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subjetividade e religião no pensamento de kierkegaard - Unioeste

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LEOSIR SANTIN MASSAROLLO JUNIORSUBJETIVIDADE E RELIGIÃO NO PENSAMENTO DEKIERKEGAARDDissertação <strong>de</strong> mestrado apresentada ao Programa<strong>de</strong> Pós-Graduação em Filosofia doCCHS/UNIOESTE, Campus <strong>de</strong> Toledo, comorequisito final à obtenção do título <strong>de</strong> Mestre emFilosofia, sob a orientação do prof. Dr. AlbertoMarcos OnateTOLEDO2012


LEOSIR SANTIN MASSAROLLO JUNIORSUBJETIVIDADE E RELIGIÃO NO PENSAMENTO DEKIERKEGAARDDissertação <strong>de</strong> mestrado apresentada ao Programa<strong>de</strong> Pós-Graduação em Filosofia doCCHS/UNIOESTE, Campus <strong>de</strong> Toledo, comorequisito final à obtenção do título <strong>de</strong> Mestre emFilosofia, sob a orientação do prof. Dr. AlbertoMarcos Onate.COMISSÃO EXAMINADORA___________________________________________Prof. Dr. Alberto Marcos Onate - OrientadorUniversida<strong>de</strong> Estadual do Oeste do Paraná________________________________________Prof. Dr. Lucia<strong>no</strong> Carlos Utteich - MembroUniversida<strong>de</strong> Estadual do Oeste do Paraná________________________________________Profa. Dra. Silvia Savia<strong>no</strong> Sampaio - MembroPontifícia Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> São PauloToledo, Julho <strong>de</strong> 2012.


DEDICATÓRIAIn memorianRosoita Maria <strong>de</strong> Araújo SchefferAltair Scheffer


AGRADECIMENTOSA Deus, causa e princípio primeiro, que a todos <strong>de</strong>dica amor eter<strong>no</strong>.A minha família, pelo amor, carinho e apoio incondicionais <strong>de</strong>dicados amim durante toda a minha vida.Aos meus professores, que se dispuseram a compartilhar comigo o quepossuem <strong>de</strong> melhor: seu conhecimento. Seus esclarecimentos e auxílios sempre serãolembrados com esmero. Um agra<strong>de</strong>cimento especial ao Prof. Dr. Alberto Marcos Onate,cujas orientações foram fundamentais para o bom andamento do presente trabalho.


Canção do Tamoio – Gonçalves DiasNão chores meu filho;Não chores que a vidaÉ luta renhida:Viver é lutar.A vida é combate,Que os fracos abate,Que os fortes, os bravosSó po<strong>de</strong> exaltar.Um dia vivemos!O homem que é forteNão teme a morte;Só teme fugir;No arco que entesaTem certa uma presa,Quer seja tapuia,Condor ou tapir.O forte, o covar<strong>de</strong>Seus feitos invejaDe o ver na pelejaGarboso e feroz;E os tímidos velhosNos graves conselhos,Curvadas as frontes,Escutam-lhe a voz!Domina se vive;Se morre <strong>de</strong>scansaDos seus na lembrança,Na voz do porvir.Não cures da vida!Sê bravo, sê forte!Não fujas da morte,Que a morte há <strong>de</strong> vir!E pois que és meu filho,Meus brios reveste;Tamoio nasceste,Valente serás.Sê duro guerreiro,Robusto, fragueiro,Brasão dos tamoiosNa guerra e na paz.Teu grito <strong>de</strong> guerraRetumbe aos ouvidosD’inimigos transidosPor vil comoção;E tremam d’ouvi-loPior que o sibiloDas setas ligeiras,Pior que o trovão.E a mão nessas tabas,Querendo caladosOs filhos criadosNa lei do terror;Teu <strong>no</strong>me lhes diga,Que a gente inimigaTalvez não escuteSem pranto, sem dor!Porém, se a fortuna,Traindo teus passos,Te arroja <strong>no</strong>s laçosDo inimigo falaz!Na última horaTeus feitos memora,Tranquilo <strong>no</strong>s gestos,Impávido, audaz.E cai como o troncoDo raio tocado,Partido, rojadoPor larga extensão;Assim morre o forte!No passo da morteTriunfa, conquistaMais alto brasão.As armas ensaia,Penetra na vida:Pesada ou querida,Viver é lutar.Se o duro combateOs fracos abate,Aos fortes, aos bravos,Só po<strong>de</strong> exaltar.


MASSAROLLO JUNIOR, Leosir Santin. Subjetivida<strong>de</strong> e Religião <strong>no</strong> Pensamento <strong>de</strong>Kierkegaard. 2012. 137 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universida<strong>de</strong> Estadualdo Oeste do Paraná, Toledo, 2012.RESUMOO objetivo do presente trabalho consiste na investigação da influência das <strong>no</strong>ções <strong>de</strong>religião e <strong>de</strong> <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>no</strong> cerne da concepção filosófica apresentada por Søren A.Kierkegaard, principalmente nas obras Frygt og baeven (1843) (Temor e tremor);Begrebet Angest (1844) (O conceito <strong>de</strong> angústia) e Sygdommen till doe<strong>de</strong>n (1849) (O<strong>de</strong>sespero Huma<strong>no</strong> – A doença mortal). O filósofo dinamarquês vale-se das concepções<strong>de</strong> fé/pecado e objetivida<strong>de</strong>/<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> para esclarecimento <strong>de</strong> suas posições; emsuas análises e conclusões observa-se influência direta da Ética e da Psicologia, já quese trata <strong>de</strong> uma investigação sobre o “eu”. Kierkegaard, a partir da síntese que constituio indivíduo, da sua relação com a divinda<strong>de</strong> e da harmonia em tal relação, afirma aexistência como um constante processo <strong>de</strong> edificação. Este processo, inerente ao ato <strong>de</strong>ser, terá sua análise na Ética e na Psicologia, mas se manifestará <strong>de</strong> maneira plenaapenas na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> inclinada à religiosida<strong>de</strong>; o que torna a Dogmática, em muitoscasos, a base da investigação <strong>kierkegaard</strong>iana. Por ser uma síntese <strong>de</strong> finito e infinito,temporal e eter<strong>no</strong>, liberda<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong>, a dialética do “eu” irradia tanto finitu<strong>de</strong>quanto infinitu<strong>de</strong>. Esta natureza do indivíduo transcen<strong>de</strong> a análise objetiva, conduzindoa investigação a meandros em que a Dogmática <strong>de</strong>verá correspon<strong>de</strong>r ao “mecanismo”<strong>de</strong> apreciação. Tendo como modus operandi a individualização, uma vez que aDogmática exige o isolamento, a filosofia da existência vale-se <strong>de</strong> seus próprios<strong>de</strong>sdobramentos para a edificação do “eu”. Com esta concepção, compreen<strong>de</strong>-se oindivíduo como a categoria mais elevada do <strong>pensamento</strong> <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>. Isto acarretao abando<strong>no</strong> simultâneo <strong>de</strong> sistemas e multidões, pois <strong>no</strong> recolhimento, segundo ofilósofo nórdico, o indivíduo apren<strong>de</strong> algo que nenhuma ciência po<strong>de</strong> ensinar: aedificação. Esta consistirá na compreensão e aceitação da existência que permeia osâmbitos da vida, iniciando com a Ética e aprofundando-se com a Dogmática. Ametodologia utilizada possui como proposta, em última instância, a “análise” dainteriorida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> reações subjetivas capazes <strong>de</strong> expor a tensão da existência, taiscomo o <strong>de</strong>sespero, a angústia, a fé, o pecado, entre outras. Para tanto, Kierkegaardanalisa tais reações não apenas <strong>de</strong> maneira objetiva, mas <strong>de</strong> modo a “transportá-las” àexistência, voltando-se assim à natureza última do indivíduo: sua relação com adivinda<strong>de</strong>. A submissão ou elevação do homem será a constante observada nasinvestigações <strong>kierkegaard</strong>ianas. Com esta <strong>no</strong>ção, o indivíduo instaura por si o avanço daedificação, pautando-se em sua realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese condicionada à divinda<strong>de</strong>. Abre-secaminho para a individualida<strong>de</strong> como arauto da verda<strong>de</strong>, como afirmação irrestrita eamor à vida. Para atingir tal afirmação, Kierkegaard dispõe da fé como <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>irapaixão humana, capaz <strong>de</strong> conduzir a síntese e sublimar suas inquietações. Neste sentido,po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r a filosofia proposta por Kierkegaard como o retor<strong>no</strong> do “eu” emsuas implicações religiosas profundas.Palavras-chave: Síntese. Indivíduo. Edificação. Fé. Pecado.


MASSAROLLO JUNIOR, Leosir Santin. Subjetivida<strong>de</strong> e Religião <strong>no</strong> Pensamento <strong>de</strong>Kierkegaard. 2012. 137 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universida<strong>de</strong> Estadualdo Oeste do Paraná, Toledo, 2012.ABSTRACTThe following study aims to investigate the influence of religion and subjectivity in thecore of Søren A. Kierkegaard philosophical conception, mainly in the works Frygt ogbaeven (1843) (Fear and Trembling); Begrebet Angest (1844) (The Concept of Dread)and Sygdommen till doe<strong>de</strong>n (1849) (The Sickness Unto Death). The Danish philosopherrelies on concepts of faith / sin and objectivity / subjectivity to clarify his positions; inhis analysis and conclusions it can be observed the direct influence of Ethics andPsychology, since it is an investigation about “myself”. Kierkegaard, from synthesis ofwhat the individual is and its relations with harmony’s divinity, in such relationship,the author affirms the existence as a constant process of edification. This process,inherent in the act of being, will have its analysis in Ethics and Psychology, but it willbe fully expressed only in the subjectivity inclined to religious; which makes theDogam, in many cases, the base of Kierkegaard investigation. Because it is a synthesisof the finite and infinite, temporal and eternal, freedom and necessity, dialectical“myself”radiates both finite infinity. This nature of man transcends the objectiveanalysis, conducting the investigation in mean<strong>de</strong>rs in which the Dogmatic should matchthe "mechanism" of assessment. Having as modus aprendi the individualization, sinceDogam <strong>de</strong>mands isolation, the existence philosophy relies on its own <strong>de</strong>velopments tothe edification of “myself”. With this conception, the individual is un<strong>de</strong>rstood as a moreelevated category from Kierkegaard’s thoughts. This will result in the mutual abando<strong>no</strong>f systems and crowds, because in retirement, according to the Danish philosopher, theindividual learns something that any science can teach: the edification. This willconstitute in the comprehension and acceptance of the existence that allows the areas oflife, initializing with Ethics and going forward with Dogam. The methodology used hasas purpose, ultimately, the “analysis” of the inner from subjective reactions capable ofexpose the tension of existence, such as the <strong>de</strong>speration, interiority, faith, sin and others.The submission or elevation of the men will be constant observed in Kierkegaard’sinvestigations. With this <strong>no</strong>tion, the individual establishes alone the edificationprogress, guiding in its reality in the conditioned divinity synthesis. A path is open tothe individuality as herald of the truth, as unrestricted statement and love for life. Toachieve this statement, Kierkegaard has the faith as the last human passion, capable ofconducting the synthesis and sublimate its concerns. In this sense, we can un<strong>de</strong>rstandthe philosophy proposed by Kierkegaard as a return do the “myself” in its <strong>de</strong>ep religiousimplications.Key words: Synthesis. Individual. Edification. Faith. Sin


SUMÁRIOINTRODUÇÃO.............................................................................................................11S. KIERKEGAARD E UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DOGMÁTICA NAPRODUÇÃO DA OBRA TEMOR E TREMOR........................................................271.1 A IDEIA DO EU COMO SÍNTESE E SUA FORMAÇÃO DE ACORDO COMKIERKEGAARD............................................................................................................311.1.1 Uma Análise dos Mecanismos <strong>de</strong> Investigação da Fé e <strong>de</strong> sua Importância para aEdificação do Eu..............................................................................................................331.2 OS CONCEITOS DE OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE E SEUSDESDOBRAMENTOS NA FILOSOFIA KIERKEGAARDIANA...............................361.3 A INSTITUIÇÃO DO CONCEITO DE PARADOXO E SUAS IMPLICAÇÕES..381.4 JOHANNES DE SILENTIO E A CONCEPÇÃO DE ABRAÃO............................421.5 O SALTO QUALITATIVO E SEUS DESDOBRAMENTOS DOGMÁTICOS.....451.6 O ESFORÇO KIERKEGAARDIANO A FAVOR DO BOM ANDAMENTO DAANÁLISE SUBJETIVA..................................................................................................491.7 A ANGÚSTIA E O DESESPERO ENVOLVIDOS NA GESTA DE ABRAÃO ESUAS RESPECTIVAS FUNÇÕES DE ARAUTOS DA INTERIORIDADE...............491.8 AS CONCEPÇÕES DE CAVALEIRO DA FÉ E HEROI TRÁGICO.....................511.9 UMA ANÁLISE DA CRÍTICA À OBJETIVAÇÃO DO ELEMENTO RELIGIOSOE DA SUBJETIVIDADE COMO VERDADE NA OBRA “TEMOR ETREMOR”.....................................................................................................................591.10 A QUESTÃO ENVOLVIDA NA ANÁLISE DA OBRA “TEMOR E TREMOR”E SUAS IMPLICAÇÕES...............................................................................................642 UMA ANÁLISE DA ANGÚSTIA E DO PECADO SEGUNDO ASPERSPECTIVAS FILOSÓFICAS E DOGMÁTICAS DE S. KIERKEGAARD....682.1 A QUESTÃO DA ANGÚSTIA E SUA RELAÇÃO COM O PECADO.................71


2.1.1 Uma Análise da I<strong>no</strong>cência e da Queda na Progressão do Pecado..........................732.2 A ANGÚSTIA EM ADÃO E SUA RELAÇÃO COM A LIBERDADE.................742.3 OS CONCEITOS DE INDIVÍDUO E DE GÊNERO HUMANO............................752.3.1 A Angústia e sua Progressão <strong>no</strong> Indivíduo e <strong>no</strong> Gênero Huma<strong>no</strong>. O Surgimentodas Concepções <strong>de</strong> Sexualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Culpa....................................................................772.4 ANGÚSTIA OBJETIVA E ANGÚSTIA SUBJETIVA...........................................792.5 UMA ANÁLISE DO VALOR DAS CONSIDERAÇÕES ÉTICAS EPSICOLÓGICAS ACERCA DO PECADO....................................................................822.6 EVA...........................................................................................................................832.7 UMA ANÁLISE DO INSTANTE E SUA RELAÇÃO COM A ANGÚSTIA.........852.8 A ANGÚSTIA COMO CONSEQUÊNCIA DO PECADO......................................892.8.1 O Demoníaco..........................................................................................................922.9 A ANGÚSTIA E A FÉ..............................................................................................963 A CONCEPÇÃO DE DESESPERO HUMANO NA OBRA “A DOENÇAMORTAL” E A EDIFICAÇÃO CRISTÃ................................................................1003.1 A CONCEPÇÃO DE DOENÇA MORTAL E SUAS MANIFESTAÇÕES..........1043.2 O DESESPERO CONFORME OS FATORES DA SÍNTESE...............................1103.3 UM ARREMEDO DE CONSCIÊNCIA: O DESESPERO-FRAQUEZA E ODESESPERO-DESAFIO...............................................................................................1163.4 O PECADO, O DESESPERO E A FÉ CONCEBIDOS SOB A PERSPECTIVA DACONSCIÊNCIA............................................................................................................121CONCLUSÃO..............................................................................................................131REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................136


12corroborará a importância dos dados pesquisados será a questão que envolve a<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> como Kierkegaard a compreen<strong>de</strong>, enquanto resultado <strong>de</strong> uma síntese quenecessita <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r mantenedor.Po<strong>de</strong>-se afirmar que ein individuelles Thun (um agir individual)caracteriza a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana. O ato <strong>de</strong> “mergulhar” em si mesmo, que emparte caracteriza a conceitualização <strong>de</strong> “eu” para Kierkegaard, abarca também o existir eo “mover-se” na existência. O mencionado “agir individual” que moldou a filosofia dojovem dinamarquês encontra respaldo na vida <strong>de</strong>ste. O esforço <strong>de</strong> Kierkegaard não seconcentra em construir um sistema filosófico, não se <strong>de</strong>tém sobre o Estado ou sobre acoletivida<strong>de</strong>; o que é proposto pela concepção <strong>kierkegaard</strong>iana é que o indivíduoconcentre seus esforços e suas energias na edificação <strong>de</strong> seu próprio “eu”; que tomeconsciência que cada um participa <strong>de</strong> uma natureza sublime e, portanto, participa <strong>de</strong> um<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> elevado.O objeto do estudo <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> não é <strong>de</strong> fácil acesso. Po<strong>de</strong>-se dizerque se encontra <strong>no</strong>s antípodas da objetivida<strong>de</strong>. E sua investigação precisa <strong>de</strong>mecanismos igualmente diversos, a saber, <strong>de</strong> uma análise focada na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, naexistência e na espiritualida<strong>de</strong> humanas, para a correta apreensão <strong>de</strong> tais conceitos. Aanálise objetiva, <strong>de</strong> uma maneira geral, embasa seus conceitos e suas conclusões narelação que o indivíduo mantém com os objetos. A análise proposta por Kierkegaardprocura estreitar esta investigação <strong>de</strong> modo que o próprio indivíduo represente um“objeto” <strong>de</strong> estudo. Esta objetivação do sujeito <strong>de</strong>ve resguardar a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> umatentativa <strong>de</strong> sistematização; <strong>de</strong>ve zelar para que profundida<strong>de</strong> não se confunda comobscurida<strong>de</strong> e, <strong>de</strong>ste modo, manter o rigor investigativo mesmo tratando-se <strong>de</strong> umaanálise <strong>de</strong> natureza subjetiva. Antes <strong>de</strong> assumir sua postura como verda<strong>de</strong>ira, é precisoelucidar o que se nega e o que se afirma a partir <strong>de</strong> sua filosofia 4 .Em certos aspectos haverá a dissolução <strong>de</strong> alguns parâmetros <strong>no</strong> processo<strong>de</strong> investigação vigente até o momento. Kierkegaard, cristão fervoroso, procura moldarum arcabouço filosófico em que o “eu” consiste na sua principal preocupação e este4 Refere-se aqui ao verda<strong>de</strong>iro caráter da filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana. Não ao limitado e confuso título <strong>de</strong>‘pai do existencialismo’; não um Kierkegaard apaixonado, angustiado e melancólico que lança suasfrustrações sobre a Igreja. Mas sim ao seu ‘esforço socrático’, como afirma Valls: “Seu esforço ésocrático: provocar, interrogar, refutar, conversar com todos (...) ora, precisamos <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo ‘messias’,ou <strong>de</strong> um auxiliar que <strong>no</strong>s aju<strong>de</strong> a reler os textos antigos, talvez <strong>de</strong> maneira mais pessoal, mais profunda einteriorizada?” (VALLS, 2000, 17).


14<strong>kierkegaard</strong>iana, esta relação é <strong>de</strong>rivada, ou seja, não foi estabelecida por si própria,mas sim pela divinda<strong>de</strong> 5 .Segundo Kierkegaard, é vedado ao homem buscar seu equilíbrio esustentáculo mantendo-se alheio a Deus, já que se trata <strong>de</strong> um ente <strong>de</strong>rivado que não écapaz <strong>de</strong> manter-se por si só. Os caracteres existenciais, assim como as reações dosindivíduos diante dos <strong>de</strong>sdobramentos da existência estarão condicionados, em última eprincipal instância, a esta natureza.Sancionada esta verda<strong>de</strong>, a saber, da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese do “eu” e arealida<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r superior da divinda<strong>de</strong>, conquista-se “território” para a elucidação daquestão investigada. A partir <strong>de</strong>ste momento, po<strong>de</strong>-se afirmar que o objeto dainvestigação <strong>kierkegaard</strong>iana metamorfoseou-se numa análise da reação humana diante<strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong> sublime: o homem como um ente cujo repouso e alegria concentram-sena religiosida<strong>de</strong>. Os estádios da existência, a angústia, o <strong>de</strong>sespero 6 corroboram aexistência do homem condicionada à divinda<strong>de</strong>. Assim como através dos mesmosi<strong>de</strong>ntificamos a superiorida<strong>de</strong> da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> em relação à objetivida<strong>de</strong> 7 . A partir <strong>de</strong>stasuperiorida<strong>de</strong>, Kierkegaard passa a analisar tais conceitos não apenas <strong>de</strong> uma maneira“científica”, mas busca exemplos em que tais reações se manifestem <strong>de</strong> maneira que suacompreensão se faça a mais clara possível.A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> repousa na relação entre o homem e a divinda<strong>de</strong>, e talrelação não po<strong>de</strong> ser captada <strong>de</strong> maneira objetiva, mas só subjetivamente. Kierkegaardprivilegia a análise subjetiva <strong>de</strong>vido à natureza do objeto estudado e da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma imersão em si mesmo na busca da verda<strong>de</strong>, movimento que, como foi citado, aanálise objetiva não comporta. A partir <strong>de</strong>ste “retor<strong>no</strong> à interiorida<strong>de</strong>”, Kierkegaard,assim como a presente análise, procurará investigar tais reações valendo-se do sacrifício<strong>de</strong> Abraão, do pecado <strong>de</strong> Adão e da ressurreição <strong>de</strong> Lázaro, respectivamente.O primeiro capítulo <strong>de</strong>ter-se-á na obra Temor e tremor (1843). A análisedo sacrifício <strong>de</strong> Abraão, em seus caracteres objetivos e subjetivos, abarcará a questão5 A intenção <strong>de</strong>sta explicação, um tanto superficial, é uma mera introdução à pesquisa que se segue. Taisconcepções serão abordadas <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da análise, <strong>no</strong> lugar que lhes cabe.6 Trata-se <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong> importância fundamental e que permeiam toda a produção <strong>kierkegaard</strong>iana.Tais concepções encontram-se “relacionadas” por partilharem um objetivo comum, a sublimida<strong>de</strong> do“eu”.7 Esta superiorida<strong>de</strong> se dá <strong>de</strong>vido à natureza do objeto estudado. Como foi dito, Kierkegaard criticaexatamente a ausência <strong>de</strong> um mecanismo capaz <strong>de</strong> analisar os caracteres da existência, e a investigaçãosubjetiva suprirá, em parte, esta lacuna.


15abordada por Kierkegaard acerca da fé, do paradoxo, da superação da moral, entreoutras 8 . Objetivamente, a análise <strong>de</strong>ter-se-á sobre o sacrifício propriamente dito,limitado à observação psicológica 9 , valendo-se <strong>de</strong> informações acerca <strong>de</strong>ste ato, a saber,o assassinato <strong>de</strong> um filho pelas mãos do próprio pai. Quando observada por um prismasubjetivo, ou seja, sob um viés capaz <strong>de</strong> captar o terror envolvido na or<strong>de</strong>m divina, oobjeto passa a ser a fé que o patriarca hebreu <strong>de</strong>dica à divinda<strong>de</strong>.Esta obra foi escrita por um autor pseudônimo, Johannes <strong>de</strong> Silentio.Duas características do autor <strong>de</strong>vem ficar claras: trata-se <strong>de</strong> um poeta, <strong>de</strong> um “agenteestético”; e o próprio autor admite não possuir a fé que tanto preza. Apenas louva comseu poetar o objeto <strong>de</strong> seu amor, mas sem se afastar dos caracteres existenciais.A obra começa com uma severa crítica àqueles que dizem duvidar <strong>de</strong> tudo(leia-se filosofia cartesiana), mas que não duvidam efetivamente <strong>de</strong> nada,visto que sua dúvida não possui relações efetivas com a existência.Tomada superficialmente a análise, a obra parece implicar numa recusada filosofia e assume uma proposta <strong>de</strong> fé irracionalista. Entretanto, nadapo<strong>de</strong> ser mais enga<strong>no</strong>so do que isso. Silentio é também um poeta irônico,que faz da sua não-filosofia, uma alternativa à filosofia sistemática (DEPAULA, 2009, 101).Tal análise traz em seu âmago um apelo à interiorida<strong>de</strong>, ou seja, não se<strong>de</strong>ve per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a finalida<strong>de</strong> última da filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, a saber, asublimida<strong>de</strong> do “eu” 10 . Sublimida<strong>de</strong> que se mostrará <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m divina até a chegadaà montanha indicada. Durante a <strong>de</strong>scrição e os apontamentos da gesta <strong>de</strong> Abraão queKierkegaard empreen<strong>de</strong> na mencionada obra, <strong>no</strong>ta-se sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, sua“busca” pela fé e a importância da interiorida<strong>de</strong>. Esta importância será encontrada“pairando” sobre toda a filosofia do jovem dinamarquês, já que o autor estudado propõe8 A mencionada obra po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma produção poética <strong>de</strong>dicada à fé <strong>de</strong> Abraão. A estrutura érelativamente confusa, parece “nunca se iniciar e ao final parece não ter concluído nada” (DE PAULA,2009, 100). Mas para o leitor atento informações valiosas sobre a fé, o paradoxo, o escândalo e asuperação da moral mostrar-se-ão claramente.9 A Psicologia, por ser a ciência à qual cabe a observação do comportamento huma<strong>no</strong>, será responsávelpelo respaldo objetivo da investigação. Da mesma maneira, a Dogmática revelará os caracteres subjetivosinerentes à gesta <strong>de</strong> Abraão. O andamento da investigação comprovará as informações aqui <strong>de</strong>scritas.10Esta sublimida<strong>de</strong> do “eu” está em direta concordância com o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual do indivíduo comoKierkegaard o compreen<strong>de</strong>. Como já foi dito, o homem é incapaz <strong>de</strong> manter-se e harmonizar os elementosformadores da síntese através <strong>de</strong> seus próprios esforços. O indivíduo necessita <strong>de</strong> um “socorro exter<strong>no</strong>”; eesta necessida<strong>de</strong> só po<strong>de</strong> ser suprida através da divinda<strong>de</strong>. Deste modo, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar amencionada “finalida<strong>de</strong> última da filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana” com a consciência <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r divi<strong>no</strong> quetudo abarca.


16um regresso aos meandros da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, esfera que se mantém alheia à análiseobjetiva. Paralelamente, encontramos exemplos ligados à objetivida<strong>de</strong>, em que a éticapossui o papel <strong>de</strong> telos e o herói trágico encerra em si o i<strong>de</strong>al buscado. Neste caso, aobjetivida<strong>de</strong> é capaz <strong>de</strong> abarcar todo o conteúdo, pois parece lógico até mesmo aosespíritos mais <strong>de</strong>savisados a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se abrir mão <strong>de</strong> um bem em <strong>no</strong>me <strong>de</strong> umbem maior; e é essa a conduta do herói trágico 11 . Kierkegaard se refere a este indivíduocomo “o filho bem amado da ética”, em quem o comportamento ético encontra“materialida<strong>de</strong>”. A ética encontra sua expressão máxima neste sacrifício, sua“externação”, pois, segundo Kierkegaard, o herói trágico necessita e recebe os aplausosdo “geral”. Já Abraão não po<strong>de</strong> expor sua interiorida<strong>de</strong> para ninguém 12 .Devemos <strong>no</strong>s <strong>de</strong>ter por mais um momento na análise da Ética 13 . Esta,como foi exposta, encontra sua expressão na generalida<strong>de</strong>, <strong>no</strong> coletivo. Se o ético é ovirtuoso, e este é o nível supremo, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r este nível através <strong>de</strong>caracteres lógicos. É válida para todos e a cada instante. A tarefa ética é “exprimir-secontentemente <strong>no</strong> geral, em <strong>de</strong>spojar-se do seu caráter individual para tornar-se o geral(KIERKEGAARD, 1971, 169). Não haverá o bem aventurado recolhimento, não serãonecessárias categorias além das expostas pela filosofia grega e Abraão estará perdido,pois a fé, como expressa <strong>no</strong> geral, sempre houve; nasce naturalmente, como os <strong>de</strong>ntes ea barba. Constitui seu telos a cada instante, e este encontra-se <strong>no</strong> geral.O patriarca hebreu representa na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana um elementofundamental: o cavaleiro da fé. Oposto ao herói trágico, a figura genesíaca não sórepresenta o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> sublimida<strong>de</strong> buscado pelo “eu”, mas con<strong>de</strong>nsa em sua importânciaum “processo <strong>de</strong> sublimação” em que alguns dos conceitos <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>s encontramsua plenitu<strong>de</strong> 14 . No <strong>de</strong>correr da análise empreendida <strong>no</strong> primeiro capítulo, <strong>no</strong>tar-se-á11 O herói trágico correspon<strong>de</strong> a uma concepção corrente na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana. Sua condutaencontra respaldo na ética e <strong>no</strong> bem comum. Po<strong>de</strong>mos valer-<strong>no</strong>s do sacrifício imposto a Agame<strong>no</strong>n paraque este conceito seja melhor esclarecido. O governante grego propõe-se a sacrificar sua filha, Ifigênia,em <strong>no</strong>me do bem do Estado. Agame<strong>no</strong>n abre mão <strong>de</strong> sua alegria <strong>de</strong> pai para que seu papel <strong>de</strong> sobera<strong>no</strong>seja corretamente cumprido. Informações adicionais serão encontradas <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do presentetrabalho.12 As diferenças entre os dois personagens analisados serão tratadas mais <strong>de</strong>talhadamente <strong>no</strong> segundocapítulo.13 Kierkegaard, em sua obra O conceito <strong>de</strong> angústia, usa as <strong>no</strong>menclaturas Primeira Ética e SegundaÉtica. A Primeira Ética é baseada em valores morais, a Segunda Ética é baseada em valores cristãos.14 A análise <strong>de</strong> Abraão encerra em si principalmente as particularida<strong>de</strong>s da abordagem objetiva, valendosedo herói trágico e da ética, e da abordagem subjetiva, utilizando a fé e a obediência. A análise dasublimação e dos conceitos existenciais ocorre principalmente <strong>de</strong>vido à ascensão da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> como“instrumento” <strong>de</strong> análise filosófica.


17que a dicotomia objetivida<strong>de</strong>-<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> po<strong>de</strong> ser compreendida como umprocedimento na investigação do paradoxo. A especulação não po<strong>de</strong> “tomar posse” doparadoxo, nem mesmo tentar explicá-lo. Este só po<strong>de</strong> ser analisado a partir <strong>de</strong> uma<strong>no</strong>ção subjetiva, <strong>no</strong>ção que traz em seu bojo um vínculo indissolúvel com o próprioparadoxo. O vínculo observado entre os mencionados conceitos e os laços que unem umconceito ao outro ficarão melhor elucidados quando a observação subjetiva, ou seja, aanálise <strong>de</strong> fenôme<strong>no</strong>s e reações subjetivas inerentes à tensão da existência, forem“personificados” e esmiuçados numa existência <strong>de</strong> fato.A concepção <strong>de</strong> paradoxo <strong>de</strong>ve estar diretamente associada à <strong>no</strong>ção <strong>de</strong>fé 15 . Na pesquisa que se segue po<strong>de</strong>remos interpretar o paradoxo, <strong>de</strong> uma maneira geral,como uma paralisação na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> racionalização, como um terre<strong>no</strong> <strong>de</strong>sconhecidopara a análise objetiva. Assim assumimos, juntamente com Kierkegaard, a importânciafundamental da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> em relação à objetivida<strong>de</strong> numa análise <strong>de</strong>sta natureza.Seguindo a <strong>de</strong>scrição genesíaca, não é possível se manter alheio à fé ou reduzir aimportância da mesma em relação à gesta do patriarca hebreu.Desta maneira, po<strong>de</strong>-se afirmar que a análise subjetiva conta com o calorda experiência e o viço da existência, proporcionando uma análise incisiva, rechaçandopossíveis preconceitos dirigidos a uma investigação <strong>de</strong> cunho subjetivo. Usando oexemplo <strong>de</strong> Abraão, po<strong>de</strong>mos afirmar que uma apreciação que não prezasse a<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> seria <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> inaceitável. Sem os dados subjetivos, amencionada análise se reduziria a uma mera reprodução <strong>de</strong> informações, a fé seriareduzida a uma consequência da existência e Abraão não escaparia da alcunha <strong>de</strong>assassi<strong>no</strong>.A interiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>svelará, segundo Kierkegaard, a verda<strong>de</strong> existencial e asublimida<strong>de</strong> do “eu”. Seguindo o raciocínio <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>, apenas a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>,atenta até mesmo aos meandros mais distantes da interiorida<strong>de</strong>, é capaz <strong>de</strong> perscrutá-lae, a partir daí, criar <strong>no</strong>vas <strong>no</strong>ções a este respeito. Desta maneira, po<strong>de</strong>-se formar uma<strong>no</strong>ção da fé que não participa do cálculo objetivo. Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar a fé <strong>de</strong> umindivíduo através <strong>de</strong> gráficos, estatísticas ou estimativas. Abraão não se <strong>de</strong>ixou analisarpor tais mecanismos nem conquistou sua fé através <strong>de</strong> fórmulas ou equações, mas15 A não-aceitação do paradoxo, a falta <strong>de</strong> fé, gerará um sentimento diverso <strong>no</strong> indivíduo: o escândalo.Este será tratado <strong>de</strong> maneira mais <strong>de</strong>talhada <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa.


18mergulhou em si mesmo para buscar o “consolo eter<strong>no</strong>”. Visando tão elevado objetivo,Kierkegaard <strong>de</strong>ixa claro nas linhas da mencionada obra a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se atingirêxito nesta empresa contando apenas com a análise objetiva. Não há língua comumentre a objetivida<strong>de</strong> e a interiorida<strong>de</strong>: a objetivida<strong>de</strong> paralisa seu processo <strong>de</strong>racionalização sempre que a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> “aproxima-se” da fé.Seguindo a or<strong>de</strong>m cro<strong>no</strong>lógica da produção <strong>kierkegaard</strong>iana, o segundocapítulo da presente dissertação terá como tema principal a obra O conceito <strong>de</strong> angústia(1844). Kierkegaard refere-se a um relato genesíaco, <strong>de</strong>sta vez personificado porAdão 16 , em tor<strong>no</strong> do qual pairam o banimento do É<strong>de</strong>n, a perda da i<strong>no</strong>cência e aconcupiscência, causalmente falando. Na esfera subjetiva, procurar-se-á empreen<strong>de</strong>ruma investigação acerca dos caracteres existenciais que compõem tal episódio. Aangústia, a culpa, o pecado e o pecado original serão analisados nesta obra, através <strong>de</strong>uma aproximação entre Psicologia e Dogmática 17 ; tal aproximação será o “fio <strong>de</strong>Ariadne” do referido capítulo. A dicotomia exposta acima, a saber, Psicologia/Dogmática tomou gran<strong>de</strong> parte da investigação da obra O conceito <strong>de</strong> angústia,pairando sobre a introdução, o <strong>de</strong>senvolvimento e a conclusão do raciocínio<strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> acerca <strong>de</strong>ste tema. Po<strong>de</strong>-se afirmar, seguindo Kierkegaard, que a Éticacontribui para tal elucidação, porém recorre à Dogmática para po<strong>de</strong>r concluir suaobservação. De uma maneira geral, po<strong>de</strong>-se afirmar que em primeira instância omencionado capítulo trata <strong>de</strong> uma análise psicológica. A Ética avança se valendo doconceito <strong>de</strong> arrependimento (como ficará claro adiante). Aqui a análise ainda repousasobre a objetivida<strong>de</strong>. A Dogmática permanecerá velada até que a análise subjetivavenha “à tona”.Novamente Kierkegaard vale-se <strong>de</strong> um pseudônimo, VigiliusHaufniensis. Neste caso trata-se <strong>de</strong> uma abordagem filosófica, e não <strong>de</strong> um poetaelogiando o objeto do seu amor, como se i<strong>de</strong>ntifica na obra Temor e tremor. Sua16 “O conceito <strong>de</strong> angústia não é, se este pseudônimo o compreen<strong>de</strong> bem, um livro abstrato, sistêmico,capaz <strong>de</strong> captar o pecado em sua re<strong>de</strong> conceitual. Fala <strong>de</strong> Adão e Eva, sem ser exegese bíblica.Kierkegaard personificava os problemas: sensualida<strong>de</strong> em D. Juan, dúvida em Fausto, <strong>de</strong>sespero <strong>no</strong> ju<strong>de</strong>uerrante, fé em Abraão, ser cristão em Paulo... porque não personificar, na figura <strong>de</strong> Adão, a liberda<strong>de</strong>capaz <strong>de</strong> pecar” (KIERKEGAARD apud VALLS, 2010a, 183).17 As duas ciências mencionadas terão um gran<strong>de</strong> papel na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, como ficará claro <strong>no</strong><strong>de</strong>senvolvimento do texto. A título <strong>de</strong> explicação provisória, segue-se Kierkegaard quando este admiteque “a ciência que tem a ver com a explicação é a Psicologia que, contudo, só é capaz <strong>de</strong> explicar o rumoda explicação e, sobretudo, <strong>de</strong>ve cuidar <strong>de</strong> não dar a aparência <strong>de</strong> querer explicar o que nenhuma ciênciaexplica e que somente a Ética avança um pouco mais na explicação ao pressupô-la recorrendo àDogmática”. (KIERKEGAARD, 2010a, 42).


19preocupação não é mais manter algo a salvo <strong>de</strong> ser olvidado, mas sim criticar eposicionar-se a respeito <strong>de</strong> uma concepção em voga (leia-se “filosofia hegeliana”);trata-se <strong>de</strong> um “investigador” 18 . A obra analisada <strong>no</strong> segundo capítulo da presentepesquisa privilegiará a investigação psicológica acerca do conceito <strong>de</strong> angústia,recorrendo ao pecado original e, portanto, à Dogmática, rechaçando uma investigaçãototalmente especulativa. Kierkegaard utiliza-se <strong>de</strong> um caráter investigativo não apenas<strong>no</strong> que concerne ao dogma do pecado original, mas também para <strong>de</strong>limitar o objeto daPsicologia e da Ética, contrapondo estes aos axiomas da Dogmática. Assim, segue-seKierkegaard à medida que este procura <strong>de</strong>monstrar o caráter da angústia concernente acada uma das ciências mencionadas, a saber, Psicologia, Ética e Dogmática, à medidaque cada uma <strong>de</strong>las explica o fenôme<strong>no</strong> da angústia e pressupõe a ciência que <strong>de</strong>veseguir a investigação.Haufniensis parte da mesma base conceitual proposta pelo autorJohannes <strong>de</strong> Silentio, ou seja, admite as mesmas concepções referentes ao indivíduo e omesmo <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual, a saber, a sublimida<strong>de</strong> do “eu”. Porém, <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr dainvestigação proposta, será <strong>no</strong>tória a diferença entre os dois autores pseudônimos<strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>s.“Apenas um esclarecimento psicológico que antece<strong>de</strong> o problema dopecado original”. A afirmação acima, encontrada nas primeiras páginas da obra Oconceito <strong>de</strong> angústia <strong>de</strong>ixa claro o objetivo do autor. Kierkegaard procura analisar aangústia como índice da interiorida<strong>de</strong>. Quanto maior a angústia, maior a profundida<strong>de</strong>do “eu”. “Sem embargo, a angústia não é, nem neste caso nem em outro qualquer, umaimperfeição do homem e, po<strong>de</strong>-se dizer, que quanto mais original é um homem, tantomais profunda será sua angústia (KIERKEGAARD, 2010a, 57). Compreenda-se estaprofundida<strong>de</strong> como o ato <strong>de</strong> “ensimesmar-se”, um movimento sem <strong>de</strong>slocamento, umareflexão sobre si próprio. Daí a impossibilida<strong>de</strong> da utilização <strong>de</strong> uma investigaçãoobjetiva, já que esta é incapaz <strong>de</strong> voltar-se para a interiorida<strong>de</strong>.18 “A psicologia, para Hegel, por se mover apenas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma imanência lógica, acaba por reduzir oalcance do termo realida<strong>de</strong>. Ao i<strong>de</strong>ntificar a realida<strong>de</strong> com a lógica, a filosofia <strong>de</strong> Hegel coloca o <strong>de</strong>vir dalógica <strong>no</strong> final da investigação sobre o imediato, inviabilizando assim o estudo do imediato, visto que alógica não po<strong>de</strong> assimilar a contingência, quer dizer, a existência concreta. Na psicologia <strong>kierkegaard</strong>iana,essa passagem ocorre na esfera da liberda<strong>de</strong> histórica, enquanto repetição. Precisamente por isto, o caráterda psicologia está assentado em uma imanência lógica que se movimenta <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma transcendência.Essa transcendência é marcada pelo ato individual, à medida que transcen<strong>de</strong> o <strong>pensamento</strong> abstrato eespeculativo da lógica” (MARTINS, 2007, 97).


20Seu caráter crítico procura <strong>de</strong>terminar uma ciência capaz <strong>de</strong> abranger oobjeto da sua pesquisa. Psicologia e Dogmática constituem a natureza dicotômica daquestão estudada 19 . Haufniensis, já na introdução da referida obra, procura <strong>de</strong>monstraras implicações dogmáticas, éticas, psicológicas e lógicas <strong>de</strong> iniciar-se tal investigação.O autor expõe a natureza da angústia, a saber, um nada; uma <strong>de</strong>sarmonia da síntese.Porém, não se trata <strong>de</strong> uma investigação que se encontra “à <strong>de</strong>riva”. A Psicologiaanalisará o indivíduo, perscrutará sua interiorida<strong>de</strong>; mas não percebe que se volta sobrealgo além <strong>de</strong> sua competência. Não possui mecanismos capazes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r anatureza <strong>de</strong> síntese do “eu” e a natureza <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarmonia da angústia. Não compreen<strong>de</strong> ai<strong>no</strong>cência nem o salto qualitativo 20 . A realida<strong>de</strong> do pecado e a possibilida<strong>de</strong> dare<strong>de</strong>nção.Se o que venho <strong>de</strong>monstrar é correto, muito fácil se <strong>no</strong>tará como tive razãoem balizar este conceito com o título <strong>de</strong> esclarecimento psicológico e como,se tivéssemos a intenção <strong>de</strong> conferir a essas meditações consciência do seulugar na ciência, elas colocar-se-iam na Psicologia, ainda que dirigidas para aDogmática. Dizem que a Psicologia é o estudo do espírito subjetivo. Sea<strong>de</strong>ntrarmos mais intimamente nesta <strong>no</strong>ção, constataremos que, quandochega à questão do pecado, a Psicologia não po<strong>de</strong> adiantar-se senão sob acondição <strong>de</strong> transmudar-se em doutrina do espírito absoluto. Ora, tal é ocampo da Dogmática. Se a primeira Ética pressupõe a Metafísica, a segundapressupõe a Dogmática, também termina por concluí-la e, assim, como emqualquer parte, a premissa fica autô<strong>no</strong>ma (KIERKEGAARD, 2007, 28).A Dogmática, contrapondo-se à Psicologia e à Ética, empreen<strong>de</strong> uma“análise” exclusivamente subjetiva. Versa sobre o salto qualitativo e sobre ai<strong>no</strong>cência 21 . Compreen<strong>de</strong> a síntese e sua relação com a divinda<strong>de</strong>; o pecado e sua19 Tal dicotomia ocorre <strong>de</strong>vido à natureza do objeto que se propõe abordar e, também, à própriainvestigação. Comunga-se com Kierkegaard acerca da natureza da análise empreendida. “O propósito<strong>de</strong>ste trabalho é tratar psicologicamente o conceito <strong>de</strong> angústia, mantendo constantemente <strong>no</strong> espírito e aoalcance dos olhos o dogma do pecado original. Assim sendo, também se ocupará, ainda que <strong>de</strong> modotácito, do conceito <strong>de</strong> pecado” (KIERKEGAARD apud VALLS, 2007, 20).20 De uma maneira geral, po<strong>de</strong>mos conceituar o salto qualitativo como uma mudança na realida<strong>de</strong> vividaaté o momento. O salto traz em seu âmago a brusquidão <strong>de</strong> uma “evolução”, um avançar. Como, porexemplo, a uma mudança na realida<strong>de</strong> quando o homem natural, ou seja, o sujeito alheio à divinda<strong>de</strong>,toma consciência <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual e abraça a fé como uma paixão elevada. Neste caso, há umamudança.21 Acerca do conceito <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, assim como Kierkegaard, valer-<strong>no</strong>s-emos da concepção encontrada<strong>no</strong> Gênesis: i<strong>no</strong>cência é ig<strong>no</strong>rância. Em estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência o homem não possui conhecimentos sobresua realida<strong>de</strong>. Adão é consi<strong>de</strong>rado em estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência quando habitava o É<strong>de</strong>n, ou seja, não possuíaconsciência sobre a realida<strong>de</strong> que o cercava, não possuía a i<strong>de</strong>ia do bem e do mal. Sobre a i<strong>no</strong>cênciaencontrada <strong>no</strong>s homens posteriores a Adão, po<strong>de</strong>-se afirmar que houve uma mudança na qualida<strong>de</strong> e quei<strong>no</strong>cência como a <strong>de</strong> Adão jamais existirá <strong>no</strong>vamente. Nos posteriores po<strong>de</strong>mos afirmar que a i<strong>no</strong>cência écaracterizada pela não concretização da síntese; como na criança, em que a consciência, apesar <strong>de</strong>


21relação com a angústia, e assim “sai em socorro” da Psicologia. A análise psicológica,baseada na observação e imbuída <strong>de</strong> dados empíricos, avança na investigação com umaautorida<strong>de</strong> policial. Delimita e percorre a existência à procura <strong>de</strong> dados cabais, mas nãoé capaz <strong>de</strong> abarcar a fé e sua originalida<strong>de</strong> primitiva <strong>no</strong> cerne do indivíduo. Nãocompreen<strong>de</strong> os laços que unem existência e fé, e <strong>de</strong>sta maneira seu conhecimento tornasevago e incomunicável; carente da compreensão da fé, torna-se ig<strong>no</strong>rante diante daconexão entre a existência e a própria fé. Esta conexão repousa sobre o paradoxo.A angústia, como será exposta adiante, “percorre” seu caminho <strong>no</strong> cernedo “eu” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a i<strong>no</strong>cência, a queda, o pecado original até a salvação. O conceito <strong>de</strong>i<strong>no</strong>cência <strong>de</strong>ve ser exposto aqui para uma melhor compreensão do conceito <strong>de</strong> angústia.Se a i<strong>no</strong>cência é semelhante à ig<strong>no</strong>rância, e como tal representa um estado <strong>de</strong>passivida<strong>de</strong>, como se po<strong>de</strong> conceber que a angústia exista mesmo quando o eu não sevoltou sobre si mesmo? Valendo-se da concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, po<strong>de</strong>-secompreen<strong>de</strong>r a angústia como o elo entre os dois elementos da síntese, como a línguacomum da relação, com “direitos <strong>de</strong> cidadania” sobre o “eu”.Surgem, à medida que a investigação se aprofunda, inquirições que, numprimeiro momento, estancam o fluir da análise. Investigar o que surge do nada, e tempor âmbito exatamente a mais profunda <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, exigirá não apenas cautela eobservação, mas também reserva e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za diante <strong>de</strong> algo que paira em tor<strong>no</strong> do“eu”.Deve-se admitir o “eu” como uma potência <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za e comoelo indissolúvel entre o homem e a divinda<strong>de</strong>. Desta maneira, fica clara aimpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ciências meramente observadoras (e <strong>de</strong> cunho empírico) em concluirtal investigação. Não é possível que uma ciência finita abarque o infinito. Não épossível à Ética e à Psicologia concluírem tal investigação, pois não possuem acesso aoobjeto investigado, ao “eu”. A observação po<strong>de</strong> variar segundo o observador, e sobrealgo flutuante é impossível erigir algo concreto e duradouro. A Ética procura transportara i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> para a realida<strong>de</strong>, já que se trata <strong>de</strong> uma ciência i<strong>de</strong>al, busca umcomportamento i<strong>de</strong>al e exige dos indivíduos tal comportamento, sob pena dopresente, encontra-se “suspensa”, em estado onírico. “Na i<strong>no</strong>cência o ser huma<strong>no</strong> não está <strong>de</strong>terminadocomo espírito, mas <strong>de</strong>terminado psiquicamente em unida<strong>de</strong> imediata com sua naturalida<strong>de</strong>.”(KIERKEGAARD, 2010a, 44). Mas a perda da i<strong>no</strong>cência só ocorre por um motivo, tanto em Adão quanto<strong>no</strong>s posteriores: per<strong>de</strong>-se a i<strong>no</strong>cência através da culpa.


22arrependimento 22 . A Psicologia encontra-se totalmente condicionada a umainterpretação que exige tanto do observador quanto do objeto. Não possui um caráteri<strong>de</strong>al como a Ética, <strong>de</strong>tém-se sobre o que o objeto do seu estudo <strong>de</strong>ixa transparecer, esegue tateando pelo comportamento do indivíduo à procura <strong>de</strong> respostas. A Dogmática écapaz <strong>de</strong> uma investigação mais porme<strong>no</strong>rizada, mas exige do observador fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aosseus axiomas. Une o elemento finito e o infinito exatamente <strong>no</strong> “eu”. Une a existênciaao paradoxo.No tocante ao andamento da investigação e aos resultados buscados,po<strong>de</strong>-se afirmar que por tratar-se <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> natureza existencial, Psicologia eDogmática se valerão da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> para suas análises, porém, <strong>de</strong> maneiras distintas;ao passo que Ética e Lógica contarão com mecanismos objetivos para chegar a suasconclusões. Algumas perguntas, corretamente dirigidas sobre o tema <strong>de</strong> estudo, po<strong>de</strong>rãofacilitar a investigação e <strong>de</strong>monstrar uma maneira viável para o seu bom andamento: emprimeiro lugar, <strong>de</strong> que maneira Haufniensis compreen<strong>de</strong> a Psicologia e <strong>de</strong> que maneiraele compreen<strong>de</strong> a Dogmática? Po<strong>de</strong>-se conceituar a angústia <strong>de</strong> modo que ela se torneobjeto tanto da Psicologia quanto da Dogmática? É lícito empreen<strong>de</strong>r uma investigaçãoque ambicione investigar a essência da interiorida<strong>de</strong> do “eu”? Partindo da análise daangústia, Psicologia e Dogmática comungam a idéia da angústia como salvação pela fé?Sob estas perspectivas, e outras que surgirão <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da investigação, “semoverá” a análise empreendida <strong>no</strong> segundo capítulo.O terceiro e último capítulo procurará empreen<strong>de</strong>r uma análise da obra O<strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong> – a doença mortal 23 (1849). Duas características po<strong>de</strong>m ser <strong>no</strong>tadasnas três obras analisadas: todas são produções pseudônimas e todas têm como pa<strong>no</strong> <strong>de</strong>fundo um relato bíblico. A utilização <strong>de</strong> relatos bíblicos por Kierkegaard visa clarificaros conceitos abordados. Por se tratar <strong>de</strong> uma investigação <strong>de</strong> cunho subjetivo, écompreensível que ela se <strong>de</strong>tenha sobre o comportamento dos indivíduos diante <strong>de</strong>22 O arrependimento encontra seu âmbito na Ética. O comportamento faltoso gera uma insatisfaçãoconsigo mesmo que se transmudará em arrependimento. Mas, sob o olhar da Dogmática, este é inútil elimitado. O arrependimento é incapaz <strong>de</strong> gerar conforto tanto ao injusto quanto ao injustiçado. Ele estásempre um passo atrás do pecado, sendo assim, apenas <strong>de</strong>põe contra os indivíduos. A Dogmática eleva oarrependimento a um expoente superior e instituí o conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção, que extirpa completamente afalta, como ficará claro adiante, diferente do arrependimento.23 “A doença mortal (estranhamente traduzida com o título O <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong>) é a proposta <strong>de</strong> umestudo rigoroso e edificante. Seu objetivo é investigar o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e sua ligação com a fé.Trata-se <strong>de</strong> tentar re<strong>de</strong>scobrir o “eu” do indivíduo e centralizá-lo em Deus para vencer o <strong>de</strong>sespero. Talobra possui certa ligação com O conceito <strong>de</strong> angústia” (DE PAULA, 2009, 90).


23<strong>de</strong>terminados casos e, valendo-se <strong>de</strong> suas observações, explique os conceitos analisados<strong>de</strong> maneira mais clara. Na obra Temor e tremor o dinamarquês se vale do sacrifício <strong>de</strong>Abraão para ilustrar a fé buscada pelo homem. Po<strong>de</strong>-se afirmar que uma análise <strong>de</strong>stanatureza não “ilustrada” por uma reação humana e num contexto huma<strong>no</strong> seria débil enão atingiria o objetivo. No segundo capítulo o mecanismo será o mesmo. A obra Oconceito <strong>de</strong> angústia é uma análise psicológica sobre o dogma do pecado original. Paraesclarecer o tema almejado, Kierkegaard vale-se do relato bíblico acerca da queda dohomem e da <strong>de</strong>sobediência <strong>de</strong>ste diante da divinda<strong>de</strong>. Adão personificará talinvestigação <strong>de</strong> modo que esta se torne a mais clara possível.No caso da obra agora analisada, a saber, A doença mortal, já nasprimeiras páginas encontram-se trechos do Evangelho <strong>de</strong> João referentes à ressurreição<strong>de</strong> Lázaro (João II, 4) 24 . A partir <strong>de</strong>sta narração, a obra procurará discorrer acerca dasvariações e das personificações do <strong>de</strong>sespero, sua natureza <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong> do “eu” e ai<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>ste na interiorida<strong>de</strong>; do pecado e da sua “relação” com o <strong>de</strong>sespero e dasalvação através da edificação fornecida pelo cristianismo.Kierkegaard vale-se <strong>no</strong>vamente <strong>de</strong> um pseudônimo para escrever a obraagora em questão. Johannes Anti-Climacus será o autor do mencionado tratado acercado <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong>. Este será um dos pseudônimos mais importantes para secompreen<strong>de</strong>r o cristianismo em Kierkegaard 25 . O autor pergunta-se, já <strong>no</strong> prefácio daobra, se esta não seria <strong>de</strong>masiado edificante para o rigor especulativo ou <strong>de</strong>masiadorigorosa para o cristianismo. Para o pensador dinamarquês, um dos principais apanágiosdo cristianismo é a edificação do homem; segundo <strong>de</strong> Paula “há uma coragemedificadora <strong>de</strong> assumir-se como indivíduo diante <strong>de</strong> Deus 26 ” (DE PAULA, 2009, 111).24 “Esta enfermida<strong>de</strong> não é para morte.”25Sobre o cristianismo <strong>no</strong> corpus <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> dois pseudônimos ocupam lugares <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque:Johannes Climacus e Johannes Anti-Climacus. O pseudônimo Climacus foi escolhido <strong>de</strong>vido a um mongegrego do Sinai que, por volta do a<strong>no</strong> 600, escolheu a vida <strong>de</strong> eremita. Sob este pseudônimo po<strong>de</strong>-seobservar obras que versam sobre o recolhimento, sobre como alcançar a verda<strong>de</strong> e superar o queKierkegaard chama <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> pecado, portanto, o conceito <strong>de</strong> paradoxo também será amplamenteabordado pelo autor mencionado. Anti-Climacus possui um caráter e estilo <strong>de</strong> escrita diferentes. Detémsesobre o cristianismo e seu processo edificador. “No seu modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o cristianismo este possuisólidas ligações com a vida e muitas implicações éticas.” (DE PAULA, 2009, 113)26 “A regra cristã quer, com efeito, que tudo, tudo possa ser pretexto para edificar. Uma especulação quenão o consiga será, por isso mesmo, acristã. Uma exposição cristã <strong>de</strong>ve evocar, sempre, as palavras domédico à cabeceira da cama do enfermo; não sendo necessário ser cristão para as enten<strong>de</strong>r, nunca se <strong>de</strong>veesquecer, contudo, o lugar on<strong>de</strong> foram proferidas” (KIERKEGAARD, 2010b, 17). Ousar ser umindivíduo em face <strong>de</strong> Deus, esse é o heroísmo cristão; a verda<strong>de</strong>ira edificação <strong>de</strong> que Kierkegaard fala.


