimentos num jogo<strong>de</strong> relações <strong>de</strong> troca, é possível que a vida se reproduza sob asrelações <strong>de</strong> produção dominantes. A sua total organização exige aunião dos mortos. A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver vê-se remetida para anegação da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver: a autoconser-vação anula a vida nasubjectivida<strong>de</strong>. Perante tal, todos os efeitos da adaptação, todos osactos <strong>de</strong> conformismo, <strong>de</strong>scritos pela psicologia social e pelaantropologia cultural são meros epifenómenos. A composiçãoorgânica do homem <strong>de</strong> nenhum modo se refere apenas àsespeciais capacida<strong>de</strong>s técnicas, mas igualmente - o que a todo ocusto se empenha em contradizer a habitual crítica cultural - aoseu oposto, aos momentos do natural, que <strong>de</strong>certo brotaram já dadialéctica social e que agora ficam à sua mercê. Também o que nohomem difere da técnica é incorporado como uma espécie <strong>de</strong>lubrificante da técnica. A diferenciação psicológica, queoriginariamente dimanou da divisão do trabalho e dofraccionamento do homem em sectores do processo da produção eda liberda<strong>de</strong>, acaba também por ficar ao serviço da produção. "Oespecialista 'virtuoso'", escrevia há trinta anos um dialéctico, "oven<strong>de</strong>dor das suas objectivadas e reificadas capacida<strong>de</strong>sintelectuais... adopta igualmente uma atitu<strong>de</strong> contemplativaquanto ao funcionamento <strong>de</strong> suas próprias capacida<strong>de</strong>sobjectivadas e reificadas. Esta estrutura revela-se do modo maisgrotesco no jornalismo, on<strong>de</strong> a própria subjectivida<strong>de</strong>, o saber, otemperamento e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão se convertem nummecanismo abstracto que entra em funcionamento obe<strong>de</strong>cendo aleis próprias, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte tanto da personalida<strong>de</strong> do "proprietário"como do ser material-concreto dos objectos tratados. A223


"ausência <strong>de</strong> princípios" dos jornalistas, a prostituição das suasvivências e convicções, só se po<strong>de</strong> conceber como culminação dareificação capitalista" 17 . O que aqui se po<strong>de</strong> observar dos "fenómenos<strong>de</strong>generativos" da burguesia, que ela própria <strong>de</strong>nunciou,avultou entretanto como a norma social, como o carácter da existênciaperfeita, sob o industrialismo tardio. Já há muito que não setrata da simples venda do vivo. Sob o a priori do mercantil, ovivo enquanto vivo transformou-se em coisa, em equipamento. Oeu põe conscientemente o homem inteiro ao seu serviço como umaparelho. Nesta reorganização, o eu como organizador dá tanto <strong>de</strong>si mesmo ao eu como meio <strong>de</strong> exploração que se tornainteiramente abstracto, mero ponto <strong>de</strong> referência: aautoconservação per<strong>de</strong> o seu prefixo. As qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aautêntica amabilida<strong>de</strong> até ao histérico acesso <strong>de</strong> ira, sãoutilizáveis até ao ponto <strong>de</strong> acabarem por <strong>de</strong>saparecer <strong>de</strong> todo noseu uso conformado à situação. Elas próprias vão mudando com asua mobilização. Persistem quais leves, rígidas e vazias cascas <strong>de</strong>estimulações, como material transportável à vonta<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sprovidos<strong>de</strong> todo o traço pessoal. Já não constituem o sujeito, mas osujeito conforma-se a elas como a um objecto interno seu. Na suailimitada flexibilida<strong>de</strong> para o eu, estão ao mesmo tempo <strong>de</strong>stealienadas: como qualida<strong>de</strong>s inteiramente passivas já não oalimentam. Tal é a pato-génese social da esquizofrenia. Aseparação das qualida<strong>de</strong>s do fundo pulsional e do Si mesmo, queas comanda, on<strong>de</strong> antes as mantinha unidas, faz pagar ao homema sua crescente organização interna com uma crescente<strong>de</strong>sintegração. A divisão do trabalho levada a cabo no indivíduo,a sua radical objectivação, acaba por produzir uma cisãopatológica. Daí o "carácter psicótico", pressuposto antropológico<strong>de</strong> todos os movimentos totalitários <strong>de</strong> massas. A transição dasqualida<strong>de</strong>s fixas para as formas instáveis <strong>de</strong> conduta - aparentementeum incremento da vitalida<strong>de</strong> - é a expressão da crescentecomposição orgânica. A reacção súbita, <strong>de</strong>spida <strong>de</strong> toda amediação do modo <strong>de</strong> ser, não restaura a espontaneida<strong>de</strong>, masfixa a pessoa como instrumento <strong>de</strong> medida, disponível e regulável17G. Lukács, História econsciência <strong>de</strong> classe (A reificaçãoe a consciência do proletariado).[N. T.]224


para as centrais. Quanto mais imediatamente toma as suasresoluções, tanto mais profundamente está, <strong>de</strong> facto, imbuída <strong>de</strong>mediação: nos reflexos do mais pronto efeito e menor resistência,o sujeito está inteiramente apagado. Assim acontece com osreflexos biológicos, mo<strong>de</strong>lo dos reflexos sociais actuais, que,medidos pela subjectivida<strong>de</strong>, parecem algo objectivo, alheio: nãoé em vão que são amiú<strong>de</strong> qualificados <strong>de</strong> "mecânicos". Quantomais da morte se acercam os organismos tanto mais regri<strong>de</strong>mpara os espasmos. Por isso, as tendências <strong>de</strong>strutivas das massas,que explo<strong>de</strong>m nos Estados totalitários <strong>de</strong> ambas as modalida<strong>de</strong>s,não são tanto <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> morte quanto manifestações daquilo queelas já se tornaram. Assassinam, para que a elas se assemelhe oque vivo se lhes afigura.148Matadouro. - As categorias metafísicas não constituemapenas a i<strong>de</strong>ologia encobridora do sistema social, mas expressamao mesmo tempo a sua essência, a verda<strong>de</strong> sobre ele, e nas suasmodificações <strong>de</strong>positam-se as mais substanciais experiências.Assim acontece com a morte na história; e, ao invés, esta <strong>de</strong>ixa-secompreen<strong>de</strong>r naquela. A dignida<strong>de</strong> da morte equivalia à doindivíduo. A autonomia <strong>de</strong>ste, economicamente originada,consumou-se na representação do seu carácter absoluto logo que aesperança teológica na sua imortalida<strong>de</strong>, que empiricamente orelativizava, empali<strong>de</strong>ceu. A tal correspondia a imagem enfáticada morte, que extingue totalmente o indivíduo, o substrato <strong>de</strong>todo o comportamento e pensar burgueses. Ela era o preçoabsoluto do valor absoluto. Agora rui com o indivíduosocialmente dissolvido. On<strong>de</strong> aparece revestida da antigadignida<strong>de</strong>, o seu efeito é estrepitante, como a mentira que sempreesteve contida no seu conceito: dar um nome ao imperscrutável,um predicado ao carente <strong>de</strong> sujeito e recompor o ausente. Naconsciência predominante, a verda<strong>de</strong> e a falsida<strong>de</strong> da suadignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sapareceram, não em virtu<strong>de</strong> da esperança no Além,mas em face da <strong>de</strong>sesperançada falta <strong>de</strong> vigor do cismundano.«Le mon<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rne - apontava já em 1907 o católico radicalCharles Péguy -a réussi à avilir ce qu' il y a peut-être <strong>de</strong> plusdifficile à avilir au mon<strong>de</strong>, parce que c 'est quelque chose qui a225


