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intertextualidades em ensaio sobre a cegueira - Intranet.fia.edu.br

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Vol. I N. 1 Jul – Dez / 2005 pp. 21-26ISSN 1809-3604INTERTEXTUALIDADES EM ENSAIO SOBRE A CEGUEIRANanci Geroldo Richter ∗RESUMO: A literatura cont<strong>em</strong>porânea t<strong>em</strong> como uma de suas características o <strong>em</strong>pregoda paródia, da paráfrase e da estilização como recursos da inter e intratextualidade, t<strong>em</strong>abastante recentes nos meios literários. Seu objetivo é apresentar a análise desenvolvida, apartir de passagens do livro Ensaio So<strong>br</strong>e a Cegueira, quanto aos resgates realizados porJosé Saramago e ao estudo da intertextualidade, seja ela explícita ou implícita, b<strong>em</strong> comoda aplicação dos diferentes textos parodiados, tendo s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> mente a (re)visão dessestextos pelo autor. Exist<strong>em</strong> algumas correspondências entre os espaços infernaisapresentados por Dante, <strong>em</strong> A Divina Comédia, e os utilizados no romance supra citado. Aalusão a outros textos se faz no decorrer da narrativa, transformando mensagens anteriores<strong>em</strong> novas mensagens.PALAVRAS-CHAVE: paródia, paráfrase, intertextualidade.ABSTRACT: Cont<strong>em</strong>porary literature has as one of its features the use of parody, paraphrasingand stylization as practices of both inter and intratextuality expedients, a very recent approach in theliterary studies. The purpose of the this paper is to present the analysis of some parts of Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong>a Cegueira, concerning the references made by José Saramago and the intertextuality studies,regardless of its explicitness or not, and the adaptation of different texts, always bearing in mind theirreview by the author. We can see, by Saramago’s textual rephrasing that there is some conformitybetween the hellish spaces presented by Dante in The Divine Comedy and in Saramagos’s novel.References to other texts permeate all the narrative, transforming old messages in new ones.KEY-WORDS: parody, paraphrasing, intertextuality.∗ Doutoranda <strong>em</strong> Letras/Literatura Portuguesa Cont<strong>em</strong>porânea-USP. Coordenadora do Curso de Letras daFaculdade Interação Americana (FIA).1


Introdução:Uma cidade acometida de <strong>cegueira</strong> <strong>br</strong>anca. Por ord<strong>em</strong> do governo, aspessoas, cujos nomes não aparec<strong>em</strong>, são enviadas a um manicômio desativado,que se transforma num inferno – sujeira, homicídios, latrocínios, estupros – aabjeção da vida. No final, o fogo destruidor e regenerador da paz e a chuva, quelimpa os restos da imundície humana. Nada difere um oftalmologista de uma donade casa – não há classe social, cultural, n<strong>em</strong> nomes.Ao lermos o romance de José Saramago, Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>,deparamo-nos com uma realidade, na qual as pessoas são acometidas por uma“<strong>cegueira</strong> <strong>br</strong>anca”. As ações se desenvolv<strong>em</strong> no espaço urbano, caótico peloscongestionamentos, pela pressa das pessoas e dos carros e pelas ruas que formamum verdadeiro labirinto.Além desse labirinto urbano, t<strong>em</strong>os outros espaços labirínticos – omanicômio, principalmente, espaços que nos são apresentados como infernais,muitas vezes, parecidos com os descritos por Dante <strong>em</strong> sua epopéia.No mapa de uma cidade, as ruas formam um imenso labirinto, onde umestranho pode perder-se entre as ruas, avenidas e travessas que formam ocomplexo urbano.Em A divina comédia, Dante é gentilmente guiado por Virgílio, ao adentraros espaços ínferos, os quais são amplamente explanados <strong>em</strong> suas características epeculiaridades, estágios e castigos – passagens para todos os pecadores.Não ocorre diferente <strong>em</strong> Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>: pode-se dizer que amulher do médico é uma espécie de Virgílio moderno, a qu<strong>em</strong> cabe guiar os outroscegos pelos diferentes estágios pelos quais, eles e ela haverão de passar. Adiferença é que Virgílio conhecia todos os níveis infernais e os castigos aplicadosàqueles que lá estavam; ela apenas contava com sua capacidade da visão e doraciocínio, não com a gama de horrores que lhe viriam dia após dia.De Dante a Saramago:Os espaços infernais, assim como as cidades divid<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> bairros maisou menos próximos do centro. Nove círculos divid<strong>em</strong> o inferno: os cinco primeiroscompõ<strong>em</strong> o Alto Inferno, os d<strong>em</strong>ais, o Baixo Inferno ou Dite - Cidade Infernal, edistribu<strong>em</strong>-se nesta ord<strong>em</strong>:2