24A partir do ato <strong>de</strong> assumir-se diante <strong>de</strong> Deus, o homem passa a serconsi<strong>de</strong>rado, segundo a termi<strong>no</strong>logia <strong>kierkegaard</strong>iana, um cristão. Há, entre outras, umadiferença cabal que permitirá compreen<strong>de</strong>r o contraste existente entre o cristão e ohomem natural 27 . O homem natural po<strong>de</strong> enumerar todos os terrores da existência –mortes, traições e calamida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> toda natureza – o cristão ri-se da soma exposta. O quefaz o homem natural tremer é indiferente para o cristão, pois este se encontra sob atutela <strong>de</strong> Deus. Mas o que <strong>de</strong> fato <strong>de</strong>ve gerar o horror <strong>no</strong> coração dos indivíduos éig<strong>no</strong>rado pelo homem natural, a saber, a doença mortal.Segundo Anti-Climacus apenas o cristão conhece a doença mortal.Devemos recorrer ao relato bíblico para compreen<strong>de</strong>r melhor esta afirmação. “Estaenfermida<strong>de</strong> não é para a morte. Lázaro, o <strong>no</strong>sso amigo, dorme, mas eu vou acordá-lo<strong>de</strong> seu so<strong>no</strong>” (JOÃO, II, 4-5). Partimos da concepção <strong>de</strong> que o próprio <strong>de</strong>sespero é adoença mortal. Estar alheio à fé, segundo a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, é estarmortalmente doente. A própria morte não constitui o fim; estar mortalmente doente éestar abatido pela enfermida<strong>de</strong> que é o <strong>de</strong>sespero; constrangido por esta moléstia, o<strong>de</strong>sesperado procura apartar-se do seu “eu”, este é o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero 28 . SegundoKierkegaard, também admitimos que o raro não é encontrar alguém <strong>de</strong>sesperado, massim encontrar quem não o seja. O <strong>de</strong>sespero é uma discordância <strong>no</strong> âmago do “eu”. Eesta discordância apenas cessará quando o homem compreen<strong>de</strong>r seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual eseu elo indissolúvel com a divinda<strong>de</strong>.A “morte do corpo”, por si só, não é consi<strong>de</strong>rada uma doença mortal. Talenfermida<strong>de</strong> não é para a morte. O cristão não po<strong>de</strong> ser abatido por nenhuma espécie <strong>de</strong>moléstia física. Para ele, a morte não implica o térmi<strong>no</strong> da existência 29 . A soma <strong>de</strong> todasas calamida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m atingir o “homem natural” não passa <strong>de</strong> uma quimera aosolhos do “homem <strong>de</strong> fé”. Porém, o horrível da existência que permanecia velado por27 Leia-se “o homem alheio à divinda<strong>de</strong>”.28 A expressão utilizada, “o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero”, foi assim colocada <strong>de</strong>vido à concepção corrente <strong>de</strong>staenfermida<strong>de</strong>. O vulgo nada compreen<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sespero, associa-o muitas vezes a uma manifestaçãoexterna, algum horror que vem <strong>de</strong> fora e o abate. O verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero parte do próprio “eu” e suaprincipal característica é que o <strong>de</strong>sesperado procurar libertar-se do seu “eu”. Tal <strong>de</strong>sejo rechaça adivinda<strong>de</strong> e procura por em movimento um “eu” quimérico. Mas a divinda<strong>de</strong> revela o estado <strong>de</strong>sesperadodo indivíduo e o retém <strong>no</strong> seu “eu”. Portanto, o “curar-se” do <strong>de</strong>sespero ocorre quando “orientando-separa si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através <strong>de</strong> sua própria transparência, até o po<strong>de</strong>rque o criou” (KIERKEGAARD, 2010, 27).29 “Lázaro, portanto, está morto e, contudo, a sua doença não era mortal; mas o fato é que está morto, semque tenha estado mortalmente doente” (KIERKEGAARD, 1979, 191). Eis a fórmula válida para o cristão:apenas o <strong>de</strong>sespero constitui a doença mortal. Segundo Kierkegaard, pelo simples fato <strong>de</strong> Deus existir, amorte não constitui uma doença mortal.


25uma ig<strong>no</strong>rância espiritual mostra-se, e a doença mortal manifesta-se como o âmbito emque <strong>de</strong> fato jaz o horror.O cristão é o único que conhece a doença mortal. Dá-lhe o cristianismo umacoragem ig<strong>no</strong>rada pelo homem natural – coragem recebida com o receio <strong>de</strong>um maior grau <strong>de</strong> horrível. Certo é que a coragem a todos é dada; e que oreceio <strong>de</strong> um maior perigo <strong>no</strong>s dá força para afrontar um me<strong>no</strong>r; e que oinfinito temor <strong>de</strong> um único perigo <strong>no</strong>s torna como inexistentes todos osoutros. Mas a lição horrível do cristão está em ter aprendido a conhecer adoença mortal (KIERKEGAARD, 1979, 192).A doença mortal não ataca o corpo; trata-se <strong>de</strong> uma enfermida<strong>de</strong> doespírito, do “eu”. Po<strong>de</strong>-se afirmar que segundo o pensador dinamarquês a única saídareal para o <strong>de</strong>sespero é a fé. Carecer <strong>de</strong> fé significa não apenas carecer <strong>de</strong> Deus, mastambém carecer <strong>de</strong> “eu”. Nas linhas acima se i<strong>de</strong>ntificou o “eu” como o elo indissolúvelque liga o homem a Deus. A ausência da figura divina implica, consequentemente, nacarência <strong>de</strong> um autoconhecimento. Carente <strong>de</strong> Deus, o homem está con<strong>de</strong>nado achafurdar na infâmia e <strong>no</strong> pecado. Alheio a Deus, segundo a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, ohomem é incapaz <strong>de</strong> voltar-se sobre si <strong>de</strong> maneira harmônica. Apesar <strong>de</strong>sta posturacristã, po<strong>de</strong>-se dizer que há outros mecanismos que influenciaram abertamente aconcepção <strong>kierkegaard</strong>iana do cristianismo. Conforme De Paula, “a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suasseveras críticas ao paganismo grego e à doutrina socrática da ig<strong>no</strong>rância, e ainda a<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> revelação, nutre sincera admiração por Sócrates e oadota como parte <strong>de</strong> sua estratégia cristã e anti-sistemática 30 ” (DE PAULA, 2009, 115).O ponto central neste terceiro capítulo será complementar aos doisprimeiros. Mantém a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> “eu” como síntese, a superiorida<strong>de</strong> da investigaçãosubjetiva como verda<strong>de</strong>iro mecanismo analítico da questão e a sublimida<strong>de</strong> do “eu”como finalida<strong>de</strong> última do espírito. Anti-Climacus, ao discorrer sobre o <strong>de</strong>sespero,“abarca” nesta <strong>no</strong>ção a tensão da existência humana, seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual, suasenfermida<strong>de</strong>s espirituais e “aponta” o caminho a ser seguido.Como é afirmado nesta obra e em outras produções <strong>kierkegaard</strong>ianas, o<strong>de</strong>sespero não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado uma pecha infamante, vergonhosa e vil. Apesar <strong>de</strong>30 Kierkegaard <strong>no</strong>s afirma, ao utilizar-se do exemplo socrático, que é preciso um Sócrates num mundoperturbado por tanta ciência. “A afirmação da ig<strong>no</strong>rância constitui, apesar <strong>de</strong> tudo, uma existência. Já aciência que começa pela dúvida não duvida existencialmente <strong>de</strong> nada. Trata-se <strong>de</strong> uma falsa dúvida e <strong>de</strong>uma sistematização apressada” (DE PAULA, 2009, 92).


26sua natureza <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>, não <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado uma imperfeição. Ao contrário,a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar <strong>de</strong>ve ser compreendida como um apanágio positivo, já quediz respeito à realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese do “eu”, faz parte da existência do homem.Admitindo-se que o <strong>de</strong>sespero é um apanágio da síntese e, visto sob esta categoria, ohomem sempre é consi<strong>de</strong>rado a partir do seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual. Este é o fator positivodo <strong>de</strong>sespero: consi<strong>de</strong>ra o homem a partir <strong>de</strong> sua “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> infinita”, seu elo com adivinda<strong>de</strong>, seu “eu”. Portanto, também se po<strong>de</strong> concluir que mesmo abatido pelo<strong>de</strong>sespero, o homem está “próximo” da divinda<strong>de</strong>, já que o “elo” que os une <strong>de</strong>svelouse.De acordo com Kierkegaard, falta apenas um “movimento”: o homem quer crer? Écapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar fé à divinda<strong>de</strong>? Ou se levantará covar<strong>de</strong>mente contra Deus compalavras malditas e <strong>de</strong>sonestas? As duas possibilida<strong>de</strong>s serão analisadasporme<strong>no</strong>rizadamente <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr do trabalho.Po<strong>de</strong>-se afirmar que não há um só indivíduo em quem não persista umaperturbação, uma inquietação, um receio do <strong>de</strong>sconhecido, mesmo velado e “soterrado”na profundida<strong>de</strong> do “eu”. E por um lampejo, uma situação assustadora ou por um malquimérico que nem chega a ser, eis que o <strong>de</strong>sespero vem à tona 31 . Mesmo o nãoconsi<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong>sesperado po<strong>de</strong> ser uma manifestação do <strong>de</strong>sespero. No tocante aosobjetivos almejados, o terceiro capítulo preten<strong>de</strong> concluir a idéia <strong>de</strong> síntese, <strong>de</strong>svelar arelação entre o <strong>de</strong>sespero e o “eu”, esclarecer o conceito <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> <strong>de</strong> doençamortal e, apoiado na produção <strong>de</strong> Anti-Climacus, postular a fé como paixão sublime esolução real a todas as enfermida<strong>de</strong>s e calamida<strong>de</strong>s a que o indivíduo está suscetível.Por fim, afirma-se que a produção <strong>kierkegaard</strong>iana aqui exposta seráanalisada <strong>de</strong> uma maneira conjunta, já que se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que possuem um temacomum, a saber, o “eu” e sua relação com a divinda<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>tém-se sobrecaracterísticas específicas <strong>de</strong>ste tema, analisando <strong>de</strong>sdobramentos próprios <strong>de</strong>sta relaçãoem existências distintas. Os conceitos abordados muitas vezes complementam-se; o quecorrobora a unicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra.31 “O <strong>de</strong>sespero vem à tona.” Já se assumiu que o <strong>de</strong>sespero é a regra e não a exceção. E o que adoece é aparte “infinita”, “eterna” da síntese que é o “eu”. Desta maneira, quando o <strong>de</strong>sesperado toma consciência<strong>de</strong> sua enfermida<strong>de</strong> toma consciência também que esta não se restringe ao período em que a moléstiamanifestou-se, mas que toda a sua existência foi <strong>de</strong>sespero. “A sua aparição mostra a sua preexistência.Consequentemente, nunca po<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>s pronunciar sobre alguém, quando não se salvou por ter<strong>de</strong>sesperado. Porque o próprio acontecimento que o lança <strong>no</strong> <strong>de</strong>sespero imediatamente revela que toda asua vida passada tinha sido <strong>de</strong>sespero. Ao passo que não se po<strong>de</strong>ria dizer, quando alguém tem febre, que éevi<strong>de</strong>nte agora que sempre a tivera. Mas o <strong>de</strong>sespero é uma categoria do espírito, suspensa na eternida<strong>de</strong>,e um pouco <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> entra em sua dialética” (KIERKEGAARD, 2010b, 39).


27CAPÍTULO I – Søren A. Kierkegaard e uma análise da influência dogmática naprodução da obra Temor e tremorTentou Deus a Abraão e disse-lhe: toma agora o teu filho, o teu único filho,Isaac, a quem amas, e vai-te à terra <strong>de</strong> Morija; oferece-o ali em holocaustosobre uma das montanhas que eu te indicarei. (Bíblia Sagrada, GEN, XXII, 1)A relação existente entre razão e fé há muito <strong>de</strong>sperta o interesse doshomens 32 . Des<strong>de</strong> os antigos cultos pagãos até as atuais religiões mo<strong>no</strong>teístas, indivíduos<strong>de</strong> todas as partes do mundo questionam a si e aos outros acerca <strong>de</strong>ste assunto. O quevaria é a profundida<strong>de</strong> e a inteligência com que tais questões são elaboradas. Asvariáveis a serem analisadas são muitas; e além <strong>de</strong> uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>vemos concentrar <strong>no</strong>ssa atenção também <strong>no</strong> homem que empreen<strong>de</strong> tal estudo. SørenA. Kierkegaard não foi um homem comum, isto é inegável. Há uma característicacomum entre quem se <strong>de</strong>dica ao estudo do dinamarquês, à qual se <strong>de</strong>ve permanecer fiel:uma breve elucidação <strong>de</strong> sua vida faz-se necessária, uma vez que é consenso entre osestudiosos que, em se tratando <strong>de</strong> Kierkegaard, vida e obra são complementares 33 .Uma existência única, lúgubre. Traumas sofridos na infância <strong>de</strong>vido à<strong>no</strong>ção religiosa que lhe foi imposta, seguida da revolta <strong>de</strong> seu pai contra Deus, fato que32 A mencionada relação, a saber, entre razão e fé, se fará presente em toda a pesquisa que se segue. A féserá abarcada <strong>de</strong> maneira plena, <strong>de</strong> acordo com a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, pelo elemento subjetivo; ainvestigação racional mover-se-á objetivamente. Uma harmonia entre estas duas realida<strong>de</strong>s do<strong>pensamento</strong> huma<strong>no</strong>, <strong>de</strong>ntro do contexto que Kierkegaard expõe na obra Temor e tremor, será o tema aser pesquisado. Esta busca será melhor compreendida quando “transportada” para o sacrifício <strong>de</strong> Abraão,cujos elementos subjetivos e objetivos fornecerão campo fértil para a investigação.33 Conforme Farago, po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar a filosofia e a vida em Kierkegaard: “a vida autenticamentehumana, essa criança gerada pelo finito e pelo infinito, pelo eter<strong>no</strong> e pelo temporal, é aquela queconsegue articulá-los, e se esforça por alcançar esta meta” (FARAGO, 2006, 9). Concepçãocompartilhada por Mesnard: “a posição excepcional que Kierkegaard ocupa na historia do <strong>pensamento</strong>oci<strong>de</strong>ntal parece <strong>de</strong>ver-se em primeiro lugar a uma vida singular, verda<strong>de</strong>ira tragédia espiritual cujasdiversas peripécias, e diversas possibilida<strong>de</strong>s incitarão a reflexão existencial e lhe permitirão, pelaconfrontação dos respectivos temas, a constituição <strong>de</strong> uma filosofia <strong>no</strong>va, muito mais <strong>de</strong> acordo com arealida<strong>de</strong> vivida do que os sistemas anteriores” (MESNARD, 1953, 11). No prefácio da obra Temor etremor, Torrieri Guimarães afirma: “assim, Kierkegaard, que negava a eficácia <strong>de</strong> qualquer filosofia para<strong>de</strong>svendar o homem a si mesmo, <strong>de</strong>ixou a raiz da filosofia existencialista, na qual a dúvida <strong>de</strong> todacerteza, a angústia do sofrimento interior, o <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> estar fora do âmbito da verda<strong>de</strong>, sempreperseguida e sempre afastada pela dúvida, constituem os fundamentos. Representando a crise do espírito,<strong>no</strong> momento dramático em que <strong>de</strong>ve realizar o seu salto para a plenitu<strong>de</strong>, e percorre toda a gama <strong>de</strong> seusconhecimentos, a filosofia existencialista vive mais intensamente nas horas <strong>de</strong> crise da humanida<strong>de</strong>, naconflagração dos sentimentos <strong>de</strong>sajustados com a realida<strong>de</strong>” (GUIMARÃES, 1964, 12). A partir <strong>de</strong> taisafirmações a presente dissertação corrobora a natureza do existencialismo como “condicionada” à tensãoda existência.


28lhe acompanhou por toda a vida. Este episódio merece uma atenção especial, pois foi<strong>de</strong>vido a ele que o jovem Søren foi exposto a um cristianismo extremamente severo. Oremorso do pai pela falta cometida contra Deus espalhou-se pela família e a atingiu “atéa medula”. “O horrível que suce<strong>de</strong>u àquele homem que um dia, quando criança, aoguardar os carneiros na planície da Jutlândia, sofrendo fome e frio, subiu a umaelevação e amaldiçoou a Deus. A esse homem era impossível esquecer este fato, emborativesse oitenta e dois a<strong>no</strong>s” (REICHMANN, 1971, 18).A contenda contra o jornal “O Corsario” constitui outro acontecimentoque exigiu muito <strong>de</strong> Kierkegaard. Em sua i<strong>no</strong>cência, achou que a população <strong>de</strong>Copenhague sairia em seu socorro e o protegeria dos ataques do mencionado jornal.Além <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>fesa não ter existido, o jornal passou a concentrar suas “energias” emsatirizar e me<strong>no</strong>sprezar sua pessoa, havendo relatos em seu diário que, crianças que oviam na rua, riam-se <strong>de</strong>le <strong>de</strong>vido ao achincalhe <strong>de</strong>ste órgão <strong>de</strong> imprensa. “Minhaexistência era a expressão <strong>de</strong> um princípio grego e agora se estropiou. O que foi que aestropiou? Ah! O abuso da imprensa. No fundo é ela que <strong>de</strong>strói toda personalida<strong>de</strong>. Porseu intermédio, um velhaco insignificante po<strong>de</strong> parecer culto, escrevendo e imprimindopara milhares <strong>de</strong> leitores”. (REICHMANN, 1971, 30).O rompimento com sua <strong>no</strong>iva foi outro fator <strong>de</strong>cisivo na vida <strong>de</strong>Kierkegaard e teve gran<strong>de</strong> repercussão em sua produção filosófica. As pessoas solitáriasesten<strong>de</strong>m a mão <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>mais para quem lhes <strong>de</strong>dica afeto, e foi isso o que aconteceucom Søren. Em pouco tempo condicio<strong>no</strong>u sua alegria à felicida<strong>de</strong> da jovem RegineOlsen. O rompimento se <strong>de</strong>u quando Kierkegaard <strong>no</strong>tou ser um espírito <strong>de</strong>masiadoensimesmado para dividir sua existência com outra pessoa, mesmo que com umaesposa. Como diz Jean Wahl: “Søren ficou sendo para sempre o amante sem nenhumaimediatida<strong>de</strong> com o seu amor”. Retirou-se do relacionamento, compreen<strong>de</strong>ndo talrompimento como um sacrifício necessário à sua edificação cristã.Trata-se <strong>de</strong> uma interiorida<strong>de</strong> que exigia, <strong>de</strong> uma maneira quaseincoerente, um alicerce singelo. O maior problema <strong>de</strong> Kierkegaard foi o próprioKierkegaard. Quis viver algo impossível <strong>de</strong> ser vivido 34 . “Seu <strong>de</strong>mônio reflexivo não34 A corrente <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong>s citada acima bem <strong>de</strong>monstra a realida<strong>de</strong> do autor estudado. Somadas a umareligiosida<strong>de</strong> melancólica e quase doentia, juntamente com uma intelectualida<strong>de</strong> penetrante e perspicaz,Kierkegaard molda um arcabouço filosófico que busca a sublimida<strong>de</strong> do indivíduo como fim último do“eu”.


29<strong>de</strong>morou a investir contra o que se anunciava como uma inesperada felicida<strong>de</strong>. Aespontânea alegria <strong>de</strong> Regine diante da sua melancolia acabara por revelá-la a elemesmo. Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais ele se sentia<strong>de</strong>samparado, <strong>de</strong>spreparado. Longe <strong>de</strong> serenar seu tormento, o amor só fizera perturbarsua consciência angustiada. Impôs-se o rompimento” (FARAGO, 2006, 52).Talvez eu pu<strong>de</strong>sse reproduzir a tragédia <strong>de</strong> minha infância, a chave horrível<strong>de</strong> toda a vida religiosa, que pavorosas suspeitas colocavam sorrateiramenteem minhas mãos e que minha fantasia as pregava na alma a golpes <strong>de</strong>martelo, numa <strong>no</strong>vela com o título: A família enigmática. Esta <strong>de</strong>veriacomeçar com um idílio patriarcal, pois assim ninguém chegaria a suspeitar <strong>de</strong>nada até que, <strong>de</strong> súbito, fosse pronunciada a palavra que tudo explica, parahorror <strong>de</strong> todos. (...) Deus <strong>de</strong> misericórdia, como meu pai em sua melancoliame fez tão gran<strong>de</strong> mal – um velho que <strong>de</strong>scarrega toda a sua melancolia sobreuma criança, para não falar do que é mais horrível ainda e, <strong>no</strong> entanto, omelhor dos pais (REICHMANN, 1971, 18).Seu comportamento, algumas vezes hostil, algumas vezes zeloso,permitiu-lhe reconhecer o caráter trágico da existência e “transportá-lo” à suaconcepção filosófica. Direcio<strong>no</strong>u sua energia na busca <strong>de</strong> um fundamento seguro parasua vida e encontrou na fé repouso e alegria. Nunca abando<strong>no</strong>u a racionalida<strong>de</strong>; não seigualou a fanáticos ou usou sua fé como um “escudo”.Kierkegaard muitas vezes foi acusado <strong>de</strong> “esquivar-se” da filosofia eprocurar refúgio em uma espécie <strong>de</strong> poetar filosófico. “A obra <strong>de</strong> Kierkegaard constituium esforço para relacionar em termos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> a dialética da fé, como certezainterior que antecipa o infinito” (FARAGO, 2006, 13). Ele nunca se apartou do“trabalho do conceito”, da pesquisa, do ato <strong>de</strong> esmiuçar, <strong>de</strong> refletir sobre o que parececerto com uma <strong>de</strong>dicação enamorada. Se sua obra po<strong>de</strong>, em algum momento, ser<strong>de</strong>squalificada como produção filosófica, <strong>de</strong>ve-se dizer, na mesma sentença, que elatoma emprestada <strong>de</strong>sta a linguagem, a exigência <strong>de</strong> rigor e a coerência. Uma tarefadialeticamente difícil, porém necessária 35 .Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar, sem receio <strong>de</strong> erro, que a influência socrática ocupouo maior <strong>de</strong>staque na produção intelectual <strong>de</strong> Kierkegaard. “Sócrates, o homem que35 Dialeticamente falando Kierkegaard procura esmiuçar conceitos existenciais através da análise <strong>de</strong>fenôme<strong>no</strong>s observados na existência humana, a partir <strong>de</strong> episódios como o “sacrifício <strong>de</strong> Abraão”, o“pecado <strong>de</strong> Adão” e a ressurreição <strong>de</strong> Lázaro, entre outros. Tais episódios foram o objeto <strong>de</strong> estudos dofilósofo dinamarquês, e sua investigação <strong>de</strong>monstrou importância filosófica, psicológica e dogmática.


30inventou o indivíduo ou, em outras palavras, a transcendência da consciência singularem face do todo da cida<strong>de</strong>, foi o primeiro mestre <strong>de</strong> Kierkegaard” (FARAGO, 2005,64). A enigmática influência <strong>de</strong> Sócrates necessita <strong>de</strong> mais esclarecimentos. Como ésabido, Sócrates não <strong>de</strong>ixou seu “legado” <strong>de</strong> maneira escrita, o que sabemos sobre elechegou até nós através <strong>de</strong> seus discípulos, contemporâneos e comentadores. Reduzir-seáesta lista a três <strong>no</strong>mes, a saber, Platão, Aristófanes e Xe<strong>no</strong>fonte 36 , e a partir <strong>de</strong>stesprocurar-se-á estabelecer a imagem que Kierkegaard formou do “filósofo da praça”.Como uma conseqüência disso é preciso utilizá-los com uma certa cautela, ecuidar <strong>de</strong> fazê-los parar <strong>no</strong> instante em que eles começam a arrebatar-<strong>no</strong>s.Mas por fim se torna necessário, para que a gente mesmo não seja culpado <strong>de</strong>uma arbitrarieda<strong>de</strong>, ter alguém a quem recorrer, razão pela qual eu procureiser eu mesmo um terceiro à frente <strong>de</strong> cada um. Depois eu fiz o todo chegar auma confrontação final. Com isso, eu consegui viabilizar uma possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong> esclarecer a discrepância entre as três concepções graças auma concepção <strong>de</strong> Sócrates correspon<strong>de</strong>nte. (...) Durante esta investigação eutive sempre algo in mente, ou seja, a concepção <strong>de</strong>finitiva, sem que por issome pu<strong>de</strong>sse inculpar-me <strong>de</strong> algum jesuitísmo inteligente, ou <strong>de</strong> ter primeiroescondido, procurado e <strong>de</strong>pois encontrado o que há muito eu já haviaencontrado. A concepção final apenas sobrepairou como uma possibilida<strong>de</strong> acada pesquisa; cada resultado foi a síntese <strong>de</strong> uma reciprocida<strong>de</strong>; com esta, aconcepção se sentiu atraída ao resultado que ela <strong>de</strong>veria explicar, e aquilo que<strong>de</strong>via ser explicado, atraído para ela” (KIERKEGAARD, 2006, 125).A afirmação acima encontra embasamento em várias passagens dasobras <strong>kierkegaard</strong>ianas. Como sua dissertação <strong>de</strong> mestrado, O conceito <strong>de</strong> ironiaconstantemente referido a Sócrates, <strong>de</strong>fendida em 1841. “O conceito <strong>de</strong> ironia contém averda<strong>de</strong>ira plataforma, o programa em seus aspectos temáticos e metodológicos que se<strong>de</strong>senvolverão ao longo da produção <strong>kierkegaard</strong>iana. (...) A dissertação expõe ométodo do irônico, o método socrático que <strong>de</strong>pois será aplicado a serviço da i<strong>de</strong>ia<strong>kierkegaard</strong>iana” (VALLS, 2006, 10). Ali se i<strong>de</strong>ntifica o intelecto brilhante <strong>de</strong> umjovem com me<strong>no</strong>s <strong>de</strong> trinta a<strong>no</strong>s, mergulhado <strong>no</strong>s estudos <strong>de</strong> Platão e Hegel e que, <strong>no</strong><strong>de</strong>senvolver da referida obra, me<strong>de</strong> forças com o gran<strong>de</strong> mestre alemão. Kierkegaardnunca renunciou do uso da ironia, e esta está, em seus trabalhos, sempre associada aSócrates.36 As três perspectivas sobre Sócrates adicionam e subtraem características, tendo sido a imaginação e ainclinação pessoal <strong>de</strong> cada um o que moveu a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Sócrates. “No que tange à relação <strong>de</strong>Aristófanes com Xe<strong>no</strong>fonte e Platão, encontram-se em Aristófanes elementos <strong>de</strong>ssas duas concepções. Omisterioso nada, que propriamente constitui a pointe na vida <strong>de</strong> Sócrates, Platão procurou preenchê-locom a i<strong>de</strong>ia, e Xe<strong>no</strong>fonte com as prolixida<strong>de</strong>s do útil. Aristófanes, portanto, conseguiu captar este nada,não como liberda<strong>de</strong> irônica, na qual Sócrates o gozava, mas sim <strong>de</strong> tal modo que ele constantementemostra a vacuida<strong>de</strong> que há aí” (KIERKEGAARD, 2006, 124).


31Após Sócrates, <strong>de</strong>ve-se colocar Hegel como a gran<strong>de</strong> influência sofridapor Kierkegaard. A filosofia hegeliana, segundo o próprio Kierkegaard, é uma “sedutoravoluptuosida<strong>de</strong>”; encanta como o olhar da víbora. Abarca num sistema magistralconceitos sensíveis e suprasensíveis. A estética, a moral, a política, o espírito absoluto;tudo encontra seu lugar <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong> Hegel. “Kierkegaard censura Hegel pelasistematização do <strong>pensamento</strong>, repreen<strong>de</strong>-o por haver tecido uma imensa teia conceitualcujos fios capturam em suas <strong>de</strong>terminações Deus, o homem e o mundo, sob a únicainvocação da razão soberana, recalcando assim a angústia e permitindo ao homemsentir-se justificado <strong>no</strong> centro <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> progressivamente justificadora(FARAGO, 2006, 68). A individualida<strong>de</strong>, a tensão da existência, como Kierkegaard asinterpreta, foram banidas da sistemática hegeliana; esta é a principal crítica<strong>kierkegaard</strong>iana ao pensador alemão: Hegel <strong>de</strong>senvolve sua filosofia à margem da vida.As concepções filosóficas a que o jovem Kierkegaard foi expostocontrastam com o cristianismo melancólico e obscuro inculcado em sua mente por seupai. A consciência <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r absoluto não é <strong>de</strong> fácil aceitação; e conciliá-lo com arealida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong>manda não apenas fé, mas também autoconhecimento e temor a umelemento eter<strong>no</strong> que repousa em cada um. Kierkegaard <strong>de</strong>senvolveu sua filosofiamantendo ao “alcance dos olhos” sua fé, permitindo que esta participe da tensão daexistência humana e lhe confira um caráter salvífico 37 .1.1: A i<strong>de</strong>ia do “eu” como síntese e sua formação <strong>de</strong> acordo com Kierkegaard“Em Kierkegaard, portanto, o homem não po<strong>de</strong> separar-se da fé, e esta,por sua vez, não po<strong>de</strong> separar-se do sentimento existencial” (FARAGO, 2006, 16). Ohomem como primeiro esforço na construção <strong>de</strong> uma filosofia; a condição humana vista37A sublimida<strong>de</strong> a que o homem está <strong>de</strong>stinado <strong>de</strong>vido ao amor que Deus lhe <strong>de</strong>dica está condicionada àpaixão sublime, a saber, à fé. Esta sublimida<strong>de</strong> está diretamente associada à fé, e esta representará o amorque o homem <strong>de</strong>dica a Deus. Desta maneira, compreenda-se fé como a paixão mais elevada do homem,como condição para a sublimida<strong>de</strong> e, também, como medida do amor <strong>de</strong>dicado à Divinda<strong>de</strong>.


32sob uma perspectiva existencial. Na filosofia <strong>kierkegaard</strong>ina, a experiência e o processo<strong>de</strong> edificação consolidam-se sempre na primeira pessoa. O homem está à frente <strong>de</strong> si, natarefa <strong>de</strong> si mesmo, perpetuamente interessado por si. Esta reflexão sobre si mesmo é <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m ontológica, e não lógica. “Não nascemos homens, temos o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> vir a serhomens. Nada po<strong>de</strong> <strong>no</strong>s isentar da pena, do trabalho, da disciplina que isto implica”(FARAGO, 2006, 234).O axioma da antropologia <strong>kierkegaard</strong>iana é simples: ainda que todo homemse <strong>de</strong>senvolva com liberda<strong>de</strong>, não se cria a si mesmo a partir do nada; ele serecebe sob a forma <strong>de</strong> uma condição específica na qual está inscrita anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se arrancar da animalida<strong>de</strong>, dando-lhe como tarefa a realizarsua pessoa concreta. Dado a si mesmo sob a forma da imediaticida<strong>de</strong>,lançado <strong>no</strong> mundo sob a forma do corpo e <strong>de</strong> sua reverberação psíquica (aalma), <strong>de</strong>ve ele chegar ao espírito, à faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese reflexiva(FARAGO, 2006, 76).Sua filosofia busca um resgate da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> e da interiorida<strong>de</strong> vivas.E a “energia” que o homem concentra em sua fé representará não apenas o amor que ele<strong>de</strong>dica a Deus, mas também a profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu ser, seu valor enquanto homem euma ruptura com a realida<strong>de</strong> finita. Esta ruptura ocorre a partir do salto qualitativo.Uma mudança na qualida<strong>de</strong>, um <strong>no</strong>vo alvorecer surge diante do homem. O saltorepresenta uma evolução da realida<strong>de</strong> vivida até o momento em direção a uma realida<strong>de</strong>“diversa” (a queda da i<strong>no</strong>cência para a culpa também constitui um salto, como seráexposto adiante). Po<strong>de</strong>-se exemplificar isto através da evolução do <strong>de</strong>sespero. Como foicitado ainda na introdução, o homem, quando <strong>de</strong>sespera, num primeiro momentoimagina estar sendo constrangido por uma situação externa, algo casual, algo que estáfora do seu controle. Porém, quando este mesmo indivíduo toma consciência daverda<strong>de</strong>ira natureza <strong>de</strong>sta enfermida<strong>de</strong>, do seu caráter imanente, intrínseco, há umamudança na qualida<strong>de</strong>. A consciência da “real situação”, segundo Kierkegaard,aproximará o indivíduo <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual.


331.1.1: Uma análise dos mecanismos <strong>de</strong> investigação da fé e <strong>de</strong> sua importância paraa edificação do “eu”A fé consi<strong>de</strong>ra cada um <strong>de</strong> nós como oriundos da infinitu<strong>de</strong> 38 e do amorque Deus <strong>de</strong>dica aos homens; concebe o homem como “diante <strong>de</strong> Deus” e tem Deuscomo medida do homem. Num só movimento, retira o indivíduo <strong>de</strong> sua obscurarealida<strong>de</strong> e o guia ao seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual. A racionalida<strong>de</strong>, neste caso, está impregnada<strong>de</strong> conceitos subjetivos e, portanto, <strong>de</strong>ve metamorfosear sua natureza objetivista paraum caráter “contemplativo”, <strong>de</strong> maneira que não mutile seus fundamentos primeiros. Oprocesso <strong>de</strong> racionalização cumpre um papel fundamental, conduzindo a análise até suarealida<strong>de</strong> subjetiva e paradoxal. Trata-se do processo lógico da busca da verda<strong>de</strong>. Esteprocesso ocupa-se e exige fundamentos passíveis <strong>de</strong> experimentação e <strong>de</strong>monstração; aexemplo <strong>de</strong> Arquime<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Siracusa, que meditava <strong>de</strong> uma maneira imperturbável sobreseus círculos à procura da veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus cálculos 39 .Quando o processo <strong>de</strong> racionalização põe-se em movimento, a lógica“toma assento na primeira ca<strong>de</strong>ira” e qualquer atitu<strong>de</strong> alheia a ela é vista com “mausolhos”. A racionalida<strong>de</strong> constitui o <strong>de</strong>senvolvimento e o objetivo da realida<strong>de</strong> empírica;ela não reconhece uma instância que lhe seja superior ou que fuja à sua compreensão.Se tal afirmação for verda<strong>de</strong>ira, nunca houve fé <strong>no</strong> mundo e estaremos corretos emchamar Abraão <strong>de</strong> assassi<strong>no</strong>. A razão sustenta a vacuida<strong>de</strong> cética, a inexistência <strong>de</strong> umpo<strong>de</strong>r superior protetor e zeloso e uma auto-suficiência capaz <strong>de</strong> suprir o homem emsuas características imanentes, sensíveis e supra-sensíveis. Sob a questão citada, moverse-áa presente análise 40 .38 Nas linhas anteriores admitiu-se que o homem é uma síntese <strong>de</strong> finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong>. Umdos elementos é limitado e o outro é ilimitado. Logo, quando se utiliza o termo infinitu<strong>de</strong> faz-se umareferência exatamente ao caráter eter<strong>no</strong> e incorruptível do homem.39Relatos históricos afirmam que a imperturbabilida<strong>de</strong> e o amor que o matemático grego <strong>de</strong>dicava àciência era tal que quando os roma<strong>no</strong>s tomaram Siracusa e pren<strong>de</strong>ram Arquime<strong>de</strong>s, suas últimas palavrasforam: <strong>no</strong>lite perturbare circulos meos (não perturbe os meus círculos).40 Kierkegaard empreen<strong>de</strong> uma volta à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> viva, e assim <strong>de</strong>volve à interiorida<strong>de</strong> uma posição <strong>de</strong><strong>de</strong>staque numa construção filosófica. Retira a supremacia da análise objetiva e fundamenta a verda<strong>de</strong>sobre conceitos subjetivos, a saber, a fé e o paradoxo. Tais elementos conduzem o homem à consciênciada Divinda<strong>de</strong>, e a harmonia com este elemento Divi<strong>no</strong> correspon<strong>de</strong>rá à finalida<strong>de</strong> última do eu.


34Segundo a perspectiva cristã, porém, o mecanismo <strong>de</strong> racionalização nãocompreen<strong>de</strong>rá mais um telos, mas uma realida<strong>de</strong> a ser superada em benefício <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong> superior. Segundo Kierkegaard, esta realida<strong>de</strong> superior à racionalida<strong>de</strong>, asaber, a cristanda<strong>de</strong>, quando o homem lhe <strong>de</strong>dica todo o amor que lhe cabe, suspen<strong>de</strong> oelemento racional e passa a reinar absoluta na existência humana. O exemplo <strong>de</strong> Abraãotorna mais clara esta perspectiva. Abraão abandona sua razão em <strong>no</strong>me da fé; nãorefletiu sobre o absurdo <strong>de</strong> sua viagem ou sobre o terror que lhe aguardava na montanha<strong>de</strong> Morija. Agiu conforme o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seu coração.Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r “razão” em muitos sentidos. Quando falamos em razãopensamos geralmente também <strong>no</strong> irracionalismo, e uma das acusações que secostumava fazer a Kierkegaard é a <strong>de</strong> que ele seria um irracionalista: seria umautor incapaz <strong>de</strong> fazer uma síntese, perdido entre a tese e a antítese, umhegelia<strong>no</strong> que não mastigou e assimilou bem o seu Hegel e a sua dialética,enfim, um irracionalista <strong>no</strong> sentido lógico; e, também, um coitado, um infeliz<strong>no</strong> amor, que confundia filosofar com suspirar, fazer confidências sobre suaex-<strong>no</strong>iva, <strong>de</strong> modo que sua filosofia seria uma <strong>no</strong>vela <strong>de</strong> segunda categoria.Seria um irracionalista: pois não teria levado a sério o trabalho filosófico, otrabalho do conceito. (...) tudo isto não passa <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> preconceitos,uma visão completamente <strong>de</strong>turpada, pois Kierkegaard é um dos autores maisracionalistas que se po<strong>de</strong> imaginar, pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> esmiuçarracionalmente, <strong>de</strong> pesquisar (VALLS, 2000, 177).Desta maneira, não <strong>no</strong>s será lícita uma <strong>de</strong>masiada inclinação pessoal aoelemento religioso, em que a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> guia cada um segundo suas inclinações e emcada um é capaz <strong>de</strong> gerar uma concepção singular. Não se po<strong>de</strong> abrir mão do trabalhodo conceito, do esforço conceitual. Não se po<strong>de</strong> confundir profundida<strong>de</strong> comobscurida<strong>de</strong>, pois, se tal acontecer, não importa sobre o que o investigador se <strong>de</strong>dique,seu trabalho será faina perdida. O que se ambiciona é que a investigação não sejatragada por um abismo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, mas que observe, pesquise e esmiúce o objetoproposto. Em contrapartida, não se <strong>de</strong>ve permitir um elogio à razão em <strong>de</strong>trimento à fé.Gradativamente <strong>de</strong>verá seguir a presente análise, buscando uma língua comum entre asduas realida<strong>de</strong>s. Questionar ambas e, se possível personificá-las 41 ; quando conveniente,posicionar-se acerca da problemática exposta.41 O presente trabalho recorrerá a esta tentativa <strong>de</strong> personificação para a melhor compreensão dosconceitos expostos. Subjetivida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong>, recorrendo à análise <strong>de</strong> um fenôme<strong>no</strong> pertinente àocasião, <strong>de</strong>svelam dados importantes para a análise filosófica. Abraão será a figura perscrutada nesteprimeiro capítulo. Adão será “analisado” <strong>no</strong> segundo capítulo, <strong>de</strong> acordo com o contraste psicologia/


35Trata-se <strong>de</strong> um assunto <strong>de</strong>veras <strong>de</strong>licado, em que movimentos bruscospo<strong>de</strong>m pôr toda a investigação em dúvida. O tema, a saber, a influência religiosa numaprodução filosófica, <strong>de</strong>verá ser apreciada <strong>de</strong> maneira dicotômica 42 . O conhecimentosubjetivo, movimento sem <strong>de</strong>slocamento, <strong>de</strong>verá conter em si uma parcela da respostabuscada. A objetivida<strong>de</strong>, ou aqui compreendida como a capacida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong>racionalizar um fenôme<strong>no</strong>, será responsável pelo componente sensível a que a análise ésuscetível. A observação e inquirição correspon<strong>de</strong>m ao ato <strong>de</strong> racionalização. Diferenteda investigação subjetiva, cujos caracteres primam o elemento associado à interiorida<strong>de</strong>humana, o ato <strong>de</strong> racionalizar um fenôme<strong>no</strong> repousa numa análise que visa, em últimainstância, provar a veracida<strong>de</strong> do dado observado valendo-se da lógica e <strong>de</strong> seus<strong>de</strong>sdobramentos. Não objetivar elementos cuja essência repousa exclusivamente na<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> será uma máxima a ser seguida. Igualmente, a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>veráabarcar apenas os elementos que lhe são inerentes. A mediação entre estas duasrealida<strong>de</strong>s guiará esta pesquisa.A “dialética” da existência humana ocupou os esforços <strong>de</strong> Kierkegaard.Como foi citado, trata-se <strong>de</strong> um autor racionalista, que esmiúça o objeto <strong>de</strong> suapesquisa. Certa ig<strong>no</strong>rância paira em tor<strong>no</strong> da i<strong>de</strong>ia que muitos formaram acerca <strong>de</strong>le,com o obscuro título <strong>de</strong> “pai do existencialismo”, um angustiado e melancólicopensador do absurdo, um <strong>no</strong>ivo frustrado que canaliza sua raiva contra a IgrejaProtestante da Dinamarca; enfim, um escritor incapaz <strong>de</strong> formular um <strong>pensamento</strong>racional. Se tais afirmações forem verda<strong>de</strong>iras, como interpretar a seguinte colocação dofilósofo alemão Martin Hei<strong>de</strong>gger: “quem levou mais longe a análise do fenôme<strong>no</strong> daangústia foi S. Kierkegaard e isso, mais uma vez, <strong>de</strong>ntro do contexto teológico <strong>de</strong> umaexposição ‘psicológica’ do problema do pecado original” (HEIDEGGER, 2006, 257).Teria o gran<strong>de</strong> pensador alemão se equivocado? Teria sido encantado pelas palavrasmelancólicas <strong>de</strong> Kierkegaard, semelhante aos ouvintes <strong>de</strong> Orfeu ao serem expostos àbela melodia que vinha <strong>de</strong> sua lira? E o que dizer <strong>de</strong> Jaspers, Ador<strong>no</strong>, Kafka, KarlBarth, entre outros? Os alemães, principalmente os citados, tem uma tendência paradogmática. O terceiro capítulo se <strong>de</strong>terá numa investigação <strong>de</strong> caráter mais conceitual, porémabrangendo, <strong>de</strong> maneira superficial, a ressurreição <strong>de</strong> Lázaro.42A dicotomia mencionada refere-se à investigação objetiva/ subjetiva. Como foi esclarecido já nasprimeiras páginas do presente trabalho, estes serão os mecanismos <strong>de</strong> análise utilizados e <strong>de</strong>verão estarem concordância com a Psicologia e a Dogmática. Não <strong>de</strong>verão afastar ou obscurecer uma à outra, massim complementar-se.


36reflexões dialéticas. Seria a <strong>de</strong>dicação <strong>de</strong> tão elevados espíritos ao estudo dodinamarquês um triunfo da <strong>de</strong>mência?1.2: Os conceitos <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> e seus <strong>de</strong>sdobramentos nafilosofia <strong>kierkegaard</strong>ianaObjetivamente, é impossível analisar o objeto interiorida<strong>de</strong>, o objetocrença, o objeto religiosida<strong>de</strong>, ao me<strong>no</strong>s <strong>de</strong> uma maneira integral 43 . Subjetivamente,como tais elementos são o cerne da existência humana e estão diretamente relacionadosao ser da interiorida<strong>de</strong>, estes elementos compreen<strong>de</strong>m a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> na filosofia<strong>kierkegaard</strong>iana. Esta i<strong>de</strong>ia po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificada como uma herança socrática. O“filósofo da praça”, apesar <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>clarada ig<strong>no</strong>rância, aproximou-se da verda<strong>de</strong> omáximo que um pagão é capaz <strong>de</strong> fazê-lo, <strong>de</strong> acordo com a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Ao incitar os atenienses a uma reflexão sobre si próprio, Sócrates procuraconduzi-los à verda<strong>de</strong> pagã vigente naquela época, a reminiscência.Kierkegaard, admirador confesso <strong>de</strong> Sócrates, compreen<strong>de</strong> a sabedoriado socratismo e a transporta para a sua concepção, a saber, a cristã. Mas em que odinamarquês fundamenta a afirmação <strong>de</strong> que a interiorida<strong>de</strong> é a verda<strong>de</strong>? Em primeirolugar é preciso ter claro o cristianismo inabalável que Kierkegaard nutria em seucoração. Em seguida, <strong>de</strong>ve-se manter diante dos olhos sua i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>. Para oscristãos que possuem tamanha fé Deus sempre será a Verda<strong>de</strong> Absoluta. Tal Verda<strong>de</strong>,<strong>de</strong> maneira alguma, po<strong>de</strong> ser apreendida ou repousar em cálculos objetivos, ou serestudada através <strong>de</strong> equações. Só há uma maneira <strong>de</strong> se chegar à Verda<strong>de</strong>: através dobem aventurado esforço <strong>de</strong> voltar-se sobre si mesmo e ali, <strong>no</strong> âmago do seu próprio ser,43 Neste momento da investigação torna-se latente a importância do elemento subjetivo. A crença, areligiosida<strong>de</strong> e a interiorida<strong>de</strong>, subjetivamente falando, serão analisadas não <strong>de</strong> maneira imediata, comoum <strong>de</strong>sdobramento natural do comportamento individual, como algo “<strong>de</strong>masiado huma<strong>no</strong>”, mas simcomo fundamento da existência. A interiorida<strong>de</strong> será o âmbito em que a crença e a religiosida<strong>de</strong> se<strong>de</strong>senvolverão. Crença e religiosida<strong>de</strong> representam, neste sentido, não apenas objeto <strong>de</strong> uma investigação,mas algo contido na essência humana, algo que acompanha o homem e que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre paira em tor<strong>no</strong><strong>de</strong>le.


37reconhecer a parcela da eternida<strong>de</strong> que repousa <strong>no</strong> “eu”. Desta maneira, a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>é concebida como verda<strong>de</strong> por ser a via que conduz o homem <strong>de</strong> fé à divinda<strong>de</strong>.“Quando o assunto é tratado objetivamente, o sujeito nunca vem arelacionar-se com a <strong>de</strong>cisão num estado apaixonado e, ainda me<strong>no</strong>s, num estadoapaixonado que revele um interesse infinito. A culpa não está na paixão infinita, mas <strong>no</strong>fato <strong>de</strong> que seu objeto tor<strong>no</strong>u-se um objeto <strong>de</strong> aproximação 44 ” (REICHMANN, 1971,212). Quando se trata <strong>de</strong> uma investigação sobre o âmago da existência, a análiseobjetiva po<strong>de</strong> dar muitas respostas, porém nenhuma <strong>de</strong>las é <strong>de</strong>cisiva, já que a <strong>de</strong>cisãofinal <strong>de</strong> tal investigação repousa na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>.A própria existência da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> como condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umaempreitada objetiva indica a anteriorida<strong>de</strong> e superiorida<strong>de</strong> do sujeito sobreseus objetos. A ciência ten<strong>de</strong> a <strong>no</strong>s induzir em erro e, quanto ao trabalhoconsentido para vir a serem objetivos, muitos o conseguem <strong>de</strong> maneirasuficientemente animal. Ser sujeito não é coisa ordinária. Isto não fica <strong>no</strong>campo da objetivida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> um empreendimento interior eminentementeativo, um trabalho sobre si mesmo (FARAGO, 2006, 182-183).A objetivida<strong>de</strong> apenas será capaz <strong>de</strong> fornecer informações sobre umarelação em que objeto e indivíduo constituam elementos distintos. Objetivamente, éinadmissível dizer que o próprio sujeito constitua a verda<strong>de</strong>, como a análise acima<strong>de</strong>monstrou. Usando uma expressão espirituosa, tal caso seria uma “bruxaria dialética”.“A especulação faz abstração da existência. Existir, para ela, torna-se ter existido.Enquanto abstração, a especulação não po<strong>de</strong> jamais tornar-se simultânea à existência enão po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a existência enquanto existência, mas apenasretrospectivamente” (REICHMANN, 1971, 234).A <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> relacionar-se-á com a própria relação, ou seja, formaráum elo indissolúvel em que a união correspon<strong>de</strong> à natureza da relação, semelhante à<strong>no</strong>ção <strong>de</strong> eu <strong>kierkegaard</strong>iana, a saber, “o eu é uma relação que não se estabelece comqualquer coisa <strong>de</strong> alheio a si, mas somente consigo própria” (KIERKEGAARD, 1979,195) e, orientando-se através <strong>de</strong> tal relação, volta-se para sua própria interiorida<strong>de</strong>. Não44O mencionado “interesse infinito” refere-se à parte infinita da síntese, a parte que advém direto dadivinda<strong>de</strong>. Um interesse infinito recebe este <strong>no</strong>me por não per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, mesmo <strong>no</strong> calor dainvestigação, o elo que une o homem a Deus (o “eu”) e mantém diante dos olhos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umacomunicação viva com a fé.


38há uma existência à parte da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>no</strong> seu relacionar-se com o indivíduo. Nestecaso, <strong>de</strong> uma relação que se volta sobre si própria, esta última relação, este ato <strong>de</strong> reflexionarsobre si, tem o caráter <strong>de</strong> um “terceiro termo 45 ” positivo, e assim tem-se oeu 46 . Por este motivo, a saber, a impossibilida<strong>de</strong> da especulação em harmonizar aexistência com a interiorida<strong>de</strong>, a objetivida<strong>de</strong> é incapaz <strong>de</strong> uma análise contun<strong>de</strong>nte da<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> e das paixões que pairam em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>la. Não há sistemática capaz <strong>de</strong>analisar uma relação que se relaciona apenas consigo própria. A verda<strong>de</strong> agora repousanum paradoxo.1.3: A instituição do conceito paradoxo e seus <strong>de</strong>sdobramentos segundo a filosofia<strong>kierkegaard</strong>ianaFunda-se o paradoxo quando a existência do eter<strong>no</strong> e do homem sãocolocadas lado a lado. Tal ato ocorreu apenas uma vez na história da humanida<strong>de</strong> enunca mais tornará a acontecer: trata-se do paradoxo do homem-Deus, personificado nafigura <strong>de</strong> Jesus Cristo. Quando a eternida<strong>de</strong>, em todo o seu esplendor e sublimida<strong>de</strong>,passa a participar da temporalida<strong>de</strong>, quando uma figura perfeita, auto-suficiente, capaz<strong>de</strong> criar um universo e permanecer estática assume a forma <strong>de</strong> um servo e submete-se àhumanida<strong>de</strong>, segundo a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, surge o paradoxo. Se a investigaçãoseguir <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>scuidada, a prova será substituída por uma <strong>de</strong>finição conceitual, e oparadoxo permanecerá oculto. O paradoxo, num sentido subjetivo, po<strong>de</strong> sercompreendido, interpretando-se a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, como uma prova <strong>de</strong> amor.E, como todo amor, sua base repousa <strong>no</strong> amor próprio. Portanto, a aceitação doparadoxo também po<strong>de</strong> ser entendida como uma paixão correspondida.45 O primeiro termo é a alma, o segundo é o corpo e o terceiro é a relação que se volta sobre si, que recebeo <strong>no</strong>me <strong>de</strong> espírito.46 Seguindo a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, a natureza do “eu” confere duas possibilida<strong>de</strong>s acerca doestabelecimento da síntese, da relação: esta foi estabelecida por si própria ou por outrem (daí tambémprovém a natureza do <strong>de</strong>sespero, tema que será melhor abordado <strong>no</strong> terceiro capítulo). Por não ser capaz<strong>de</strong> constituir-se e manter-se, admite-se que a divinda<strong>de</strong> criou e mantém a relação.