en soi, comme dans sa texture, une sorte particulière <strong>de</strong> dignité,comme une incapacite singulière d' être avili: il avilit la mort.»(Men and saints, Nova Iorque, 1944, p. 98). Se o indivíduo que amorte aniquilou é algo nulo, <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> todo o domínio <strong>de</strong> si edo próprio ser, então será também nulo o po<strong>de</strong>r aniquilador,diríamos, brincando com a fórmula hei<strong>de</strong>ggeriana do nada quenadifica. A radical substituibilida<strong>de</strong> do indivíduo faz da suamorte, com um <strong>de</strong>sprezo total por ela, algo revogável, tal comooutrora foi concebida no cristianismo com um pathos paradoxal.Mas a morte surge perfeitamente integrada como quantiténégligeable. Para cada homem a socieda<strong>de</strong> tem já preparado, comtodas as suas funções, um outro à espera, para quem o primeiro é,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> início, um molesto ocupante do posto <strong>de</strong> trabalho, umcandidato à morte. A experiência da morte converte-se assim nada permuta <strong>de</strong> funcionários, e tudo o que da relação natural damorte não passa plenamente para a relação social <strong>de</strong>ixa-se para ahigiene. Ao conceber-se a morte apenas como a exclusão <strong>de</strong> umser natural da trama da socieda<strong>de</strong>, esta acabou por domesticá-la:morrer apenas confirma a absoluta irrelevância do ser naturalfrente ao absoluto social. Se <strong>de</strong> algum modo a indústria culturaldá testemunho das mudanças na composição orgânica dasocieda<strong>de</strong> é mediante a confissão dificilmente velada <strong>de</strong>ste estado<strong>de</strong> coisas. Sob a sua lupa, a morte começa a parecer algo cómico.Mas o riso com que a saúda certo género <strong>de</strong> produção é ambíguo.Denuncia ainda a angústia perante o amorfo <strong>de</strong>baixo da re<strong>de</strong> comque a socieda<strong>de</strong> cobriu a natureza inteira. Mas o invólucro é já tãoamplo e espesso que a memória do nu tem um aspecto ridículo esentimental. Des<strong>de</strong> que o romance policial <strong>de</strong>caiu nos livros <strong>de</strong>Edgar Wallace, que com a sua mínima construção racional, osseus enigmas não resolvidos e o seu grosseiro exagero pareciammofar dos leitores e que, todavia, tão grandiosamenteantecipavam a imago colectiva do horror totalitário, foi-seconstituindo o tipo da comédia criminal. Enquanto esta preten<strong>de</strong>ainda brincar com o falso horror, <strong>de</strong>mole as imagens da morte.Apresenta o cadáver como aquilo em que se converteu, comorequisito. Tem ainda a aparência <strong>de</strong> um homem e, no entanto, é sóuma coisa, como no filme A slight case of mur<strong>de</strong>r, on<strong>de</strong> oscadáveres são continuamente transportados <strong>de</strong> um sítio para ooutro, alegorias do que já antes eram. O cómico saboreia a falsa226


eliminação da morte, que já Kafka <strong>de</strong>screvera com pânico nahistória do caçador Gracchus: por mor <strong>de</strong>la começa também amúsica a revelar-se cómica. O que os nacional-socialistas fizerama milhões <strong>de</strong> homens, a catalogação dos vivos como mortos, e oque <strong>de</strong>pois fizeram a produção em massa e o embaratecimento damorte, projecta a sua sombra sobre aqueles que, para fazerem rir,se inspiram nos cadáveres. É <strong>de</strong>cisiva a introdução da <strong>de</strong>struiçãobiológica na vonta<strong>de</strong> social consciente. Só uma humanida<strong>de</strong>, àqual a morte se revela tão indiferente como os seus membros,uma humanida<strong>de</strong> que morreu, po<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nar à morte por viaadministrativa seres incontáveis. A oração <strong>de</strong> Rilke por umamorte própria é o engano lamentável <strong>de</strong> acreditar que os homenssimplesmente perecem.149Meias tintas. - À crítica das tendências da socieda<strong>de</strong> actualreplica-se automaticamente, ainda antes <strong>de</strong> ela ter dito tudo, queas coisas foram sempre assim. A incomodida<strong>de</strong> da qual quemassim respon<strong>de</strong> procura logo livrar-se atesta apenas uma visão<strong>de</strong>feituosa da invariância da história; <strong>de</strong> uma irrazão que todosorgulhosamente diagnosticam como histeria. Além disso, aoacusador censura-se que ele, com os seus ataques, quer aparentar,ace<strong>de</strong>r ao privilégio do especial, quando aquilo que o leva asublevar-se é algo trivial e <strong>de</strong> todos conhecido, <strong>de</strong> modo queninguém po<strong>de</strong> acreditar que ele tenha nisso interesse. A evidênciado infortúnio favorece a sua apologia: porque todos o sabem, aninguém será permitido dizê-lo; e assim, sob a cobertura dosilêncio, po<strong>de</strong> continuar inalterado. Obe-<strong>de</strong>ce-se àquilo com queas filosofias <strong>de</strong> todos os matizes aturdiram as cabeças doshomens: que aquilo que tem do seu lado a força impositiva epersistente da existência prova assim a sua razão. Basta estar<strong>de</strong>scontente e já se é suspeito <strong>de</strong> ser um aperfeiçoador do mundo.O consenso serve-se do truque <strong>de</strong> atribuir ao opositor a tesereaccionária da <strong>de</strong>cadência, tese aliás in<strong>de</strong>fensável - pois nãoperpetua, <strong>de</strong> facto, o horror? -, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacreditar com o seu supostoerro o discernimento concreto do negativo, e <strong>de</strong> qualificar <strong>de</strong> obscurantistaaquele a quem a obscurida<strong>de</strong> irrita. Mas se tudo foisempre assim - embora nem Timur nem Gengiscão nem a227


administração colonial da índia chegassem, <strong>de</strong> acordo com umplano, a <strong>de</strong>struir com gás os pulmões <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> homens -,então a eternida<strong>de</strong> do terror manifesta-se em que cada uma dassuas formas novas supera a anterior. O que persiste não é umquantum invariável <strong>de</strong> sofrimento, mas a sua progressão para oinferno: eis o sentido do discurso sobre o crescimento dosantagonismos. Qualquer outro sentido seria ingénuo e acabariapor se expressar em frases conciliadoras, renunciando ao saltoqualitativo. Quem regista os campos <strong>de</strong> extermínio como umaci<strong>de</strong>nte na marcha triunfal da civilização, o martírio dos Ju<strong>de</strong>uscomo algo indiferente do ponto <strong>de</strong> vista histórico-universal, nãosó fica atrás da visão dialéctica, mas também perverte o sentidoda política pessoal: <strong>de</strong>ter o extremo. A transformação daquantida<strong>de</strong> em qualida<strong>de</strong> ocorre não só no <strong>de</strong>senvolvimento dasforças produtivas, mas também no aumento da pressão dadominação. Se os Ju<strong>de</strong>us como grupo social são exterminados,enquanto a socieda<strong>de</strong> continua a reproduzir a vida dostrabalhadores, então a observação <strong>de</strong> que aqueles são burgueses eo seu <strong>de</strong>stino carece <strong>de</strong> importância para a gran<strong>de</strong> dinâmica tornaseuma veneta economicista, justamente porque o crime em massase <strong>de</strong>veria explicar pela <strong>de</strong>scida da taxa <strong>de</strong> lucro. O terror consisteem ele permanecer sempre idêntico - a perpetuação da «préhistória»-, mas realizando-se incessantemente como algo distinto,insuspeitado, superior a toda a previsão, sombra fiel das forçasprodutivas no seu <strong>de</strong>sdobramento. Na violência verifica-se amesma duplicida<strong>de</strong> que a crítica da economia política assinalouna produção material: «Em todos os estádios da produção há<strong>de</strong>terminações comuns que são fixadas pelo pensamento comogerais, mas as chamadas condições universais <strong>de</strong> toda a produçãosão apenas... momentos abstractos, com os quais não se po<strong>de</strong>inteligir nenhum estádio real da produção». Por outras palavras: aabstracção total do historicamente invariável não é neutra frenteao seu objecto em virtu<strong>de</strong> da objectivida<strong>de</strong> científica; on<strong>de</strong> ela serevelar oportuna, serve <strong>de</strong> névoa, em que se <strong>de</strong>svanece o[elemento] apreensível susceptível <strong>de</strong> ataque. Tal é justamente oque não querem reconhecer os apologetas. Aferram-se, por umlado, à <strong>de</strong>rnière nouveauté e, por outro, negam a máquina infernalque é a história. Entre Auschwitz e a aniquilação das cida<strong>de</strong>s-Estado gregas não se po<strong>de</strong> estabelecer uma analogia, enquanto228


