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L'hipocrisie dans Dom Juan de Molière - Repositório Científico do ...

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PolissemaRevista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> Instituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração<strong>do</strong> Porto2012 / Nº12Comissão Científica:Luísa Benvinda Álvares e Ana Paula Afonso (ISCAP)Referees Internos:Alexandra AlbuquerqueSara PascoalClara SarmentoDalila Silva LopesManuela VelosoPaula AlmeidaAlberto CoutoLuísa ÁlvaresHelena LopesJoana Fernan<strong>de</strong>sCélia SousaReferees Externos:Inês Braga (ESEIG – IPP)João <strong>de</strong> Mancelos (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro)Responsável pela Polissema on-line:Ana Paula AfonsoSecretaria<strong>do</strong> e Edição:Ana Luísa Ferreira e Sílvia FreitasDireção e Edição:PolissemaInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoRua Jaime Lopes Amorim4465 – 111 S. Mame<strong>de</strong> <strong>de</strong> InfestaTel.: 22 903 00 82Fax: 22 902 58 99Correio eletrónico: polissema @iscap.ipp.ptWebsite: www.iscap.ipp.pt/~www_poliPeriodicida<strong>de</strong>: Anual (Novembro)Solicita e respon<strong>de</strong>rá a permuta com outras publicações.Depósito legal nº 166030 / 01ISSN: 1645-1937Tiragem: 200 ex.Composição e paginação: PolissemaExecução: Sersilito Empresa Gráfica, Lda.Design Gráfico da capa: Steven Sarson


VOL. 12INDICELÍNGUA ADICIONAL: CONTEXTOS E CONTINUAAna Cristina Neves 11MacauIDENTITY AND BELONGING IN THE NOVELS OF DORONRABINOVICIAnabela Valente Simões 39PortugalWORK IN PROGRESS:REPRESENTAR O «OUTRO» SEGUNDO O PENSAMENTOANTROPOFÁGICOCASOS DE ESTUDO - HANS STADEN E LES MAÎTRES FOUSCarina Cerqueira 57PortugalMEMORY AS DISCOURSE IN HAROLD PINTER’S OLD TIMES,BETRAYAL AND A KIND OF ALASKACarla Ferreira <strong>de</strong> Castro 75PortugalESPELHOS DA POBREZA E DA EXCLUSÃO SOCIAL EMFERREIRA DE CASTRO E MIGUEL TORGADora Nunes Gago 99MacauRESULTADOS PRELIMINARES DE UM ESTUDO SOBRETRADUÇÃO AUDIOVISUAL INFANTO-JUVENIL: O CASO DADOBRAGEM EM PORTUGALGraça Bigotte Chorão 115PortugalORGULHO E PRECONCEITO: A VISÃO DE UM VITORIANOACERCA DE PORTUGAL E DOS PORTUGUESESIvo Rafael Silva 129Portugal


DETECTIVES WITH PIMPLES:HOW TEEN NOIR IS CROSSING THE FRONTIERS OFTHE TRADITIONAL NOIR FILMSJoão <strong>de</strong> Mancelos 149PortugalLE MOMENT VENU OU L’ÉVEIL DES ÉDITORIAUXMUTATIONS DE LA LITTÉRATURE FRANÇAISE DES ANNÉESQUATRE-VINGT VUES PAR LES REVUES LITTÉRAIRESJosé <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> Almeida 167PortugalMIGRACIÓN, PRÁCTICAS ARTÍSTICAS Y ARTIVISMOSLaia Manonelles Moner 181EspanhaL'HYPOCRISIE DANS DOM JUAN DE MOLIÈRELúcia Margarida Pinho Lucas <strong>de</strong> Freitas <strong>de</strong> Carvalho Pedrosa 199PortugalA DINÂMICA COMUNICATIVA DOS SÍTIOS WEB DEINSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR POLICIAL E MILITARMaria Clara Cunha 209PortugalMUNDOS DENTRO DE UM MUNDO:REPRESENTAÇÕES INTERCULTURAIS NA POLÓNIA SOB AINFLUÊNCIA NAZI (1939-1942)Nuno Neves Andra<strong>de</strong> 227PortugalA PERFORMANCE E O DESFAZIMENTO DO LOGOCENTRISMONAS ARTES CÊNICASTalesFrey255PortugalIO (ANCORA) SONO L’AMORE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕESSOBRE AMOR E ADULTÉRIO FEMININOS NO FILME DE LUCAGUADAGNINOVerônica Daminelli Fernan<strong>de</strong>s


Portugal277TRADUÇÕES 295TRADUÇÃO DE СТАРЫЙ ГЕНИЙDE NIKOLAI LESKOVO VELHO GÉNIODaniil Kuksenkov 297Maria Helena Guimarães UstimenkoInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoPortugalRECENSÕES 309LITERARY TEXTS AND INTERCULTURAL LEARNINGEXPLORING NEW DIRECTIONSCarina Cerqueira 311PortugalOS BUDDENBROOK, DE THOMAS MANNMicaela da Silva Marques Moura 315PortugalNORMAS DE APRESENTAÇÃO 317GUIDELINES FOR CONTRIBUTORS 319


EDITORIALO número 12 da Revista POLISSEMA, que aqui apresentamos, está rechea<strong>do</strong> <strong>de</strong>textos que são outras tantas aberturas para campos cada vez mais diversifica<strong>do</strong>s. Fiel ao seupropósito <strong>de</strong> refletir e <strong>de</strong> proporcionar reflexões sobre as línguas, a literatura, as culturas e atradução não <strong>de</strong>ixa contu<strong>do</strong> <strong>de</strong> se aventurar por outras manifestações comunicativas e estéticas<strong>do</strong>s nossos dias, como o cinema, as séries televisivas ou as artes cénicas; analisam-se não sóparadigmáticos textos literários, mas também editoriais e sítios web, estudam-se questões <strong>de</strong>ensino <strong>de</strong> línguas e <strong>de</strong> tradução audiovisual.A POLISSEMA continua assim a ser um ponto <strong>de</strong> confluência, on<strong>de</strong> se encontrame partilham experiências inúmeros investiga<strong>do</strong>res reparti<strong>do</strong>s por diferentes línguas e oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>lugares diversos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Neste número em particular, e para além das contribuições <strong>de</strong><strong>do</strong>centes <strong>do</strong> ISCAP e <strong>de</strong> trabalhos resultantes da colaboração <strong>de</strong> professores e estudantes, temosainda o prazer <strong>de</strong> encontrar textos <strong>de</strong> antigos alunos da instituição, que nela tomaram ou<strong>de</strong>senvolveram o gosto pela investigação e que encontram agora na POLISSEMA um lugar <strong>de</strong>maturação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e <strong>de</strong> crescimento académico.Fazemos, pois, votos <strong>de</strong> boas e estimulantes leituras.Saudações polissémicas da Comissão Científica da POLISSEMA.Luísa Benvinda ÁlvaresAna Paula Afonso


AGRADECIMENTOSAgra<strong>de</strong>cemos o apoio da Presidência <strong>do</strong> ISCAP, da Presidência <strong>do</strong> IPP e daFundação para a Ciência e a Tecnologia


LÍNGUA ADICIONAL: CONTEXTOS E CONTINUAAna Cristina NevesUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São JoséMacauana.neves@usj.edu.moResumo:O papel <strong>de</strong> uma língua adicional, seja ela uma língua estrangeira, línguasegunda, ou uma varieda<strong>de</strong> não nativa, é fundamental atualmente não só no<strong>do</strong>mínio profissional mas também em termos <strong>de</strong> investigação científica, maisprecisamente sobre o contacto <strong>de</strong> línguas. Até ao início da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>século passa<strong>do</strong>, o contacto linguístico que po<strong>de</strong>rá ter esta<strong>do</strong> na origem daslínguas crioulas gozou <strong>de</strong> especial atenção entre os linguistas. Nas últimasdécadas a sua atenção virou-se para a língua segunda e as varieda<strong>de</strong>s não nativas.Neste artigo, apresentamos,<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista teórico, os elos <strong>de</strong> ligação,contextos e continua, entre os quatro conceitos acima referi<strong>do</strong>s, em que oprimeiro, língua adicional, é apresenta<strong>do</strong> como hiperónimo <strong>do</strong>s outros três,língua estrangeira, língua segunda e varieda<strong>de</strong> não nativa.Abstract:The role of an additional language, either a foreign language, a secondlanguage, or an indiginized variety, is nowadays crucial not only in theprofessional <strong>do</strong>main but also in the area of scientific investigation, more preciselyregarding the language contact. Till the beginning of the second half of the lastcentury, linguists concentrated the investigation on the language contact on thecreole languages. In the last <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s, their attention was drawn to the secondlanguage and the indiginized varieties. In this paper, we present from thetheoretical point of view the bonds, contexts and continua, that connect the four


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37above mentioned concepts, the first of which, additional language, is ahyperonym of the other three, foreign language, second language and indiginizedvariety.Palavras-chave: língua crioula, língua segunda, língua estrangeira,varieda<strong>de</strong> não nativa, diglossia, bilinguismo, contacto linguístico, aquisição eaprendizagemKey words: creole language, second language, foreign language,indiginized variety, diglossia, bilingualism, language contact, acquisition andlearningIntroduçãoÉ um da<strong>do</strong> adquiri<strong>do</strong> atualmente que a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interagir em mais <strong>do</strong>que uma língua é uma mais-valia em to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mínios linguísticos, i.e. nopriva<strong>do</strong>, público, profissional e educacional. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste pressuposto, verificaseque se, por um la<strong>do</strong>, a aprendizagem da língua é valorizada, por outro, o seuensino torna-se mais complexo. Isto porque há uma série <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações e<strong>de</strong>cisões que têm <strong>de</strong> ser tomadas, ten<strong>do</strong> em conta o produto final e o públicoalvo. Em nenhuma outra disciplina, a transdisciplinarida<strong>de</strong>, a abordagemintercultural e a visão <strong>do</strong> Outro são tão marcantes como na das línguas.Ora, o contacto linguístico sempre existiu, ainda que seja necessáriodistinguir entre o contexto formal e o informal <strong>de</strong>sse contacto. Entenda-se peloprimeiro o contacto institucional sobretu<strong>do</strong> a nível escolar; pelo segun<strong>do</strong>, acoexistência <strong>de</strong> várias línguas motivada ao longo da história especialmente porrelações <strong>de</strong> comércio, <strong>de</strong> turismo, <strong>de</strong> plantações, pelos perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> guerra econquistas (cf. LYOVIN 1997, 402-3) ou, mais recentemente, pelo<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e científico. O estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> contacto linguísticorevelou paralelos entre o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma língua e a aquisição e/ouaprendizagem <strong>de</strong> uma língua vernácula, ten<strong>do</strong> leva<strong>do</strong> igualmente ao surgimentoPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201212


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37<strong>de</strong> vários termos que se entrecruzam entre si: língua crioula (LC), varieda<strong>de</strong> nãonativa (VNN), língua segunda (LS) e língua estrangeira (LE).Propomo-nos analisar mais <strong>de</strong>talhadamente esses termos ao longo dahistória, refletin<strong>do</strong> sobre os conceitos, <strong>de</strong> forma a apresentar a relação dinâmicaentre os mesmos e a expor os paralelos existentes entre os <strong>do</strong>is contextos <strong>de</strong>contacto linguístico.A língua crioulaApesar <strong>de</strong> os primeiros estu<strong>do</strong>s sérios das línguas crioulas remontarem aosanos 30 <strong>do</strong> século XVIII (THIELE 1991, 22), só no final <strong>do</strong> séc. XIX é queHugo Schuchardt, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o pioneiro <strong>do</strong>s Estu<strong>do</strong>s Crioulísticos, dá um novoimpulso a esta área <strong>de</strong> investigação, fazen<strong>do</strong>-se acompanhar <strong>de</strong> A<strong>do</strong>lfo Coelho(1880-6) e Hesseling (1897). Cerca <strong>de</strong> cinquenta anos mais tar<strong>de</strong> é que aimportância <strong>de</strong>ste campo começou a ser reconhecida e a <strong>do</strong>minar a investigaçãoem contacto linguístico na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. Des<strong>de</strong> então, aslínguas crioulas passaram a ser vistas como sistemas linguísticos autónomos, para<strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>radas dialetos das assim <strong>de</strong>nominadas línguaslexifica<strong>do</strong>ras.A primeira referência ao termo remonta a 1684 e é da autoria <strong>do</strong> viajanteFranciso Lemos Coelho, numa <strong>de</strong>scrição que fez da Guiné (PEREIRA 2006, 20).Quanto à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> língua crioula, as <strong>de</strong>finições <strong>do</strong>s dicionários são,atualmente, unânimes: trata-se <strong>de</strong> uma língua natural, fruto <strong>do</strong> contactolinguístico advin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma situação extrema <strong>de</strong> crise linguística, segun<strong>do</strong> D.Pereira (2006); a sua formação ter-se-ia da<strong>do</strong> pela expansão e complexificação <strong>de</strong>um pidgin, tornan<strong>do</strong>-se a língua materna ou a primeira língua <strong>de</strong> umacomunida<strong>de</strong> (vd. MATEUS 1992, TRASK 1997, DUBOIS 1973, MOUNIN1974). As línguas crioulas são, pois, o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> contacto linguístico e daapropriação linguística <strong>de</strong> uma língua europeia por parte <strong>de</strong> falantes não europeusdurante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> colonização, em que os colonos europeus representavamuma minoria populacional socialmente separada da comunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> substrato13 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37(MUFWENE 2009, 378). Esse processo <strong>de</strong> complexificação teria leva<strong>do</strong> a umaestrutura linguística interna e externa muito mais estável e mais <strong>de</strong>senvolvida <strong>do</strong>que a <strong>do</strong> pidgin. Pidgins e crioulos aparecem intimamente associa<strong>do</strong>s, pelomenos, numa primeira fase, ten<strong>do</strong> funciona<strong>do</strong> como línguas adicionais ou até <strong>de</strong>emergência para <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s fins. No entanto, tal como Mufwene afirma, épreciso notar que a formação da língua crioula a partir <strong>de</strong> um pidgin não passa <strong>de</strong>uma hipótese (MUFWENE 2010, 390).Defen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a posição <strong>de</strong> que os crioulos representam as primeiras fasesda aprendizagem <strong>de</strong> uma língua estrangeira (em MEIJER e MUYSKEN 1977,35), A. Coelho refere a alteração fonética e a redução morfológica no caso <strong>do</strong>português como processos <strong>de</strong> transformação e formação da linguagem, sugerin<strong>do</strong>também que na base <strong>de</strong>stes processos estão “leis gerais (psicológicas) ”, uma vezque estas varieda<strong>de</strong>s não refletem “influencia alguma directa, salvovocabulario, das linguas anteriores <strong>do</strong>s povos que os fallam” (COELHO 1881,70).Ao contrário <strong>do</strong> que acontece com o crioulo e à semelhança <strong>do</strong> quesuce<strong>de</strong> com as VNNs, as LSs e as LEs, o pidgin não é a língua materna <strong>de</strong> umpovo. Para além disso, o pidgin está ainda, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista funcional, limita<strong>do</strong> aum <strong>do</strong>mínio restrito da comunicação, tal como foi o caso <strong>do</strong> comércio <strong>de</strong>escravatura, segun<strong>do</strong> J. Holm (1988, 5). A complexida<strong>de</strong> gramatical <strong>do</strong> pidgin ébastante reduzida, resultan<strong>do</strong> numa estrutura analítica sem redundâncias e umléxico também reduzi<strong>do</strong> e limita<strong>do</strong>. A língua crioula, por sua vez, é a línguaprimária, numa primeira fase, <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> falantes, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>pois atoda a comunida<strong>de</strong> linguística. Distingue-se, assim, <strong>do</strong> pidgin pelos seguintesfatores (CHAUDENSON 2001, 21):noNativização linguísticaComplexificação <strong>do</strong> sistema linguísticoExtensão das suas funções linguísticasPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201214


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37À semelhança <strong>do</strong> que acontece noutras línguas, também aqui se verificamvárias interferências interlinguísticas com origem no contacto linguístico entre alíngua <strong>do</strong>minante, ou língua oficial, e as varieda<strong>de</strong>s regionais das línguas crioulas.Estas circunstâncias dão lugar à formação <strong>de</strong> um espetro <strong>de</strong> diversas varianteslinguísticas intermediárias, também <strong>de</strong>nominadas dialetos ou varieda<strong>de</strong>sdiatópicas, e que constituem as varieda<strong>de</strong>s mesoletais que se situam, por sua vez,entre as formas mais acroletais e as basiletais, ou melhor, os extremos opostos <strong>de</strong>steespetro. Quan<strong>do</strong> se fala <strong>de</strong> língua crioula, convem ter presente estas suasvarieda<strong>de</strong>s, ou seja, ter em consi<strong>de</strong>ração o continuum crioulo que se po<strong>de</strong>riatraduzir pelo seguinte mo<strong>de</strong>lo, ainda que muito incompleto:Um continuum pressupõe a existência <strong>de</strong>, pelo menos, <strong>do</strong>is processos outendências. São elas, no caso <strong>do</strong> continuum crioulo, a <strong>de</strong>scrioulização e acrioulização. Pela primeira enten<strong>de</strong>-se uma situação caraterizada pelo lentoaban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> crioulo e recuperação da língua <strong>de</strong> base lexical ou língua <strong>de</strong>contacto ou língua <strong>do</strong> superstrato. Pelo contrário, num processo <strong>de</strong>recrioulização os indivíduos procuram afastar-se da língua <strong>do</strong>minante, reativan<strong>do</strong>simultaneamente formas mais antigas ou fundas da língua crioula ou, naterminologia linguística, formas mais basiletais. D. Meintel (1975, 236)testemunha-nos, a propósito <strong>do</strong> crioulo <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong>, a prática intencional <strong>de</strong>atos comunicativos <strong>de</strong> recrioulização, quan<strong>do</strong> membros da comunida<strong>de</strong> quefalam fluentemente português recorrem a construções consi<strong>de</strong>radas incorretas na15 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37língua portuguesa, numa tentativa <strong>de</strong> se aproximarem das formas crioulas oubasiletais. Verifica-se, assim, que subjacente ao <strong>de</strong>senvolvimento da língua crioulaestá um processo <strong>de</strong> divergência ou <strong>de</strong> afastamento da língua lexifica<strong>do</strong>ra(MUFWENE 2010, 390), i.e. da língua europeia, por a sua aprendizagem ter si<strong>do</strong>imposta.Nestes processos, há ainda que ter em conta a influência das línguas <strong>de</strong>adstrato, termo que exclui, por <strong>de</strong>finição, as línguas <strong>de</strong> substrato, representadaspelas línguas africanas <strong>do</strong>s falantes <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, tais como o olof e o mandinga,entre muitas outras, no caso <strong>do</strong> crioulo <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong>, e a língua <strong>do</strong> superstrato,i.e., aquela falada pelos que <strong>de</strong>têm o po<strong>de</strong>r na comunida<strong>de</strong> linguística, ou a língua<strong>do</strong>minante (vd. HOLM 1988, 5, 65-68), que seria, no caso <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong>, oportuguês. Um exemplo <strong>de</strong> línguas <strong>de</strong> adstrato é os estrangeirismos eneologismos oriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> inglês menciona<strong>do</strong>s por D. Meintel (1975, 242 ff.),como, por exemplo, adiyáp <strong>do</strong> inglês hurry up.A língua <strong>de</strong> adstrato marca presença no contacto linguístico sobretu<strong>do</strong>através da introdução <strong>de</strong> novos lexemas. No entanto, não assume o papel <strong>de</strong> LSpor não se tratar <strong>de</strong> uma língua <strong>do</strong>minante nem em termos económicos(superstrato) nem em termos populacionais (substrato).Marcellesi (1981, 7) aplica o termo continuum pós-crioulo a sistemas quediversificaram ligeiramente as existências nacionais, as escritas ou religiões, ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong>, assim, conota<strong>do</strong>s com línguas diferentes; a situação contrária, em quesistemas genetica e historicamente estranhos um ao outro acabam por funcionarnum da<strong>do</strong> momento da história, na mesma comunida<strong>de</strong>, como complementares,seria a <strong>de</strong> diglossia, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> surgir situações <strong>de</strong> quasi-diglossia ou <strong>de</strong> quasi-continuum. A Suíça e Cabo Ver<strong>de</strong>, entre outros, representam <strong>do</strong>is bons exemplos<strong>de</strong> situações diglóssicas. A primeira, pela coexistência <strong>de</strong> várias línguas oficiais eas suas respetivas varieda<strong>de</strong>s dialetais; o segun<strong>do</strong>, pela presumível abruptaformação da língua crioula que é hoje a língua nacional daquele país.Por incrível que pareça, as línguas crioulas continuam a ser <strong>de</strong>nominadas<strong>de</strong> crioulas e não apenas <strong>de</strong> línguas, não só por razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m teórica mastambém por motivos afetivos.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201216


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37A língua não materna ou varieda<strong>de</strong> não nativaAs varieda<strong>de</strong>s não nativas ou línguas não maternas, também elas fruto <strong>do</strong>contacto linguístico, são uma área comparativamente pouco estudada. Estaslínguas são o resulta<strong>do</strong> da adaptação <strong>de</strong> uma língua à ecologia <strong>do</strong>s seus falantes,<strong>de</strong> forma a ir ao encontro das necessida<strong>de</strong>s da comunida<strong>de</strong> linguística em causa(MUFWENE 2009, 379). Uma <strong>de</strong>terminada língua oficial começa por assumir opapel <strong>de</strong> uma língua adicional, adquirin<strong>do</strong> posteriormente traços própriosatribuí<strong>do</strong>s por uma comunida<strong>de</strong> linguística da qual não é a língua materna, no queresulta então uma VNN. As primeiras referências ao termo remontam ao fim <strong>do</strong>século XX e são aplicadas às varieda<strong>de</strong>s anglófonas da região <strong>do</strong> Pacífico, on<strong>de</strong> oinglês é a língua oficial mas não a língua materna das comunida<strong>de</strong>s linguísticas,como é o caso da Índia, acaban<strong>do</strong> por se tornar diferente <strong>do</strong> inglês fala<strong>do</strong> nosEUA ou na Austrália, on<strong>de</strong> aquela língua goza <strong>do</strong> estatuto duplo <strong>de</strong> línguamaterna e oficial. Entre os PALOP (Países Africanos <strong>de</strong> Língua OficialPortuguesa), encontramos situações semelhantes em Angola (vd. ANÇÃ 1999) eem Moçambique, on<strong>de</strong> falantes <strong>de</strong> etnias diferentes recorrem ao português parase enten<strong>de</strong>rem, representan<strong>do</strong> a VNN um instrumento <strong>de</strong> comunicação. Osmembros insulares <strong>do</strong>s Países Africanos <strong>de</strong> Língua Oficial Portuguesa (PALOP)também recorrem ao português como uma varieda<strong>de</strong> não nativa pela projeçãointernacional <strong>de</strong>sta em <strong>de</strong>trimento das línguas locais, muitas vezes, línguascrioulas, como acontece em Cabo Ver<strong>de</strong> e em São Tomé e Príncipe. Note-se, atítulo <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, que o próprio crioulo <strong>de</strong> Cabo Ver<strong>de</strong> tem presença marcadaem São Tomé e Príncipe (MAURER 2009). O continuum da VNN faz-se, assim,representar pelo seguinte esquema:17 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> expostas a génese e a evolução das línguas crioulas, econsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os obstáculos com que se <strong>de</strong>param perante o seu reconhecimentocomo língua <strong>de</strong> comunicação escolar, para o qual o sentimento <strong>de</strong> nacionalismo e<strong>de</strong> orgulho na língua nacional não são suficientes, são óbvios os paralelos entre aformação das línguas crioulas e das VNNs, se se consi<strong>de</strong>rar o pidgin um estádioprimário na evolução das primeiras:a ausência da nativização linguística, no caso das línguas crioulas, apenasnuma primeira fase da sua formação, i.e., não foram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início aslínguas maternas da comunida<strong>de</strong> linguística, tal como as VNNs não osão;a consequente falta <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> transmissão normal, <strong>de</strong> geração emgeração, como acontece com as línguas maternas <strong>de</strong> uma forma geral, sen<strong>do</strong>que as VNNs têm como principais elementos transmissores a instituiçãoescolar e os meios <strong>de</strong> comunicação social;a coexistência <strong>de</strong>, pelo menos, duas línguas, uma das quais é <strong>do</strong>minante,sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista político-linguístico;o facto <strong>de</strong> se tratarem ambas <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s originadas através <strong>do</strong> contactolinguístico abrupto, porque força<strong>do</strong> e sem uma fase <strong>de</strong> iniciação gradual,como acontece com os alunos que ingressam na escola;Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201218