39Tal paradoxo não serve para mediação, pois repousa <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> o indivíduoser exclusivamente indivíduo. Visto que ele <strong>de</strong>seja expressar seu <strong>de</strong>verabsoluto <strong>no</strong> geral e tomar consciência daquele neste, toma consciência <strong>de</strong> queestá em crise e, não obstante a sua resistência a esta conturbação, não po<strong>de</strong>concretizar o seu <strong>de</strong>ver absoluto; e se não resiste, peca, ainda que seu atotraduza realiter coisa que era seu <strong>de</strong>ver absoluto. Que teria <strong>de</strong> fazer Abraão?Se falasse a outro: amo Isaac acima <strong>de</strong> qualquer coisa; “é por esse motivo queme é tão doloroso imolá-lo”, o seu interlocutor ter-lhe-ia retrucado,encolhendo os ombros: então por que motivo o <strong>de</strong>seja fazer?(KIERKEGAARD, 1964, 81).Trata-se da paixão paradoxal da inteligência, a saber, “<strong>de</strong>scobrir algo queo próprio <strong>pensamento</strong> não é capaz <strong>de</strong> pensar” (KIERKEGAARD, 1995, 62). Destamaneira, po<strong>de</strong>-se conceituar o paradoxo também como o “absolutamente diferente”. Apartir <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>finição, surge a seguinte questão: o paradoxo é o absolutamente diferenteou é a referência intrínseca do “eu” ao absolutamente diferente? A diferença absolutarepousa <strong>no</strong> pecado, pois é este que alarga cada vez mais o abismo que separa o homemda divinda<strong>de</strong>. Como foi afirmado, o pecado assim como o salto qualitativo e as <strong>de</strong>mais<strong>de</strong>terminações exclusivamente subjetivas, não po<strong>de</strong>m ser analisadas <strong>de</strong> maneirasatisfatória pela Psicologia nem pela Ética. A inteligência não po<strong>de</strong> compreendê-lo <strong>de</strong>maneira absoluta, nem po<strong>de</strong> negar-se absolutamente a fim <strong>de</strong> compreendê-lo. Nestecaso, pensar <strong>no</strong> homem segundo sua semelhança com Deus, apesar <strong>de</strong> ser uma atitu<strong>de</strong>religiosamente louvável, não <strong>no</strong>s fornecerá a resposta almejada. A diferença absoluta<strong>de</strong>ve ser pensada exatamente como se auto<strong>de</strong>fine: como diferença. E, segundoKierkegaard, a principal diferença entre estas duas naturezas, a saber, a humana e adivina, repousa <strong>no</strong> pecado e, consequentemente, na culpa.Implícito <strong>no</strong> paradoxo há uma harmonia perfeita entre o finito e oinfinito, a saber, o Deus que se fez carne. A natureza Divina como existência finita; oparadoxo. Tentar explicar o conceito <strong>de</strong> paradoxo <strong>de</strong> maneira objetiva, a “golpes” <strong>de</strong>dialética e retórica, po<strong>de</strong>rá fornecer o conceito paradoxo, mas não a<strong>de</strong>ntrará suanatureza. A verda<strong>de</strong> velada permanecerá obscura. O paradoxo será “compreendido” (atéon<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong> humana é capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a divinda<strong>de</strong>) a partir do momento que oindivíduo <strong>de</strong>dicar-se à fé. Esta “compreensão” se tornará medida <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>e, <strong>de</strong>sta maneira, constituirá um telos, como foi afirmado. Quando este telos passa avigorar na existência individual, nada que pertença à finitu<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá atingir este “eu”,pois agora ele está acima do geral, acima da Ética.


40A paixão paradoxal da inteligência choca-se, portanto, constantemente contraeste <strong>de</strong>sconhecido, que <strong>de</strong>certo existe, mas que também é <strong>de</strong>sconhecido, enesta medida inexistente. A inteligência não po<strong>de</strong> ir mais longe; mas o seusentido do paradoxo leva-a a aproximar-se do obstáculo e ocupar-se <strong>de</strong>le.Porque, preten<strong>de</strong>r exprimir a sua relação com ele negando a existência <strong>de</strong>ste<strong>de</strong>sconhecido não dá certo, visto que o enunciado <strong>de</strong>sta negação envolveprecisamente uma relação. Mas o que é então este <strong>de</strong>sconhecido (pois dizerque ele é o Deus significa simplesmente dizer que ele para nós é<strong>de</strong>sconhecido). Enunciando-se sobre ele que ele é o <strong>de</strong>sconhecido, dado quenão se po<strong>de</strong> conhecê-lo, e que, mesmo assim se pu<strong>de</strong>sse conhecê-lo, não sepo<strong>de</strong>ria enunciá-lo, a paixão não se dará por satisfeita, embora ela tenhacaptado corretamente o <strong>de</strong>sconhecido como limite: mas o limite é justamenteo tormento da paixão, ainda que ao mesmo tempo seu incitamento. E, <strong>no</strong>entanto, ela não consegue ir mais adiante, quer ela arrisque uma saída vianegationis, quer via eminentiae (KERKEGAARD, 1995, 70-71).O paradoxo é “o limite das relações que um existente mantém com umaverda<strong>de</strong> eterna essencial” (FARAGO, 2006, 166). Por esta razão, Kierkegaard <strong>de</strong>ixaclaro não haver o paradoxo em si; eternamente falando não há paradoxo. Este apenasexiste na esfera finita, ou seja, para a limitada compreensão humana. Po<strong>de</strong>mosconceituar o paradoxo como uma paralisação na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção, numaincapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assimilar algo ou algum conhecimento; o incompreensível, o inauditopara o conhecimento do homem 47 . O indivíduo vê-se diante <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>insondável pela especulação; não há linguagem <strong>de</strong> natureza objetiva que permita acomunicação entre o paradoxo e a investigação especulativa. A racionalida<strong>de</strong> encontrasesuspensa. Seu caráter <strong>de</strong> telos não se sustenta diante da realida<strong>de</strong> cristã. Quando a féavança, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> amadurecer, crescer e medrar, a Ética per<strong>de</strong> sua natureza <strong>de</strong>mediadora da realida<strong>de</strong> 48 . Apenas através da fé haverá tal possibilida<strong>de</strong>, e esta estádiretamente condicionada à energia que o homem concentra nela. Do ponto <strong>de</strong> vistadivi<strong>no</strong>, teocêntrico, não há paradoxo. Não há limites para o conhecimento divi<strong>no</strong>,nenhuma espécie <strong>de</strong> informação ou realida<strong>de</strong> está alheia a Deus e sua sabedoria, como<strong>no</strong>s afirma o pensador dinamarquês.47 O paradoxo, segundo Kierkegaard, é impossível <strong>de</strong> ser investigado por análises objetivas. Po<strong>de</strong> sercompreendido apenas subjetivamente, em que a interiorida<strong>de</strong>, por meio da fé, aceitará o paradoxo sem seescandalizar (o conceito <strong>de</strong> escândalo será melhor exposto <strong>no</strong> sub-capítulo seguinte).48 Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar esta evolução recordando o conceito <strong>de</strong> salto qualitativo. Houve uma mudança <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong> na realida<strong>de</strong> vivida. A Ética (leia-se estádio ético) foi superada em prol <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>superior (leia-se estádio religioso). Este segundo estágio representa o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual do homem, que apartir <strong>de</strong> então será <strong>de</strong>signado cavaleiro da fé, como ficará exposto adiante. Assim como há uma mudançada primeira “realida<strong>de</strong> humana” (estádio estético) em que o homem vivia para o imediato e para o <strong>de</strong>sejo,há o estágio ético, em que a Ética é suprema.


41A partir da exposição acima se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o paradoxo <strong>de</strong> duasmaneiras: o paradoxo relativo e o paradoxo absoluto. “O paradoxo relativo relaciona-secom a diferença relativa <strong>de</strong> pessoas mais ou me<strong>no</strong>s inteligentes, mas o paradoxoabsoluto, justamente enquanto absoluto, não po<strong>de</strong> se relacionar senão com a diferençaabsoluta pela qual o homem se distingue <strong>de</strong> Deus e não com a disputa entre homenspara saber se um é um pouco mais inteligente do que o outro” (REICHMANN, 1971,246). O paradoxo absoluto, que interessa à presente pesquisa, é o paradoxo do homem-Deus, do Deus que se fez carne, do eter<strong>no</strong> que assume um corpo temporal.O paradoxo da fé consiste, portanto, em que o indivíduo é superior ao geral,<strong>de</strong> maneira que, para recordar uma distinção dogmática hoje já raramenteusada, o indivíduo <strong>de</strong>termina a sua relação com o geral tomando comoreferência o absoluto, e não a relação ao absoluto em referência ao geral.Po<strong>de</strong> ainda formular-se o paradoxo dizendo que há um <strong>de</strong>ver absoluto paracom Deus. Porque, nesse <strong>de</strong>ver, o indivíduo se refere como tal absolutamenteao absoluto. Nestas condições, quando se diz que é um <strong>de</strong>ver amar a Deus,exprime-se algo que difere do anteriormente dito. Porque se esse <strong>de</strong>ver éabsoluto, a moral encontra-se rebaixada ao relativo. De qualquer modo, nãose segue daí que a moral <strong>de</strong>va ser abolida, mas recebe uma expressão muitodiferente, a do paradoxo. De forma que, por exemplo, o amor para com Deuspo<strong>de</strong> levar o Cavaleiro da Fé a dar ao próximo a expressão contrária do que,do ponto <strong>de</strong> vista moral, é o seu <strong>de</strong>ver (KIERKEGAARD, 1979, 151).Objetivamente falando, o termo paradoxo per<strong>de</strong> sua associação àverda<strong>de</strong>. Assume o papel <strong>de</strong> uma quimera. Desqualificada, a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> neste casoencontra-se <strong>de</strong>sterrada. Na busca pela verda<strong>de</strong>, a pretensão cientificista passará a agirpor aproximações. Um elemento passível <strong>de</strong> ser objetivado é igualmente sujeito ao<strong>de</strong>vir. Assim, trata-se <strong>de</strong> um elemento inacabado. Neste caso, não se po<strong>de</strong> afirmar que averda<strong>de</strong> repousa <strong>no</strong> indivíduo (apesar <strong>de</strong>ste também ser um elemento inacabado); talapreciação é impossível, assim como a tensão da existência é alheia a esta mesmaanálise.As paixões, em seu cerne, apanágio do ser huma<strong>no</strong> e elemento que otorna reconhecível como um indivíduo, igualmente não po<strong>de</strong>m ser abarcadas por ummétodo especulativo. Um espírito especulativo esquece o que é o existir, ao me<strong>no</strong>s <strong>no</strong>smomentos <strong>de</strong> avi<strong>de</strong>z científica. A partir do momento que se concebe o eu e a existênciacomo abstrações, e daí se espera extrair uma verda<strong>de</strong> acerca da interiorida<strong>de</strong> humana, apesquisa torna-se um trabalho <strong>de</strong> Sísifo. Desta maneira não se dá testemunho nem da


42interiorida<strong>de</strong>, nem da existência; “este filho gerado pelo finito e pelo infinito, peloeter<strong>no</strong> e pelo temporal” (FARAGO, 2006, 86) acha-se num esforço contínuo que lhepermita sustentar a relação que lhe constitui harmoniosamente.1.4: Johannes <strong>de</strong> Silentio e a concepção <strong>de</strong> AbraãoNeste momento da pesquisa, a especulação encontra terre<strong>no</strong> hostil,cabendo apenas à análise subjetiva, sob a tutela da Dogmática, esclarecer os conceitosmencionados; porém, para uma melhor interpretação <strong>de</strong> conceitos futuros, faz-senecessária uma análise porme<strong>no</strong>rizada <strong>de</strong> Abraão. Dados históricos à parte, o que se<strong>de</strong>ve observar com olhos <strong>de</strong> Argos, são os elementos cujo campo <strong>de</strong> atuação é ainteriorida<strong>de</strong>.Por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus Abraão (naquele momento chamado Abrão)abandona a casa <strong>de</strong> seu pai, Taré, e vai para a terra <strong>de</strong> Canaã, como o Senhor lhe haviaor<strong>de</strong>nado. Abrão passa por perseguições, guerras e perigos <strong>de</strong> toda sorte, porém oSenhor nunca lhe abando<strong>no</strong>u, mantendo-o a salvo dos ímpios e dos escarnecedores; osseus anjos protegiam a Abrão e aos seus aliados e parentes, e o hebreu, apesar <strong>de</strong>exposto a gran<strong>de</strong>s riscos, nada sofreu, pois a justiça divina tinha-o por bemaventurado 49 .A or<strong>de</strong>m divina, o holocausto exigido, o sofrimento enredado, a solidão,a angústia e o <strong>de</strong>sespero que envolviam Abraão e, por fim, o reconhecimento <strong>de</strong> Deus ea recompensa eterna con<strong>de</strong>nsam num só caso alguns dos principais conceitos analisados49 Des<strong>de</strong> a saída da casa <strong>de</strong> seu pai até a or<strong>de</strong>m do sacrifício <strong>de</strong> Isaac, muitas coisas se passaram na vida<strong>de</strong> Abrão. Foi para o Egito, <strong>de</strong>rrotou reis, fez alianças, teve outro filho com Agar, escrava <strong>de</strong> sua mulher,Sara, e a ele <strong>de</strong>u o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Ismael. Quando o Senhor afirma a Abrão que ele será o pai <strong>de</strong> uma multidão<strong>de</strong> povos, Deus passa a chamá-lo <strong>de</strong> Abraão. Foi circuncidado e or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que o mesmo fosse feito comtodos os homens <strong>de</strong> sua casa. Rogou por Sodoma e interce<strong>de</strong>u por Abimelec junto ao Senhor. Então,quando Abraão tinha cem a<strong>no</strong>s Deus aparece a ele e lhe fala sobre o nascimento <strong>de</strong> Isaac. Os episódiosanteriores ao nascimento <strong>de</strong> Isaac foram expostos rapidamente por não serem tema do presente trabalho.Porém, tal exposição fazia-se necessária para que ficasse claro ao leitor a aliança que havia entre Deus e opatriarca hebreu.


43por Kierkegaard. Os conceitos citados constituíram, juntamente com seus respectivos<strong>de</strong>sdobramentos, os objetos da análise <strong>de</strong>senvolvida <strong>no</strong> presente subcapítulo. Outroelemento importante da investigação que se segue é o autor da obra, o enigmáticoJohannes <strong>de</strong> Silentio.Segundo Kierkegaard, o referido autor não é um crente fervoroso, apenaso “observador” feliz <strong>de</strong> um fato sublime. Assim como o romantismo cantou as belezasdo amor, Silentio canta as belezas da fé. Johannes <strong>de</strong> Silentio se <strong>de</strong>clara um “poeta dafé”. Sua produção possui um caráter estético e não religioso, apesar do tema da obra emquestão. Não se <strong>de</strong>ve esquecer que este é o mesmo autor da obra Diário <strong>de</strong> um sedutor,produção que versa sobre a sedução e o amor. Desta maneira, po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r aatitu<strong>de</strong> poética do autor como uma característica capaz <strong>de</strong> manifestar-se tanto <strong>no</strong> terre<strong>no</strong>estético quanto <strong>no</strong> religioso. Na poesia muitos se tornaram heróis por causa <strong>de</strong> umajovem, mas, segundo Kierkegaard, nenhum se tor<strong>no</strong>u herói por causa <strong>de</strong> sua fé. O autorpseudônimo tenta suprir esta falta da maneira que lhe é possível. Po<strong>de</strong>-se dizer que aaura poética da construção <strong>kierkegaard</strong>iana encontra seu representante em Silentio.O próprio <strong>no</strong>me do autor representa a intenção, Silentio, <strong>de</strong> acordo com osilêncio e a consequente solidão <strong>de</strong> quem se <strong>de</strong>dica à fé. Remete ao silêncio queacompanha a religiosida<strong>de</strong>. A verda<strong>de</strong>ira oração não se faz <strong>de</strong> requerimentos ereivindicações, o homem <strong>de</strong> fé não é um mendigo. No silêncio, segundo Kierkegaard, oindivíduo é mais receptivo ao eco da eternida<strong>de</strong>, a palavra divina que se encontra alémdos sermões paroquiais. Vai além da imediatida<strong>de</strong> e representa a própria singularida<strong>de</strong> eimersão em si.Também se po<strong>de</strong> observar o silêncio da sedução cavalheiresca, temacaracterístico dos poetas e seus sedutores reflexivos, personificado nas obras<strong>kierkegaard</strong>ianas por D. Juan. Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar o porquê <strong>de</strong> um poeta e não um filósofoser o responsável pela obra Temor e tremor. O filósofo esmiúça e analisa, conceitua econclui. O poeta, em seu livre poetar, faz-se capaz <strong>de</strong> um elogio sincero, puro e,algumas vezes, i<strong>no</strong>cente. Nada cria, mas é <strong>de</strong>positário fiel dos feitos heróicos que lhesão confiados 50 . Por não ser capaz <strong>de</strong> realizar o feito do herói, nem <strong>de</strong> acompanhá-lo em50 “Silentio será o poeta que vai louvar a beleza da fé <strong>de</strong> Abraão, tal como fizeram Platão e Xe<strong>no</strong>fontecom Sócrates. O poeta sempre canta o herói e não <strong>de</strong>ixa que suas lutas caiam <strong>no</strong> esquecimento” (DEPAULA, 2009, 101). O elogio <strong>de</strong> Silentio traz em seu âmago a admiração e paixão que o poeta <strong>de</strong>dica ao


44tal empresa, se satisfaz em manter a memória do herói sempre viva e presente aos<strong>de</strong>mais, para que eles também participem, mesmo na forma <strong>de</strong> espectadores, <strong>de</strong> suaescolha.O poeta não faz subir nada <strong>de</strong> seu próprio fundo, porém guarda zelosamenteaquilo que lhe é entregue sob custódia. Vai pela escolha <strong>de</strong> seu coração;achado o objeto <strong>de</strong> sua pesquisa segue, <strong>de</strong> porta em porta, a recitar os seusversos e discursos a fim <strong>de</strong> que todos tomem parte em sua admiração peloherói e sintam-se orgulhosos <strong>de</strong>le também. Esta é a sua ativida<strong>de</strong>, a suahumil<strong>de</strong> tarefa, seu leal serviço na mansão do herói. Mantém-se fiel ao seuamor e combate diuturnamente contra as armadilhas do esquecimento, ávido<strong>de</strong> lhe arrebatar o herói. Des<strong>de</strong> que está cumprida a sua missão, entra na suacompanhia. E o herói ama-o do mesmo modo com amor i<strong>de</strong>nticamente fiel,pois também para ele, o herói, o poeta é o melhor do seu ser; como umaapagada lembrança, com certeza, porém tão transfigurado quanto ele. Poreste motivo não será olvidado dos que foram gran<strong>de</strong>s. E se é necessáriotempo, se ainda as nuvens da incompreensão apagam a figura do herói, virá,contudo, aquele que o amou e tanto com maior fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> se ligará a elequanto maior for o seu atraso (KIERKEGAARD, 1964, 35-36).Deter-se-á por um momento <strong>no</strong> objeto do poetar e na inclinação pessoaldo poeta. O poeta não faz surgir <strong>de</strong> si o heroísmo cantado em suas obras; Silentioadmite em algumas passagens da obra Temor e tremor não possuir a fé que estálouvando. Exemplificando, assim como Shakespeare não viveu o amor que Romeu<strong>de</strong>dicava a Julieta, Silentio não possuía a fé que Abraão possuiu.Seu leal serviço na mansão do herói é a fragilida<strong>de</strong> e a comoção que seusversos po<strong>de</strong>m causar <strong>no</strong>s leitores da gesta do herói. O poeta canta suas façanhas, masnão é capaz <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar em sua <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. Po<strong>de</strong> narrar aquele momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro,em que o herói encontra-se em perigo, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o amor que inflama seu coração eencharca seus olhos; quase po<strong>de</strong>mos sentir o gosto amargo na boca que o herói sentiudiante do terrível que se aproximava, po<strong>de</strong> mostrar ao seu leitor que o que o amor exige<strong>de</strong>ve ser pago a preço <strong>de</strong> alma. Porém, o “eu” que põe em movimento tamanhoheroísmo, isto é vedado ao poeta <strong>de</strong>screver. A procela que começa neste “eu” quando arealida<strong>de</strong> o constrange diante do sacrifício exigido, isto lhe escapa à <strong>de</strong>scrição. O queele traz <strong>no</strong> fundo do peito, “<strong>no</strong> coração do próprio coração” (SHAKESPEARE, 2010,25), apenas o salto qualitativo é testemunha.herói. Zela pela causa do herói e sai em sua <strong>de</strong>fesa sempre que necessário, afastando o esquecimento,tornando gran<strong>de</strong> o seu feito e impedindo que sua luta seja olvidada.


451.5: O salto qualitativo e seus <strong>de</strong>sdobramentos dogmáticosVolte-se aos elementos subjetivos. A or<strong>de</strong>m divina se auto-<strong>de</strong>fine. É algosublime e impossível <strong>de</strong> ser abrangido por qualquer tentativa objetivista que possa serempregada. Não participa do cálculo huma<strong>no</strong>. Kierkegaard bem o compreen<strong>de</strong>u eempreen<strong>de</strong> uma análise pelos elementos subjetivos que entram em ação na solidão dosacrifício. Admite a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r Abraão e seu ato e <strong>de</strong>tém-se naesfera paradoxal que paira em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>le. Uma ruptura na realida<strong>de</strong> finita e sua aberturaao infinito se manifesta. É o que Kierkegaard <strong>de</strong><strong>no</strong>mina salto qualitativo 51 . Com amudança <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificada na realida<strong>de</strong> humana, o salto qualitativo conduz oindivíduo ao terre<strong>no</strong> firme e familiar sobre o qual este sempre esteve: a parcela doEter<strong>no</strong> confiada a ele por Deus na forma <strong>de</strong> um eu.O salto qualitativo eleva o homem. O finito e o infinito estão ao seudispor. Esta <strong>no</strong>va qualida<strong>de</strong> representa uma fé que não significa uma renúncia, umanegação. A fé, <strong>de</strong>scrita por Kierkegaard como encontrada em Abraão, abre mão dofinito não <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sapego absoluto, porém <strong>de</strong> uma certeza subjetiva <strong>de</strong> tudorecuperar.Não obstante tudo isso, Abraão creu e creu para esta existência. Se a sua fédissesse respeito à vida futura, ter-se-ia facilmente <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> tudo, para<strong>de</strong>ixar rapidamente um mundo ao qual já não pertencia. Não era, porém,<strong>de</strong>ste tipo a fé <strong>de</strong> Abraão, se porventura isto é fé. Para dizer a verda<strong>de</strong>, não setrata nesse caso <strong>de</strong> fé, porém somente <strong>de</strong> remota possibilida<strong>de</strong> que pressenteseu objeto <strong>no</strong> horizonte distante, ainda que separado <strong>de</strong>le por um abismoon<strong>de</strong> se agita o <strong>de</strong>sespero. A fé <strong>de</strong> Abraão era para esta existência; acreditavaque envelheceria em sua terra, com honras e com o bem querer <strong>de</strong> seu povo,não esquecido pela geração <strong>de</strong> Isaac, o seu mais arraigado amor nessaexistência, ao qual abraçava com tal afeto que é insuficiente dizer quecumpria com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> pai conforme o espírito do texto: “o filhoao qual amas”. Jacó foi progenitor <strong>de</strong> doze filhos e amou apenas um. Abraãoteve apenas um, ao qual amou” (KIERKEGAARD, 1964, 39).51 O conceito <strong>de</strong> salto qualitativo será amplamente explorado por Kierkegaard por ser uma condição parao <strong>de</strong>spertar espiritual inerente ao homem. O salto qualitativo po<strong>de</strong> ser compreendido como uma ruptura,uma elevação. A mudança na qualida<strong>de</strong> é exigida para a inserção <strong>no</strong> estágio existencial subsequente, asaber, para o estágio religioso (como será exposto adiante).


46Ao abrir mão do finito em prol do infinito, recupera o primeiro por meiodo absurdo, a saber, da intervenção divina, “conhecimento imediato <strong>de</strong> Deus <strong>no</strong> tempo”(REICHMANN, 1971, III). Quando o paradoxo e o entendimento huma<strong>no</strong> relacionamse<strong>de</strong> maneira harmoniosa, <strong>de</strong>sta influência recíproca surgirá a paixão sublime, a saber,a fé. Na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana o paradoxo e o absurdo encontram seu antípoda <strong>no</strong>escândalo. “Se a inteligência nega o paradoxo, julgando-o irracional, o resultado vem aser uma ‘paixão dolorosa’: o ‘escândalo do paradoxo”’ (FARAGO, 2006, 174).(...) Quer o escandalizado fique aí sentado esmagado, e quase como ummendigo crave os olhos <strong>no</strong> paradoxo, petrificado em seu sofrimento, quer elese arme com o escárnio e alveje com os dardos da pilhéria, lançando-os comoque à distância – ele está pa<strong>de</strong>cendo, e não à distância. Quer o escândalochegue e arranque do escandalizado a última migalha <strong>de</strong> consolo e alegria,quer o fortaleça, o escândalo é, mesmo assim, um pa<strong>de</strong>cimento; ele lutoucontra o mais forte, e o estado <strong>de</strong> suas forças correspon<strong>de</strong>, <strong>no</strong> aspectocorporal, ao <strong>de</strong> um lutador que teve a espinha dorsal quebrada, o que, diga-se<strong>de</strong> passagem, proporciona uma elasticida<strong>de</strong> toda especial (KIERKEGAARD,1995, 77).Trata-se <strong>de</strong> uma paixão infeliz, parente da inveja; uma admiração quedissimula. O indivíduo é incapaz <strong>de</strong> crer, então se escandaliza. Neste caso, o indivíduo éum pa<strong>de</strong>cente. Segundo o filósofo dinamarquês, mesmo quando o escândalo manifestase<strong>de</strong> maneira profunda e refinada, sua natureza é um pa<strong>de</strong>cimento. Não <strong>de</strong>vemosesperar, segundo Kierkegaard, que o homem conheça por si só a natureza <strong>de</strong>stepa<strong>de</strong>cimento. Mesmo por que sua natureza não repousa na inteligência, mas <strong>no</strong> próprioparadoxo. “As palavras do escandalizado não vêm <strong>de</strong>le próprio, mas vêm do paradoxo,assim como aquele que faz caricaturas <strong>de</strong> alguém não inventa nada, mas apenas copia ooutro às avessas” (KIERKEGAARD, 1995, 78).Há <strong>no</strong> homem a presença imediata <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> transcendência, do infinito<strong>no</strong> finito, e <strong>de</strong>ste modo ele é à semelhança <strong>de</strong> Deus (be-tzelem, em hebraico).Disposição específica do huma<strong>no</strong>, a semelhança <strong>de</strong>sperta o homem para asuperação em direção ao além em uma transcendência que é preciso evitar‘materializar’ em uma representação. Esta capacida<strong>de</strong> do homem em teracesso à transcendência ou à autotranscendência o <strong>de</strong>fine como uma estruturaessencialmente aberta. É precisamente isso que se <strong>de</strong>signa com a palavra‘espírito’, cuja capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar é constitutiva da natureza do homeme totalmente estranha ao animal. É uma exigência <strong>de</strong> realizar aquilo que aindanão passa <strong>de</strong> um dado potencial. O homem não po<strong>de</strong>ria ser um simplesanimal nem um ser absolutamente natural; <strong>de</strong>ve ser, ao contrário, umacriação divina, <strong>de</strong>ve nascer <strong>de</strong> Deus. Por este motivo, na gesta <strong>de</strong> Abraão,


47explorada por Kierkegaard em Temor e tremor, ele, Isaac, não po<strong>de</strong>ria sersacrificado e, por isso, o texto do Genesis faz surgir um carneiro do meio doespinheiro. Po<strong>de</strong>-se exprimir a mesma coisa também dizendo que é chamadoa uma existência escatológica, nas fronteiras do mundo finito, <strong>no</strong> domínio doúltimo, do seu fim último (eschaton) (FARAGO, 2006, 89).O sacrifício exigido e o sofrimento envolvido também constituem dadosimportantes. Constituem a essência da or<strong>de</strong>m divina. O homem tem apenas sua fé paraoferecer à divinda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vendo possuir uma <strong>de</strong>voção inabalável. A divinda<strong>de</strong>, mesmoconhecendo cada um intimamente, exige uma situação em que essa fé será provada e<strong>de</strong>verá permanecer imaculada. Assim, o sofrimento surge na realida<strong>de</strong> humana 52 . Osofrimento paira em tor<strong>no</strong> do homem, emanando da <strong>de</strong>sarmonia da síntese, ou seja,emanando do claudicar <strong>de</strong> sua fé.Foi assim que, realizando minhas experiências, compreendi o religioso. Masqual é a relação com a i<strong>de</strong>ia, sobre a qual se po<strong>de</strong> questionar? Naturalmenteuma relação divina. O sofrimento encontra-se <strong>no</strong> próprio indivíduo, que não éum herói estético. Sua relação é uma relação com Deus. (...) Sei que do ponto<strong>de</strong> vista religioso, ele (o indivíduo) se relaciona assim com o sofrimentoporque posso apresentar dois homens que dizem a mesma coisa: Feuerbachque preconiza o princípio da saú<strong>de</strong> diz que a existência religiosa (antes, aexistência cristã) é uma historia <strong>de</strong> sofrimento constante. Ele vos solicita queconsi<strong>de</strong>reis somente a vida <strong>de</strong> Pascal. É suficiente. Pascal diz exatamente amesma coisa: o estado natural do cristão é o sofrimento (da mesma maneiraque a saú<strong>de</strong> é o do homem sensual), e Pascal foi um cristão e falou segundosua experiência cristã (REICHMANN, 1971, 151-152).Após o milagre produzido, a saber, Sara engravidar aos 70 a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,como <strong>no</strong>s relata o Livro do Gênesis, Deus or<strong>de</strong>na que esse milagre seja reduzido a nada.Exige que o “filho da promessa”, Isaac, seja sacrificado ao mesmo Deus que lhetrouxera à vida <strong>de</strong> maneira miraculosa. A trágica marcha a Morija exige <strong>de</strong> Abraão umafé inabalável. Diferentemente dos heróis trágicos (aos quais o presente trabalho sereportará adiante), Abraão não po<strong>de</strong> dividir seu fardo com ninguém. Não po<strong>de</strong> anunciar52 Vale lembrar que falamos sobre o homem consciente do seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual; que possui uma i<strong>de</strong>iaclara sobre o seu “eu”. Não faz abstrações sobre sua existência, não aceita seu “eu” como um enigmarebel<strong>de</strong> a qualquer introspecção. Em suma, não trai a divinda<strong>de</strong> vendo sua origem em energias poucoexplícitas; o homem <strong>de</strong> que se fala agora, po<strong>de</strong>-se chamá-lo <strong>de</strong> cristão.


48sua tragédia nem mesmo almejar reconhecimento, pois não espera nada em troca,apenas provar sua fé e seu amor a Deus 53 .A alegria acaba, <strong>no</strong> entanto, por chegar, ela tem sempre a última palavra.Porque se nenhuma escola dura tanto tempo como a escola do sofrimento,nenhuma outra <strong>no</strong>s prepara para a vida eterna, e é finalmente possível que naescola da eternida<strong>de</strong> o discípulo ressuscite. Nem a filosofia, nem a ciênciaformam <strong>de</strong> fato para a eternida<strong>de</strong>. Não há outro mestre para isso além dosofrimento e a obediência que ele <strong>no</strong>s inculca. Isto é tão verda<strong>de</strong>iro queaquele que foi e continua sendo a verda<strong>de</strong>, aquele que sabia tudo, acreditouser boa uma única coisa: apren<strong>de</strong>u a obediência pelas tribulações que sofreu(MESNARD, 1953, 76).Apenas o sofrimento <strong>de</strong> Abraão é testemunha da or<strong>de</strong>m. Po<strong>de</strong>mosafirmar que a fé exige sofrimento. No caso do patriarca hebreu esta verda<strong>de</strong> foi levadaàs últimas consequências. O sofrimento e infelicida<strong>de</strong> que se abateriam sobre elepartiriam <strong>de</strong> si mesmo, já que suas mãos <strong>de</strong>sfeririam o golpe fatal em Isaac. Kierkegaardutiliza o termo escola da eternida<strong>de</strong> para exprimir o significado correto que osofrimento exerceu na existência <strong>de</strong> Abraão, como na existência <strong>de</strong> todos os posterioresa ele que se <strong>de</strong>dicaram (e se <strong>de</strong>dicam) à paixão sublime, a saber, a fé. Abraão aten<strong>de</strong> aochamado <strong>de</strong> Deus, abandona os estágios finitos da realida<strong>de</strong> humana 54 e dirige suaexistência segundo os ditames <strong>de</strong> sua fé.Neste processo <strong>de</strong> autoconhecimento que o sofrimento exige do homempo<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar dois movimentos distintos: num primeiro momento o sofrimentoinculca <strong>no</strong> sofredor uma <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> obediência da qual a fé se valerá para que seusdogmas sejam passíveis <strong>de</strong> compreensão por parte do indivíduo; também gera umaauto-reflexão capaz <strong>de</strong> fazer-<strong>no</strong>s superar a troça e o escárnio que o indivíduo pa<strong>de</strong>ce emvários momentos <strong>de</strong> sua existência. Enquanto sofre, o homem permeia sua interiorida<strong>de</strong>em busca da causa <strong>de</strong> seu sofrer e, logo após, almeja uma ação que interrompa esteprocesso calamitoso. Em outras palavras, o sofrimento é um dos estágios da fé. Sofrerfaz parte da <strong>no</strong>ssa natureza enquanto homens, e isto será superado apenas quando a fé53 Conforme a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar o cavaleiro da fé como aquele que se renegaa si próprio e se sacrifica ao <strong>de</strong>ver; renuncia ao finito para alcançar o infinito. O isolamento será seuâmbito, não haverá quem o console ou quem chore por sua dor. O cavaleiro da fé encontra-se sozinho.54 Trata-se do estágio estético, estágio ético e estágio religioso. Cada estágio representa uma realida<strong>de</strong>humana e cada um move-se segundo uma perspectiva própria. O primeiro segundo o <strong>de</strong>sejo, o segundoconforme a ética e o terceiro <strong>de</strong> acordo com a fé. Os dois primeiros são falhos e superáveis; <strong>no</strong> terceiroestágio observa-se uma fé madura e capaz <strong>de</strong> guiar o homem ao seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual.


49<strong>no</strong>s parecer tão comum quanto o próprio sofrimento. Foi do sofrimento que o próprioDeus se valeu para ensinar ao seu filho a verda<strong>de</strong>ira <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> obediência, por isso a<strong>no</strong>menclatura escola da eternida<strong>de</strong>.(...) A obediência humana, eis o que ele lhe ensi<strong>no</strong>u. Porque a conformida<strong>de</strong>da sua vonta<strong>de</strong> divina com a do seu Pai não é certamente a obediência comonós a compreen<strong>de</strong>mos. A obediência pertence, portanto, ao seu rebaixamento,porque se sabe que ele se rebaixou e se tor<strong>no</strong>u obediente. Mas o seurebaixamento é a condição humana: assim, para o homem perante Deus, aobediência ensina apenas o sofrimento, e se isso é verda<strong>de</strong> em relaçãodaquele que foi a pureza mesma, é muito mais quando se trata <strong>de</strong> umpecador: o sofrimento é, portanto, a única escola da eternida<strong>de</strong>. Porque aeternida<strong>de</strong> postula a fé, mas a fé postula a obediência. A obediência não po<strong>de</strong>conceber-se fora do sofrimento, a fé fora da obediência e a eternida<strong>de</strong> fora dafé. Mas <strong>no</strong> sofrimento a obediência é verda<strong>de</strong>iramente obediência, naobediência a fé é a fé e na fé eternida<strong>de</strong> é verda<strong>de</strong>iramente eternida<strong>de</strong>(MESNARD, 1953, 77).A gesta <strong>de</strong> Abraão é cantada como um dos milagres da fé. E o título <strong>de</strong>pai da fé que lhe é atribuído com certeza não lhe foi cedido em vão. Os conceitosanalisados culminam <strong>no</strong> próprio sacrifício. Cabe agora a análise do ato e dos fatos. Omais importante permanece submerso, oculto. O paradoxo eleva o homem acima dogeral e não só avaliza, como também santifica os atos or<strong>de</strong>nados por Deus.1.6: O esforço <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> a favor do bom andamento da análise subjetivaComo compreen<strong>de</strong>r essas informações a partir da filosofia? Comoconceituá-las e interpretá-las filosoficamente à medida que a investigação avança?Como interpretar a eternida<strong>de</strong> sem paralisar o passado, o presente e o futuro? Sócratespo<strong>de</strong>rá ajudar neste trabalho. Como mencionado, Sócrates participa do <strong>pensamento</strong><strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>, <strong>de</strong>ntre outras maneiras, como representante da ironia; “aquele quechega à i<strong>de</strong>ia da dialética, mas não <strong>de</strong>senvolve a dialética da i<strong>de</strong>ia” (DE PAULA, 2009,71). Porém, neste momento, outras características do socratismo serão objeto <strong>de</strong> análise.


50O que <strong>no</strong>s interessa agora é o Sócrates crítico das instituições e do modo grego <strong>de</strong>pensar. O Sócrates que impele os homens a voltarem-se a si mesmos. A ocupaçãoenamorada <strong>de</strong> instruir o indivíduo sobre seu próprio ser. Hegel, Herr Professor, <strong>no</strong>sapresenta uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Sócrates que provavelmente influenciou o jovem dinamarquêsem seus estudos sobre o socratismo.Sócrates seria um momento crítico do espírito retornando para si mesmo,constituindo-se em uma unida<strong>de</strong> negativa e individual. O fim do objetivoseria a condição necessária tanto para a dialética como para a sofística,ocorrendo, nesse sentido, o fato do eu socrático substituir a especulação e oestudo da natureza. O princípio socrático por excelência será o homem comopropósito (tal como aparece <strong>no</strong> Protágoras <strong>de</strong> Platão) e a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>infinita; o princípio socrático consiste, pois, em que o homem <strong>de</strong>scubra, apartir <strong>de</strong> si mesmo, tanto o fim <strong>de</strong> seus atos como o fim último do universo,em que ele chegue através <strong>de</strong> si mesmo à verda<strong>de</strong> (HEGEL, 1985, 39).Kierkegaard, através <strong>de</strong> sua filosofia, empreen<strong>de</strong>rá um esforço socráticoa fim <strong>de</strong> positivar, validar sua análise filosófica. Comecemos pelas semelhanças. Assimcomo Sócrates muitas vezes é citado enquanto crítico do Estado grego, Kierkegaardtambém dirigia severas censuras ao Estado dinamarquês. Ambos criticaram acontemporaneida<strong>de</strong> em que viveram e seu modo <strong>de</strong> pensar. Ambos acreditavam na<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> infinita e na imortalida<strong>de</strong> da alma (<strong>de</strong> maneiras distintas, é claro).Kierkegaard concentrou boa parte <strong>de</strong> suas críticas à Igreja Protestante daDinamarca a qual, segundo ele, teria corrompido as Sagradas Escrituras. Sócrates éacusado <strong>de</strong> não reconhecer os <strong>de</strong>uses reconhecidos pelo Estado e <strong>de</strong> introduzir <strong>no</strong>vasdivinda<strong>de</strong>s. A i<strong>de</strong>ia da superiorida<strong>de</strong> da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificada em ambosos pensadores. A i<strong>de</strong>ia pagã <strong>de</strong> Sócrates os afasta, porém o dinamarquês se valerá <strong>de</strong>concepções socráticas em várias passagens <strong>de</strong> sua produção intelectual.Po<strong>de</strong>-se dizer que o <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong> ambos convida a consciência areconhecer-se como consciência. Convida-a às exigências e contradições que a vida <strong>no</strong>simpõe e ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> enfrentar a morte diretamente. É lícito banir este esforço da esferafilosófica? Não há nada <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong> Kierkegaard que remeta ao esforçofilosófico? Não seria então o caso <strong>de</strong> localizá-lo corretamente <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> huma<strong>no</strong>?Kierkegaard mantém uma comunicação viva entre a filosofia e a existência; alguém quetenta empreen<strong>de</strong>r uma construção intelectual a respeito da existência. “A obra <strong>de</strong>


51Kierkegaard <strong>no</strong>s faz ouvir uma voz: é um homem que fala nessa obra. Po<strong>de</strong>-se comcerteza tirar uma filosofia <strong>de</strong> A doença mortal, uma psicologia do Diário <strong>de</strong> um sedutor,assim como <strong>de</strong> O conceito <strong>de</strong> angústia; uma teologia ou uma ética <strong>de</strong> A escola docristianismo, dos Evangelhos do sofrimento. Os Discursos edificantes po<strong>de</strong>m <strong>no</strong>ssugerir uma arquitetura da alma que se há <strong>de</strong> construir” (FARAGO, 2006, 234). Taisinformações corroboram o esforço do dinamarquês em construir um arcabouçofilosófico acerca da existência, e não pregar uma ataraxia que beira os domínios dafábula. É preciso evitar <strong>pensamento</strong>s que, aliados a um caprichoso golpe <strong>de</strong> vista,rebaixem a filosofia da existência a um doce hábito <strong>de</strong> sofrer.1.7: A angústia e o <strong>de</strong>sespero envolvidos na gesta <strong>de</strong> Abraão e suas respectivasfunções <strong>de</strong> arautos da interiorida<strong>de</strong>.Quando dirigimos <strong>no</strong>ssa atenção a Abraão e ao seu sacrifício, a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong>interiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve assumir um papel fundamental. Devem vir à tona não apenas oselementos oriundos da or<strong>de</strong>m divina, mas também aqueles que já repousavam em seuâmago e que foram elevados após o ditame <strong>de</strong> Deus, a saber, a angústia e o <strong>de</strong>sespero.Segundo Kierkegaard, todos os homens pa<strong>de</strong>cem <strong>de</strong> angústia e <strong>de</strong>sespero; umadiscordância da síntese, um “<strong>de</strong>ixar-se seduzir” seja lá pelo que for, “um receio <strong>de</strong> nãose sabe o quê <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecido ou que nem se ousa conhecer” (KIERKEGAARD,2010b, 37), e não importa se tais sentimentos proporcionam o terror ou a doçura, elesencontram-se arraigados na natureza do “eu”. De acordo com Kierkegaard, talentendimento traz luz ao que fora <strong>de</strong>ixado em certa penumbra, pois conceber o homemcomo afetado pela angústia e o <strong>de</strong>sespero, e compreen<strong>de</strong>r essas moléstias espirituaiscomo oriundas da <strong>de</strong>sarmonia da síntese, é concebê-lo como espírito, portanto,“segundo a suprema exigência <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>” (KIERKEGAARD, 2010b, 38).Logo, angústia e <strong>de</strong>sespero também <strong>de</strong>verão ser qualificados segundo aconcepção que mais lhes aproxime da compreensão do homem exposta anteriormente, a


52saber, como espírito. “A concepção corrente do <strong>de</strong>sespero limita-se, pelo contrário, aaparência; é um ponto <strong>de</strong> vista superficial, e não uma concepção. Segundo ele cada um<strong>de</strong> nós será o primeiro a saber se é um <strong>de</strong>sesperado ou não. O homem que se diz<strong>de</strong>sesperado, ele crê que seja, mas basta que não creia, para passar por não o ser(KIEKEGAARD, 2010b, 38).De igual modo ocorre com a angústia. “A angústia é uma <strong>de</strong>terminaçãodo espírito que sonha, e pertence como tal à Psicologia. Na vigília está posta a diferençaentre meu eu e meu ‘outro’; <strong>no</strong> so<strong>no</strong>, está suspensa, e <strong>no</strong> sonho ele é um nada insinuado.A realida<strong>de</strong> efetiva do espírito se apresenta sempre como uma figura que tenta a suapossibilida<strong>de</strong>, mas se eva<strong>de</strong> logo que se queira captá-la, e é um nada que só po<strong>de</strong>angustiar (KIERKEGAARD, 2010a, 45). Como compreen<strong>de</strong>r estas afirmações tão<strong>de</strong>sanimadoras, a saber, <strong>de</strong> que todos os homens encontram-se em angústia e <strong>de</strong>sespero,sem abalar-se diante da existência 55 ?Fato que só será superado quando a fé for concebida como medida <strong>de</strong>todas as coisas. Nem mesmo Abraão, pai da fé, estava alheio a este <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>aparentemente trágico, porém <strong>de</strong> cunho divi<strong>no</strong>, como afirma o próprio Kierkegaard.Devido a sua natureza <strong>de</strong> síntese, é impossível analisar Abraão como alheio à angústia eao <strong>de</strong>sespero. Abraão não foi gran<strong>de</strong> por não ter compartilhado com o homem talrealida<strong>de</strong>, foi gran<strong>de</strong> por superá-las.Lemos na Escritura: e Deus quis provar Abraão e falou-lhe: Abraão, Abraão,on<strong>de</strong> estás? E Abraão retrucou: estou aqui! Tu, a quem o meu discurso édirigido, farias <strong>de</strong> modo idêntico? Não clamaria às montanhas: ‘escon<strong>de</strong>ime’,e às vertentes: ‘tombai sobre mim’ quando pressentisse chegarem <strong>de</strong>longe os golpes do <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>? Ou se tivesse maior fortaleza, não se fariapreguiçoso o teu pé ao avançar pela boa estrada? Não suspiraria ao lembrar oantigo caminho? E quando se fizesse ouvir o chamado, guardaria silêncio ourespon<strong>de</strong>ria, quiçá <strong>de</strong>masiado baixo, num sussurro? Abraão, contudo, nãorespon<strong>de</strong>u assim; contente e corajosamente, cheio <strong>de</strong> confiança e com vozplena exclamou: eis-me aqui! – Ainda se lê: e Abraão levantou-se muitocedo. Deu-se pressa como quem se dirige a uma festa e, <strong>de</strong> manhãzinha sedirige ao local <strong>de</strong>signado, na montanha <strong>de</strong> Morija (KIERKEGAARD, 1964,40).55Vale lembrar que <strong>no</strong> presente capítulo preten<strong>de</strong>-se analisar a angústia e o <strong>de</strong>sespero exclusivamentecomo exposto em Abraão. As dicotomias e bifurcações, bem como mecanismos <strong>de</strong> análise serãoabordados <strong>no</strong> segundo e terceiro capítulos, respectivamente.


53Devemos <strong>no</strong>s precaver contra concepções que associem a angústia àmiséria ou à perdição. Tais entendimentos não passam <strong>de</strong> compreensão vulgar. E quemos afirma apenas <strong>de</strong>monstra que nada conhece da angústia nem da infinitu<strong>de</strong>.Igualmente <strong>de</strong>ve-se rechaçar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que seria uma felicida<strong>de</strong> inexprimível o jamaister sido vitimado pela angústia. Pois <strong>de</strong>ste modo igualmente jamais se aproximaria dafé.Duas informações primordiais <strong>de</strong>vem ser expostas neste momento: 1) aangústia não possui um objeto <strong>de</strong>finido. Origina-se do nada, <strong>de</strong> um movimentosubjetivo; trata-se <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sarmonia da síntese, a saber, do eu, que <strong>de</strong> uma maneiraigualmente subjetiva volta-se para si próprio, perscruta a interiorida<strong>de</strong> humana e ali, <strong>no</strong>recanto mais particular, se aloja a enfermida<strong>de</strong>, a angústia; na alegria e nas tribulações aangústia faz-se presente. Por este motivo Kierkegaard compreen<strong>de</strong> a angústia comomedida da interiorida<strong>de</strong> humana. Quanto mais profundo se é, mais profundamente sesente até mesmo as pequenas feridas; 2) a angústia metamorfosear-se-á, <strong>de</strong> maneira aconstituir-se numa criada fiel, <strong>no</strong> momento em que o indivíduo atingir a fé. Movimentossubjetivos conduzirão o eu da finitu<strong>de</strong> à infinitu<strong>de</strong>, sendo a angústia o arauto <strong>de</strong> talelevação. “Aquele que é formado pela angústia, é formado pela possibilida<strong>de</strong>, e só quemé formado pela possibilida<strong>de</strong> está formado <strong>de</strong> acordo com a infinitu<strong>de</strong>”(KIERKEGAARD, 2010a, 169). Sendo o indivíduo formado pela angústia para a fé,com o auxílio da fé a angústia ensina o indivíduo a repousar na Providência.Po<strong>de</strong>-se afirmar que Abraão possuía uma alma sadia e orgulhosa, umaespiritualida<strong>de</strong> madura e zelosa, uma consciência distinta do seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> enquanto filho<strong>de</strong> Deus. Como, então, conceber Abraão como todos os <strong>de</strong>mais, envolto em angústia e<strong>de</strong>sespero? Como associar sua figura a estas manifestações <strong>de</strong> pouca fé? Devido à suanatureza humana. Uma natureza <strong>de</strong> síntese. Uma natureza insuficiente enquantoelemento gerador e conservador <strong>de</strong> si mesma. Tratam-se tais sentimentos <strong>de</strong><strong>de</strong>sarmonias <strong>no</strong> cerne da síntese, a saber, do “eu”. Mesmo estas paixões <strong>de</strong>masiadohumanas po<strong>de</strong>m servir ao crente como caminho seguro e agradável à fé. Por ser a fé apaixão sublime e suprema, aceitação do paradoxo e fim último da espiritualida<strong>de</strong>, écompreensível que a perfídia que acompanha a angústia e o <strong>de</strong>sespero passem por umprocesso <strong>de</strong> sublimação, em que a fé transmudará tais sentimentos em repouso e alegria.