simples aumento gradual do horror, em face da qual se conserva apaz da alma. Mas é inegável que os martírios e a humilhação,nunca antes experimentados, dos que foram transportados emvagões <strong>de</strong> gado arrojam uma intensa e mortal luz sobre aqueleremoto passado, em cuja violência obtusa e não planificada estavajá implícita <strong>de</strong> modo teleológico a violência cientificamenteconcebida. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> na não-i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, no ainda nãoacontecido, que o acontecido anuncia. Asserir que sempresuce<strong>de</strong>u o mesmo é falso na sua imedia-tida<strong>de</strong>, e só verda<strong>de</strong>irograças à dinâmica da totalida<strong>de</strong>. Quem se subtrai aoconhecimento do aumento do terror não só se ren<strong>de</strong> à friacontemplação, mas escapa-lhe, além disso, com a diferençaespecífica do mais recente quanto ao anteriormente acontecido,também a verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do todo, do terror sem fim.150Edição extra. - Em passagens centrais <strong>de</strong> Poe e <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laireergue-se o conceito do novo. No primeiro, na sua <strong>de</strong>scrição domael-strom, <strong>de</strong> cujo horror, equiparado ali ao the novel, nenhumadas referências tradicionais po<strong>de</strong> dar uma i<strong>de</strong>ia; no segundo, naúltima linha do ciclo La mort, on<strong>de</strong> opta pela precipitação noabismo -não importa se é o céu ou o inferno -, "aufond <strong>de</strong>Vinconnu pour trouver du nouveau". Em ambos os casos se trata<strong>de</strong> uma ameaça <strong>de</strong>sconhecida a que o sujeito se entrega e que, nasua vertiginosa alteração, promete o prazer. O novo, um buracoda consciência, algo que se espera com os olhos fechados, parecea fórmula em que o horror e o <strong>de</strong>sespero adquirem o valor <strong>de</strong>estímulo. Ela faz do mal uma flor. Mas o seu <strong>de</strong>spido perfil é umcriptograma do mais unívoco modo <strong>de</strong> reacção. Contém aresposta precisa dada pelo sujeito ao mundo que se tornouabstracto, à era industrial. No culto do novo, e portanto na i<strong>de</strong>iada mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, existe a rebelião contra o facto <strong>de</strong> já nada haver<strong>de</strong> novo. A indistinção dos bens produzidos pelas máquinas, are<strong>de</strong> da socialização, que aprisiona igualmente e assimila osobjectos e a visão que <strong>de</strong>les se tem , transforma tudo o queencontra em algo que já ali estava, em eventual exemplar <strong>de</strong> umgénero, em "duplicado" do mo<strong>de</strong>lo. O estrato do não jápreviamente pensado, do carente <strong>de</strong> intenção, em que as intenções229


florescem, parece esgotado. Com ele sonha a i<strong>de</strong>ia do novo.Inalcançável, põe-se a si no lugar do Deus <strong>de</strong>rrubado em face daprimeira consciência do acaso da experiência. Mas o seu conceitopermanece sob o signo da enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la, e <strong>de</strong> tal dátestemunho o seu carácter abstracto, impotentemente voltado paraa concreção que se lhe subtrai. Sobre a "pré-história damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>" po<strong>de</strong>ria ser ilustrativa a análise da mudança <strong>de</strong>significado levada a cabo na palavra "sensação", sinónimoesotérico do nouveau bau<strong>de</strong>laireano. A palavra genera-lizou-se nacultura europeia por meio da teoria do conhecimento. Em Locke,significa a simples e imediata percepção, o contrário da reflexão.Converteu-se, <strong>de</strong>pois, no gran<strong>de</strong> incógnito e, por fim, no incitadormassivo, no <strong>de</strong>strutivamente embriagador, no choque como bem<strong>de</strong> consumo. Po<strong>de</strong>r perceber algo em geral, sem olhar à qualida<strong>de</strong>,substitui a felicida<strong>de</strong>, porque a omnipotente quantificaçãoeliminou a possibilida<strong>de</strong> da própria percepção. A plena referênciada experiência à coisa foi substituída por algo meramentesubjectivo e, ao mesmo tempo, fisicamente isolado, pela sensaçãoque se esgota na oscilação do manómetro. A emancipaçãohistórica do ser-em-si transmuta-se para a forma da intuição,processo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>u conta a psicologia sensualista do século XIX,ao reduzir o substrato da experiência a simples "estímulo", <strong>de</strong>cuja peculiar constituição seriam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes as energiassensoriais específicas. Mas a poesia <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire está cheia doclarão que o olho fechado vê, quando recebe um golpe. Tãofantasmagórica como essa luz é também a própria i<strong>de</strong>ia do novo.O que brilha, enquanto a percepção serena alcança apenas omol<strong>de</strong> socialmente preformado das coisas, é também repetição. Onovo buscado por si mesmo, suscitado, por assim dizer, nolaboratório, solidificado em esquema conceptual, torna-se, na suasúbita aparição, compulsivo retorno do antigo, não <strong>de</strong> mododiferente do que acontece nas neuroses traumáticas. Ao<strong>de</strong>slumbrado rasga-se o véu da sucessão temporal perante osarquétipos do invariável: é, por isso, satânica a <strong>de</strong>scoberta donovo, eterno retorno como maldição. A alegoria do novel <strong>de</strong> Poeconsiste no movimento circular vertiginoso, mas <strong>de</strong> certo modotambém estático, do in<strong>de</strong>feso barco no remoinho do maelstrom.As sensações com que o masoquista se abandona ao novo sãooutras tantas regressões. É verda<strong>de</strong> segundo a psicanálise que a230