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37o input linguístico incompleto por a comunida<strong>de</strong> não estar exposta a ummo<strong>de</strong>lo linguístico, visto a LS ser transmitida geralmente por não nativos;a consequente aprendizagem linguística negativa, uma vez que é forçada ecom poucos pontos <strong>de</strong> referência à cultura materna.Assim, não é por acaso que S. Mufwene (1994, 25) consi<strong>de</strong>ra o termovarieda<strong>de</strong>s não nativas um hiperónimo quer <strong>de</strong> pidgins e <strong>de</strong> línguas crioulas querainda <strong>de</strong> LSs aprendidas no contexto acima referi<strong>do</strong>, uma vez que:[...] they are still like them in being adaptations to new ecologicalethnolinguistic conditions. Creoles are the results of continuous adaptationsof typically heterogeneous lexifiers to contact settings that lead thosea<strong>do</strong>pting them as their means of communication to produce selectively (un<strong>de</strong>rthe partial influence of the other languages in contact) restructured,mutually-accommodating systems.Os pidgins e crioulos, por um la<strong>do</strong>, e as línguas não nativas, por outro,diferenciam-se (MUFWENE 1994, 27):por as segundas terem parti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma varieda<strong>de</strong> padrão ou erudita,transmitida pela instituição escolar;por se terem <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> em contextos socio-históricos distintos;pelos sistemas estruturais transmiti<strong>do</strong>s ao apren<strong>de</strong>nte;pelos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> transmissão;e, pelos seus estatutos etnográficos.Acrescentamos ainda o facto <strong>de</strong> existir uma norma escrita e um sistemaortográfico nas línguas não nativas, o que nem sempre é o caso das línguasmaternas, fenómeno referi<strong>do</strong> por T. Meisenburg (1999) pela relação entre alíngua <strong>de</strong> distância (Distanzsprache), associada à linguagem escrita e a língua <strong>de</strong>proximida<strong>de</strong> (Nähesprache), associada à linguagem oral. Os conceitos língua <strong>de</strong>19 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37distância e língua <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> foram originalmente introduzi<strong>do</strong>s por Koch eOesterreicher (1990) para distinguir a linguagem escrita da linguagem oral noespaço românico, referin<strong>do</strong>-se, respetivamente, ao latim culto/erudito, usa<strong>do</strong> naescrita, e ao latim vulgar/popular, usa<strong>do</strong> na oralida<strong>de</strong> e sujeito às influênciasareais, que estiveram na origem das atuais línguas latinas vernáculas.Por outraspalavras, esta distinção tem por base a situação específica da diglossia, comoresulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um contacto linguístico assimétrico. Assim sen<strong>do</strong>, a língua <strong>de</strong>proximida<strong>de</strong> aparece associada à varieda<strong>de</strong> linguística ‘inferior’, sem uma normaescrita e usada apenas oralmente, enquanto que a língua <strong>de</strong> distância está ligada àvarieda<strong>de</strong> ‘superior’, com um sistema ortográfico próprio e, por isso, usada nacomunicação escrita. J.M. Massa (1994, 268) <strong>de</strong>nomina esse fenómeno lusografiautilitária, pois a utilida<strong>de</strong> escrita da língua portuguesa nos cinco países <strong>do</strong>sPALOP é um <strong>do</strong>s fatores que reforça o recurso à língua oficial.O conceito diglossia pressupõe uma distinção das varieda<strong>de</strong>s linguísticassegun<strong>do</strong> as respetivas funções comunicativas e distingue-se, por isso, <strong>do</strong> <strong>de</strong>bilinguismo (VEITH 2002, 196), embora as primeiras <strong>de</strong>finições encontradas, <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista cronológico, sejam, por vezes, pouco claras. A relação entrediglossia e bilinguismo foi originalmente estabelecida por Joshua A. Fishman,para quem diglossia se esten<strong>de</strong> ainda à utilização <strong>de</strong> línguas aparentadas(DECAMP 1977; cf. MARCELLESI 1981; ROMAINE 1988 e 1995).Na situação linguística <strong>de</strong> diglossia, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Ferguson (1959),consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o pai da diglossia apesar <strong>de</strong> não ter si<strong>do</strong> o primeiro a usar o conceito(cf. PRUDENT 1981, 15), há uma variante linguística que é consi<strong>de</strong>rada inferiorou que não é reconhecida oficialmente (L = low variety), ou seja, não é usada nasmesmas circunstâncias nem com os mesmos fins que a variante consi<strong>de</strong>radasuperior (H = high variety), como é o caso das línguas crioulas. As <strong>de</strong>finições <strong>de</strong>Crystal (1987) e Johnson (1999) fazem já referência a essas duas variantes,limitan<strong>do</strong>-se a primeira <strong>de</strong>las ao contexto informal e familiar, ao passo que asegunda é utilizada no <strong>do</strong>mínio institucional e na escrita.DeCamp (1977) contradiz parcialmente a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Ferguson, aodistinguir um outro ramo <strong>de</strong> contacto linguístico, muito especialmente inerente àPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201220


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37formação das línguas. Segun<strong>do</strong> DeCamp, as comunida<strong>de</strong>s linguísticas que seencontram na fase <strong>de</strong> pós-crioulo distinguem-se das comunida<strong>de</strong>s diglóssicas porestarem sujeitas a uma maior pressão e, consequentemente, a uma constanteinfluência da língua oficial aparentada, o que po<strong>de</strong> levar à formação <strong>de</strong> tendênciaspor parte da comunida<strong>de</strong> para modificar o discurso <strong>do</strong>s falantes na direcção dalíngua oficial (1981, 351), <strong>de</strong> forma a dar lugar ao processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrioulização. Omesmo não se verifica nas comunida<strong>de</strong>s diglóssicas. Este é também o ponto <strong>de</strong>vista <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> por Marcellesi (1981). Quer isto dizer que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com estesautores, a aproximação genética das duas varieda<strong>de</strong>s em causa fica excluída dasituação linguística <strong>de</strong> diglossia, o que não vai ao encontro <strong>do</strong>s exemplosaponta<strong>do</strong>s por C. Ferguson (cf. 1959).Segun<strong>do</strong> Dubois (1973), diglossia po<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar uma situação linguística <strong>de</strong>bilinguismo, a coexistência <strong>de</strong> duas línguas num mesmo espaço geográfico comestatutos sociopolíticos diferentes ou, ainda, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo <strong>de</strong>usar fluentemente uma outra língua para além da língua materna (LM). Mounin(1974) afirma tratar-se <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> bilinguismo generalizada a toda umacomunida<strong>de</strong> linguística (vd. também MATEUS 1992). É também neste senti<strong>do</strong>que Johnson se refere a diglossia, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “bilingualism in society”, ou seja,bilinguismo social (1999, 30-31).T. Meisenburg (1999, 33) <strong>de</strong>screve a situação <strong>de</strong> diglossia da seguinteforma, estabelecen<strong>do</strong> uma relação clara com a mudança <strong>de</strong> língua em função dasituação dinâmica que lhe está subjacente:Der Begriff <strong>de</strong>r Diglossie charakterisiert (...) eine sprachliche Situation,die unter bestimmten gesellschaftlichen Bedingungen immer wie<strong>de</strong>rentsteht, aber nach Auflösung drängt, da sie einer effektivengesellschaftlichen Kommunikation im Wege steht. Auch wenn sie unterUmstän<strong>de</strong>n sehr lange dauern kann, han<strong>de</strong>lt es sich um eine prinzipielldynamische Situation, die sich als wesentliche Basis für Sprachwechselin einer Gesellschaft verstehen lässt. In diesem Moment <strong>de</strong>s21 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37Sprachwechsels, <strong>de</strong>r diglossische Situationen von <strong>de</strong>r Monoglossieunterschei<strong>de</strong>t, liegt die Erklärungskraft dieses Begriffs.As varieda<strong>de</strong>s não nativas são, pois, a segunda língua senão a terceira<strong>de</strong>stas comunida<strong>de</strong>s. Sridhar (1994, 45-48) critica as teorias da aquisição <strong>de</strong> umaLS, quan<strong>do</strong> aplicadas a estas varieda<strong>de</strong>s, por não terem em conta os seguintesaspetos inerentes à situação linguística das VNNs:- o objetivo da aprendizagem <strong>de</strong> uma LS, nestas comunida<strong>de</strong>s, não é atingir acompetência nativa nessa mesma língua;- O input disponível é suficientemente extensivo e intensivo <strong>de</strong> forma a permitira competência ativa na LS, mas restritivo e limita<strong>do</strong>, muitas vezes, à sala <strong>de</strong> aula,quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong> à aquisição da LM ou duma LE numa área geográfica em queaquela tem o papel <strong>de</strong> língua oficial, pois o apren<strong>de</strong>nte não se encontra exposto ato<strong>do</strong>s os estilos, estruturas e atos <strong>de</strong> fala normalmente associa<strong>do</strong>s aos falantesnativos;- O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> bilinguismo a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> aos contextos das varieda<strong>de</strong>s não nativas éum mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> adição e não um <strong>de</strong> substituição, ou seja, as funções linguísticascobertas pela LS nestas comunida<strong>de</strong>s não são as mesmas que, por exemplo, as dacomunida<strong>de</strong> caboverdiana resi<strong>de</strong>nte em Portugal, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> não sócomplementarem como também sobreporem-se às funções comunicativas daLM, o que não implica, <strong>de</strong> forma alguma, que as VNNs sejam funcionalmentereduzidas, antes pelo contrário;- A motivação para a aprendizagem <strong>de</strong> uma LS não é integrativa mas siminstrumental, na medida em que a apropriação da mesma <strong>de</strong>ve complementar asfunções linguísticas da LM e permitir a comunicação com o exterior;- O papel da LM não se limita apenas à interferência linguística durante aaprendizagem da LS, mas também a uma contribuição e até enriquecimento dalíngua alvo;- A aprendizagem duma LS é, nestes casos, um fenómeno <strong>de</strong> grupo e não umfenómeno individual.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201222


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37Tiran<strong>do</strong> o último ponto, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que estamos perante a <strong>de</strong>scriçãoda situação <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> uma língua estrangeira, já que esta é, antes <strong>de</strong>mais, um fenómeno individual. A situação torna-se mais complexa seconsi<strong>de</strong>rarmos o caso <strong>do</strong> português em Macau. Apesar <strong>do</strong> seu estatuto <strong>de</strong> línguaoficial nesta região administrativa da China e <strong>do</strong> seu ensino, ainda que limita<strong>do</strong>nas escolas oficiais, a língua portuguesa não é falada pelas gerações mais novas,tratan<strong>do</strong>-se muito mais <strong>de</strong> uma língua ‘fantasma’.A língua segundaO conceito <strong>de</strong> língua segunda só faz senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por oposição ao <strong>de</strong>língua primeira, aliás foi para <strong>de</strong>marcar a diferença entre os <strong>do</strong>is conceitos que J. C.Catford (1959, 138) usou aquele pela primeira vez após a II Guerra Mundial. Nãose po<strong>de</strong>, por isso, falar <strong>de</strong> uma sem falar da outra. À semelhança <strong>do</strong> que acontececom as línguas crioulas também este termo surgiu <strong>do</strong> contacto linguístico,assumin<strong>do</strong> o papel <strong>de</strong> língua adicional.Mounin (1974) refere primeira língua ao <strong>de</strong>finir língua materna: “au sensstrict, langue <strong>de</strong> la mère. Par abus <strong>de</strong> langage, langue première d’un sujet <strong>do</strong>nné,même si ce n’est pas la langue <strong>de</strong> sa mère”, ou seja, língua materna e primeira línguasão apresentadas como sinónimos. De facto, a primeira língua a ser aprendida égeralmente consi<strong>de</strong>rada a língua materna, ou seja, ambas as <strong>de</strong>signações sãosinónimas; distinguem-se pelos contextos em que se aplicam.Uma segunda língua po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma língua estrangeira, ou seja, ésempre a primeira língua aprendida <strong>de</strong>pois da língua materna. Daí, o uso <strong>do</strong>termo “segunda”. Para esta autora, os termos língua materna, língua estrangeira elíngua segunda distinguem-se <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao processo <strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong> uma língua.Esse processo po<strong>de</strong> dar-se <strong>de</strong> duas formas: aquisição e aprendizagem. Um ponto<strong>de</strong> vista ligeiramente diferente é-nos apresenta<strong>do</strong> pela sociolinguista Lur<strong>de</strong>sCrispim (1991, 16), que aplica o conceito aprendizagem em relação a uma línguaestrangeira, e o <strong>de</strong> apropriação relativamente à segunda língua. Já Gomes (1996, 17)explica o mesmo processo através da sobreposição <strong>de</strong> um novo sistema <strong>de</strong>23 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37comportamentos linguísticos construí<strong>do</strong>s a partir da LS. Esse sistema irásobrepor-se ao da LM.A distinção entre aquisição e aprendizagem remonta aos trabalhos <strong>de</strong> S. D.Krashen (1981) que carateriza o primeiro termo como um processo natural,realiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> intuitivo numa imersão linguística e sem uma focalização <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> consciente nas formas linguísticas, enquanto que o segun<strong>do</strong> termopressupõe um processo consciente, sistemático e formal. Chau<strong>de</strong>nson aplicaambos os termos no contexto específico da formação das línguas crioulas,afirman<strong>do</strong> que numa primeira fase <strong>de</strong> aquisição das línguas crioulas numasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> plantação, a língua <strong>de</strong> partida (“source language”) foi conotada <strong>de</strong>forma negativa <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à ausência <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo, ao contrário <strong>do</strong> que se verificana aprendizagem (Chau<strong>de</strong>nson 2001:157). Para uma leitura mais exaustiva, leia-se adiscussão apresentada por Isabel Leiria (1991).Ten<strong>do</strong> em conta o exposto, os continua <strong>de</strong> língua estrangeira e <strong>de</strong> língua segundapo<strong>de</strong>riam ser traduzi<strong>do</strong>s pelas figuras que se seguem. Note-se a inversão daspirâmi<strong>de</strong>s para dar expressão ao grau <strong>de</strong> exposição à língua alvo ou línguaadicional, consoante se trate <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> aquisição, que é o caso da línguasegunda, ou <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> aprendizagem, como no caso da línguaestrangeira:Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201224


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37A <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> língua estrangeira emprega-se num contexto <strong>de</strong>aprendizagem <strong>de</strong> qualquer língua não materna, ten<strong>do</strong> em conta uma situaçãolinguística <strong>de</strong> falantes-ouvintes que partilham uma outra língua que não é a línguaalvo. A segunda língua será aquela que é aprendida por falantes-ouvintesestrangeiros na comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> essa língua <strong>de</strong>sempenha geralmente um papelinstitucional, como é o caso <strong>do</strong> português nos PALOP. Esta situação linguísticadistingue-se <strong>de</strong> outras situações similares, como as das comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>imigrantes em Portugal ou no Brasil. Nestes países, por exemplo, a línguaportuguesa também assume o papel <strong>de</strong> língua oficial para os falantes <strong>do</strong>sPALOP, mas o contacto <strong>de</strong>stes com os falantes nativos é mais estreito.Nesta perspetiva, a distinção entre língua estrangeira e língua segunda acarretaainda diferenças nas condições sociolinguísticas inerentes a ambos os contextos.Assim, “a aprendizagem <strong>de</strong> uma segunda língua parece implicar mais horas <strong>de</strong>estu<strong>do</strong>, maior diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ‘input’ linguístico e <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong> interação entre oprofessor e os alunos, maior incidência na aprendizagem da cultura alvo”, aocontrário da língua estrangeira, “<strong>de</strong> natureza menos comunicativa, ten<strong>do</strong> apenas oprofessor e os materiais como ‘input’ linguístico” (SOUSA 2001, 89-90; vd.também CRYSTAL 1987, 368). Johnson (1999, 129) aponta ainda alguns traçoscaraterísticos à aquisição <strong>de</strong> uma LS:(...) there are systematic stages of <strong>de</strong>velopment; correction, reward andreinforcement <strong>do</strong> not appear to be directly influential in SLA [SecondLanguage Acquisition], although some kinds of metalinguistic awarenessmay be; the knowledge that L2 [LS] learners <strong>de</strong>velop goes beyond whatthey were exposed to in the input; SLA is not inevitable (learners mayfossilize at different stages of <strong>de</strong>velopment) and rarely fully successful.Depreen<strong>de</strong>-se <strong>do</strong> que foi exposto que a aquisição <strong>de</strong> uma LS tem semprecomo objetivo <strong>do</strong>minar a língua alvo como um falante nativo, o que acaba pornão se concretizar, ou seja, a tentativa ‘falhada’ <strong>de</strong> aproximar a competêncialinguística <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> falante nativo que não existe, à semelhança <strong>do</strong> que se25 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37consi<strong>de</strong>ra ter sucedi<strong>do</strong> com as línguas crioulas. A diferença resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> queno caso das primeiras a aquisição é geralmente evitável, o que não aconteceusupostamente com as últimas, on<strong>de</strong>, pelo contrário, se verificou um afastamentoda língua alvo ou língua <strong>do</strong> superstrato. O próprio termo ‘superstrato’ remetepara a posição <strong>do</strong>minante da língua em causa e tem, assim, uma conotaçãonegativa, advinda das circunstâncias negativas em que se <strong>de</strong>u a aprendizagemimposta da língua alvo. Por outras palavras, a interlíngua enquanto produto daaquisição da LS, por um la<strong>do</strong>, e a LC, por outro, são equivalentes entre si;enquanto a primeira resulta muitas vezes numa fossilização individual daapropriação da LS, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que, no caso da segunda, a própriainterlíngua fossilizada se tornou a língua materna <strong>de</strong> uma nação. No entanto, énecessário sublinhar que só é pertinente falar-se <strong>de</strong> fossilização ou <strong>de</strong> interlínguaneste contexto, se tivermos em conta o mo<strong>de</strong>lo utópico <strong>de</strong> falante nativo comoalvo da aprendizagem e aquisição <strong>de</strong> uma língua.Estu<strong>do</strong>s nesta área <strong>de</strong>monstram que a influência <strong>do</strong> substrato é invevitáveldurante a aquisição <strong>de</strong> uma língua segunda, mas a mesma não se dá <strong>de</strong> formaconsistente <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>nte para apren<strong>de</strong>nte, ou seja, varia <strong>de</strong> individuo paraindividuo (KLEIN e PERDUE 1992). Os próprios crioulistas consi<strong>de</strong>ram que aformação das línguas crioulas têm pontos em comum com a aquisição <strong>de</strong> umalíngua segunda, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as primeiras um hipónimo da segunda, como é ocaso <strong>de</strong> Mufwene (2010).L. Crispim já se refere a LS no contexto específico <strong>de</strong> multilinguismo empaíses africanos, on<strong>de</strong> o termo é aplica<strong>do</strong> “cada vez mais à língua, africana oueuropeia, que é a língua da escolarida<strong>de</strong> e que, numa fase pós-escolar, funcionarácomo ‘língua veicular’ e/ou ‘língua <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> nacional’” (CRISPIM 1991, 16).Mais adiante, a autora explica que uma LS se sobrepõe às caraterísticas <strong>de</strong>ensino/aprendizagem <strong>de</strong> uma LE apenas numa fase inicial. Por outras palavras,LS é neste senti<strong>do</strong> uma varieda<strong>de</strong> não nativa.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201226


A língua estrangeiraNeves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37Em termos práticos, os primeiros construtos, fruto <strong>de</strong> uma perspetivaten<strong>do</strong> em atenção a língua estrangeira, remontam ao séc. XVI, quan<strong>do</strong> emmea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século surgem os primeiros manuais bilíngues para o ensino <strong>de</strong> inglêse o primeiro dicionário <strong>de</strong> línguas vernáculas em Antuérpia (HOWATT 1997, 6-8), segui<strong>do</strong>s, em 1576, da publicação <strong>do</strong> primeiro guia turístico para estrangeiros(CUNHA 2004). No séc. XVIII surgiram em Portugal os primeiros cursos <strong>de</strong>língua estrangeira, em inglês, ten<strong>do</strong> estes si<strong>do</strong> introduzi<strong>do</strong>s nos precários sistemaseducativos das antigas colónias no século seguinte. A introdução <strong>de</strong>stes cursos<strong>de</strong>veu-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação para efetuar trocas comerciais.No entanto, só no séc. XX, após a II Guerra Mundial, e muitoespecificamente no caso da língua inglesa, é que o ensino <strong>de</strong>sta como línguaestrangeira ganhou um novo impulso <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico ecientífico - encabeça<strong>do</strong> pelos EUA - alia<strong>do</strong> à intensificação das trocas comerciaisa nível internacional. Este fenómeno teve início no ensino <strong>do</strong> inglês como línguaestrangeira, mas <strong>de</strong>pressa se alastrou a outras línguas.É no ensino da língua estrangeira, por estar limita<strong>do</strong> à sala <strong>de</strong> aula, que aabordagem da língua sofre uma mudança ao começarem a usar-se outrosméto<strong>do</strong>s que não o tradicional. No início <strong>do</strong>s anos 70, Dell Hymes dá um novoimpulso à língua estrangeira ao sublinhar a importância da competênciacomunicativa, o que passou a <strong>de</strong>nominar-se mais tar<strong>de</strong> abordagem comunicativa.Numa primeira leitura, o papel <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> ensino <strong>de</strong> uma língua estrangeirapo<strong>de</strong> parecer irrelevante, mas se analisarmos mais <strong>de</strong>talhadamente os efeitos <strong>do</strong>mesmo verifica-se que, com o recurso à abordagem comunicativa, começou ahaver uma maior interação entre o aluno e o professor que com o tempo acaboupor levar ao ensino centra<strong>do</strong> no apren<strong>de</strong>nte e a programas curriculares funcionaisnuma tentativa <strong>de</strong> criar um ambiente <strong>de</strong> aprendizagem tão próximo quantopossível <strong>de</strong> um ambiente <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> uma língua, à semelhança <strong>do</strong> queaconteceu no processo <strong>de</strong> formação das línguas crioulas e tal como acontece numcontexto <strong>de</strong> língua segunda. A tendência é para um ensino da língua estrangeira27 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37cada vez mais holístico, sob a perspetiva <strong>de</strong> uma abordagem hermenêutica, maisconcentra<strong>do</strong> nas necessida<strong>de</strong>s reais <strong>do</strong>s apren<strong>de</strong>ntes, <strong>do</strong>s seus objetivos e <strong>do</strong> que<strong>de</strong>ve ser o produto final (KOVALEK e CHIKOSKI 2008). Surge então o ensinobasea<strong>do</strong> em tarefas (task-based teaching) e objetivos. A elaboração <strong>de</strong> projetos porparte <strong>do</strong>s apren<strong>de</strong>ntes, assumin<strong>do</strong> o professor o papel <strong>de</strong> um guia ou assistente, éuma componente cada vez mais notória, já que também as tarefas aparecemcontextualizadas e com um objetivo próprio (ex. uma exposição <strong>de</strong> trabalhos),aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>-se os exercícios repetitivos centra<strong>do</strong>s na gramática e novocabulário.A componente sociolinguística passa também a ter um lugar cada vez maismarca<strong>do</strong> no ensino formal da língua em contexto escolar, ou seja, é precisoadquirir também informação sobre a atualida<strong>de</strong> cultural <strong>do</strong> país da língua alvo(KRÜGER 1991, 55), <strong>do</strong> Outro, que já não é encara<strong>do</strong> da mesma forma aquan<strong>do</strong>da formação e <strong>de</strong>senvolvimento das línguas crioulas, por exemplo. O erro passa aser encara<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma forma mais permissiva, pois é dada importância àcomunicação efetiva e não à correção gramatical. Ora, o ensino <strong>de</strong> línguas e atransdisciplinarida<strong>de</strong> que lhe está subjacente ganham outras dimensões.Note-se as áreas <strong>de</strong> investigação <strong>de</strong> que a língua segunda e a língua estrangeiratêm si<strong>do</strong> alvo. Enquanto que a primeira se tem ocupa<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo daaprendizagem e <strong>do</strong> seu produto final, a última <strong>de</strong>bruçou-se sobre o ensino e ameto<strong>do</strong>logia. Mais uma vez, a distinção entre uma e outra não é clara, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>aproximarem-se pelo objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> mas afastan<strong>do</strong>-se pela perpetiva com queesse estu<strong>do</strong> é leva<strong>do</strong> a cabo. Foi neste contexto <strong>de</strong> díficil <strong>de</strong>limitação e <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> ambos os conceitos que surgiu a proposta <strong>de</strong> língua adicional.A língua adicionalO termo língua adicional foi propositadamente empregue neste contextocomo hiperónimo <strong>de</strong> línguas <strong>de</strong> contacto, outras que não as maternas, àsemelhança <strong>do</strong> que faz L. Schinke-Llano (1990, 216-225) que o usou pelaprimeira vez com esta aceção, ainda que aplicada apenas à aprendizagem <strong>de</strong> umaPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201228


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37língua estrangeira e aquisição <strong>de</strong> uma língua segunda. Esta autora usa a expressão comouma <strong>de</strong>finição operacional para se referir a ambos os processos: o <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong>língua segunda, por um la<strong>do</strong>, e o <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong> língua estrangeira, poroutro, ten<strong>do</strong> em conta apenas os seus produtos finais, ou seja, o nível <strong>de</strong>proficiência <strong>do</strong>s apren<strong>de</strong>ntes.O conceito <strong>de</strong> língua adicional, aplica<strong>do</strong> no contexto específico <strong>de</strong> quetratamos, fala por si. Excluem-se assim as línguas crioulas tal como asconhecemos atualmente. No entanto, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao contacto linguístico, tambémuma língua adicional, pelo menos, esteve presente durante a sua formação. Asinterlínguas seriam as varieda<strong>de</strong>s da língua adicional enquanto língua estrangeira.Os termos complementam-se e os continua sobrepõem-se. A relação entreos conceitos discuti<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>ria traduzir-se pelo seguinte esquema:Note-se que o círculo começa na língua materna, pois é em função <strong>de</strong>staque os outros termos se relacionam entre si. A partir <strong>do</strong> momento que estamosem contacto com uma língua adicional, esta é a priori uma língua estrangeira <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> falante. A língua estrangeira começa por ser uma interlíngua apartir <strong>do</strong> momento que o falante a começa a usar ainda que precariamente <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista individual; se o mesmo acontecer <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista social, ou seja,29 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37se se tratar <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> falantes que recorre sistematicamente às formasbásicas <strong>de</strong> uma outra língua, estamos perante um pidgin que tem como condiçãonão ser uma língua materna, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, no entanto, expandir as suas funçõescomunicativas e passar a ser a língua materna <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> linguística,como é o caso da língua crioula.Caso se trate da língua segunda <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> linguística, crioula ounão, ou seja, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista social estaremos perante uma varieda<strong>de</strong> nãonativa. Depen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> exposição à língua adicional <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vistaindividual - que nesta fase <strong>do</strong> ciclo já <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser uma língua estrangeira - e <strong>do</strong>estatuto oficial que essa língua tenha <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista social, tratar-se-á <strong>de</strong> umalíngua segunda que, tal como as setas bidirecionais <strong>do</strong> esquema indicam, evoluiu apartir <strong>de</strong> uma língua estrangeira. As comunida<strong>de</strong>s crioulas pressupõem o recursoa uma língua segunda ou uma língua <strong>de</strong> projeção internacional que não é nunca alíngua nacional. Essa, a língua crioula e nacional, é sempre a língua materna eprimeira <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>, ainda que a sua formação pressuponha a transiçãopor to<strong>do</strong>s os estádios <strong>do</strong> ciclo referi<strong>do</strong>s anteriormente até se ter torna<strong>do</strong> a línguamaterna <strong>de</strong> uma primeira geração <strong>de</strong> falantes.De facto, a distinção entre os termos faz senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> temos em contaa génese e a evolução <strong>do</strong> contacto linguístico e social das comunida<strong>de</strong>s em quesurgem (cf. CHAUDENSON 1977, 1992, entre outros). Todavia, se atentarmosaos processos, aos continua e aos produtos linguísticos finais daí resultantes asdiferenças dissipam-se, os conceitos aproximam-se entre si, chegan<strong>do</strong> acomplementar-se. Prova disso é que, ten<strong>do</strong> em conta o produto final, se por umla<strong>do</strong>, os apren<strong>de</strong>ntes que têm uma mesma língua materna em comum nemsempre produzem o mesmo tipo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong>sviante na língua alvo(MUFWENE 2010), por outro, verifica-se que apren<strong>de</strong>ntes que têm línguasmaternas diferentes revelam similarida<strong>de</strong>s nas construções <strong>de</strong>sviantes produzidasnuma mesma língua alvo (KLEIN e PERDUE 1992, entre outros). Os processos<strong>de</strong> convergência, ou aproximação da língua alvo, e divergência, ou afastamentoda língua alvo, durante a apropriação <strong>de</strong> uma língua (segunda ou estrangeira)Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201230