Alto Inferno: primeiro limbo - almas que não foram batizadas; segundo - ossensuais; terceiro - os gulosos; quarto - os avarentos e os pródigos; quinto - osiracundos.Baixo Inferno ou Dite - sexto - hereges e incrédulos; sétimo - pecadorespela violência contra o próximo, contra si mesmos e contra Deus; oitavo (Malebolge)- dez fossos castigam os s<strong>edu</strong>tores, aduladores, simoníacos, adivinhos,fraudulentos, hipócritas, ladrões, maus conselheiros, fundadores de seitas efalsários; nono - com quatro divisões: traidores da família, da pátria, dos amigos edos benfeitores.No ponto mais baixo do Inferno, no centro da Terra, está o rei infernal, comtrês bocas: de Judas, Cássio e Bruto.Dante, <strong>em</strong> sua Divina comédia, criou um lugar com geogra<strong>fia</strong> definida,apoiou-se no arcabouço medieval cristão, associando-o à tradição helênica, ou seja,baseou-se também na Odisséia, de Homero, e no Canto VI da Eneida, de Virgílio. Ascenas inspiradoras, que nos serv<strong>em</strong> de base para tal afirmação, são, a busca deprevisão do futuro dos viajantes e a própria idéia de viag<strong>em</strong>. Em Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a<strong>cegueira</strong>, os “viajantes” não buscam previsões para o futuro; no entanto, ooftalmologista adverte o ladrão de carros e o primeiro cego, que fora roubado eacabara de chegar, quando iniciam uma <strong>br</strong>iga: “Estão a comportar-se estupidamente(...) se a vossa idéia é fazer disto um inferno, continu<strong>em</strong> que vão por bom caminho”(p.54). Mais adiante, a confirmação pela fala da mulher do médico, quando dachegada de um grupo numeroso de cegos: ”Tinha de ser, o inferno prometido vaiprincipiar” (p. 72).No romance de Saramago, as personagens se encontram sutilmenteligadas a cada uma das divisões infernais de acordo com as característicasapresentadas pelo autor.O manicômio para onde os cegos são levados apresenta-se dividido <strong>em</strong>camaratas, espécies de celas ou quartos que a<strong>br</strong>igam as pessoas acometidas pelo“mal <strong>br</strong>anco”; os corredores formam um perfeito labirinto para aqueles que nãopossu<strong>em</strong> a visão. No fundo de um dos corredores, num local extr<strong>em</strong>amente escuro,encontram-se os diabólicos cegos malvados – um bando de ladrões e mausel<strong>em</strong>entos que se apoderam da comida e aproveitam para cometer latrocínios,estupros e homicídios.3