ontologia do mo<strong>de</strong>rnismo bau<strong>de</strong>laireano, como também <strong>de</strong> quemquer que o siga, respon<strong>de</strong> a impulsos em parte infantis. O seupluralismo é a <strong>de</strong>slumbrante fada Morgana, em que ao monismoda razão burguesa se promete capciosamente como esperança asua auto<strong>de</strong>struição. Esta promessa constitui a i<strong>de</strong>ia damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, e por mor do seu núcleo, da invaria-bilida<strong>de</strong>, todo omo<strong>de</strong>rno, envelhecendo a custo, adquire a expressão do arcaico.O Tristão, que se eleva em meados do século XIX qual obeliscodo mo<strong>de</strong>rnismo, é ao mesmo tempo o monumento mais <strong>de</strong>stacadodo impulso <strong>de</strong> repetição. Des<strong>de</strong> a sua entronização o novo serevela ambíguo. Enquanto nele se associa tudo o que vai além daunida<strong>de</strong> do cada vez mais rigidamente estabelecido, a absorção donovo é o que, sob a pressão daquela unida<strong>de</strong>, estimula <strong>de</strong> modo<strong>de</strong>cisivo a <strong>de</strong>composição do sujeito em instantes convulsivos, nosquais julga viver; e, finalmente, assim a socieda<strong>de</strong> total que, pormoda, expulsa o novo. O poema <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire sobre a mártir dosexo, vítima do crime, celebra <strong>de</strong> modo alegórico a santida<strong>de</strong> doprazer na terrivel-mente libertadora natureza morta do <strong>de</strong>lito, masa embriaguez à vista do corpo nu e <strong>de</strong>capitado é já semelhante àque impelia as futuras vítimas do regime <strong>de</strong> Hitler a comprar,ansiosas e paralisadas, os jornais em que apareciam as medidasque anunciavam o seu ocaso. O fascismo foi a sensação absoluta:numa <strong>de</strong>claração da época do primeiro pogrom, Goebbels gabavase<strong>de</strong> que ao menos os nacional-socialistas não estavamaborrecidos. No III Reich, saboreava-se o terror abstracto danotícia e do boato como o único estímulo que bastava paraincendiar momentaneamente o <strong>de</strong>bilitado sensorium das massas.Sem a quase irresistível violência da ânsia <strong>de</strong> parangonas, quesufocantemente leva o coração a constrangesse no mundo prehistórico,o indizível não teria sido suportado pelos espectadores,nem sequer pelos autores. No <strong>de</strong>curso da guerra, ofereceram-se,por fim, aos Alemães notícias horríficas em gran<strong>de</strong> e semdissimulação do lento colapso militar. Conceitos como sadismo emasoquismo já não são suficientes. Na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massas <strong>de</strong>difusão técnica, ambos estão mediados pela sensação, pelanovida<strong>de</strong> meteórica, teledirigida, extrema. Esta domina o públicoque, sob o efeito do choque, se vira e esquece quem sofre asatrocida<strong>de</strong>s, se ele mesmo ou os outros. Perante o seu valor <strong>de</strong>estímulo, o conteúdo do choque torna-se realmente indiferente,231


como já o era i<strong>de</strong>almente na evocação dos poetas; é até possívelque o horror saboreado por Poe e Bau<strong>de</strong>laire, realizado pelosditadores, perca a sua qualida<strong>de</strong> sensacional e se extinga. Oresgate violento das qualida<strong>de</strong>s num novo era <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> todaa qualida<strong>de</strong>. Tudo, enquanto novo, se po<strong>de</strong> alienar <strong>de</strong> si mesmo,tornar-se fruição, do mesmo modo que o morfinómanoinsensibilizado acaba por recorrer, sem discriminação, a todas asdrogas, incluindo a atropina. Na sensação, com a diferenciaçãodas qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>saparece todo o juízo: isso faz que ela seconverta justamente em agente da regressão catastrófica. Noterror das ditaduras regressivas, a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, imagemdialéctica do progresso, consumou-se numa explosão. O novo nasua figura colectiva, <strong>de</strong> que algo <strong>de</strong>lata já o traço jornalístico emBau<strong>de</strong>laire e o rufar <strong>de</strong> tambores <strong>de</strong> Wagner é, <strong>de</strong> facto, a vidaexterior concebida como droga estimulante e paralisante: não emvão foram Poe, Bau<strong>de</strong>laire e Wagner caracteres próximos dotoxicómano. O novo torna-se puro mal só mediante a organizaçãototalitária, em que é anulada a tensão entre o indivíduo e asocieda<strong>de</strong>, que outrora produ-ziu a categoria do novo. Ainvocação do novo, indiferente ao seu tipo, contanto que sejaassaz arcaico, tornou-se hoje universal, o meio omnipotente dafalsa mimese. A <strong>de</strong>composição do sujeito leva-se a cabo medianteo seu abandono ao sempre igual e sempre distinto. Este absorvetudo o que há <strong>de</strong> fixo nos caracteres. O que Bau<strong>de</strong>laire dominavagraças à imagem suscita uma fascinação inerte. A falta <strong>de</strong>fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e o pático apelo à situação são<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ados pelo estímulo <strong>de</strong> uma novida<strong>de</strong> que já <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ser estímulo. Talvez aqui chegue a <strong>de</strong>clarar-se a renúncia dahumanida<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sejar ter filhos, porque a cada um cabe profetizaro pior: o novo é a figura latente <strong>de</strong> todos os que ainda nãonasceram. Malthus foi um dos pais do século XIX, e Bau<strong>de</strong>laireglorificou, não sem razão, as estéreis. A humanida<strong>de</strong>, que<strong>de</strong>sespera da sua reprodução, projecta inconscientemente o <strong>de</strong>sejoda sobrevivência na quimera da coisa nunca conhecida; mas estaassemelha-se à morte. Aponta para o ocaso <strong>de</strong> uma constituiçãogeral que, virtualmente, não necessita dos seus membros.232


151Teses contra o ocultismo. I. - A propensão para o ocultismo éum sintoma da regressão da consciência. Esta per<strong>de</strong>u a força parapensar o incondicionado e ultrapassar o condicionado. Em vez <strong>de</strong><strong>de</strong>terminar ambos, mediante o trabalho do conceito, segundo aunida<strong>de</strong> e a diferença, mistura-os sem distinção. Oincondicionado torna-se factum, e o condicionado converte-seimediatamente em essencial. O monoteísmo dissolve-se emsegunda mitologia. "Creio na astrologia, porque não acredito emDeus", respon<strong>de</strong>u alguém numa investigação <strong>de</strong> psicologia socialrealizada na América. A razão preceituante, que <strong>de</strong>via elevar-seao conceito do Deus único, parece confundida com o seu <strong>de</strong>rrube.O espírito dissocia-se em espíritos, e per<strong>de</strong>-se a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>compreen<strong>de</strong>r que estes não existem. A velada tendência dasocieda<strong>de</strong> para a infelicida<strong>de</strong> alimenta as suas vítimas com umafalsa revelação, com um fenómeno alucinatório. Na sua exposiçãofragmentária, em vão esperam ter à vista e fazer frente àfatalida<strong>de</strong> total. Após milénios <strong>de</strong> ilustração, o pânico irrompe <strong>de</strong>novo numa humanida<strong>de</strong> cujo domínio sobre a natureza, enquantodomínio sobre o homem, <strong>de</strong>ixa atrás <strong>de</strong> si em horror o que oshomens tinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre a recear da natureza.II. A segunda mitologia é menos verda<strong>de</strong>ira do que aprimeira. Esta foi o precipitado do estado cognitivo nas suasrespectivas épocas, cada uma das quais mostra, com maiorliberda<strong>de</strong> do que a prece<strong>de</strong>nte, a consciência da cega conexãonatural. Aquela, perturbada e intimidada, <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>-se doconhecimento adquirido no seio <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que, através daomni-englobante relação <strong>de</strong> troca, escamoteia o elementar - queos ocultistas afirmam dominar. O olhar do navegante assestadonos Dióscuros, a animação <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> fontes - em todos osestados <strong>de</strong> obnubilação perante o inexplicado, as experiências dosujeito estavam historicamente conformadas pelos objectos da suaacção. Todavia, como reacção racionalmente explorada contra asocieda<strong>de</strong> racionalizada, nos tugúrios e nas consultas dos vi<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> toda a laia, o animismo renascido nega a alienação <strong>de</strong> que elepróprio é testemunho e vive, sub-roga a experiência inexistente. Oocultista tira a consequência extrema do carácter feiticista damercadoria: o trabalho ameaçadoramente objectivado aflora nos233