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37equiparam-se aos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrioulização e crioulização durante a formação <strong>de</strong> umalíngua, prefazen<strong>do</strong> um continuum muito pareci<strong>do</strong>:Convergência• transferênciapositivaDivergência• transferência negativaOs contextos são diferentes mas os processos são os mesmos.ConclusãoA origem e o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> contacto <strong>de</strong> línguas po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> diversa or<strong>de</strong>m,po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> verificar-se o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> línguas ou a criação <strong>de</strong> novas línguas,como foi o caso das línguas crioulas, passan<strong>do</strong> por fases <strong>de</strong> mixagem, alternância,etc. como é o caso da(s) interlíngua(s). A principal diferença entre ambas é que aformação da língua crioula foi um fenómeno populacional, tal como acontececom as varieda<strong>de</strong>s não nativas, enquanto que a interlíngua se dá a nível individual.Como se viu, a formação das línguas crioulas teve lugar através <strong>de</strong> um contactomultilinguístico, em que estavam presentes, muitas vezes, pelo menos uma língua<strong>de</strong> superstrato, várias línguas <strong>de</strong> adstrato e outras tantas línguas <strong>de</strong> substrato, ouseja, num contexto <strong>de</strong> diferentes línguas adicionais.Nas últimas décadas, o contacto linguístico na sala <strong>de</strong> aula tem atraí<strong>do</strong> aatenção <strong>do</strong>s especialistas, esperan<strong>do</strong>-se que a investigação nesta área possa dar31 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37resposta às lacunas <strong>de</strong>ixadas pelo contacto linguístico natural inerente à outroraformação das línguas crioulas.Dos estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s nas diferentes áreas da Linguística Aplicada,conclui-se que o contacto linguístico pressupõe sem dúvida a existência <strong>de</strong> várioscontinua que se sobrepõem. Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> qualquer uma das situações referidas <strong>de</strong>contacto linguístico, sejam elas a da língua segunda, a da língua estrangeira, a dalíngua crioula ou a da varieda<strong>de</strong> não nativa, comprovam que os processos <strong>de</strong>transmissão (transferência, convergência, etc.) são os mesmosin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da língua alvo em causa. Não se po<strong>de</strong> negar, todavia, aconcentração <strong>de</strong>sses mesmos estu<strong>do</strong>s na transferência negativa, ou seja, é<strong>de</strong>scura<strong>do</strong> o papel da língua materna como facilita<strong>do</strong>ra da aquisição <strong>de</strong> umalíngua adicional que certamente não tem a mesma finalida<strong>de</strong> que uma línguamaterna, ou seja, as funções linguísticas <strong>de</strong> uma língua segunda complementam asda língua primeira ou materna. A sua distinção parece residir sobretu<strong>do</strong> nascircunstâncias inerentes à sua formação e <strong>de</strong>senvolvimento, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> representarextremos opostos <strong>de</strong> um mesmo continuum.A língua adicional é para to<strong>do</strong>s os efeitos uma língua que raramente é<strong>do</strong>minada como a língua materna, já que tem o propósito <strong>de</strong> complementar esta enão <strong>de</strong> substituí-la, e pressupõe sempre um contexto <strong>de</strong> bilinguismo social ouindividual, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> número <strong>de</strong> línguas maternas e/ou adicionaisque um falante possa ter.O <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e o rápi<strong>do</strong> acesso à informação quecaraterizam a atualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s tempos em que vivemos impuseram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segundameta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> uma nova leitura <strong>do</strong>s conceitos usa<strong>do</strong>s até então para<strong>de</strong>limitar situações similares <strong>de</strong> contacto linguístico, cuja distinção só faz senti<strong>do</strong>quan<strong>do</strong> se tem em conta o aspeto diacrónico da sua formação e <strong>de</strong>senvolvimentoe/ou <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> aprendizagem. Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os continua são ti<strong>do</strong>s emconta, nota-se que os mesmos se complementam na prática, passan<strong>do</strong> a suasobreposição a fazer-se representar por um esquema complexo e dinâmico ten<strong>do</strong>em conta quer o grupo quer o indivíduo.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201232


Neves, Ana Cristina - Língua adicional: contextos e contínua 11 -37Só ten<strong>do</strong> em conta estes contextos e a forma como os mesmos secomplementam os agentes da educação po<strong>de</strong>m planear e pôr em práticaprogramas curriculares para o ensino das línguas, adicionais ou não, que garantamo sucesso <strong>do</strong>s apren<strong>de</strong>ntes.Referências bibliográficasANÇÃ, Maria Helena. Ensinar Português – entre Mares e Continentes. Aveiro:Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro, (Col. Formação <strong>de</strong> Professores – Ca<strong>de</strong>rnos Diários,Série Línguas Nº 2), 1999.CATFORD, J. C. “The Teaching of English as a Foreign Language”,1959. The Teaching of English. Quirk, R., Smith, A. H. Lon<strong>do</strong>n: Oxford UniversityPress, 1964.CHAUDENSON, ROBERT. “Towards the Reconstruction of the SocialMatrix of Creole Language”. Pidgin and Creole Linguistics. Valdman,Albert.Bloomington: Indiana University Press, 1977, pp. 259-276.CHAUDENSON, Robert. Creolization of Language and Culture (trad.Salikoko S. Mufwene et al.). Lon<strong>do</strong>n: Routledge, 2001 (2) [1992].CINTRA, Luís F. Lindley. “Situação actual da Língua Portuguesa noMun<strong>do</strong>”. Palavras. MARCELO, Lur<strong>de</strong>s (coord.). Lisboa: APP - Associação<strong>do</strong>s Professores <strong>de</strong> Português, 1983, pp. 7-19.COELHO, A<strong>do</strong>lfo. “Os dialectos românicos ou neo-latinos”. Boletimda Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Geographia <strong>de</strong> Lisboa. Lisboa: Casa da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Geographia,1881, pp. 1-70.COELHO, A<strong>do</strong>lfo. “Colónias Portuguesas”. Para a história da instruçãopopular. Coelho, A<strong>do</strong>lfo. Lisboa: Instituto Gulbenkian <strong>de</strong> Ciência (Centro <strong>de</strong>Investigação Pedagógica), 1973, pp. 189-192.CRISPIM, Lur<strong>de</strong>s. “Português, língua oficial, língua segunda”. Nortisul,nº1, Julho/Setembro 1991, pp. 15-18.33 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


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IDENTITY AND BELONGING IN THE NOVELS OFDORON RABINOVICI 1Anabela Valente SimõesUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> AveiroPortugalanabela.simoes@ua.ptAbstractThis essay analyses how the different types of memory may influence theprocess of i<strong>de</strong>ntity formation. It shall be argued that not only memories formedupon the subject’s experiences play a key role in this process; intermediated,received narratives from the past, memories transmitted either symbolically or byel<strong>de</strong>r members of the group, or, what has been meanwhile termed as“postmemory”, also play an important part in the <strong>de</strong>velopment of an individual’si<strong>de</strong>ntitary map. This theoretical framework will be illustrated with the novelisticwork of Austrian Israeli-born historian, writer and political activist DoronRabinovici (*1961). As a representative of the so-called “second generation” ofHolocaust writers, a generation of individuals who did not experience the nazigenoci<strong>de</strong> violence, but who had to form their i<strong>de</strong>ntities un<strong>de</strong>r the sha<strong>do</strong>w of sucha brutal past, Rabinovici addresses essential topics such as the intergenerationaltransmission of memory and guilt within survivor families, i<strong>de</strong>ntity formation ofsecond generation individuals (Jews and non-Jews) and the question ofsimultaneously belonging to different social, historical and linguistic contexts.1 A ve r si on of t hi s a rt ic le w a s f ir st p re se nt e d at t he “ E ig ht h I nt e rn at ion alP ost g rad u at e C onf e re nc e on C u rre nt R e se a rc h i n Au st r ia n L it e rat u re ” , he ld a t t heI nst it u t e of G e rm anic a nd R om anc e S t u d ie s, U ni ve r sit y of Lo n d on, in 2 01 1.


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55ResumoO presente artigo propõe uma reflexão sobre o mo<strong>do</strong> como os diferentestipos <strong>de</strong> memória influem no processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umindivíduo. Não serão apenas as memórias construídas a partir das experiências <strong>do</strong>sujeito que <strong>de</strong>sempenham um papel fundamental neste processo; as narrativasintermediadas, as narrativas recebidas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> – i.e., as memórias transmitidasquer através <strong>de</strong> elementos simbólicos quer através <strong>do</strong>s membros mais velhos <strong>do</strong>grupo –, em suma, as narrativas que entretanto passámos a <strong>de</strong>signar <strong>de</strong> “pósmemória”,influenciam igualmente e <strong>de</strong> forma expressiva o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>mapa i<strong>de</strong>ntitário <strong>de</strong> um indivíduo. Este enquadramento teórico será ilustra<strong>do</strong>através da obra novelística <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r, escritor e ativista político austríaco <strong>de</strong>origem judaica Doron Rabinovici (*1961). Enquanto representante da chamada“segunda geração” <strong>de</strong> escritores <strong>do</strong> Holocausto, uma geração que nãoexperienciou a violência genocida nazi, mas que formou a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sob asombra <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> tão brutal, Rabinovici aborda temas tão essenciais como atransmissão intergeracional da memória e da culpa manifestada no seio <strong>de</strong>famílias <strong>de</strong> sobreviventes, a formação i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong> segundageração (ju<strong>de</strong>us e não-ju<strong>de</strong>us) e a questão <strong>de</strong>, em simultâneo, se pertencer acontextos sociais, históricos e linguísticos tão distantes.Key words: (Post) memory, I<strong>de</strong>ntity, transgenerational after-effects of theHolocaust, Austria, VergangenheitsbewältigungPalavras-chave: (Pós)-memória, I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, efeitos transgeracionais <strong>do</strong>Holocausto, Áustria, VergangenheitsbewältigungThe Holocaust, more than any other historical or cultural factor, seems tobe the pivotal moment in post-war Jewish i<strong>de</strong>ntity. According to Matt Bunzl, “itbecame the central aspect in Jewish self-perception” (Bunzl, 2000: 156), and notonly for Israelis of Jewish confession, but also for many other members of thePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201240


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55Jewish Diaspora who continue to review themselves in the suffering of theHolocaust victims and keep on preserving the memory of all who perished. ThisDiaspora feels integrated in a global community of victims and assumes the “cultof the victim” as a unifying element, which bonds them around a commonhistorical event and provi<strong>de</strong>s them with the sense of belonging to a group thatshare a marking collective memory.The Austrian reality, nonetheless, assumes specific characteristics whichproduced a different pattern as far as the Jewish i<strong>de</strong>ntity self-reconstruction isconcerned. In Germany the crimes perpetrated during the nazi regime have beenleading to intense public discussions since the end of the war up until the presentmoment. This process of examining the past started immediately in 1945 with theNurnberg Trials and carried on in the sixties, firstly, when former SS LieutenantColonel A<strong>do</strong>lf Eichmann was captured and convicted to <strong>de</strong>ath in Israel (1961),shortly after, when the criminals of the most emblematic concentration campwere judged in the Auschwitz Trials (1963-1965) and, finally, when during the1968 contestation movements, the younger generation inquired their parentsabout their participation and guilt for the nazi crimes (Schnei<strong>de</strong>r, 2001: 327). Ona more social level, the broadcasting of Marvin Chomsky’s TV-series TheHolocaust (1979) also played an important role as far as a broa<strong>de</strong>r consciousnessof this past is concerned.It is called Verganheitsbewältigung 2 this process of confrontation and attemptto integrate and overcome the nation’s National-Socialist past, a process thatwould continue throughout the eighties with the Historians’ Debate (1986),whose main issue was the singularity, the exceptional character of the Holocaustvs. a <strong>de</strong>mand for its normalization (Augstein et al., 1987). It restarted in thenineties as a consequence of the controversial book written by the North-American second-generation Jewish historian Daniel Goldhagen, Hitler’s WillingExecutioners (1996), where it was argued that the Holocaust happened in Germanybecause Germans are en<strong>do</strong>genously an anti-Semitic social group, who perceivedpast .2 Te rm t hat d e sc r ibe s t he p roc e sse s of d e a li ng o r c o m ing t o t e rm s w it h t he41 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55the massacre of millions as a “national project”. While Goldhagen’s study foundsignificant acceptance amongst the public in general, the aca<strong>de</strong>mic community,especially in Germany, consi<strong>de</strong>red it a <strong>de</strong>ficient analysis, filled with inaccuracies(Wippermann, 1997: 99). Raul Hilberg, for example, consi<strong>de</strong>red it lacked factualcontent and logical rigour (Kamber, 2000: 157) and many other scholars criticisedits aesthetics of violence, emphatic language and style, its “pornographic”approach and excess of emotional i<strong>de</strong>ntification through forms of insensitivity,shock and voyeurism (Dean, 2004: 45).Two years later, the confrontation with the past was again un<strong>de</strong>r thespotlight when prominent German writer Martin Walser affirmed during a publicspeech that the media had been manipulating Auschwitz and that normalizationshould be claimed; as a response to those statements, the Presi<strong>de</strong>nt of the JewishCommunity, Ignatz Bubis, accused Walser of intellectual nationalism andconcealed anti-Semitism (Schirrmacher, 1999).Later on, the inauguration of the Berlin Holocaust Memorial, in 2005, wasagain the motivation for a series of disputes and discussions. It was accused ofbeing the “monumentalization of shame” (Gay, 2003: 155) and even consi<strong>de</strong>redan attempt of Germany’s self-re<strong>de</strong>mption for the perpetrated crimes(Knischewski / Spittler, 2005: 32). Despite the initial conciliatory intention, thisdiscussion proved in the end that the Holocaust is still a neuralgic spot and thatthe German national-socialist past is far from being resolved 3.In opposition to Germany, where the discussion about the crimesperpetrated during the twelve years of nazi dictatorship started in the immediatepost-war, in Austria the National-Socialist past was handled as taboo and,therefore, kept in silence. In fact, Austria suppressed this episo<strong>de</strong> from itshistorical conscience for a long period of time and kept the collaboration withthe nazi regime un<strong>de</strong>r the false myth that Austrians were also victims:Unlike Germany’s near obsession with its Nazi past, Austria’srelationship to its wartime history has remained <strong>de</strong>corously submerged,3 F or a m ore e x t e ns ive re ad i ng o n t he su bje c t , se e S im õe s, 20 09: 61 - 72.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201242


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55politely out of sight. In<strong>de</strong>ed, the post war i<strong>de</strong>ntity of Austria had beenbased upon the self-serving myth that the country was Hitler’s first victim.(Young, 1999: 7)The reality is that after the Stun<strong>de</strong> Null [zero hours] Austria and Germanytook quite different roads. After the constitution of the Second Republic, onApril 27, 1945 – at the same time as Germany was being held responsible forcrimes of genoci<strong>de</strong> –, Austria assumed a completely different position andconstructed a collective i<strong>de</strong>ntity based on the i<strong>de</strong>a of being the primary victim ofthe nazis. And, in point of fact, this was actually an attribute formally stated inthe Moscow Declaration of November 1, 1943 that consi<strong>de</strong>red Austria the firstfree country to be stricken by A<strong>do</strong>lf Hitler’s hegemonic policy when it wasannexed in March 1938. The <strong>de</strong>nial of guilt and the myth of the victim proved tobe quite convenient, both for the elite and the majority of the population as well.In fact, Austrian intellectuals seem to have not scrutinized the facts of the past,but rather <strong>de</strong>nied any connection with the perpetrated crimes, eitherpersonalizing historical responsibility in the figure of A<strong>do</strong>lf Hitler, or generallytransferring sole responsibility to the Germans.This perception, this imagined national narrative would last several<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s. The failed process of the Austrian Vergangenheitsbewältigung would finallymeet a new direction after 1986, when an unexpected revelation generated amajor political scandal and led to an in-<strong>de</strong>pth reflection about Austria’s coparticipationin the nazi crimes. The crystallized official narrative that Austria wasHitler’s first victim started then to be questioned as a consequence of the socalled“Waldheim affair”: during his election campaign, Kurt Waldheim, Austrianpresi<strong>de</strong>nt from 1986 to 1992, had to face massive accusations related to hisparticipation in the nazi regime as an SS-officer 4 . Waldheim then claimed he ha<strong>do</strong>nly “fulfilled his duty” (Uhl, 2001: 30-46).4 Of pa rt ic u l ar re le van c e i s t h e c irc u m st a nc e t hat 19 86 c am paig n w as al s oac c om pan ie d by inc re a s ing r ig ht - w ing popu l i sm , re pre s e nt e d by ÖF P ’ s le ad e r JörgH aid e r ( Au st ri an F re e d om P a r t y ) , w hose e x pli c it r ac i st and ant i - S e m it ic s pe e c he s43 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55The Lebenslüge [lie of a lifetime], the seven years of active collaborationwith Hitler’s regime, had been, therefore, concealed, recharacterized andtransformed into a national myth. As historian Günter Bischof affirms, thefounding fathers of Austria’s Second Republic invented another version of history(apud Knight, 2001: 130).On the whole, it took more than four <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s to the political, juridical andpublic recognition of Austrian Jews as Holocaust victims; forty years after thefirst legal actions against nazi criminals and the payment of compensations to thevictims residing in Germany. This change in the perception of history had a<strong>do</strong>uble effect: on the one hand, the consolidated image of the victim thatAustrians had of themselves was substituted by the image of the aggressor,particularly an aggressor that concealed its accountability; on the other hand, theAustrian Jewish community had, at last, the right to their role as unique victimsand to the opportunity to affirmatively re<strong>de</strong>fine their i<strong>de</strong>ntity as members of aglobal community of victims.These <strong>de</strong>velopments fostered the rebirth of Jewish politicalintellectual intervention. Initially through journalistic essays and opinion articlesand later through literary discourse, a group of young intellectuals were called tocomment on both Waldheim’s election and Jörg Hai<strong>de</strong>r’s populist and anti-Semitic speeches. Doron Rabinovici, Robert Schin<strong>de</strong>l, Ruth Beckermann andRobert Menasse, amongst others, are important names in this process ofconfrontation with the past. Through their writing this group of youngintellectuals aims at framing the specificities of this generation’s complex i<strong>de</strong>ntityissues such as, for example, the intergenerational transference of memory andguilt (omni)present in Jewish family relationships. Furthermore, they <strong>do</strong> not aimat representing the Holocaust, as that function belongs solely to the firstgeneration; As Helen Schruff afirms, for the second generation “die Ereignisse<strong>de</strong>r Shoah sind wie Fä<strong>de</strong>n, um die <strong>de</strong>r Stoff <strong>de</strong>r Geschichten gewebt wird, dieserandm anif e st ly <strong>de</strong> m onst r at e d t hat , <strong>de</strong> spit e t he H o loc au st , it w a s ( st i ll) p os si ble t o ad v oc at esu c h id e a s in t he Au st r ian pol it i c al f ie ld .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201244


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55Stoff ist wie<strong>de</strong>rum von <strong>de</strong>n Nachwirkungen <strong>de</strong>r Shoah gefärbt” 5 (Schruff,2000:111).On the whole, the Holocaust has left long lasting scars and, as a result, it isan indisputable i<strong>de</strong>ntitary landmark in Jewish self-perception both for survivorsas for their <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nts as well. In effect, it is not only experienced events thatplay a key role in a subject’s i<strong>de</strong>ntity formation. As a matter of fact, occurrencesor facts prior to the subject’s birth may also integrate one’s i<strong>de</strong>ntity. These pastevents can be transmitted either through the process of “communicativememory” - when the knowledge of those events is inter-generationally passed on,which happens every time el<strong>de</strong>r family members <strong>de</strong>scribe what they have actuallywitnessed or been involved in -, or through the process of “cultural memory”,which happens when events are learnt through symbolic means such as materialrepresentations (books, films, images, libraries, museums, etc) or symbolicpractices (traditions, celebrations, rituals, etc) (Assmann 1999: 50-52; Assmann2006: 51-58).“Second generation” individuals <strong>do</strong> not really bear a true memory of theevents of the Holocaust; instead, they have a form of secondary memory, anintermediated, second-hand memory which, indirectly, also belongs to them.Referring himself to these post-Holocaust artists, American aca<strong>de</strong>mic James E.Young consi<strong>de</strong>rs this is a generation that has been building an image of the pastessentially upon what he calls a “received history”, which he <strong>de</strong>scribes as follows:Their experience of the past is photographs, films, books, testimonies, etc. amediated experience, the afterlife of memory represented in history’s afterimages:the impressions retained in the mind’s eye of a vivid sensation longafter the original, external cause has been removed. (Young, 2000: 3)The representation of the past by post-Holocaust generations has also ledto a new category of memory, which Marianne Hirsch coined as “postmemory”:5 [T he e ve nt s of t he H o loc au st are li ke t hre ad s, w hic h t he f ab r ic of H i st ory i sw ove n w it h, and t hi s f ab ric i s a g ain c o lou re d by t he af t e r - e f f e c t s of t he S hoah ].45 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55Postmemory <strong>de</strong>scribes the relationship of the second generation to powerful,often traumatic experiences that prece<strong>de</strong>d their births but that werenevertheless transmitted to them so <strong>de</strong>eply as to seem to constitute memoriesin their own right. (Hirsch, 2008: 103)Postmemory, which is distinguished from memory by generational distance andfrom history by <strong>de</strong>ep personal connection, is essentially constituted uponmemories caused by the stories and images that circulate from one generation tothe next; it is in<strong>de</strong>ed a very particular form of memory, where the connection ofthe subject to his/her object would be mediated by others, by the real memorybearers. In this sense, the narrative is elaborated not having as foundation therecalling of events lived or witnessed by its author, but by imaginativeinvestment, projection, and creation. Moreover, postmemory characterizes aswell the experience of those who grew up <strong>do</strong>minated by the storytelling ofcircumstances that occurred prior to their birth and these stories are, in reality,the stories of the former generation, frequently their parents, to whom thosetraumatic events where never un<strong>de</strong>rstood, nor overcome (Hirsch, 1997: 92).In this essay I intend to focus on the work of Israeli-born Austrian Jewishwriter, essayist and historian Doron Rabinovici (*1961). Rabinovici is son ofHolocaust survivors and moved from Tel Aviv to Vienna in the mid-sixties whenhe was still an infant. His Jewish <strong>de</strong>scent, the difficulties of second generationJews in coping with their parents’ trauma, as well as Austria’s historical and socialcontext, have un<strong>do</strong>ubtedly influenced his work both as historian and as writer.As mentioned before, Doron Rabinovici is also an historian. In 2000, aftermore than a <strong>de</strong>ca<strong>de</strong> of political activism struggling against anti-Semitism andracism, he published his <strong>do</strong>ctoral thesis un<strong>de</strong>r the title Instanzen <strong>de</strong>r Ohnmacht[Authorities of Powerlessness] . Here he analyses the concrete situation of Austrian Jews who worked in the Ju<strong>de</strong>nräte 6 after the occupation and annexationof Austria into nazi Germany in 1938, often accused of having betrayed their6 The Je w is h C ou nc i ls w e re ad m ini st rat i ve se c t i ons su pe rv ise d by t he naz is,c re at e d w it h t he pu rpose of o rg an iz ing a nd m anag ing t he g a t he ring a nd su bse q u e ntd e port at ion of Je w s t o l abou r a nd c onc e nt rat i on c am p s.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201246


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55own people. In the following years he would publish other essays and historicalstudies, all centred on Jewish existence and their situation in contemporarysociety. Although the Holocaust and his Jewishness play a vital role in DoronRabinovici’s personal history and therefore in his i<strong>de</strong>ntity, the complex andcontroversial Austrian social and political <strong>de</strong>velopments over the last two <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>sare also another central piece of his self-perception.As said, Rabinovici’s particular interest in Austrian political <strong>de</strong>velopmentsgoes back to 1986. In fact, he admits it was Waldheim who brought him intopolitics and ma<strong>de</strong> him criticize some of Austria’s political issues in both hisfictional and non-fictional texts (apud Silvermann 1999, 263; Beilein 2008, 9). Atthe beginning of 2000 Rabinovici’s political activism still persisted; as an answerto the populist and racist speeches of anti-EU Jörg Hai<strong>de</strong>r, who colligated withChancellor Wolfgang Schüssel after the 1999 elections, Rabinovici gathered for<strong>de</strong>monstrations, published and posted several texts against the inclusion ofHai<strong>de</strong>r’s Free<strong>do</strong>m Party in the new Austrian government. 7 Currently he is alsoone of the organizers of the initiative “European Jewish Call for Reason” which,in its official webpage, presents their members as individuals that <strong>de</strong>spitebelonging to different geographical and cultural realities, still feel particularlybon<strong>de</strong>d with the Israeli State:We are citizens of European countries, Jews, and involved in the politicaland social life of our respective countries. Whatever our personal paths, ourconnection to the state of Israel is part of our i<strong>de</strong>ntity. We are concernedabout the future of the State of Israel to which we are unfailinglycommitted 8 .The truth is that Rabinovici belongs to two different contexts, twodifferent i<strong>de</strong>ntity constellations, which are in so many aspects contradictory. As7 S e e , f or e x am ple , R ab ino vic i. 19 99 a“ K e ine K oal it io n m it d e m R ass i sm u s” .Onl ine : ht t p: / / sy bam b. b log spo t . c om / 2004/ 0 8/ rab ino vic i - d or o n. ht m l ( ac c e s se d 26t hJanu a ry , 2 00 5) .8 ht t p: / / ww w . jc all. e u / Abou t - u s. ht m l ( ac c e sse d 2 3rd N ove m be r, 201 1) .47 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55the Jewish traumatic past seems to colli<strong>de</strong> with Austria’s attitu<strong>de</strong> towards its ownpast, Rabinovici finds himself in a difficult situation, struggling to move in twodifferent, almost antagonistic worlds. In an interview the author talks about aJewish-Self and an Austrian-Self and feels he is trapped in this duplicity, i.e. theconscience that his Jewish cultural and historical i<strong>de</strong>ntity lives together with thelinguistic and social i<strong>de</strong>ntity of the country he inhabits (Rabinovici, 1999b). Thefeeling of belonging to a set of traditions and cultural aspects coexists with afeeling of bonding with a country where he speaks and writes in the language ofthe perpetrators. It is in this ambivalence, in this difficult and problematicexistence that he has to search and build his i<strong>de</strong>ntity – an i<strong>de</strong>ntity that isinevitably multi-layered, hybrid and fragmented.These questions are also represented in Rabinovici’s novelistic work,which consists so far of the texts Suche nach M. (1997), Ohnehin (2004) and, morerecently, An<strong>de</strong>rnorts (2010). Common <strong>de</strong>nominator is the topic of i<strong>de</strong>ntityconstitution of Jewish post-war generations, more specifically, in the context ofAustria historical and social <strong>de</strong>velopments.Suche nach M. (Seach for M.) essentially portrays the intergenerationaltransmission of trauma, memory and guilt within survivor families, where therewas a consensual pattern of silence about the traumatic experiences of the past –the so-called “conspiracy of silence”, registered in various studies on thepsychological after-effects of the Holocaust. Protagonists are Dani Morgenthauand Arieh Scheinowitz, whose parents have both turned their backs to the pastand refused to <strong>de</strong>scribe it to their children. As Dani observes, “dieVergangenheit <strong>de</strong>s Vaters lag im Dunkel seines Schweigens. Es war, als verbergeer sich noch in jenem Versteck am Warschauer Stadtrand” 9 (Rabinovici, 1997:29). From here one may conclu<strong>de</strong> that silence <strong>do</strong>es not mean that the past isovercome, but rather that there is an incapacity to confront it: “Woran seine9 [The f at he r ' s p ast re st e d i n t he d arkne ss of h is si le nc e . It w as as if he is st i llu nd e rg rou nd i n a h id ing - p lac e i n t he War saw su bu rb s. ]Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201248