541.8: As concepções <strong>de</strong> cavaleiro da fé e herói trágicoConforme a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, Abraão é a personificação docavaleiro da fé. Capaz <strong>de</strong> elevar-se acima do geral, abrir mão da finitu<strong>de</strong> e aceitar oparadoxo como verda<strong>de</strong> suprema. Para <strong>de</strong>pois tudo reconquistar através do absurdo.“Frequentemente realiza o movimento infinito, com tanta segurança e precisão queconsegue o finito sem que se possa suspeitar da existência <strong>de</strong> outra coisa”(KIERKEGAARD, 2010b, 55). Mas como compreen<strong>de</strong>r tal afirmação, tão obscura pornatureza? Em primeiro lugar <strong>de</strong>ve-se posicionar o conceito na ciência que lhe cabe. Omovimento <strong>de</strong>scrito acima é o salto qualitativo, que já foi explicado. Desta maneira,<strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar que Psicologia e Ética não po<strong>de</strong>rão explicar tal ato. Trata-se da fé eda sua originalida<strong>de</strong> <strong>no</strong> indivíduo; a Dogmática dará a última palavra. Este movimento,que necessita da participação da divinda<strong>de</strong>, é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar a infinitu<strong>de</strong> e, <strong>no</strong> fimdas contas, conserva a finitu<strong>de</strong> que se encontrava in suspenso. “Mas, quando aqualida<strong>de</strong> é posta, <strong>no</strong> mesmo instante o salto está voltado para <strong>de</strong>ntro da qualida<strong>de</strong> e épressuposto pela qualida<strong>de</strong>, e a qualida<strong>de</strong> pelo salto” (KIERKEGAARD, 2010a, 34).A fim <strong>de</strong> elucidar a diferença que existe entre o caminho da reflexão objetivae o da reflexão subjetiva, vou mostrar agora como a reflexão subjetiva faz seucaminho interiormente na interiorida<strong>de</strong>. A interiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sujeitoexistente culmina na paixão, à qual correspon<strong>de</strong> a verda<strong>de</strong> como umparadoxo. E o fato que a verda<strong>de</strong> torna-se um paradoxo repousa justamentesobre sua relação com o sujeito existente. Assim, um correspon<strong>de</strong> ao outro.Quem esquece que é um sujeito existente, a paixão o abandona e a verda<strong>de</strong><strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um paradoxo, mas o sujeito que conhece, <strong>de</strong> homem que eratransforma-se em uma entida<strong>de</strong> fantástica, e a verda<strong>de</strong>, um objeto fantásticopara o conhecimento <strong>de</strong>sta entida<strong>de</strong> fantástica (REICHMANN, 1971, 236).Abraão abriu mão <strong>de</strong> sua razão e <strong>de</strong> sua moralida<strong>de</strong> em prol <strong>de</strong> sua fé.Apesar <strong>de</strong> tudo conspirar contra ele, apesar do trágico <strong>de</strong>sfecho da “caravana dosofrimento” que se dirigia a Morija, Abraão acreditou. Não refletiu acerca da covardia<strong>de</strong> seu ato, <strong>de</strong>teve-se apenas na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Deus. Não meditou que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> consumadaa exigência não teria mais seu filho junto a si, acreditou que através do absurdoreceberia seu filho <strong>de</strong> volta. Não levou ao alto da montanha indicada os servos que o


55acompanhavam, apenas Isaac, pois apenas estes dois foram citados por Deus quando Eleor<strong>de</strong><strong>no</strong>u a Abraão. Em suma, abando<strong>no</strong>u o elemento objetivo, finito, munda<strong>no</strong> e<strong>de</strong>dicou-se exclusivamente ao eter<strong>no</strong>. Em sua solidão ciciava cânticos em louvor a suafé. Esta é a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> clamada por Kierkegaard e elogiada pelo poeta Johannes <strong>de</strong>Silentio. No momento que sua fé fora posta à prova nenhum artifício huma<strong>no</strong> po<strong>de</strong>rialhe ajudar.A resignação infinita é parecida com a camisa do velho conto: o fio é tecidocom lágrimas e lavado com lágrimas, a camisa também é cozida comlágrimas, ao cabo, protege melhor do que ferro e aço. O <strong>de</strong>feito da lenda éque um terceiro po<strong>de</strong> tecer o pa<strong>no</strong>. Ora, consiste o segredo da vida que cadaum <strong>de</strong>ve cozer a sua própria camisa e, coisa muito curiosa, o homem po<strong>de</strong>fazê-lo tão perfeitamente quanto a mulher. A resignação infinita implica orepouso, a paz e o consolo <strong>no</strong> seio da dor. (...) A resignação infinita é oúltimo estágio que prece<strong>de</strong> a fé, pois ninguém a alcança antes <strong>de</strong> ter realizadopreviamente este movimento; porque é na resignação infinita que, antes <strong>de</strong>tudo, tomo consciência do meu valor eter<strong>no</strong>, e só então se po<strong>de</strong> alcançar avida <strong>de</strong>ste mundo pela fé (KIERKEGAARD, 1979, 135).Como se lê nas obras <strong>kierkegaard</strong>ianas Temor e tremor e O conceito <strong>de</strong>angústia, além <strong>de</strong> em outras que possuem o mesmo tema, a resignação infinita nãoimplica fé; não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da fé para concretizar-se por tratar-se <strong>de</strong> algo anterior a esta.Apesar <strong>de</strong> ocorrer <strong>no</strong> âmago da interiorida<strong>de</strong> e contar fundamentalmente com a<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, não é um movimento espiritual, pois este é exatamente o movimentoprece<strong>de</strong>nte à consciência eterna, a saber, a consciência <strong>de</strong> um “eu” eter<strong>no</strong>. A resignaçãoinfinita é um movimento estritamente filosófico que o homem impõe a si mesmo. Umrecolher-se, ensimesmar-se, <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> aproximar-se cada vez mais do conhecimento<strong>de</strong> seu “eu”. Para executar tal movimento a fé não é necessária, conforme a filosofia<strong>kierkegaard</strong>iana, mas faz-se fundamental para a elevação do homem a partir <strong>de</strong>staconsciência.Novamente a questão acerca da objetivida<strong>de</strong>/<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> da presenteanálise assedia a investigação. Em poucas palavras po<strong>de</strong>-se afirmar que a objetivida<strong>de</strong><strong>de</strong>dicar-se-á ao contingente e a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> compreen<strong>de</strong>rá o essencial. A forçaontológica fundadora, <strong>no</strong> ponto mais profundo da interiorida<strong>de</strong>, conduzirá o homem daexistência à transcendência. Trata-se <strong>de</strong> uma transcendência inerente ao homem,imanente ao ser, elevando-o à espiritualida<strong>de</strong>. A diferença qualitativa agora se torna


56clara. A tarefa <strong>de</strong> unificação dos termos da síntese que compreen<strong>de</strong> o homem, a saber,finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong> será a me<strong>no</strong>r das empreitadas cabíveis à<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. Segundo Kierkegaard, seu papel principal é conduzir o “eu” à divinda<strong>de</strong>.Conduzir o homem do ser que ele é ao ser que ele <strong>de</strong>ve ser.Ao continuar analisando o sacrifício <strong>de</strong> Abraão moralmente tem-se aimpressão <strong>de</strong> que o patriarca hebreu mais parece um sonâmbulo que caminha emdireção ao abismo. A or<strong>de</strong>m a ser executada o conduz ao tormento, e ig<strong>no</strong>rar tal or<strong>de</strong>mrepresenta a danação eterna. Algo permanece obscuro aos espíritos <strong>de</strong>savisados: comoAbraão fora capaz <strong>de</strong> oferecer seu amado filho, Isaac, em holocausto? Como teria forçaspara erguer a mão e ferir o jovem corpo <strong>de</strong> Isaac <strong>de</strong> maneira mortal? SegundoKierkegaard, em sua obra Temor e tremor, duas conformida<strong>de</strong>s explicam a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>Abraão: “por amor a Deus, porque Este exigia esta prova <strong>de</strong> fé; e por amor a si própriopara realizar a prova” (KIERKEGAARD, 1964, 72). Deste amor surgem <strong>no</strong>vas provasdas diferenças entre o herói trágico e o cavaleiro da fé: o primeiro não mantém umarelação com a divinda<strong>de</strong>, não tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter-se em recolhimento, pois agemoralmente. Faz-se necessário que externe seus sentimentos. Comportamento contrárioobserva-se em Abraão. Des<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m divina, durante a lenta jornada até Morija até omomento em que Abraão saca a faca para <strong>de</strong>sferir o golpe. A tênue linha que distingueAbraão <strong>de</strong> um assassi<strong>no</strong> requer uma análise <strong>de</strong> sua característica subjetiva.Agame<strong>no</strong>n po<strong>de</strong> recolher prontamente a sua alma na convicção que <strong>de</strong>sejaagir; porém, ainda dispõe <strong>de</strong> tempo para consolar e reanimar. Abraão não opo<strong>de</strong>. Quando o seu coração está comovido, quando as suas palavras serãoum auxílio para o mundo todo, não se atreve a consolar, pois o que Sara,Eliezer e Isaac lhe diriam: ‘porque <strong>de</strong>sejas fazer tal coisa? Po<strong>de</strong>s dispensar-te<strong>de</strong> a fazer’. E, se em sua aflição <strong>de</strong>sejasse tomar um pouco <strong>de</strong> alento, abraçaros seres que ama antes do passo <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, estaria se arriscando a <strong>de</strong>spertar aterrível acusação <strong>de</strong> hipocrisia formulada por Sara, Eliezer e Isaac,escandalizados com o seu procedimento. Não po<strong>de</strong> falar. Não po<strong>de</strong> usarqualquer linguagem humana. Ainda que conhecesse todas que existem <strong>no</strong>mundo, ainda que os seres que ama o enten<strong>de</strong>ssem, não po<strong>de</strong>ria falar. A sualíngua é divina. Fala as línguas (KIERKEGAARD, 1964, 116).Quando é reclamado o sacrifício, o pai ou o rei o realizam <strong>de</strong> maneiraheróica. Agame<strong>no</strong>n e Brutus po<strong>de</strong>m exprimir a idéia do herói trágico 56 . Ambos agiram56 Agame<strong>no</strong>n e Brutus serão utilizados como personificações do herói trágico. Este também passa poruma terrível prova. Também <strong>de</strong>ve sacrificar algo. Porém, este sacrifício trata-se <strong>de</strong> abrir mão <strong>de</strong> um bem


57em <strong>no</strong>me <strong>de</strong> um bem superior. Romperam com a moral vigente em favor <strong>de</strong> uma moralmais elevada. Mas ainda assim a moral era o elemento vigorante. Não houve suspensãoou superação da moral. A moralida<strong>de</strong> continua como finalida<strong>de</strong> última. A conduta doherói trágico não representa, como <strong>no</strong> caso <strong>de</strong> Abraão, uma ruptura na realida<strong>de</strong> vivida,a saber, a superação do estágio ético e a <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong> representada pelo estágioreligioso. Não há salto qualitativo, pois não existe mudança na qualida<strong>de</strong>. O indivíduocontinua <strong>no</strong> geral. Po<strong>de</strong>-se sintetizar esse conceito da seguinte maneira: “o herói trágicoage ainda na esfera moral. Para ele toda expressão da moralida<strong>de</strong> possui o seu telos emuma expressão superior da moral” (KIERKEGAARD, 1964, 71).As <strong>de</strong>finições expostas acima, tanto <strong>de</strong> herói trágico como <strong>de</strong> cavaleiroda fé, concebem <strong>de</strong> maneira antípoda os dois conceitos. Abraão não po<strong>de</strong>rá serconsi<strong>de</strong>rado um herói trágico. A <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> o consi<strong>de</strong>rará um crente, a objetivida<strong>de</strong>um assassi<strong>no</strong> ou, <strong>no</strong> máximo, alguém que sacrificou um bem valioso visando um bemsuperior. O herói trágico dispõe do geral, que vem em seu socorro, lhe auxilia e lheconsola a dor; “o herói trágico renuncia a si próprio para dar expressão ao geral”(KIERKEGAARD, 1964, 85). Ele transmuda a moral; e para isso achou apoio <strong>no</strong> geral.O cavaleiro da fé vive uma situação diferente. Não encontra refúgio a não ser em simesmo. Não conta com o auxílio do geral, como <strong>no</strong> caso anterior. Para ele seria troça,escárnio e sofrimento; “o cavaleiro da fé renuncia ao geral para transformar-se emindivíduo” (KIERKEGAARD, 1964, 85).O herói trágico muito rápido termi<strong>no</strong>u o combate; efetuou o movimentoinfinito e agora encontra estabilida<strong>de</strong> <strong>no</strong> geral. Ao contrário, o cavaleiro da fésofre uma constante prova, a todo instante tem uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar,arrepen<strong>de</strong>ndo-se, ao imo do geral, e essa possibilida<strong>de</strong> tanto po<strong>de</strong> ser crisecomo verda<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong> pedir a quem quer que seja que o aclare, pois entãopôr-se-ia fora do paradoxo (KIERKEGAARD, 1964, 87).Abraão passou por todos os estágios até aproximar-se <strong>de</strong> maneira tãopura da sublimida<strong>de</strong>. Passou pelo sofrimento, pela resignação infinita, testemunhou oabsurdo e não se escandalizou. Tal comportamento fortaleceu sua fé e a tor<strong>no</strong>uem prol <strong>de</strong> um bem maior. Age para salvar seu povo, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o Estado ou para apaziguar os <strong>de</strong>usesirritados. Por este motivo o herói trágico, através <strong>de</strong>ste sacrifício, não suprime a moralida<strong>de</strong>, não seencontra acima do geral, mas sim torna-se o filho bem amado da ética. Neste caso não há uma transiçãodo estágio ético ao estágio religioso.


58inabalável. Atingiu o ponto em que Kierkegaard se refere ao homem como cavaleiro dafé. Deus se revia em Abraão, segundo Kierkegaard, tratava-se do eleito <strong>de</strong> Deus e, seuamado filho, Isaac, o “filho da promessa”. Não se po<strong>de</strong> conceber tal investigação semuma análise do terror contido em seu <strong>de</strong>sfecho.Se, na montanha <strong>de</strong> Morija, Abraão tivesse duvidado. Se, sem resolução,olhasse ao redor. Se, ao sacar a faca, por simples acaso, tivesse <strong>no</strong>tado apresença do cor<strong>de</strong>iro; e se Deus tivesse lhe permitido sacrificá-lo em lugar <strong>de</strong>Isaac – então teria tornado para casa e tudo voltaria ao que foraanteriormente. Teria Sara <strong>no</strong>vamente, conservaria Isaac e, não obstante, quemudança! O regresso seria apenas fuga, a salvação um simples acaso, arecompensa uma confusão e seu futuro, quiçá, a perdição. Não teria dadotestemunho nem da sua fé nem da graça <strong>de</strong> Deus, porém teria mostrado comoé terrível subir a montanha <strong>de</strong> Morija. Ela seria então citada não como oArarat, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansou a arca, porém como um lugar <strong>de</strong> assombro. Foi ali –diriam – que Abraão duvidou (KIERKEGAARD, 1964, 41).O cavaleiro da fé <strong>de</strong>sconhece o <strong>de</strong>sejo vão. Sua vonta<strong>de</strong> está emconformida<strong>de</strong> com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu Deus e esta harmonia que lhe conce<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> crer <strong>de</strong> maneira incondicional. Conce<strong>de</strong>-lhe também, segundo Kierkegaard, umaexistência singular, iluminada, absolutamente plena e cheia <strong>de</strong> vida. Abraão po<strong>de</strong>ria teroferecido a própria vida <strong>no</strong> lugar da vida <strong>de</strong> seu filho, po<strong>de</strong>ria ter percebido a presençado cor<strong>de</strong>iro que Deus provi<strong>de</strong>nciara antes <strong>de</strong> iniciar o ritual on<strong>de</strong> sacrificaria Isaac, mascomo seu <strong>de</strong>sejo não se afasta do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seu Deus, Abraão concentrou toda suaenergia em cumprir o ato or<strong>de</strong>nado. Tentar analisar <strong>de</strong> maneira objetiva o sacrifício <strong>de</strong>Abraão caracteriza um apelo vão à lógica, fadado ao fracasso e con<strong>de</strong>nado mesmo antes<strong>de</strong> pôr-se em movimento 57 .57 Em muitos momentos Kierkegaard assume ficar paralisado diante da gesta <strong>de</strong> Abraão. “Quandocomeço a meditar sobre Abraão sinto-me como que aniquilado. Caio a todo momento <strong>no</strong> paradoxoinaudito que é a substância da sua existência; a todo instante sinto-me rechaçado. E não obstante o meuapaixonado furor, o <strong>pensamento</strong> não consegue compreen<strong>de</strong>r este paradoxo nem a medida da espessura <strong>de</strong>um fio <strong>de</strong> cabelo (KIERKEGAARD, 1964, 48). O dinamarquês assume a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> “<strong>de</strong>spreparada” em apreen<strong>de</strong>r a sublimida<strong>de</strong> da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Abraão. O que dizer então<strong>de</strong> um mecanismo objetivo? É preciso fé para compreen<strong>de</strong>r a fé. Para compreen<strong>de</strong>r o sacrifício <strong>de</strong>Abraão, segundo Kierkegaard, é preciso empreen<strong>de</strong>r uma análise pelos caracteres subjetivos da questão eda reação <strong>de</strong>spertada em Abraão; sua atitu<strong>de</strong> quando sua fé fora posta à prova e o que estava em jogo,acatando ou rejeitando a or<strong>de</strong>m.


591.9: Uma análise da crítica à objetivação do elemento religioso e da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>como verda<strong>de</strong> na obra Temor e tremor.Deve-se ter clara a i<strong>de</strong>ia da questão envolta nesta crítica e, como foiprocedido anteriormente, localizá-la corretamente na esfera científica. Há um caráterhistórico que <strong>de</strong>ve ser levado em consi<strong>de</strong>ração. A partir do avanço do conhecimento,todos parecem sentir-se bem, e tornam-se cada vez mais objetivos. O indivíduoobjetiva-se em multidão, a Escritura em exegese, a fé em erudição; e o “eu”,estranhamente, foi mantido do lado <strong>de</strong> fora.Aquele que tinha fé teria visto sua fé ganhar força e vigor? Não, nem porme<strong>no</strong>s que seja. Melhor, foi colocado tão perigosamente neste vasto saber,nessa certeza que está diante da porta da fé e a cobiça, que terá necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> aplicação, <strong>de</strong> muito temor e tremor para não cair na tentação enão confundir o saber com a fé (REICHMANN, 1971, 210).A crítica neste momento se dá à análise objetiva da fé. Esta via conduz auma aproximação <strong>de</strong>sprovida do interesse pessoal infinito, que é exigência da fé. Po<strong>de</strong>seafirmar que a paixão da fé não se ajusta à consi<strong>de</strong>ração científica; que à medida que afé é analisada objetivamente, ela transforma-se num processo, a paixão que paira emtor<strong>no</strong> <strong>de</strong>la é uma consequência, e o investigador po<strong>de</strong> afirmar que compreen<strong>de</strong>u tudo.Porém, <strong>no</strong> mesmo instante que o conhecimento sobre a fé é anunciado, vê-se explicadopor ciências que não são capazes <strong>de</strong> compreendê-la.“O cristianismo é espírito, o espírito é interiorida<strong>de</strong>, a interiorida<strong>de</strong> é<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> é essencialmente paixão e, em seu máximo, paixão quesente um interesse pessoal infinito por sua beatitu<strong>de</strong> eterna (REICHMANN, 1971, 213).Para compreen<strong>de</strong>r isto, <strong>de</strong>ve-se tornar um pensador subjetivo, <strong>de</strong>ve compreen<strong>de</strong>r-se a simesmo na sua existência. Em meio aos gritos <strong>de</strong> triunfo, o pensador subjetivo retornapara si próprio. Ultrapassa a serenida<strong>de</strong> poética, pois não se <strong>de</strong>tém <strong>no</strong> campo daimaginação, mas sim na existência. Supera a Ética, que <strong>de</strong>ve ser compreendida por umterceiro para ter valida<strong>de</strong>, ou seja, exige que outra existência participe do seu


60<strong>pensamento</strong>. “O pensador subjetivo possui, pois, ao mesmo tempo, uma paixão estéticae uma paixão ética, que lhe dão a necessária concreção. Todos os problemas daexistência são apaixonantes, pois a existência, quando a gente se torna consciente <strong>de</strong>la,apaixona” (REICHMANN, 1971, 252).Com efeito, a fé é este paradoxo segundo o qual o indivíduo encontra-seacima do geral. Todavia, <strong>de</strong>ve-se <strong>no</strong>tar, <strong>de</strong> tal maneira que o movimento serepete e que, conseqüentemente, o indivíduo, após ter estado <strong>no</strong> geral, isolasedaqui por diante, como indivíduo, acima do geral. Se a fé não for isto,então Abraão está perdido; então nunca houve fé <strong>no</strong> mundo justamenteporque sempre houve. Pois se o ético, isto é, o virtuoso, é o estágio supremoe se, <strong>de</strong> outra maneira, não resta ao homem nada <strong>de</strong> incomensurável senão omal, o fato <strong>de</strong> que este incomensurável é o particular que <strong>de</strong>ve exprimir-se <strong>no</strong>geral, não se tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras categorias senão que as da filosofiagrega ou que as que se extraem logicamente, coisa que Hegel não precisariaescon<strong>de</strong>r, pois estudou os gregos (REICHMANN, 1971, 170).“A consi<strong>de</strong>ração especulativa concebe o cristianismo como um fenôme<strong>no</strong>histórico. A questão <strong>de</strong> sua verda<strong>de</strong> significa, pois, penetrá-lo pelo <strong>pensamento</strong>, <strong>de</strong> sorteque o cristianismo seja ele mesmo o <strong>pensamento</strong> eter<strong>no</strong>” (REICHMANN, 1971, 214). Oindivíduo torna-se um dado. Por antecipação é <strong>de</strong><strong>no</strong>minado cristão, como seria inglês senascesse na Inglaterra ou india<strong>no</strong> se nascesse na Índia. Logo, não existe mais o “eu”,existe o “nós”. A partir <strong>de</strong>ste ponto não há mais possibilida<strong>de</strong> da fé, pois o nós, acoletivida<strong>de</strong>, não é capaz <strong>de</strong> se voltar sobre si mesma e, mesmo que fosse, não sereconheceria, apenas conheceria alguém.Po<strong>de</strong>mos afirmar que, se o cristianismo for concebido <strong>de</strong> uma maneiraobjetiva, métodos objetivos serão suficientes para compreendê-lo. Se compreendidocomo um mero mecanismo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, uma consequência natural do agir huma<strong>no</strong>, umanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>masiado humana, em que o homem <strong>de</strong>posita sua fé quando todo o restofalha, algumas conclusões surgem por si só. Um “eu” quimérico põe-se em movimentopor suas próprias forças; preso ao finito, ao imediato, sua razão e sua ética, objetivadoscomo princípios essenciais para uma existência saudável, serão os mais puros exemplos<strong>de</strong> sublimida<strong>de</strong> espiritual a que terá acesso. A boa <strong>no</strong>va cristã é um terre<strong>no</strong> hostil, um<strong>de</strong>lírio do qual é apropriado manter uma distância segura.


61Hegel, <strong>de</strong> certo modo, quer compreen<strong>de</strong>r a fé. Muitas vezes ele interpreta a féapenas como crença imediata, sem fundamentos: como essa crença que agente tem <strong>de</strong> abandonar quando começa a refletir. Mas, mesmo uma fésuperior, Hegel quer <strong>de</strong> certo modo <strong>de</strong>finir, conceituar, begreifen, conceber.Então, quando eu conceituo, quando eu concebo, como um bom alemão, aí euentendi. Nesta hipótese, bastaria estudar bem Hegel, dominar a ciênciahegeliana e não precisaríamos mais per<strong>de</strong>r tempo com o cristianismo, com afé; não precisaríamos mais per<strong>de</strong>r tempo com religião e com a Bíblia. (...) <strong>de</strong>certo modo Kierkegaard é a favor da volta ao símbolo e da volta constante aoilustrativo, ao simbólico e a saída do sistema. Não se satisfaz com um sistemafechado, mas volta constantemente aquele dado revelado que tem sempremuito a dar (como as “idéias geniais” <strong>de</strong> que fala Kant, as idéias estéticas)(VALLS, 2000, 185).“Objetivamente fala-se apenas da coisa, subjetivamente fala-se do sujeitoe da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. Eis que a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> é a coisa! Não se <strong>de</strong>ve jamais per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vistaum instante que o problema subjetivo não trata da coisa, mas é a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> mesma”(REICHMANN, 1971, 218). Supondo que o cristianismo fosse algo objetivo, quefalasse direto à objetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato seria necessário um observador objetivo, envolto naobjetivida<strong>de</strong> e fiel a ela. Mas as coisas não se passam <strong>de</strong>ste modo. Como a Escritura faladireto à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, o indivíduo <strong>de</strong>ve permanecer nesta esfera, nesta natureza <strong>de</strong>observação. O problema da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> é o subjetivo; “o interesse apaixonado dosujeito por sua beatitu<strong>de</strong> eterna” (REICHMANN, 1971, 215).Sob um <strong>no</strong>vo prisma, antípoda ao exposto anteriormente, procurar-se-átratar o homem como, por sua própria natureza, <strong>de</strong>stinado a um fim sublime. Comofundamentar tal prova? De que maneira testemunhar a divinda<strong>de</strong>, se esta não semanifesta <strong>de</strong> maneira empírica? Kierkegaard <strong>no</strong>s fornece uma direção a ser seguida.Como ficou exposto, o conceito <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, segundo a filosofia<strong>kierkegaard</strong>iana, repousa <strong>no</strong> paradoxo. O paradoxo po<strong>de</strong> ser compreendido, <strong>de</strong> maneirasucinta, como a manifestação do elemento divi<strong>no</strong> na esfera finita. Assim, se o paradoxoé verda<strong>de</strong>iro e se <strong>de</strong> fato manifesta-se empiricamente, é passível <strong>de</strong> objetivação. Mas <strong>de</strong>que maneira esta manifestação ocorre? De que maneira é apreendida pelo intelectohuma<strong>no</strong>? Por não vermos “a olho nu” a glória e a pieda<strong>de</strong> divinas manifestas em cadaindivíduo coloca-se em dúvida a veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste dogma. A divinda<strong>de</strong> manifesta-seapenas subjetivamente, e somente <strong>de</strong>sta maneira é possível senti-la. Este contato não épassível <strong>de</strong> reprodução ou <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> comunicação. Não há espectadores,leitores ou ouvintes da conexão entre o “eu” e a divinda<strong>de</strong>. As maravilhas <strong>de</strong> Deus,


62segundo Kierkegaard, manifestam-se <strong>no</strong> âmago <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> nós, e apenas o sertocado por este elemento sublime po<strong>de</strong> dar testemunho <strong>de</strong> sua manifestação.Conscientes da fundamentação cristã, da dogmática envolvida, da purezae do terror contidos nesta esfera, a exigência não mais recai apenas sobre o método <strong>de</strong>pesquisa; o próprio observador, em alguns momentos, se tornará objeto da pesquisainiciada. A finitu<strong>de</strong> é capaz <strong>de</strong> conceituar esta “relação que não se estabelece com nada<strong>de</strong> alheio a si, mas somente consigo” (KIERKEGAARD, 1979, 195) e perscrutar seuâmago a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo à alemã, <strong>de</strong>svelando a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> e reconhecendo aí oelemento eter<strong>no</strong>, o que Kierkegaard compreen<strong>de</strong>, segundo seus escritos, como um eloindissolúvel entre o homem e Deus? 58 As dificulda<strong>de</strong>s inerentes a um posicionamentoespeculativo diante <strong>de</strong> uma paixão infinita, a saber, a fé, será suprida pelo mecanismoracional. Sistematiza-se a problemática, isolam-se as variáveis, e a fé que se safe.Mais o observador torna-se objetivo, me<strong>no</strong>s edifica uma beatitu<strong>de</strong> eterna, istoé, sua beatitu<strong>de</strong> eterna, sobre sua relação com o que observa, pois só se po<strong>de</strong>falar <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong> eterna para a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> apaixonada, infinitamenteinteressada. Objetivamente, o observador (quer seja um sábio ou um membrodiletante da comunida<strong>de</strong> dos fiéis) compreen<strong>de</strong>r-se-á, ao fim <strong>de</strong> sua vida,num discurso <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us <strong>de</strong>ste gênero: quando eu era jovem duvidava-se <strong>de</strong> taislivros. (REICHMANN, 1971, 213)Quando tratamos tal assunto <strong>de</strong> maneira objetiva, a paixão inerente à<strong>de</strong>cisão não se manifesta, pois a lógica toma todos os espaços, impossibilitando aohomem uma disposição apaixonada, conce<strong>de</strong>ndo à finitu<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão que <strong>de</strong>veriatrazer em seu bojo a infinitu<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>cisão torna-se uma aproximação, e o homem étragado pelo abismo da objetivida<strong>de</strong>. Levanta-se a seguinte questão: po<strong>de</strong>moscompreen<strong>de</strong>r a fé <strong>de</strong> acordo com um enca<strong>de</strong>amento metodológico sistemático? SegundoKierkegaard, a fé po<strong>de</strong> ser compreendida como uma “paixão sublime”, em diretaconexão com “interesse infinito”. Será licito mutilá-la reduzindo-a à realida<strong>de</strong> finita?Reichmann alerta-<strong>no</strong>s sobre o perigo implícito em buscarmos objetivar <strong>de</strong>cisões quecabem ao foro íntimo: “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se elimine a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> e da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> a paixão58 O homem, <strong>de</strong>vido a sua natureza <strong>de</strong> síntese, possui um elemento finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong>.Portanto, a síntese traz em seu bojo uma parcela da infinitu<strong>de</strong>, um elemento da Divinda<strong>de</strong>. Em suainteriorida<strong>de</strong>, a saber, do indivíduo, há tanto a angústia e o <strong>de</strong>sespero quanto a salvação. SegundoKierkegaard, a fé seria a “língua” comum entre o homem e Deus, e o mencionado elo é corroborado pelafé.


63e da paixão o interesse infinito não existe absolutamente <strong>de</strong>cisão, nem neste problemanem em qualquer outro. Toda <strong>de</strong>cisão, toda <strong>de</strong>cisão essencial, resi<strong>de</strong> na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>”(REICHMANN, 1971, 213).Há algo que <strong>de</strong>ve ser tratado <strong>de</strong> maneira cautelosa: po<strong>de</strong>mos conceberum homem <strong>de</strong> fé com inclinações à especulação. Mas po<strong>de</strong>mos conceber umespeculativo com inclinações à fé? Se a resposta for positiva, po<strong>de</strong>rá ele conciliar taispotências? Para tal homem, terá a fé o mesmo valor que o mecanismo racional? Pensarlogicamente a existência significa fazer uma abstração das dificulda<strong>de</strong>s que pairam emtor<strong>no</strong> <strong>de</strong>sta. Através <strong>de</strong> uma objetivação, pensadores <strong>de</strong> todas as épocas acreditaram<strong>de</strong>scobrir um caminho seguro ao conhecimento.A moralida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>ver patriarcal <strong>de</strong> proteger a prole e o clã <strong>de</strong> umamaneira geral e a repulsa ao assassínio <strong>de</strong> um membro <strong>de</strong> sua família serão os elementosdos quais a razão se valerá para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se das investidas da fé, especificamente <strong>no</strong>caso <strong>de</strong> Abraão.A história festejará os gran<strong>de</strong>s homens, porém cada qual foi gran<strong>de</strong> peloobjeto <strong>de</strong> sua esperança: um tor<strong>no</strong>u-se gran<strong>de</strong> na esperança <strong>de</strong> alcançar opossível; outro na expectativa das coisas eternas – porém aquele que <strong>de</strong>sejoualcançar o impossível foi, <strong>de</strong> todos, o maior. Os gran<strong>de</strong>s homens hão <strong>de</strong>permanecer na memória dos pósteros, porém cada um <strong>de</strong>les foi gran<strong>de</strong> pelaimportância do que combateu. Aquele que combateu contra o mundo foigran<strong>de</strong> <strong>no</strong> seu triunfo sobre o mundo; o que lutou consigo mesmo foi gran<strong>de</strong>na vitória alcançada sobre si. Porém aquele que combateu contra Deus foi omaior <strong>de</strong> todos. Este é o resumo dos combates ocorridos na terra.(KIERKEGAARD, 1964, 36).Partindo do elemento religioso, Abraão será a figura que o personificará.Neste aspecto, a luta é travada na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, <strong>no</strong> elemento próprio e imanente querepousa <strong>no</strong> cerne do ser. A angústia e o <strong>de</strong>sespero serão o âmbito em que a fé florescerá;a loucura e a fraqueza serão as acusações que esta receberá; a salvação será arecompensa reservada ao indivíduo que zela por ela. Além dos sentimentos observadosem Abraão, observemos a tribulação e a angústia contidas <strong>no</strong> próprio paradoxo da fé.Seguindo o raciocínio da filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, o elemento moral assumiu umapostura secundária. O paradoxo, realida<strong>de</strong> oculta, exigirá o indivíduo ple<strong>no</strong>, a saber, oser velado do imediatamente sensível.


64Articular estes dois conceitos, a saber, razão e fé, exigirá um gran<strong>de</strong>esforço <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> proferir suas respectivas características <strong>de</strong> maneira harmoniosa.Assim como o absurdo é completamente alheio à razão, a fé é estranha ao cálculopuramente huma<strong>no</strong>. A certeza objetiva nada é capaz <strong>de</strong> acrescentar à fé. E esta,juntamente com seus dogmas, não nutre esperanças em fazer parte <strong>de</strong> conceitospassíveis <strong>de</strong> objetivação. Trata-se <strong>de</strong> um conceito <strong>no</strong> máximo metafísico.1.10: A problemática envolvida na análise da obra Temor e tremor e suasimplicações.Neste momento, zelando pela correta conclusão da observaçãoempreendida, tanto Abraão quanto o próprio Kierkegaard <strong>de</strong>verão <strong>no</strong>s fornecer asinformações necessárias. O autor dinamarquês expõe as opções que Abraão teria frenteao chamado <strong>de</strong> Deus. Po<strong>de</strong>ria ter renunciado à or<strong>de</strong>m divina por falta <strong>de</strong> fé ou por umclamor do elemento ético, pela moralida<strong>de</strong> 59 . A moralida<strong>de</strong> está <strong>no</strong> geral e aplica-se aogeral, constituindo este seu objeto último, a saber, sua vigência sobre tudo que lhe éexterior. Desta maneira, po<strong>de</strong>-se afirmar que a moralida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vido a sua natureza, induzo indivíduo a suprimir sua individualida<strong>de</strong> e expressar-se <strong>de</strong> alguma maneira exterior.Sob o ponto <strong>de</strong> vista da moralida<strong>de</strong>, o silêncio <strong>de</strong> Abraão <strong>de</strong>poria contra ele. Não sepo<strong>de</strong> conceber o indivíduo como acima do geral, moralmente falando. E é exatamenteesta a <strong>no</strong>ção que o paradoxo da fé expõe ao indivíduo, a saber, que ele encontra-seacima do geral; que sua relação com o geral agora é <strong>de</strong>terminada segundo sua relaçãocom o Absoluto. A fé não po<strong>de</strong> tomar seu lugar, <strong>de</strong> maneira plena, <strong>no</strong> geral, pois assimo <strong>de</strong>struiria, tornando-se esta a medida das coisas.Estudiosos e religiosos são unânimes em afirmar o valor do “pai da fé”,porém apenas os últimos, segundo Kierkegaard, compreen<strong>de</strong>m sua contribuição para aespiritualida<strong>de</strong> do homem. Na forma <strong>de</strong> um estribilho fala o cético acerca da glória <strong>de</strong>59 Fala-se neste caso da perfídia e imoralida<strong>de</strong> contidas <strong>no</strong> ato <strong>de</strong> um pai matar o próprio filho. O repúdioda ética a esta ação ocorre <strong>de</strong>vido à incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta em abarcar a or<strong>de</strong>m divina.


65Abraão, porém compreen<strong>de</strong>rá o terror contido nas palavras dirigidas ao patriarca pelopróprio Deus? Neste ponto da análise, quais elementos são estranhos ao cálculohuma<strong>no</strong>? Em sua solidão, o que Abraão soterrou <strong>no</strong> fundo do seu peito, como se fosse ofruto <strong>de</strong> um amor indig<strong>no</strong>?A angústia e o <strong>de</strong>sespero inundavam a alma <strong>de</strong> Abraão. Sua interiorida<strong>de</strong>sucumbia diante da or<strong>de</strong>m que escarnecia a ele e seu <strong>de</strong>ver patriarcal. Abraão foi capaz<strong>de</strong> levantar-se cedo e partir para Morija <strong>de</strong>vido a sua certeza subjetiva. Em seu íntimo,sabia que Deus não tencionava lhe tirar Isaac; sabia que sua fé seria capaz <strong>de</strong> lhegarantir contra tudo, até mesmo contra o fatídico <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> daquela horrenda marcha.Objetivamente falando, tudo estava perdido! Deus exigia Isaac em holocausto e nadahavia a fazer. Ao avistar a montanha indicada uma procela inicia-se em seu íntimo.Abraão <strong>de</strong>veria provar seu valor abrindo mão <strong>de</strong> seu bem mais valioso. A promessa <strong>de</strong>felicida<strong>de</strong> que Isaac representava para o patriarca hebreu num só momento ruiu da baseao topo. Objetivando este fato é impossível compreen<strong>de</strong>r que se trata <strong>de</strong> uma prova <strong>de</strong>amor, tanto <strong>de</strong> Abraão para com Deus como <strong>de</strong> Deus para com Abraão.A teologia, cheia <strong>de</strong> a<strong>de</strong>mais, chega à janela e, mendigando os beneplácitosda filosofia, oferta-lhe os seus encantos. Enten<strong>de</strong>r Hegel <strong>de</strong>ve ser muitodifícil, porém Abraão, que facilida<strong>de</strong>! Ir além <strong>de</strong> Hegel é uma façanha; porémque coisa simples quando se trata <strong>de</strong> ultrapassar Abraão (KIERKEGAARD,1964, 48).Johannes <strong>de</strong> Silentio, autor pseudônimo da obra <strong>kierkegaard</strong>iana Temor etremor, como já se afirmou, po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado mais facilmente como um poeta doque como um filósofo. Muitas vezes mais aponta os problemas do que os resolve,provoca o leitor com suas concepções únicas e a todo momento recorre ao paradoxopara ilustrar a realida<strong>de</strong> vivida pelo patriarca hebreu. Muitas vezes Kierkegaard nãomove sua filosofia existencial <strong>de</strong> maneira lógica, uma vez que ele próprio representa,sob <strong>de</strong>terminados aspectos, toda a contradição a que o indivíduo está exposto.Asfixiando o elemento existencial, baseado quase que exclusivamente <strong>no</strong> elementoracional, a existência humana é compreendida apenas em caracteres lógicos.Tratava-se <strong>de</strong> um ancião, cuja esposa também era anciã, ou seja, suaprole, que até aquele momento não havia sido constituída e, humanamente falando,


66estava fadada à inexistência. Novamente é necessário, para garantir o bom andamentoda análise, recorrer à fé. Apenas por meio da fé haveria esperanças para a perpetuaçãoda casa <strong>de</strong> Abraão. E através da fé, num só movimento, Abraão abriu mão <strong>de</strong> seuvalioso bem e o recuperou. Abriu mão da caótica finitu<strong>de</strong> para encontrar paz e repousona infinitu<strong>de</strong>. Sacrificou-se com a certeza subjetiva <strong>de</strong> que seu sacrifício seriareconhecido.Movimenta-se em razão do absurdo; pois o absurdo consiste em que estácomo indivíduo acima do geral. Tal paradoxo escapa a mediação; se Abraãoa tenta, tem necessida<strong>de</strong> então <strong>de</strong> confessar que está em plena crise religiosae, em condições semelhantes, jamais po<strong>de</strong>rá vir a sacrificar Isaac; ou, se ofizer, é-lhe necessário arrepen<strong>de</strong>r-se e reintegrar-se <strong>no</strong> geral. Outra vez obtémIsaac em razão do absurdo. No lance, porém, não é um só instante heróitrágico, porém algo muito diverso: um crente ou um assassi<strong>no</strong>. Falta-lhe ainstância intermediária que salva o herói trágico. Este, pois, eu possoenten<strong>de</strong>r, porém não Abraão, mesmo que, sem motivo razoável, o admiremais do que a qualquer outro homem (KIERKEGAARD, 1964, 69).É preciso um esforço subjetivo para apreen<strong>de</strong>r o conhecimento expostonestas linhas. Partindo da análise objetiva, informações valiosas não serão consi<strong>de</strong>radas,e a presente investigação estará fadada à penumbra e à obscurida<strong>de</strong>. Segundo a doutrinapredominante na obra Temor e tremor po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>stacar a superiorida<strong>de</strong> do elementosubjetivo sobre o elemento objetivo. Diferença <strong>no</strong>tória quando se analisa, da mesmamaneira, o elemento infinito e o elemento finito. Assim sendo, faz-se latente o abismoexistente entre Deus e o homem. Abismo que se alarga ainda mais quando vem à tona anatureza <strong>de</strong> síntese do “eu” e, consequentemente, o caráter mantenedor da relaçãocabível à divinda<strong>de</strong>. A precária língua comum existente entre os dois, a saber, a fé, emsua natureza, como foi explicado, traz em seu âmago o sofrimento e a submissão, eassim mesmo exige uma certeza incondicional por parte do indivíduo, uma aceitaçãodogmática do paradoxo. Já a Divinda<strong>de</strong> não conhece paradoxo. Sua perfeição abarcatodas as esferas existentes, mesmo as inatingíveis pelo homem. Sendo assim, po<strong>de</strong>-seconcluir que apenas o homem sofre uma paralisação em seu processo <strong>de</strong> racionalização.Segundo a análise do filósofo dinamarquês, a divinda<strong>de</strong> não claudica, não falseia nemtitubeia.Observa-se na produção intelectual religiosa, assim como na produção<strong>kierkegaard</strong>iana, a diferença <strong>de</strong>scomunal e opressora existente entre a divinda<strong>de</strong> e o


67homem. Assim como a proibição dirigida a Adão (que será explorada <strong>no</strong> capítuloseguinte), o sacrifício <strong>de</strong> Abraão, segundo a interpretação religiosa, é uma prova doamor que Deus <strong>de</strong>dica aos homens. Esta realida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser compreendida através<strong>de</strong> mecanismos objetivos, mas sim através da fé. A mera crença, como a objetivida<strong>de</strong>propõe, consiste numa certeza objetiva. Por sua própria natureza, esta certeza nãoabarca plenamente o fenôme<strong>no</strong> da fé. Trata-se <strong>de</strong> uma investigação conceitual em que o<strong>de</strong>sconhecido, <strong>no</strong> caso, Deus, terá a natureza <strong>de</strong> uma zona-limite. A análise objetiva nãopossui caracteres para compreen<strong>de</strong>r a Beatitu<strong>de</strong> Eterna e a interiorida<strong>de</strong> da síntese quese entrelaça com o elemento causador e mantenedor. Portanto, falha ao analisar um dosfundamentos da religiosida<strong>de</strong>, e assim compromete toda investigação que inicia; e falhaao analisar o cavaleiro da fé, já que neste caso a ética per<strong>de</strong>u sua característica <strong>de</strong> telos.A certeza subjetiva, por sua vez, parte da interiorida<strong>de</strong>, e tudo transforma e eleva. A<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> fragiliza-se diante da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za da divinda<strong>de</strong>. Reconhece a naturezadivina da sua interiorida<strong>de</strong> e o elo que a liga com Deus. Mergulha em si mesma, e assimalcança o ser Criador.


68Capítulo II – Uma análise da angústia e do pecado segundo as perspectivasfilosóficas e dogmáticas <strong>de</strong> Søren KierkegaardO tema do presente capítulo será a progressão da angústia <strong>no</strong> âmbito dai<strong>no</strong>cência e do pecado, bem como as consequências <strong>de</strong> sua presença na natureza dasíntese, ou seja, do “eu”, segundo a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana 60 . A investigaçãoprocurará sondar conceitos que permitam a análise da angústia e da natureza daobservação sobre a angústia; <strong>de</strong>sta maneira, <strong>de</strong>verá abordar o salto qualitativo equantitativo, a i<strong>no</strong>cência, a queda e a liberda<strong>de</strong>, uma vez que tais conceitos encontramseem relação direta com a angústia. Kierkegaard privilegia a abordagem psicológica dofenôme<strong>no</strong> da angústia, referindo-se à questão do pecado original, mas reconhece aslimitações da Psicologia diante <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados objetos.“O presente escrito estabeleceu como sua tarefa tratar o conceito‘angústia’ <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista psicológico, <strong>de</strong> modo a ter in mente o dogma do pecadooriginal” (KIERKEGAARD, 2010a, 16). Mantendo-se fiel a este objeto, a pesquisa aqui<strong>de</strong>senvolvida se <strong>de</strong>terá sobre a angústia e sua relação com o pecado. A Psicologia<strong>de</strong>verá posicionar-se diante do pecado, já que a investigação encontra-se numa relaçãodireta com ele, segundo a afirmação do próprio Kierkegaard. Deter-se-á por um instantena análise do autor e da própria obra, para só então passar à análise do pecado,procurando enten<strong>de</strong>r seu conceito segundo a atmosfera que abrange.A obra utilizada como principal fonte <strong>de</strong> pesquisa será O conceito <strong>de</strong>angústia 61 , do autor pseudônimo Vigilius Haufniensis, algo como “o vigilante <strong>de</strong>Copenhague”. Vale lembrar que simultaneamente à publicação da referida obra, outro60 A metodologia <strong>de</strong>ste segundo capítulo não <strong>de</strong>verá se afastar da utilizada anteriormente. O conceito <strong>de</strong>“eu” será constantemente abordado na análise da angústia e do pecado, uma vez que está em relaçãodireta com ambos. O relato genesíaco da <strong>de</strong>sobediência <strong>de</strong> Adão será o pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo para talinvestigação, já que Adão inaugura as categorias <strong>de</strong> individuo e <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>, segundo a filosofia<strong>kierkegaard</strong>iana. A Psicologia e a Ética abordarão os fenôme<strong>no</strong>s mencionados na medida em que esteslhes caibam como objeto <strong>de</strong> investigação, e não <strong>de</strong> especulação. À medida que a análise da angústia e dopecado aproximam-se da interiorida<strong>de</strong> da síntese, do “eu”, da concreção do espírito e do salto qualitativo,os conceitos serão conduzidos à Dogmática, como será exposto <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do trabalho.61 A obra O conceito <strong>de</strong> angústia é mencionada aqui como principal fonte <strong>de</strong> pesquisa por ser, entre asobras <strong>kierkegaard</strong>ianas, a que mais se aprofunda <strong>no</strong> conceito “angústia”. Porém, a bibliografia será muitomais extensa <strong>de</strong>vido à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos complementares e influências filosóficas sofridas peloautor.


69autor pseudônimo <strong>de</strong> Kierkegaard, Johannes Clímacus, publica as Migalhas filosóficas.“Tanto as Migalhas quanto o livro sobre a angústia tratam filosoficamente das questõesda história e da liberda<strong>de</strong>, e supõe como pa<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo religioso, os temas cristãos dopecado e da graça”. (KIERKEGAARD apud VALLS, 1995, 10).Há uma gran<strong>de</strong> mudança na natureza da investigação empreendida em Oconceito <strong>de</strong> angústia em relação à primeira obra estudada, a saber, Temor e tremor.Vigilius Haufniensis assume uma postura docente, direta, comum aos professoresuniversitários 62 . Procura empreen<strong>de</strong>r uma análise da liberda<strong>de</strong> e do pecado original,visando esclarecer conceitos que permaneceram obscuros por muito tempo. O conceito<strong>de</strong> angústia inicia referindo-se à necessida<strong>de</strong> da correta abrangência do objeto <strong>de</strong>estudo. Kierkegaard prossegue com uma análise retroativa da angústia, visando comisso explicar o pecado original. Abordará a angústia na progressão do pecado original, aangústia da negação da divinda<strong>de</strong> e, concluindo, explica que ela po<strong>de</strong> ser revertida emuma potência capaz <strong>de</strong> guiar o homem à salvação 63 .O livro <strong>de</strong> 1844 é obra complexa, difícil <strong>de</strong> ler, numa primeira percorrida.Livro que choca e repele, ao mesmo tempo em que atrai. Desperta simpatia eantipatia. Mas é livro <strong>de</strong> Filosofia, não primeiramente <strong>de</strong> Teologia, poisinvestiga dialeticamente, com fortes argumentos, as condiçõestranscen<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> do agir livre <strong>de</strong> um homem, que se diz‘gerado e nascido <strong>no</strong> pecado’. Qual é a melhor maneira <strong>de</strong> lê-lo? Climacussugere, <strong>de</strong> fato, uma leitura existencial. Distingamos <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong>Kierkegaard um aspecto crítico (corretivo) e outro propositivo (se não suateoria ou doutrina, ao me<strong>no</strong>s sua mensagem, sua proposta na comunicação <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r, sugerindo o que po<strong>de</strong>mos e talvez <strong>de</strong>vamos fazer). O corretivo aparecena pena <strong>de</strong> Haufniensis, que combate a confusão, a mistura do estético com oreligioso, do lógico com o teológico, da mediação lógica com a soteriológica,do sentimentalismo com a verda<strong>de</strong>ira contrição <strong>de</strong> pecador, da especulaçãoteológica com a pregação, e quando combate a irreflexão (Tankeløshed) dospastores (VALLS apud KIERKEGAARD, 2010a, 184).62 Em relação à obra abordada anteriormente, a saber, Temor e tremor, <strong>de</strong>ve-se lembrar que o autor nãoestá condicionado à investigação filosófica, uma vez que Johannes <strong>de</strong> Silentio i<strong>de</strong>ntifica-se como umpoeta que canta as belezas da fé. Vigilius Haufniensis “empreen<strong>de</strong> uma investigação transcen<strong>de</strong>ntal sobrea liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>safiado pela <strong>no</strong>ção teológica do pecado original” (VALLS, 2000, 15). Confirma-se nareferida obra a postura investigativa adotada pelo autor, repousando <strong>no</strong> pecado original o elo que une ogênero huma<strong>no</strong>, como será exposto adiante.63O presente trabalho procurará seguir uma linha investigativa próxima da traçada por Kierkegaard naobra O conceito <strong>de</strong> angústia. Como afirmou-se <strong>no</strong> início <strong>de</strong>ste capítulo, a abordagem principal se darásobre os conceitos <strong>de</strong> angústia e pecado, visando i<strong>de</strong>ntificar a abordagem que Kierkegaard dirige a cadaum <strong>de</strong>les e <strong>de</strong> que maneira po<strong>de</strong>mos concebê-los <strong>de</strong> acordo com a i<strong>de</strong>ia <strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong> “eu”.


70A Psicologia como observadora e a Ética como censora não produzemgran<strong>de</strong>s avanços na investigação e <strong>no</strong> progresso do estudo sobre a angústia 64 . Deve-selembrar que nenhuma das duas ciências abarca o conceito <strong>de</strong> síntese ou <strong>de</strong> saltoqualitativo 65 . Por serem ambos necessários para a compreensão da angústia e do pecado,<strong>de</strong> acordo com a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, a falta <strong>de</strong>ssas informações invalida oresultado obtido. Kierkegaard utiliza paralela à Psicologia e à Ética uma ciência cujacapacida<strong>de</strong> explicativa abrange tais conceitos: trata-se da Dogmática 66 .Contudo, enquanto se aprofunda na possibilida<strong>de</strong> do pecado, a Psicologiaestá, sem o saber, a serviço <strong>de</strong> uma outra ciência que só aguarda que elaacabe para, por seu tur<strong>no</strong>, começar os trabalhos, ajudando a Psicologia nasexplicações. Esta não é a Ética; pois a Ética nada tem a ver com aquelapossibilida<strong>de</strong>. Ela é, pelo contrário, a Dogmática, e aqui reaparece oproblema do pecado original. Enquanto a Psicologia sonda a possibilida<strong>de</strong>real do pecado, a Dogmática explica o pecado original, isto é, a possibilida<strong>de</strong>i<strong>de</strong>al do pecado (KIERKEGAARD, 2010a, 24).A Dogmática po<strong>de</strong> ser compreendida também como a doutrina dare<strong>de</strong>nção. Ao contrário da Psicologia e da Ética, que tentaram em vão acolher a angústiae o pecado, porém sem os po<strong>de</strong>r assimilar, a Dogmática volta-se sobre eles <strong>de</strong> maneiraque os pressupõe 67 . Para a Dogmática angústia e pecado são atuais, comunicam-se com64 Deve-se ressaltar que a investigação <strong>kierkegaard</strong>iana sobre a angústia e o pecado encontra seu ápice <strong>no</strong>salto qualitativo, conceito não abordado pela Psicologia nem pela Ética. O estudo da liberda<strong>de</strong> seráabordado segundo as duas mencionadas ciências, mas a liberda<strong>de</strong> a que a angústia se volta <strong>no</strong> saltoqualitativo, será analisada <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr do trabalho pela Dogmática.65 “Naquilo que Kierkegaard <strong>de</strong><strong>no</strong>mina o ‘salto qualitativo’, isto é, uma <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> radical, <strong>de</strong> tiponão causal, com o estado <strong>de</strong> coisas prece<strong>de</strong>nte, é que o espírito dissolve a unida<strong>de</strong> imediata do corpo e daalma para, em seguida, os ligar <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo um à outra. Os dois termos não existem a não ser na relação queos une. Originalmente, a angústia é o pressentimento que o homem é maior que a sua experiênciaimediata: ela é, portanto, o aguilhão salvador da busca <strong>de</strong> si mesmo pelo risco da liberda<strong>de</strong> que é aessência do espírito (FARAGO, 2006, 79).66 A Holanda do século XVII dividiu a Dogmática em dois pactos (foedus): das ações que antece<strong>de</strong>m aqueda (estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência) e da graça (após a queda). A Dogmática na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong>ve sercompreendida como doutrina do espírito absoluto; como a doutrina capaz <strong>de</strong> abarcar o salto e o pecado<strong>de</strong>vido ao seu comportamento diante da divinda<strong>de</strong>.67 Segundo o próprio Kierkegaard, tratar o pecado somente conforme a perspectiva psicológica perturba oseu verda<strong>de</strong>iro conceito, comprometendo a investigação. “O pecado, contudo, não é um assunto <strong>de</strong>interesse psicológico, e querer tratá-lo assim redundaria em colocar-se ao serviço <strong>de</strong> uma engenhosida<strong>de</strong>mal compreendida” (KIERKEGAARD, 2010a, 16). A Ética igualmente falha na análise do pecado. Aexpansão do pecado original, tema fulcral na análise do pecado, lhe foge completamente. “A Ética ainda éuma ciência i<strong>de</strong>al, não somente <strong>no</strong> sentido em que todas as ciências o são. Ela quer introduzir a i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>na realida<strong>de</strong> efetiva; mas seu movimento não consiste, inversamente, em elevar a realida<strong>de</strong> à i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>(KIERKEGAARD, 2010, 19). Ao contrario da Ética, que parte do estritamente i<strong>de</strong>al, a Dogmática iniciacom o real efetivo, procurando elevá-lo à i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>. Não nega a existência do pecado, explica-o aopressupô-lo e ao pressupor o pecado original.


71a existência. “A dogmática não <strong>de</strong>ve, portanto, explicar o pecado original, mas explicáloem pressupondo-o, à semelhança daquele turbilhão sobre o qual a física especulativagrega falou diversas coisas, como algo <strong>de</strong> ‘movente’ que nenhuma ciência po<strong>de</strong>riaapreen<strong>de</strong>r” (KIERKEGAARD, 2010a, 21).2.1: A questão da angústia e sua relação com o pecadoA angústia, segundo Farago, é “o pathos em cujo seio o indivíduocomeça a tomar consciência <strong>de</strong> si mesmo. Na origem o indivíduo, confrontado com oseu nada, com o abismo sem fundo do possível, do virtual, tomando <strong>de</strong> repenteconsciência <strong>de</strong> sua situação, se põe (FARAGO, 2006, 80). A angústia é uma linguageminterior que fala ao homem, sem que este seja o seu autor. Po<strong>de</strong> ser compreendidatambém como a impotência da síntese em pôr-se <strong>de</strong> maneira a<strong>de</strong>quada. A negação ou orecalque advindos <strong>de</strong>sta falta, a saber, <strong>de</strong> uma má estruturação da interiorida<strong>de</strong> humana,será o primeiro indício da queda iminente.Qual é a relação da angústia com o pecado? Iniciar-se-á com o primeiropecado. Kierkegaard <strong>no</strong>s adverte que ao <strong>de</strong>ter-se apenas na análise do pecado originalsem compreen<strong>de</strong>r o primeiro pecado, corre-se o risco <strong>de</strong> banir Adão da historia dahumanida<strong>de</strong> e esta, estranhamente, começaria por um homem que não participa do seuconceito 68 . A pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> 69 entra <strong>no</strong> mundo através do primeiro pecado <strong>de</strong> Adão. O68 Esta afirmação está correta se concordarmos que com o primeiro pecado <strong>de</strong> Adão a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>entrou <strong>no</strong> mundo. Para que tal fosse possível, Adão <strong>de</strong>veria participar intimamente das categorias <strong>de</strong>indivíduo e <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>. Segundo Kierkegaard, ele não só participa <strong>de</strong> tais categorias, como asinaugura; daí a consequência do pecado <strong>de</strong> Adão manifestar-se na posterida<strong>de</strong>. “Adão é o primeirohomem, é ao mesmo tempo ele mesmo e o gênero huma<strong>no</strong>. Ele não é essencialmente diferente do gênerohuma<strong>no</strong>; pois nesse caso o gênero huma<strong>no</strong> nem existiria; ele não é o gênero huma<strong>no</strong>, pois aí nem haveriao gênero huma<strong>no</strong>: ele é ele mesmo e o gênero huma<strong>no</strong>. Por isso aquilo que explica Adão explica o gênerohuma<strong>no</strong>, e vice versa” (KIERKEGAARD, 2010a, 32).69 O conceito <strong>de</strong> pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve abranger o avanço do pecado à medida que o gênero huma<strong>no</strong>progri<strong>de</strong>. “A pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> obteve, assim, em certo sentido, um po<strong>de</strong>r maior e o pecado originalencontra-se em um período <strong>de</strong> crescimento” (REICHMANN, 1971, 268). Sua progressão é a progressãoda humanida<strong>de</strong>, ou seja, ela se alastra mais e mais a cada <strong>no</strong>vo individuo que surge; e une a todos nós nacategoria <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>.


72primeiro pecado pressupõe o pecado original. Isto está correto se concordarmos com aconcepção que afirma que vivíamos em estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, sendo este extinto a partirdo pecado. O pecado original po<strong>de</strong> ser entendido como o reflexo do primeiro pecado.Apesar do primeiro pecado <strong>de</strong> Adão encontrar-se num pretérito longínquo, o pecadooriginal ainda paira sobre os indivíduos. Conclui-se que a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> entrou <strong>no</strong>mundo por meio do pecado <strong>de</strong> Adão. O primeiro pecado muda a <strong>de</strong>terminaçãoqualitativa.Se o primeiro pecado significa numericamente um só pecado (<strong>no</strong> singular),então daí não se origina nenhuma historia, e o pecado não adquire historianem <strong>no</strong> individuo nem <strong>no</strong> gênero huma<strong>no</strong>; pois a condição para isso é amesma, o que não significa que, enquanto historia, a da humanida<strong>de</strong> coincidacom a do individuo, nem aquela do individuo seja a da humanida<strong>de</strong>, a não ser<strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> que a contradição exprime sempre a tarefa (KIERKEGAARD,2010a, 33).O primeiro pecado e o pecado original representam a mudança <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong> 70 . A consequência está posta e agora avança à medida da progressãoquantitativa. Antes da investigação sobre o pecado avançar, <strong>de</strong>ve-se esclarecer doisconceitos: o <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência e o <strong>de</strong> queda 71 .70 Fala-se neste caso da mudança <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> na realida<strong>de</strong> vivida <strong>de</strong>vido à queda.71 Os conceitos <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência e queda, na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, ilustram bem a progressão da angústiae do pecado <strong>no</strong> âmago do “eu”. A i<strong>no</strong>cência está livre do pecado, já que este surge apenas após o saltoqualitativo. Mas a angústia está presente, voltada sobre a possibilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong>, objeto quaseexclusivo quando falamos <strong>de</strong> uma investigação <strong>no</strong> estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência. A angústia neste caso po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>scrita como uma “suave brisa”; não oprime, não constrange nem submete, apenas existe. Tão intrínsecaque quase se confun<strong>de</strong> com a essência do “eu”. A queda exige um movimento mais elaborado. Eva éseduzida pela serpente. Houve uma progressão quantitativa; a angústia em Eva não é a mesma que emAdão. Agora se tor<strong>no</strong>u um complexo <strong>de</strong> pressentimentos, ainda voltados sobre si. Porém, a angústia nãose volta mais apenas sobre a liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>tém-se na proibição e <strong>no</strong> castigo (falamos aqui da proibição da<strong>de</strong>gustação do fruto da árvore do Bem e do Mal e do castigo por ig<strong>no</strong>rar tal proibição: a morte). Nomomento em que antece<strong>de</strong> o salto qualitativo a angústia encontra-se em seu ápice; sucumbe e então opecado surge.