objectos com múltiplos esgares <strong>de</strong>moníacos. O que foi esquecidono mundo congelado em produto, o seu ser-produzido pelohomem, é recordado, mas cindido, <strong>de</strong>svirtuado, como um ser-emsique se acrescenta e equipara ao em si dos objectos. Porqueestes parecem congelados sob a luz da razão, porque per<strong>de</strong>ram aaparência do animado, o animador - a sua qualida<strong>de</strong> social -alcança a in<strong>de</strong>pendência como algo natural-sobrenatural, coisaentre coisas.III. A regressão ao pensamento mágico sob o capitalismotardio assimila tal pensamento às formas capitalistas tardias. Osfenómenos marginais, suspeitosamente associais, do sistema, osmesquinhos arranjos para olhar <strong>de</strong> soslaio as gretas dos seusmuros, nada revelam do que há fora <strong>de</strong>le, mas muitas das forças<strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação no interior. Os pequenos sábios que aterrorizamos seus clientes diante da bola <strong>de</strong> cristal são mo<strong>de</strong>los emminiatura dos gran<strong>de</strong>s, que têm nas suas mãos o <strong>de</strong>stino dahumanida<strong>de</strong>. A própria socieda<strong>de</strong> está tão <strong>de</strong>savinda e tãoconspiradora como os obscurantistas da Psychic Research. Ahipnose que as coisas ocultas provocam assemelha-se ao terrortotalitário: ambos se fun<strong>de</strong>m nos processos contemporâneos. Oriso dos augures acabou por constituir o escárnio que a socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> si mesma faz; nutre-se com a directa exploração material dasalmas. O horóscopo correspon<strong>de</strong> às directrizes dos gabinetes aospovos, e a mística dos números apronta para as estatísticas daadministração e os preços dos cartéis. A própria integração acabapor se revelar como i<strong>de</strong>ologia para a <strong>de</strong>sintegração em grupos <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r, que entre si se eliminam. Quem neles se enreda estáperdido.IV. O ocultismo é um movimento reflexo ten<strong>de</strong>nte à subjectivização<strong>de</strong> todo o sentido, o complemento da reificação.Quando, como nunca antes, a realida<strong>de</strong> objectiva aparece surdaaos vivos, tentam arrancar-lhe um sentido por meio <strong>de</strong> umabracadabra. Exigem-no confusamente ao mal mais próximo: aracionalida<strong>de</strong> do real, com que aquele já não concorda, ésubstituída por mesas que saltam e por radiações proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>massas <strong>de</strong> terra. A escória do mundo fenoménico, para aconsciência doente, transmuta-se em mundus inteligibilis. Seriaquase a verda<strong>de</strong> especulativa, como o Odra<strong>de</strong>k <strong>de</strong> Kafka seriaquase um anjo, e todavia numa positivida<strong>de</strong>, que omite o meio do234


pensamento, é somente o bárbaro <strong>de</strong>svario, a subjectivida<strong>de</strong>alienada <strong>de</strong> si mesma e que, por isso, não se reconhece noobjecto. Quanto mais plena é a indignida<strong>de</strong> do que se apresentacomo "espírito" - e o sujeito ilustrado reencontrar-se-ia, <strong>de</strong>imediato, no mais animado -, tanto mais o sentido ali rastreado,que em si totalmente falta, se torna uma projecção inconsciente,compulsiva, do sujeito se não clínica, pelo menos historicamente<strong>de</strong>sintegrado. Este gostaria <strong>de</strong> equiparar o mundo à sua própria<strong>de</strong>sintegração: por isso, anda sempre com requisitos e maus<strong>de</strong>sejos. "A terceira lê-me na mão, / Quer ler a minha <strong>de</strong>sgraça".No ocultismo, o espírito geme sobre o seu próprio feitiço comoalguém que sonha com uma <strong>de</strong>sgraça, e cujo tormento aumentacom a sensação <strong>de</strong> que está a sonhar, sem que consiga <strong>de</strong>spertar.V. A violência do ocultismo, como a do fascismo, ao qual oassociam esquemas <strong>de</strong> pensamento do tipo do anti-semitismo, nãoé apenas a violência prática. Radica antes em que nas mínimaspanaceias, quase imagens encobridoras, a consciência <strong>de</strong>sejosa daverda<strong>de</strong> julga po<strong>de</strong>r obter um conhecimento, para elaobscuramente presente, que o progresso oficial em todas as suasformas intencionalmente lhe nega. É o conhecimento <strong>de</strong> que asocieda<strong>de</strong>, ao excluir virtualmente a possibilida<strong>de</strong> da mudançaespontânea, gravita para a catástrofe total. A loucura real éreproduzida pelo astrológico, que apresenta a obscura conexão <strong>de</strong>elementos alienados - nada mais estranho do que as estrelas -como um saber acerca do sujeito. A ameaça lida nas constelaçõesassemelha-se à histórica, que persiste em chafurdar no vazio daconsciência, na ausência <strong>de</strong> sujeito. Que todas as futuras vítimassejam <strong>de</strong> um todo configurado por elas mesmas, só po<strong>de</strong>msuportá-lo, ao transferir <strong>de</strong> si aquele todo para algo exterior que selhe assemelhe. Na <strong>de</strong>plorável imbecilida<strong>de</strong> em que se instalam, novazio horror, po<strong>de</strong>m expulsar a tosca lamentação, a grosseiraangústia da morte e, todavia, continuar a reprimi-las, como <strong>de</strong>vemfazer, se quiserem continuar a viver. A interrupção na linha davida como indício <strong>de</strong> um cancro solapado é uma mentira só nolugar on<strong>de</strong> se afirma, na mão do indivíduo; on<strong>de</strong> não se fazdiagnóstico algum, no colectivo, seria uma verda<strong>de</strong>. Com razão sesentem os ocultistas atraídos por fantasias científico-naturaisinfantilmente monstruosas. A confusão que estabelecem entre assuas emanações e os isótopos do urânio é a última clarida<strong>de</strong>. Os235


aios místicos são mo<strong>de</strong>stas antecipações das produzidas pela técnica.A superstição é conhecimento, porque vê reunidas as cifrasda <strong>de</strong>struição que se encontram dispersas pela superfície social; élouca porque, com todo o seu instinto <strong>de</strong> morte, se aferra ainda ailusões: a forma transfigurada, transferida para o céu, dasocieda<strong>de</strong> promete uma resposta que só se po<strong>de</strong> fornecer emoposição à socieda<strong>de</strong> real.VI. O ocultismo é a metafísica dos mentecaptos. A subalternida<strong>de</strong>dos meios é tão pouco aci<strong>de</strong>ntal como o apócrifo, o puerildo revelado. Des<strong>de</strong> os primeiros dias do espiritismo, o além nãocomunicou nada <strong>de</strong> maior monta excepto as saudações da avófalecida, juntamente com a profecia <strong>de</strong> alguma viagem iminente.A <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> que o mundo dos espíritos não po<strong>de</strong> comunicar àpobre razão humana mais coisas do que as que é capaz <strong>de</strong> receberé igualmente néscia, hipótese auxiliar do sistema paranóico: maislonge do que a viagem até à avó levou o lúmen naturale, e se osespíritos não querem <strong>de</strong> tal tomar conhecimento algum é porquesão duen<strong>de</strong>s <strong>de</strong>satentos, com os quais é melhor cortar relações.No conteúdo torpemente natural da mensagem sobrenaturalrevela-se a sua inverda<strong>de</strong>. Ao tentar caçar lá em cima o perdido,os ocultistas <strong>de</strong>param aí apenas com o seu próprio nada. Para nãosair da cinzenta cotidianida<strong>de</strong> em que, como realistasincorrigíveis, se encontram à vonta<strong>de</strong>, assimilam o sentido emque se refrescam ao contra-senso <strong>de</strong> que fogem. O indolenteefeito mágico é apenas a indolente existência <strong>de</strong> que ele é reflexo.Daí que os prosaicos se encontrem bem nele. Factos que sediferenciam do que realmente acontece só porque não o sãosituam-se numa quarta dimensão. O seu não-ser é apenas a suaqualitas occulta. Proporcionam à imbecilida<strong>de</strong> umamundividência. Astrólogos e espiritistas dão <strong>de</strong> um mododrástico, <strong>de</strong>finitivo, a cada questão uma resposta que, em vez <strong>de</strong> aresolver, a subtrai, com as suas grosseiras asseverações, a toda apossível solução. O seu âmbito sublime, representado comoanálogo do espaço, carece tão pouco <strong>de</strong> ser pensado como asca<strong>de</strong>iras e os vasos <strong>de</strong> flores. Reforça assim o conformismo. Nadaagrada mais ao existente do que <strong>de</strong>ver ser sentido o existirenquanto tal.VII. As gran<strong>de</strong>s religiões ou conceberam, como a judaica, asalvação dos mortos com o silêncio, <strong>de</strong> acordo com a proibição236