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55Eltern sich nicht erinnern wollten, wovon zu re<strong>de</strong>n sie mie<strong>de</strong>n, konnten sie inallen Deutlichkeit nicht vergessen” 10 (I<strong>de</strong>m: 30).Particularly critical to this first generation is the fact that they must notonly live with their haunted memories of the past, but they need as well to live ina country that had long forgotten its own crimes. In a clear allusion to Austria’sNational-Socialist past, the narrator ironically adds: “Schuldige durften nicht zufin<strong>de</strong>n sein in einem Land, das allgemeine Unbeflektheit beanspruchte” 11 (I<strong>de</strong>m:47); in another passage of the novel the same question is again raised “Wer, sofragten einzelne Großväter mit zittern<strong>de</strong>m Zeigefinger, wäre in <strong>de</strong>r Stadt und indiesem Land <strong>de</strong>nn frei von Schuld?” 12 (I<strong>de</strong>m: 182).According to his parents Dani must assume a particular role: on the onehand he must assimilate, be like every other child; on the other hand, he must notforget he is different, that he has a historical and familiar legacy. His personali<strong>de</strong>ntity must therefore occupy a secondary position and give place to a veryspecific social function: neither forget the past, nor dishonor the <strong>de</strong>ad. This<strong>de</strong>mand would lead to profound feelings of guilt and Dani then turns into themysterious, shrou<strong>de</strong>d figure of Mullemann, a mummy-like character whoassumes the guilt for every crime perpetrated in the country. Affected by thetransference of his parents’ traumas, by his parents’ feelings of guilt for havingsurvived, Dani seeks a form of catharsis for the mistakes he feels he might havecommitted.In Ohnehin (Anyway), the figure of Lew Feiniger, a second-generationRussian Jew, portrayed as the son who has had to fulfil the projections andaspirations of a family that lost everything during the nazi persecution, representssome of these complexities as well. However, the range of presented i<strong>de</strong>ntities ishere much wi<strong>de</strong>r; not only first and second generation Jews, but also Gentiles,10 [ What hi s p are nt s did not w ant t o re m e m be r, w h at t he y a vo id e d t al ki ngabou t , t he y c ou ld obv iou sly n ot f org e t . ]11 [ C u lpr it s w e re not t o be f ou nd in a c ou nt ry t hat c l aim e d g e ne ra lf au lt le s sne ss. ]12 [ Who, as ke d som e g rand f at he r s w it h a t re m bli ng f ing e r , w ou ld be in t he c it yand in t hi s c ou nt ry f re e f rom g u ilt ? ]49 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55legal and illegal immigrants, as well as nazi perpetrators and their children areinclu<strong>de</strong>d in the narrative.Set in the significant year of 1995, it <strong>de</strong>velops in the picturesqueNaschmarkt, <strong>de</strong>scribed as a “world apart, an island in the centre of themetropolis” (Rabinovici, 2004: 8), a world that resembles the mythical Babelwhere already for centuries not only German, but also Italian, Yiddish, Greek,Turk, Serbian or Polish have been commonly spoken languages. In thispolyphonic world the rea<strong>de</strong>r meets various characters, who with theirinternational origins transform Vienna into a transnational stage, especially thismarket, which is pictured as the epicentre of multiculturalism, as a global village.It seems the face of globalization, “the locus amoenus of cultural pluralism”(Beilein, 2008: 97) and a mo<strong>de</strong>l of the broa<strong>de</strong>r world market we all live in. In fact,on a superficial glance there seems to be a perfect symbiosis between all thoseforeign individuals and Vienna itself. It is as if all those (im)migrants weresuccessfully integrated, as if they really fit in or have their place there. Thisportrait is nonetheless an illusion. In reality that entire multicultural scenario is a<strong>de</strong>ceit and those individuals are in a precarious situation, being left in the margin,elaborating their peripheral i<strong>de</strong>ntities.The text starts with a sentence that would be constantly repeatedthroughout the 10 chapters of the novel: “Einmal muβ Schluβ sein. Genug <strong>de</strong>rLeichenberge, fort mit Krieg und Verbrechen”13 (Rabinovici, 2004:7), complainsneurologist Stefan Sandtner, the protagonist, as he watches the news about theBalkan War and the anniversary of the liberation of Auschwitz. One of the axesof the narrative takes place as Sandtner diagnoses Herber Kerber, an 80-year-oldformer SS officer, Korsakoff syndrome: he believes he is in 1945 and <strong>do</strong>esn’trecognize anybody from the present, not even his children. The acknowledgmentof old Kerber’s involvement in the nazi genoci<strong>de</strong> makes his daughter Bärbl feelindignation, shame and repulse. In her <strong>de</strong>spair she stages a “private court”(Beilein, 2008: 96) and <strong>de</strong>mands recognition of guilt from her father. As the old13 [I t has t o c om e t o an e nd som e t im e . That ’ s e nou g h of pile s o f c orpse s, w arand c rim e s. ]Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201250


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55man states he was just following or<strong>de</strong>rs and that that speech about Holocaustcrimes would have to come to an end sometime, Bärbl infuriates and rages at herprogenitor.Bärbl’s difficult situation worsens when she meets Stefan’s friend LewFeiniger, a second-generation Russian Jew, portrayed as the son who has had tofulfil the projections and aspirations of a family that lost everything during thenazi persecution. When the daughter of the nazi officer faces the son of theJewish victim, she cannot avoid discomfort and anxiety. She distances herselffrom her father’s actions and suggests she feels certain i<strong>de</strong>ntification with him:“Die Kin<strong>de</strong>r von Tätern und Opfern haben ja viele Gemeinsamkeiten” 14(Rabinovici, 2004: 117). But Lew repudiates such a philo-Semitic approach(Beilein, 2008: 100), loses his temper with what he feels is an attempt of solidarityand refuses any dialogue with such group of people. Lew’s reaction essentially<strong>de</strong>monstrates how reluctant this generation is in accepting that the children ofperpetrators could also be victims of the same past – which they can, accordingto several psychological studies 15 . The <strong>de</strong>nial of this circumstance corroboratesthe assumption that the memory of the Holocaust is essentially a hereditarymemory, whose intensity seems not to fa<strong>de</strong> away among those who actually didnot witness it, but grew up haunted by its omnipresence in everyday life.More recently, Rabinovici published his acclaimed novel An<strong>de</strong>rnorts[Elsewhere], which would be shortlisted for the German Book Prize 2010. Hereagain the topics of origin, i<strong>de</strong>ntity and belonging are crucial for the protagonist,Ethan Rosen, an Israeli social scientist working at a university research centre inVienna interested in <strong>de</strong>bating the memory of the Shoah.The first two novels are particularly critical of the attitu<strong>de</strong>s the Austriangovernment and civil society have assumed throughout the years towards theJewish and immigrant communities. Quite surprisingly, in the third novelRabinovici shifts the object of his criticism and satirizes Israel and the Israelis,parting thus himself from the romantic image of someone who lives in the14 [The c hi ld re n of pe rpe t r at or s a nd vic t im s d o h ave a lot in c om m on. ]15 S e e , f or e x am ple , BE R G M ANN , M art in S . and M ilt on E . JUC OVY ( e d s) .19 82. Ge n e rat ion s of t h e Holocau s t. N e w Y ork: C olu m bia Uni ve r si t y P re ss.51 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55Diaspora and yearns for the return to the Promised Land. In fact, Rabinovicirefuses the i<strong>de</strong>a of Diaspora and consi<strong>de</strong>rs that all Jews spread throughout theworld are evi<strong>de</strong>nce of a less mythical phenomenon: the globalization (Kaukoreit,2004). In the end Rabinovici’s novelist work illustrates the i<strong>de</strong>a of i<strong>de</strong>ntitaryduplicity I have sketched before and <strong>de</strong>monstrates how none of his Selves is freefrom scrutiny.Simultaneously serious but also filled with humour, An<strong>de</strong>rnorts presents, onthe one hand, the i<strong>de</strong>ntitary complexities of a Viennese Jew who lives in alifelong intellectual journey between cultures. On the other hand, there are quiteabsurd and hilarious situations such as the <strong>de</strong>sire of a Rabbi from an Ortho<strong>do</strong>xsect to clone the Messiah or the passage about Rosen’s return flight from TelAviv to Vienna, where he had been for the burial of his fatherly mentor DovZe<strong>de</strong>ck, who had fled from Austria in 1930s. As follows, the narrator presents aquite satirical portrait of the Israeli State, marked both by mo<strong>de</strong>rnity andreligiosity:Links neben ihm eine Frau, Mitte Siebzig, mit wachsweiβ geschminktenGesicht, eine Echse mit Krokodille<strong>de</strong>rtasche, das Haar platinblond. […]Sie trug ein karminrotes Damastkostüm mit stumpfgol<strong>de</strong>nen Knöpfen,eingewebt in <strong>de</strong>n Sei<strong>de</strong>nstoff glänzten Blumengirlan<strong>de</strong>n. Ethan Rosenfühlte sich an chinesische Tapetenmunster in Versailles erinnert 16 . […]Der Ortho<strong>do</strong>xe wippte vor und zurück, fe<strong>de</strong>rte in <strong>de</strong>n Knien und begannmit einem Headbanging, als gehöre er einer Hard-Rock-Band an, auchwenn seine herum hüpfen<strong>de</strong>n Schläfenlocken eher an die Dreadlocks <strong>de</strong>rRastafaris erinnerten 17 . (Rabinovici, 2010: 13-14; 17)16 [ On h is le f t a w om an, in he r m id - se ve nt ie s w it h a w ax - w hit e , m ad e - u p f ac e ,a l iz ard w it h a c roc od i le h an d bag , ha ir plat inu m bl ond e . [ …] S he w as w e aring ac arm ine re d, dam a sk su it w it h g o ld bu t t ons; t he si lk m at e ria l g lit t e re d w it h t heg arl and s of f low e r s w o ve n int o it . E t han R o se w a s re m ind e d of t he C hine se w al lp ape rpat t e rn in Ve r sa il le s. ]17 [ The Ort hod ox Je w sw u ng bac k and f ort h, bou nc e d w it h t he kne e s an dbe g an a he ad ba ng i ng t hat lo o ke d as he be l ong e d t o a hard roc k b and e ve n if h isbobb ing s he e p’ s c u rl s re m i nd e d of a R ast af a ria n. ]Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201252


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55The text <strong>do</strong>es raise some controversial questions as well: Why, while Jewsmay criticize the way the Holocaust is remembered (I<strong>de</strong>m: 48) and young Jewsmay visit Holocaust sites and show disrespect (I<strong>de</strong>m: 41), would non-Jews beimmediately consi<strong>de</strong>red anti-Semitic if they assumed similar positions? Why can’tIsrael’s actions against Palestine be openly con<strong>de</strong>mned? Are Israelis, due tosingularity of their past, un<strong>de</strong>r no judgment? Why may Israelis straightforwardlyassume that all Austrians are (still) nazis (I<strong>de</strong>m:104)? Why must Rosen feeluncomfortable because as a Jew he feels freer in Austria than in his homeland,Israel, where he feels suffocated (I<strong>de</strong>m:100)?For professional reasons Rosen is always elsewhere, moving quickly betweendifferent countries and continents; for personal reasons, Rosen is also constantlymoving back and forth, between Austria and Israel, the place where his parentsestablished after having survived Auschwitz. His (almost real) Doppelgänger,Doron Rabinovici himself, seems to fit in this same profile of a subject builtupon a set of multiple i<strong>de</strong>ntifications, upon various i<strong>de</strong>ntitary constellations, aninhabitant of two different worlds where, <strong>de</strong>spite the cleavages, hesimultaneously belongs to.Referências bibliográficasAUGSTEIN, Ru<strong>do</strong>lf et al.. 1987. Historikerstreit. Die Dokumentation <strong>de</strong>r Kontroverseum die Einzigartigkeit <strong>de</strong>r nationalsozialistischen Ju<strong>de</strong>nvernichtung. München:Piper Verlag.ASSMAN, Aleida. 2006. Der lange Schatten <strong>de</strong>r Vergangenheit. Erinnerungskultur undGeschichtspolitik. München: C.H. Beck.ASSMAN, Jens. 1992. Das kulturelle Gedächtnis. Schrift, Erinnerung und politischeI<strong>de</strong>ntität in frühen Hochkulturen. München: C.H. Beck.BEILEIN, Matthias. 2008. “Auf diesem Markt ist Österreich: DoronRabinovici’s ‘Ohnehin’”. National I<strong>de</strong>ntities and European Culture, ed. byManuel Barbeito et al., 93-104. Bern: Peter Lang.BUNZL, Matti. 2000. “Die Wiener Jahrhun<strong>de</strong>rtwen<strong>de</strong> und die Konstruktionjüdischer I<strong>de</strong>ntitäten in <strong>de</strong>r Zweiten Republik”. Erinnerung als Gegenwart53 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39–55jüdische Ge<strong>de</strong>nkkulturen, ed. by Sabine Hödl and Eleonore Lappin, 149-72.Berlin: Philo.DEAN, Carolyn. 2004. The Fragility of Empathy after the Holocaust. Ithaca andLon<strong>do</strong>n: Cornel University Press.GAY, Caroline. 2003. “The Politics of Cultural Remembrance: The HolocaustMonument in Berlin”. International Journal of Cultural Policy 9.2. 153-166.GOLDHAGEN, Daniel. 1996. Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans andthe Holocaust. New York: Knopf.HIRSCH, Marianne. 1997. Family Frames: Photography, Narrative and Postmemory.Cambridge: Harvard University Press.. 2008. “The Generation of Postmemory”. Poetics Today 29.1. Porter Institutefor Poetics and Semiotics. 103-128.KAMBER, Richard. 2000. “The logic of the Goldhagen <strong>de</strong>bate”. Res Publica 6.155-177.KAUKOREIT, Volker. 2004. “Viele Fragen. Doron Rabinovici: Ohnehin”.Büchermarkt, Deutschlandfunk. Online:http://www.dradio.<strong>de</strong>/dlf/sendungen/buechermarkt/289513.KNIGHT, Robert. 2001. “The Austrian State Treaty and beyond”. ContemporaryEuropean History 10. 1. 123-42.KNISCHEWSKI, Gerd and Ulla SPITTLER. 2005. “Remembering in the BerlinRepublic: The <strong>de</strong>bate about the central Holocaust memorial in Berlin”.Debatte 13.1. 25-43.RABINOVICI, Doron. 1997. Suche nach M.. Frankfurt am Main: Suhrkamp..1999a . “Keine Koalition mit <strong>de</strong>m Rassismus”. Online:http://sybamb.blogspot.com/2004/08/rabinovici-<strong>do</strong>ron.html.. 1999b. “Doron R. und D. Rabinovici. Der nationale Doppler”. Online:http://www.hagalil.com/archiv/99/10/austria.htm.. 2004. Ohnehin, Frankfurt am Main: Suhrkamp.. 2010. An<strong>de</strong>rnorts. Berlin: Suhrkamp.SCHIRRMACHER, Frank. 1999. Die Walser-Bubis-Debatte: EineDokumentation. Frankfurt am Main: Suhrkamp.SCHNEIDER, Christian. 2001. “Erbschaft <strong>de</strong>r Schuld? Der Diskurs über dieNS-Vergangenheit in <strong>de</strong>n <strong>de</strong>utschen Nachkriegsgenerationen”. DieLebendigkeit <strong>de</strong>r Geschichte. (Dis-) Kontinuitäten in Diskursen über <strong>de</strong>nNationalsozialismus, ed. By Eleonore Lappin and Bernard Schnei<strong>de</strong>r, 324-35. St Ingbert: Röhrig Universitätverlag.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201254


Simões, Anabela Valente – I<strong>de</strong>ntity and belonging in the novels of Doron Rabinovici 39 –55SCHRUFF, Helene. 2000. Wechselwirkungen. Deutsch-jüdische I<strong>de</strong>ntität in erzählen<strong>de</strong>rProsa <strong>de</strong>r ‘zweiten Generation’. Hil<strong>de</strong>sheim, Zürich, New York: Georg OlmsVerlag.SILVERMANN, Lisa. 1999. “Der richtige Riecher: the reconfiguration of Jewishand Austrian i<strong>de</strong>ntities in the work of Doron Rabinovici”. The GermanQuarterly 72. 3. 252-64.SIMÕES, Anabela Valente. 2009. O lugar da memória na obra <strong>de</strong> jovens autores <strong>de</strong>expressão alemã. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiro: PhD diss.UHL Hei<strong>de</strong>marie. 2001. “Das ‛erste Opfer’. Der österreichische Opfermythosund seine Transformationen in <strong>de</strong>r Zweiten Republik”. ÖsterreichischeZeitschrift für Politikwissenschaft 30.1.19-34.WIPPERMANN, Wolfgang. 1997. Wessen Schuld? Vom Historikerstreit zurGoldhagen-Kontroverse. Berlin: Elefanten Press.YOUNG, James E. 1999. “Memory and Counter-Memory. The End of theMonument in Germany”. Harvard Design Magazine. 9. 1-10.. 2000. At memory’s edge: after-images of the Holocaust in contemporary art andarchitecture. New Haven: Yale University Press.55 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


WORK IN PROGRESS:REPRESENTAR O OUTRO SEGUNDO O PENSAMENTOANTROPOFÁGICOCASOS DE ESTUDO - HANS STADEN E LES MAÎTRES FOUSCarina CerqueiraCEI – Centros <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s InterculturaisInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoPortugalina_nocas@hotmail.comResumoO presente artigo analisa o filme <strong>de</strong> Luis Alberto Pereira «Hans Sta<strong>de</strong>n»(1999), basea<strong>do</strong> no livro <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n «Duas Viagens ao Brasil» (1557), e o<strong>do</strong>cumentário/filme «Les Maîtres Fous» (1955) <strong>de</strong> Jean Rouch, ten<strong>do</strong> emconsi<strong>de</strong>ração o pensamento antropofágico. Estas obras focalizam o choquecultural entre “civiliza<strong>do</strong>” e “selvagem”, entre ritual canibal e ritualantropofágico, entre o «Nós» e os «Outros», encontros que permitem uma análisemais concreta à concepção <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>. A representação cinematográficapermite uma aproximação ao conceito antropofágico <strong>de</strong> apropriação da culturaexterna, para posteriormente a reproduzir numa interpretação segun<strong>do</strong> aconcepção oci<strong>de</strong>ntal <strong>do</strong> que figuram os rituais em questão. O MovimentoAntropófago, pelo seu carácter vanguardista, concilia a matriz funda<strong>do</strong>rabrasileira e ao mesmo tempo enaltece a irreverência <strong>de</strong> análise, e neste artigoserve <strong>de</strong> fundamento teórico e prático à <strong>de</strong>composição <strong>do</strong>s exemplos. Opensamento antropófago e a sua aplicabilida<strong>de</strong> aos exemplos selecciona<strong>do</strong>spermitem também aprofundar o estu<strong>do</strong> sobre o imaginário europeu enquantorecriação <strong>de</strong> relatos data<strong>do</strong>s <strong>de</strong> viajantes ou coloniza<strong>do</strong>res, pois a manutenção <strong>de</strong>um acervo estereotipa<strong>do</strong> historicamente serve como forma <strong>de</strong> “legitimar”


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74concepções. As duas obras focalizam a representação indígena e africana - o“selvagem” - na construção <strong>do</strong> imaginário oci<strong>de</strong>ntal - “civiliza<strong>do</strong>” - dicotomiaque nos permite <strong>de</strong>smistificar relações interculturais.AbstractThis article analyzes the film by Luis Alberto Pereira «Hans Sta<strong>de</strong>n»(1999), based on the book by Hans Sta<strong>de</strong>n «Two Trips to Brazil» (1974), and the<strong>do</strong>cumentary/film «Les Maîtres Fous» (1955) by Jean Rouch, taking into accountthe anthropophagic thought. These works focus on the cultural clash between“civilized” and “wild”, among cannibalistic rituals and anthropophagy, between«Us» and the «Other», a meetings that allows a more concrete conception of thealternity concept. The film allows an approach to the anthropophagic concept ofappropriation of a foreign culture. After, a process of analysis, the Westernconcept plays its own interpretation of the listed rituals. The anthropophagymovement, due to its innovative character, combines the Brazilian origin andsimultaneously enhances the irreverence of analysis. This is the theoretical andpractical basis for the <strong>de</strong>composition of the examples. Cannibal thought and itsapplicability to the selected examples also allow further study on the Europeanimagination as a recreation of reports dating from travelers and settlers, whichmaintain a historical stereotype that has become a form of concept“legitimation”. Both works focus on the representation of indigenous andAfrican people - the “savage” - in the construction of the western imagination -“civilized” - a dichotomy that allows us to <strong>de</strong>mystify intercultural relations.Palavras-chave: pensamento antropófago; representação; interculturalida<strong>de</strong>;alterida<strong>de</strong>; «Hans Sta<strong>de</strong>n»; «Les Maîtres Fous».Keywords: cannibal thought; representation; interculturality; alterity;«HansSta<strong>de</strong>n»; «Les Maîtres Fous».Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201258


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74Em «Hans Sta<strong>de</strong>n» através da narrativa po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r acontextualização da vivência indígena, as suas tradições, os seus saberes, a suaestrutura social. Contu<strong>do</strong>, este é um olhar unilateral, que escolhe a forma <strong>de</strong>apresentar tais acções e como tal <strong>de</strong>termina a linha interpretativa.Também no segun<strong>do</strong> exemplo, em «Les Maîtres Fous», entra emconfronto a visão oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> quem retrata a acção gravada, neste caso, oantropólogo, e a acção <strong>do</strong>s intervenientes africanos no ritual <strong>de</strong> possessão.Para compreen<strong>de</strong>rmos a opção tomada, carece ainda referir a importância<strong>do</strong> primeiro filme «Hans Sta<strong>de</strong>n», como representação <strong>do</strong> conceito associa<strong>do</strong> aomovimento antropófago. A expressão <strong>de</strong>scrita no filme retrata a acção canibalexecutada pela comunida<strong>de</strong> indígena, inicialmente tabu, é posteriormenteutiliza<strong>do</strong> pelo Movimento Antropofágico como representação da <strong>de</strong>glutiçãocultural que a nação brasileira <strong>de</strong>ve executar aquan<strong>do</strong> da absorção <strong>de</strong> culturaexterna. Da mesma forma, também os «Rituais Hauka», apresenta<strong>do</strong>s em «LesMaîtres Fous», representam a <strong>de</strong>glutição <strong>do</strong>s cerimoniais culturais militaresbritânicos para posteriormente serem adapta<strong>do</strong>s à contextualização <strong>de</strong> carizcultural africano. Estas <strong>de</strong>monstrações apoiadas na hierarquização das categoriasétnicas permitem revelar a intensa importância atribuída à alterida<strong>de</strong>.Pela ambiguida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s textos analisa<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong>mos encontrar diversasvisões histórico-culturais <strong>do</strong>s intervenientes, paralelamente, manifestações <strong>de</strong>apoio e/ou <strong>de</strong> repúdio. A literalida<strong>de</strong> das palavras ou das imagens não são ummeio simples ou directa, antes pelo contrário, são representações <strong>de</strong>intertextualida<strong>de</strong>s culturais próprias, intrinsecas à construção i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> cadasocieda<strong>de</strong>. A interacção entre os diversos «Outros» e «Eus» ao longo dasrepresentações pictóricas salientam a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações, inerentes àrelação intercultural aqui estabelecida.Neste artigo, em presente <strong>de</strong>senvolvimento, proponho uma análise <strong>do</strong>s<strong>do</strong>cumentos históricos «Hans Sta<strong>de</strong>n» e «Les Maîtres Fous», apresenta<strong>do</strong>ssegun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico. Estamos claramente na presença <strong>de</strong> umainteracção intercultural passível, através da <strong>de</strong>glutição antropogágica, <strong>de</strong> serassimilada e culturalmente adaptada.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201260