Há também um grupo especial – os cegos da primeira camarata, guiadospela mulher do médico oftalmologista, de bom nível sócioeconômico e que se vêimersa no terror da <strong>cegueira</strong>. O inferno vivido pelas personagens é -nos apresentadode forma crua – a sociedade é responsável tanto pelo inferno que cria quanto peloparaíso que procura.Saramago, como <strong>em</strong> muitos de seus romances, utiliza os recursos daintertextualidade, mais ou menos próxima do texto dito “original”. Em Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a<strong>cegueira</strong>, do inferno dantesco, principalmente os espaços do manicômio, apresentaoutros textos r<strong>em</strong>odelados.Num primeiro momento nos deparamos com o mito de Ariadne. Os cegoslevados ao manicômio não poderiam sair pelo portão, pois os guardas tinham ord<strong>em</strong>de matar qu<strong>em</strong> dali se aproximasse. Como são <strong>em</strong> pequeno número, a mulher domédico “havia tido a idéia, que cuidadosamente justificou, aduzindo a sua própriaexperiência, de rasgar <strong>em</strong> tiras um cobertor, fazendo com elas uma espécie decorda, uma ponta da qual estaria s<strong>em</strong>pre presa ao puxador exterior da porta dacamarata, enquanto a outra seria atada de cada vez ao tornozelo de qu<strong>em</strong> tivessede sair para ir buscar a comida.” (p.71). Dessa maneira, poderiam sair para buscaras caixas de comida colocadas na entrada e retornar à camarata, s<strong>em</strong> se perder noslabirintos do manicômio.Um segundo diálogo intertextual é o Evangelho segundo Lucas, onde aalusão à parábola do S<strong>em</strong>eador é uma constante. A intenção do autor é mostrar aque pode chegar a sociedade individualista e materialista da atualidade: os qu<strong>em</strong>enos têm mais perd<strong>em</strong>, os que mais têm mais lhes é dado – obviamente <strong>em</strong>termos espirituais e de regeneração humana – “(...) Porque o coração deste povotornou-se insensível, e os seus ouvidos tornaram-se duros, e fecharam os olhos paranão suceder que vejam com os olhos, e ouçam com os ouvidos, e entendam com ocoração, e se convertam, e eu os sare. Ditosos, porém, os vossos olhos, porquevê<strong>em</strong>, e os vossos ouvidos, porque ouv<strong>em</strong>.” (Lucas: 10:11-16). Os cegos deSaramago deverão reaprender a olhar o mundo, a ver cada uma das coisas que avida lhes oferece, a enxergar o outro e, assim, auxiliar<strong>em</strong>-se mutuamente numanova forma de vida e de comunidade.Num terceiro momento, t<strong>em</strong>os O livro de Jó, que, <strong>em</strong> 42 capítulos contaa vida do hom<strong>em</strong> pio que perde toda sua fortuna, família e saúde e, mesmo assim,continua com sua fidelidade a Deus. É a prova da paciência que falta aos sereshumanos, quando conviv<strong>em</strong> <strong>em</strong> sociedade. O mesmo ocorre com a mulher do4


médico com a vida boa e calma que levava, vê-se <strong>em</strong> meio à miséria humana <strong>em</strong>todos os seus matizes e torna-se, por assim dizer, a redentora de todos que dealguma forma se regeneram: seu marido e os outros integrantes do grupo que,compreendendo o que lhes aconteceu, voltam, paulatinamente, a enxergar.As Revelações de são João Evangelista que formam a quarta visãotambém são resgatadas <strong>em</strong> Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>. No apocalipse, na segundaparte, os sete selos (4,5 – 8,5), t<strong>em</strong>os a guerra, a fome, a morte, martírios,catástrofes, e o turíbulo de ouro. “E tendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quartoanimal, que dizia: V<strong>em</strong> e vê. E eis um cavalo amarelo; e o que estava montado<strong>so<strong>br</strong>e</strong> ele tinha por nome morte, e seguia-o o inferno, e foi-lhe dado poder <strong>so<strong>br</strong>e</strong> asquatro partes da terra, para matar à espada, à fome, e com morte natural, e por meiodas feras da terra.” Em Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>, a fome causa a guerra entre oscegos pelo alimento tanto dentro como fora do manicômio; a morte aparent<strong>em</strong>entenatural de uma mulher cega, pálida e quieta; a morte pelas feras da terra – os cães,de tanto devorar<strong>em</strong> os cadáveres que estavam pelas ruas, começam a setransformar <strong>em</strong> animais parecidos com hienas.Dessa forma, verificamos que a alusão a Dante é uma constante,quando comparamos o manicômio com os espaços infernais: as doenças da carne edo espírito, os aprisionados <strong>em</strong> suas idéias e convicções, os sofrimentos vividospelos bons e pelos maus, os sonhos e pecados de cada um.Considerações finais:O diálogo com outros textos, alguns mais, outros menos explícitos, ér<strong>em</strong>odelado, recontextualizado para que o leitor possa desvendar, nos labirintosliterários, uma nova mensag<strong>em</strong>. Em Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>, os labirintos urbanos,com a sujeira que se forma nas ruas da cidade e nas pessoas, os maltratos por elassofridos, a degradação humana e a busca pelas antigas casas faz<strong>em</strong> com que oprincipal grupo de cegos se transforme e se renove para que surja uma vida novacheia de esperança. Uma parábola moderna para que a humanidade pense <strong>em</strong> suacondição e resgate seus mais altos valores.5


Referências bibliográficas:ALIGHIERI, Dante. A divina comédia.BÍBLIA SAGRADA. 17. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1964.BAKHTIN, M. Probl<strong>em</strong>as da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 1981.SARAMAGO, J. Ensaio <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a <strong>cegueira</strong>, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.6

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