das imagens, ou ensinaram a ressurreição da carne. O seu pontofulcral era a inseparabilida<strong>de</strong> do espiritual e do corporal.Nenhuma intenção existe, «nada» espiritual, que não se fun<strong>de</strong> <strong>de</strong>algum modo na percepção corpórea e que não exija ao mesmotempo a sua realização corporal. Aos ocultistas, tão favoráveis ài<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ressurreição, mas que em rigor não <strong>de</strong>sejam a salvação,tal parece-lhes <strong>de</strong>masiado grosseiro. A sua metafísica, que nemsequer Huxley consegue já diferenciar da metafísica, recorre aoaxioma: «A alma eleva-se às alturas, viva!,/ o corpo fica nocanapé». Quanto mais alegre é a espiritualida<strong>de</strong> tanto maismecânica: nem Descartes a separou com tanta limpeza. A divisãodo trabalho e a reificação são levadas ao limite: corpo e alma sãoseparados, por assim dizer, numa perene vivissecção. A alma<strong>de</strong>ve purificar-se do pó para continuar sem <strong>de</strong>svios, em regiõesmais luminosas, a sua ar<strong>de</strong>nte activida<strong>de</strong> no mesmo lugar em quefoi interrompida Mas a alma torna-se uma grosseira imitaçãodaquilo <strong>de</strong> que falsamente se emancipara. Em vez da acçãorecíproca, que até a mais rígida filosofia afirmava, instala-se ocorpo astral, vergonhosa concessão do espírito hipos-tasiado aoseu contrário. Só na comparação com o corpo se po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r oconceito <strong>de</strong> espírito puro, e assim ao mesmo tempo o ab-roga.Com a reificação dos espíritos, estes estão já negados.VIII. Eis uma acusação <strong>de</strong> materialismo. Mas os ocultistasquerem preservar o corpo astral. Os objectos do seu interesse<strong>de</strong>vem ao mesmo tempo ultrapassar a possibilida<strong>de</strong> daexperiência e ser experimentados. Tal <strong>de</strong>ve fazer-se <strong>de</strong> um modorigorosamente científico; quanto maior é a patranha tanto maisesmerado é o or<strong>de</strong>namento da sua tentativa. A pretensão <strong>de</strong>controlo científico é levada ad absurdum, on<strong>de</strong> nada há quecontrolar. O mesmo aparelho racionalista e empirista que <strong>de</strong>u ogolpe <strong>de</strong> graça aos espíritos é posto em andamento para <strong>de</strong> novoos impor àqueles que já não confiam na própria ratio. Como setodo o espírito elementar não tivesse <strong>de</strong> fugir das armadilhas quea dominação sobre a natureza esten<strong>de</strong> ao seu ser evanescente.Mas os ocultistas até isso utilizam em seu benefício. Porque osespíritos se subtraem ao controlo, é necessário <strong>de</strong>ixar aberta, entreos dispositivos <strong>de</strong> segurança, uma porta para que possamtranquilamente fazer a sua aparição. É que os ocultistas são genteprática. Não os move a vã curiosida<strong>de</strong>, buscam apenas conselhos.237


Vão ladinos das estrelas ao negócio a prazo. Quase sempre ainformação dada a uns quantos pobres <strong>de</strong>sconhecidos, queesperam algo, refere que a infelicida<strong>de</strong> está em casa.IX. O pecado capital do ocultismo é a contaminação doespírito e da existência, que se torna até atributo do espírito. Estenasceu na existência como órgão para se manter em vida. Masquando a existência se reflecte no espírito, este transforma-senoutra coisa. O existente nega-se como recordação <strong>de</strong> si mesmo.Tal negação é o elemento do espírito. Atribuir-lhe também umaexistência positiva, embora <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m superior, seria entregá-loàquilo a que se opõe. A i<strong>de</strong>ologia burguesa tardia fizera <strong>de</strong>le,mais uma vez, o que ele foi para o pré-animismo, um existenteem-si,segundo a medida da divisão social do trabalho, da rupturaentre o trabalho físico e espiritual, da dominação planificadasobre o primeiro. No conceito do espírito existente-em-si, aconsciência justificava ontologicamente e eternizava o privilégio,ao dotá-lo <strong>de</strong> autonomia perante o princípio social que o constitui.Semelhante i<strong>de</strong>ologia explo<strong>de</strong> no ocultismo: este é, por assimdizer, o i<strong>de</strong>alismo regressado a si mesmo. Em virtu<strong>de</strong> da férreaantítese entre ser e espírito, este converte-se num recinto do ser.Se, em relação ao todo, o i<strong>de</strong>alismo patrocinara a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que oser é espírito e este existe, o ocultismo tira a conclusão absurda <strong>de</strong>que a existência significa um ser <strong>de</strong>terminado: "A existência,segundo o seu <strong>de</strong>vir, é em geral ser com não-ser, pelo que estenão-ser se encontra assumido em simples unida<strong>de</strong> com o ser. Onão-ser está <strong>de</strong> tal modo assumido no ser que o todo concreto estána forma do ser, na imediatida<strong>de</strong>, e constitui a <strong>de</strong>terminida<strong>de</strong>como tal" (Hegel, Wissenschaft <strong>de</strong>r Logik I, p. 123). Os ocultistastomam literalmente o não-ser "em simples unida<strong>de</strong> com o ser", eo seu tipo <strong>de</strong> concreção é uma abreviatura vertiginosa do caminhoque vai do todo ao <strong>de</strong>terminado, o qual po<strong>de</strong> encontrar um apoiona i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o todo, uma vez <strong>de</strong>terminado, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o ser. Àmetafísica gritam hic Rhodus hic salta: se o investimentofilosófico do espírito se há-<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar com a existência, entãoa existência dispersa, arbitrária - parece-lhes - tem <strong>de</strong> se justificarcomo espírito particular. Se assim é, a teoria da existência doespírito, máxima elevação da consciência burguesa, traria já emsi, teleologicamente, a crença nos espíritos, a extrema<strong>de</strong>gradação. A transição para a existência, sempre "positiva" e238


justificação do mundo, implica ao mesmo tempo a tese dapositivida<strong>de</strong> do espírito, a sua fixação coisal, a transposição doabsoluto para o fenómeno. Se o mundo coisal inteiro, enquanto"produto", tem <strong>de</strong> ser espírito ou algo <strong>de</strong> coisa e algo <strong>de</strong> espíritotorna-se indiferente, e o espírito do mundo trans-forma-se emespírito supremo, em anjo da guarda do existente, do <strong>de</strong>spojado<strong>de</strong> espírito. Disso vivem os ocultistas: a sua mística é o enfantterrible do momento místico em Hegel. Levam a especulação auma fraudulenta bancarrota. Ao apresentar o ser <strong>de</strong>terminadocomo espírito, submetem o espírito objectivado à prova daexistência, e esta tem <strong>de</strong> se revelar negativa. Nenhum espírito aíexiste.152Advertência contra o mau uso. - A dialéctica teve a suaorigem na sofística como um procedimento da discussão paraabalar as afirmações dogmáticas e, à maneira dos advogados edos cómicos, fazer da palavra mais mo<strong>de</strong>sta a mais po<strong>de</strong>rosa.Ulteriormente, frente à philosophia perennis, constituiu-se comométodo perene <strong>de</strong> crítica, como asilo <strong>de</strong> todos os pensamentos dosoprimidos, inclusive do nunca por eles pensado. Como meio <strong>de</strong>obter a razão, foi também, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, um meio <strong>de</strong> dominação,técnica formal da apologia indiferente ao conteúdo, para servir osque podiam pagar: o princípio <strong>de</strong> inverter sempre, e com êxito, asituação. Por isso, a sua verda<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong> não resi<strong>de</strong> nométodo em si, mas na sua intenção <strong>de</strong>ntro do processo histórico.A cisão da escola hegeliana numa ala direita e noutra esquerdamergulha as suas raízes no duplo sentido da teoria, não menos doque na situação política do Vormärz. Dialéctica não é só a teoriamarxista, que quer transformar o proletariado como sujeitoabsoluto da história no sujeito primário da socieda<strong>de</strong> e tornarrealida<strong>de</strong> a auto<strong>de</strong>terminação consciente da humanida<strong>de</strong>, mastambém o chiste que Gustave Doré pôs na boca <strong>de</strong> umrepresentante parlamentar do ancien regime: que sem Luís XVInunca se teria chegado à Revolução e que, portanto, se lhe <strong>de</strong>veagra<strong>de</strong>cer a proclamação dos direitos do homem. A filosofianegativa, a dissolução universal, dissolve sempre ao mesmotempo o próprio dissolvente. Mas a nova forma em que preten<strong>de</strong>239