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74Na estrutura <strong>do</strong> artigo, começo com uma sucinta resenha <strong>do</strong> percurso <strong>do</strong>Movimento Antropofágico. Procuran<strong>do</strong> aprofundar o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s exemplosescolhi<strong>do</strong>s, em seguida, focalizo a interpretação <strong>do</strong> filme «Hans Sta<strong>de</strong>n» seguin<strong>do</strong>o pensamento antropofágico.Optei por analisar em primeiro lugar o filme «Hans Sta<strong>de</strong>n». A obra <strong>de</strong>Luis Alberto Pereira baseia-se, muito linearmente, na produção original escritapelo navega<strong>do</strong>r Hans Sta<strong>de</strong>n, publicada em 1557, sen<strong>do</strong> esta datada e anterior àprodução <strong>de</strong> Jean Rouch.Posteriormente, analiso o <strong>do</strong>cumentário/filme «Les Maîtres Fous», on<strong>de</strong>procuro aprofundar a interacção entre concepção oci<strong>de</strong>ntal e africana,repercutida nos rituais <strong>de</strong> possessão literal e cultural.Movimento AntropófagoO Movimento Antropófago surge no Brasil na década <strong>de</strong> 1920, assente naprodução intelectual <strong>de</strong> Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (1890 – 1954). O autor começou porapresentar i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> vanguarda no Manifesto da Poesia Pau-Brasil 1 . Contu<strong>do</strong>, é em1928 que, <strong>de</strong> forma mais concreta e <strong>de</strong>senvolvida, na casa <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>(1893 – 1945), também ele apoiante e produtor <strong>de</strong> representações <strong>do</strong> movimento,lê aquele que se tornou o pináculo da significação antropófaga – O ManifestoAntropófago. Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> também fun<strong>do</strong>u a Revista <strong>de</strong> Antropofagia (1928 –1929) com os amigos e apoiantes <strong>do</strong> movimento, Raul Bopp (1898 – 1984) eAntônio <strong>de</strong> Alcântara Macha<strong>do</strong> (1901 – 1935).O autor utiliza a antropofagia enquanto representação da acção <strong>de</strong> <strong>de</strong>glutira cultura externa. Muito mais <strong>do</strong> que simplesmente imitar sem restrições a culturaalheia ao Brasil, o seu povo <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>glutir e criticamente adaptar à <strong>de</strong>scendênciaindígena.1 O Man if e s t o da Po e s ia P au -B ras il f oi e sc rit o po r Osw a ld d e Andrad e , pu blic ad ope lo C o rre io da M an h ã , a 1 8 d e M arç o d e 1 92 4. N e le o au t or e x pre ssa a s p rim e i ra slin has d aq u e le q u e vi ri a a se r a e x pre s são d o m ov im e nt o ant r o póf ag o. At rav é s d e u m apoe s ia n a if , pr im it i va, pau t av a o re g re ss o ao or ig ina l e e spont â ne o, a poi ad o n ovang u a rd i sm o e na q u e br a d e c o nve nç õe s.61 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74Basea<strong>do</strong> na acção literal, o movimento antropófago absorve a acçãocanibal, que é um ritual <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela cultura indígena, on<strong>de</strong>, através da<strong>de</strong>glutição literal <strong>do</strong> inimigo, os índios po<strong>de</strong>riam absorver e <strong>de</strong>stituí-los <strong>do</strong>s traçosfortes, <strong>de</strong>sta forma, po<strong>de</strong>riam apo<strong>de</strong>rar-se <strong>do</strong> seu conhecimento.Na proveniência <strong>de</strong>ste Movimento, exclusivamente brasileiro, surge, maistar<strong>de</strong>, o Concretismo, 2 com os irmãos Augusto (1931) e Harol<strong>do</strong> <strong>de</strong> Campos(1929 – 2003), <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma vanguardista a poesia brasileira emarcan<strong>do</strong> uma geração. Na música brasileira, surge o Tropicalismo e a Bossa Novacomo casos expressivos da representação antropófaga. Bossa Nova é umsubgênero musical que <strong>de</strong>riva <strong>do</strong> samba, contu<strong>do</strong>, contém uma forte influência<strong>do</strong> jazz produzi<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América, numa ação clara <strong>de</strong> absorçãocrítica da cultura externa. Surge no final da década <strong>de</strong> 1950 no Rio <strong>de</strong> Janeiro,enquanto cida<strong>de</strong> berço, fazen<strong>do</strong>-se sentir posteriormente por to<strong>do</strong> o país. Umadas formas musicais populares brasileiras mais influentes tem como expoentemáximo João Gilberto (1931), Vinicius <strong>de</strong> Moraes (1913 – 1980) e AntônioCarlos Jobim (1927 – 1994).O Tropicalismo ou Movimento Tropicalista surge enquanto produção musicalbrasileira, uma corrente artística <strong>de</strong> vanguarda, influenciada pela cultura pop,tanto nacional como estrangeira. Datada <strong>do</strong> final da década <strong>de</strong> 1960, tornou-seum movimento revolucionário contra o regime militar <strong>de</strong> Getúlio Vargas (1882 –1954). Os principais expoentes <strong>de</strong>ste movimento, na música, estão associa<strong>do</strong>s anomes tão relevantes como Caetano Veloso (1942), Gilberto Gil (1942), “OsMutantes” e Tom Zé (1936), sen<strong>do</strong> que é da autoria <strong>de</strong> Caetano Veloso a<strong>de</strong>nominada «Tropicália», a canção <strong>do</strong> movimento.O canibalismo, enquanto acção literal <strong>de</strong> <strong>de</strong>glutir o outro, foi <strong>de</strong>scrito porHans Sta<strong>de</strong>n (1525 – 1579), aquan<strong>do</strong> da sua visita forçada ao seio <strong>do</strong>s índios.Inseriu-se no imaginário <strong>do</strong>s povos oci<strong>de</strong>ntais, crian<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finição perniciosa <strong>do</strong>“selvagem”, que vive na mata e come pessoas. A ausência <strong>de</strong> contextualizaçãofomentou o surgimento <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> mitos, que através <strong>do</strong> pensamento2 C onc re t i sm o f o i u m m ov im e nt o in ov ad or su rg id o e m 1 9 53 no Bra si l. A poi ad ona prod u ç ão d o m ovim e nt o an t ropóf ag o, d e f e nd ia a rac ion al i d ad e aplic ad a às a rt e s.E nc ont rou re pre se nt aç õe s n a m ú sic a , p oe s ia e n as a rt e s p lá st ic as.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201262


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74antropofágico, po<strong>de</strong>m agora ser reanalisa<strong>do</strong>s, adapta<strong>do</strong>s à produção intelectual eaprofunda<strong>do</strong>s numa perspectiva <strong>de</strong> cariz cultural e social.Ritual antropófago e Representação intercultural – o caso <strong>de</strong> «HansSta<strong>de</strong>n»O relato histórico original <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n (1525 – 1579), retrata<strong>do</strong> nofilme <strong>de</strong> co-produção luso-brasileira, representa uma visão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> indígenaatravés da percepção oci<strong>de</strong>ntal. A obra original <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n foi publicada em1557 e tornou-se relevante no panorama da época, pois foi uma das primeiras<strong>de</strong>scrições prolongadas, com imagens (xilogravuras), <strong>de</strong> um contacto directo comos indígenas brasileiros, crian<strong>do</strong> ainda umas das primeiras “imagens” oci<strong>de</strong>ntaissobre o Brasil.Hans Sta<strong>de</strong>n foi um navega<strong>do</strong>r mercenário, natural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Hesse,na Alemanha. Fez duas viagens ao Brasil e, na segunda vez, foi captura<strong>do</strong> naselva por indígenas brasileiros. Consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> português, pertencente à ArmadaColoniza<strong>do</strong>ra Portuguesa, foi rapidamente classifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> inimigo e trata<strong>do</strong> comotal. Inicialmente foi <strong>de</strong>sacredita<strong>do</strong> pelos Franceses, mas mais tar<strong>de</strong>, ao fim <strong>de</strong> 9meses <strong>de</strong> cativeiro, foi salvo pela caravela francesa ‘Catherine <strong>de</strong> Vetteville’,capitaneada por Guillaume Moner. De regresso ao mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal, escreveu assuas memórias em alemão, traduzidas posteriormente em várias línguas.Como homem <strong>de</strong> fé que afirmava ser, Hans Sta<strong>de</strong>n enaltece o seuluteranismo e advoga a religião como o seu único auxílio durante a época <strong>de</strong>cativeiro.Após a sua publicação, a obra captou a atenção <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,várias traduções e readaptações foram surgin<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sta forma, reafirman<strong>do</strong> aimportância <strong>de</strong>ste <strong>do</strong>cumento no panorama da interpretação cultural. A obraoriginal, assim como as suas reinterpretações, representam diversas formas <strong>de</strong><strong>de</strong>glutição cultural, pela subjectivida<strong>de</strong> interpretativa que enquadram nas suaslinhas.63 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74A interculturalida<strong>de</strong> é uma constante ao longo <strong>de</strong>sta narrativa, assim comoa análise comportamental, a análise antropológica e a necessária consi<strong>de</strong>raçãoantropófaga.Deveremos contu<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rar a proveniência <strong>de</strong>sta narração, pois advêmda visão única <strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal, numa espécie <strong>de</strong> interpretação fragmentada. Ooci<strong>de</strong>ntal fala sobre o índio, como se fosse o próprio índio, chegan<strong>do</strong> até a<strong>de</strong>finir-lhe as próprias falas. Neste caso, é Hans Sta<strong>de</strong>n que elabora opensamento e o discurso <strong>do</strong>s indígenas, numa produção unilateral.Focalizan<strong>do</strong> o filme «Hans Sta<strong>de</strong>n»Os Tupiniquins são um grupo indígena brasileiro pertencente à naçãoTupi, que habita o actual município <strong>de</strong> Aracruz, a norte <strong>de</strong> Espírito Santo.Tupinambá refere-se a uma nação <strong>de</strong> índios utiliza<strong>do</strong>res da Língua Tupi. Quan<strong>do</strong>se fala em Tupinambás está-se a referir as tribos que fizeram parte daConfe<strong>de</strong>ração <strong>do</strong>s Tamoios, sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s seus objectivos lutar contra osportugueses, também conheci<strong>do</strong>s como ‘péros’. Apesar <strong>de</strong> terem raízes comuns,as diversas tribos que compunham a nação Tupinambá lutavam constantementeentre si, movidas por um intenso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança que resultava sempre emguerras sangrentas, em que os prisioneiros eram captura<strong>do</strong>s para serem<strong>de</strong>vora<strong>do</strong>s em rituais antropofágicos.O filme começa com a narração em alemão pelo actor Carlos Evelyn, queinterpreta Hans Sta<strong>de</strong>n, e legendagem em português <strong>do</strong> Brasil. Nele estãoretratadas as <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong> prisioneiro às mãos <strong>do</strong>s indígenas.No início assistimos à violência, à humilhação, à subjugação <strong>do</strong> «Outro».Posteriormente o prisioneiro consegue criar uma espécie <strong>de</strong> mito à volta da suafé, apoian<strong>do</strong>-se na ignorância e tolerância religiosas <strong>do</strong>s indígenas para se mantervivo. Hans Sta<strong>de</strong>n chega mesmo a <strong>de</strong>senvolver uma relação com uma dasindígenas - Naíva.No começo da acção narrativa, Hans Sta<strong>de</strong>n procura o seu escravo,Guará-miri, até que encontra uma extensão <strong>de</strong> areia. Os indígenas utilizam umaPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201264


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74forma simples <strong>de</strong> capturar o oci<strong>de</strong>ntal, incitan<strong>do</strong> um comportamento revela<strong>do</strong>rda sua posição enquanto coloniza<strong>do</strong>r:“Em Janeiro <strong>de</strong> 1554 … resolvi procurar meu escravo, um índio chama<strong>do</strong>Guará-miri … que havia saí<strong>do</strong> para caçar e não havia volta<strong>do</strong>. Logoavistei uma cruz que colocavam como sinal … para se falar com os índiosda região … que eram os tupiniquins, nossos alia<strong>do</strong>s. Como estavapróximo ao forte … <strong>de</strong>cidi perguntar por meu escravo Gurará-miri. SEVOCÊ FOR DA ARMADA DE SUA MAJESTADE DÉ UMTIRO E TERÁ RESPOSTA” 3Hans Sta<strong>de</strong>n dá um tiro, os índios cercam-no, i<strong>de</strong>ntificam-no comoportuguês, como tal, inimigo. O coloniza<strong>do</strong>r é captura<strong>do</strong>, as suas roupas sãorasgadas, preso por cordas e transporta<strong>do</strong> para a al<strong>de</strong>ia <strong>do</strong>s Tupinambás.Uma das primeiras acções <strong>do</strong>s indígenas, na própria altura da captura,consiste em retirar a Hans Sta<strong>de</strong>n toda a sua roupa, fican<strong>do</strong> assim numa posiçãoparalela à <strong>do</strong>s índios, pelo menos em termos <strong>de</strong> aparência. Contu<strong>do</strong>, para ooci<strong>de</strong>ntal, a roupa é fundamental, característica da sua culturalida<strong>de</strong>, como tal ao<strong>de</strong>stituir o navega<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma das suas marcas culturais, estão a subjugar, adiminuir o inimigo, que através da humilhação se torna psicologicamente inferior.Nesta posição, o oci<strong>de</strong>ntal passa <strong>de</strong> figura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r enquanto coloniza<strong>do</strong>r parafigura diminuida, toman<strong>do</strong> a posição <strong>do</strong> «Outro».Na comunida<strong>de</strong> indígena, to<strong>do</strong>s partilham a mesma cor, a mesmaestrutura, as mesmas gravuras corporais, <strong>de</strong>ntro da hierarquia social <strong>de</strong>finida.Como tal, em oposição à sua própria figura, i<strong>de</strong>ntificam Hans Sta<strong>de</strong>n comosen<strong>do</strong> português/inimigo. Porém, fazem-no sem gran<strong>de</strong>s certezas, pois nãopossuem um conceito colectivo específico <strong>do</strong> que significa ser português, apenaso caracterizam como inimigo. Para a tribo indígena o enfoque não está nanacionalida<strong>de</strong> mas antes no inimigo, seja qual for a sua proveniência, queroci<strong>de</strong>ntal ou quer indígena.3 Le g e nd as re t ir ad as d o f i lm e «H ans S t ad e n » ( 19 99) d e Lu iz A lbe rt o P e re i ra.65 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74Os indígenas eram “amigos” <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>res franceses, uma vez que foicom eles que estabeleceram trocas <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias; por sua vez os coloniza<strong>do</strong>resportugueses tinham cria<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> semelhante com um tribo rival, passan<strong>do</strong>,então, automaticamente a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s inimigos. A tónica não está nanacionalida<strong>de</strong> específica <strong>do</strong> «Outro», pois os indígenas estão mais focaliza<strong>do</strong>s no<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança, na subjugação <strong>do</strong> inimigo.Os indígenas referem-se a Hans Sta<strong>de</strong>n como “comida”, exigin<strong>do</strong> que elemesmo se anuncie, na chegada à al<strong>de</strong>ia, como sen<strong>do</strong> - “comida a chegar”. Osindígenas utilizam a subjugação <strong>do</strong> prisioneiro como exaltação da suasuperiorida<strong>de</strong>.A acção antropófaga para os indígenas não consiste numa forma <strong>de</strong> saciara fome, este ritual revela o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança por parte <strong>do</strong>s indígenas. Osacrifício <strong>do</strong> prisioneiro, a antropofagia, representa um ritual on<strong>de</strong> o inimigo ésubjuga<strong>do</strong> e as suas “forças” assimiladas pelos indígenas:“Nha’epepó-ûasu e Alkindar-miri meus <strong>do</strong>nos. Disseram que me dariamao cacique Ipirú-guaçú … que havia da<strong>do</strong> a eles um inimigo <strong>de</strong> presente… como prova <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. Então, os irmãos lhe haviam prometi<strong>do</strong> … oprimeiro inimigo que eles capturassem. Fui eu esse primeiro inimigo.” 4Hans Sta<strong>de</strong>n ergue uma cruz e reza, edifican<strong>do</strong> a igreja da sua religião,contacto com o seu Deus. Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já salientar a tolerância religiosa<strong>de</strong>monstrada pelos indígenas, que aceitam a forma <strong>de</strong> venerar Deus <strong>do</strong>prisioneiro, sem contestar a sua legitimida<strong>de</strong>.Na outra al<strong>de</strong>ia, para on<strong>de</strong>, mais tar<strong>de</strong>, viajam Hans Sta<strong>de</strong>n e osTupinambás, encontramos um outro prisioneiro, um indígena, um Maracajá,ingeri<strong>do</strong> posteriormente num ritual antropofágico. Este momento é terrível parao navega<strong>do</strong>r, que perante tal atrocida<strong>de</strong> comportamental se <strong>de</strong>para com aselvajaria (ponto <strong>de</strong> vista oci<strong>de</strong>ntal) <strong>do</strong>s indígenas, visualizan<strong>do</strong> o seu futuropróximo nos olhos <strong>do</strong> prisioneiro. Naquele momento, tanto o oci<strong>de</strong>ntal como o4 Le g e nd as re t ir ad as d o f i lm e «H ans S t ad e n » ( 19 99) d e Lu iz A lbe rt o P e re i ra.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201266


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74indígena Maracajá partilham o mesmo <strong>de</strong>stino, estabelecen<strong>do</strong> um paralelismoentre «Eu» e «Outro», pela igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> circunstâncias.Partem para a al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Takuarusutyba, on<strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n serve comopresente. Pertence agora a uma nova tribo, a Abati-posanga. Aqui, Hans Sta<strong>de</strong>npe<strong>de</strong> para ficar com Nairá, a sua “esposa” indígena. Neste pedi<strong>do</strong> facilmentepercepcionamos a criação <strong>de</strong> um laço afectivo.Hans Sta<strong>de</strong>n conseguiu regressar ao seu país, salvo pela intervenção <strong>de</strong>outros oci<strong>de</strong>ntais Franceses, que ofereceram merca<strong>do</strong>rias à tribo Abati-posangaem troca <strong>do</strong> regresso <strong>do</strong> seu ‘irmão’.A acção antropágica exaltada enquanto foco principal <strong>do</strong> filme «HansSta<strong>de</strong>n» não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se posicionar como génese cultural <strong>do</strong> MovimentoAntropófago. Através da acção literal indígena <strong>de</strong> <strong>de</strong>glutir o «Outro» po<strong>de</strong>mos<strong>de</strong>finir a interpretação antropofágica <strong>de</strong> absorver culturalmente aquele alheio a«Nós», nesta obra po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar, o encontro intercultural entre aincontronável presença da alterida<strong>de</strong> e a prepon<strong>de</strong>rância <strong>do</strong> pensamentoantropófago.Tradução intercultural e a tradução <strong>do</strong> «Outro» - o caso <strong>de</strong> «Les MaîtresFous»«[…] in Les Maîtres Fous, Rouch wanted to <strong>do</strong>cument the unthinkable – that menand women possessed by the Hauka spirits, the spirits of French and Britishcolonialism, can handle fire and dip their hands into boiling cauldrons of saucewithout burning themselves. Always the provocateur, Rouch wanted to challengehis audiences to think new thoughts about Africa and Africans. Could thesepeople of Africa possess knowledge “not yet known to us,” […]» 5«Les Maîtres Fous» (“The Mad Masters”) <strong>de</strong> 1955 é um <strong>do</strong>cumentário<strong>de</strong> Jean Rouch (1917 – 2004) on<strong>de</strong> se salienta o ritual antropófago <strong>de</strong>5 S TOL LE R , P au l. «A rt au d, ro u ch , an d T h e c in e m a o f C ru e l t y » . 19 92. Vi su a lAnt hro pol og y R e v ie w . Volu m e 8, n. ª 2. P . 5 0.67 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74absorção cultural. O filme salienta a imagem <strong>do</strong>s africanos enquanto“selvagens” terríveis que utilizam magia nas suas representações. Magiaque segun<strong>do</strong> Jean Rouch, - “not yet known to us”. Foi filma<strong>do</strong> em África,no Gana, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Acra e na floresta periférica da mesma cida<strong>de</strong>.»O <strong>do</strong>cumentário/filme 6 retrata um ritual <strong>de</strong> representação, isto é, umconjunto <strong>de</strong> jovens homens interpretam através <strong>de</strong> rituais <strong>de</strong> possessão o seuentendimento <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r. A Gana, ou a República <strong>do</strong> Gana foi colonizadapor várias nações, entre elas, os franceses que no século XV <strong>do</strong>minavam o país.Apartir <strong>do</strong> século XIX os ingleses passaram a colonizar o país. Contu<strong>do</strong>, eembora os franceses tenham <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> marcas sociais e culturais da sua presença,na obra em questão, focaliza-se, principalmente, a representação <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>rbritânico. Os membros Hauka são possuí<strong>do</strong>s por “gods of strength”, isto é,literalmente oficiais coloniais Franceses e Ingleses.Hauka é um movimento religioso que nasceu em África. Os participantesexecutam movimentos <strong>de</strong> dança, apresentada na obra <strong>de</strong> Jean Rouch como umaimitação das cerimónias militares executadas pelos seus coloniza<strong>do</strong>res (nestecaso, os britânicos). O filme é construí<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is espaços: a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Acra,<strong>de</strong>scrita como a gran<strong>de</strong> Babilônia Negra, repleta <strong>de</strong> cor e movimento, como diz opróprio autor, a «civilização mecânica»; o ritual, expressamente africano, éexecuta<strong>do</strong> num lugar distante da cida<strong>de</strong>, na periferia, envolto pela mata. As cenassão narradas pelo próprio Jean Rouch, que encarna uma espécie <strong>de</strong> vozomnipresente, que paira magistralmente sobre os acontecimentos.A recepção <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário/filme dividiu-se em duas interpretações:numa vertente, consi<strong>de</strong>rava-se a acção <strong>do</strong> movimento Hauka como uma forma<strong>de</strong> satirizar as autorida<strong>de</strong>s invasoras <strong>do</strong> território, e também como movimento <strong>de</strong>resistência ao po<strong>de</strong>r; por outro la<strong>do</strong>, analisa<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma perniciosa, a6 Opt e i po r e st a t e rm i nol og i a, u m a ve z q u e a prod u ç ão <strong>de</strong> Je an R ou c h,e nq u ant o e t nól og o, f i lm a d ire c t am e nt e a aç ão pre se nc i ad a, nu m f orm at o ond e c apt u raa “ re al id ad e ” . C ont u d o, a d e v id a re f e rê nc i a à “ re al id ad e ” , e nt re as pa s, d e ve - se à opç ãod o re aliz ad o r e m c riar u m a li n ha nar rat i va d e int e rp re t aç ão d os rit u a is, d e st a f orm a,e nt rand o na c onc e pç ão f ic c io nal d e f ilm e . Um a ve z t rat a nd o - se d e u m a d u plaabra ng ê nc ia, opt e i po r c ar ac t e riz a r «Le s M aît re s F ou s » c om a i nd ic aç ão d a s su a sc at e g ori as.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201268


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74representação fílmica serviria para apresentar o elemento “selvagem” dasocieda<strong>de</strong> colonial:«Rouch’s Les Maîtres Fous evokes the meaning of <strong>de</strong>colonization: namely,that European <strong>de</strong>colonization must begin with individual <strong>de</strong>colonization –the <strong>de</strong>colonization of a person’s thinking, the <strong>de</strong>colonization of a person’s“self”. » 7A imagem cinematográfica é um recorte sobre uma particularida<strong>de</strong> <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, neste caso, africano <strong>do</strong>s Haukas, trabalhada e apresentada com oobjectivo <strong>de</strong> clarificar a concepção distinta entre “selvagem” e “civiliza<strong>do</strong>”. Oautor opta por utilizar uma sequência composta <strong>de</strong> imagens e discurso, comoforma <strong>de</strong> exibir uma continuida<strong>de</strong> retórica:«The producer warns the public that this <strong>do</strong>cumentWITH NO CONCESSION OR DISSIMULATION,Contains scenes of violence and cruelty, but wishes the spectator toparticipate completely in a ritual that is a particular solution to the problemof the readjustment, and shows indirectly the representation that someAfricans have of our western civilization.» 8Uma das críticas ao analisarmos estas imagens pren<strong>de</strong>-se com a expressãooci<strong>de</strong>ntal, isto é, a representação <strong>do</strong> culto africano relata a construção históricaoci<strong>de</strong>ntal <strong>do</strong> “selvagem”. Jean Rouch não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> imprimir a sua crítica àestrutura colonial. O <strong>do</strong>cumentário/filme explora a observação, construção einvenção <strong>do</strong> “selvagem” contextualiza<strong>do</strong> pela análise <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s pós-coloniais.O enaltecimento <strong>de</strong> estereótipos ao longo <strong>de</strong>ste <strong>do</strong>cumentário/filme éuma constante. Para compreen<strong>de</strong>rmos a representação <strong>do</strong> povo africano e aprodução <strong>de</strong>terminada pelo autor das imagens, <strong>de</strong>vemos procurar <strong>de</strong>scortinar a7 S TOL LE R , P au l. «A rt au d , rou c h, and The c ine m a of C ru e lt y ». 1 99 2. Vis u alA n t h ropolog y R e v ie w . Volu m e 8, n . ª 2. P . 53.8 I nt rod u ç ão e sc r it a ap re s e nt ad a no in íc i o d o d oc u m e nt ário/ f i lm e .69 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74significação da produção comportamental - o “governa<strong>do</strong>r” fala francês; aMadame Lokotoro foi mulher <strong>de</strong> um médico francês; os intervenientes utilizam ochapéu e roupa colonial (britânico); a quebra <strong>do</strong> ovo na cabeça da estátuasimboliza as penas <strong>do</strong> chapéu <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r (britânico).Através <strong>do</strong>s rituais <strong>de</strong> possessão, os intervenientes <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>africana executam o processo <strong>de</strong> assimilação cultural. Não é contu<strong>do</strong> alheia aintervenção <strong>do</strong> autor/narra<strong>do</strong>r. O autor/narra<strong>do</strong>r opta por salientar todas asacções que ritualizam a relação social da chegada <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r britânico,apresentan<strong>do</strong> a materialização <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> colonial inglês, relegan<strong>do</strong> a pré presençafrancesa, o que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> instigar significações. Representa<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> avisão daquele povo africano, ao coloniza<strong>do</strong>r pressupõe-se comportamentos <strong>de</strong>prepotência, <strong>do</strong>mínio, or<strong>de</strong>ns, violência, opressão - uma imagem óbvia <strong>de</strong>hegemonia.Por outro la<strong>do</strong>, aos olhos da cultura oci<strong>de</strong>ntal, assistir à sua própriarepresentação causa, naturalmente, gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto. Os pontos salienta<strong>do</strong>stornam-se uma forma <strong>de</strong> paródia que ridiculariza comportamentos, salientan<strong>do</strong> avolatilida<strong>de</strong> da “nossa” tolerância à interpretação <strong>do</strong> «Outro».Através da tradução/interpretação comportamental inserida nacontextualização africana, assistimos à tentativa <strong>de</strong> adaptação e compreensão <strong>de</strong>acções estranhas à sua cultura. Contu<strong>do</strong>, teremos <strong>de</strong> questionar esta “visãoafricana”, uma vez que o <strong>do</strong>cumentário/filme parte <strong>de</strong> uma análise, tradução eprodução <strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal, neste caso suscitan<strong>do</strong> uma ambiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong>interpretações.Invadi<strong>do</strong> física e culturalmente por costumes a si externos, é natural o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> comportamentos paralelos on<strong>de</strong> seja encontrada uma certa“explicação”. Os movimentos possessivos interpreta<strong>do</strong>s pelos Haukas são arepresentação <strong>de</strong> estereotipos, social e culturalmente interioriza<strong>do</strong>s. Esta forma<strong>de</strong> tradução/interpretação cultural é visível através da assimilação <strong>de</strong> processoscomo a adaptação <strong>de</strong> profissões e acções externas àquelas <strong>de</strong>senvolvidas na suamecânica social. A fusão entre crença africana e comportamento socialPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201270