732.1.1: Uma análise da i<strong>no</strong>cência e da queda na progressão do pecado“A angústia que está posta na i<strong>no</strong>cência, primeiro não é uma culpa e,segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com afelicida<strong>de</strong> da i<strong>no</strong>cência” (KIERKEGAARD, 2010a, 46). Eis que Adão está em estado <strong>de</strong>i<strong>no</strong>cência (aqui falamos exclusivamente da i<strong>no</strong>cência <strong>de</strong> Adão). Como foi afirmado jána introdução do presente trabalho, i<strong>no</strong>cência é ig<strong>no</strong>rância. Uma ig<strong>no</strong>rância ansiosa,buliçosa com a sua liberda<strong>de</strong>. Na i<strong>no</strong>cência, a angústia concentra suas energias <strong>no</strong>mostrar-se da liberda<strong>de</strong>. A angústia vai à frente, iniciando a interação com a liberda<strong>de</strong>.O “eu”, <strong>no</strong> seu relacionar-se consigo próprio, é liberda<strong>de</strong>. Logo, po<strong>de</strong>mos conceber aliberda<strong>de</strong> como a dialética das categorias do possível e do necessário. “O ‘eu’,inicialmente como síntese <strong>de</strong> finito e infinito é dado, existe; em seguida, para setransformar, projeta-se sobre a tela da imaginação e é assim que se lhe revela o infinitodo possível. O ‘eu’ contém tanto <strong>de</strong> possível como <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, porque é ele próprio,mas <strong>de</strong>ve realizá-lo. O ‘eu’ é necessida<strong>de</strong> porque é ele próprio, e possível porque <strong>de</strong>verealizar-se” (KIERKEGAARD, 2010a, 53).Como a angústia penetra nessa atmosfera <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, que num primeiromomento parece insondável a qualquer <strong>de</strong>sarmonia? Qual é o seu objeto? Deve-sevoltar à concepção <strong>de</strong> “eu” que foi exposta na introdução, a saber, o “eu” como umasíntese, como uma relação <strong>de</strong> dois termos. “Se a relação se conhece a si própria <strong>de</strong>sterelacionar-se que se estabelece surge um terceiro termo positivo, a saber, o espírito; etemos então o eu” (KIERKEGAARD, 2010a, 26). Porém, na i<strong>no</strong>cência não há esteconhecimento. O “eu” não foi capaz <strong>de</strong> instituir uma relação positiva, voltada sobre simesmo. O indivíduo existe como unida<strong>de</strong> imediata, não como consciência <strong>de</strong> si 72 .72 A síntese como uma mera relação <strong>de</strong> dois termos é o que constitui o estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência. Neste estado,pelo fato do “eu”, como Kierkegaard o compreen<strong>de</strong>, não estar consumado, foi dito que o indivíduo existeapenas como unida<strong>de</strong> imediata. “A própria relação entra como um terceiro, como unida<strong>de</strong> negativa, ecada um daqueles termos se relaciona com a relação, tendo cada um uma existência separada <strong>no</strong> seurelacionar-se com a relação” (KIERKEGAARD, 2010a, 26). Neste caso, a relação não se orienta sobre siprópria, mas sim sobre a existência particular <strong>de</strong> cada um dos elementos. Não houve a concreção doespírito; este ainda se encontra in suspenso. Neste caso, o objeto da angústia é um nada, um leve<strong>de</strong>sassossego, um ritmo tranqüilizador.


74Tudo gira em tor<strong>no</strong> do aparecimento da angústia. O homem é uma síntese dopsíquico e do corpóreo. Porém, uma síntese inconcebível quando os doistermos não são unidos num terceiro. Este terceiro é o espírito. O espírito está,pois, presente, mas como espírito imediato, como espírito sonhando.Enquanto se acha presente é, <strong>de</strong> certa maneira, um po<strong>de</strong>r hostil, pois perturbacontinuamente a relação entre a alma e o corpo, que subsiste sem po<strong>de</strong>rsubsistir, já que não recebe subsistência senão pelo espírito. De outra parte, oespírito é um po<strong>de</strong>r amigo, que quer precisamente constituir a relação. Qualé, pois, a relação do homem com este po<strong>de</strong>r ambíguo, como se relaciona oespírito consigo mesmo em sua condição? Relaciona-se como angústia(REICHMANN, 1971, 266).Após estas informações, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r melhor o objeto daangústia: é um nada. A angústia resi<strong>de</strong> na liberda<strong>de</strong>, e muitas vezes po<strong>de</strong> ser confundidaaté mesmo com uma doce ansieda<strong>de</strong>. Porém, aproximando-se mais do indivíduo, estenada se transforma num complexo <strong>de</strong> pressentimentos. O objeto continua a representarum nada, mas agora um nada com uma comunicação viva com a angústia 73 .2.2: A angústia em Adão e sua relação com a liberda<strong>de</strong>Na mesma proporção que Adão <strong>de</strong>scobre a liberda<strong>de</strong>, avança sobre ele aangústia. E eis que ela recebe sua primeira presa: a proibição. Ao invés do nada queexistia, surge uma proposição enigmática: “po<strong>de</strong>s comer do fruto <strong>de</strong> todas as árvores dojardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do Bem e do Mal, pois <strong>no</strong> dia que<strong>de</strong>le comer<strong>de</strong>s, certamente morrerás” (GÊNESIS, II, 16-17). A angústia coloca ai<strong>no</strong>cência em relação com a proibição e o castigo. Seu objeto agora é algo<strong>de</strong>terminado 74 .73 “Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há outra coisa que, sem embargo, não é agitaçãonem luta, pois não há nada contra o que lutar. Mas, então, o que é? Nada. Mas que efeito exerce estenada? Engendra a angústia. Este é o profundo mistério da i<strong>no</strong>cência, que é ao mesmo tempo angústia.Sonhando, projeta o espírito sua própria realida<strong>de</strong>. Mas esta realida<strong>de</strong> é nada e este nada vêcontinuamente fora <strong>de</strong> si a i<strong>no</strong>cência” (REICHMANN, 1971, 264).74 Já se esclareceu que <strong>no</strong> estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência a angústia está presente, e que seu objeto é o nada queantece<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong>. Colocando-se a proibição diante <strong>de</strong>ste nada, um complexo <strong>de</strong>pressentimentos sobre si mesmo inicia-se <strong>no</strong> âmago <strong>de</strong> Adão. A passagem da i<strong>no</strong>cência para a queda queo salto qualitativo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ará se fará por meio da culpa.


75A procela que se inicia na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Adão <strong>no</strong>s remete ao conceito<strong>de</strong> concupiscentia. Po<strong>de</strong>-se concordar que a inclinação das paixões humanas ten<strong>de</strong> aoproibido, e quase sempre à <strong>de</strong>masia <strong>de</strong>ste proibido que gera o prazer. A concupiscentiaé uma reação que não ocorre na i<strong>no</strong>cência, é posterior à queda, logo, é posterior ao saltoqualitativo. Também não se po<strong>de</strong> convertê-la em culpa, pois, se ela a fosse, seria aresponsável pela perda da i<strong>no</strong>cência, algo errôneo, segundo Kierkegaard. Como aproibição gera a concupiscentia, apenas o salto qualitativo po<strong>de</strong> explicar; mas quando sepermite que a proibição explique a queda converte-se o pecado a um movimentosucessivo. “Uma concupiscentia é uma <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> pecado antes daculpa e do pecado e que, <strong>no</strong> entanto, não é nem culpa nem pecado, ou seja, é posta porele” (KIERKEGAARD, 2010a, 44).Adão e o homem posterior a ele passam pelo mesmo processo subjetivo,<strong>no</strong> que se refere à angústia e ao pecado, apenas alguns aspectos os diferenciam. Nãopo<strong>de</strong>mos negar que o progresso da humanida<strong>de</strong> alterou o comportamento dos homens.A evolução numérica do gênero huma<strong>no</strong> é o que Kierkegaard <strong>de</strong><strong>no</strong>mina <strong>de</strong> saltoquantitativo. “O fato <strong>de</strong> que a angústia <strong>no</strong> indivíduo posterior é mais reflexiva, surge emconsequência da participação <strong>de</strong>ste na história da espécie, que po<strong>de</strong> se comparar com ohábito, embora <strong>de</strong> natureza diferente” (REICHMANN, 1971, 268). O salto quantitativopermite que possamos conceber o homem como gênero huma<strong>no</strong>, <strong>de</strong>terminado segundoo acumular <strong>de</strong> experiências <strong>de</strong> seus antecessores que se refletirão em si mesmo.2.3: Os conceitos <strong>de</strong> indivíduo e <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>Uma vez que o pecado original é uma consequência do primeiro pecado<strong>de</strong> Adão e que o abuso da liberda<strong>de</strong> que ele cometeu se refletiu sobre todos os seusposteriores, cabe indagar: qual é a relação <strong>de</strong> Adão com o gênero huma<strong>no</strong>? Qual é arelação do indivíduo com o gênero huma<strong>no</strong>? Se reduzirmos a relação <strong>de</strong> Adão com ogênero huma<strong>no</strong> somente ao seu primeiro pecado, segundo Kierkegaard, duas


76consequências advêm: “ou ele goza da honra bem intencionada <strong>de</strong> ser superior a todahumanida<strong>de</strong> ou da duvidosa honra <strong>de</strong> estar fora do gênero huma<strong>no</strong>” (KIERKEGAARD,2010a, 30).O primeiro pecado coloca a qualida<strong>de</strong>. Adão põe o pecado em si mesmo etambém para a espécie. O conceito <strong>de</strong> espécie, não obstante, é <strong>de</strong>masiadoamplo para que se pu<strong>de</strong>sse colocar uma categoria tão concreta como opecado, pois este é posto precisamente porque o coloca o próprio indivíduoenquanto individuo. A pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> na espécie torna-se, pois, umaaproximação quantitativa, que começa com Adão. (REICHMANN, 1971,270).Adão <strong>de</strong>ve ser compreendido como indivíduo, assim <strong>no</strong>s protegeremos<strong>de</strong> alguma <strong>de</strong>finição fantástica sobre ele. Cro<strong>no</strong>logicamente falando, Adão foi oprimeiro homem. Desta maneira, ele não inaugura apenas a categoria <strong>de</strong> indivíduo, mastambém a <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>. Po<strong>de</strong>-se afirmar, neste primeiro momento da história dahumanida<strong>de</strong>, que Adão explica o conceito <strong>de</strong> indivíduo e explica também o conceito <strong>de</strong>gênero huma<strong>no</strong>. A humanida<strong>de</strong> não se une a Adão <strong>de</strong>vido a qualquer sentimentalismobanal, também não <strong>de</strong>ve olhá-lo com ira, como um <strong>de</strong>mente que num só movimentoesbanjou a i<strong>no</strong>cência e <strong>no</strong>s con<strong>de</strong><strong>no</strong>u à perdição. O elo que une Adão a seus posterioresé a categoria <strong>de</strong> indivíduo, a que tanto Adão quanto os <strong>de</strong>mais participam. O gênerohuma<strong>no</strong> será representado pela progressão numérica da humanida<strong>de</strong>; o acúmulo <strong>de</strong>experiências que possibilitou o progresso dos homens. Como falou-se do indivíduo e <strong>de</strong>sua concepção na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, <strong>de</strong>ve estar claro que tratou-se do assuntosegundo a Dogmática.Qualquer indivíduo tem a mesma perfeição, justamente por isso os indivíduosnão se apartam uns dos outros como números, tampouco como o conceito <strong>de</strong>gênero huma<strong>no</strong> se torna um fantasma; todo e qualquer indivíduo éessencialmente interessado pela historia <strong>de</strong> todos os outros, sim, tãoessencialmente como pela sua própria. A perfeição em si mesma consiste,pois, em participar completamente na totalida<strong>de</strong>. Nenhum indivíduo éindiferente à historia do gênero huma<strong>no</strong>, e nem esta é indiferente à historia doindivíduo. Enquanto a historia do gênero huma<strong>no</strong> progri<strong>de</strong>, o indivíduoprincipia da capo, porque é ele mesmo e o gênero huma<strong>no</strong>, e aí <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo ahistoria do gênero huma<strong>no</strong> (KIERKEGAARD, 2010a, 31).


77Como se po<strong>de</strong> <strong>no</strong>tar, os conceitos <strong>de</strong> indivíduo e <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>exigiram gran<strong>de</strong>s esforços <strong>de</strong> Kierkegaard. Já se assumiu o salto quantitativo comoverda<strong>de</strong>iro, logo, admitiu-se que a pecabilida<strong>de</strong> possui uma historia <strong>no</strong> gênero huma<strong>no</strong>.Po<strong>de</strong>-se afirmar que a progressão da pecabilida<strong>de</strong> <strong>no</strong> gênero huma<strong>no</strong> se dáessencialmente através do salto quantitativo; uma vez que o salto qualitativo representauma <strong>no</strong>va qualida<strong>de</strong>, a cada vez que ele ocorresse (<strong>de</strong>ntro da progressão da humanida<strong>de</strong>)a história do gênero huma<strong>no</strong> reiniciaria, anulando assim seu avanço. Já quando se fala<strong>no</strong> indivíduo, sua contribuição neste âmbito se dá por meio do salto qualitativo 75 . Ahistória do indivíduo começa; não impõe um início à progressão do gênero huma<strong>no</strong>,mas nesta também participa por meio do salto quantitativo.2.3.1: A angústia e sua progressão <strong>no</strong> indivíduo e <strong>no</strong> gênero huma<strong>no</strong>; o surgimentodas concepções <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> culpaO avanço da humanida<strong>de</strong> segue sem paradas. A i<strong>no</strong>cência é levada ao seuápice; sucumbe. O salto qualitativo constitui-se em queda, perda do estado <strong>de</strong> graça.Com o saborear do fruto, o pecado existe in concreto; ao mesmo tempo introduziu-se adiversida<strong>de</strong> sexual enquanto instinto 76 . O conhecimento do bem e do mal gera um <strong>no</strong>vo75 É preciso consi<strong>de</strong>rar as particularida<strong>de</strong>s inerentes a cada um dos movimentos chamados porKierkegaard <strong>de</strong> salto qualitativo e salto quantitativo. O primeiro está diretamente relacionado aoindivíduo e não é incluído na progressão do gênero huma<strong>no</strong>. É instituído pelo “eu” <strong>no</strong> tomar consciênciado espírito. Esta tomada <strong>de</strong> consciência representa uma ruptura com a realida<strong>de</strong> vigente até então e oestabelecimento <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>, como a passagem da i<strong>no</strong>cência para a queda. O salto quantitativopo<strong>de</strong>rá ser observado tanto <strong>no</strong> indivíduo como <strong>no</strong> avanço do gênero huma<strong>no</strong>. No individuo po<strong>de</strong>r-se-á<strong>no</strong>tá-lo na forma <strong>de</strong> uma observação dos indivíduos anteriores; esta adaptação se transformou numconhecimento que amadurece conforme o gênero huma<strong>no</strong> evolui. No contexto <strong>de</strong> gênero huma<strong>no</strong>, o saltoquantitativo será sua própria evolução, a expressão <strong>de</strong> sua marcha. “Já que a humanida<strong>de</strong> então nãorecomeça com cada indivíduo, a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> do gênero huma<strong>no</strong> adquire <strong>de</strong>certo uma história. Estaavança, entretanto, em <strong>de</strong>terminações quantitativas, enquanto o indivíduo participa <strong>de</strong>la <strong>no</strong> saltoqualitativo. o gênero huma<strong>no</strong> não começa, portanto, com cada indivíduo – pois assim não haveria <strong>de</strong>maneira alguma gênero huma<strong>no</strong> – porém cada indivíduo recomeça com o gênero huma<strong>no</strong>”(KIERKEGAARD, 2010a, 36).76 “Com a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> foi colocada a sexualida<strong>de</strong>. No mesmo instante começa a historia da espécie”(REICHMANN, 1971, 268). A diversida<strong>de</strong> sexual contida na i<strong>no</strong>cência, e até mesmo na infância, não é opecami<strong>no</strong>so, ela se move guiada por uma ig<strong>no</strong>rância; a sexualida<strong>de</strong> é velada pela insciência. Porém,instituída a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>, a diversida<strong>de</strong> sexual manifesta-se como instinto (Drift) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro


78conceito, <strong>de</strong> importância fundamental para Kierkegaard: surge a sexualida<strong>de</strong>, ou seja, asensualida<strong>de</strong> agora é posta como pecabilida<strong>de</strong>. Antes tal diferença não existia porque aig<strong>no</strong>rância da i<strong>no</strong>cência não possuía tal conhecimento. A partir do momento que opecado original avança, a sexualida<strong>de</strong> avança como momento extremo da síntese, umconhecimento que surge com o salto qualitativo. A diferença <strong>de</strong> gênero entre o homem ea mulher se apresentará como instinto, e a história do pecado original, e do gênerohuma<strong>no</strong> será contada paralela à história da sexualida<strong>de</strong> 77 .A conseqüência foi dupla: o pecado a<strong>de</strong>ntrou <strong>no</strong> mundo e ficou estabelecidoo sexual, e um há <strong>de</strong> ser inseparável do outro. Isto é <strong>de</strong> suma importânciapara mostrar o estado original do homem. Não fosse este, com efeito, umasíntese, que repousava num terceiro, um ato só não po<strong>de</strong>ria ter duasconseqüências. Não fosse este uma síntese <strong>de</strong> alma e corpo, que é sustentadapelo espírito, jamais o sexual po<strong>de</strong>ria ter entrado com a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>(KIERKEGAARD, 2010a, 52).Mas se a angústia já existia, porque a queda não ocorreu antes? A quedireção o salto qualitativo conduziu o homem? Colocado diante da proibição, oindivíduo se corrompe, a <strong>de</strong>sobediência torna-se uma realida<strong>de</strong> e a i<strong>no</strong>cência é perdida.A angústia não po<strong>de</strong> ser a responsável pela perda da i<strong>no</strong>cência, pela queda (nem emAdão, nem <strong>no</strong> homem posterior a ele). Ambos per<strong>de</strong>m a i<strong>no</strong>cência da mesma maneira:através da culpa.Ora, se i<strong>no</strong>cência é ig<strong>no</strong>rância, então po<strong>de</strong> parecer que há uma diferençaentre a i<strong>no</strong>cência <strong>de</strong> Adão e a <strong>de</strong> qualquer homem posterior, na medida emque a culpabilida<strong>de</strong> do gênero em sua <strong>de</strong>terminida<strong>de</strong> quantitativa estápresente na ig<strong>no</strong>rância do indivíduo, e pelo ato <strong>de</strong>ste se mostra comoculpabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le. A resposta já está dada: uma mais não constitui umaqualida<strong>de</strong> (KIERKEGAARD, 2010a, 41).momento da tomada <strong>de</strong> consciência por parte do indivíduo. “A sensualida<strong>de</strong> não é a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>. Adiferença <strong>de</strong> gênero está posta na i<strong>no</strong>cência, porém não está posta enquanto tal. Só a partir do momento<strong>de</strong> que é posto o pecado, também a diferença <strong>de</strong> gênero será posta como instinto” (KIERKEGAARD,2010a, 88).77 “A pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> não é, então, a sensualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> jeito nenhum; mas, sem o pecado, não hásexualida<strong>de</strong> e, sem sexualida<strong>de</strong>, nenhuma historia. Um espírito perfeito não tem nem a primeira nem asegunda; razão pela qual, aliás, a diferença sexual fica abolida na ressurreição, e por isso anjo nenhumtem historia. Mesmo se o arcanjo Miguel tivesse registrado todas as missões às quais foi enviado, e quetinha <strong>de</strong>sempenhado, nem assim tais a<strong>no</strong>tações constituiriam sua historia. Só a partir do sexual a síntese éposta como contradição – como tarefa, cuja historia começa <strong>no</strong> mesmo momento” (KIERKEGAARD,2010a, 52).


79A culpa se expan<strong>de</strong> por toda a espécie. Po<strong>de</strong>mos ver seus efeitos ao <strong>no</strong>svoltarmos ao pecado original e à angústia. Com o primeiro pecado <strong>de</strong> Adão, quepo<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar com a <strong>de</strong>sobediência, a pecabilida<strong>de</strong> entrou <strong>no</strong> mundo; ou seja, aculpa avançou sobre a humanida<strong>de</strong>. O pecado original está relacionado com estaexpansão da culpa sobre o gênero huma<strong>no</strong>. A pecabilida<strong>de</strong> que a<strong>de</strong>ntrou <strong>no</strong> mundo como pecado <strong>de</strong> Adão continua seu avanço, e <strong>de</strong>sta maneira po<strong>de</strong>-se dizer que há umaprogressão quantitativa do pecado e, portanto, da angústia.A angústia significa, pois, duas coisas. A angústia por meio da qual oindivíduo coloca o pecado, por meio do salto qualitativo e a angústia quesobreveio e sobrevém com o pecado e que, portanto, também entra <strong>no</strong> mundo<strong>de</strong>terminada quantitativamente, a cada vez que o indivíduo põe o pecado(KIERKEGAARD, 1971, 269).O salto qualitativo referir-se-á apenas ao indivíduo, assim como aangústia que lhe cabe. Observa-se uma bifurcação <strong>no</strong> conceito <strong>de</strong> angústia. Bifurcaçãoesta diretamente relacionada com o pecado original: Kierkegaard conceituará esteselementos como angústia objetiva e angústia subjetiva.2.4: Angústia objetiva e angústia subjetivaRecor<strong>de</strong>-se que a pecabilida<strong>de</strong> entrou <strong>no</strong> mundo a partir do pecado <strong>de</strong>Adão. Deve-se compreen<strong>de</strong>r que a pecabilida<strong>de</strong> não paira apenas sobre o indivíduo, massobre toda a criação. A mudança imposta pelo salto qualitativo irradia também sobre osseres não huma<strong>no</strong>s uma realida<strong>de</strong> inteiramente diferente. Porém, é lógico que mesmoneste caso a angústia continua se apresentando como aquilo que é por natureza, como osubjetivo. Apesar da <strong>de</strong><strong>no</strong>minação, a angústia objetiva emana <strong>de</strong> Adão, assim como <strong>de</strong>


80todo homem, e reflete-se na criação 78 . “Ao entrar, pois, o pecado <strong>no</strong> mundo, adquiriuimportância para toda a criação. Este efeito do pecado na esfera não humana do ser é oque qualifiquei <strong>de</strong> angústia objetiva” (KIERKEGAARD, 2010a, 64).Consi<strong>de</strong>remos agora mais <strong>de</strong> perto o algo que o nada da angústia po<strong>de</strong>significar <strong>no</strong> indivíduo posterior. Na consi<strong>de</strong>ração psicológica ele, emverda<strong>de</strong>, já vale por algo. Mas a consi<strong>de</strong>ração psicológica não esquece que,se um indivíduo se tornasse culpado, sem mais, só <strong>de</strong>vido a este algo, toda equalquer observação estaria anulada (KIERKEGAARD, 2010a, 68).A angústia subjetiva refere-se diretamente ao salto qualitativo e àliberda<strong>de</strong>. Consequentemente se admite que esta angústia torna-se mais refletida <strong>no</strong>indivíduo posterior do que em Adão, uma vez que a progressão numérica gera aevolução da espécie, nestes termos dos quais se tratou. Po<strong>de</strong>-se ilustrar isto dizendo queo nada (objeto da angústia) cada vez mais se aproxima <strong>de</strong> ser algo; um complexo <strong>de</strong>pressentimentos que se aproxima mais e mais do indivíduo, mantendo com este umacomunicação viva. A liberda<strong>de</strong> se comunica com o espírito através <strong>de</strong>sta angústia. “Naangústia resi<strong>de</strong> a infinitu<strong>de</strong> egoísta da possibilida<strong>de</strong>, que não tenta como uma escolha,mas angustia, insinuante com sua doce ansieda<strong>de</strong>” (KIERKEGAARD, 2010a, 67).Trata-se <strong>de</strong> um sentimento zeloso para com o “eu”; convém lembrar que estareflexivida<strong>de</strong> nada significa para a angústia antes do indivíduo tornar-se culpado.Assim, a Dogmática evita que ela converta a angústia subjetiva em culpa 79 .78 A angústia objetiva representa uma mudança na realida<strong>de</strong> dos seres não huma<strong>no</strong>s <strong>de</strong>vido à corrupção<strong>de</strong> Adão. O pecado adquire importância para toda a criação a ponto <strong>de</strong> fazê-la cúmplice da falta <strong>de</strong> Adão.79 Kierkegaard alerta-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>ste perigo, a saber, da conversão da angústia em culpa, uma vez que aangústia é o proteu dos sentimentos huma<strong>no</strong>s. Ela está diretamente ligada ao salto qualitativo e ao saltoquantitativo, uma vez que ambos <strong>de</strong>monstram sua evolução e a do pecado. Desta maneira, suas<strong>de</strong>terminações aproximam-se uma da outra, mesmo elas possuindo naturezas diferentes: a angústiaconstituindo a reação do indivíduo diante da relação dos elementos da síntese entre si, estando ou não oespírito e o instante presentes; e a culpa, conceito estabelecido pela colocação da pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> econdição da perda da i<strong>no</strong>cência. “Quanto mais reflexivamente se ousa pôr a angústia, tanto maisfacilmente po<strong>de</strong>ria parecer que se consegue convertê-la em culpa. Mas é importante não se <strong>de</strong>ixar enganarpor <strong>de</strong>terminações aproximativas; que nenhum ‘mais’ produz o salto, que nenhum ‘mais facilmente’facilita em verda<strong>de</strong> a explicação” (KIERKEGAARD, 2010a, 66).


812.5: Uma análise do valor das consi<strong>de</strong>rações éticas e psicológicas acerca do pecadoÉtica e Psicologia fornecem pontos <strong>de</strong> vista sobre o pecado; suasconclusões não chegam a ser concepções, uma vez que alteram a natureza do pecado,comprometendo assim a análise. Segundo Kierkegaard, po<strong>de</strong>-se afirmar que na Ética,mais do que na Psicologia, o pecado aproxima-se do seu conceito real. A Ética é umaciência i<strong>de</strong>al num sentido superior a que todas as ciências o são: ela tenta transportar ai<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> para a realida<strong>de</strong>; nunca é meramente observadora, mas pressupõe um julgar eum exigir na sua conduta. “A Ética mostra a i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> como tarefa e pressupõe que ohomem esteja <strong>de</strong> posse das condições. Com isso, a Ética <strong>de</strong>senvolve uma contradição,justamente ao tornar nítidas a dificulda<strong>de</strong> e a possibilida<strong>de</strong>” (KIERKEGAARD, 2010a,19).Longe <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r explicar a pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> <strong>no</strong> indivíduo, a dificulda<strong>de</strong> tinha<strong>de</strong> tornar-se ainda maior e eticamente mais enigmática à medida que opecado do indivíduo se expandia em pecado <strong>de</strong> toda a geração. Veio então aDogmática e auxiliou com o pecado original. A Ética pressupõe a Dogmática,e com essa o pecado original, <strong>de</strong> que se serve para explicar o pecado doindivíduo, enquanto ao mesmo tempo institui como tarefa a i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>,porém não <strong>no</strong> movimento (KIERKEGAARD, 2010a, 22).Passemos à investigação da Psicologia. Primeiro <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar queo principal mecanismo da análise psicológica é a observação. Devido a esta natureza,<strong>no</strong>ssa atenção <strong>de</strong>verá se voltar também para o observador, já que este <strong>de</strong>verá interpretaro que foi analisado. “A atmosfera da Psicologia é a da angústia <strong>de</strong>scobridora e em suaangústia ela copia os contor<strong>no</strong>s do pecado, apavorando-se mais e mais ante o <strong>de</strong>senhoque ela própria faz aparecer. Quando é tratado <strong>de</strong>sta maneira o pecado se transforma <strong>no</strong>mais forte, pois a Psicologia se relaciona com ele <strong>de</strong> modo propriamente femini<strong>no</strong>”(KIERKEGAARD, 2010a, 18). É certo que esta análise possui sua verda<strong>de</strong>, e que ela épossível mesmo antes que a preocupação ética surja <strong>no</strong> indivíduo. Deve-se lembrar quequanto mais próximas e mais recentes maiores as chances <strong>de</strong> sucesso da observaçãopsicológica. Voltando-se para o objeto a ser analisado, será preciso <strong>de</strong>limitar aabrangência da Psicologia, ou ela tentará explicar algo que está além <strong>de</strong> seu alcance. Por


82ser uma ciência observadora, compreen<strong>de</strong>rá o pecado mediante sua realida<strong>de</strong> efetiva;não explica o salto nem <strong>de</strong>termina o pecado original. Po<strong>de</strong>-se compreendê-la como oestudo do comportamento subjetivo.Como a Psicologia po<strong>de</strong>rá explicar o pecado sem explicar o saltoqualitativo e a expansão da pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong> na criação, o pecado original? Deve-seesclarecer a natureza do pecado. “O pecado não tem seu lugar em nenhuma ciência. Eleé o objeto daquela pregação em que o indivíduo, como indivíduo, se dirige aoindivíduo” (KIERKEGAARD, 2010a, 18). Como foi dito na introdução do presentetrabalho, o “eu” é uma síntese, esta síntese possui um Self e este Self é posto por Deus.Surge assim a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer a uma explicação capaz <strong>de</strong> abranger taisconceitos: a Dogmática.A ciência que tem a ver com a explicação é a Psicologia que, contudo, só écapaz <strong>de</strong> explicar o rumo da explicação e, sobretudo, <strong>de</strong>ve cuidar <strong>de</strong> não dar aaparência <strong>de</strong> querer explicar o que nenhuma ciência explica, e que somente aÉtica avança um pouco mais na explicação ao pressupô-la recorrendo àDogmática. Se tomarmos a explicação psicológica e a retomarmos váriasvezes, e a partir daí acharmos que não é inverossímil que o pecado tenhavindo ao mundo realmente <strong>de</strong>sta maneira, já teremos confundido tudo. APsicologia tem <strong>de</strong> permanecer <strong>de</strong>ntro dos seus limites, e aí sua explicaçãopo<strong>de</strong>rá sempre ter importância (KIERKEGAARD, 2010a, 42).Após os apontamentos anteriores, seguindo a progressão dasobservações, cabe concentrar as energias num melhor esclarecimento sobre o pecado eseus <strong>de</strong>sdobramentos. Continuando a seguir os passos <strong>de</strong> Kierkegaard, <strong>de</strong>ve-se agoraanalisar qual é o papel <strong>de</strong> Eva na progressão histórica e na concepção dogmática, paraque a investigação seja a mais completa possível.


832.6: Eva“Eva foi criada, formada da costela <strong>de</strong>le. Ela estava numa relação comele tão íntima quanto possível e, não obstante, esta ainda era uma relação exterior. Adãoe Eva eram apenas uma repetição numérica” (KIERKEGAARD, 2010a, 50). Destamaneira, po<strong>de</strong>-se admitir a natureza <strong>de</strong> síntese também em Eva. Deve-se admitirtambém que Eva é um ser <strong>de</strong>rivado, portanto, por sua natureza, inferior ao serprimordial 80 . Disto advém, como será exposto adiante, que a mulher é mais sensual emais propensa à angústia do que o homem.Deve-se <strong>no</strong>tar que a mulher foi seduzida primeiro, e <strong>de</strong>pois seduziuAdão. Já se falou acerca da proibição e da queda. Mas junto com o surgimento <strong>de</strong> Evasurge a questão da serpente. “A serpente era o mais astuto <strong>de</strong> todos os animais docampo que o Senhor Deus tinha formado” (GÊNESIS, III, 1). Segundo Kierkegaard, aserpente foi o elemento que mais exigiu os seus esforços, a ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar esteconceito in suspenso. “Prefiro confessar, com lisura, que não consigo ligar nenhumai<strong>de</strong>ia exata a ela. Aliás, a dificulda<strong>de</strong> com a serpente é bem outra: ou seja, a <strong>de</strong> dar àtentação uma proveniência externa” (KIERKEGAARD, 2010a, 52). O principal entraveencontrado neste conceito é que ela, a serpente, se introduz na relação entre o homem e80 Deve-se consi<strong>de</strong>rar que a <strong>de</strong>finição que interessa neste caso é a que acorda com a concepção <strong>de</strong> sínteseexposta anteriormente. Po<strong>de</strong>-se encontrar esta <strong>no</strong>ção, a saber, do caráter secundário da mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> numxamã até num cavaleiro romântico, sendo tais argumentos fundamentados pelos mais variados valores,tradições e concepções. Características fisiológicas e <strong>de</strong>finições poéticas à parte, a inferiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Evadiante <strong>de</strong> Adão, segundo Kierkegaard, fica clara ao analisar-se a mulher <strong>no</strong> estágio estético, ético ereligioso, respectivamente. No estágio estético a mulher encontra seu âmbito; a síntese feminina possuidireitos <strong>de</strong> cidadania nesta esfera existencial, como foi exposto acima. O homem aproxima-se da mulher,nesta ocasião, como adorador; a imediatida<strong>de</strong> característica do estágio estético culmina <strong>no</strong> <strong>de</strong>sejo. Deve aela o que ele faz <strong>de</strong> belo, porque ela o entusiasma. Mas ela exerce este papel por um curto tempo, apenasenquanto sua beleza é capaz <strong>de</strong> cativar o homem. Quando seu i<strong>de</strong>al estético, a beleza, falseia, suaprincipal contribuição ao homem cessa e ela passa a ser um personagem in<strong>de</strong>terminado, acompanhada da<strong>no</strong>stalgia <strong>de</strong> melhores horas. Avançando para a análise ética, a mulher, que a estética via como objeto do<strong>de</strong>sejo, po<strong>de</strong> contar com um <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> mais agradável: “Mas quem disse que ela <strong>de</strong>ve lançar-se nestetorvelinho? A mesma jovem tratada serena, suave e carinhosamente, talvez chegasse a ser uma criaturadigna <strong>de</strong> ser amada como mãe e como esposa” (REICHMANN, 1971, 109). Desta maneira, vê-se que porsi só a mulher não sustenta sua <strong>no</strong>breza, mas apenas quando firma um pacto com o homem, neste caso, omatrimônio. Fica clara assim a concepção <strong>de</strong> que a mulher está condicionada, em mais <strong>de</strong> um aspecto, aohomem. Enfim, chega-se ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> existência <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>. Neste caso, a saber, <strong>no</strong> estágio religioso,a i<strong>de</strong>ia principal é que o espírito siga adiante e compreenda a fé como telos. O estágio religioso não se<strong>de</strong>tém sobre a diferença <strong>de</strong> gêneros encontrada na síntese, apenas ocupa-se com o espírito e com aintensida<strong>de</strong> da fé. Neste caso po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r o homem e a mulher em igualda<strong>de</strong>.


84a divinda<strong>de</strong>, contrariando assim a clássica passagem <strong>de</strong> São Tiago: “Deus não tenta nemé tentado por ninguém”. Já foi admitido, com base <strong>no</strong>s argumentos do próprioKierkegaard, que a tentação partiu da própria angústia quando, ainda na i<strong>no</strong>cência, ao sevoltar para a liberda<strong>de</strong>, ela põe Adão em contato com a proibição e com o castigo. Porisso, admitir-se-á a serpente como uma tentativa <strong>de</strong> externar o que se passa <strong>no</strong> interior.Seguem então a proibição e o juízo. Mas a serpente era o mais astuto dosanimais e feras dos campos: ela seduziu a mulher. Mesmo que se <strong>de</strong>sejeconsi<strong>de</strong>rar isto um mito, não se <strong>de</strong>ve esquecer, entretanto, que ele nãoperturba o <strong>pensamento</strong> ou confun<strong>de</strong> o conceito, tanto como o faz um mito doentendimento. O mito faz com que se passe <strong>no</strong> exterior o que é interior(KIERKEGAARD, 2010a, 51).Como foi dito, a serpente seduziu Eva primeiro e então ela seduz Adão.Convém “trazer” Eva <strong>de</strong> volta à análise, para que a investigação possa prosseguir. Estei<strong>de</strong>al estético, <strong>no</strong> momento <strong>de</strong> concreção da síntese se manifestará <strong>de</strong> maneira superiorao outro elemento, o ético, e a angústia igualmente se voltará com maior energia sobreele. O i<strong>de</strong>al estético será elevado, e a síntese feminina (Eva ou qualquer outra mulher)será a expressão <strong>de</strong>sta manifestação. Do ponto <strong>de</strong> vista ético, parte inferior da síntesefeminina, a mulher culmina na procriação. Isto está <strong>de</strong> acordo com as Escrituras quandose lê que os <strong>de</strong>sejos da mulher a impelem para o homem 81 . Estes fatores comprovam,justamente, que a mulher é mais sensual do que o homem.Nas linhas anteriores afirmou-se que com o primeiro pecado <strong>de</strong> Adão opecado entrou <strong>no</strong> mundo e a sexualida<strong>de</strong> foi admitida como pecami<strong>no</strong>sida<strong>de</strong>. Retorne-seà diferença sexual <strong>no</strong> estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência. Como a diferença <strong>de</strong> gêneros já se encontravaneste estado, po<strong>de</strong>-se afirmar que ela em si não é o pecami<strong>no</strong>so. A diferença existia,mas não era conhecida, uma vez que a i<strong>no</strong>cência, mesmo quando <strong>de</strong>terminada rumo aum saber, dirige-se a ele com insciência. Este é o conceito <strong>de</strong> pudor.No pudor há uma angústia, porque o espírito, <strong>no</strong> ápice da diferença dasíntese, está <strong>de</strong>stinado <strong>de</strong> maneira a não ser <strong>de</strong>terminado meramente comocorpo, mas sim como um corpo com a diferença genérica, o que quer dizer, apulsão não está presente enquanto tal. O real significado <strong>de</strong> pudor está em81 “Multiplicarei os sofrimentos <strong>de</strong> teu parto; darás à luz com dores, teus <strong>de</strong>sejos te impelirão para o teumarido e estarás submissa a ele” (GENÊSIS, III, 16).


85que o espírito não po<strong>de</strong>, por assim dizer, admitir o ápice da síntese(KIERKEGAARD, 2010a, 76).Po<strong>de</strong>-se dizer que <strong>no</strong> pudor está posta a diferença <strong>de</strong> gênero, mas semrelação com o seu outro; e a sexualida<strong>de</strong> será a expressão da contradição <strong>de</strong> um espíritoque <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>terminado segundo seu gênero e, como tal, será <strong>de</strong>terminada após osalto. No domínio erótico esta contradição se manifesta na beleza, uma vez que estaseria o i<strong>de</strong>al da unida<strong>de</strong> do anímico e do corpóreo.2.7: Uma análise do instante e <strong>de</strong> sua relação com a angústiaEsclarecida a concepção <strong>de</strong> pecado <strong>no</strong> estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, e tambémcom o espírito já constituído, passe-se à análise seguinte. Deve-se recordar <strong>no</strong>vamente oconceito <strong>de</strong> homem: “o homem é uma síntese <strong>de</strong> finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong>,liberda<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong>” (KIERKEGAARD, 2010a, 25). No início do segundo capítuloa atenção concentrou-se na primeira síntese, a saber, finito e infinito (alma e corpo).Convém agora que se passe à análise da segunda síntese: temporal e eter<strong>no</strong>. Emprimeiro lugar <strong>de</strong>ve-se i<strong>de</strong>ntificar o terceiro termo, uma vez que sem este não há síntese.No primeiro caso (finito e infinito) o terceiro termo é o espírito. Salta aos olhos que anatureza <strong>de</strong>sta síntese é diferente. On<strong>de</strong> se acha, neste caso, o terceiro termo? Para isso<strong>de</strong>ve-se compreen<strong>de</strong>r antes o temporal.Quando se <strong>de</strong>fine o tempo como sucessão infinita, o próximo passo seria<strong>de</strong>terminar seu transcorrer como presente, passado e futuro. Mas a <strong>de</strong>terminação nestecaso, segundo Kierkegaard, é falha já que não há um ponto fixo que vali<strong>de</strong> taisvariações <strong>de</strong> tempo. O que ocorre é que se paralisa a sucessão infinita e se espacializaum lapso <strong>de</strong> tempo, para que os conceitos <strong>de</strong> presente, passado e futuro sejamintroduzidos.


86O presente não é, entretanto, um conceito do tempo, a não ser justamentecomo algo infinitamente vazio <strong>de</strong> conteúdo, o que, por sua vez, correspon<strong>de</strong>ao <strong>de</strong>saparecer infinito. Se não atentarmos para isso, teremos posto opresente, mesmo que o <strong>de</strong>ixemos <strong>de</strong>saparecer rapidamente e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê-loposto, ele <strong>no</strong>vamente se apresentará nas <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> passado e futuro(KIERKEGAARD, 2010a, 93).Se esta paralisação <strong>no</strong> tempo não for instituída, o eter<strong>no</strong> será o presentecomo sucessão abolida; não se encontrariam as <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> passado e futuro.Conforme Farago, “percebe-se em Kierkegaard a clara intuição que não convém exilar aeternida<strong>de</strong> do próprio tempo. A eternida<strong>de</strong> <strong>no</strong> tempo: eis a re<strong>de</strong>nção. O tempo só ganhasentido, efetivamente, quando é capaz <strong>de</strong> se pôr à escuta da eternida<strong>de</strong>” (FARAGO,2006, 153).Neste caso o eter<strong>no</strong> é o presente, e o presente ple<strong>no</strong>. Diante <strong>de</strong>staquestão, surge na filosofia <strong>de</strong> Kierkegaard o conceito <strong>de</strong> instante. O instante é anterior àdivisão presente, passado e futuro: é o ponto comum entre a vida empírica e a plenitu<strong>de</strong>da eternida<strong>de</strong>; em nada se assemelha ao tempo que passa; exprime um momento <strong>de</strong>graça, uma beatitu<strong>de</strong> eterna. “O instante é o momento <strong>de</strong> graça em que, como diziaSpi<strong>no</strong>za, ‘sentimos e experimentamos que somos eter<strong>no</strong>s’. Po<strong>de</strong> o homem, aqui e agora,abrir-se à eternida<strong>de</strong>” (FARAGO, 2006, 154).Designa o presente como tal que não possui passado nem futuro. Destamaneira, po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r o instante não como um átomo do tempo, mas como umátomo da eternida<strong>de</strong>. A questão levantada, a saber, on<strong>de</strong> se acha o terceiro termo,encontra aqui sua resposta: o terceiro termo é o instante.No instante ele se torna consciente <strong>de</strong> seu renascimento, pois seu estadoprece<strong>de</strong>nte, ao qual não <strong>de</strong>ve reportar-se, era o não ser. (...) Enquanto, pois,todo o pathos grego se concentra sobre a recordação, o pathos <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssoprojeto encontra-se sobre o instante (KIERKEGAARD, 1995, 41).Deve-se recordar que se está tratando o conceito <strong>de</strong> instante como ummomento da síntese; como expressão daquela primeira síntese, alma e corpo, em que o


87espírito é instituído. Neste caso a síntese institui o instante, concomitantemente àinstituição do espírito 82 .Se quisermos usar agora o instante para com ele <strong>de</strong>finir o tempo, e fazer oinstante <strong>de</strong>signar a exclusão puramente abstrata do passado e do futuro e,como tal, o presente, então o instante não será exatamente o presente, pois ointermediário entre o passado e o futuro, pensado <strong>de</strong> maneira puramenteabstrata, simplesmente não é nada. Mas assim se vê que o instante nãoconstitui uma mera <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> tempo, dado que a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong>tempo é apenas que ele passa (e se vai), razão por que o tempo – se há <strong>de</strong> ser<strong>de</strong>finido por qualquer das <strong>de</strong>terminações que se manifestam <strong>no</strong> tempo – é otempo passado. Se, ao invés, o tempo e a eternida<strong>de</strong> se tocarem um <strong>no</strong> outro,então terá <strong>de</strong> ser <strong>no</strong> tempo, e agora chegamos ao instante (KIERKEGAARD,2010a, 94).O instante é a consequência da interação entre tempo e eternida<strong>de</strong> 83 , umaambiguida<strong>de</strong>, a tentativa da síntese <strong>de</strong> fazer parar o tempo, e com isso surge o conceitotemporalida<strong>de</strong>, compreendido por Kierkegaard como “o momento em que o tempoincessantemente corta (afskoerer) a eternida<strong>de</strong>, e a eternida<strong>de</strong> constantemente impregna(gjennemtroenger) o tempo. Só agora adquire significado a mencionada divisão: tempopresente, tempo passado e tempo futuro” (KIERKEGAARD, 2010a, 96).Posta esta divisão, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>finir os conceitos <strong>de</strong> passado, futuro eeter<strong>no</strong> a partir da <strong>de</strong>finição do instante. Conforme a concepção po<strong>de</strong> significar que ofuturo, num certo sentido, é o todo. Isto aproxima <strong>de</strong>masiadamente as concepções <strong>de</strong>82 Vale lembrar que anterior à instituição do espírito havia o estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência. Desta maneira, é corretocompreen<strong>de</strong>r o instante como ausente do estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, condição idêntica à do espírito.83 Como se vê o instante resulta da natureza do homem; “o homem é um ser em situação, mas trata-se <strong>de</strong>uma situação <strong>de</strong> um ser dilacerado entre o tempo e a eternida<strong>de</strong>. Esta referência é que faz do homem, queé homem, o peregri<strong>no</strong> do absoluto” (FARAGO, 2006, 152). Privilégio que, como ficou exposto, constituio instante. Concebendo-o (o instante) como manifestação da eternida<strong>de</strong>; “o instante é o tempo que chegouà plenitu<strong>de</strong>” (FARAGO, 2006, 153). Po<strong>de</strong>-se afirmar que o conceito temporal não o abarcará. Porconstituir uma abertura do temporal ao eter<strong>no</strong>, assume-se agora que tal conceito não possui uma <strong>de</strong>finiçãodireta, mas sim dialética, já que como em todos os conceitos relacionados com a eternida<strong>de</strong> uma parcela<strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> entra em sua <strong>de</strong>finição; <strong>de</strong>ste modo, concebe-se tal conceito alheio à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> tempoque passa, a saber, presente, passado e futuro (já que a eternida<strong>de</strong>, como Kierkegaard a concebe, não seencontra em tais <strong>de</strong>terminações). “Este é o estágio religioso on<strong>de</strong> o homem, pela mediação do espírito, narelação com o eter<strong>no</strong> é levado sempre <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo, dia após dia, a viver esse amplexo: vive-se então o tempo<strong>no</strong> modo instante que permite a repetição” (FARAGO, 2006, 154); em relação com a eternida<strong>de</strong>, não sepo<strong>de</strong> dizer que o tempo passa, mas sim que o temporal é acolhido pela eternida<strong>de</strong>. Admitiu-se o instantecomo uma manifestação do estágio religioso, logo, admite-se o concomitantemente em perfeita harmonia;neste âmbito Kierkegaard localiza a repetição: o viver a eternida<strong>de</strong>; gozo ple<strong>no</strong> <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong> e envolto napaixão infinita, a saber, na fé. Remanesce aqui uma das características da fé: a inquietação e a vigilância.A repetição exige uma constância <strong>de</strong> espírito, uma reafirmação da fé; não como uma contemplação <strong>de</strong>Deus, mas como uma ação.


88eter<strong>no</strong> e <strong>de</strong> futuro. Em outro sentido, o instante e o futuro põem a categoria <strong>de</strong> passado;em que o eter<strong>no</strong> libertou-se das garras do futuro, mas foi enredado pelo passado 84 .O conceito ao redor do qual tudo gira <strong>no</strong> cristianismo, aquele que torna <strong>no</strong>vastodas as coisas, é o <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> dos tempos, mas a plenitu<strong>de</strong> do tempo é oinstante como eter<strong>no</strong>, e, contudo, este eter<strong>no</strong> é também o futuro e o passado.Não se dando atenção a isso, não será possível salvar um só conceito <strong>de</strong>alianças heréticas e traiçoeiras que aniquilam o próprio conceito. Não secapta o passado a partir <strong>de</strong>le mesmo e sim numa simples continuida<strong>de</strong> com ofuturo (com isso, os conceitos <strong>de</strong> conversão, reconciliação e re<strong>de</strong>nção seper<strong>de</strong>m na história universal e também <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento histórico doindivíduo). Não se capta o futuro a partir <strong>de</strong>le mesmo e sim numa simplescontinuida<strong>de</strong> com o presente (com isso naufragam os conceitos <strong>de</strong>ressurreição e juízo) (KIERKEGAARD, 2010a, 97-98).Na filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana, po<strong>de</strong>-se <strong>no</strong>tar que conceitos fulcraisencontram-se entrelaçados ao conceito <strong>de</strong> “eu”. O instante neste caso não <strong>de</strong>verá sercompreendido como mera <strong>de</strong>terminação temporal, mas sim <strong>de</strong> acordo com a síntese.Pensado enquanto elemento formador da síntese, o instante será condição <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta se relacionar com a divinda<strong>de</strong>. Enquanto a síntese não captar oinstante, não como zona temporal, mas ao lado do espírito na edificação do “eu”, tratasedo indivíduo ainda <strong>de</strong> maneira socrática.Entre os conceitos próprios <strong>de</strong> Kierkegaard o <strong>de</strong> instante é o maissurpreen<strong>de</strong>nte. E é também polissêmico. No estágio estético, o instantesuce<strong>de</strong>ndo ao instante, era a própria vida, seus gozos e tormentos. Nas84 Usar-se-á a <strong>no</strong>ção cristã e a <strong>no</strong>ção pagã grega, respectivamente, para explicar melhor o acima exposto.“Isto resulta <strong>de</strong> o eter<strong>no</strong> primeiramente significar o futuro, ou que o futuro seja o incógnito <strong>no</strong> qual oeter<strong>no</strong>, como incomensurável com o tempo, quer mesmo assim salvaguardar seu relacionamento com otempo. Assim o uso lingüístico toma às vezes como idêntico o futuro e o eter<strong>no</strong> (vida futura= vidaeterna)” (KIERKEGAARD, 2010a, 97). Neste caso, o eter<strong>no</strong> encontra-se velado <strong>no</strong> futuro, e ambos osconceitos são obscurecidos por esta estranha interação. Conforme Kierkegaard, <strong>de</strong>ve-se compreen<strong>de</strong>r oeter<strong>no</strong> como o presente ple<strong>no</strong>, abolido o tempo como sucessão; “ele é uma progressão, porém progressãoque não sai do lugar, porque o eter<strong>no</strong> para a imaginação é o presente infinitamente ple<strong>no</strong> <strong>de</strong> conteúdo”(KIERKEGAARD, 2010a, 94). O conceito <strong>de</strong> futuro pertence à esfera da sucessão temporal, ao <strong>de</strong>vir,porém referindo-se exclusivamente ao tempo vindouro. O instante, como foi exposto, será o elementocomum entre o tempo e a eternida<strong>de</strong>. Se for possível <strong>de</strong>terminar uma categoria <strong>de</strong> tempo <strong>no</strong> paganismogrego, esta é a <strong>de</strong> passado. Po<strong>de</strong>-se citar a reminiscência grega como gran<strong>de</strong> expressão do conceito <strong>de</strong>passado. Os gregos não possuíam, segundo Kierkegaard, uma correta <strong>no</strong>ção do instante e da eternida<strong>de</strong>.“É como se eu pusesse um homem a percorrer um caminho, porém não mostrasse um só passo, e <strong>de</strong>repente o caminho aparecesse atrás <strong>de</strong>le como percorrido” (KIERKEGAARD, 2010a, 97). Neste irpassando, o recordar platônico mostra sua significação: trata-se <strong>de</strong> um recuo. “Já que os gregos nãotinham num sentido mais profundo o conceito <strong>de</strong> eter<strong>no</strong>, não tinham também o <strong>de</strong> futuro. (...) O eter<strong>no</strong>dos gregos situa-se lá atrás, como um passado em que só se entra recuando” (KIERKEGAARD, 2010a,97).


89Migalhas filosóficas é o momento em que o Deus se faz homem, quando aeternida<strong>de</strong> vem <strong>de</strong> certa forma seccionar a temporalida<strong>de</strong>. É enfim o <strong>no</strong>medado à revista polêmica na qual Kierkegaard lançou um ataque acerbo ecorrosivo a Igreja (FARAGO, 2006, 153).Neste estado é posto um sinal <strong>de</strong> igual entre o eter<strong>no</strong> e o futuro,tornando-se o último uma projeção do primeiro; neste caso o instante estará à <strong>de</strong>riva,afastado <strong>de</strong> sua terra natal. Segundo Kierkegaard “o instante vem à luz justamente pelarelação da <strong>de</strong>cisão eterna para com a ocasião que lhe é <strong>de</strong>sigual. Se não for assim,recairemos <strong>no</strong> socrático e então não alcançaremos nem o <strong>de</strong>us, nem a <strong>de</strong>cisão eterna,nem o instante.” (KIERKEGAARD, 1995, 47).2.8: A angústia como consequência do pecadoEm relação ao indivíduo, seus próximos movimentos, segundoKierkegaard, se mostrarão como estados e, como tais, <strong>de</strong>verão ser tratados pelaPsicologia. “A Psicologia agora reencontrou a angústia como seu objeto; <strong>de</strong>ve, contudo,ser cuidadosa. A história da vida individual progri<strong>de</strong> num movimento que vai <strong>de</strong> estadoa estado. Cada estado é posto com um salto 85 . Tal como o pecado entrou <strong>no</strong> mundo, elecontinua a entrar, se não é estancado” (KIERKEGAARD, 2010a, 122). Delimitando oobjeto à individualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve-se compreen<strong>de</strong>r os estados acima mencionados comoaproximações psicológicas, ou seja, como o estágio mais próximo ao salto que conduzao estado subsequente. O pecado penetrou <strong>no</strong> indivíduo in succum et sanguinem 86 ,permanecendo como uma variável perene na vida humana. Dito isto, cabe indagar:como a angústia se relaciona com o pecado neste âmbito exclusivamente individual?Como a Psicologia abarca esta singular interação e como a compreen<strong>de</strong>? Diante <strong>de</strong>stasquestões mover-se-á o presente subcapítulo.85 Deve-se lembrar que o conceito <strong>de</strong> salto aqui empregado não é semelhante ao conceito <strong>de</strong> saltoqualitativo ou <strong>de</strong> salto quantitativo.86 Na carne e <strong>no</strong> sangue.