superar ambos, o dissolvente e o dissolvido, nunca po<strong>de</strong>rá surgirem estado puro na socieda<strong>de</strong> antagónica. Enquanto a dominaçãose reproduzir, a velha qualida<strong>de</strong> sairá <strong>de</strong> novo à luz com toda acrueza na dissolução do dissolvente: num sentido radical, não hánela nenhum salto. Só este seria o acontecimento capaz <strong>de</strong> atranscen<strong>de</strong>r. Porque a <strong>de</strong>terminação dialéctica da nova qualida<strong>de</strong>se vê respectivamente remetida para o po<strong>de</strong>r da tendênciaobjectiva, que transmite o fascínio da dominação, sempre quecom o trabalho do conceito alcança a negação da negação vê--setambém inevitavelmente forçada a substituir no pensamento oantigo mau pelo inexistente outro. A profundida<strong>de</strong>, com que seafunda na objectivida<strong>de</strong>, é conseguida com a participação namentira <strong>de</strong> que a objectivida<strong>de</strong> é já a verda<strong>de</strong>. Ao limitar-seestritamente a extrapolar a situação isenta <strong>de</strong> privilégios do que<strong>de</strong>ve ao processo o privilégio <strong>de</strong> ser, ren<strong>de</strong>-se à restauração. Isto éregistado pela existência privada, à qual Hegel censurou a suanulida<strong>de</strong>. A mera subjectivida<strong>de</strong> que se empenha na pureza do seupróprio princípio enreda-se em antinomias. Sucumbe à sua<strong>de</strong>formida<strong>de</strong> à hipocrisia e ao mal a não ser que se objective nasocieda<strong>de</strong> e no Estado. A moral, ã autonomia baseada na puracerteza <strong>de</strong> si mesmo e ainda a consciência moral são meraaparência. Se "o real moral não existe" {Phänomenologie, ed.Lasson, p. 397), na Filosofia do Direito estará consequentementeo matrimónio acima da consciência moral, acima inclusive da suaeminência, que Hegel qualificará com ironia romântica <strong>de</strong>"vaida<strong>de</strong> subjectiva" no duplo sentido. Este motivo da dialéctica,que actua em todos os estratos do sistema, é ao mesmo tempoverda<strong>de</strong>iro e falso. Verda<strong>de</strong>iro, porque <strong>de</strong>svela o particular comoaparência necessária, como a falsa consciência do separado <strong>de</strong> serapenas ele próprio, e não um momento do todo; e esta falsaconsciência faz que se <strong>de</strong>svaneça pela força do todo. Falso,porque o motivo da objectivação, a "exteriorização", é <strong>de</strong>gradado,sob o pretexto da auto-afirmação burguesa do sujeito, a simplesracionalização, sempre que a objectivida<strong>de</strong>, que opõe opensamento à má subjectivida<strong>de</strong>, não é livre e fica sempre aquémdo trabalho crítico do sujeito. A palavra exteriorização, queespera da obediência da vonta<strong>de</strong> privada a libertação daarbitrarieda<strong>de</strong> privada, ao afirmar com insistência o exterior comoo que institucionalmente se opõe ao sujeito, reconhece, não240


obstante todos os votos para a reconciliação, a pereneirreconciliabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito e objecto, que, por outro lado,constitui o tema da crítica dialéctica. O acto da exteriorização<strong>de</strong>semboca na renúncia, que Goethe caracterizava como salvaçãoe, por isso, na justificação do status quo tanto hoje como ontem.Da evidência, por exemplo, da mutilação das mulheres pelasocieda<strong>de</strong> patriarcal e da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eliminar a<strong>de</strong>formação antropológica sem o fazer com os seus pressupostos,o dialéctico irremissivelmente <strong>de</strong>siludido po<strong>de</strong>ria inferir o ponto<strong>de</strong> vista do senhor da casa, e expressar a perpetuação da relaçãopatriarcal. Não lhe faltariam razões plausíveis, como a daimpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umas relações essencialmente diferentes sobas actuais condições, nem também a atitu<strong>de</strong> humanitária para comos oprimidos que <strong>de</strong>vem pagar o preço da falsa emancipação, mastodo o verda<strong>de</strong>iro se tornaria i<strong>de</strong>ologia nas mãos do interessemasculino. O dialéctico conhece a infelicida<strong>de</strong> e o abandono dosque envelhecem sem se casar, a cruelda<strong>de</strong> mortífera da separação.Mas ao dar antiromanti-camente a primazia ao matrimónioobjectivado frente à paixão efémera, não superada, na vida emcomum torna-se advogado dos que aguentam o matrimónio àcusta do afecto, dos que amam aquilo por que estão casados, istoé, a abstracta relação <strong>de</strong> posse. A última conclusão <strong>de</strong>stasabedoria seria a <strong>de</strong> que isto não interessa às pessoas enquanto seacomodarem apenas à constelação dada e fizerem o que lhescompete. Para se proteger <strong>de</strong> semelhantes situações, a dialécticaesclarecida carece da suspeita incessante perante o elementoapologético e restaurador que, apesar <strong>de</strong> tudo, constitui uma partedo oposto à ingenuida<strong>de</strong>. O ameaçador retrocesso da reflexãopara o irreflexivo <strong>de</strong>nuncia-se na superiorida<strong>de</strong> que lida com oprocedimento dialéctico e se expressa como se ela própria fosse oconhecimento imediato do todo, que o princípio da dialécticajustamente exclui. Recorre-se à perspectiva da totalida<strong>de</strong> paraimpedir ao adversário todo o juízo negativo <strong>de</strong>terminado comum"não queria dizer isto" e, ao mesmo tempo, interromperviolentamente o movimento do conceito, suspen<strong>de</strong>r a dialécticainsistindo na força insuperável dos factos. O infortúnio ocorregraças ao thema probandum: utiliza-se a dialéctica em vez <strong>de</strong>nela se per<strong>de</strong>r. Em seguida, o pensamento soberanamente241