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74coloniza<strong>do</strong>r, po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong> como uma operação tradutiva, on<strong>de</strong> o externo éassimilia<strong>do</strong>, integra<strong>do</strong> e adapta<strong>do</strong> à cultura <strong>de</strong> chegada.Jean Rouch começa o <strong>do</strong>cumentário com o contexto urbano, apresentaçãoda cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se encontram a tradição e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Esta apresentaçãoinicial, <strong>de</strong>ste ce<strong>do</strong>, salienta o contraste entre acções sociais, entrecomportamentos. O filme <strong>de</strong>corre quan<strong>do</strong> os intervenientes <strong>do</strong> culto se dirigempara a periferia, zona <strong>do</strong> campo, on<strong>de</strong> lentamente começam a ficar possuí<strong>do</strong>s.Sabemos tratar-se da possessão pelas expressões físicas <strong>do</strong> elementos africanos –espumar da boca, revirar os olhos, passar o fogo pelo corpo, que reafirma, aosolhos <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r, a imagem <strong>de</strong> não-humano.O ritual começa com a organização <strong>do</strong>s próprios elementos que numarepresentação colonial interpretam posições <strong>de</strong> coman<strong>do</strong>, distribuin<strong>do</strong>-se numcírculo. Nesta organização movimentam-se fazen<strong>do</strong> sons com os paus queinterpretam como armas. Falam francês, numa dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> discursos, tanto dãoor<strong>de</strong>ns uns aos outros, como se insultam. Partem ovos que colocam na estátua<strong>do</strong> “Governa<strong>do</strong>r Britânico”, simulação das plumas, expressão <strong>do</strong> chapéu <strong>do</strong>oficial. Também executam uma construção representativa <strong>do</strong> palácio <strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r (britânico).Focalizemos, por exemplo, a questão da indumentária: África caracteriza-se pelo intenso calor, naturalmente, o vestuário reflecte o seu meio ambiente,pautan<strong>do</strong>-se pela leveza <strong>do</strong>s teci<strong>do</strong>s e padrões <strong>de</strong> cores claras. Contu<strong>do</strong>, com achegada <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r pouco habitua<strong>do</strong> a tais trajes, ocorre uma imposição <strong>de</strong>comportamentos. Este exemplo é visível na cerimónia <strong>de</strong> possessão quan<strong>do</strong>, osHaukas passam a utilizar indumentária “característica” da “personagem” queencarnam. O vestuário caracteriza a percepção <strong>do</strong> «Outro», revelan<strong>do</strong>-se comouma marca cultural específica.Um outro exemplo, encontra-se na utilização por parte <strong>do</strong>s Haukas <strong>do</strong>spaus que simbolizam armas <strong>de</strong> fogo. Sen<strong>do</strong> um objecto externo à sua cultura,uma vez que a introdução <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo chegou com o coloniza<strong>do</strong>r, é maisuma vez um parâmetro que cria a “imagem” total, reconhecida pelo coloniza<strong>do</strong>.71 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74O africano capta diversos <strong>de</strong>talhes que especificam a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r,transpon<strong>do</strong>-os posteriormente para o seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> possessão.O auge <strong>do</strong> ritual pren<strong>de</strong>-se com a execucção dum tabu britânico, a<strong>de</strong>glutição <strong>de</strong> um cão. Este ritual implica a absorção <strong>de</strong> sangue directo <strong>do</strong> animale a partilha ferverosa das partes <strong>de</strong> maior significa<strong>do</strong>, a cabeça e os intestinos.Um ritual impraticável/imcomprensível pela socieda<strong>de</strong> “oci<strong>de</strong>ntal” reforça oafastamento social e cultural <strong>do</strong> “selvagem”.Devemos ainda mencionar a ausência <strong>de</strong> contextualização <strong>do</strong><strong>do</strong>cumentário, uma vez que, o ritual Hauka e as possessões surgem <strong>de</strong>sprovidas<strong>do</strong> necessário enquadramento explicativo. A compreensão <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentáriotorna-se assim mais complexo.Jean Rouch procura salientar o ritual Hauka como forma <strong>de</strong>integração/adaptação <strong>do</strong>s africanos à socieda<strong>de</strong> colonial, isto é, uma forma <strong>de</strong>ajustar o processo <strong>de</strong> formação i<strong>de</strong>ntitária ao processo <strong>de</strong> colonização. Estapercepção surge claramente no fim <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário com o regresso <strong>do</strong>safricanos à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Acra. Ao regressar às acções quotidianas e urbanas <strong>do</strong>sistema laboral, enquanto acção práctica da organização colonial, reafirma-se aexistência dual i<strong>de</strong>ntitária. Os espíritos superiores Hauka regressam á execução<strong>do</strong>s trabalhos diários – “hygiene boys”; “cattle boys”; “bottle boys”; “tin boys”;“timber boys” e “gutter boys”.O <strong>do</strong>cumentário termina com o contraste <strong>de</strong> imagens – o papel submissona estrutura <strong>do</strong> trabalho urbano e o papel superior <strong>de</strong> espírito Hauka – expressãosocial dicotómica.Através <strong>de</strong>ste formato <strong>de</strong> representação - possessão no caso <strong>do</strong> RitualHauka; ritual canibal no caso <strong>do</strong>s índios retrata<strong>do</strong>s por Hans Sta<strong>de</strong>n - a cultura<strong>do</strong> «Outro» é absorvida, para numa adaptação aos costumes e interpretaçõeslocais, passar a ser integrada na <strong>de</strong>monstração cultural e social.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201272


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57 –74Conclusões finaisAtravés <strong>de</strong>sta análise, procuramos <strong>de</strong>mostrar <strong>de</strong> que forma os <strong>do</strong>isexemplos seleciona<strong>do</strong>s são representativos da criação e perpetuação <strong>de</strong> umacervo imaginário sobre o indígena e o africano.O filme «Hans Sta<strong>de</strong>n» e o <strong>do</strong>cumentário/filme «Les Maîtres Fous»representam uma amálgama <strong>do</strong> pensamento oci<strong>de</strong>ntal (europeu), on<strong>de</strong> se discutecomportamentos e costumes culturais. O “silêncio” imposto ao coloniza<strong>do</strong> é,antes <strong>de</strong> mais, uma dicotomia, pois, embora falante nas duas representaçõescinematográficas, o coloniza<strong>do</strong> nada mais faz <strong>do</strong> que palrar uma linguagem,pensamentos e concepções <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r oci<strong>de</strong>ntal. E é neste palrar quesimultaneamente se <strong>de</strong>fine a acção crítica <strong>de</strong> oposição. De forma subliminar,através da absorção, numa acção antropófaga, os indígenas e africanos, limita<strong>do</strong>spela envolvência hegemónica <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r, conseguem, porém, transgredir ecruzar a sua própria contribuição cultural, numa adaptação crítica e consonantecom a sua matriz funda<strong>do</strong>ra.As duas obras visuais são antes <strong>de</strong> mais uma mais-valia para a análisecrítica, através <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar a interpretação <strong>do</strong> próprio oci<strong>de</strong>ntal nasua posição <strong>de</strong> coloniza<strong>do</strong>r/ex-coloniza<strong>do</strong>r, ao mesmo tempo que reflecte na suaresponsabilida<strong>de</strong> enquanto promotor <strong>de</strong> traduções/interpretações interculturais.Referências bibliográficasCASTRO, Eduar<strong>do</strong> Viveiros <strong>de</strong>. “Os pronomes cosmológicos e operspectivismo ameríndio”. Mana – Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Antropologia Social vol.2 no.2, Rio<strong>de</strong> Janeiro, Outubro. 1996. Consulta<strong>do</strong> a 15 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2012:http://dx.<strong>do</strong>i.org/10.1590/S0104-93131996000200005_. “O nativo relativo”. Mana – Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>Antropologia Social vol. 8 no.1, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Abril 2002. Consulta<strong>do</strong> a 15 <strong>de</strong>Maio <strong>de</strong> 2012:73 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 57–74http://dx.<strong>do</strong>i.org/10.1590/S0104-93132002000100005LÉVI-STRAUSS, Clau<strong>de</strong>. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70. 2004.PEREIRA, Luís Alberto. Drama biográfico – “Hans Sta<strong>de</strong>n”.Coprodução luso-brasileira. 1999.RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro – a formação e o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras. 2.ª Edição. 1995.ROUCH, Jean. “Les Maîtres Fous”. Documentário/filme. 1955.Consulta<strong>do</strong> a 15 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2012:http://www.veoh.com/watch/v14179347tanDtaPa?h1=Jean+Rouch+%3A+Les+ma%C3%AEtres+fous+-+The+mad+mastersSANTIAGO, Silviano. “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes <strong>do</strong> Brasil”.ALCEU – v.5 – n.10 – Jan./Jun. 2005. P.p. 5 – 17. Consulta<strong>do</strong> a 15 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong>2012:http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n10_santiago.pdfSTADEN, Hans. 1520-ca 1565. Viagem ao Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Aca<strong>de</strong>miaBrasileira, 1930. 186 P. Consulta<strong>do</strong> a 15 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong> 2012: http://purl.pt/151STOLLER, Paul. “Artaud, rouch, and The cinema of Cruelty”. 1992.Visual Anthropology Review. Volume 8, n. º 2.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201274


MEMORY AS DISCOURSE IN HAROLD PINTER’S OLDTIMES, BETRAYAL AND A KIND OF ALASKACarla Ferreira <strong>de</strong> CastroUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ÉvoraPortugalccastro@uevora.ptAbstractThis paper aims at <strong>de</strong>veloping the topic of i<strong>de</strong>ntity and the narration ofthe self through the other in Harold Pinter’s plays Old Times, Betrayal and A Kin<strong>do</strong>f Alaska. In these plays Pinter <strong>de</strong>ploys strategies to convey multiple implicationswhich are based on the power of memory in which the structure of the plays isconcocted.Key words: Pinter, Language, Silence, Memory, Time“Every genuinely important step forward is accompanied by a returnto the beginning...more precisely to a renewal of the beginning.Only memory can go forward.”M. BakhtinThis study will address the issues of memory in a selection of plays byHarold Pinter (b:10/10/1930; d: 24/12/2008) and his usage of language, or theabsence of a coherent speech as means of narration of the self, using an empiricaldiscursive approach, and focusing in particular on the concept of time andmemory.


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97Starting from the accepted premises that memory is at the core of i<strong>de</strong>ntity,politics and, ultimately, past, present and future history, one can state that it isdue to the collective memory of a generation, or in a broa<strong>de</strong>r sense of a country,that one can envisage the future action to be taken in a given time. Thusmemory, both collective and individual, <strong>de</strong>termines meaning and influences thecourse of events. Writers, some more inadvertently than others, are nearer to thepower of memories since they translate memories into discourse.In Harold Pinter’s dramatic universe, words were always regar<strong>de</strong>d by itsauthor as elusive and he is permanently aware that the more acute the experience theless articulate the expression (Pinter: 1991: ix). All his statements on his writingprocess consi<strong>de</strong>r language and its struggle to overpower meaning through the<strong>de</strong>veloping of the correct word, the perfect articulation to express the moment.As it is also known to everyone more or less familiar with Pinter’s writing, mostof the times the correct meaning to interpret the moment is solely obtainedthrough silence. When in lack of the perfect word, Pinter uses silence asdiscourse. Silence has been typified by Pinter in or<strong>de</strong>r to convey differentmeanings in three moments, corresponding to a gradation which intensifies theduration of the absence of speech: three <strong>do</strong>ts, pause and silence. With different<strong>de</strong>grees of intensity this absence of spoken language by the fictional characters ofhis plays, introduces a new sense – that of the unsaid. According to the author(Pinter: 1991):So often, below the word spoken, is the thing known and unspoken. (…)You and I, the characters that grow on a page, most of the time we’reinexpressive, giving little away, unreliable, evasive, obstructive, unwilling.But it’s out of these attributes that a language arises. A language, I repeat,where un<strong>de</strong>r what is said, another thing is being said. (xii)Peter Hall, commenting on his experience as director of some of Pinter’splays has also contributed to a better <strong>de</strong>finition of the silent language and itsmeaning. In Hall’s words (Hall: 2001):Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201276


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97There are three different kinds of pauses in Pinter: Three <strong>do</strong>ts is a sign of apressure point, a search for the word, a momentary incoherence. A Pause isa longer interruption to the action, where the lack of speech becomes a formof speech itself. The Pause is a threat, a moment of non-verbal tension. ASilence – the third category – is longer still. It is an extreme crisis point.(...) Pinter actually writes silence and he appropriates it as part of hisdialogue. (p.144)Whenever in lack of the exact word to convey the a<strong>de</strong>quate meaning,Pinter ties his characters’ memories to a language ma<strong>de</strong> of silence that initiates adiscourse where what is left unsaid can be more important since it contains allthe subtext that mere words are unable to transmit. James R. Hollis, in 1970, inthe first essay which presents the poetics of silence in Pinter’s work, wouldconsi<strong>de</strong>r the spaces left unspoken by Pinter’s characters as pure silent metaphors,introducing a Jungian matrix, where metaphor becomes a synonym of symbol. InHollis’ assumption (Hollis: 1970):Pinter employs language to <strong>de</strong>scribe the failure of language; he <strong>de</strong>tails informs abundant the poverty of man’s communication; he assembles words toremind us that we live in the space between the words. (p.13)Later, Martin Esslin (Esslin: 1970) would coin the expression Pinteresque 1referring to the language used, reminding that the major innovation of theplaywright consists in the manner that his characters tend to avoid explainingthemselves, when on stage, and most of the times conceal their motivations andtheir past from the audience:1 N ow ad ay s p re se nt i n m any d ic t iona rie s. ( e . g . t he R e ve r so On line D ic t io naryas an ad je c t ive f r om t he nou n P int e r. S e e ht t p: / / d ic t ionary . re ve r so. ne t / e ng l is h -d e f init ion/ P i nt e re sq u e )77 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97Pinter far from wants to say that language is incapable of establishing truecommunication between human beings; he merely draws our attention to thefact that in life human beings rarely make use of language for that purpose.(p.212)The topic of language and silence as discourse has also been the subject ofother contributions, such as from Marc Silverstein 2 that applies the theoreticalassumptions of Wittgenstein, A<strong>do</strong>rno, Bakhtin, Focault, Barthes, Kristeva,Derrida, Lacan, Marcuse and Althusser in linguistics, language and socializingprocesses and i<strong>de</strong>ologies to put forward the theory that Pinter’s plays are mostlyabout power and that the political angle of his texts has been neglected in favourof a more Jungian mo<strong>de</strong>l of analysing the unsaid that can be perceived in thecharacters’ silences.However, it is precisely this Jungian mo<strong>de</strong>l that will act as the subtext ofthis analysis, more specifically the topic of collective memory and archetypes, theindividuation process and the notion of synchronicity since, in Pinter’s plays,memory is also preserved in the silences of the characters in or<strong>de</strong>r to protect andmaintain intact their i<strong>de</strong>ntity. Carl Jung was said to be keen on the quotationfrom Lewis Caroll’s Through the Looking-Glass (Caroll: 1970) when, at a givenmoment, the White Queen turns to Alice and observes the following:That's the effect of living backwards,' the Queen said kindly: 'it alwaysmakes one a little giddy at first--''Living backwards!' Alice repeated in great astonishment. 'I never heard ofsuch a thing!''--but there's one great advantage in it, that one's memory works bothways.''I'm sure MINE only works one way,' Alice remarked. 'I can't rememberthings before they happen.'2 M arc S il ve r st e in . ( 1 99 3) H ar o l d P in t e r an d t h e L anguage o f C ul t ural P ow e r .Lond on a nd Toro nt o : Bu c kne ll Uni ve r si t y P re ss.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201278


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97'It's a poor sort of memory that only works backwards,' the Queenremarked. (Pp.247-248)This quotation could be mentioned in the writing process of Betrayal, forexample, when memories are unfol<strong>de</strong>d backwards in the time flux. It could alsoserve to recover Bakhtin’s words in the epigraph of this paper (Only memory can goforward). In or<strong>de</strong>r to shed some light into the <strong>de</strong>bate of memory as discourse inPinter’s referred plays one has to summon different aspects of the notions ofmemory and time since, when we further analyse memory and apprehend itsdifferent levels, we conclu<strong>de</strong> that it is intimately related to time. One has to takeinto account that memory is more than a single process, is a dynamic one thatenables each individual to acquire, retain and recall a certain episo<strong>de</strong>, viaencoding, storage and retrieval of information. Thus we must consi<strong>de</strong>r threedifferent stages:- The Sensory Stage, which registers the immediate sensations and can last about0.25 to 3 seconds;- The Working Stage, which processes input from sensory memory and retrieveslong-term memories lasting about 30 seconds;- The Long-Term stage, which stores lasting memories that can potentially last alifetime. 3In the plays selected – Old Times, Betrayal and A Kind of Alaska, memoriescreate the speech, lead the discourse of the characters in different aspects andmemory is juggled with time. In Old Times the dialogue of the three intervenientsdwells on the topic of the collective memory and individuation, Betrayal is built, inthe Caroll sense of the White Queen, backwards, and A Kind of Alaska, beingbased on the novel by Oliver Sacks, Awakenings, goes a step further in analysing apsychological disturbance: Amnesia with a more perceptive impact in the field of3 F or m ore i nf orm at i on on t hi s t opic se e : Ant h o ny G Be noitin: ht t p: / / e nvironm e nt a le t . hy pe rm art . ne t / psy 1 11/ m e m ory . ht m # bio79 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97memory and time. These three plays have at their core the topic of silence andinstead of dialogues we listen to voices of thoughts being interwoven. Theprotagonists refer to past moments in time, occupied with absences andunanswered questions. In this context silence finds its ally in memory, in thedifferent stages of recreating the past and leading the present into oblivion.Pinter, looking back at his memories of the years when these three playswere written, in an interview given in October 1989, would corroborate thesenotions of time and memory (Gussow: 1994):I wrote a lot of plays between 1970 and 1985 which can’t be said to bepolitical plays – things like Old Times and Betrayal and Landscape andSilence, which were concerned with memory and youth and loss and certainother things (p. 82).Though this article focuses on three plays, others could be inclu<strong>de</strong>d in thistopic of past memories, namely: Landscape, Silence, Revue Sketches II (Night andDialogue for Three), Monologue, Family Voices, Moonlight and Ashes to Ashes. In allthese plays we can observe a recreation of the past events, notwithstanding theirchronological accuracy, or even their factual occurrence. Another play which isentirely <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt on the language games is No Man’s Land – where Davies,Spooner and Hirst are entirely <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt on their voices remembering the pastto confer meaning to the no man’s land that they have reached.Old Times (1970)Old Times, a play that Pinter admitted to Mel Gussow (Gussow: 1994) tohave been penned in three days, marks a turning point in Pinter’s quest for thethematic of how the past inva<strong>de</strong>s the present and <strong>de</strong>termines the course ofPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201280


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97relationships and events. This quest for the foreign country 4 of the past will lead himto spend the entire following years of 1972, working on a screenplay, Remembranceof Things Past, which would con<strong>de</strong>nse the 3200 pages of Marcel Proust’smasterpiece.Old Times <strong>de</strong>picts a triangle: Two women and one man are in a roomdiscussing their last meeting, twenty years ago. The apparent non-threateninginitial perspective is soon altered when the dialogue of the three characters, insearch of a common past, takes a different turn: It is not about sharingmemories, recalling past days spent together, but a struggle for power, adangerous arena where, apparently, there is only room for two contestants andKate has her position secured from the outset. Kate is always at the core ofmultiple conflicts: On the one hand, there is the battle of Deeley and Anna forthe appropriation of the past and, consequently, Kate, and, on the other, theprivate dispute between Deeley and Kate for supremacy in their relation. Thefirst example of this verbal confrontation is given at the beginning (Pinter: 1996)when Deeley tries to lead the dialogue and ends up being silenced by Kate. Theemphasis is put on the words think, one and only:Deeley: Did you think of her as your best friend?Kate: She was my only friend.Deeley: Your best and only.Kate: My one and only. Pause. If you have only one of something you can’tsay it’s the best of anything. (p. 247)While Anna and Deeley stage their past lives, using their long lastmemories to throw old songs lyrics at each other, Kate remains silent andappears to be controlled by the others’ memories. She affirms that they talkabout her as if she was <strong>de</strong>ad. However, Kate’s force rests in her silence since byrefraining to engage in the conversation about her life she reduces her husband4 A re f e re nc e t o L. P . Hart le y ’ s q u ot at ion – The pa st i s a f ore ig n c ou nt ry , t he yd o t hing s d if f e re nt ly t he re – in T he G o - B e t w e e n al so ad apt e d by P int e r t o t hesc re e n.81 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97and her friend to the condition of mere followers of her existence and, at theend, Kate takes full control of the stage and the lives of the characters becauseshe realises that Anna and Deeley’s greatest weakness is their love for her. Fromthe three characters on stage, Kate is the only one that is able to survive theloneliness since her encoding memories of the past inclu<strong>de</strong> having seen, thoughmetaphorically speaking, the image of Anna lying <strong>de</strong>ad, and due to havingsmeared Deeley – this accounts for the importance of the baths she takes, sincethey acquire a regenerative function. (It is not by coinci<strong>de</strong>nce that Kate managesto silence Anna and Deeley after having a long bath.)In Old Times memory is a form of discourse associated with silencebecause the <strong>de</strong>pth of Kate’s solitu<strong>de</strong> transforms the text in exultation for theunsaid and her power of remembrance absorbs the others’ emotions andrecollections. The play begins and ends in absolute silence and quietness. Eventhe light is dim to accentuate what Pinter would refer to as the mistiness of the past 5 .Anna is standing at the win<strong>do</strong>w, Deeley is slumped in an armchair, and Kate is curled upon the sofa. At the end of the play though the power has changed and Kate hasmanaged to vanquish her husband and friend at their own game of forging andrecovering lost memories of things that have happened twenty years before, thecharacters are static: Deeley in the armchair, Anna lying on the divan and Kate sittingin the divan. The only relevant change concerns the lights which light up full sharply.Very bright.Kate, <strong>de</strong>spite the various similarities that can be established with otherfemale characters in Pinter’s dramatic world, is ultimately entirely different andinnovative since, in twenty years time, she has managed to metamorphose herpast weaknesses in power, and her silence in strength and persuasiveness. Hertriumph rests in way she interacts with Anna and Deeley, using her absence ofdialogue to hush them, creating uncomfortable silences. Unlike her, Deeley and5 F rag m e nt of an int e rvie w on 5t h D e c e m be r 19 71 c om pile d by M e l G u ssow( 199 4) : C o n v e rs at io n s w it h P in t e r. I n t his sam e int e rv ie w G u ss ow ask s w he t he r P int e rhas se e n t he f i lm T h e Odd Man Ou t , re f e rre d in t he pla y and P i nt e r ad m it s he ha s a ndre pl ie s: Wh at in t e re s t s m e is t h e mis t in e s s o f t h e pas t . T he re ’ s a s e ct ion in t h e pl ay, w h e re D e e le ys ays s o t o . . . t h e f rie n d, t h at t he y m e t in t h is pu b 20 ye ars be f o re . We l l t h e f act is t h e y h av e an dt h e y mig h t n o t . I f yo u w e re as k e d t o re m e m be r, yo u re al l y can n o t be s u re o f w h o m yo u m e t 20ye ars be f o re . A n d in w h at cir cu s n t an ce s . (pp. 16 -1 7)Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201282


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97Anna have <strong>de</strong>dicated their thoughts and memories to Kate and they need torecover the reminiscences of that lost past, when they were both responsible formaking Kate happy and to confer meaning to their present lives. That is whyAnna affirms, echoing so many other voices in Pinter’s plays, (Pinter: 1996):Anna: There are some things one remembers even though they may neverhave happened. There are things I remember which may never havehappened but as I recall them so they take place. (pp. 269-279)In terms of our topic, Anna is implying that memory is entirely, subjectiveand, most important, flexible and mutable. She is aware that truth when oneunfolds the past can be pure fiction, according to the speaker. In the final scene,Kate will use this weapon to beat Deeley and Anna at their memory game,recovering her private, special memory of Anna lying <strong>de</strong>ad:Kate (To Anna.): But I remember you. I remember you <strong>de</strong>ad.PauseI remember you lying <strong>de</strong>ad. You didn’t know I was watching you. I leane<strong>do</strong>ver you. Your face was dirty. (...) Your pupils weren’t in your eyes. Yourbones were breaking through your face. But all was serene. There was nosuffering. It had all happened elsewhere. Last rites I did not feel necessary.Or any celebration. Ifelt the time and season appropriate and that by dying alone and dirty youhad acted with proper <strong>de</strong>corum. (Pinter: 1996, pp. 309- 310)After this long speech, that was staged by Peter Hall for the first time inLon<strong>do</strong>n, by the Royal Shakespeare Company, at the Aldwych Theatre, on 1 stJune 1971, and was filmed for the BBC on 22 nd October 1975, directed byChristopher Morahan the characters remain silent until the fall of the curtain. Inthe BBC filmed version Kate’s speech lasts five minutes and sixteen seconds,after which the last four minutes and fifty seconds of the production are spent insilence. As Martin Regal (Regal: 1995) has pointed out:83 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97Metaphorically speaking, Kate ‘kills’ her relationship with Anna by‘remembering’ her as a corpse, an image which Anna is allowed neither tocontradict nor explain since Kate has the last words in the play. (p.81)Regal also points out the parallelisms between this play and James Joyce’sExiles, which was directed by Pinter, in 1970, about the time he was writing OldTimes. Regal is one of the authors who puts the issues of time and memory in thecentre of this particular play when he states:Old Times is the first of Pinter’s plays to make time its central subject, butit also refocuses on attitu<strong>de</strong>s to time and memory displayed in the plays thatimmediately prece<strong>de</strong> it. (...) Time becomes a territory in its own right, andDeeley, Kate and Anna make the twenty-year gap between the present andtheir last meeting their battleground. But the action is also circular. Thelast scene, acted without speech, visually repeats Anna’s account of a mancrying in the room she shared with Kate, suggesting perhaps that they arelocked in a timeloop from which they will never emerge. (p 86)as:Victor Cahn (1994) in a chapter <strong>de</strong>dicated to Old Times consi<strong>de</strong>rs the play(...) the dramatization of a labyrinthine system of memory images, some ofwhich we un<strong>de</strong>rstand to be factual, but many others of which may be create<strong>do</strong>r purposefully distorted so that the speaker can assert his or her authorityover the present. (p. 103)On the same subject Batty (2005) has more recently remarked:With Old Times, Pinter <strong>de</strong>monstrated how the past and memory areexploitable as tools for gaining advantage, and ad<strong>de</strong>d them to the arsenal ofPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201284