90A angústia, analisada sob este prisma, a saber, como consequência dopecado, se apresentará sob duas possibilida<strong>de</strong>s: a angústia diante do mal e a angústiadiante do bem (este estado é chamado por Kierkegaard <strong>de</strong> <strong>de</strong>moníaco e será analisado<strong>no</strong> subcapítulo seguinte). Nestes casos, os conceitos <strong>de</strong> bem e mal serão fulcrais ecompreendidos conforme a Dogmática os expressa. O pecado será o elemento comumentre eles e cada situação gerará uma consequência diversa. “Depara-se a angústia coma realida<strong>de</strong> do pecado, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> sofisticamente ela produz a possibilida<strong>de</strong>, enquanto que,do ponto <strong>de</strong> vista ético, ela peca” (KIERKEGAARD, 2010a, 124). A angústia diante domal, <strong>de</strong> acordo com Kierkegaard, se expressará como um constrangimento diante dopecado, diante da realida<strong>de</strong> do pecado. A angústia se relacionará com o pecado, nestecaso específico, como uma realida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>vida. Ela se ocupará <strong>de</strong> negá-la, e concentrarátoda sua engenhosida<strong>de</strong> nisto.A angústia quer banir a realida<strong>de</strong> do pecado, porém não completamente, oumelhor: quer, até certo ponto, dar a realida<strong>de</strong> do pecado como concluída, massó até certo ponto, bem entendido. Assim, ela não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter uma inclinação<strong>de</strong> flertar um pouco com as <strong>de</strong>terminações quantitativas, sim, quanto maisevoluída ela é, mais adiante ousará levar este galanteio, mas tão logo osgracejos e passatempos da <strong>de</strong>terminação quantitativa querem capturar oindivíduo <strong>no</strong> salto qualitativo, aí a angústia se retrai cautelosamente e tem alium pontinho que <strong>de</strong>ve ser salvo, e que é sem pecado; e <strong>no</strong> instante seguinteum outro (KIERKEGAARD, 2010a, 123).A Ética não compreen<strong>de</strong> o pecado como um estado. O estado constitui,como se afirmou, uma aproximação psicológica rumo ao estado seguinte. Diante <strong>de</strong>stapossibilida<strong>de</strong>, a angústia po<strong>de</strong> <strong>de</strong>crescer ou se potencializar, quando colocada perante apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pecar ainda mais. Desta forma, surge uma clivagem na concepção éticaacerca da relação do indivíduo com o pecado: se a angústia <strong>de</strong>cresce, a consequência dopecado se concentra e submete o arrependimento, corroboração da supressão daangústia pelo pecado. A existência oferece vários exemplos como estes citados; elescorrespon<strong>de</strong>m às naturezas corrompidas, incapazes <strong>de</strong> se libertarem das consequênciasdo pecado.Como foi dito, a análise ética exige diante do pecado o arrependimento,mas não é capaz <strong>de</strong> convertê-lo em liberda<strong>de</strong>. “O pecado avança na sua consequência, oarrependimento o segue passo a passo, porém sempre um instante atrasado”


91(KIERKEGAARD, 2010a, 125). Neste caso, houve uma alteração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res entre aangústia e o pecado. Ao invés da hegemonia do pecado, há a supremacia da angústia.A angústia vai à frente, ela <strong>de</strong>scobre a conseqüência antes que esta chegue,como se po<strong>de</strong> pressentir em si mesmo que uma tempesta<strong>de</strong> está a se formar;ela se aproxima, e o indivíduo treme como um cavalo que estanca, fremente,<strong>no</strong> lugar on<strong>de</strong> alguma vez se assustou. O pecado triunfa. A angústia atira-se<strong>de</strong>sesperada <strong>no</strong>s braços do arrependimento. O arrependimento arrisca suaverda<strong>de</strong>ira cartada. Concebe a conseqüência do pecado como o pa<strong>de</strong>cimento<strong>de</strong> um castigo, a perdição como conseqüência do pecado. Ele está perdido,sua sentença já foi lida, sua con<strong>de</strong>nação está garantida, e o agravamento dapena resi<strong>de</strong> em que o indivíduo será arrastado através da existência até olocal da execução. Em outras palavras: o arrependimento enlouqueceu(KIERKEGAARD, 2010a, 125).O arrependimento é mais profundo <strong>no</strong>s indivíduos <strong>de</strong> natureza maiselevada. Mesclado com a angústia, toma proporções <strong>de</strong>scomunais. Porém, mesmoassim, é presa da angústia; não po<strong>de</strong> se libertar nem libertar o indivíduo. A prostração (enão perda, pois esta se fará <strong>no</strong> caso subsequente, a saber, <strong>no</strong> <strong>de</strong>moníaco) da liberda<strong>de</strong> éuma consequência certa; a ira triunfou 87 . Conforme Kierkegaard, esta variação daangústia é mais rara. Necessita <strong>de</strong> um espírito que, apesar <strong>de</strong> elevado, enterrou suasraízes nas profun<strong>de</strong>zas. Po<strong>de</strong>-se personificar um tal indivíduo através do personagemshakespearia<strong>no</strong> Rei Lear, que após per<strong>de</strong>r seu tro<strong>no</strong> <strong>de</strong>vido à traição <strong>de</strong> suas filhas(exceto Cordélia), conserva forças apenas para se afligir.Lutando contra inquietos elementos; pe<strong>de</strong> ao vento que o mar afogue a terra,ou que subam as águas para os montes, que tudo cesse ou mu<strong>de</strong>: se<strong>de</strong>sgrenhe, e as lufadas do vento, cego em fúria, pegam <strong>no</strong> ar as cãs que nãorespeitam. Quer que o huma<strong>no</strong> <strong>de</strong>rrote a tempesta<strong>de</strong>, a ventania e a chuva sebatem. Nesta <strong>no</strong>ite, em que o urso escon<strong>de</strong> a prole, em que o leão e até o lobofaminto procuram ficar secos, ele corre pedindo o fim <strong>de</strong> tudo(SHAKESPEARE, 2010, 331).87 “O fenôme<strong>no</strong> tanto po<strong>de</strong> manifestar-se <strong>no</strong> sensual (adição à bebida, ao ópio, ao <strong>de</strong>boche, etc.) como <strong>no</strong>tocante ao que há <strong>de</strong> superior <strong>no</strong> homem (orgulho, vaida<strong>de</strong>, ira, ódio, obstinação, malícia, inveja, etc.) oindivíduo po<strong>de</strong> arrepen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> sua ira e, quanto mais profundo é o indivíduo tanto mais profundo é oarrependimento. Mas o arrependimento não consegue libertá-lo; aí é que ele se engana”(KIERKEGAARD, 2010a, 126).


92Não haverá dificulda<strong>de</strong>s em compreen<strong>de</strong>r que a análise exposta pertenceà Psicologia. A Ética apenas posiciona o indivíduo e ali o abandona, <strong>de</strong>ixando que sepenitencie com seu arrependimento e com sua angústia. Porém, a Psicologia não éhegemônica em tal investigação; necessita da Dogmática para concluir sua análise, pois,se almejasse explicar todo o processo <strong>de</strong>scrito, teria <strong>de</strong> se converter <strong>de</strong> estudo da<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> para estudo do Absoluto 88 , o que lhe seria impossível.2.8.1: O <strong>de</strong>moníacoA contemporaneida<strong>de</strong> vive dias super-filosóficos e super-religiosos. Oconceito “<strong>de</strong>moníaco” é <strong>de</strong>finido <strong>de</strong> tantas maneiras que quase não se po<strong>de</strong> edificar umsaber sobre ele. Expressões espirituosas à parte, a presente análise se <strong>de</strong>terá <strong>no</strong>scaracteres psicológicos <strong>de</strong>ste fenôme<strong>no</strong> 89 . Como <strong>no</strong> caso anterior, não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r aangústia <strong>de</strong> vista, já que ela está diretamente ligada ao <strong>de</strong>moníaco. “A não liberda<strong>de</strong>, o<strong>de</strong>moníaco, é, pois, um estado. É assim que a Psicologia o vê. Ao contrário, a Éticaobserva como a partir <strong>de</strong>le constantemente irrompe o <strong>no</strong>vo pecado, pois somente o bemé unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estado e movimento” (KIERKEGAARD, 2010a, 147).Introduziram-se anteriormente os conceitos bem e mal, e a relação que oindivíduo mantém com cada um <strong>de</strong>les, através da angústia. Devemos <strong>no</strong>s recordar que o88 Neste caso, o Absoluto concorda com o conceito dogmático <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>.89 A Psicologia não é a única a manifestar-se sobre este fenôme<strong>no</strong>. Eticamente falando po<strong>de</strong> sercompreendido como o con<strong>de</strong>nável, e isto se prova observando o cruel rigor com que foi perseguido ejulgado. Sob a categoria estética, po<strong>de</strong> ser relacionado ao <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>. A Medicina também fornecerá suaspróprias respostas diante do fenôme<strong>no</strong>. A Dogmática o tratará <strong>de</strong> maneira minuciosa, colocando-o emcontraste com o Bem e, assim, fazendo com que ele se mostre. À vista do Bem, o <strong>de</strong>moníaco manifesta-secomo angústia diante <strong>de</strong>ste, e <strong>de</strong>sta maneira se reflete <strong>no</strong> “eu”. Assim fica clara a <strong>de</strong>terminaçãopsicológica do <strong>de</strong>moníaco: é a angústia do bem. “Que tens a ver co<strong>no</strong>sco, filho <strong>de</strong> Deus? Vieste aqui para<strong>no</strong>s atormentar antes do tempo?” (Mt, VIII, 28). O <strong>de</strong>moníaco, sob a perspectiva psicológica, <strong>de</strong>verá seranalisado numa esfera individual. O subjetivo é o objeto da Psicologia, e ali ela <strong>de</strong>verá empreen<strong>de</strong>r suainvestigação. A observação do “eu” revelará caracteres que são o apanágio <strong>de</strong>ste estado, e é a partir <strong>de</strong>lesque Kierkegaard molda sua concepção sobre o <strong>de</strong>moníaco. “Isso indica que o <strong>de</strong>moníaco tem um alcancemuito maior do que se supõe habitualmente, o que se <strong>de</strong>ixa explicar em razão <strong>de</strong> o homem ser umasíntese <strong>de</strong> alma e corpo mantida pelo espírito, razão pela qual a <strong>de</strong>sorganização em uma esfera mostra-senas <strong>de</strong>mais” (KIERKEGAARD, 2010a, 133).


93objeto <strong>de</strong> maior “predileção” da angústia é a liberda<strong>de</strong> 90 . Porém, o <strong>de</strong>moníaco subverteaté mesmo o conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Neste caso, <strong>de</strong>ve-se compreen<strong>de</strong>r a liberda<strong>de</strong> comonão-liberda<strong>de</strong>, pois a liberda<strong>de</strong> foi perdida assim que a angústia do bem surgiu 91 .Porém, é preciso que a própria liberda<strong>de</strong> se rebele e se amotine. Desta maneira, aangústia, que até agora se voltara para a possibilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong>, volta-se sobre a nãoliberda<strong>de</strong>;a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encerrar-se em si mesmo. Compreen<strong>de</strong>-se a liberda<strong>de</strong> comoexpansiva, comunicativa. Segundo Kierkegaard, a não-liberda<strong>de</strong> faz <strong>de</strong> si mesmaprisioneira.O <strong>de</strong>moníaco é a não-liberda<strong>de</strong> que quer encerrar-se em si mesma.Entretanto, isso é e sempre será impossível, ela sempre mantém uma relaçãoe, mesmo se aparentemente <strong>de</strong>sapareceu <strong>de</strong> todo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> estar aí, e aangústia mostra-se prontamente <strong>no</strong> instante do contato (KIERKEGAARD,2010a, 134).O <strong>de</strong>moníaco representa a angústia do bem. Este conceito está <strong>de</strong> acordocom as concepções <strong>de</strong> angústia expostas e <strong>de</strong> acordo com as Escrituras, se forempreendida uma análise mais acurada. Esta angústia gera <strong>no</strong> indivíduo umcomportamento bem característico: o hermetismo. O hermético neste caso não seráapenas algo <strong>de</strong> difícil compreensão, mas aquele que não se <strong>de</strong>ixa compreen<strong>de</strong>r 92 . “Omonólogo é a sua maneira <strong>de</strong> expressar-se” (KIERKEGAARD, 2010a, 135). O90 Segundo Farago, “originalmente, a angústia é o pressentimento que o homem é maior que a suaexperiência imediata: ela é, portanto, o aguilhão salvador da busca <strong>de</strong> si mesmo pelo risco da liberda<strong>de</strong>que é a essência do espírito” (FARAGO, 2006, 78).91 A perda da liberda<strong>de</strong> não é o exato objeto do presente trabalho, mas é um conceito complementar que<strong>de</strong>ve ser esclarecido. A liberda<strong>de</strong> tor<strong>no</strong>u-se presa do <strong>de</strong>moníaco. Corrompida até a medula,metamorfoseou-se em não liberda<strong>de</strong>, ou seja, foi perdida. Kierkegaard cita duas possibilida<strong>de</strong>s da perdada liberda<strong>de</strong>: perdida somático-psiquicamente e perdida pneumaticamente. O primeiro caso encontra suaexpressão máxima na perdição bestial. O indivíduo, neste caso, não sofre com sua pérfida condição, massim com o assedio que a liberda<strong>de</strong> lhe dirige. “Que tens a ver comigo?” (Mc, V, 7) pergunta o indivíduopossuído a Jesus. O segundo caso está relacionado à individualida<strong>de</strong>. “O que eu comento, por outro lado,é algo bem simples e singelo: que a verda<strong>de</strong> só existe para o indivíduo à medida que ele próprio a produzna ação. Se a verda<strong>de</strong> está <strong>de</strong> algum outro modo para o indivíduo, e é impedida por ele <strong>de</strong> estar <strong>de</strong>stemodo para ele, temos aí um fenôme<strong>no</strong> <strong>de</strong>moníaco” (KIERKEGAARD, 2010a, 150-151). Aautoconsciência é um ato da interiorida<strong>de</strong>. Conclui-se, neste caso, que o <strong>de</strong>moníaco caracteriza a ausênciada interiorida<strong>de</strong> e subversão da liberda<strong>de</strong>.92 Deve-se consi<strong>de</strong>rar que nem todo hermético é <strong>de</strong>moníaco, porém todo <strong>de</strong>moníaco é hermético.Exatamente por conter em si uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, é preciso tomar cuidado ao conceituá-lo: o<strong>de</strong>moníaco caracteriza-se pela angústia do bem; o hermetismo será sua expressão, mas não é apanágio do<strong>de</strong>moníaco. O indivíduo hermético po<strong>de</strong> estar imbuído <strong>de</strong> boas intenções e ambicionar o bem como fimúltimo. Cite-se como exemplo a clássica frase do jovem Hamlet, que, apesar <strong>de</strong> hermético, visava<strong>de</strong>volver a paz ao seu rei<strong>no</strong> e impor a justiça aos traidores <strong>de</strong> seu pai. “Ser ou não ser, eis a questão. Serámais <strong>no</strong>bre suportar na mente as flechadas da trágica fortuna, ou tomar armas contra um mar <strong>de</strong> escolhose, enfrentando-os, vencer? Morrer – dormir, nada mais” (SHAKESPEARE, 2010, 118).


94hermetismo, quando constrangido a manifestar-se, coloca sua não-liberda<strong>de</strong> em relaçãocom a liberda<strong>de</strong> que lhe chega <strong>de</strong> fora. Quanto mais profundo o hermetismo, maior seráa capacida<strong>de</strong> do indivíduo em conservar-se em sua clausura. Revolta-se então contra simesmo e trai sua realida<strong>de</strong> angustiando-se diante do bem. Segundo Kierkegaard, é issoque o individuo escon<strong>de</strong> sob seu hermetismo: a angústia do bem.Po<strong>de</strong>-se <strong>no</strong>tar também <strong>no</strong> aparecimento do fenôme<strong>no</strong> da angústia diantedo Bem, aqui chamado <strong>de</strong>moníaco, a influência que este exerce <strong>no</strong> conceito instante.Em relação à primeira síntese estabelecida, a saber, o espírito, o hermetismo,direcionado à não-liberda<strong>de</strong>, manifesta-se como sua expressão, em contraste com aexpansivida<strong>de</strong> comunicativa da liberda<strong>de</strong>. Logo, questiona-se: qual é a expressão <strong>de</strong>staangústia quando observada em relação ao instante? De acordo com Kierkegaard, estaexpressão se mostrará sob o conceito súbito, manifestação da não-liberda<strong>de</strong>, emcontraste com sua expressão antípoda, a continuida<strong>de</strong>, manifestação da liberda<strong>de</strong>.O súbito, como <strong>de</strong>moníaco, é a angústia diante do bem. O bem significa aquia continuida<strong>de</strong>, pois a primeira expressão da salvação é a continuida<strong>de</strong>.Enquanto a vida da individualida<strong>de</strong> transcorre até certo grau em continuida<strong>de</strong>com a vida, o hermetismo mantém-se nela como um “abracadabra” dacontinuida<strong>de</strong> que só se comunica consigo mesmo e por isso é constantementeo súbito (KIERKEGAARD, 2010a, 142).A característica principal também não varia: a angústia do bem, nestecaso específico, volta-se sobre o “eu” com a brusquidão do mistério. O indivíduoencerra a si mesmo <strong>no</strong> mais profundo <strong>de</strong> sua <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, como um segredo pérfido,fruto <strong>de</strong> um amor vergonhoso. Assim como <strong>no</strong> primeiro caso, Kierkegaard exemplificasua concepção acerca do súbito em relação ao instante em uma obra literária: trata-se <strong>de</strong>Fausto, <strong>de</strong> Goethe.O horror toma conta <strong>de</strong> nós ao vermos Mefistófeles entrar saltando pelajanela e <strong>de</strong>ter-se na postura do salto! Tal ímpeto <strong>no</strong> salto, que lembra o atirarseda ave <strong>de</strong> rapina ou da fera, que apavora em dobro por que em geralirrompe da própria imobilida<strong>de</strong>, causa um efeito infinito. Por isso,Mefistófeles <strong>de</strong>ve caminhar o mínimo possível. No balé do "Fausto", aprimeira aparição <strong>de</strong> Mefistófeles não é, pois, um golpe teatral, porém um<strong>pensamento</strong> bastante profundo (KIERKEGAARD, 2010a, 143).


95Nas linhas acima se procurou expor o objeto do <strong>de</strong>moníaco e suamanifestação <strong>no</strong> indivíduo. A partir daí i<strong>de</strong>ntificou-se o parecer das ciências que se<strong>de</strong>dicam a tal conceito e qual <strong>de</strong>las se aproxima mais do i<strong>de</strong>al buscado. A perda daliberda<strong>de</strong> e a supremacia da não-liberda<strong>de</strong> foram aceitas como certas. Porém, há algosobre o <strong>de</strong>moníaco que continua velado: qual é o seu conteúdo? O <strong>de</strong>moníaco mostra-serealmente diante do contato com a angústia do bem. Porém, o que existe anteriormente aeste movimento? Ou po<strong>de</strong>mos dizer que o <strong>de</strong>moníaco forma-se somente quandoestabelecido o mencionado contato? Seria a obscurida<strong>de</strong> total seu conteúdo?“O <strong>de</strong>moníaco é o sem conteúdo, o enfadonho” (KIERKEGAARD,2010a, 144). A afirmação <strong>de</strong> Kierkegaard está totalmente <strong>de</strong> acordo com o caráterhermético do <strong>de</strong>moníaco. O enfadonho po<strong>de</strong> ser compreendido, na <strong>de</strong>finição usual,como uma continuida<strong>de</strong> do nada. Porém, a continuida<strong>de</strong> representa exatamente aliberda<strong>de</strong> e, por isso, antípoda da não-liberda<strong>de</strong>. Desta maneira, outra questão selevanta: a liberda<strong>de</strong> e a não-liberda<strong>de</strong> partilham o mesmo conceito, a saber, <strong>de</strong>continuida<strong>de</strong>? Para que tal confusão não ocorra, <strong>de</strong>ve-se atentar <strong>de</strong> maneira maisminuciosa a tais conteúdos. A continuida<strong>de</strong> a que Kierkegaard se refere comoencontrada <strong>no</strong> <strong>de</strong>moníaco é <strong>de</strong>signada em dinamarquês pelo termo Udøethed, “nãochegar a morrer”. “Os tradutores hesitam sobre o que o autor quis dizer com aquelapalavra que, conforme o Comentário <strong>de</strong> SKS, não é conhecida. Segundo esseComentário, po<strong>de</strong>ria provir <strong>de</strong> U+dødt ou também <strong>de</strong> Ud+ødt. Se proviesse <strong>de</strong> uddødtteria a ver com extinção. Mas po<strong>de</strong> ter a ver com o ‘não po<strong>de</strong>r morrer’ ou com ‘o quenão se extingue’ (KIERKEGAARD apud VALLS, 2010a, 217). Se compreen<strong>de</strong>rmos talcontinuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordo com o próprio conteúdo do hermetismo, o mencionado “nãochegar a morrer” se transformará numa continuida<strong>de</strong> do nada. A forma hermética, nestecaso, tem como conteúdo o nada.Nota-se, a partir da exposição acima, que a angústia varia <strong>de</strong> acordo coma natureza do indivíduo. Des<strong>de</strong> o início do presente trabalho tratou-se a angústia comoalgo <strong>no</strong>civo, apesar <strong>de</strong> se procurar salvaguardar implícito seu caráter benéfico. Ela, aangústia, foi conceituada como uma <strong>de</strong>sarmonia da síntese e diretamente relacionada aesta. Também se compreen<strong>de</strong>u o homem como capaz da salvação a qualquer momento.Surge a seguinte questão: é possível harmonizar a angústia e a salvação? SegundoKierkegaard é possível. E esta será uma tarefa para a fé.


962.9: A angústia e a féA questão da fé, em última análise, encontra-se entrelaçada com aquestão da angústia. Como foi exposto, a angústia representa uma <strong>de</strong>sarmonia nasíntese. Neste momento po<strong>de</strong>-se citar um dos atributos da fé, antípoda à angústia:representa a harmonia da síntese 93 . Sua natureza, assim como a natureza da angústia,participa da concreção da síntese (porém <strong>de</strong> uma maneira distinta, como seráapresentado adiante) e da constituição do espírito, portanto <strong>de</strong>ve ser analisada tambémenquanto elemento formador. Novamente, <strong>de</strong>ve-se retornar à <strong>de</strong>finição <strong>kierkegaard</strong>iana<strong>de</strong> homem: “o homem é uma síntese <strong>de</strong> finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong>, liberda<strong>de</strong> enecessida<strong>de</strong>” (KIERKEGAARD, 2010a, 25). Quanto às duas primeiras síntesesmencionadas, já as esclarecemos nas páginas antece<strong>de</strong>ntes, atribuindo a elas relaçõescom a formação do espírito e com a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> instante, respectivamente. A últimasíntese, a saber, liberda<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong>, tem seu lugar nesta análise, na relação entre aangústia e a fé.Como nas duas sínteses anteriores, a manifestação <strong>de</strong>sta terceira não seapresentará <strong>no</strong> estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, pelo fato do indivíduo, neste estado, não possuiruma concepção sobre a liberda<strong>de</strong> e sobre a necessida<strong>de</strong>. Porém, a angústia está presente,pairando sobre a i<strong>no</strong>cência, ainda <strong>de</strong> uma maneira in<strong>de</strong>terminada, <strong>de</strong>spreocupada,ensimesmada. Já a fé ainda dorme profundamente <strong>no</strong> interior do indivíduo; aguarda aconcreção do espírito.Kierkegaard vê na angústia a ação do espírito como fator simultaneamente daclivagem e da síntese que se <strong>de</strong>ve operar entre a alma e o corpo, cindidos pelaconsciência reflexiva. O homem remete sua imediatida<strong>de</strong> corporal àexteriorida<strong>de</strong> a partir do momento em que tomou consciência <strong>de</strong>la e seexperimenta como interiorida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar. A angústia estáligada à reflexivida<strong>de</strong> que nasce então, à experiência originária que tocaaquilo que tem inteiramente por primeiro o fato <strong>de</strong> existir ao qual impõem aor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> se tornar um ato <strong>de</strong> existir. Ela é aquilo a partir do qual todaexperiência <strong>de</strong>terminada toma sentido, dado que provém da in<strong>de</strong>terminaçãohumana <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar a si mesma. Ela é a flutuação que se apo<strong>de</strong>ra da93 A fé, como compreendida por Kierkegaard, expressa a harmonia entre os elementos da síntese.Segundo ele, por ser criado e mantido pela divinda<strong>de</strong>, o “eu” apenas cumprirá seu <strong>de</strong>ver espiritual maiorquando consciente <strong>de</strong> sua relação com Deus.


97consciência diante <strong>de</strong> todos os possíveis; vem da intuição que o homemconstitui esta síntese a realizar que, na maior parte das vezes, fracassa em suatarefa <strong>de</strong> edificação própria: nem animal, nem espírito, mas possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>espírito (FARAGO, 2006, 80).Ao posicionar a angústia na análise <strong>de</strong>senvolvida, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve tomaro primeiro assento. Porém, como foi afirmado por Farago, a partir <strong>de</strong> análises dainvestigação <strong>kierkegaard</strong>iana, a liberda<strong>de</strong> será i<strong>de</strong>ntificada com a mencionadapossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espírito, em que todo o peso investigativo se concentrará <strong>no</strong> atributo“possibilida<strong>de</strong>”. Esta possibilida<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong> ao flutuante ato <strong>de</strong> realizar-se, edificarse.Deve-se, então, usar a expressão “possibilida<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong>” para <strong>de</strong>terminar asíntese aqui estudada. Ao analisar a exposição acima surgem as seguintes questões:como po<strong>de</strong>r-se-á compreen<strong>de</strong>r a fé e a divinda<strong>de</strong> na mencionada síntese? Qual é o papelda angústia em relação à fé? Como a mencionada síntese expressa estes dois elementos?A existência é o sobressalto da liberda<strong>de</strong> diante do estado <strong>de</strong> fato: o fato <strong>de</strong>ser aí sem o ter pedido, que exige um périplo patético antes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rque se trata <strong>de</strong> receber-se a si mesmo, ao térmi<strong>no</strong> <strong>de</strong> um consentimento aoesforço requerido pela própria existência. É o surgimento da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> umsujeito não substancial, convocado a se constituir <strong>no</strong> tempo alimentando-seda eternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proce<strong>de</strong> sua vida. A força eterna da qual proce<strong>de</strong>mos<strong>no</strong>s colocou <strong>no</strong> <strong>de</strong>vir, isto é, <strong>no</strong> não-acabamento, <strong>de</strong>stinando-<strong>no</strong>s a umprocesso incoativo <strong>de</strong> criação, cuja fonte é ela mesma, mas que, em gran<strong>de</strong>parte, cabe a nós (FARAGO, 2006, 94).“A liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sujeito não substancial”. Como se auto-<strong>de</strong>fine, aliberda<strong>de</strong> não é livre em si mesma, mas condicionada (assim como o próprio sujeito emquestão); encontra-se enredada <strong>no</strong> vir-a-ser. Deve-se compreen<strong>de</strong>r o conceitopossibilida<strong>de</strong> como a condição <strong>de</strong> concreção da liberda<strong>de</strong>. Em primeiro lugar, admite-sea possibilida<strong>de</strong> como o elemento infinito da síntese, e a necessida<strong>de</strong> como o elementofinito. Como compreen<strong>de</strong>r a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira infinita? Esta possibilida<strong>de</strong>, porsua própria natureza, <strong>de</strong>ve conter em si todos os possíveis 94 ; só assim corrobora-se seucaráter infinito. Novamente Kierkegaard <strong>no</strong>s guia ao terre<strong>no</strong> dogmático. Como abrangertodos os possíveis sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> um só conceito? Para suprir esta lacuna, a Dogmáticase valerá do conceito <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>. A concepção <strong>kierkegaard</strong>iana está <strong>de</strong> acordo com a94 Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> será abordada <strong>de</strong> maneira mais incisiva <strong>no</strong> terceiro capítulo, <strong>no</strong> que se refereao <strong>de</strong>sespero.


98Dogmática. Portanto, também <strong>no</strong> presente trabalho, compreen<strong>de</strong>r-se-á o possível ple<strong>no</strong>como Deus.Nas linhas acima se <strong>de</strong>finiu a parte eterna da síntese. A possibilida<strong>de</strong>possui um elemento antagônico que lhe corresponda na formação da síntese não apenasdiretamente, mas dialeticamente. Coloca-se em observação neste momento o outroelemento: a necessida<strong>de</strong>. A necessida<strong>de</strong> terá a função <strong>de</strong> reter a miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> possíveis quedançam e brilham diante do indivíduo. Impedirá que o “eu” se reflita imaginariamente<strong>no</strong> possível 95 . Trata-se da parcela finita, temporal da síntese, que exige que o homemmantenha a sua individualida<strong>de</strong>; o homem é necessida<strong>de</strong> por que <strong>de</strong>ve edificar-se.Porém, como é um ser <strong>de</strong>rivado, não substancial, não encontra em si a possibilida<strong>de</strong>plena, a saber, a salvação.Esclarecidos os termos da síntese, a seguinte questão persiste: como a fése valerá da angústia para conduzir o homem? Sobre a angústia, as investigaçõesanteriores a <strong>de</strong>terminaram <strong>de</strong> acordo com uma perspectiva negativa, porém, como foidito, salvaguardando seu caráter benéfico <strong>no</strong> interior do indivíduo. A angústia fez-sepresente <strong>no</strong> indivíduo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua formação, participando da existência do “eu”, mesmoque <strong>de</strong> maneira velada.Deve-se voltar agora à fé. Diferentemente da angústia, a fé não seencontra <strong>no</strong> indivíduo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua primitivida<strong>de</strong>. Segundo Kierkegaard, ela não nascenaturalmente, como os <strong>de</strong>ntes e a barba. É preciso buscá-la, nutri-la constantemente.Concomitantemente a admite como uma paixão feliz, capaz <strong>de</strong> sublimar a angústia eassim se valer <strong>de</strong>la para a salvação do indivíduo. Portanto, não se <strong>de</strong>fine a fé, segundoKierkegaard, como um exílio para fora do mundo, mas como agente <strong>no</strong> interior do ser.A salvação não constitui uma linha reta na existência humana, mas sim uma sendaestreita e tortuosa. Há situações em que, quando colocado diante da possibilida<strong>de</strong> plena,a angústia não aproxima o indivíduo da fé, mas sim o afasta <strong>de</strong>la, originando assim uma<strong>no</strong>va situação: o suicídio. “Só não nego que aquele que é formado pela possibilida<strong>de</strong>esteja exposto não, como os que são formados pela finitu<strong>de</strong>, ao perigo <strong>de</strong> cair em máscompanhias e <strong>de</strong>sviar-se <strong>de</strong> diferentes maneiras, mas está sim exposto a uma queda, ou95 Este fato, a perda do “eu” <strong>no</strong> campo do possível constituirá, numa análise diversa, uma dasmanifestações do <strong>de</strong>sespero, como será exposto <strong>no</strong> capítulo seguinte.


99seja, o suicídio. Se ao começar sua formação enten<strong>de</strong> mal a angústia, <strong>de</strong> modo que estanão o leve à fé, mas antes o afasta <strong>de</strong>la, está perdido” (KIERKEGAARD, 2010a, 173).Somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ter passado pela angústia do possível se estáconstituído <strong>de</strong> maneira a não ser sua vítima. Agora, a angústia transmuda-separa ele em uma criada invisível, que o guia para on<strong>de</strong> este quiser ir. Destemodo, constituindo em nós a fé, a angústia <strong>de</strong>struirá em nós o que ela mesmaproduz. Um crente constituído pela angústia está liberto <strong>de</strong> temores a respeitodo <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> material. Por meio da fé a angústia ensina-<strong>no</strong>s a <strong>de</strong>scansar(REICHMANN, 1971, 279).Deve-se recordar que o conceito <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> seguido aqui é aqueleapontado pela Dogmática, pois a possibilida<strong>de</strong> a que <strong>no</strong>s referimos contém em si todosos possíveis 96 . Aí inicia o processo <strong>de</strong> sublimação imposto pela fé 97 . Em primeiro lugar<strong>de</strong>ve afundar-se absolutamente na angústia, para então ressurgir mais leve e garboso doque nunca. Quando a angústia extirpa a finitu<strong>de</strong>, a possibilida<strong>de</strong> abarca também aangústia e esta, sublimada, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> assombrar e passa a auxiliar o homem. Tão logo aangústia é absorvida pela fé, a Psicologia encerra seus trabalhos, <strong>de</strong>ixando que aDogmática conclua a investigação.96 Não se po<strong>de</strong> confundir esta possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cunho divi<strong>no</strong> com a possibilida<strong>de</strong> finita, imediata, como asorte ou o êxito. Deve-se enten<strong>de</strong>r a possibilida<strong>de</strong>, em última instância, como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação.Daí Kierkegaard afirmar que a mais pesada das categorias é a realida<strong>de</strong>, sendo a possibilida<strong>de</strong> leve.Quando o indivíduo toma consciência do terrível que espreita a possibilida<strong>de</strong>, a realida<strong>de</strong> torna-se leve.97 “Mas para que um indivíduo venha a ser formado assim tão absoluta e infinitamente pela possibilida<strong>de</strong>,ele precisa ser honesto frente à possibilida<strong>de</strong> e ter fé” (FARAGO, 2006, 170).


100CAPÍTULO III – A concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong> segundo a obra A doençamortal e a edificação cristãO presente capítulo terá como tema o <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong> visto sob aperspectiva exposta na obra O <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong> – A doença mortal (1849) e nas<strong>de</strong>mais produções <strong>kierkegaard</strong>ianas que abordam este conceito, privilegiando as escritaspelo pseudônimo Johannes Anti-Climacus 98 . Reconhecida <strong>no</strong> corpus <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>por seu caráter edificante, a obra mencionada começa com um questionamento <strong>de</strong>cisivo:“é possível que esta forma <strong>de</strong> exposição se afigure, a muita gente, singular; que pareça<strong>de</strong>masiado severa para ser edificante, <strong>de</strong>masiado edificante para ter rigor especulativo.Se é <strong>de</strong>masiado edificante, não sei bem; <strong>de</strong>masiado severa, suponho que não; e se ofosse, seria, a meu ver, um <strong>de</strong>feito” (KIERKEGAARD, 2010b, 17). Elevando aedificação como função maior <strong>de</strong> qualquer espécie <strong>de</strong> conhecimento, o autor aponta emque aspecto a edificação se mostrará na sua forma mais plena: na esfera cristã.“Uma exposição cristã <strong>de</strong>ve evocar, sempre, as palavras do médico àcabeceira do enfermo; não sendo necessário ser cristão para as enten<strong>de</strong>r, nunca se <strong>de</strong>veesquecer, contudo, o lugar on<strong>de</strong> foram proferidas” (KIERKEGAARD, 2010b, 17). Aexposição cristã, como concebida por Kierkegaard, dirige-se sempre ao interior do “eu”,à interiorida<strong>de</strong>, à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. Procura resgatar a individualida<strong>de</strong> do homem, à <strong>de</strong>rivaentre os elementos da síntese que constituem o “eu”; procura zelar pelo bom andamentoe saú<strong>de</strong> da existência, mas visando sempre a última instância, a mais elevada, a saber, aedificação espiritual 99 .98 Segundo De Paula, “juntamente com a Doença mortal (1849), o Exercício do cristianismo é <strong>de</strong> autoriado pseudônimo Anti-Climacus. Elas ocupam uma posição estratégica <strong>no</strong> corpus <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>, emoposição ao cético Climacus – o pseudônimo (autor) das Migalhas filosóficas, Post Scriptum e JohannesClimacus. Na soma e <strong>no</strong> contraste <strong>de</strong>sses dois pseudônimos é que se po<strong>de</strong> observar um pouco melhor ocristianismo em Kierkegaard. Além disso, esses pseudônimos prepararam o terre<strong>no</strong> para a polêmica<strong>kierkegaard</strong>iana com o bispo Mynster e para a luta contra a igreja estatal em O Instante (DE PAULA,2009, 117).99 Um ponto importante sobre a edificação espiritual, que <strong>de</strong>ve ficar claro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora, é sua necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> recolhimento. Assim como a fé não po<strong>de</strong> ser partilhada, mas cada um <strong>de</strong>ve cultivar a sua, cada um <strong>de</strong>nós <strong>de</strong>ve voltar-se sobre si e contar consigo nesta tarefa. A edificação tem por objeto o “eu”; segundoKierkegaard, “o ‘eu’ é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa <strong>de</strong> alheia a si, mas consigoprópria (KIERKEGAARD, 2010b, 25). Por ser uma relação, corretamente admite-se que o “eu” é<strong>de</strong>rivado. A relação que constitui o “eu” não se cria nem se mantém por si só. Logo, admite-se também


101A história usada como enredo para exemplificar a obra em questão é anarrativa bíblica da ressurreição <strong>de</strong> Lázaro. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> doença mortal e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero<strong>de</strong>vem ser compreendidas <strong>de</strong> maneira específica; então ficará clara a escolha do autorpelo personagem <strong>de</strong> Lázaro nesta ocasião.Esta i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ‘doença mortal’ <strong>de</strong>ve ser tomada num sentido particular. Ao péda letra significa um mal cujo termo é a morte, e serve então <strong>de</strong> sinônimo <strong>de</strong>uma doença da qual se morre. Mas não é neste sentido que se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar o<strong>de</strong>sespero; porque, para o cristão, a própria morte é uma passagem para avida. Desse modo, a nenhum mal físico ele consi<strong>de</strong>ra ‘doença mortal’. Amorte põe termo às doenças, mas por si só não constitui um termo. Mas uma‘doença mortal’ <strong>no</strong> sentido estrito quer dizer um mal que termina pela morte,sem que qualquer coisa subsista <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le. E é isso o <strong>de</strong>sespero(KIERKEGAARD, 2010b, 31).No sentido corrente, compreen<strong>de</strong>-se a expressão doença mortal por umaenfermida<strong>de</strong> que leva à morte, uma doença pela qual se morre. Trata-se, portanto, <strong>de</strong>uma concepção objetiva, que compreen<strong>de</strong> a morte do corpo como o térmi<strong>no</strong> daexistência. Segundo esta perspectiva, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> doença mortal está correta como mortedo corpo, trata-se <strong>de</strong> uma inferência lógica, mecanismo da investigação objetiva. Já aconcepção cristã, corroborada pela Dogmática, não conceitua a morte do corpo comofim. Nem sequer como uma lástima. Desta maneira, a Dogmática rechaça a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>doença mortal imposta pela objetivida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> não rechaçar a questão.Em primeiro lugar, <strong>de</strong>vemos modificar a natureza da análise: não mais<strong>de</strong>ter-se na investigação objetiva, <strong>de</strong>ve-se transpô-la e voltar-se à análise subjetiva 100 . Omotivo <strong>de</strong>sta mudança, entre outros, é que o objeto da concepção <strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong>doença mortal não é o corpo, mas sim o “eu”. O “eu”, <strong>de</strong>vido a sua natureza <strong>de</strong> síntese,e ao elemento eter<strong>no</strong> que compõe esta relação, não é abatido por uma doença mortal queque ela é condicionada. Admite-se também que o “eu” <strong>de</strong>ve buscar o ser criador e mantenedor, entrarnuma estreita relação com ele e, assim, harmonizar os fatores da síntese. Esta relação não se manifestará<strong>de</strong> maneira coletiva, en masse. A harmonia edifica o “eu”, torna-o seguro e <strong>de</strong>svela diante <strong>de</strong> seus olhos adivinda<strong>de</strong>. A divinda<strong>de</strong> utiliza, <strong>de</strong> acordo com Kierkegaard, a mensagem cristã para fazer-se compreen<strong>de</strong>rpelo indivíduo. Assim como <strong>no</strong>s capítulos anteriores, a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> será o mecanismo <strong>de</strong> análise,visando “intimida<strong>de</strong> do <strong>pensamento</strong> cristão com a vida (contrastando com a distância que a especulaçãomantém) e também esse aspecto ético do cristianismo implicam precisamente a edificação”(KIERKEGAARD, 2010b, 17).100 Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r esta mudança <strong>de</strong> perspectiva como uma exigência para o processo <strong>de</strong> edificação queo cristianismo propõe ao indivíduo. Da mesma maneira que se <strong>de</strong>ve abandonar a multidão para voltar-seao “eu”, <strong>de</strong>ve-se abandonar a objetivida<strong>de</strong> e passar a empreen<strong>de</strong>r uma análise subjetiva.


102recaia apenas sobre um <strong>de</strong> seus fatores. A doença mortal <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> adoecerexatamente o que correspon<strong>de</strong> à síntese, a saber, o “eu”. Porém, uma questão permanecevelada: será possível o <strong>de</strong>sespero abater o “eu”? O que exatamente é atacado pelo<strong>de</strong>sespero? Segundo Kierkegaard, o <strong>de</strong>sespero é a discordância entre os fatores dasíntese que forma o homem 101 . Concluí-se que o <strong>de</strong>sespero impossibilita a comunicaçãoentre a divinda<strong>de</strong> e o homem. Impe<strong>de</strong>-lhe <strong>de</strong> crer, <strong>de</strong> se voltar ao po<strong>de</strong>r mantenedor darelação para então buscar harmonia.De on<strong>de</strong> vem então o <strong>de</strong>sespero? Da relação que a síntese estabelece consigoprópria, pois Deus, fazendo que o homem fosse esta relação, como que o<strong>de</strong>ixa escapar da sua mão, <strong>de</strong> modo que a relação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> si própria. Estarelação é o espírito, o “eu”, e nela jaz a responsabilida<strong>de</strong> da qual <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>todo o <strong>de</strong>sespero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que existe; da qual ele <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a <strong>de</strong>speito dosdiscursos e do engenho dos <strong>de</strong>sesperados em enganarem-se e enganar osoutros, consi<strong>de</strong>rando-o como uma infelicida<strong>de</strong> – como <strong>no</strong> caso da vertigemque o <strong>de</strong>sespero, a <strong>de</strong>speito da diferença, evoca, <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vistae com a qual abundam as analogias, a vertigem estando para a alma como o<strong>de</strong>sespero para o espírito (KIERKEGAARD, 2010b, 29).Esclarecido o conceito <strong>de</strong> doença mortal, <strong>de</strong>ve-se agora voltar àinvestigação para o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, já que o vulgo compreen<strong>de</strong> tais enfermida<strong>de</strong>scomo coisas distintas, enquanto Kierkegaard põe um sinal <strong>de</strong> igual entre elas.Objetivamente, a doença mortal ataca o corpo. E, <strong>de</strong> fato, o <strong>de</strong>sespero, mesmo sob estaperspectiva, a saber, a objetiva, possui uma natureza subjetiva. A objetivida<strong>de</strong>, então,tem razão em não atribuir ao <strong>de</strong>sespero o título <strong>de</strong> doença mortal; não se morresubjetivamente. Pois com a morte do corpo a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> esvai-se junto, e tudo ésilêncio 102 . Mas como recolher sob a mesma rubrica, como Kierkegaard propõe, asenfermida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sespero e doença mortal?O cristão é o único que conhece a doença mortal. Dá-lhe o cristianismo umacoragem ig<strong>no</strong>rada pelo homem natural – coragem recebida com o receio <strong>de</strong>um maior grau <strong>de</strong> horrível. Certo é que a coragem a todos é dada; e que o101 “O homem é uma síntese <strong>de</strong> finito e infinito, temporal e eter<strong>no</strong>, liberda<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong>, é, em suma,uma síntese” (KIERKEGAARD, 2010b, 25). Relembramos que o <strong>de</strong>sespero não se manifesta em estado<strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência. Quando não há harmonia entre os fatores, um sobrepuja o outro, gerando o <strong>de</strong>sespero. Asvariações surgidas da submissão <strong>de</strong> uma das partes serão analisadas <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr do trabalho.102 Neste caso a ig<strong>no</strong>rância não se <strong>de</strong>tém na concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. A objetivida<strong>de</strong>, como foi exposto,não abrange o “eu”, o salto qualitativo e a divinda<strong>de</strong>. Desta maneira, é compreensível que o conceito <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero também lhe seja estranho.


103receio <strong>de</strong> um maior perigo <strong>no</strong>s dá forças para afrontar um me<strong>no</strong>r; e que oinfinito temor <strong>de</strong> um único perigo torna inexistentes todos os outros para nós.Mas a lição horrível do cristão está em ter aprendido a conhecer a doençamortal (KIERKEGAARD, 2010b, 21).Com estas informações, retorne-se ao exemplo <strong>de</strong> Lázaro 103 . “Estaenfermida<strong>de</strong> não causará a morte, mas tem por finalida<strong>de</strong> a glória <strong>de</strong> Deus. Lázaro,<strong>no</strong>sso amigo, dorme, mas Eu vou acordá-lo <strong>de</strong> seu so<strong>no</strong>” (Jo: IV, 15). Lázaro, apesar <strong>de</strong>ter seu corpo abatido por moléstias físicas, não estava mortalmente doente. Seu “eu”repousava na divinda<strong>de</strong> e ele pô<strong>de</strong> voltar à vida. Porém, o “eu” neste estado <strong>de</strong>harmonia toma consciência do terrível que paira em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> cada um. O cristão agoratomou consciência da doença mortal, a perda do “eu” <strong>no</strong> alheamento à divinda<strong>de</strong>, napouca fé. Per<strong>de</strong>u-se o medo da vida a vislumbrar o terrível da morte.3.1: A concepção <strong>de</strong> doença mortal e suas manifestaçõesEmbora enigmático, o <strong>de</strong>sespero foi amplamente investigado pelofilósofo dinamarquês <strong>de</strong> acordo com a formação da síntese, da perspectiva daconsciência e segundo sua relação com o pecado (clivagem que será abordada <strong>no</strong><strong>de</strong>correr da investigação). A universalida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sespero e suas personificações, suasmanifestações e relações com outros sentimentos que se lhe aproximam e, como<strong>de</strong>sfecho da análise <strong>kierkegaard</strong>iana, a proposta na qual o sujeito extirpa <strong>de</strong> si próprio a103 Conforme o Livro <strong>de</strong> João, Lázaro caiu doente em Betânia, on<strong>de</strong> estavam suas irmãs Maria e Marta.Jesus amava Lázaro e suas irmãs, mas mesmo sabendo que ele estava enfermo <strong>de</strong>morou-se <strong>no</strong> mesmolugar. Entre seus discípulos, Jesus exclama: “Lázaro morreu, mas vamos a ele” (Jó: IV, 16). Após quatrodias Jesus chegou ao local on<strong>de</strong> Lázaro fora posto. Or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que a pedra do sepulcro fosse retirada,aproximou-se e disse: “Lázaro, vem para fora” (Jo: IV, 44). Conforme o relato, Kierkegaard corretamentevale-se <strong>de</strong>ste exemplo para <strong>de</strong>monstrar que a morte não é a doença mortal, pois não põe fim à existência.A comunicação viva que Lázaro mantivera com a divinda<strong>de</strong>, expressa na forma da fé (não daconvivência) permitiu que a morte do corpo não impusesse o térmi<strong>no</strong> da vida. O “eu” <strong>de</strong> Lázaro,protegido pela fé, não foi vítima do <strong>de</strong>sespero, por isso ele retor<strong>no</strong>u à vida. Alheio à fé, o homemchafurda em <strong>de</strong>sespero e, seu “eu”, à mercê dos avanços da pecabilida<strong>de</strong>, sucumbe.


104enfermida<strong>de</strong> 104 : “orientando-se para si próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha,através da sua própria transparência, até ao po<strong>de</strong>r que o criou (KIERKEGAARD,2010b, 27).As manifestações do <strong>de</strong>sespero são muitas, assim como são muitos osestados <strong>de</strong> alma encontrados entre os homens 105 . “O <strong>de</strong>sespero é a discordância interna<strong>de</strong> uma síntese cuja relação diz respeito a si própria” (KIERKEGAARD, 2010b, 28).Então, <strong>de</strong>veremos conceituar como verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero apenas o que caracteriza umadiscordância da síntese, ou seja, nenhuma espécie <strong>de</strong> estímulo exterior. Sob aperspectiva da síntese, o <strong>de</strong>sespero possui três possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manifestação: “o<strong>de</strong>sesperado inconsciente <strong>de</strong> ter um ‘eu’ (o que não é verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero); o<strong>de</strong>sesperado que não quer e o <strong>de</strong>sesperado que quer ser ele próprio” (KIERKEGAARD,2010b, 25).Convém i<strong>de</strong>ntificar e exemplificar tais manifestações, visando umaabordagem subjetiva, buscando compreen<strong>de</strong>r o que Anti-Climacus <strong>no</strong> início da obra O<strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong> <strong>de</strong>fine por edificante: a edificação que correspon<strong>de</strong> à intimida<strong>de</strong> do<strong>pensamento</strong> com a existência, ousando ser um indivíduo diante <strong>de</strong> Deus. Com basenestas informações, surge a seguinte questão: a análise empreendida, assumindo talpostura, possuirá rigor investigativo suficiente para ser consi<strong>de</strong>rada filosófica? Aconcepção <strong>de</strong> cristanda<strong>de</strong> exposta por Kierkegaard é antípoda à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> cristanda<strong>de</strong>corrente, baseada na coletivida<strong>de</strong>, que visa à multidão. A edificação proposta por Anti-Climacus/Kierkegaard exige o recolhimento, ao mesmo tempo que exige ainquietação 106 .104 Convém ressaltar aqui as semelhanças entre a angústia e o <strong>de</strong>sespero. Ambos, apesar <strong>de</strong> sua natureza<strong>no</strong>civa, conservarão em seu âmago a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação; ambos serão condição (cada um à suamaneira) da elevação do espírito e da manifestação da fé. Tais enfermida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>verão ser sempreconsi<strong>de</strong>radas sob a perspectiva subjetiva. O objeto a que cada uma <strong>de</strong>las se dirige varia: a angústia sevoltará sobre a liberda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sespero se voltará sobre o “eu”. Daí provém o fato <strong>de</strong> não haver <strong>de</strong>sesperoem estado <strong>de</strong> i<strong>no</strong>cência, uma vez que o “eu” existe apenas como unida<strong>de</strong> imediata, como foi exposto <strong>no</strong>capítulo anterior. Explicações mais abrangentes serão encontradas <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da investigação.105 Lembra-se que neste caso ainda se vale das <strong>no</strong>ções dogmáticas que, segundo Kierkegaard, constituemacesso seguro à interiorida<strong>de</strong>. A Psicologia não <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>scartada, porém, como <strong>no</strong> capítulo anterior;por não abranger <strong>de</strong>terminados conceitos, <strong>de</strong>verá, em última instância, se reportar à Dogmática.106 Neste momento da vida, a própria existência exigia edificação e recolhimento do filósofo nórdico.Relatou em seu diário sobre um agradável período <strong>de</strong> tempo, <strong>de</strong> 1843 a 1846, em que estava beminstalado em Copenhague e <strong>de</strong>safogado financeiramente. Kierkegaard <strong>de</strong>sfrutou <strong>de</strong> relativa paz <strong>de</strong>espírito, se compara-se tal período com o restante <strong>de</strong> sua vida. Porém, em 1847 dois acontecimentosimpelem Kierkegaard ao claustro: a contenda com o jornal O Corsário, o casamento <strong>de</strong> Regine Olsencom Fre<strong>de</strong>ric Schlegel e, em julho <strong>de</strong> 1848, uma discussão com o Conselheiro Olsen, pai <strong>de</strong> Regine. Em1849, a<strong>no</strong> da publicação <strong>de</strong> A doença mortal, já se encontrava retirado. Kierkegaard afasta-se do convívio


105A <strong>no</strong>va tensão psicológica ten<strong>de</strong> a trazer ao primeiro pla<strong>no</strong> da consciência dofilósofo os estados e as <strong>no</strong>ções mais trágicas: isto leva-lo-á em <strong>de</strong>finitivo avalorizar a dialética do <strong>de</strong>sespero, analisada em 1849 em A doença mortal –O <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong>. Mas é, sobretudo, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> religioso que a evolução émais sensível. Note-se, antes <strong>de</strong> tudo, que este pla<strong>no</strong> ten<strong>de</strong> cada vez mais ainvadir todo o sistema, mas trata-se <strong>de</strong> uma religião pessoal, áspera e<strong>de</strong>solada, que não traz a paz, mas a ruptura (MESNARD, 1953, 18).A filosofia <strong>de</strong> Kierkegaard procura estabelecer um processo <strong>de</strong> edificação que se ligaintimamente à concepção religiosa. A “atmosfera” em que Kierkegaard concebe suaprodução filosófica possui como fim esta edificação. O tornar-se cristão será o ápice<strong>de</strong>ste processo. Mas não se visa aqui a cristanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistema, objetiva. Anti-Clímacus/Kierkegaard, utilizando caracteres subjetivos, perscrutou o âmago do<strong>de</strong>sespero: “tal <strong>de</strong>sespero provém do conflito inter<strong>no</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sespero que secolhe a cada dia. Entretanto, o real <strong>de</strong>sespero é não possuir nada além da morte e domorrer” (DE PAULA, 2009, 113).O autor reporta-se a três manifestações do <strong>de</strong>sespero conforme os fatoresda síntese. Variações já citadas. Respectivamente à citação anterior, <strong>de</strong>ter-se-á agora naprimeira forma mencionada, a saber, “o <strong>de</strong>sesperado inconsciente <strong>de</strong> ter um ‘eu’ (o quenão é verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero)” (KIERKEGAARD, 2010b, 25). Assumiu-se que overda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong>ve advir da própria síntese. Logo, o real <strong>de</strong>sespero exige certoconhecimento <strong>de</strong> si mesmo; estabelece que o indivíduo se reconheça como síntese ereconheça seus fatores, tomando assim consciência da divinda<strong>de</strong>. Alheio a isto éimpossível formar-se uma i<strong>de</strong>ia correta do <strong>de</strong>sespero. A primeira reação <strong>de</strong> um tal<strong>de</strong>sesperado é reportar a origem e a natureza do seu <strong>de</strong>sespero a um fator exter<strong>no</strong>. Numprimeiro momento a reação do <strong>de</strong>sesperado se concentra em proteger-se <strong>de</strong>steconstrangimento que lhe é infringido.O que dizer <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>sespero? A análise psicológica, neste caso, vai maislonge, exatamente por tratar-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sespero que comporta ressalvas em sua<strong>de</strong>finição. Por não exigir uma investigação exclusivamente subjetiva, uma vez que nãose <strong>de</strong>tém <strong>no</strong>s conceitos <strong>de</strong> síntese, divinda<strong>de</strong> e edificação. Este <strong>de</strong>sesperado nãocompreen<strong>de</strong> que a inquietação parte <strong>de</strong> si. A Psicologia i<strong>de</strong>ntificará várias formas <strong>de</strong>abatimentos. Muitas vezes confun<strong>de</strong>-se o <strong>de</strong>sespero com uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> moléstias,males que não abatem o “eu”, que gravitam na imediatida<strong>de</strong> e adquirem ares <strong>de</strong>com os <strong>de</strong>mais, toma distância da multidão em busca <strong>de</strong> edificação. Este recolhimento durará até 1855,com sua morte.