dialéctico retroce<strong>de</strong> ao estádio pré-dialéctico: a tranquilaexposição <strong>de</strong> que cada coisa tem duas vertentes.153Para terminar. - O único modo que ainda resta à filosofia <strong>de</strong>se responsabilizar perante o <strong>de</strong>sespero seria tentar ver as coisascomo aparecem do ponto <strong>de</strong> vista da re<strong>de</strong>nção. O conhecimentonão tem outra luz, excepto a que brilha sobre o mundo a partir dare<strong>de</strong>nção: tudo o mais se esgota na reconstrução e não passa <strong>de</strong>elemento técnico. Há que estabelecer perspectivas em que omundo surja transposto, alienado, em que se mostrem as suasgretas e <strong>de</strong>sgarramentos, como se oferece necessitado e disformeà luz messiânica. Situar-se em tais perspectivas semarbitrarieda<strong>de</strong> e violência, a partir do contacto com os objectos, sóé dado ao pensamento. É o que há <strong>de</strong> mais simples, porque asituação incita peremptoriamente a tal conhecimento, porque anegativida<strong>de</strong> consumada, uma vez abarcada no seu todo pelavista, compõe a imagem invertida do seu contrário. Mas tal étambém o absolutamente impossível, porque pressupõe umaposição que se subtrai, ainda que só num grau mínimo, ao círculomágico da existência, quando todo o conhecimento possível, paraadquirir valida<strong>de</strong>, não só se <strong>de</strong>ve extrair primariamente do que é,mas também, e por isso mesmo, está afectado com a mesma<strong>de</strong>formação e precarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que se propõe sair. Quanto maisapaixonadamente o pensamento se hermetiza no seu sercondicionado,por mor do incondicionado, tanto mais éinconsciente e, por isso, tanto mais fatidicamente se ren<strong>de</strong> aomundo. Deve, inclusive, assumir a sua própria impossibilida<strong>de</strong>por mor da impossibilida<strong>de</strong>. Mas, em face da exigência, queassim se impõe, a pergunta pela realida<strong>de</strong> ou irrealida<strong>de</strong> daprópria re<strong>de</strong>nção é quase indiferente.242


ÍNDICEDedicatória........................................................................ 7Primeira partePara Marcel Proust .......................................................... 13Banco público ................................................................. 14Peixe na água .................................................................. 15Clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira ...................................................... 17"É muito bom da sua parte, senhor doutor!" ................... 18Antítese............................................................................ 19They, the people .............................................................. 21Se te atraem os rapazes maus ......................................... 22Acima <strong>de</strong> tudo uma coisa, meu filho .............................. 23Separados - unidos .......................................................... 24Mesa e cama...................................................................... 25Inter pares......................................................................... 26Protecção, a ajuda e conselho.......................................... 27Le bourgeois revenant .................................................... 28Le nouvel avare................................................................ 29Sobre a dialéctica do tacto .............................................. 30Reserva <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> .................................................. 32Asilo para os sem abrigo.................................................. 33Não bater à porta.............................................................. 35Struwwelpeter.................................................................. 35Não se permitem trocas................................................... 37Deitar fora a criança com a água .................................... 39Plurale tantum ................................................................ 40Tough baby...................................................................... 41Nada <strong>de</strong> pensar neles ...................................................... 42English spoken................................................................. 43On parle français............................................................ 43Paysage............................................................................ 44Frutinha ........................................................................ 44Pro domo nostra ............................................................. 46Gato por lebre ................................................................ 47Os selvagens não são homens melhores ......................... 48Longe do perigo ............................................................ 49Hans-Guck-in-die-Luft ................................................... 53Retorno à cultura ............................................................ 54A saú<strong>de</strong> para a morte ...................................................... 55243


Aquém do princípio do prazer ........................................ 57Convite à valsa ............................................................... 59O ego é o id...................................................................... 60Falar sempre, pensar nunca ............................................. 62Dentro e fora.................................................................... 64Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento ................................................... 65Não vale alarmar-se......................................................... 67Para pós-socráticos ......................................................... 68Quão doente parece tudo o que nasce............................... 69Para uma moral do pensamento........................................ 71De gustibus est disputandum.......................................... 73Para Anatole France.......................................................... 74Moral e or<strong>de</strong>m temporal ................................................. 76Lacunas............................................................................. 78Segunda parteAtrás do espelho............................................................... 81On<strong>de</strong> a cegonha vai buscar os meninos .......................... 84Patetices........................................................................... 85Os bandidos..................................................................... 86Po<strong>de</strong>rei ousar ................................................................. 87Arvore genealógica.......................................................... 88Escavação......................................................................... 89A verda<strong>de</strong> sobre Hedda Gabler ....................................... 91Des<strong>de</strong> que o vi................................................................... 93Uma palavra a favor da moral........................................... 94Instância <strong>de</strong> apelação...................................................... 95Breves comentários .......................................................... 97Morte da imortalida<strong>de</strong>...................................................... 98Moral e estilo ................................................................ 99Fome................................................................................ 100Mélange.......................................................................... 101Excesso por excesso ........................................................ 102Observam-te os homens.................................................. 104Gente vulgar..................................................................... 104Opinião <strong>de</strong> diletante ....................................................... 106Pseudómenos .................................................................. 107Segunda colheita........................................................... 109Desvio.............................................................................. 113Mamute ..................................................................... 115244


Frio albergue.................................................................... 117Jantar <strong>de</strong> gala ................................................................. 119Leilão ........................................................................... 120Entre as montanhas ....................................................... 122Intellectus sacrificium intellectus ................................... 123Diagnóstico ................................................................... 124Gran<strong>de</strong> e pequeno ............................................................ 126A dois passos ................................................................... 128Vice-presi<strong>de</strong>nte ............................................................... 130Horário............................................................................. 132Exame............................................................................ 133Hänschen klein................................................................. 134Clube <strong>de</strong> luta.................................................................... 135Palhaço Augusto............................................................. 137Correio negro................................................................ 138Instituição para surdos mudos.......................................... 139Vândalos......................................................................... 141Livro <strong>de</strong> imagens sem imagens ........................................ 143Intenção e cópia.............................................................. 145Drama público .............................................................. 146Surdina e bombo............................................................. 149Palácio <strong>de</strong> Jânus .............................................................. 150Mónada........................................................................... 152Testamento ................................................................... 155Prova do ouro.................................................................. 156Sur Veau ........................................................................ 160Terceira partePlanta <strong>de</strong> estufa................................................................ 163Sempre em frente <strong>de</strong>vagar............................................... 164Infeliz............................................................................... 165Gol<strong>de</strong>n Gate..................................................................... 167Só um quarto <strong>de</strong> hora....................................................... 168As florinhas todas............................................................ 169Ne cherchezplus mon coeur............................................. 170Princesa plebeia............................................................... 172L' inutile beauté................................................................ 173Constanze..................................................................... 175Filémon e Baucis............................................................. 176Et dona ferentes........................................................... 177245


Desmancha-prazeres........................................................ 178Heliótropo........................................................................ 181Vinho puro....................................................................... 182E vê lá como era mau...................................................... 183Il servo padrone ............................................................. 186Sempre e cada vez mais baixo ....................................... 188??? virtu<strong>de</strong>s........................................................................189O cavaleiro da Rosa........................................................ 191Requiem por O<strong>de</strong>te ........................................................... 194Monogramas.................................................................... 195O mau camarada.............................................................. 197Quebra-cabeças................................................................ 199Olet................................................................................... 200Q.I.................................................................................. 202WishfulThinking............................................................... 203Regressões ..................................................................... 203Serviço ao cliente.............................................................. 207Cinzento e cinzento.......................................................... 201O lobo como avozinha..................................................... 210Edição Piper .................................................................... 213Contributo para a história das i<strong>de</strong>ias................................. 213O erro <strong>de</strong> Juvenal ............................................................. 217Abutre-dos-alpes............................................................... 220Exibicionista................................................................... 221Pequenas dores, gran<strong>de</strong>s cantos ...................................... 222Who is who...................................................................... 223Inaceitável..................................................................... 225Consecutio temporum...................................................... 227La nuance-encore............................................................. 228Para on<strong>de</strong> vai o canto alemão............................................ 230Innuce............................................................................... 231Flauta Mágica.................................................................... 233Figura artística................................................................. 234Mercearia ......................................................................... 237Novissimum Organum...................................................... 238Matadouro....................................................................... 242Meias tintas................................................................... 244Edição extra...................................................................... 246Teses contra o ocultismo ................................................. 250246


Advertência contra o mau uso ......................................... 256Para terminar ................................................................ 259247

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