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97verbal equipment that his catalogue of characters had at their disposal whenconfronting one another. The past is presented as possessing fluid,amorphous qualities that ultimately belie any attempt to construct presentcertainty for them. (pp. 52-53)In Pinter’s theatrical world, for Kate, Deeley and Anna, along with somany other characters, language functions as a weapon which is thrownrelentlessly at others; it is not a vehicle that ren<strong>de</strong>rs communication easier, ratherthe contrary,to speak is to cover up meaning, is to add <strong>do</strong>ubt, to dispossess othercharacters of their memories, knowledge and ultimately, their i<strong>de</strong>ntities. In theend of the play Kate is in control mostly because she has stripped Anna andDeeley from their images of the past and created an alternative version that killsthe friend and belittles the husband. Her narrative <strong>do</strong>minates theirs and heri<strong>de</strong>ntity prevails unscathed.If in Old Times the action takes places in the present, Betrayal goesbackwards in time, act after act, to unfold the past of another triangle.Betrayal (1978)Betrayal was written in three months, in 1978, and, according to MichaelBillington, Pinter’s official biographer, it is almost an autobiographical play –since his marriage to Vivian Merchant en<strong>de</strong>d before writing the play, and hisrelationship with Lady Antonia Fraser started at about the same time – thoughPinter was not keen in discussing the issue and, when directly confronted, inDecember 1979 by Mel Gussow, consi<strong>de</strong>red that assumption irrelevant 6 .In common with Old Times, and as well as with No Man’s Land, in Betrayalmemory is, once again, portrayed as frail and extremely fallible. The play <strong>de</strong>picts a<strong>do</strong>mestic situation, an affair between Emma and Jerry, and revolves around thenotion of what is said, what is known, and what the others know. It begins in1977 when Emma and Jerry meet, two years after their illicit affair, which lasted6 S e e G u ssow ( 19 94) p. 5 3.85 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97for seven years, has en<strong>de</strong>d. During seven scenes (out of nine) we are taken backin time until the last scene, which takes the rea<strong>de</strong>r to 1968, to the house ofEmma and Robert (Emma’s husband and Jerry’s best friend) at the momentwhen the affair started. Later, in 1982, Pinter would write the screenplay, oneyear after having written the screenplay of John Fowles’s The French Lieutenant’sWoman, which shares with Betrayal the common element of the succession of theflashbacks on the screen. The first two scenes are the only ones which progressin time, as first Emma and Jerry and then Jerry and Robert, discuss the end of theaffair. It is only from scene three (1975) on that time begins to regress.In Betrayal time functions as a puzzle: the rea<strong>de</strong>r or spectator is <strong>de</strong>fied totry to un<strong>de</strong>rstand what has happened, before the events that already took placeare unveiled. Scene after scene, the angle of vision is altered to offer anotherperspective, another cut in the dissection of the relationship. In terms ofmemory, the first scene is quite revealing since, for the first time, it is possible tolisten to Jerry and Emma discussing the past. The affair has en<strong>de</strong>d; they meet in apub, after Emma called Jerry, and start a simple dialogue, exchanging what issupposed to be social formulas, avoiding the awkwardness of not knowing whatto talk about, since they have not encountered one another since the end of theaffair. At the beginning they exchange circumstantial sentences, trying to avoidthe past and the memories of their relationship. However, the bur<strong>de</strong>n of the pasttimes is still present and that contributes to the unfolding of revelations: Emmahas a new lover; Robert knew about the adulterous relation between his friendand wife and preten<strong>de</strong>d not to, as far as Jerry was concerned, and, in addition, hehas admitted to having betrayed his wife for years. From the outset, weun<strong>de</strong>rstand there are multiple levels of betrayal:Love, trust and friendship: Emma betrayed Robert and Jerry betrayed hiswife and friend; Robert betrayed Jerry (by withholding the truth of hisknowledge) and his wife.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201286


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97Comparing with Old Times, it is a different triangle, much more concrete,in terms of remembrances, since we are taken on a chronological regressive tourof the relationship. The play ends when the affair begins, in Emma and Robert’shouse. It is a text that <strong>de</strong>serves to be mentioned, mostly due to its innovation inthe dramatic territory of Pinter, first on account of its reverting structure and alsofor the fact, which is a novelty in Pinter’s texts, that there are no mysteries left todisclose, just a former situation which leads to the anguish of the characters,particularly Jerry who feels betrayed by Emma and Robert.In terms of language, the dialogues are quite straightforward, with a briefquestion and answer pattern, until a given topic is <strong>de</strong>alt with and conclu<strong>de</strong>d.What this particular play shares in common with the topic of time, memory andi<strong>de</strong>ntity is the fact that the three characters share a common past and have torecollect their impressions of it, in the two initial scenes: Using the memories of acommon past, Emma tries to impress Jerry with her new lover, since she has notbeen successful in triggering jealous emotions from her husband. On the otherhand, Jerry manifests more concern with Robert’s concealment from him of theomniscience he had of the affair than with the fact that he knew his best friendwas having an extramarital relation with his wife, and Robert appears to give agreater value to friendship than his relation with Emma. As far as memory isconcerned and using the stages introduced at the beginning of this text, the twofirst scenes take place at the level of the working stage, and Jerry is the oneresponsible for <strong>do</strong>ing the encoding of the information that was revealed and lefthim feeling betrayed to the point of needing to confront Robert, later that day.After these first two chapters, memory is only summoned when characters are inthe past referring to previous events, as it is the case of scene 4, when we witnessthe year previous to end of the affair (1974) and Emma observes, recalling thebeginning of the relationship (Pinter: 1998):Emma: You see, in the past...we were inventive, we were <strong>de</strong>termined, itwas... it seemed impossible to meet...impossible... and yet we did. (IV,p.41)87 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97In Betrayal memory is not a foreign country, it can be verified andconfronted with the previous dialogues that Emma, Jerry and Robert have had.Thus, the remembrances and, consequently, the time flux are constantlyscrutinised scene after scene, as time moves backwards and we witness the verbalexchanges. It is not a question of going back to <strong>de</strong>duce the root of the problem,it is simply a matter of experiencing a pointless voyeurism of something that isover but, once, nine years before, was relevant and helped shape the i<strong>de</strong>ntity ofthe characters of the first two scenes. In terms of the long-term memory stage,there’s a persistent image shared by Jerry and Emma and linked on threedifferent occasions with their affair: a memory of Jerry in Robert’s kitchen(recalled by Emma as Jerry’s kitchen) throwing Charlotte (Emma and Robert’sdaughter) up in the air and catching her. What is left, in terms of long-termimages, is one of pure intimacy among friends.Furthermore, the language use is quite restraint; there is a parallel betweenthe economy of words and the economy of emotions: The play is ma<strong>de</strong> of shortsentences, clichés and daily verbal exchanges (How are you, for instance is used asa refrain).As Ruby Cohen (Gor<strong>do</strong>n: 2001) corroborates:In Betrayal Pinter is so abstemious of the language techniques he hasburnished over two <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s that it would be only a slight exaggeration tostate that he betrays them, but he is all the truer — all the more brutallyhonest – to “the shape of things”(...) (p.28)In sum, Betrayal is a difficult text to position in Pinter’s canon, due to thelack of the recurrent topics that are mustered in a typical Pinteresque play,mystery, menace and absurd situations. However the element of memory andtime as factors which help shaping the i<strong>de</strong>ntity of the characters are there. Jerry inthe first scenes appears tainted, damaged by the <strong>de</strong>ath of the affair, and mostlydue to the Robert’s friendship. His loss is aggravated when he becomesPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201288


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97acquainted with the fact that Robert knew about the adultery, long time beforethey affair was over:Jerry: And she told you... last night... about her and me. Did she not?Robert: No, she didn’t. She didn’t tell me about you and her last night.She told me about you and her four years ago. Pause. (...)Jerry: But we’ve seen each other... a great <strong>de</strong>al... over the last four years.We’ve had lunch.Robert: Never played squash though.Jerry: I was your best friend.Robert: Well, yes, sure. (...) Oh, <strong>do</strong>n’t get upset there’s no point. (pp. 28;19)Inverting the aphorism that the husband is always the last to becomeaware of the betrayal, Jerry feels <strong>de</strong>ceived every step of the way, especially due tothe time factor. The fact that Robert was familiar with the adultery for so manyyears alters Jerry’s perception of his own i<strong>de</strong>ntity and Robert’s, since he engagedin a social and sexual intercourse not knowing all the premises of the infi<strong>de</strong>lityequation. He is, recovering an image from Old Times and the film Deeley hastaken Kate to watch and becomes a leitmotiv of the play, the odd manout! Timeis a key factor and the characters who know more feel more reassured morereassured of their i<strong>de</strong>ntity. As Steven Gale notes (Gale: 2003) discussing theconversion of the play into film 7 :In the play, Pinter explores and <strong>de</strong>monstrates the workings of the humanmind and interpersonal relationships by manipulating time. The drama isrelated to his later memory plays – Landscape, No Man’s Land,Silence, Night – but the film is as effective as the play because of the7 R e le ase d in Lond on, in 19 82, and in N e w Y o rk, a l so in 1 98 2, and nom i nat e df or 19 83 Ac ad e m y of M ot ion P i c t u re Art s a nd S c ie nc e s Aw ard s ( Be st P ic t u re , Writ i ng– Be st S c re e npl ay Ba se d on M a t e ria l f rom Anot he r M e d iu m ) , d ire c t e d by D av id Jo ne sw it h Be n K ins le y ( R obe rt ) , Je re m y I rons ( Je rry ) , and P at ric ia H od g e ( E m m a) .89 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97greater manipulation of time allowed by the cinematic medium – whichbecomes a prime feature in the movie. (p. 261)A Kind of AlaskaA Kind of Alaska is a one-act play written in 1982, based on the bookAwakenings written in 1973 by the neurologist Oliver Sacks. In the book he retellsa number of case studies of survivors of the encephalitis lethargica and their returnto the world after <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s of “sleep”, fully <strong>de</strong>scribing not only the medical andpsychological consequences, but also paying extraordinary attention to theontological and philosophical implication of the experiments he submitted theirpatients in or<strong>de</strong>r to treat them and wake them up to reality. According to theeditor (Vintage Book):Awakenings is the remarkable account of a group of patients whocontracted sleeping-sickness during the great epi<strong>de</strong>mic just after World WarI. Frozen in a<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s-long sleep, these men and women were given up as hopeless until1969,when Dr. Sacks gave them the then-new drug L-DOPA, which had anastonishing, explosive, “awakening” effect. Dr. Sacks recounts the movingcase histories of these individuals, the stories of their lives, and theextraordinary transformations they un<strong>de</strong>rwent with treatment 8 .The foreword to the play, something unusual in Pinter’s universe, givesfull context to the initial situation that is behind Sacks’ account (Pinter: 1998):In the winter of 1916-17, there spread over Europe, and subsequentlyover the rest of the world, an extraordinary epi<strong>de</strong>mic illness whichpresented itself in innumerable forms – as <strong>de</strong>lirium, mania, trances,8 ht t p: / / ww w . olive r sac k s. c om / b ook s/ aw ake n ing s/Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201290


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97coma, sleep insomnia, restlessness, and states of Parkinsonism. It waseventually i<strong>de</strong>ntified by the great physician Constanti von Economo andnamed by him encephalitis lethargic, or sleeping sickness.Over the next ten years almost five million people fell victim to the diseaseof whom more than a third died. Of the survivors some escaped almostunscathed, but the majority moved into states of <strong>de</strong>epening illness. Theworst affected sank into singular states of ‘sleep’ – conscious of theirsurroundings but motionless, speechless, and without hope or will, confinedto asylums and other institutions.Fifty years later, with the <strong>de</strong>velopment of the remarkable drug L-DOPA,they erupted into life once more. (p.151)In Sacks text, what drew Pinter’s attention was the case of Rose R. InSacks’ <strong>de</strong>scription of her, later inclu<strong>de</strong>d in a compilation of his most compellingstudy cases, Rose is a 63-year-old woman who had had progressive postencephaliticParkinsonism since the age of 18 and had been institutionalised, in a state of almost oculogyric‘trance’ for 24 years (Sacks: 1990, p.151). Rose becomes Deborah, in Pinter’s playand it is Sacks who unveils part of the motivation that drew the playwright to herstory:Later, when I came to write the story of this patient (Rose R.) inAwakenings, I thought less in terms of ‘reminiscence’ and more in termsof ‘stoppage’ (‘Has she never moved on from 1926?’ I write) – and theseare the terms in which Harold Pinter portrays ‘Deborah’ in A Kind ofAlaska (Sacks: 1990, p.150).In Pinter’s play Deborah is in her mid-forties and she wakes up, sud<strong>de</strong>nlyat the beginning of the play, without recognising Hornby, the <strong>do</strong>ctor who hastaken care of her. When he finally manages to get her to listen to him, she isinformed of her present status:91 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97Deborah: Well, how long have I been asleep?Pause.Hornby: You have been asleep for twenty-nine years.Silence.Deborah: You mean I’m <strong>de</strong>ad?Hornby: No. (p. 163)(...)Deborah: How did you wake me up? (...)Hornby: I woke you with an injection.Deborah: Lovely injection. Oh I love it. And am I beautiful?Hornby: Certainly.Deborah: And you are my Prince Charming. Aren’t you? (p. 168)Deborah is a Sleeping Beauty without a prince charming, just her sisterPauline, who was 12 years old at the time she lost contact with reality andbecomes the mirror of Deborah’s own ageing process. Deborah thinks of herselfas an a<strong>do</strong>lescent of sixteen years old, and looking at Pauline, starts to realize thather long term memories are the ones she consi<strong>de</strong>rs to have just occurred, whichmeans that her brain restarts functioning in the working stage, still processingand encoding images as if they were short-term ones. The images have to <strong>do</strong> withher childhood and a<strong>do</strong>lescence and if Pauline tries to postpone the revelation ofthe truth, elaborating a fairy-tale where the absent parents and sister are on acruise, Hornby <strong>do</strong>es not hesitate in explaining all that has happened. In the en<strong>do</strong>f the play, Deborah has a fast forward image of her, absent to the world foryears, and manages to created a new version of the past, editing the informationthat she has grasped, from Hornby and Pauline’s words, which inclu<strong>de</strong>s bothfacts and fantasies, concluding:You say I have been asleep. You say I am now awake. You say I have notawoken from the <strong>de</strong>ad. You say I was not dreaming and am not dreamingnow. You say I am a woman.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201292


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97She looks at Pauline, then back at Hornby.She is a wi<strong>do</strong>w. She <strong>do</strong>esn’t go to her ballet classes any more. Mummy andDaddy and Estelle are on a world cruise. They’ve stopped off in Bangkok.It’ll be my birthday soon. I think I have the matter in proportion. (p.190)The truth is Deborah only accepts as evi<strong>de</strong>nce a selection of events concerningher family and her birthday, the immediate memories of what she has been told.She distances herself from her current state by refusing to talk of herself in thefirst person, using the reported speech to <strong>de</strong>scribe her past 29 years, which is byno means an acknowledgement. At the same time, she appears to have forgottenHornby’s explanation about her father’s blindness, the fact that her sister Stella istaking care of him, and that her mother has passed away. She opts for Pauline’sbrighter version of the cruise and uses it as a statement/fact. She edits hermemories and enco<strong>de</strong>s them in her speech.This is a text where the topic of memory, time and the self are profoundlylinked since Deborah’s notion of i<strong>de</strong>ntity when she wakes is linked to the longterm memories she had immediately before entering into her trance. To find hernew i<strong>de</strong>ntity she needs to accept her present condition and that implies realisingthat she cannot have memories of the past twenty-nine years, thus breaking thecontinuum in time. As far as Hornby and Pauline’s memories are concerned theiri<strong>de</strong>ntities are profoundly linked to the sleep of Deborah, and they disclose theirremembrances only to fill in the puzzle of the gap of twenty-nine years with themissing information. In the case of Pauline her perspective is a closer one sinceshe witness the beginning of the disease and the process of ageing while she wasasleep. If Hornby is the one who summons the image that she has been in a kin<strong>do</strong>f Alaska, Deborah’s version is also poetic and accurate when she consi<strong>de</strong>rsherself similar to Alice in Won<strong>de</strong>rland.Deborah’s language is ma<strong>de</strong> of the memories she recovers that is why shetalks like a sixteen year old girl, with traces of childhood words, referring to‘mummy’, ‘daddy’ and verbally bullying her sister. As Ewald Mengel (Gor<strong>do</strong>n:2001) puts it:93 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97Pauline’s [sic] and Hornby’s memories basically have expositionalfunctions. They elucidate Deborah’s fate and the history of her family,forming a narrative context that gives meaning to the past and to thepresent of both Deborah and the audience. Deborah’s memories are lyricalin character. Her childhood memories serve to <strong>de</strong>fine her self, her i<strong>de</strong>ntity ina subjective way. The memories connected with her illness conjure up thephantasmagoric “no man’s land” Alaska, in which her consciousness hastravelled in the meantime. (p. 165)Her refusal to looking at herself in a mirror is a rejection of her presentself and her final words prove that, though she is ready to start coping with theimmensity of what has happened to her, she is not apt to accept the full truth(namely, her mother’s <strong>de</strong>ath, and her father’s blindness).ConclusionIn this analysis I have consi<strong>de</strong>red three plays that reflect the subjects ofmemory, time and discourse. Other plays could have been presented, as referre<strong>de</strong>arlier. However, these three are paradigmatic since they use memory to createdifferent types of discourse.In Old Times the past is the only engine that drives the conversation, andthe characters are, in terms of i<strong>de</strong>ntity, ma<strong>de</strong> out of memories and act accordingto them. It is the most enigmatic play of the three, since the discourseengen<strong>de</strong>red in that close room, is a fight for supremacy won by Kate, in terms ofattention and control of the others’ lives and i<strong>de</strong>ntities. According to Pinter, theplay is one of his best achievements and it started from one word ‘Dark’.In Betrayal, the rea<strong>de</strong>r is simply confronted with the characters’ memoriesat the beginning of the first two scenes. After scene three, time moves backwardsand one can witness and verify all that the characters <strong>de</strong>clare to have <strong>do</strong>ne. Theiri<strong>de</strong>ntities are only revealed, in terms of anxieties and frustrations, in thePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201294


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97commencement, afterwards memory is not at the core of the play, time is. Thenotion of the self in this text is directly related to the adultery: being adulterous,dishonest, being able to betray or to be betrayed, thus the characteristic of<strong>do</strong>mesticity that labels the play, in terms of literary criticism.Finally, A Kind of Alaska is an entirely different play in Pinter’s canon;nonetheless it still dwells in the thematic of time, memory and i<strong>de</strong>ntity,Deborah’s awakening is based on a true event and though the three medical stagesof the recovery, referred in Sacks account, were compress by Pinter, the textsheds a new light into the topic. It is, as referred previously, a mo<strong>de</strong>rn diseasedversion of Sleeping Beauty - without prince charming and without time standingstill, waiting for the princess to come alive from her spell – and Alice inWon<strong>de</strong>rland – without the chance of returning home. Deborah’s past is stuck inher present and nothing can alter the fact that her lack of memory of the past 29years <strong>de</strong>fines her i<strong>de</strong>ntity. Her Self as i<strong>de</strong>ntity disappears at 16 and restarts at 45and she has to <strong>de</strong>al with almost two thirds of her life without memories butexperiencing in her body the normal physical changes (from a<strong>do</strong>lescence intomiddle-age) of the time that has elapsed.In Pinter, as far as memory is concerned the past really is a foreign country andthings are <strong>do</strong>ne differently. However, in terms of i<strong>de</strong>ntity, there is always theunsettling feeling that the past is never past. Characters, shape, lose or rediscovertheir i<strong>de</strong>ntity, according to the plays, and memory either <strong>de</strong>termines the time flux,or is controlled by it. On numerous occasions memory is buried in discourse andPinter uncovers his own memories is his dramas thus creating new fiction out ofhis personal experience. When asked, in 1979, by Mel Gussow how his memorywas, Pinter replied (Gussow, 1994):I have a strange kind of memory. I think I really look back into a kind offog most of the time, and things loom out of the fog. Some things I have toforce myself to remember. I bring them back by an act of will. It appals methat I’ve actually forgotten things, which at the time meant a great <strong>de</strong>al tome. (p.53)95 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 -97George Whalley (1953) has <strong>de</strong>scribed memory, consi<strong>de</strong>ring it to be thecentral factor in the process of image making: without memory there can be nopoetic creation (p.73). Historicists have always privileged memory as thenutriment of History and the ultimate shaper of i<strong>de</strong>ntities, either collective orindividual, and cognitive psychologists have created different stages to analysethe impact of memory. In Pinter’s canon memory is, along with time, bafflingenigmatic and moul<strong>de</strong>d to serve the ultimate purpose of illustrating that life canbe a daunting experience which accounts for the necessity of including pausesand silences in his discourse: In the absence of an appropriate ‘voice’, Pinterdignifies the moment introducing a new sense – that of the unsaid - and uses it asa form of discourse, showing that in the end there are some memories whichcannot be translated into full words.Referências bibliográficasBATTY, Mark. 2005. About Pinter: the Playwright & the Work. England:Faber and Faber Limited.CAHN, Victor L. 1994. Gen<strong>de</strong>r and Power in the Plays of Harold Pinter. GreatBritain: MacMillan Press Ltd.CAROLL, Lewis. 1970. The Annotated Alice: Alice's Adventures in Won<strong>de</strong>rland& Through the Looking Glass. Great Britain: Penguin Books.COHEN, R. 2001. “The Economy of Betrayal”. In L. Gor<strong>do</strong>n, Pinter at70. New York and Lon<strong>do</strong>n: Routledge.ESSLIN, Martin. 1970. The People Wound: The Work of Harold Pinter. NewYork: Anchor Books.GALE, Steven H. (003. Sharp Cut: Harold Pinter's Sreenplays and the ArtisticProcess. USA: The University Press of Kentucky.GUSSOW, Mel. 1994. Conversations with Pinter. New York: Grove Press.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -201296


Cerqueira, Carina – Work in Progres: Representar o outro segun<strong>do</strong> o pensamento antropofágico.Casos <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> – Hans Sta<strong>de</strong>n e Les maîtres Fous 75 - 97HALL, Peter. 2001. “Directing the Plays of Harold Pinter”. In TheCambridge Companion to Harold Pinter. Ed. P. Raby. UK: Cambridge UniversityPress. Pp. 144-154.HOLLIS, James R. 1970. Harold Pinter: The Poetics of Silence. USA: SouthernIllinois University Press.MENGEL, E. 2001. "Yes! In the sea of Life Enisled": Harold Pinter’sOther Places. In Pinter at 70. Ed. L. Gor<strong>do</strong>n. Lon<strong>do</strong>n: Routledge: (pp.161-188)Press Ltd.PINTER, Harold. 1998. Plays Four. Lon<strong>do</strong>n: Faber and Faber.1996. Plays Three. Lon<strong>do</strong>n: Faber and Faber.1991. Plays One. Lon<strong>do</strong>n: Faber and Faber.REGAL, Martin S. 1995. A Question of Timing. Great Britain: MacMillanSACKS, O. 1990. The Man Who Mistook his Wife for a Hat and Other ClinicalTales. USA: Harper Perennial.Paul.WHALLEY, George. 1953. Poetic Process. Lon<strong>do</strong>n: Routledge and Kegan97 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


ESPELHOS DA POBREZA E DA EXCLUSÃO SOCIAL EMFERREIRA DE CASTRO E MIGUEL TORGADora Nunes GagoUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> MacauMacau<strong>do</strong>ragago@umac.mo“o homem é rico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se familariza com a pobreza”EpicuroResumoNo presente artigo, analisaremos o mo<strong>do</strong> como é <strong>de</strong>scrita a miséria, apobreza e a exclusão social, associadas sobretu<strong>do</strong> ao fenómeno da emigração,patentes nas obras Emigrantes, A Selva <strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong> Castro, e A Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><strong>de</strong> Miguel Torga.Atentaremos, por conseguinte, nas trajectórias empreendidas pelosprotagonistas <strong>de</strong>stas narrativas, sobretu<strong>do</strong> nas viagens empreendidas, mastambém nas personagens anónimas, na “gente da terceira classe” metaforizadaem “rebanho”, que parte na <strong>de</strong>manda dum El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> rapidamente <strong>de</strong>smitifica<strong>do</strong>.Além disso, será igualmente foca<strong>do</strong> o cruzamento entre a realida<strong>de</strong> e aficção, a experiência e a imaginação, visto que estas representações da pobreza eda exclusão social, impregnadas <strong>de</strong> humanismo, se enraízam nas vivências <strong>do</strong>sautores – pois ambos emigraram para o Brasil, sozinhos, no início daa<strong>do</strong>lescência. Posteriormente, esses acontecimentos, vivi<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s, foramretrata<strong>do</strong>s e ficcionaliza<strong>do</strong>s nas obras literárias supramencionadas.