106<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong>vido à carência <strong>de</strong> conhecimento por parte do indivíduo sobre o “eu”.Trata-se <strong>de</strong> sentimentos que ferem o “eu”, mas não partem <strong>de</strong>le, partem do imediato.Em última instância, “são abatimentos sem consequências – mas a insignificância <strong>de</strong>stesainda é <strong>de</strong>sespero” (KIERKEGAARD, 2010b, 39).O homem que <strong>de</strong>sespera tem um motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, é o que se pensadurante um momento, e só um momento; porque logo surge o verda<strong>de</strong>iro<strong>de</strong>sespero, o verda<strong>de</strong>iro rosto do <strong>de</strong>sespero. Desesperando <strong>de</strong> uma coisa, ohomem <strong>de</strong>sesperava <strong>de</strong> si, e logo em seguida quer libertar-se do seu ‘eu’.Assim, quando o ambicioso diz ‘ser César ou nada’ não consegue ser César,então <strong>de</strong>sespera. Mas isto tem outro sentido. Não é por não se ter tornadoCésar que ele <strong>de</strong>sespera; antes, o que ele não suporta, é não po<strong>de</strong>r libertar-sedo seu ‘eu’ (KIERKEGAARD, 2010b, 32).Agora o homem possui consciência <strong>de</strong> seu “eu”. Concebe a divinda<strong>de</strong>como criadora e mantenedora da relação e, consequentemente, a partir daqui consi<strong>de</strong>raseo homem segundo sua espiritualida<strong>de</strong> 107 . Diante disto, manifesta-se o caso agoraanalisado: “o <strong>de</strong>sesperado que não quer ser ele próprio” (KIERKEGAARD, 2010b, 25).Esta concepção nega <strong>de</strong>finitivamente a origem externa da doença mortal e exclui como<strong>de</strong>sespero a primeira <strong>de</strong>finição abordada, do <strong>de</strong>sespero inconsciente <strong>de</strong> ter um “eu”;<strong>de</strong>finição baseada na superficialida<strong>de</strong>, <strong>no</strong> imediato e, consequentemente, <strong>no</strong> erro. Aprincipal falha do vulgo é não consi<strong>de</strong>rar o <strong>de</strong>sespero sob a categoria do espírito. Istorarifica o <strong>de</strong>sespero, profana sua dialética e basta que alguém <strong>de</strong>clare não ser<strong>de</strong>sesperado para passar-se a consi<strong>de</strong>rá-lo como não o sendo; o que o vulgo ig<strong>no</strong>ra é quenão ter consciência <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sesperado é justamente uma variação do <strong>de</strong>sespero. Paraaquilatar-se o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero, como a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana o concebe, <strong>de</strong>veseretornar a conceitos fulcrais, a partir dos quais a análise <strong>de</strong>ve iniciar.Também não vê o vulgo que o <strong>de</strong>sespero, como enfermida<strong>de</strong> espiritual, édiferentemente dialético daquilo que ordinariamente se chama uma doença.Mas, bem compreendida, esta dialética engloba ainda milhares <strong>de</strong> homens nacategoria do <strong>de</strong>sespero. Se uma pessoa, cuja saú<strong>de</strong> ele constatou em dado107 Lembre-se que até o momento anterior o homem estava alheio a sua real condição. A realida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>spreocupada se comparada à possibilida<strong>de</strong>, é capaz <strong>de</strong> tal ritmo tranquilizador por ig<strong>no</strong>rar o verda<strong>de</strong>iro<strong>de</strong>sespero. No caso anterior, como ficou exposto <strong>no</strong> início <strong>de</strong>ste terceiro capítulo, o vulgo enten<strong>de</strong> apossibilida<strong>de</strong> como leve, e a realida<strong>de</strong> pesada. Mas, ao tomar consciência do terrível que ronda apossibilida<strong>de</strong>, a realida<strong>de</strong> torna-se suave. Ao compreen<strong>de</strong>r o homem como espírito, compreen<strong>de</strong>-se o<strong>de</strong>sespero como a doença mortal, e a possibilida<strong>de</strong> como a via que conduz tanto à salvação quanto àperdição, como será exposto <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr da investigação.


107momento, cai <strong>de</strong>pois doente, o médico tem o direito <strong>de</strong> dizer que estava são eque está agora doente. O mesmo não acontece com o <strong>de</strong>sespero. A suaaparição mostra já a sua preexistência. Conseqüentemente nunca po<strong>de</strong>mos<strong>no</strong>s pronunciar sobre alguém quando não se salvou por ter <strong>de</strong>sesperado.Porque o próprio acontecimento que o lança <strong>no</strong> <strong>de</strong>sespero, imediatamenterevela que toda a sua vida passada tinha sido <strong>de</strong>sespero. Ao passo que não sepo<strong>de</strong>ria dizer, quando alguém tem febre, que sempre a tivera. Mas o<strong>de</strong>sespero é uma categoria do espírito, suspensa na eternida<strong>de</strong>, e um pouco <strong>de</strong>eternida<strong>de</strong> entra por conseqüência em sua dialética (KIERKEGAARD,2010b, 41).A dialética da enfermida<strong>de</strong> será semelhante <strong>no</strong>s próximos casosanalisados (o <strong>de</strong>sesperado que quer e o <strong>de</strong>sesperado que não quer ser ele mesmo). O fatodo <strong>de</strong>sespero se mostrar, mesmo que num lampejo, revela ao indivíduo que toda suaexistência fora <strong>de</strong>sespero. Ao analisar os sintomas do <strong>de</strong>sespero, conclui-se que este é ofator (a existência do <strong>de</strong>sespero anterior a sua manifestação) que mais ilu<strong>de</strong> os espíritos<strong>de</strong>savisados. Diferente das doenças do corpo, a doença mortal, a saber, o <strong>de</strong>sespero,escamoteia-se mesmo <strong>no</strong> mais profundo da felicida<strong>de</strong> 108 .(...) Daí provém que haja duas formas do verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero. Se o <strong>no</strong>sso eutivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos sernós próprios, querermo-<strong>no</strong>s <strong>de</strong>sembaraçar do <strong>no</strong>sso eu, e não po<strong>de</strong>ria existiresta outra: a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> sermos nós próprios. O que estafórmula, com efeito, traduz é a <strong>de</strong>pendência do conjunto da relação que é oeu, isto é, a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, pelas suas próprias forças, o eu conseguir oequilíbrio e o repouso; isso não lhe é possível, na sua relação consigopróprio, senão relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação. Maisainda: esta segunda forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero (a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sermos nós próprios)<strong>de</strong>signa tampouco uma maneira especial <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar, que, pelo contrário,nela finalmente se resolve e a ela se traduz todo o <strong>de</strong>sespero. Se o homemque <strong>de</strong>sespera tem, como ele crê, consciência do seu <strong>de</strong>sespero, se não se lherefere como um fenôme<strong>no</strong> <strong>de</strong> origem exterior, (...) se este <strong>de</strong>sesperado querpor força, por si e só por si, suprimir o <strong>de</strong>sespero, ele dirá que não o po<strong>de</strong>conseguir, e que todo o seu ilusório esforço o conduz somente a afundar-seainda mais (KIERKEGAARD, 2010b, 27).No cerne do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, como Kierkegaard o concebe,repousa a relação que o “eu” estabelece com a divinda<strong>de</strong>. Esta relação condiciona tantoo <strong>de</strong>sespero quanto a salvação. No caso do <strong>de</strong>sesperado que não quer ser ele próprio, tal108 Kierkegaard afirmará que o <strong>de</strong>sespero não só é capaz <strong>de</strong> ocultar-se na felicida<strong>de</strong> como este é o âmbito<strong>de</strong> sua maior predileção. “Mesmo aquilo que para eles é mais adorável, a feminilida<strong>de</strong> na flor da ida<strong>de</strong>,toda ela alegria, paz e harmonia, mesmo esta é <strong>de</strong>sespero. É felicida<strong>de</strong>, sem dúvida, mas será a felicida<strong>de</strong>uma categoria do espírito?” (KIERKEGAARD, 2010b, 41). A resposta <strong>de</strong> Kierkegaard é negativa. Estafelicida<strong>de</strong> não basta para atravessar a vida. A felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfruta apenas do imediato e se o indivíduopossui apenas o imediato, possui apenas <strong>de</strong>sespero.


108indivíduo procura libertar-se da relação que constitui seu “eu”, levanta-se em covar<strong>de</strong>hostilida<strong>de</strong> contra a divinda<strong>de</strong> e busca extirpar <strong>de</strong> si exatamente o que, por natureza, o<strong>de</strong>fine; o “eu”, neste caso, está mortalmente doente. Ao cogitar tal <strong>de</strong>mência, o “eu”afasta-se <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> espiritual e torna-se presa do imediato, da estética. Emmomento algum tal empresa alcançará êxito, e quanto mais o indivíduo <strong>de</strong>ixa-se seduzirpela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> apartar-se do seu “eu”, <strong>de</strong> ser um “eu” que ele não é, mais a doença mortalse alastra, contaminando a síntese até a medula. Mesmo mortalmente doente, o “eu”segue sua existência infame, continuação <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sespero. Lembre-se que umindivíduo assim po<strong>de</strong>rá atravessar boa parte da existência mortalmente doente. Suasalvação, assim como sua perdição, encontra-se para lá do <strong>de</strong>sespero 109 .Algo ambíguo ocorre com o <strong>de</strong>sespero que não quer ser ele próprio.Neste caso, “quem <strong>de</strong>sespera quer, <strong>no</strong> seu <strong>de</strong>sespero, ser ele próprio. Mas, então, é porque não preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>sembaraçar do seu eu? Aparentemente, não; mas se virmos as coisasmais <strong>de</strong> perto, encontramos sempre a mesma contradição. Este eu, que o <strong>de</strong>sesperadoquer ser é um eu que ele não é, o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu do seuAutor (KIERKEGAARD, 2010b, 33-34). Segundo a <strong>de</strong>scrição <strong>kierkegaard</strong>iana, tal<strong>de</strong>sesperado almeja um “eu”, porém não o “eu” que lhe cabe, que a divinda<strong>de</strong> lheimpôs. Sua <strong>de</strong>lícia e sua loucura consistem em por em movimento um “eu” quimérico,criado por suas próprias forças, alheio à divinda<strong>de</strong>. Novamente o <strong>de</strong>lírio a que o homemse entrega falha. Este “eu” não possui forças para criar-se e manter-se, e a doençamortal espalha-se por tal existência malbaratada, forçando-a para baixo, para o frio, paraa escuridão e encerrando-a <strong>no</strong> seu “eu” <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero.Mas como um “eu” é capaz <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> maneira que não restemvestígios <strong>de</strong> sua natureza eterna? Que tipo <strong>de</strong> força é capaz <strong>de</strong> soterrar a individualida<strong>de</strong>e diluí-la a ponto que esta não se reconheça? Inimiga da paz, da justiça e, <strong>de</strong> acordo comKierkegaard, da beatitu<strong>de</strong>, <strong>no</strong>mearemos multidão a âncora amarrada <strong>no</strong> tor<strong>no</strong>zelo do<strong>de</strong>sesperado; ou melhor, o conceito <strong>de</strong> multidão anula o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, uma vezque o primeiro bane o indivíduo, enquanto o segundo o exige. A fé também não semostrará nesta condição, a saber, sob o prisma da multidão, pois exige recolhimento.109 Novamente está-se num ponto em que a Psicologia não po<strong>de</strong> agir sem o auxilio da Dogmática.Extirpar a doença mortal <strong>de</strong> si, bem como sucumbir à perdição, exigem conceitos não disponíveis naanálise psicológica. Convém, segundo Kierkegaard, que a Psicologia <strong>de</strong>limite seu objeto, para que nãotente explicar o que não lhe cabe, divagando da afirmação à negação, sem formular um conhecimento.


109Sobre a fé que mobiliza as massas, segundo Kierkegaard, o comportamento <strong>de</strong> rebanhoafasta o homem da divinda<strong>de</strong>.Arrastam a sua existência <strong>no</strong> palco da vida sem nunca lhes recordar essabeatitu<strong>de</strong>! As conduzem em rebanhos... enganando-os em vez <strong>de</strong> os dispersar,<strong>de</strong> isolar cada indivíduo, a fim <strong>de</strong> que sozinho se consagre a atingir o fimsupremo; o único que vale a pena que se viva e que tem com que alimentartoda uma vida eterna” (KIERKEGAARD, 2010b, 43).Não que a multidão conduza o homem à perdição, mas ela tolhe, amputa,mutila a individualida<strong>de</strong>, território querido aos olhos da fé; consi<strong>de</strong>ra os homens emblocos, tornando-os uma massa disforme. A multidão facilita, acelera e aprofunda oprocesso <strong>de</strong> perda do “eu”; subverte o <strong>de</strong>sespero a ponto <strong>de</strong> escondê-lo do “eu”.Consi<strong>de</strong>rado a partir <strong>de</strong> sua manifestação, po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar estas trêsvariações do <strong>de</strong>sespero, sendo que uma <strong>de</strong>las não participa propriamente <strong>de</strong>ste conceito,pois não consi<strong>de</strong>ra elementos necessários para a análise da doença mortal. Será corretoafirmar que o primeiro caso analisado, a saber, do <strong>de</strong>sespero inconsciente <strong>de</strong> ter um“eu”, recebe a <strong>de</strong><strong>no</strong>minação <strong>de</strong>sespero por uma questão lingüística; estranhamente este<strong>de</strong>sespero participa da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, na forma <strong>de</strong> abatimentos imediatos, estéticos, masig<strong>no</strong>ra o “eu”. Os casos seguintes aten<strong>de</strong>m às exigências que lhe conferem a<strong>no</strong>menclatura <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero; partem do “eu” (já que possuem consciência da síntese),voltam-se para o <strong>de</strong>sespero (por não harmonizar os opostos), e retornam para o “eu”,(vivendo abatido pela enfermida<strong>de</strong> ou voltando-se para a fé). Porém, a liberda<strong>de</strong>, quedormia profundamente à margem da presente análise manifesta-se na forma <strong>de</strong>consciência; consciência interior, consciência <strong>de</strong> si. E sob este aspecto se <strong>de</strong>terá apróxima investigação.


1103.2: O <strong>de</strong>sespero conforme os fatores da síntese“O eu é a síntese consciente <strong>de</strong> finito e <strong>de</strong> infinito em relação com elaprópria” (KIERKEGAARD, 2010b, 46). Até o momento a presente investigação <strong>de</strong>tevesena síntese, ou seja, se a relação que constitui o “eu” voltou-se sobre si própriaconstituindo um terceiro termo positivo e se o homem <strong>de</strong>tinha o conhecimento <strong>de</strong>starealida<strong>de</strong>; se a divinda<strong>de</strong> participava <strong>de</strong>sta relação ou se fora banida e se o “eu”compreendia a verda<strong>de</strong>ira natureza do <strong>de</strong>sespero: uma enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> naturezaespiritual, uma discordância entre os fatores da síntese, como foi dito. Porém, algo nãofoi respondido: como se dá este processo <strong>de</strong> discordância? De que maneira um dosfatores sobrepuja o outro e faz-se senhor da situação? Como reconhecer o conflito quese dá na interiorida<strong>de</strong>? A análise <strong>de</strong>ve iniciar esclarecendo a dialética dos fatores aserem analisados, sob pena <strong>de</strong>, se não o fizer, comprometer a investigação. APsicologia, agora mais do que <strong>no</strong> sub-capítulo anterior, se manifestará sobre aconcepção <strong>kierkegaard</strong>iana em relação aos fatores da síntese.Ao retomar-se a concepção <strong>de</strong> homem segundo Kierkegaard, lembra-seautomaticamente do conceito <strong>de</strong> síntese. Esta se auto<strong>de</strong>fine como <strong>de</strong>rivada, segundo foiexposto. Neste momento o trabalho do conceito <strong>de</strong>ve se voltar sobre os fatoresconstituintes da síntese. Interpretação certamente correta, se o que se busca é passível <strong>de</strong>observação <strong>no</strong> âmago do homem. Diante da resposta afirmativa, como é o caso,empreen<strong>de</strong>r-se-á a investigação <strong>de</strong> acordo com a prepon<strong>de</strong>rância <strong>de</strong> um dos fatoressobre o outro. Desta maneira, cada elemento formador da síntese (a tese e a antítese)<strong>de</strong>verá ser concebido <strong>de</strong> modo que exponha o fator oposto e, a partir <strong>de</strong>ste contraste, aanálise psicológica manifesta suas conclusões.Isto <strong>de</strong>riva da dialética da síntese do eu, na qual um dos fatores não cessa <strong>de</strong>ser o seu próprio contrário. Não se po<strong>de</strong> dar <strong>de</strong>finição direta (não-dialética)<strong>de</strong> nenhuma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, é sempre necessário que uma forma reflita oseu contrário. Po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>screver sem dialética o estado do <strong>de</strong>sesperado <strong>no</strong><strong>de</strong>sespero, tal como fazem os poetas, <strong>de</strong>ixando que ele próprio fale. Mas o<strong>de</strong>sespero só se <strong>de</strong>fine pelo seu contrário; e para que tenha valor artístico aexpressão <strong>de</strong>ve ter então <strong>no</strong> colorido como que um reflexo do seu contrário.


111Portanto, em toda vida humana que se julga já infinita, e o quer ser, cadainstante é <strong>de</strong>sespero (KIERKEGAARD, 2010b, 47).O princípio da análise, tal como foi formulado por Kierkegaard, permiteque os dois elementos formadores da síntese mantenham-se, ao mesmo tempo, sobinvestigação. A síntese, em sua natureza <strong>de</strong> relação positiva, a saber, relação que sevolta sobre si e se reconhece, exige que seja assim. Se for necessário separar os fatorespara analisá-los, não se observa a síntese, o “eu”, mas simplesmente a alma ou o corpo.Consequentemente, não se observa o <strong>de</strong>sespero e a análise torna-se um folclore.Atentando às prescrições metodológicas, iniciar-se-á pela síntese entrefinito e infinito. Admitir-se-á que os elementos contrários, postos juntos, por sua próprianatureza, ten<strong>de</strong>m a, se não anularem-se mutuamente, limitar a atuação <strong>de</strong> seu antípoda.Neste caso, não há anulação, ou não haveria “eu”. Então há limitação. A finitu<strong>de</strong><strong>de</strong>limita, a infinitu<strong>de</strong> ilimita. Cada carência, assim como cada excesso, será umapersonificação do <strong>de</strong>sespero.De acordo com Kierkegaard e sua concepção <strong>de</strong> doença mortal segundoos fatores da síntese, i<strong>de</strong>ntificam-se quatro variações do <strong>de</strong>sespero: <strong>de</strong>sespero dainfinida<strong>de</strong> ou carência <strong>de</strong> finito, <strong>de</strong>sespero do finito ou carência <strong>de</strong> infinito, <strong>de</strong>sesperodo possível ou carência <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sespero da necessida<strong>de</strong> ou carência <strong>de</strong>possível. O finito e a necessida<strong>de</strong> possuem o papel <strong>de</strong> reter, <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar o “eu” (cadaum à sua maneira), <strong>de</strong> modo que ele não se afaste <strong>de</strong>masiado <strong>de</strong> si mesmo. Emcontrapartida, o infinito e o possível atuam <strong>de</strong> modo a conduzir o “eu” rumo àinfinitização. Lembra-se que não são os elementos propriamente ditos que<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam a enfermida<strong>de</strong>, mas sim seu excesso ou sua carência. Quando o homem éarrastado <strong>de</strong>masiado pela infinitu<strong>de</strong>, a finitu<strong>de</strong> retrai-se, e o homem torna-se presa doimaginário 110 . Ao tornar-se presa da imaginação, esta iniciará seu engenho em110 “É o imaginário em geral que transporta o homem ao infinito, mas afastando-o apenas <strong>de</strong> si próprio e<strong>de</strong>sviando-o assim <strong>de</strong> regressar a si próprio” (KIERKEGAARD, 2010b, 47). Kierkegaard confirma aimaginação como o princípio <strong>de</strong> conhecimentos, paixões, vonta<strong>de</strong>s, isto porque qualquer um <strong>de</strong>les <strong>de</strong>ve,em primeiro lugar, se refletir na imaginação; <strong>de</strong>sta maneira, cabe ao imaginário o papel da infinitização.Apenas a imaginação é capaz <strong>de</strong> abarcar o fator infinitu<strong>de</strong> na síntese. Kierkegaard admite que aimaginação não é uma faculda<strong>de</strong> como as outras, é o proteu entre as faculda<strong>de</strong>s humanas. A presentedissertação se <strong>de</strong>terá a abordar este tema, a saber, a imaginação, apenas a título <strong>de</strong> esclarecimento acercado conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, uma vez que uma análise sobre sua origem <strong>no</strong> arcabouço filosófico<strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> não é objeto <strong>de</strong>sta investigação.


112reproduzir o “eu”; um “eu” imaginário, um “eu” carente <strong>de</strong> finitu<strong>de</strong>, portanto,<strong>de</strong>sesperado.O que há <strong>de</strong> sentimento, conhecimento e vonta<strong>de</strong> <strong>no</strong> homem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> emúltima análise do po<strong>de</strong>r da imaginação, isto é, da maneira segundo a qualtodas as faculda<strong>de</strong>s se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é a reflexãoque cria o infinito, por isso, o velho Fichte tinha razão quando via nela,mesmo para o conhecimento, a origem das categorias. Assim, como o eu,também a imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o, cria opossível do eu; e a sua intensida<strong>de</strong> é o possível <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> do eu(KIERKEGAARD, 2010b, 47).O “eu” <strong>de</strong>sta maneira absorvido pela infinitu<strong>de</strong> abstrai-se <strong>de</strong> tal modoque a relação que o constitui torna-se uma “sensibilida<strong>de</strong> impessoal”(KIERKEGAARD, 2010b, 47). Deste modo, o “eu” passa a ser vítima do imaginário etodas as suas ativida<strong>de</strong>s ficarão igualmente suspensas <strong>no</strong> imaginário. Seu querer, seuconhecer e sua vonta<strong>de</strong>, em última instância, não aten<strong>de</strong>m à síntese, à relação finito einfinito, mas à sua imaginação e às quimeras por ela produzidas. Isto <strong>de</strong>manda oabando<strong>no</strong> do “eu” e da divinda<strong>de</strong> e o optar por um imaginário que não se tornarárealida<strong>de</strong> (pelo me<strong>no</strong>s não como a imaginação o concebera). Que Psicologia eDogmática pouco tenham a dizer sobre isso, é por que não há nada <strong>de</strong> tão silenciosoquanto a perda do “eu”. Esta perda mescla-se com uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> paixões e apetites, o“eu” torna-se uma vaga lembrança e a existência bem po<strong>de</strong> seguir o seu curso, mesmoabatida pela doença mortal.Antípoda do “eu” à <strong>de</strong>riva <strong>no</strong> imaginário, porém quadro tão <strong>de</strong>sesperadoquanto este, a presente análise <strong>no</strong>s conduz ao <strong>de</strong>sespero do finito ou carência <strong>de</strong>infinito. Neste caso o “eu” se fecha <strong>no</strong> finito, ig<strong>no</strong>rando sua infinitu<strong>de</strong> e,consequentemente, seu elemento eter<strong>no</strong>. “A <strong>no</strong>ssa estrutura originária está, com efeito,sempre disposta como um eu que <strong>de</strong>ve tornar-se ele próprio; e, como tal, é certo que umeu tem sempre ângulos, mas daí apenas se conclui que é preciso dar-lhes resistência, enão limá-los (KIERKEGAARD, 2010b, 50). Trata-se <strong>de</strong> um “eu” passivo, que <strong>de</strong>ixousefrustrar <strong>de</strong> si mesmo; que não ousa ser um si-mesmo. Sua humanida<strong>de</strong> voltou-se àsocupações humanas, aos rumos do mundo.


113Seu “eu” foi abatido pela doença mortal. Ao perscrutar-se tal indivíduo,vê-se que ele tem um <strong>no</strong>vo governante <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si: a multidão 111 . “Esse <strong>de</strong>sespero, quefacilita a vida ao invés <strong>de</strong> a entravar, não é, naturalmente, tomado como <strong>de</strong>sespero. Talé a opinião da socieda<strong>de</strong>, como se po<strong>de</strong> ver pela maioria dos provérbios, que nada sãomais do que regras <strong>de</strong> prudência” (KIERKEGAARD, 2010b, 52). Aos olhos do mundo(e do <strong>de</strong>sespero do finito ou carência <strong>de</strong> infinito), é muito perigoso arriscar-se ser um“eu”. Muito perigoso manifestar-se. Por que ser um “eu”, se tal indivíduo po<strong>de</strong> sermultidão? Porém, se houver algum enga<strong>no</strong>, quem o ajudará? Após calar o “eu”, <strong>de</strong> fato,as consequências <strong>de</strong> suas palavras não virão castigá-lo. Mas o terror da perda do “eu”,isto tal <strong>de</strong>sesperado ig<strong>no</strong>ra. Ato compreensível, já que se trata <strong>de</strong> um “eu” carente <strong>de</strong>infinitu<strong>de</strong>. “Mas, aquele que sabe on<strong>de</strong> há que temer, receia precisamente mais que tudoqualquer má ação, qualquer crime <strong>de</strong> uma orientação interior que não <strong>de</strong>ixe vestígiosexteriores” (KIERKEGAARD, 2010b, 51).A perda do “eu” a Psicologia não explica. Não corrobora a concepção<strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. Aos olhos da observação psicológica, esta perda (queneste caso não se trata <strong>de</strong> uma perda) não constitui a doença mortal, mas sim um estado<strong>de</strong> alma, por sua própria natureza flutuante. Trata-se <strong>de</strong> uma enfermida<strong>de</strong> que seexpressa na forma <strong>de</strong> tensão da existência; pós e pílulas são receitados, e o <strong>de</strong>sesperadoretorna à superfície, ainda <strong>de</strong>sesperado, mas embalado por um suave compasso, por umaig<strong>no</strong>rância permitida.Retomando o hábito <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar o objeto e a abrangência da ciência quere-flexiona sobre ele, a Psicologia <strong>de</strong>verá ser pru<strong>de</strong>nte ao manifestar-se, já que oelemento cuja carência foi i<strong>de</strong>ntificada (<strong>de</strong>vido à dialética da relação, em que um dostermos não cessa <strong>de</strong> ser o contrário do outro) possui uma natureza que seus mecanismosnão abrangem. Por possuir como mecanismo <strong>de</strong> investigação a observação, se <strong>de</strong>terá <strong>no</strong>elemento finito. Kierkegaard então voltará seus esforços à Dogmática. Segundo odinamarquês, a carência <strong>de</strong> um dos elementos se expressa na forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarmonia na111 Leia-se a perda da interiorida<strong>de</strong> <strong>no</strong> sentido <strong>de</strong> negar a individualida<strong>de</strong> para tornar-se multidão. Amultidão que se apega ao imediato, a multidão e suas leis morais, seus vícios enrustidos, seucomportamento <strong>de</strong> rebanho. Em seus conhecimentos não se encontra certeza alguma, pois seus conceitossão tantos quantos são os indivíduos feitos <strong>de</strong> vítima por ela. Aquele que é acolhido neste conceito, asaber, <strong>de</strong> multidão, nega seu “eu”, mas não absorve qualquer espécie <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>; torna-se umaimitação servil, uma voz num unísso<strong>no</strong> sem sentido.


114síntese. Alheio a este fator, por mais que tenham feito ou possuído, os indivíduos assimencontrados pertencem ao grupo daqueles abatidos pela doença mortal.Numa marcha sem paradas, Kierkegaard através <strong>de</strong> sua concepção <strong>de</strong>doença mortal expõe à observação <strong>no</strong>vas categorias: o possível e o necessário. Comoanteriormente, ambos os fatores são imprescindíveis para a formação do “eu”. Opossível, como já foi dito, contém em si todos os possíveis, po<strong>de</strong>ndo chegar a ser apossibilida<strong>de</strong> pura, <strong>de</strong> si e para si, e assim permanecer (quadro este que será explicadoadiante). A necessida<strong>de</strong> será i<strong>de</strong>ntificada por sua função <strong>de</strong> reter. A liberda<strong>de</strong> éindispensável pelo singelo motivo que o “eu” só po<strong>de</strong> reconhecer-se sendo livre.A existência é o sobressalto da liberda<strong>de</strong> diante do estado <strong>de</strong> fato: o fato <strong>de</strong>ser aí sem o ter pedido, que exige um périplo patético antes <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rque se trata <strong>de</strong> receber-se a si mesmo, ao térmi<strong>no</strong> <strong>de</strong> um consentimento aoesforço requerido pela própria existência. É o surgimento da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> umsujeito não substancial, convocado a se constituir <strong>no</strong> tempo, alimentando-seda eternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proce<strong>de</strong> sua vida (FARAGO, 2006, 131).Como anteriormente, a carência ou o excesso <strong>de</strong> algum dos fatores<strong>de</strong>sestabiliza a relação que a síntese estabelece consigo mesma; ao voltar-se sobre si, asíntese vê-se conduzida por um dos fatores, enquanto o outro jaz soterrado <strong>no</strong> maisprofundo da interiorida<strong>de</strong>, como <strong>no</strong> caso do <strong>de</strong>sespero do possível ou carência <strong>de</strong>necessida<strong>de</strong>. “O eu, inicialmente, como síntese <strong>de</strong> finito e infinito é dado; em seguida,para se transformar, projeta-se sobre a tela da imaginação e é assim que se lhe revela oinfinito do possível. O eu contém tanto <strong>de</strong> possível como <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, porque é elepróprio, mas <strong>de</strong>ve realizá-lo” (KIERKEGAARD, 2010b, 53).A carência <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> impe<strong>de</strong> que a síntese se forme <strong>de</strong> maneirasaudável, ou seja, como <strong>no</strong>s casos prece<strong>de</strong>ntes, trata-se <strong>de</strong> um homem enfermo. A<strong>de</strong>speito da existência, po<strong>de</strong>-se concebê-la como saudável quando o possível e anecessida<strong>de</strong> se unem, <strong>de</strong> maneira harmoniosa, na realida<strong>de</strong>. Esta união, segundoKierkegaard, será estabelecida pela divinda<strong>de</strong> e por ela mantida. Po<strong>de</strong>-se afirmar que,<strong>no</strong> caso agora abordado, o possível se manifesta com tamanha intensida<strong>de</strong> que nãochega a passar ao real, “<strong>no</strong> qual este eu não é mais do que uma miragem”(KIERKEGAARD, 2010b, 53).


115O possível contém <strong>de</strong> fato todos os possíveis e, portanto, todos os <strong>de</strong>svarios,mas principalmente dois: um, em forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> <strong>no</strong>stalgia, e o outro <strong>de</strong>melancolia imaginativa (esperança, receio ou angústia). (...) Em vez <strong>de</strong>reportar o possível à necessida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sejo persegue-o até per<strong>de</strong>r o caminho<strong>de</strong> regresso a si próprio. Na melancolia, suce<strong>de</strong> o contrario <strong>de</strong> maneiraidêntica. O homem possuído por um amor melancólico empenha-se emperseguir um possível em sua angústia, que acaba por afastá-lo <strong>de</strong> si próprio eo faz morrer nessa angústia ou nessa mesma extremida<strong>de</strong>, na qual ele receavaperecer (KIERKEGAARD, 2010b, 53-54).O surgimento <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sespero acusa a verda<strong>de</strong>ira carência do indivíduo:carece <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, da necessida<strong>de</strong> inclusa <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso “eu”. Extraviado assim <strong>no</strong>possível, a realida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rá vir ao seu socorro, visto que não há língua comumentre ambos. Porém, tampouco po<strong>de</strong>-se tomar a realida<strong>de</strong> como responsável pela doençamortal, já que assim <strong>de</strong>ver-se-ia admitir o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero como algo exterior aoindivíduo, proposta rechaçada anteriormente. Vê-se, então, que é a carência danecessida<strong>de</strong>, manifestada na síntese, que lança o “eu” em <strong>de</strong>sespero.A conexão entre os fatores da síntese permite captar o avanço da doençamortal. A carência <strong>de</strong> possível asfixia o homem. No caso anterior, conclui-se que não é<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que aquele <strong>de</strong>sesperado precisa, mas sim <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. Fiel à análise dadialética da síntese iniciada anteriormente, a investigação mostrará que <strong>no</strong> <strong>de</strong>sespero danecessida<strong>de</strong> o homem carece <strong>de</strong> possível. Admite-se que o homem baniu a possibilida<strong>de</strong>(inclusive a possibilida<strong>de</strong> pura a que se referiu, que agora mostrará seu valor) e, ao banirum dos fatores da síntese admite-se tal indivíduo vitimado pela doença mortal.Mais do que um <strong>de</strong>terminismo estéril, tal concepção <strong>de</strong> doença mortal atéaqui exposta procurará <strong>de</strong>terminar o esforço do conceito direcionado à existência; omecanismo mais elevado (a filosofia) visará o objeto mais sublime (a edificação).Enquanto isto não ocorrer, o engenho huma<strong>no</strong>, guiado pela necessida<strong>de</strong>, empenha-se emsocorrer o <strong>de</strong>sesperado, valendo-se <strong>de</strong> um possível quimérico e mutilado. Mas ao fim oque lhe falta <strong>de</strong> fato é o supremo possível, ou a possibilida<strong>de</strong> pura: Deus. Alheio àfigura divina, tudo se torna banalida<strong>de</strong> ou fatalida<strong>de</strong>.“A salvação é, portanto, o supremo impossível huma<strong>no</strong>, mas a Deus tudoé possível” (KIERKEGAARD, 2010b, 56). Em última instância, é esta a possibilida<strong>de</strong>que o <strong>de</strong>sesperado afasta <strong>de</strong> si quando abatido pela doença mortal. Po<strong>de</strong>-se <strong>no</strong>tar queconforme o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero se aprofunda, a Psicologia per<strong>de</strong> espaço para a


116Dogmática. Deste ponto em diante esta afirmação ficará mais clara. O que Kierkegaardprocura, privilegiando a Dogmática, é a salvação <strong>de</strong> um “eu” cuja perda é inevitável.Para isso a fé <strong>de</strong>verá sair em socorro <strong>de</strong>ste indivíduo, remetendo o “eu” ao po<strong>de</strong>r que ocriou e restabelecendo a harmonia da síntese. Por trás <strong>de</strong>ste conflito que procura valorara vida, a consciência da enfermida<strong>de</strong> origina <strong>no</strong>vas formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, baseadas nareação e <strong>no</strong> comportamento do indivíduo frente à moléstia.3.3: Um arremedo <strong>de</strong> consciência: o <strong>de</strong>sespero-fraqueza e o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio.O questionamento que surge aqui perfaz toda a <strong>de</strong>scrição anterior. Apartir <strong>de</strong> agora, julgar-se-á as manifestações do <strong>de</strong>sespero quando acompanhadas dareflexão, da consciência. Afirma-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora, que na mesma proporção que aconsciência se aprofunda, as <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> “eu” e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero aprofundam-se. A presenteinvestigação iniciará pela ig<strong>no</strong>rância <strong>de</strong> ter um “eu” (estado <strong>de</strong> “pseudo-<strong>de</strong>sespero”, emque a perda do “eu” não é sequer mencionada) e findará <strong>no</strong> <strong>de</strong>sespero- <strong>de</strong>safio, apegodoentio a um “eu” criado para sua própria satisfação. Em ambos os casos, este “eu”encontra-se mortalmente doente. Diferente <strong>de</strong> Lázaro, cuja saú<strong>de</strong> do espírito lhegarantiu contra o abatimento do corpo, o <strong>de</strong>sesperado encontra-se enfermo, e é nestaúltima instância, a qual se abateu sobre Lázaro, que a doença mortal se mostrarárealmente na forma da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mergulhar em si mesmo até o po<strong>de</strong>r que ocriou.Todo o homem que não se conhece como espírito ou cujo eu interior nãotomou em Deus consciência <strong>de</strong> si próprio. Toda existência humana, que nãomergulha <strong>de</strong>sse modo limpidamente em Deus, mas se funda nebulosamentesobre qualquer abstração ou a ela se reduz, ou que cega para consigo própria,não vê nas suas faculda<strong>de</strong>s mais do que energias <strong>de</strong> origem pouco explícita, eaceita o seu eu como um enigma rebel<strong>de</strong> a qualquer introspecção – todaexistência <strong>de</strong>ste gênero, realize o que realizar, explique o que explicar, até opróprio universo, por muito interessante que, como esteta, goze a vida;mesmo assim ela será <strong>de</strong>sespero (KIERKEGAARD, 2010b, 65).


117“É nessa ig<strong>no</strong>rância que o homem tem me<strong>no</strong>r consciência <strong>de</strong> serespírito”. (KIERKEGAARD, 2010b, 63). Obtém-se assim uma primeira <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><strong>no</strong>sso tema. Moverá esta ig<strong>no</strong>rância <strong>de</strong> modo que ela lhe permita usufruir <strong>de</strong> umafelicida<strong>de</strong> inventada. A Dogmática não se ocupa com tais engenhos, portanto tem poucoa dizer sobre tal <strong>de</strong>sesperado (se ocupará <strong>de</strong>le quando este se voltar à fé). Comoanteriormente, a <strong>de</strong>finição dogmática balizará os estudos <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>s (assim comobalizará o presente trabalho) sobre o espírito e seu oposto dialético, a ausência <strong>de</strong>espírito.Nesta ausência <strong>de</strong> espírito po<strong>de</strong>-se incluir duas espécies <strong>de</strong> homens: ohomem natural e o pagão, ambos alheios à fé, porém, cada um à sua maneira 112 . Estepérfido usufruto vigorará enquanto o engenho huma<strong>no</strong> for suficiente para garanti-lo.Este engenho se moverá tanto <strong>de</strong> modo que proteja o “eu” (o <strong>de</strong>sespero em que o<strong>de</strong>sesperado quer ser ele próprio), quanto a procurar afastar-se do “eu”, abandoná-lo (o<strong>de</strong>sespero <strong>no</strong> qual não se <strong>de</strong>seja ser si próprio). Porém, um movimento brusco e este“eu” vacila. O <strong>de</strong>sespero, que espiava <strong>de</strong> longe, surge. Esboçadas as vertentes nuclearesdas manifestações do <strong>de</strong>sespero e, agora. adicionado o caráter consciência, <strong>de</strong>ter-se-á nadicotomia <strong>de</strong>sespero-fraqueza e <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio 113 .112 Po<strong>de</strong>-se afirmar que o pagão não se volta a Deus por ig<strong>no</strong>rância, já o homem natural (que Kierkegaardchama aqui <strong>de</strong> pagão mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>) não se volta a Deus por levianda<strong>de</strong>. “(...) Uma diferença, diferença <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong>, entre o paganismo <strong>de</strong> outrora e os <strong>no</strong>ssos pagãos mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s; aquela que, a propósito daangústia, observou Vigilius Haufniensis: se o paganismo não conhece o espírito, está, contudo, orientadopara ele, ao passo que os <strong>no</strong>ssos pagãos mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s carecem <strong>de</strong>le por afastamento ou traição, e isso que é overda<strong>de</strong>iro nada do espírito” (KIERKEGAARD, 2010b, 65).113 Remanesce das <strong>de</strong>finições anteriores a dialética do <strong>de</strong>sespero. Nos casos expostos, o fator antípodaconcomitantemente à sua manifestação contrastava-se com o fator abordado e o tornava passível <strong>de</strong>observação dialética. No caso agora estudado, o <strong>de</strong>sespero-fraqueza, por possuir uma leve reflexão sobresi, contém em seu âmago certo <strong>de</strong>safio. Assim como o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio, não obstante sua virilida<strong>de</strong>,possui elementos <strong>de</strong> fraqueza em seu bojo. O contraste entre os antípodas se aprofunda <strong>de</strong>vido à reflexão,que aprofunda a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> “eu” e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. Kierkegaard, em sua obra A doença mortal, i<strong>de</strong>ntifica o<strong>de</strong>sespero-fraqueza e o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio como manifestação feminina e masculina, respectivamente,<strong>de</strong>sta enfermida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sespero-fraqueza não exige um aprofundamento do “eu” nem umaintelectualida<strong>de</strong> dominante, caracteriza-se pelo abando<strong>no</strong> <strong>de</strong> si <strong>no</strong> ato <strong>de</strong> não querer ser si próprio. Estassão as características que, segundo ele, aproximam este <strong>de</strong>sespero do gênero femini<strong>no</strong>. No <strong>de</strong>sespero<strong>de</strong>safionão há o abando<strong>no</strong> observado <strong>no</strong> <strong>de</strong>sespero-fraqueza; há, ao contrario, auto-afirmação; o<strong>de</strong>sespero quer ser ele mesmo. Mesmo sendo <strong>de</strong>sespero, esta variação é i<strong>de</strong>ntificada na filosofia<strong>kierkegaard</strong>iana com a virilida<strong>de</strong>, característica masculina, portanto, um dos motivos da aproximação<strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sespero ao gênero masculi<strong>no</strong>. Convém esclarecer que o <strong>de</strong>sespero-fraqueza não é exclusivida<strong>de</strong>da mulher, assim como o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio não é apanágio do homem. A manifestação do <strong>de</strong>sesperofraqueza<strong>no</strong> homem, da mesma maneira que o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio na mulher, constituem exceções.Segundo Kierkegaard, na mulher em que este abando<strong>no</strong> não é i<strong>de</strong>ntificado, a feminilida<strong>de</strong> não se<strong>de</strong>senvolveu <strong>de</strong> maneira plena, assim como um homem incapaz <strong>de</strong> exercer sua virilida<strong>de</strong> será umacriatura que não aten<strong>de</strong> a características básicas.


118“Então <strong>de</strong>sespera. O seu <strong>de</strong>sespero é o <strong>de</strong>sespero-fraqueza, sofrimentopassivo do eu, o oposto do <strong>de</strong>sespero em que o eu se afirma; mas, graças à pequenabagagem <strong>de</strong> reflexão sobre si próprio tenta, também aqui, diferindo do espontâneo puro,<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o eu” (KIERKEGAARD, 2010b, 75). Diante <strong>de</strong> quadro tão esquivo esta <strong>de</strong>fesado “eu” faz concessões e tem direito <strong>de</strong> fazê-las. Não ousa retornar a si próprio atétornar a encontrar-se. Com a ajuda da mencionada reflexão sobre si, <strong>de</strong> maneira doentia,<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, <strong>de</strong>sencantada segue a vida sem possuir mais do que um vislumbre <strong>de</strong> “eu”e nada mais adquire.Há uma posição diversa da citada, mas que ainda assim enquadra-se <strong>no</strong><strong>de</strong>sespero-fraqueza; o <strong>de</strong>sesperado, neste caso é levado a <strong>de</strong>sesperar da sua própriafraqueza. Po<strong>de</strong>-se afirmar que neste caso houve progresso. O indivíduo parte daig<strong>no</strong>rância da sua fraqueza, mas adquire consciência <strong>de</strong> seu estado <strong>de</strong>sesperado. Estearremedo <strong>de</strong> reflexão, num primeiro momento, não se volta sobre o “eu”, volta-se para oexterior. Assim po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>sespero-fraqueza em sua primeira aparição.I<strong>de</strong>ntifica o <strong>de</strong>sespero à sua real causa: o próprio <strong>de</strong>sesperado. Também i<strong>de</strong>ntifica suafraqueza: dar tanta importância ao temporal.Esse <strong>de</strong>sespero, <strong>de</strong> um mais profundo grau que o prece<strong>de</strong>nte, é daqueles quese encontram me<strong>no</strong>s frequentemente <strong>no</strong> mundo. Essa porta con<strong>de</strong>nada, portrás da qual nada havia além do nada, é aqui uma verda<strong>de</strong>ira porta, apesar <strong>de</strong>aferrolhada e, por trás <strong>de</strong>la o eu, como que atento a si próprio, ocupa-se eilu<strong>de</strong> o tempo a recusar-se ser ele próprio, ainda que o sendo infinitamentepara se amar (KIERKEGAARD, 2010b, 84).Plenamente imerso nesse emaranhado, porém consciente <strong>de</strong> sua fraqueza,o “eu” é levado à baila na vida, como se sua perda nada fosse. Po<strong>de</strong>-se indagar: mas porque este <strong>de</strong>sesperado não extirpa <strong>de</strong>finitivamente <strong>de</strong> si o <strong>de</strong>sespero, aceitando a fé? Aconsciência <strong>de</strong> seu “eu”, do seu <strong>de</strong>sespero e da sua realida<strong>de</strong> não <strong>de</strong>veriam conduzi-lo àsalvação? Caso a resposta seja negativa 114 , o “eu” <strong>de</strong>verá pôr sua reflexão a serviço <strong>de</strong>114 Segundo Kierkegaard, a partir do momento que o indivíduo ten<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sespero para a fé, a corrente <strong>de</strong>calamida<strong>de</strong>s que o acossava se extingue. Porém, como a Dogmática afirma (e tal afirmação é seguida pelodinamarquês) apenas <strong>de</strong>ntro da cristanda<strong>de</strong> (e mesmo assim raramente) encontramos tal indivíduo. Asedução exercida pelo imediato, pela estética corrompe os homens aos milhões. Valendo-se <strong>de</strong> umaanalogia utilizada por Kierkegaard, pensemos o <strong>no</strong>sso “eu” como uma casa, em que o porão correspon<strong>de</strong>às categorias sensuais e o primeiro andar correspon<strong>de</strong> à postura cristã, ou, <strong>no</strong> mínimo, ética. “Todos nóssomos uma síntese com uma finalida<strong>de</strong> espiritual, essa é a <strong>no</strong>ssa estrutura; mas quem não prefere habitaro porão, as categorias do sensual? O homem não só prefere viver nelas, mas ama-as a tal ponto que se


119algum engenho que, aparentemente, superficialmente, supra esta falta. Po<strong>de</strong> voltar-sesobre si, e esta ação se refletirá como necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> solidão, melancolia (que se po<strong>de</strong><strong>de</strong>finir aqui como a inércia do espírito). O hermetismo remanesce como objeto daanálise, como uma relação consigo próprio; “horas <strong>de</strong> algo a ver com a eternida<strong>de</strong>,embora não vividas para ela” (KIERKEGAARD, 2010b, 86). Quando voltado aoimediato, este <strong>de</strong>sesperado po<strong>de</strong>rá recorrer à <strong>de</strong>vassidão, vícios e <strong>de</strong>spudores <strong>de</strong> toda aespécie; recorrerá a algo que proporcione apaziguamento em sua alma.Como foi exposto, fica claro o motivo <strong>de</strong> Kierkegaard valer-se daDogmática para conceituar o <strong>de</strong>sespero-fraqueza. Este <strong>de</strong>sespero exige do indivíduouma consciência <strong>de</strong> si, da divinda<strong>de</strong> e da enfermida<strong>de</strong>, a saber, a doença mortal. Suacorreta <strong>de</strong>finição está condicionada a essas informações. O hermetismo e o <strong>de</strong>spudor aPsicologia os compreen<strong>de</strong>, valendo-se da observação para chegar a suas conclusões. Asolidão e a melancolia também não lhe são estranhas, porém, o “eu” e a fé lhe escapamà <strong>de</strong>finição, ao me<strong>no</strong>s como Kierkegaard os compreen<strong>de</strong>. A Dogmática não tem muito adizer sobre as paixões e sentimentos huma<strong>no</strong>s, concentra suas investigações sobre o“eu” e a fé. Longe <strong>de</strong> ser uma falha, é isto que Kierkegaard valoriza em tal investigação:uma análise que conceba o indivíduo perante Deus, <strong>de</strong> acordo com o seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>espiritual. Desta maneira, a concepção Dogmática <strong>de</strong>verá não apenas valorar o “eu”,mas também conduzir a investigação.Plural já em sua raiz, convém prosseguir-se a análise do <strong>de</strong>sespero, cujoavanço, como já foi dito, é marcha sem paradas. Po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar a seguinte variaçãona aparição da doença mortal: o <strong>de</strong>sesperado que não quer e o <strong>de</strong>sesperado que quer serele próprio. Apesar <strong>de</strong> consciente <strong>de</strong> seu estado, este segundo <strong>de</strong>sesperado insiste emsua perfídia, insiste em ser um si-mesmo enfermo, em manter seu <strong>de</strong>sespero ao alcancedos olhos. “Mas existe na realida<strong>de</strong> tal eu? Não terá se refugiado <strong>no</strong> <strong>de</strong>serto, <strong>no</strong>convento ou <strong>no</strong> asilo <strong>de</strong> alienados?” (KIERKEGAARD, 2010b, 85). SegundoKierkegaard, o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio correspon<strong>de</strong> a esta <strong>de</strong>finição.Nesta forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, a consciência do eu aumenta progressivamente e,portanto, a par e passo à do que é o <strong>de</strong>sespero e da natureza <strong>de</strong>sesperada doestado em que se está; nela o <strong>de</strong>sespero tem consciência <strong>de</strong> ser um ato e nãozanga quando alguém lhe propõe o primeiro andar, o andar <strong>no</strong>bre, sempre vago e esperando-o – porqueafinal toda casa lhe pertence” (KIERKEGAARD, 2010b, 61).


120provém do exterior como um sofrimento passivo sob a pressão ambiente, masdiretamente do eu. Deste modo, em relação ao <strong>de</strong>sespero-fraqueza, este<strong>de</strong>safio representa <strong>de</strong> fato uma <strong>no</strong>va qualificação (KIERKEGAARD, 2010b,90).Isso <strong>de</strong>manda o abando<strong>no</strong> do “eu”. Um abando<strong>no</strong> consciente, quasesalutar. Esse abando<strong>no</strong> exige do indivíduo “a consciência <strong>de</strong> um eu infinito”(KIERKEGAARD, 2010b, 90). Po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificá-lo com o termo <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>vido a esteconhecimento e seus <strong>de</strong>sdobramentos. Assim consciente, o homem interage com ainfinitu<strong>de</strong> (porém <strong>de</strong> uma forma negativa, fundamento do seu <strong>de</strong>sespero). Abusa dainfinitu<strong>de</strong> inerente ao seu “eu”, e este abuso consiste em sua tentativa (<strong>de</strong>sesperada) <strong>de</strong>arrancar da relação o po<strong>de</strong>r que a criou. “Quer dizer que preten<strong>de</strong> começar um poucomais cedo do que os outros homens, nem pelo, nem com o começo, mas ‘<strong>no</strong>’ começo”(KIERKEGAARD, 2010, 90).Portanto, em consonância com a questão, referimo-<strong>no</strong>s à Dogmáticacomo arauto da concepção <strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong> “eu”: um elo com a divinda<strong>de</strong>, criado emantido pela própria divinda<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio contrapõe-se a esta concepçãoquando afasta <strong>de</strong> si o divi<strong>no</strong>, criando por si uma síntese negativa; quer construir elepróprio o seu “eu”. Não é capaz <strong>de</strong> criar algo, apenas construir. Po<strong>de</strong> se valer daeternida<strong>de</strong>, mas não po<strong>de</strong> criá-la. A dialética do “eu” não permite uma constância 115 .Pois que, sem levar o <strong>de</strong>sespero a ponto <strong>de</strong> experimentalmente se erigir emDeus, nenhum eu <strong>de</strong>rivado po<strong>de</strong>, contemplando-se, dar-se por mais do que é;em última instância, é sempre o eu, mesmo multiplicando-se, o eu é só o eu.Neste sentido, <strong>no</strong> seu esforço <strong>de</strong>sesperado para ser ele próprio, o eu dissolvese<strong>no</strong> seu contrário, até acabar por <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser um eu (KIERKEGAARD,2010b, 91).115 Kierkegaard, na obra A doença mortal, distingue duas manifestações do <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio: ativo epassivo. O “eu” ativo se comportará <strong>de</strong> maneira a extrair <strong>de</strong> si próprio outro eu, pior e mais triste;<strong>de</strong>sesperado. “O po<strong>de</strong>r que exerce sua forma negativa tanto liga quanto <strong>de</strong>sliga; po<strong>de</strong>, sempre que queira,voltar ao começo, e por muita perseverança que ponha em seguir uma i<strong>de</strong>ia, a sua ação permanece umahipótese. Bem longe <strong>de</strong> conseguir ser cada vez mais ele próprio, revela-se cada vez mais hipotético(KIERKAGAARD, 2010b, 91). O “eu” passivo não possui forças suficientes para construir um “eu” paraseu usufruto; um escamoteamento ilícito se porá em movimento em prol <strong>de</strong> amenizar o terrível <strong>de</strong> umaexistência passiva e <strong>de</strong>sesperada. “O eu que nega os dados concretos, imediatos do eu, começará talvezpor tentar alijar este mal, por fingir que ele não existe e não quererá saber <strong>de</strong>le. Mas a sua tentativa aborta,a sua <strong>de</strong>streza nas experiências não vai a este ponto, nem sequer a sua <strong>de</strong>streza; como Prometeu, o eunegativo infinito sente-se preso a esta sujeição interior. Temos, portanto, um eu passivo(KIERKEGAARD, 2010b, 92-93).


121Visando provar sua realida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio, na forma do “eu”ativo, <strong>de</strong> tal maneira esforça-se para tornar este “eu” quimérico o seu “eu”, que serecusa a aceitar a divinda<strong>de</strong> não apenas por falta <strong>de</strong> fé, mas pelo zelo <strong>de</strong>dicado a suaperfídia. Aceitar o auxílio divi<strong>no</strong> seria con<strong>de</strong>nar seu “eu” à inexistência, algo que este<strong>de</strong>sesperado não po<strong>de</strong> permitir. Retorne-se ao conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>moníaco, porém agorarelacionado ao <strong>de</strong>sespero. Ao invés <strong>de</strong> visar a re<strong>de</strong>nção, este “eu” con<strong>de</strong>nsa-se com seu<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> tal maneira que o transforma em um protesto contra Deus. “Lança-se entãocom toda a sua paixão nesse tormento, que acaba por se tornar uma raiva <strong>de</strong>moníaca. Ese então fosse possível que, <strong>no</strong> céu, Deus com todos os seus anjos lhe oferecesse alibertação, recusá-la-ia: tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. (KIERKEGAARD, 2010b, 95).Qualquer tentativa <strong>de</strong> suplantar a Dogmática e a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> dainvestigação, recuando ao âmbito psicológico, con<strong>de</strong>nará a presente análise e se afastaráda proposta filosófica <strong>de</strong> Kierkegaard. Constata-se, portanto, que o elemento teórico nãoé suficiente para o êxito da investigação. Se o “eu” tor<strong>no</strong>u-se uma abstração <strong>de</strong>moníaca,<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado não apenas consciente, mas imerso em pecado. Este expoenteconduz a investigação do <strong>de</strong>sespero a sua questão <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira: sua relação com o pecadoe com a fé.3.4: O pecado, o <strong>de</strong>sespero e a fé concebidos sob a perspectiva da consciênciaPara prosseguir-se fiel às concepções <strong>kierkegaard</strong>ianas acerca dainvestigação objetiva e subjetiva, psicológica e dogmática, <strong>de</strong>ve-se, ao assumir umaanálise do pecado e da fé, ter algo in mente: a concepção <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>, a Dogmática e asíntese. Neste caso específico, parte-se <strong>de</strong> um objeto <strong>de</strong>claradamente pertencente àDogmática. O fervor religioso do dinamarquês nesta fase <strong>de</strong> sua vida, a saber, quando opseudônimo Johannes Anti-Climacus escreveu a obra A doença mortal, expressou-se na


122forma <strong>de</strong> recolhimento e edificação. A principal característica da análise agoraempreendida é que o homem encontra-se perante Deus 116 .Os <strong>de</strong>sdobramentos que surgirem a partir <strong>de</strong> tais concepções objetivarãoa análise e inquirições sobre o esforço da existência como Kierkegaard o compreen<strong>de</strong> ea importância <strong>de</strong> uma filosofia aberta à investigação subjetiva. No que tange à análisedos conceitos citados, po<strong>de</strong>-se indagar: como compreen<strong>de</strong>r o paganismo diante <strong>de</strong>sta<strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>, a saber, diante <strong>de</strong> Deus? Como o <strong>de</strong>sespero e o pecado <strong>de</strong>vem serconcebidos quando se fala do eu teológico? Como o escândalo evolui <strong>no</strong> âmago do euteológico? E, finalmente, como a fé extirpa o <strong>de</strong>sespero e conduz o homem à divinda<strong>de</strong>?A partir <strong>de</strong> tais questionamentos se moverá o final da presente investigação.O questionamento <strong>de</strong>ve partir da raiz da questão da síntese e do pecado,para então passar ao <strong>de</strong>sespero e ao escândalo e, então, à fé. Retorne-se por ummomento ao paganismo e a Sócrates para que o contraste dialético entre o eu teológico eo pagão esclareça a investigação. Em primeiro lugar <strong>de</strong>ve-se esclarecer que não havia aconcepção <strong>de</strong> eu teológico neste momento da humanida<strong>de</strong>. O homem jazia em totalig<strong>no</strong>rância <strong>de</strong> Deus. Tal ig<strong>no</strong>rância, <strong>de</strong> acordo com Kierkegaard, moldará o conceito <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero e <strong>de</strong> pecado encontrados <strong>no</strong> paganismo. Acerca do pecado, po<strong>de</strong>-se dizer quetal concepção era completamente alheia ao pagão.A i<strong>de</strong>ia grega <strong>de</strong> que o homem que conhece o justo não pratica o injustocondicio<strong>no</strong>u a concepção <strong>de</strong> erro 117 <strong>no</strong> paganismo. O conhecer e o praticar a justiça, <strong>no</strong>116 Essa gradação da consciência exprime uma <strong>no</strong>va qualificação. Até agora se admitiu o <strong>de</strong>sespero como<strong>de</strong>sarmonia da síntese. Empreen<strong>de</strong>u-se uma investigação que analisou (<strong>de</strong> certa maneira) a divinda<strong>de</strong> e asíntese, porém partindo do homem como diante <strong>de</strong> si e não diante da divinda<strong>de</strong>. Admitia-se a divinda<strong>de</strong>como elemento superior, como fator mantenedor da síntese; e ao partir <strong>de</strong> tais conceitos, alargava-seainda mais o abismo que separa o homem <strong>de</strong> Deus. Concepção necessária num primeiro momento, paraque fique clara a diferença <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> entre criador e criatura. Porém, ao almejar a análise do pecado eda fé é necessária uma investigação mais acurada, e para isso ela <strong>de</strong>ve possuir um fundamento maissólido e abrangente. Deve-se pensar o homem, para que a análise corrobore o objeto, como estando diante<strong>de</strong> Deus. Kierkegaard utilizará a <strong>de</strong><strong>no</strong>minação eu teológico para <strong>de</strong>signar o “eu” diante <strong>de</strong> Deus. Oexpoente infinito que paira em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>sta afirmação é que, estando perante Deus o homem passa a terDeus como sua medida; como medida <strong>de</strong> bem e mal, verda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>. “A criança que por medida nãoteve senão os pais será um eu quando, homem, tiver por medida o Estado; mas que acento infinito Deusdá ao homem tornando-se sua medida! A medida do eu é sempre o que este tem diante <strong>de</strong> si, e assim quese <strong>de</strong>fine o que seja ‘a medida’ (KIERKEGAARD, 2010b, 104). De acordo com o que foi expresso, amedida e a regra exprimirão a qualida<strong>de</strong>. O indivíduo, quando concebido perante Deus possui a divinda<strong>de</strong>como sua medida, portanto está condicionado a dogmas e leis ético-religiosas. Tal realida<strong>de</strong> exprime aqualida<strong>de</strong>.117 Como se afirmou, o paganismo não possuía a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> pecado por existir à margem da boa <strong>no</strong>vacristã. O erro não consistia em corrupção da vonta<strong>de</strong> e do querer, como compreendido <strong>no</strong> cristianismo,mas sim com uma i<strong>no</strong>cente ig<strong>no</strong>rância sobre o justo.


123paganismo grego, não esbarra em nenhum obstáculo. Este conhecimento expressa-se naforma <strong>de</strong> ação; assim Sócrates, reivindicado como gran<strong>de</strong> moralista, via a concepção <strong>de</strong>erro. A prática do justo, <strong>de</strong> acordo com o helenismo, é uma linha reta, umaconsequência certa do conhecimento do justo. Um grego apenas praticaria injustiças porig<strong>no</strong>rância do justo. Há certa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o compreen<strong>de</strong>r e o agir.O que faltou então a Sócrates na sua <strong>de</strong>terminação do pecado? A vonta<strong>de</strong>, o<strong>de</strong>sejo! A intelectualida<strong>de</strong> grega era <strong>de</strong>masiado feliz; <strong>de</strong>masiado ingênua,<strong>de</strong>masiado estética, <strong>de</strong>masiado irônica, <strong>de</strong>masiado maliciosa... <strong>de</strong>masiadopecadora para chegar a compreen<strong>de</strong>r que alguém conhecendo o justo,possuindo seu saber, pu<strong>de</strong>sse cometer o injusto. O helenismo dita umimperativo categórico da inteligência (KIERKEGAARD, 2010b, 116).A partir <strong>de</strong> tais afirmações compreen<strong>de</strong>-se mais claramente a diferençaentre o paganismo e o cristianismo <strong>no</strong> que tange ao pecado. O paganismo grego é<strong>de</strong>masiado ter<strong>no</strong> com o homem ao assumir esta postura 118 . Não concebe a corrupção dasíntese; porém, “a doutrina cristã do pecado, asperamente agressiva contra o homem,compõe-se <strong>de</strong> acusações sobre acusações, é o requisitório que o divi<strong>no</strong>, como MinistérioPúblico, toma a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> impor ao homem” (KIERKEGAARD, 2010b, 123).Por trás <strong>de</strong>ste conflito surge na presente investigação a concepção cristã,na qual se <strong>de</strong>terá a partir <strong>de</strong> agora. Eleger-se-á <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já a Dogmática como fio <strong>de</strong>Ariadne da investigação. Assim, a presente análise coloca-se em acordo comKierkegaard. Concomitantemente ao surgimento da concepção cristã <strong>de</strong> pecado e <strong>de</strong> fésurgem as seguintes questões: como se i<strong>de</strong>ntifica o <strong>de</strong>sespero em meio ao pecado? Queespécie <strong>de</strong> infâmia o <strong>de</strong>sespero acrescenta ao “eu” pecador? Como o cristianismoafastou-se tanto da i<strong>no</strong>cente visão helênica do homem? Este afastamento torna-se maisclaro mediante a investigação dos conceitos escândalo e pecado.A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pecado, <strong>de</strong> acordo com Kierkegaard, será o conceito quepromoverá o distanciamento entre o pagão e o cristão. O irromper na vida já comopecador caracteriza o processo <strong>de</strong> afastamento absoluto entre as duas espécies <strong>de</strong>118 Devido a estas particularida<strong>de</strong>s do paganismo (e <strong>de</strong> uma inclinação pessoal que Kierkegaard<strong>de</strong>monstra ao helenismo) o dinamarquês absolve o povo grego do <strong>de</strong>sespero infamante (ao qualcon<strong>de</strong>nará aqueles que se apresentam como cristãos vulgares), remetendo o <strong>de</strong>sespero encontrado nestepaganismo à ig<strong>no</strong>rância <strong>de</strong> Deus. Devido a isto, o conceito escândalo, que será exposto adiante, étotalmente ausente <strong>no</strong> helenismo.


124indivíduos. A compreensão, o conhecimento que afastava o pagão do erro não temefeito cabal sobre o cristão em livrá-lo do pecado. A linha reta que conduzia o pagão docompreen<strong>de</strong>r ao agir, ao passar pelo querer e pela vonta<strong>de</strong>, atributos que <strong>de</strong> acordo coma i<strong>de</strong>ia cristã <strong>de</strong> livre arbítrio estão sob os cuidados do homem, torna-se um labirintoconfuso, um labirinto <strong>de</strong> Dédalo.A vida do espírito não tem paradas (nem tampouco, afinal, estado: tudo éatual); portanto, se um homem, <strong>no</strong> próprio momento em que reconheça ojusto não o pratica, eis o que se produz: em primeiro lugar o conhecimentoestanca. Resta saber em seguida o que pensa a vonta<strong>de</strong> acerca do resíduo. Avonta<strong>de</strong> é um agente dialético, que por sua vez <strong>de</strong>termina toda a naturezainterior do homem. Se ela não aceita o produto do conhecimento, nem porisso se põe a fazer o contrário daquilo que o conhecimento apren<strong>de</strong>u, taisconflitos são raros; mas <strong>de</strong>ixa passar algum tempo, abre-se um ínterim e eladiz: ver-se-á até amanhã. Entretanto, o conhecimento obscurece-se cada vezmais e mais, as partes inferiores da <strong>no</strong>ssa natureza tomam uma supremaciacada vez maior; ai <strong>de</strong> nós! Porque é preciso fazer o bem imediatamente, malse reconheça (e é por isso que na especulação pura é tão fácil a passagem do<strong>pensamento</strong> ao ser, porque aí tudo é dado antecipadamente) ao passo quepara os <strong>no</strong>ssos instintos inferiores a tendência é para <strong>de</strong>morar, <strong>de</strong>mora que avonta<strong>de</strong> nem por isso <strong>de</strong>testa; ante a qual semicerra os olhos. E, quando seobscurece suficientemente, o conhecimento põe-se em mais completo acordocom a vonta<strong>de</strong>; por fim é o acordo perfeito, porque aquele passou para ocampo contrário e ratifica tudo o que esta arranja. Assim vivem talvezmultidões <strong>de</strong> pessoas; trabalhando, como que insensivelmente, paraobscurecer o seu juízo ético e ético-religioso, que os leva a <strong>de</strong>cisões econsequências que reprova a parte inferior <strong>de</strong>les próprios. Em lugar daqueles,<strong>de</strong>senvolvem em si um conhecimento estético e metafísico, o qual, para aÉtica, não é senão divertimento (KIERKEGAARD, 2010b, 122).Ao intentar associar o pecado à compreensão, seria necessário associar ocristianismo à objetivida<strong>de</strong>. O pecado, por repousar na vonta<strong>de</strong> e <strong>no</strong> querer, <strong>de</strong>ve serremetido á <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. O paganismo, por sua vez, não possuía uma <strong>no</strong>ção<strong>de</strong>senvolvida da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, portanto, teria <strong>de</strong> fazer um longo <strong>de</strong>svio para associar oerro à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. Além disso, o povo grego era <strong>de</strong>masiado huma<strong>no</strong> para conceberum homem cujo agir não remetesse diretamente ao compreen<strong>de</strong>r; daí a impossibilida<strong>de</strong>do paganismo em aproximar-se do conceito <strong>de</strong> pecado. “Para o cristão, pois, o pecadoestá na vonta<strong>de</strong> e não <strong>no</strong> conhecimento; e esta corrupção da vonta<strong>de</strong> ultrapassa aconsciência do indivíduo” (KIERKEGAARD, 2010b, 123). Atinge-se agora o âmago dopecado: como concebê-lo a partir da síntese? No paganismo o erro tem uma origemnegativa: a prática do injusto parte da ig<strong>no</strong>rância do justo, o que transforma o erro numanegação. No cristianismo o pecado tem uma origem positiva: o cristão nasce sob o


125estigma do pecado original e traz em si mesmo o avanço do pecado, o que transforma opecado numa posição. “É o que se exprime dizendo que o pecado é uma posição, e oque tem <strong>de</strong> positivo é o estar perante Deus” (KIERKEGAARD, 2010b, 128). Estaposição não po<strong>de</strong> ser assumida através da compreensão, mas sim através da crença.Esclarecido o conceito <strong>de</strong> pecado, <strong>de</strong>ve-se abordar em seguida o conceito<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero. Para tanto é preciso partir <strong>de</strong> um “eu” imerso em pecado e em <strong>de</strong>sespero.Apesar <strong>de</strong> constituírem predicados terríveis (sob a perspectiva do vulgo) po<strong>de</strong>-seconceber assim, corroborando a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero expostaanteriormente, a parcela consciente <strong>de</strong> estar perante Deus da humanida<strong>de</strong> cujo “eu” nãorepousa na divinda<strong>de</strong>.O pecado é <strong>de</strong>sespero, e o que eleva a sua intensida<strong>de</strong> é o <strong>no</strong>vo pecado <strong>de</strong><strong>de</strong>sesperar do seu pecado. Facilmente se vê que é isso o que se enten<strong>de</strong> porelevação <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>; não se trata <strong>de</strong> um outro pecado, como, após umroubo <strong>de</strong> cem, um outro <strong>de</strong> mil rixdales. Não, não se trata aqui <strong>de</strong> pecadosisolados; o estado contínuo <strong>de</strong> pecado é o pecado, e esse pecado intensificasena sua <strong>no</strong>va consciência (KIERKEGAARD, 2010b, 140).Tal caracterização leva a observar uma continuida<strong>de</strong> <strong>no</strong> pecado, bemcomo uma flutuação em sua intensida<strong>de</strong>. Atribui-se tal fato à consciência do “eu”;quanto maior a consciência do pecado e, se for o caso, a persistência consciente emestado <strong>de</strong> pecado, o <strong>de</strong>sespero tomará um ou outro aspecto. Mediante esta possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> variação, encontra-se <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong> Kierkegaard a seguinte dicotomia: o pecado<strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar do seu pecado e o pecado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar quanto à remissão dos pecados(o escândalo).“O pecado por si só é a luta do <strong>de</strong>sespero; mas, esgotadas as forças épreciso uma <strong>no</strong>va elevação <strong>de</strong> potência, uma <strong>no</strong>va compreensão <strong>de</strong>moníaca sobre sipróprio; e é o <strong>de</strong>sespero do pecado. É um progresso, um crescimento do <strong>de</strong>moníaco que,evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>no</strong>s mergulha, <strong>no</strong>s afunda <strong>no</strong> pecado” (KIERKEGAARD, 2010b, 141).O pecado, neste caso, encerrou-se na sua consequência e não quer sair daí. Remanesceda anterior explicação sobre o <strong>de</strong>moníaco que este se mostra claramente quando postodiante do bem. A afirmação continua válida, o <strong>de</strong>moníaco diante do bem se mostra <strong>de</strong>maneira plena. Porém, como a consciência do pecado po<strong>de</strong> consistir numa gradação doconceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>moníaco?


126É um segundo abando<strong>no</strong>, e que, como <strong>de</strong> um fruto, espreme do pecado asúltimas forças <strong>de</strong>moníacas; então, nesse endurecimento infernal, levado nasua própria seqüência obriga-se não só a ter como estéril e vão tudo o queseja arrependimento e perdão, mas ainda a ver nisso um perigo contra o qual,em primeiro lugar, precisa armar-se, exatamente como faz o homem <strong>de</strong> bemcontra a tentação. Neste sentido Mefistófeles, <strong>no</strong> Fausto, diz certo ao afirmarque não há pior miséria do que a <strong>de</strong> um diabo que <strong>de</strong>sespera, visto que o<strong>de</strong>sespero, neste caso, não é senão uma fraqueza que dá ouvidos aoarrependimento e ao perdão. Para caracterizar a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> potência a quese eleva o pecado, quando <strong>de</strong>le se <strong>de</strong>sespera, po<strong>de</strong>ria dizer-se que se começapor renegar o bem, e se acaba por renegar o arrependimento(KIERKEGAARD, 2010b, 141).Chamaremos <strong>de</strong>moníaco o <strong>de</strong>sespero diante do bem e pecado oafastamento do bem. Concebe-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já o homem consciente tanto do <strong>de</strong>sespero comodo pecado; consequentemente, tanto do seu “eu” quanto da divinda<strong>de</strong>. A corrupção davonta<strong>de</strong> e do querer também se mostraram, já que o pecado externa-se através da ação<strong>de</strong> uma vonta<strong>de</strong> viciada, corrupta. O <strong>de</strong>sesperar do pecado eleva esta perfídia aindamais. O “eu” <strong>de</strong>sta maneira abatido pela doença mortal mantém-se surdo a qualquerarrependimento ou perdão; sua única ação é <strong>de</strong>sesperar-se diante <strong>de</strong> ambos 119 .Escapismo similar à divinda<strong>de</strong> observa-se na variação subsequente do<strong>de</strong>sespero em relação ao pecado: o pecado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar quanto à remissão dospecados (o escândalo). Como <strong>no</strong> caso anterior, em que o <strong>de</strong>moníaco variava conforme o<strong>de</strong>sespero do pecado se aprofundava, o escândalo está condicionado à profundida<strong>de</strong> quea consciência atingiu. Po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar duas variações do <strong>de</strong>sespero manifestarem-sesob o véu do escândalo: o <strong>de</strong>sespero-fraqueza e o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio. A primeira é umsofrimento: a segunda variação consiste na forma inferior do escândalo, em que se <strong>de</strong>ixa119 “Ei-lo Rei e, contudo, <strong>de</strong>sesperando do seu pecado e da realida<strong>de</strong> do arrependimento, isto é, da graça,acaba <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r seu eu; incapaz <strong>de</strong> por si próprio o sustentar, está exatamente tão longe <strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r gozarna ambição como <strong>de</strong> obter a graça (KIERKEGAARD, 2010b, 142). Mantendo-se fiel ao instrutivo hábito<strong>de</strong> buscar exemplos na vida, na história e na literatura para ilustrar seus questionamentos, Kierkegaardcoloca-<strong>no</strong>s diante <strong>de</strong> Macbeth ao procurar ilustrar o <strong>de</strong>sespero agora abordado (também Lady Macbeth,personagem fundamental, cujo <strong>de</strong>sespero foi tamanho que a levou à insanida<strong>de</strong> e ao suicídio). Amencionada obra do poeta inglês William Shakespeare é a última das chamadas “quatro gran<strong>de</strong>s”tragédias. Não há informações claras que datem a peça como sendo <strong>de</strong> 1606, porém fatos históricos ereferências encontradas na obra <strong>no</strong>s levam a crer esta data como a correta. Tais dados também sugerem ainterferência <strong>de</strong> Thomas Middleton na construção da peça, algo que não se abordará por não constituir,nem sequer aproximar-se, do objeto da investigação aqui empreendida. Deixando <strong>de</strong> lado o instrutivo<strong>de</strong>sta peça (categoria compartilhada pelas <strong>de</strong>mais obras shakespearianas) <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>ter <strong>no</strong>comportamento do pérfido Macbeth e <strong>de</strong> sua infame dama. Após traições, mentiras e assassinatos, o falsoRei e sua senhora passam a <strong>de</strong>monstrar um terrível <strong>de</strong>sespero do seu pecado, cujo arrependimentotambém exala <strong>de</strong>sespero. As bruxas e as aparições revelam um <strong>de</strong>moníaco profundo, que <strong>de</strong>struiu todas“as pontes que haviam atrás <strong>de</strong> si, fazendo-o surdo a qualquer i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> perdão. Na observação dasconsequências <strong>de</strong> seu crime repousa o pecado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperar <strong>de</strong> seu pecado, a culpa se aproxima dotormento e este “eu”, alheio à divinda<strong>de</strong>, chafurda na infâmia da doença mortal.


127in<strong>de</strong>ciso o problema <strong>de</strong> Cristo. Alheio ao imperativo cristão, repele a divinda<strong>de</strong> para aindiferença. Assim retornamos a dois conceitos já citados, a saber, o <strong>de</strong>sespero-fraquezae o <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio. A consciência, que antes era um mero arremedo, aprofundou-sepor ser colocada diante da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Deus e da realida<strong>de</strong> do pecado. O objeto comumentre os dois <strong>de</strong>sesperos é a remissão dos pecados. Não há o elemento <strong>de</strong>moníaco, nãohá <strong>de</strong>sespero diante do bem; há estreiteza <strong>de</strong> espírito, o que ainda caracteriza <strong>de</strong>sespero.Porém, o estar perante Deus subverte os conceitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, transformando afraqueza em auto-afirmação e o <strong>de</strong>safio em negar ser um pecador.Eis, agora, um eu perante Cristo – um eu que, mesmo aqui, <strong>de</strong>sesperado, nãoquer ou quer ser ele próprio. Desesperar quanto à remissão dos pecados é,com efeito, redutível a uma ou outra das fórmulas do <strong>de</strong>sespero: <strong>de</strong>sesperofraquezaou <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio; por escândalo o primeiro não ousa crer, osegundo recusa-se. Mas fraqueza e <strong>de</strong>safio são aqui precisamente o contráriodo que costumam ser. O <strong>de</strong>sespero <strong>no</strong> qual alguém se recusa a ser ele próprioé fraqueza <strong>de</strong> hábito, mas aqui é o contrário; visto que, efetivamente, é<strong>de</strong>safio recusar-se a ser o que se é, um pecador, e aproveitar-se disso paradispensar-se da remissão dos pecados. O <strong>de</strong>sespero <strong>no</strong> qual alguém quer serele próprio é <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> hábito, mas aqui é o contrário, pois se é fracoquerendo, por <strong>de</strong>sespero, ser si próprio, querendo ser pecador a ponto <strong>de</strong> nãoadmitir o perdão (KIERKEGAARD, 2010b, 146).Para po<strong>de</strong>r-se verificar o escândalo <strong>no</strong> âmbito do “eu” <strong>de</strong>ve-se iniciaruma investigação da natureza do próprio fenôme<strong>no</strong>. Como este se origina <strong>no</strong> indivíduo?De que maneira vincula a consciência ao pecado? Como a Dogmática compreen<strong>de</strong> oconceito <strong>de</strong> escândalo? Em primeiro lugar <strong>de</strong>ve-se esclarecer que o conceito <strong>de</strong>escândalo não advém da divinda<strong>de</strong> e não é compartilhado por ela. Inicia-se ainvestigação afirmando a natureza do escândalo: repousa <strong>no</strong> “eu”. Mas o “eu” por si sónão atinge a categoria <strong>de</strong> escândalo; <strong>de</strong>ve estar diante <strong>de</strong> algo; algo que a simplespresença <strong>de</strong>monstre ao homem seu <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro valor e objetivo. De acordo comKierkegaard, trata-se do cristianismo.A verda<strong>de</strong>ira ciência do escândalo só se apren<strong>de</strong> estudando a inveja humana,um estudo extraprograma, mas que me gabo <strong>de</strong> ter feito a fundo. A inveja éuma admiração que dissimula. O admirador que sente a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ser feliz ce<strong>de</strong>ndo à sua admiração toma o partido <strong>de</strong> invejar. Usa então <strong>de</strong>uma linguagem diferente, segundo a qual o que <strong>no</strong> fundo admira <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> terimportância, não é mais do que patetice insípida, extravagância. A admiração


128é um abando<strong>no</strong> <strong>de</strong> nós próprios penetrado <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, a inveja é umareivindicação infeliz do eu (KIERKEGAARD, 2010b, 112).A análise do conflito huma<strong>no</strong> admiração-inveja po<strong>de</strong>rá fazer luz sobre otema atual da pesquisa, a saber, o escândalo. Concebe-se a inveja como uma admiraçãoinfeliz; assim como se po<strong>de</strong> conceber o escândalo como uma paixão infeliz. O invejoso,em sua inveja, revolta-se contra si e contra outrem, pondo-se a fazer entendimentosdistorcidos do objeto invejado. O “eu” imerso <strong>no</strong> escândalo não ousa, ou não quer crer,então põe em movimento uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> subterfúgios, e até mesmo um “eu”quimérico, com o objetivo <strong>de</strong> mascarar seu escândalo (subterfúgios estes observados <strong>no</strong><strong>de</strong>sespero-fraqueza e <strong>de</strong>sespero-<strong>de</strong>safio, anteriormente abordados). Situação análoga emsua superficialida<strong>de</strong>, porém antípoda em sua essência. Como foi afirmado, a inveja,assim como a admiração, são observáveis nas relações humanas. Porém, o escândalo,segundo a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, refere-se exclusivamente à relação homemdivinda<strong>de</strong>.Da mesma maneira, a admiração, quando <strong>de</strong>dicada a Deus, <strong>de</strong>ve transformarseem crença.Expostas as pechas infamantes que abatem o “eu”, <strong>de</strong>ve-se afirmar emsocorro do homem que o caminho da fé passa por todas elas. A fé exige apenas umaatitu<strong>de</strong>: o isolamento. No isolamento o indivíduo po<strong>de</strong> estabelecer uma relação pessoalcom a divinda<strong>de</strong>; porém, quando inserido na multidão, via <strong>de</strong> regra, estabelece apenasrelações impessoais. A verda<strong>de</strong>, pois, “só po<strong>de</strong> ser transmitida e recebida pelo indivíduoque, <strong>no</strong> fundo, po<strong>de</strong> ser cada um dos vivos; a Verda<strong>de</strong> não se <strong>de</strong>termina senão opondoseao abstrato, ao fantástico, ao impessoal, à multidão, ao público que exclui Deus”(KIERKEGAARD, 1964, 101). Ver na multidão um tribunal ético e religioso atraiçoa oindivíduo e atraiçoa Deus, elevando uma categoria animal à sublimida<strong>de</strong> e concebendoacomo arauto da verda<strong>de</strong>.O individuo (<strong>de</strong>n Enkelte) é categoria do espírito e categoria cristã (efilosófica) por excelência; “para mim, como pensador e não pessoalmente, a questão doindivíduo é <strong>de</strong>cisiva entre todas” (KIERKEGAARD, 1964, 105). Transpondo a análisepara a Dogmática, afirma-se que a fé e a salvação não se manifestam na multidão. Naesfera psicológica, por bom senso, exclui-se a observação da multidão, já que nela nãohá constância, ou seja, impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituir qualquer saber sobre tal categoria.É necessário que o indivíduo <strong>de</strong>sumanize-se para tornar-se multidão; ao anular-se <strong>de</strong>sta


129maneira nega seu “eu”, elo que o une a Deus e abstrai-se em uma classe inferior. Comoregra cita-se: o cristianismo subsiste <strong>de</strong>vido ao indivíduo e é profanado quando se tornarefúgio da multidão.A multidão compõe-se, <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong> indivíduos; <strong>de</strong>ve estar, portanto, aoalcance <strong>de</strong> cada um tornar-se o que é: um indivíduo. Absolutamente ninguémestá excluído <strong>de</strong> o ser, exceto quem se exclui a si próprio, tornando-semultidão. Tornar-se multidão, reunir a sua volta a multidão, é pelo contrário adiversida<strong>de</strong> da vida; mesmo quem disso fala com as melhores intenções correo risco <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r o indivíduo. Mas a multidão reencontra então o po<strong>de</strong>r, ainfluência, a consi<strong>de</strong>ração e a soberania – e é também a diferença da vidaque, soberana, <strong>de</strong>spreza o indivíduo como sendo fraco e impotente e que, <strong>no</strong>pla<strong>no</strong> temporal e munda<strong>no</strong>, <strong>de</strong>spreza a verda<strong>de</strong> eterna que é o indivíduo(KIERKEGAARD, 1964, 102).Quando isolado (e inclinado à fé), inicia-se <strong>no</strong> âmago do “eu” o processocitado por Kierkegaard como regra cristã: a edificação. “Esta intimida<strong>de</strong> do <strong>pensamento</strong>cristão com a vida (contrastando com a distância que a especulação mantém) e tambémeste aspecto ético do cristianismo implica precisamente a edificação”(KIERKEGAARD, 2010b, 17). Enquanto multidão, o homem encontra-se alheio aqualquer sentimento <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> ou arrependimento (como se observa <strong>no</strong>indivíduo). O sofrimento, também compreendido por Kierkegaard como importanteelemento da fé, restringe-se à individualida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>sespero, fé ou sofrimento, qualquerconceito subjetivo esbarra na multidão assim como esbarra na objetivida<strong>de</strong>. A posturadogmática assumida por Kierkegaard em suas análises retrata o verda<strong>de</strong>iro tema <strong>de</strong> suafilosofia: o “eu”, a existência e seus <strong>de</strong>sdobramentos.Mais do que resolver o impasse objetivida<strong>de</strong>/<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> o que apresente investigação ambicio<strong>no</strong>u foi expor a interpretação que o filósofo <strong>de</strong>Copenhague concebia como verda<strong>de</strong>ira e oniabrangente. A postura exigida pelacientificida<strong>de</strong> carece <strong>de</strong> um lapso em suas investigações que permita que aindividualida<strong>de</strong> se manifeste. Este lapso encontra-se na filosofia da existência propostapor Kierkegaard. Kierkegaard não compreen<strong>de</strong> a divinda<strong>de</strong> apenas como o que há <strong>de</strong>mais sublime, mas como o próprio princípio <strong>de</strong> toda sublimida<strong>de</strong>. “A doutrina dopecado, do pecado individual, do meu, do vosso, doutrina que dispersa sem ‘apelo’ amultidão, assegura a diferença <strong>de</strong> natureza entre Deus e o homem mais firmemente do


130que jamais se conseguiu... e só Deus o po<strong>de</strong> fazer; não está o pecado perante Deus?”(KIERKEGAARD, 2010b, 154).A partir da análise da complexida<strong>de</strong> contida <strong>no</strong> tema abordado, a saber,objetivida<strong>de</strong> e <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong> Søren Kierkegaard e suas implicaçõesdogmáticas e psicológicas, e procurando ir até as últimas consequências <strong>de</strong>ste tema,absorver as heterogeneida<strong>de</strong>s contidas em tal concepção e sublimá-la num <strong>de</strong>dicar-se àdivinda<strong>de</strong>, procurou-se estabelecer a superiorida<strong>de</strong> da <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> em relação àobjetivida<strong>de</strong>, porém, <strong>de</strong> maneira cauta o suficiente para não banir a objetivida<strong>de</strong> dainvestigação, transformando esta numa fábula sobre o indivíduo.Alçado à condição <strong>de</strong> indivíduo, o “eu” vê-se livre do jugo da multidão eencontra repouso num recolhimento que o conduzirá à divinda<strong>de</strong>. Ao conce<strong>de</strong>r talvaloração à sua individualida<strong>de</strong>, rechaçando a multidão: “a verda<strong>de</strong> se efetua na <strong>de</strong>cisão<strong>de</strong> realizar o sentido e não somente contemplá-lo. Uma compreensão intelectualdissociada da <strong>de</strong>cisão existencial <strong>de</strong> submeter-se ao sentido compreendido – fazer umaboa cópia universitária sem se preocupar <strong>de</strong> modo algum em investir a própria vida como sentido <strong>de</strong>stacado pela experiência da existência – é a chaga da filosofia especulativa(...)” (FARAGO, 2006, 177).Empregando a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana à existência, fecha-se o círculoda individualida<strong>de</strong> e da divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira que esses fatores compreen<strong>de</strong>rão a vidaplena e ver<strong>de</strong>jante, a harmonia da síntese e a fé como a paixão mais elevada do homem.O tormento a que o jovem Søren fora exposto o conduziu ao extremo da existência: averacida<strong>de</strong> da aliança entre o finito e o infinito, o temporal e o eter<strong>no</strong>, o homem e adivinda<strong>de</strong>. O homem não po<strong>de</strong> ser compreendido como substância, já que se encontraem um constante processo <strong>de</strong> edificação. Porém, muitas vezes o indivíduo não é capaz<strong>de</strong> concluir tal processo <strong>de</strong> uma maneira saudável (a angústia e o <strong>de</strong>sespero provam talincapacida<strong>de</strong>, segundo Kierkegaard). A plena relação consigo mesmo é a mensagemque se encontra afirmada e reafirmada em cada uma das obras <strong>kierkegaard</strong>ianas. Estarelação fornecerá o âmbito em que se manifesta e edificação do “eu”.


131CONCLUSÃOCompreen<strong>de</strong>r a filosofia como exposta por Kierkegaard, apesar dasdificulda<strong>de</strong>s envolvidas, remonta ao bem-aventurado retor<strong>no</strong> a si mesmo; ao esforçosocrático, tão elogiado pelo pensador dinamarquês 120 . A edificação que se busca com talesforço, embora singela se comparada à sistemática e às i<strong>de</strong>ias puras (e diversa daencontrada <strong>no</strong> filósofo pagão, como foi afirmado), volta-se sobre o abismo da existênciae expõe a fragilida<strong>de</strong> do indivíduo; tema <strong>de</strong> todo conhecimento que se preze, segundo ofilósofo nórdico. Assumiu-se como ponto nuclear da análise empreendida o “eu”, sendoque o arcabouço filosófico <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> consiste, em parte, em apurar a natureza<strong>de</strong>ste, suas reações intrínsecas e extrínsecas e sua relação com a divinda<strong>de</strong>.O <strong>de</strong>creto acerca da natureza <strong>de</strong>sesperada, angustiada e pecadora doindivíduo moveu a investigação, guiando-a a meandros velados pela objetivida<strong>de</strong>. Asabordagens psicológicas, éticas e dogmáticas indicaram a natureza <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira doindivíduo: constituir-se como espírito. O avanço do espírito dá-se concomitantementeao avanço das três potências citadas, a saber, o <strong>de</strong>sespero, a angústia e o pecado 121 . Oespírito constitui o “eu” já <strong>de</strong>terminado e estabelecido a partir dos fatores da síntese. A<strong>no</strong>ção <strong>de</strong> indivíduo, neste caso, mostrar-se-á como <strong>de</strong> acordo com sua natureza infinita.Para conquistar tal concepção, a tessitura do <strong>pensamento</strong><strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> perpassa todos os elementos da síntese, tanto os finitos quanto os120 “Sob o ponto <strong>de</strong> vista socrático, cada homem é para si mesmo o centro, e o mundo inteiro só tem umcentro na relação com ele, porque o seu conhecimento <strong>de</strong> si é um conhecimento <strong>de</strong> Deus. É assim queSócrates se compreendia e é assim, segundo sua concepção, que todo homem teria <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r-se e,em virtu<strong>de</strong> disso, teria <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r sua relação com o indivíduo, sempre com a mesma humilda<strong>de</strong> e omesmo orgulho” (KIERKEGAARD, 1995, 30). Sob a concepção <strong>kierkegaard</strong>iana, <strong>de</strong><strong>no</strong>mina-se o esforçosocrático como o retor<strong>no</strong> a si mesmo, é o retor<strong>no</strong> do indivíduo a si mesmo na busca da verda<strong>de</strong>. Antescomo reminiscência, agora como fé.121 Como se afirmou, a angústia evolui mediante a evolução do espírito, porém seu surgimento não estácondicionado a esta evolução. Sua aparição antece<strong>de</strong> o estabelecimento do indivíduo como espírito;remonta ao estado <strong>de</strong> ig<strong>no</strong>rância, à mera unida<strong>de</strong> imediata. O pecado exige o pré-estabelecimento doespírito, já que neste caso a angústia pré-existente dirige-se sobre a liberda<strong>de</strong>, ou seja, possui um objeto erelaciona o “eu” com a proibição divina, originando a corrupção da humanida<strong>de</strong>, o pecado original e aevolução do pecado. O <strong>de</strong>sespero compartilha <strong>de</strong>sta característica do pecado, a saber, ser posterior aoestabelecimento do espírito. Sua forma específica (a qual se chamou verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sespero, resi<strong>de</strong> nadiscordância <strong>no</strong> âmago da síntese). Para que o indivíduo i<strong>de</strong>ntifique tal discordância, é preciso que ele sevolte a si mesmo e à divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado por certo saber, e não em estado <strong>de</strong> ig<strong>no</strong>rância, realida<strong>de</strong>anterior ao espírito.


132infinitos. Tal abordagem exigiu <strong>de</strong> Kierkegaard um aprofundamento das <strong>no</strong>ções <strong>de</strong>infinitu<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e eternida<strong>de</strong>. Apenas esta continuida<strong>de</strong> na investigação do “eu” écapaz <strong>de</strong> conduzir a análise à correta <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> indivíduo. Assim, o horizonte temáticoultrapassa a objetivida<strong>de</strong> e encontra seu verda<strong>de</strong>iro âmbito na <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, categoriafundamental, segundo o pensador nórdico. Por trás <strong>de</strong>sta análise resi<strong>de</strong>m as questõeséticas, psicológicas, dogmáticas e as ações e reações do indivíduo, questões quecorrespon<strong>de</strong>m ao objeto da investigação <strong>kierkegaard</strong>iana. Concebido <strong>de</strong>sta maneira, o“eu” apresenta-se como componente central e contínuo da análise <strong>kierkegaard</strong>iana; esta<strong>no</strong>ção recolhe simultaneamente as <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> homem, pondo em movimento ainvestigação.As questões levantadas sobre o indivíduo, em última instância, remontamà i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> edificação. Kierkegaard, em sua análise, i<strong>de</strong>ntifica a edificação como regracristã; e o que se mantém alheio a tal conceito correspon<strong>de</strong> a “uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanacuriosida<strong>de</strong>” (KIERKEGAARD, 2010b, 20). Ao assumir tal objeto como prioritário,suspen<strong>de</strong>-se a análise objetiva 122 ; buscando a edificação inerente à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>.Kierkegaard elege a Dogmática como âmbito capaz <strong>de</strong> abranger os conceitos cabíveis àanálise, assim como a Psicologia e a Ética serão os mecanismos da análise objetiva.Ao homem cabe colocar-se em meio a este turbilhão. Com a<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> assumindo o papel fulcral na investigação, Kierkegaard procura remontara existência humana mediante exemplos, sobrepondo a estes seus conceitos filosóficos,buscando o “eu” e seus <strong>de</strong>sdobramentos. Fala-se aqui <strong>de</strong> uma investigação quecontempla o indivíduo em sua totalida<strong>de</strong>, ou, ao me<strong>no</strong>s possui tal finalida<strong>de</strong>. Visandotal fim, é vedado à investigação mutilar a síntese, reduzindo-a ao seu caráter objetivo.Assumindo tal postura, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> individualização torna-se inexistente, a féimpraticável, e a existência dilui-se na totalida<strong>de</strong>, transformando o indivíduo em algoamorfo, insípido. O <strong>de</strong>sespero e a angústia tornam-se um folclore sobre o “eu”, um122 Po<strong>de</strong>-se corroborar tal afirmação com o exemplo acerca do sacrifício <strong>de</strong> Abraão, exposto <strong>no</strong> primeirocapítulo. A análise objetiva não encontra objeto algum na edificação alcançada pelo patriarca hebreu. Amoral, telos objetivo e expressão do geral por excelência, suspensa pelo salto qualitativo, não maisfundamenta nenhum tipo <strong>de</strong> conhecimento. A mudança na qualida<strong>de</strong>, como observada <strong>no</strong> caso <strong>de</strong> Abraão,eleva o indivíduo acima do geral, ou seja, trata-se <strong>de</strong> uma a<strong>no</strong>malia moral. Já a <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, <strong>de</strong>vido asua própria natureza, parte <strong>de</strong>ste exato pressuposto: o indivíduo estando acima do geral (fala-se aquiexclusivamente do cavaleiro da fé, conceito personificado por Abraão). Ao buscar a edificação emAbraão (na medida em que é possível tal apreensão <strong>de</strong> conhecimento) a Dogmática permeia osfundamentos da síntese, voltando-se sobre o <strong>de</strong>sespero e a angústia, sobre o pecado e a fé. Tambémconvém mencionar que a suspensão da Ética e o salto que eleva a Dogmática a telos ocorrerá apenas <strong>no</strong>estágio religioso, assim como a mencionada edificação.


133enigma rebel<strong>de</strong>, intransponível <strong>de</strong>vido a alguma espécie <strong>de</strong> força. Objetivar ainvestigação significa restringir o indivíduo como síntese e a existência como ato,transformando ambos em mera abstração.O importante para a investigação <strong>kierkegaard</strong>iana é compreen<strong>de</strong>r ohomem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o âmbito do indivíduo. Não como uma mera projeção, mas comoindivíduo ativo 123 . Como o filósofo dinamarquês soluciona tal problema correspon<strong>de</strong> aum dos temas aqui analisados. Assumir o “eu” como síntese e a divinda<strong>de</strong> como po<strong>de</strong>rcriador e mantenedor; estipular a ciência observadora <strong>de</strong> acordo com o objetoinvestigado e não se afastar do processo <strong>de</strong> individualização; estes pressupostos<strong>no</strong>rtearam a análise aqui empreendida. A filosofia existencial é a filosofia do “eu”, daperspectiva subjetiva. Sob este prisma po<strong>de</strong>-se conceber a análise, não a partir daabstração, mecanismo objetivo, mas a partir do “eu”.A multidão também encontra seu <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> na investigação<strong>kierkegaard</strong>iana: o banimento. Ao partir do indivíduo, elegeram-se categorias subjetivaspara conduzir a análise, bem como uma ciência capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esta<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. A multidão não possui <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, assim como não possui capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> individualização. Trata-se <strong>de</strong> um terre<strong>no</strong> hostil à síntese, incapaz <strong>de</strong> edificar e estérila fé. A inexistência <strong>de</strong> um “eu”, por si só, anula a análise <strong>kierkegaard</strong>iana. Desespero,angústia e pecado não se manifestam en masse. Objetivamente, há uma abstração damultidão (assim como do indivíduo). Subjetivamente, <strong>no</strong> caso da multidão, não háinserção <strong>no</strong> contexto analisado.Tais conceitos, por pertencerem à dicotomia <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>/objetivida<strong>de</strong>,foram capazes <strong>de</strong> trazer à tona a análise subjetiva como mecanismo <strong>de</strong> investigação. Ao<strong>de</strong>ter-se sobre a fé, a angústia e o <strong>de</strong>sespero, objetos do presente trabalho, partiu-se doindivíduo, cuja abstração é impossível. Ao negar-se tal impossibilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve-se estarpreparado para conceituar o indivíduo exclusivamente sob categorias objetivas, portantofinitas, já que uma gran<strong>de</strong>za que expresse a infinitu<strong>de</strong> do “eu” <strong>no</strong>s conduziria123 O “eu”, por ser uma síntese em constante processo <strong>de</strong> edificação, enquanto objeto <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong>veser analisado inserido neste processo. Esta característica fica clara na própria natureza dos objetosabordados. Angústia e <strong>de</strong>sespero manifestam-se exatamente <strong>de</strong>vido à inconstância e ao perene construirseinerente ao homem. Não se po<strong>de</strong> instituir uma paralisação na existência, para então sobrepor àinvestigação ou extrair conceitos. A análise empreendida aqui, e corroborada pelo pensador nórdico,exige a tensão da existência, para então manifestar-se sobre os fatores da síntese. Processo presente nasinvestigações <strong>kierkegaard</strong>ianas que foram expostas. Abraão, Adão e Lázaro correspon<strong>de</strong>m ao indivíduoinserido nesta investigação. Não há tentativas <strong>de</strong> isolá-los para então analisá-los. Abraão é abordado <strong>de</strong>acordo com seu sacrifício, Adão segundo sua <strong>de</strong>sobediência e Lázaro <strong>de</strong> acordo com sua fé.


134<strong>no</strong>vamente à <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>. A filosofia do dinamarquês fundamenta tal impossibilida<strong>de</strong>na existência <strong>de</strong> fatores alheios à objetivida<strong>de</strong> e, mesmo assim, passíveis <strong>de</strong>investigação. A síntese, o salto qualitativo, o <strong>de</strong>sespero, a angústia e o pecado sãoexemplos <strong>de</strong> tais conceitos. Ao voltar-se sobre eles, a análise objetiva não abrange seusfatores infinitos que irradiam do “eu”.Søren Kierkegaard é um dos pensadores que mais contribuíram para<strong>de</strong>smistificar as superstições da <strong>no</strong>ssa época: ele recorda que o conhecimentoobjetivo não é a verda<strong>de</strong>, mas sua forma <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a existência po<strong>de</strong>legitimamente aparecer como um dos remédios necessitados pelos males da<strong>no</strong>ssa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massas que, enferma <strong>de</strong> várias versões <strong>de</strong>terministas doque nem mesmo se ousa mais chamar ‘antropologia’, relega ao abando<strong>no</strong> agênese do indivíduo. Relembra-<strong>no</strong>s que a filosofia, longe <strong>de</strong> ser apenas umtrabalho sobre os conceitos, é um trabalho sobre a própria existência e que sóaqueles que tiveram a coragem <strong>de</strong> ir até o fim <strong>de</strong> si mesmos po<strong>de</strong>m começara ser úteis com os outros, <strong>no</strong> próprio coração da palavra, pois apenas esta éapta a não <strong>no</strong>s abandonar à doença mortal, mortífera e assassina, alimentadaem seu seio por uma socieda<strong>de</strong> que se esqueceu tanto da natureza como dasexigências do espírito, que são o homem na sua verda<strong>de</strong> eterna. Se amo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> sofre a tentação <strong>de</strong> abafar a voz das exigências específicas doespírito por suas técnicas sedativas, a compreensão do <strong>pensamento</strong> <strong>de</strong>Kierkegaard, que é uma filosofia da angústia, remete o homem a sua maisalta dignida<strong>de</strong>: a da coragem da liberda<strong>de</strong> que se libertou do medo(FARAGO, 2006, 248-249).Este enca<strong>de</strong>amento criado pela filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana visa localizar asanálises objetiva e subjetiva <strong>de</strong> modo que a essência do objeto não seja volatizada porinvestigações precipitadas. A suspensão da objetivida<strong>de</strong> não caracteriza seu abando<strong>no</strong>,mas sim sua <strong>de</strong>limitação. A análise subjetiva 124 <strong>de</strong>ve iniciar após os elementosobjetivos, passíveis <strong>de</strong> observação e <strong>de</strong>monstração, esgotarem sua parcela na construçãodo conhecimento. Po<strong>de</strong>-se observar este limite investigativo exposto <strong>no</strong>s conceitos <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero e <strong>de</strong> angústia. Em ambos os casos a investigação psicológica e éticamanifestam-se e, em ambos os casos, vê-se a inquietação e a discordância,respectivamente, partirem do próprio indivíduo. Esta <strong>de</strong>sarmonia entre os fatores dasíntese será melhor analisada <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong> pela Dogmática.A mencionada dicotomia, a saber, objetivida<strong>de</strong>/<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, mecanismoinvestigativo utilizado por Kierkegaard, procura agir <strong>de</strong> modo a não negligenciarnenhum dos fatores cabíveis à existência. A análise científica, que por sua natureza124 Fala-se, especificamente, da análise subjetiva empreendida pela Dogmática.


135busca concordância com o objeto investigado, eleva-se <strong>no</strong> <strong>pensamento</strong> <strong>kierkegaard</strong>ia<strong>no</strong>a um expoente superior: assim que o objeto analisado, a saber, o “eu”, apresenta-se naforma <strong>de</strong> síntese, portanto, composto <strong>de</strong> elementos distintos, a própria investigaçãoempreendida pelo dinamarquês sofre uma divisão, buscando a abrangência plena doobjeto, valendo-se <strong>de</strong> análises específicas para cada um dos fatores. A finitu<strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificada por Kierkegaard na formação da síntese (bem como na formação <strong>de</strong> outrosconceitos abordados em seu arcabouço filosófico) será analisada segundo a investigaçãoobjetiva, mecanismo <strong>de</strong> acordo com o objeto. Já o elemento partilhado com a infinitu<strong>de</strong><strong>de</strong>verá ser abordado por uma investigação capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a infinitu<strong>de</strong> que irradiado “eu” e, portanto, que repousa em sua dialética, ou seja, pela Dogmática. Ao analisaro <strong>de</strong>correr da investigação empreendida se po<strong>de</strong> confirmar tal característica.Enquanto não se consi<strong>de</strong>ra o indivíduo a partir do seu “eu”, um<strong>de</strong>terminado específico, elo entre a finitu<strong>de</strong> e a infinitu<strong>de</strong>, a análise objetiva é suficientepara o abordarmos. O mesmo acontece com a angústia e o <strong>de</strong>sespero; se os mantivermosna superfície, como fatores exter<strong>no</strong>s ao indivíduo, que se lançam sobre o homem semque este possa proteger-se, restando-lhe amargar as consequências <strong>de</strong> sua passivida<strong>de</strong>,não precisaríamos da análise subjetiva; todas as informações estariam diante <strong>de</strong> nósmediante a simples observação <strong>de</strong> fatores exter<strong>no</strong>s, sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consultarmos o“eu”, âmbito da verda<strong>de</strong>ira investigação sobre o indivíduo.Supor uma unida<strong>de</strong> entre a investigação objetiva e subjetiva seria umaafirmação <strong>de</strong>masiado perigosa. A unida<strong>de</strong> se rompe assim que uma das categoriassubrepuja a outra. Tudo se resume ao “eu”: a perspectiva da investigação <strong>de</strong>verá variar<strong>de</strong> acordo com a dinâmica do indivíduo, cujo componente central é a contínuaedificação. Desta maneira, é lícito <strong>de</strong><strong>no</strong>minar a filosofia <strong>kierkegaard</strong>iana comorespaldada na existência e fundamentada na dicotomia objetivida<strong>de</strong>/<strong>subjetivida<strong>de</strong></strong>, sob aluz oniabrangente da divinda<strong>de</strong>.


136REFERÊNCIASBÍBLIA SAGRADA. Tradução ecumenica. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010.DE PAULA, Marcio Gimenes. Objetivida<strong>de</strong> e <strong>subjetivida<strong>de</strong></strong> em Kierkegaard. Aracaju:Editora Annablume, 2009.FARAGO, France. Compreen<strong>de</strong>r Kierkegaard. Tradução <strong>de</strong> Ephraim F. Alves.Petrópolis: Editora Vozes, 2006.GARDINER, Patrick. Kierkegaard. Tradução <strong>de</strong> Antonio Carlos Viela. São Paulo:Edições Loyola, 1988.GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Traduço <strong>de</strong> Jenny Klabin Segall. São Paulo:Editora 34, 2009.HEGEL, G. W. F. Lições sobre a estética. Tradução <strong>de</strong> Marco Aurélio Werle. SãoPaulo: Editora USP, 1985.HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução <strong>de</strong> Marcia Sá Cavalcante Schuback.Petrópolis: Editora Vozes, 2006.HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Tradução <strong>de</strong> Ivo Barroso. Rio <strong>de</strong> Janeiro: EditoraRecord, 1955.SARTRE, HEIDEGGER, JASPERS Y OTROS. Kierkegaard vivo (Colóquioorganizado pela Unesco). Tradução <strong>de</strong> Andrés-Pedro Sánchez Pascual. Madrid: EditoraAlianza Editorial, 1968.KIERKEGAARD, Søren Aabye. As obras do amor. Tradução <strong>de</strong> Álvaro LuizMontenegro Valls. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.____, Søren Aabye. Coleção Os Pensadores. Vol II. Título I: Diário <strong>de</strong> um sedutor.Título II: Temor e tremor. Título III: O <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong>. Traduções <strong>de</strong> Carlos Grifo,Maria José Marinho e Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1979.____, Søren Aabye. É preciso duvidar <strong>de</strong> tudo. Tradução <strong>de</strong> Silvia Savia<strong>no</strong> Sampaio eÁlvaro Luiz Montenegro Valls. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.____, Søren Aabye. Título I: In vi<strong>no</strong> veritas. Título II: La repeticion. Tradução <strong>de</strong>Demetrio Gutiérrez Rivero. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1976.____, Søren Aabye. Migalhas filosóficas. Tradução <strong>de</strong> Ernani Reichmann e Álvaro LuizMontenegro Valls. Editora Vozes: Petrópolis, 1995.


137____, Søren Aabye. O conceito <strong>de</strong> angústia. Tradução <strong>de</strong> Eduardo Nunes Fonseca eTorrieri Guimarães. São Paulo: Editora Hemus, 2007.____, Søren Aabye. O conceito <strong>de</strong> angústia. Tradução <strong>de</strong> Álvaro Luiz MontenegroValls. Editora Vozes: Petrópolis, 2010a.____, Søren Aabye. O <strong>de</strong>sespero huma<strong>no</strong>. Tradução <strong>de</strong> Adolfo Casais Monteiro. SãoPaulo: Editora Unesp, 2010b.____, Søren Aabye. Ponto <strong>de</strong> vista explicativo <strong>de</strong> minha obra como escritor. Tradução<strong>de</strong> João Gama. São Paulo: Edições 70, 1956.____, Søren Aabye. Temor e Tremor. Tradução <strong>de</strong> Torrieri Guimarães. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Editora Ediouro, 1964.MESNARD, Pierre. Kierkegaard: Tradução <strong>de</strong> Rosa Carreira. São Paulo: Edições 70,1953.PLATÃO. Defesa <strong>de</strong> Sócrates. Tradução <strong>de</strong> Jaime Bruna. São Paulo: Editora AbrilCultural, 1972.REICHMANN, Ernani. O instante. Curitiba: Editora Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná,1981.REICHMANN, Ernani. Textos selecionados. Tradução Ernani Reichmann. Curitiba:Editora Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, 1971.SHAKESPEARE, William. Texto I: Hamlet. Texto II: Rei Lear. Texto III: Macbeth.Tradução <strong>de</strong> Barbara Heliodora. São Paulo: Editora Abril, 2010.VALLS, Alvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo: ensaios sobre a ironia e oamor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

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