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114RésuméDans cet article, nous analyserons la façon <strong>do</strong>nt sont perçues la misère, lapauvreté et l'exclusion sociale, liées essentiellement au phénomène <strong>de</strong>l’émigration, <strong>dans</strong> les œuvres Emigrants, La Forêt Vierge <strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong> Castro etLa Création du Mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Miguel Torga.Nous nous pencherons, tout d’abord, sur les trajectoires suivies par lesprotagonistes <strong>de</strong> ces récits, sans oublier les personnages anonymes, les «gens <strong>de</strong>troisième classe" métaphorisés par l´image du «troupeau», qui partent à larecherche d’un El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> aussitôt démythifié.Nous essayerons ensuite <strong>de</strong> mettre en relief le croisement entre la réalité etla fiction, l’expérience et l’imagination, <strong>dans</strong> la mesure où ces représentations <strong>de</strong>la pauvreté et <strong>de</strong> l'exclusion sociale, imprégnées d’un certain humanisme, setrouvent fortement enracinées <strong>dans</strong> le vécu intime <strong>de</strong>s auteurs – au début <strong>de</strong> leursrespectives a<strong>do</strong>lescences, ils ont tous les <strong>de</strong>ux, seuls, émigré au Brésil. Plus tard,ces événements vécus et sentis se répercutent, sous le voile <strong>de</strong> la fiction, <strong>dans</strong>leurs œuvres littéraires.Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Exclusão social, Pobreza, Emigração,Representações, Ferreira <strong>de</strong> Castro, Miguel Torga, BrasilMots clés: Littérature portugaise, Exclusion sociale, Pauvreté, Émigration,Représentations, Ferreira <strong>de</strong> Castro, Miguel Torga, BrésilFerreira <strong>de</strong> Castro (1888 - 1974) e Miguel Torga (pseudónimo <strong>de</strong> A<strong>do</strong>lfoRocha, 1907-1995), oriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> meio rural – um da Beira Litoral, o outro <strong>de</strong>Trás-os-Montes - viveram no início da a<strong>do</strong>lescência a dura experiência <strong>de</strong>emigração para o Brasil, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às dificulda<strong>de</strong>s económicas das famílias.O primeiro partiu com apenas <strong>do</strong>ze anos, em 1911, ten<strong>do</strong> permaneci<strong>do</strong> noBrasil até 1919, on<strong>de</strong> viveu a árdua experiência <strong>do</strong> trabalho como seringueiro noseringal “Paraíso”, no coração da Amazónia. O segun<strong>do</strong> emigrou, quase com aPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012100


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114mesma ida<strong>de</strong>, com treze anos, em 1920 para trabalhar na fazenda <strong>do</strong> tio, perto <strong>de</strong>Minas Gerais, on<strong>de</strong> também realizou as mais árduas tarefas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> capinar café acaçar cobras, ten<strong>do</strong> permaneci<strong>do</strong> neste país durante cinco anos.É <strong>de</strong> salientar que, nesta época, não era insólito jovens <strong>de</strong> tenra ida<strong>de</strong>,ainda no início da a<strong>do</strong>lescência partirem sozinhos para um país estrangeiro. Doponto <strong>de</strong> vista histórico, ela coinci<strong>de</strong> com o início <strong>de</strong> uma forte vaga migratóriapara o Brasil, que se manteve como forte <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> emigração até ao início <strong>do</strong>sanos sessenta, sen<strong>do</strong>, posteriormente, preferi<strong>do</strong>s países da Europa.Os <strong>do</strong>is autores, na <strong>de</strong>manda <strong>do</strong> “El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>”, cruzaram o Atlântico numvapor, na terceira classe, cresceram, amadureceram, regressaram a Portugal eescreveram essas vivências.Ten<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> na pele as dificulda<strong>de</strong>s e a pujança das garras da pobreza,gravaram, em tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, nas suas obras literárias, sobretu<strong>do</strong> em Emigrantes,e A Selva <strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong> Castro e em o Primeiro e Segun<strong>do</strong> Dia da Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong><strong>de</strong> Torga múltiplas imagens da miséria e da exclusão social que abordaremos emseguida.Antes <strong>de</strong> mais, principiamos por focar o momento da viagem na “terceiraclasse” em condições <strong>de</strong>sumanas que ambos os autores vivenciaram e<strong>de</strong>screveram.Gente da terceira classe: o rebanho embala<strong>do</strong> pelo mito <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>Em Emigrantes, as pessoas que vão emigrar, juntamente com oprotagonista, Manuel da Bouça, são “animalizadas”, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong>spreparativos para a viagem e <strong>do</strong>s rituais burocráticos necessários, como é o casoda inspecção médica: “dóceis animais lá foram expor ante o olho clínico a carnefatigada, para receber o último carimbo.” (Castro,1980, 87).Esta “animalização” tem por objectivo <strong>de</strong>nunciar a condição miseráveldaquela gente e o mo<strong>do</strong> como era tratada. A mesma i<strong>de</strong>ia ecoa com a referênciaao embarque no “Darro” (que constitui uma projecção <strong>do</strong> “Jerôme”, navio101 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114cargueiro em que o jovem Ferreira <strong>de</strong> Castro viajou) revelada a priori a condiçãodaquela gente:“Por fim, o rebanho lá se foi, atrás dum tripulante que não respondia àsperguntas que lhe faziam e marchava com apressa<strong>do</strong>s passos.Desceram escadas negras, tactean<strong>do</strong> corrimãos húmi<strong>do</strong>s, tropeçan<strong>do</strong> aolongo <strong>de</strong> galerias obscuras, até verem os seus beliches, uns por cima <strong>do</strong>soutros, como gavetões <strong>de</strong> jazigos. (Castro, 88-89).Neste caso, verificamos que a “animalização” anterior se especifica e atripulação é metaforizada como “rebanho”, imagem que se repeteconstantemente nas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>sta viagem. O “rebanho” é uma palavra comforte carga simbólica que não é utilizada aleatoriamente. Segun<strong>do</strong> Chevalier eGherbrant, ele representa o instinto gregário. O homem relaciona-se com acolectivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que o animal com o rebanho. Assim, o serhumano converte-se cada vez mais em “pessoa”, quanto maior for a suacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se bastar a si próprio, sen<strong>do</strong> capaz <strong>de</strong> viver sozinho, fora <strong>de</strong> umgrupo ou parti<strong>do</strong>. Tal como o carneiro sente receio ao ver-se sozinho, oindivíduo também tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentir à sua volta os outros homens. Talcomo referem os autores anteriormente menciona<strong>do</strong>s: “O rebanho apresenta-secomo uma massa, uma totalida<strong>de</strong> da qual não emergem nem homem, nemanimal.” (1994: 562). Contu<strong>do</strong>, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> frisar que nem toda acomunida<strong>de</strong> é “rebanho”, esta é apenas uma forma animal <strong>do</strong> grupo, marcadapor uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> regressão. Por conseguinte, o rebanho representa tanto aperversão da vocação social <strong>do</strong> homem, como <strong>do</strong> pen<strong>do</strong>r humano da socieda<strong>de</strong>.Nesta senda, segun<strong>do</strong> <strong>Juan</strong>-Eduar<strong>do</strong> Cirlot, como situação <strong>de</strong> multiplicida<strong>de</strong>, o“rebanho” possui signo negativo, indica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>de</strong>smembramento <strong>de</strong> uma forçaou intenção. (1984, 491).Assim, a palavra rebanho caracteriza <strong>de</strong> forma expressiva e simbólicaaquela “massa” <strong>de</strong> gente anónima, <strong>de</strong>sumanizada e curvada pelo jugo da miséria,que embarcava rumo ao <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> e à realização das suas ambições.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012102


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Constatamos ainda a comparação entre os beliches e os jazigos, e ainsistência na cor preta, que também se repete:Toda a terceira classe era negra, negra, viscosa e sufocante. […]Cheirava a tintas e da cozinha exalava-se nauseante fartum <strong>de</strong> comida.Por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> cada porta vislumbravam-se corpos enrodilha<strong>do</strong>s emgrossos cobertores, em teci<strong>do</strong>s castanhos e escuros, que enervavam aindamais o ambiente. (Castro, 89)Nota-se neste excerto, a importância simbólica das cores usadas para<strong>de</strong>screver a “terceira classe”. Primeiramente, a repetição da palavra “negra”. Comefeito, a cor preta, opõe-se a todas as cores, estan<strong>do</strong> associada às trevasprimordiais, à indiferenciação original, sen<strong>do</strong> associada à con<strong>de</strong>nação, à morte,ten<strong>do</strong> um aspecto <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> impureza. Tal como referem Chevalier eGherrbrant no Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, visto que absorve a luz e não a <strong>de</strong>volve,evoca “o caos, as trevas terrestres da noite, o mal, a angustia, a tristeza, ainconsciência…” (1994, 543). Para além disso, na sua influência sobre opsiquismo, o preto dá uma impressão <strong>de</strong> opacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> espessura, <strong>de</strong> peso. Porisso <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong>, “um far<strong>do</strong> pinta<strong>do</strong> <strong>de</strong> preto pesará mais <strong>do</strong> que um far<strong>do</strong>pinta<strong>do</strong> <strong>de</strong> branco”. (1994, 543).Outra cor simbólica presente nesta <strong>de</strong>scrição é o castanho <strong>do</strong>s cobertoreson<strong>de</strong> as pessoas se “enrodilham”. Esta é a cor da gleba (logo, directamenteconotada com a pobreza), da argila, <strong>do</strong> solo terrestre. Evoca também a folhamorta, o Outono, a tristeza, <strong>de</strong>linean<strong>do</strong>-se como “uma <strong>de</strong>gradação, uma espécie<strong>de</strong> casamento <strong>de</strong>sigual entre as cores puras.” (Chevalier/Gheerbrant, 1994, 168).Por isso, é um símbolo <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> (“húmus” significa “terra”), tanto entre osRomanos como na Igreja Católica, motivo que leva os religiosos a vestirem-se <strong>de</strong>burel.Assim, nos dias iniciais da viagem, a terceira <strong>do</strong> “Darro” era ‘’[…] umcurral flutuante on<strong>de</strong> se comprimia gran<strong>de</strong> rebanho.” (Castro,1980, 91).103 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114O barco levava emigrantes <strong>de</strong> várias nacionalida<strong>de</strong>s: galegos, polacas, etc.,“Quase to<strong>do</strong>s caminhavam cegamente, fascina<strong>do</strong>s pela resplandênciatransoceânica <strong>do</strong> imã; era o mistério, o prestígio <strong>do</strong> longínquo, a fuga às garras <strong>de</strong>uma laboriosa miséria.” (Castro, 1980, 92). Com efeito, toda aquela gente tentavalibertar-se da teia da pobreza. No fun<strong>do</strong>, o mito <strong>do</strong> ouro brasileiro, com raízesnos tempos <strong>de</strong> D. João V, o Magnânimo, que tanto gastara em obrasmonumentais, no Reino, encontrava-se bem vivo e presente no espírito <strong>do</strong> povo.Todavia, o ouro <strong>do</strong> Brasil já não chegava a Portugal “espontaneamente”. A partir<strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX, era consabi<strong>do</strong> que era necessário cruzar o oceano e irconquistá-lo com trabalho muito árduo às Terras <strong>de</strong> Vera Cruz. Na verda<strong>de</strong>, omito <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> encontrava-se profundamente enraiza<strong>do</strong> no imaginário cultural.O contraste entre a primeira e a terceira classe é frisa<strong>do</strong>, como espelho das<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e das discrepâncias sentidas em qualquer socieda<strong>de</strong>. Aliás,neste contexto convém referir que Ferreira <strong>de</strong> Castro foi um precursor <strong>do</strong> Neo-Realismo, que entre finais <strong>do</strong>s anos trinta e cinquenta, revelou a sua visãohistórico-cultural das contradições sociais, sob a égi<strong>de</strong> <strong>do</strong> materialismo históricoe dialéctico, inspira<strong>do</strong> pelo pensamento marxista. Ten<strong>do</strong> esta obra si<strong>do</strong> escrita em1928, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar alguns indícios neo-realistas no que concerneao tratamento da temática da pobreza.Nesta senda, contrastan<strong>do</strong> com o conforto da primeira classe, “Naterceira, constituíam-se grupos, homens e mulheres, cabeças pendidas pelasauda<strong>de</strong>, xailes, rostos <strong>de</strong> crianças, seios ao léu, numa promiscuida<strong>de</strong> cigana.”(Castro, 1980, 96).Posteriormente, Ferreira <strong>de</strong> Castro revela igualmente o drama <strong>do</strong>s “torna-viagem” ao <strong>de</strong>screver as condições <strong>de</strong> regresso <strong>do</strong> Brasil <strong>de</strong> Manuel da Bouça,mais tar<strong>de</strong> a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> “An<strong>de</strong>s”, on<strong>de</strong> encontra uma tripulação ainda maismiserável <strong>do</strong> que a primeira, visto estar <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> esperança, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aonaufrágio <strong>do</strong> sonho <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, vítimas da <strong>de</strong>scriminação, da exclusão social, da<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, pois:Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012104


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Trabalharam tanto que se esqueceram <strong>de</strong> si próprios; e no dia em que selembraram <strong>de</strong> que existiam, viram-se miseráveis como quan<strong>do</strong> haviamchega<strong>do</strong>; mais miseráveis ainda porque já não tinham a ilusão. Estavamenfermos, suga<strong>do</strong>s, envelheci<strong>do</strong>s, e só lhes restava implorar da morte umadiamento. Muitos <strong>de</strong>les iam repatria<strong>do</strong>s pelos cônsules; outros tinhamsoma<strong>do</strong> todas as economias feitas durante os anos <strong>de</strong> exílio e com elasadquiri<strong>do</strong> lugar por quinze dias naquela pocilga transatlântica.’’ (Castro,254).‘’Por isso, aquela gente, <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> ânimo e alma, constituía, comoafirma o autor, um “carregamento <strong>de</strong> carne humana, exausta, quase morta,que a América <strong>de</strong>volvia à Europa – homens que dir-se-ia estarem a maisno Mun<strong>do</strong> e se arrastavam pelos <strong>do</strong>is hemisférios como se fossem o refugo <strong>de</strong>outros homens.” (1980, 255).Neste caso, constatamos que aquele grupo pertence a um contingentepopulacional (que, infelizmente, nos nossos dias, continua a existir, ten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aaumentar nos mais diversos contextos) <strong>de</strong> pessoas que, na socieda<strong>de</strong> salarial, seassumem como um “peso”, visto que ao <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> ser explora<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong>ser integráveis, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao perfil <strong>de</strong> seres humanos excluí<strong>do</strong>s pelosistema.Pelo contrário, os passageiros <strong>do</strong> “Darro”, à semelhança <strong>de</strong> Manuel daBouça, ainda rumam ao El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, cheios <strong>de</strong> esperança e ilusões num futuromelhor.Em A Selva (1930) a viagem no “Justo Chermont” <strong>de</strong> Belém <strong>do</strong> Pará paraa Amazónia é igualmente feita em condições semelhantes. Nela, o protagonista,Alberto, é quem revela maior dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> adaptação, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> <strong>de</strong>sprezopelos miseráveis que compartilham com ele o mesmo espaço, que espelha o seucarácter elitista. É pois o cheiro a redil que <strong>do</strong>mina e a metáfora <strong>do</strong> “rebanho”, àsemelhança <strong>do</strong> que sucedia na obra anterior, <strong>de</strong> novo se impõe:105 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Na terceira, a caterva humana apertava-se e tripulante que quisesse rompero grupo tinha <strong>de</strong> eleger os cotovelos como argumento.To<strong>do</strong> o rebanho, porém, se humilhava, incerto nos passos a dar evocan<strong>do</strong>,ainda com terror, a viagem <strong>do</strong> Ceará até ali.” (Castro, 1980, 37).Os sentimentos <strong>de</strong> isolamento, revolta, indignação e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong><strong>de</strong>sintegração principiam a sentir-se ao longo da viagem no “Justo Chermont”,visto que ele não se i<strong>de</strong>ntifica com a gente “sórdida e promíscua” que oacompanha. Neste ponto, a personagem contempla o “outro” (neste caso osoutros emigrantes) com uma atitu<strong>de</strong> que se aproxima da “fobia”, visto que oconsi<strong>de</strong>ra inferior. Posteriormente, já no seringal, a sua alvura e porte urbanoconvertem-no em alvo <strong>de</strong> escárnio, acentuan<strong>do</strong>-se a solidão e o isolamento.Por seu turno, Miguel Torga revela a sua experiência <strong>de</strong> emigração,ocorrida entre 1920 e 1925, na obra A Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> - O Segun<strong>do</strong> Dia. Nela,<strong>de</strong>paramo-nos com um narra<strong>do</strong>r autodiegético, retrospectivo, adulto eautoconsciente, que recria as vivências <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong> voz à criança que foi,através duma linguagem simples e espontânea. A emigração, numa tentativa <strong>de</strong>fuga à pobreza, assume-se como experiência <strong>de</strong> amadurecimento, <strong>de</strong> contactocom um espaço novo, diferente, marca<strong>do</strong> pela dureza da vida e, simultaneamente,pela <strong>de</strong>scoberta.A <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> início da viagem para o Brasil termina O Primeiro Dia daCriação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> entra a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> “Arlanza” e o retrato não difere muito<strong>do</strong>s elabora<strong>do</strong>s anteriormente por Ferreira <strong>de</strong> Castro:Em toda a terceira só havia barafunda e lágrimas. Ninguém sabia fazermais nada. O cheiro <strong>do</strong> <strong>de</strong>sinfectante branco <strong>do</strong>s urinóis ardia no nariz.Chegava uma música vaga, <strong>de</strong> longe, da primeira. (Torga, 1999, 76).Uma vez que o ser humano percepciona o mun<strong>do</strong> real através <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s osseus senti<strong>do</strong>s, o apelo ao olfacto, através da <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong>s o<strong>do</strong>res (o cheiro <strong>do</strong><strong>de</strong>sinfectante branco), confere ainda maior autenticida<strong>de</strong> e realismo aos factosPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012106


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114<strong>de</strong>scritos. Tal como refere Yi Fu Tuan, o o<strong>do</strong>r é um senti<strong>do</strong> negligencia<strong>do</strong> pelohomem mo<strong>de</strong>rno, uma vez que o ambiente i<strong>de</strong>al exclui necessariamente aexistência <strong>de</strong> o<strong>do</strong>res. No entanto, este autor afirma: “O<strong>do</strong>r has the power toevoke vivid, emotionally-charged memories of past events and scenes” (1990,10).Evi<strong>de</strong>ncia-se, aqui também o contraste entre as classes, entre a miséria <strong>de</strong>uns e o conforto <strong>de</strong> outros que emerge sob a forma da música, como umarealida<strong>de</strong> distante, diáfana e inacessível. Seguidamente, Torga refere, no Segun<strong>do</strong>Dia:As ondas nasciam e morriam sempre da mesma maneira.[….] por fim, osvómitos começaram a ser em seco. […]Mas a vida era a vida e tu<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u. Passada uma semana já ninguémgemia pelos cantos. […] Quan<strong>do</strong> a sineta tocava, ia buscar o rancho numalata, e o grão <strong>de</strong> bico, apesar <strong>de</strong> bichoso e mal cozi<strong>do</strong>, sabia-me bem. Aossába<strong>do</strong>s (havia sába<strong>do</strong>s ali), lavava a camisa. (Torga, 1999, 81).Assim, apesar da <strong>de</strong>scrição sob a óptica <strong>do</strong> olhar nos permitir a aquisição<strong>de</strong> uma perspectiva mais abrangente <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que nos ro<strong>de</strong>ia, o recurso àtransposição das sensações auditivas (o som da sineta) possibilita-nos umarelação mais próxima e intensa com o espaço exterior, visto que como afirma Yi-Fu Tuan: “The sound of rain pelting against leaves, the roll of thun<strong>de</strong>r, thewhistling of wind in tall grass, and the anguished cry excite us to a <strong>de</strong>gree thatvisual imagery can sel<strong>do</strong>m match.” (1990, 8). Deste mo<strong>do</strong>, a evocação <strong>do</strong>sdiversos senti<strong>do</strong>s nas <strong>de</strong>scrições confere-lhes maior realismo e verosimilhança.Após este breve périplo pelas “viagens” da “gente da terceira classe”,abordaremos seguidamente, <strong>de</strong> forma sucinta, a inscrição da pobreza e exclusãosocial nos percursos das personagens.107 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Os percursos individuais e as precárias condições <strong>de</strong> trabalho: a pobrezana outra esquinaEm Emigrantes, já no Brasil, ao viajar no comboio, Manuel da Bouçapresencia ainda miséria pior <strong>do</strong> que a sua ao vislumbrar, ao longo da via férrea,um acampamento <strong>de</strong> romenos, ludibria<strong>do</strong>s pelo sonho <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>, “umpromíscuo e maltrapilho ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> homens, mulheres e crianças. Dir-se-ia apopulação <strong>de</strong> um cemitério recém-ressuscitada”, imagem da miséria “gritan<strong>do</strong> <strong>do</strong>seu último <strong>de</strong>grau” (1980, 137).Precárias são igualmente as condições <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s outros imigrantesportugueses que encontra no Brasil, já inteiramente <strong>de</strong>siludi<strong>do</strong>s.Finalmente, o protagonista encontra trabalho no cafezal <strong>de</strong> Santa Efigénia,local on<strong>de</strong> os trabalha<strong>do</strong>res vivem em “casinhotos” também são explora<strong>do</strong>s e ossalários são miseráveis, em contraste com as fortunas que os patrões (como ocoronel Borba) se dão ao luxo <strong>de</strong> esbanjar no Rio <strong>de</strong> Janeiro ou em Paris. Estascondições <strong>de</strong> subserviência <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res encontram-se presentes noseguinte excerto:O feitor, olhar duro, boca cerrada, seguia <strong>de</strong> perto o esforço <strong>do</strong>s seushomens. Só um <strong>do</strong>s novos contrata<strong>do</strong>s o irritava, por se mostrar menos<strong>de</strong>stro. Os outros <strong>de</strong> tronco nu, escorren<strong>do</strong> suor, os músculos retesan<strong>do</strong>-secom os movimentos <strong>do</strong> macha<strong>do</strong>, corta, corta, cumpriam o seu <strong>de</strong>ver.(Castro,1980, 159).Após ter trabalha<strong>do</strong> arduamente no cafezal <strong>de</strong> Santa Efigénia, empéssimas condições e com um magro salário, e, posteriormente ter parti<strong>do</strong> para S.Paulo on<strong>de</strong> trabalhou como emprega<strong>do</strong> num armazém, sem que a sua vida tenhamelhora<strong>do</strong>, Manuel da Bouça consegue pagar a viagem <strong>de</strong> regresso com odinheiro obti<strong>do</strong> através da venda <strong>de</strong> um anel rouba<strong>do</strong> a um cadáver, tomba<strong>do</strong>,durante a Revolução <strong>de</strong> 1928, ocorrida nesta cida<strong>de</strong> e li<strong>de</strong>rada pelo generalIsi<strong>do</strong>ro Dias Lopes.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012108


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Ainda mais pungentes são as imagens da miséria em A Selva, quecaracterizam a forma <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s seringueiros na Selva Amazónica, entre os quaisFerreira <strong>de</strong> Castro trabalhou.Nesta sequência, o drama <strong>de</strong> Alberto e o seu percurso individualcentram-se num único espaço: a selva amazónica que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua importância,assume quase a condição <strong>de</strong> personagem, visto que constantemente é animizada,comparada a uma “fera <strong>de</strong>vora<strong>do</strong>ra” (2006, 80), ou “monstro” 2006, 88).Deste mo<strong>do</strong>, a selva reflecte a realida<strong>de</strong> social e cultural <strong>do</strong> homem,assumin<strong>do</strong>-se, nesta medida, como um sistema simbólico <strong>de</strong> representação social.Assim, esta outra face, <strong>de</strong> conotação positiva po<strong>de</strong>r-se-á relacionarigualmente com o aspecto positivo da socieda<strong>de</strong>, ou seja, no meio das injustiçassociais, Alberto encontra, no seringal, entre os companheiros, sobretu<strong>do</strong> comFirmino, um mestiço oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ceará, uma gran<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, que lhespermite enfrentar a miséria e a exploração <strong>de</strong> que são vítimas.escravatura:As condições <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s seringueiros encontravam-se muito próximas daA barraca tinha duas divisões: uma on<strong>de</strong> Alberto <strong>do</strong>rmira, alar<strong>de</strong>ava nochão, por baixo das re<strong>de</strong>s, uma esteira e, ao canto um baú. A segunda, <strong>de</strong>mais estreiteza […] <strong>do</strong>is caixotes vazios, para assento, e, <strong>de</strong>pendura<strong>do</strong>s napare<strong>de</strong>, os rifles. Dava ainda para uma alpedrada, aberta <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>se on<strong>de</strong> a velha lata <strong>de</strong> petróleo, cortada numa das faces e com um buraco naparte superior, servia <strong>de</strong> fogareiro à cafeteira… (2006,104).Para além <strong>de</strong> viverem em barracas, e <strong>de</strong> serem “proprieda<strong>de</strong>” <strong>do</strong> patrão,quan<strong>do</strong> não podiam trabalhar nas estradas da borracha, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> às chuvadas, nãoganhavam nada e esforçavam-se por sobreviver, satisfazen<strong>do</strong> as necessida<strong>de</strong>smais elementares <strong>do</strong> corpo. Acabavam por vegetar endivida<strong>do</strong>s, esfomea<strong>do</strong>s e<strong>do</strong>entes, prisioneiros da selva. Os patrões fixavam preços exorbitantes a todas asmerca<strong>do</strong>rias provindas das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, converten<strong>do</strong>-as em inacessíveis aostrabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> látex. O seu único lenitivo era a embriaguez periódica quan<strong>do</strong>109 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114tinha acesso à cachaça: “Até o novo <strong>do</strong>mingo, to<strong>do</strong> o resto da semana se volviaem impaciência, semana negra como a água <strong>do</strong> igapo, dias longos em que aamargura sufocava e a boca exigia o ar<strong>do</strong>r da esquece-sofrimentos.” (2006, 143).Por conseguinte, ao longo <strong>do</strong> tempo, as mudanças operadas em Albertosão notórias. A princípio, é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela sensação <strong>de</strong> aprisionamento,isolamento, solidão, sen<strong>do</strong> posteriormente venci<strong>do</strong> pela força tirana da selva, queo leva à submissão, ao <strong>de</strong>sânimo e ao completo <strong>de</strong>sleixo no aspecto físico quetanto prezava, numa <strong>de</strong>scida ao seu próprio abismo interior, à <strong>de</strong>gradação <strong>do</strong>ssenti<strong>do</strong>s. Esta gran<strong>de</strong> transformação é acompanhada por outra da mesmadimensão a nível psicológico. A personagem evolui notavelmente, através <strong>do</strong> seucontacto com o “outro”, sobretu<strong>do</strong> com Firmino (o seu companheiro <strong>de</strong>seringal), com os seringueiros irmana<strong>do</strong>s com ele na mesma miséria,encarcera<strong>do</strong>s no mesmo espaço claustrofóbico, dissolvente que lhes retira ahumanida<strong>de</strong> e a dignida<strong>de</strong>.Nesta sequência, o jovem arrogante, orgulhoso, convicto <strong>do</strong>s seus i<strong>de</strong>aispolíticos, elitistas torna-se mais humano, humil<strong>de</strong>, revelan<strong>do</strong> uma abertura ecompreensão face ao outro, num exercício <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>, marca<strong>do</strong> pelo encontroe a compreensão: “A pensar nas bravas gentes, Alberto enternecia-se agora ecompreendia-as melhor. Já eram outras para ele, assim vestidas com farraposdramáticos que a Europa ignorava.” (2006, 135).Seguidamente, a vida <strong>de</strong> Alberto melhora, visto que passa trabalhar noescritório <strong>do</strong> seringal, com condições completamente diferentes das anteriores.No entanto, não esquece as condições <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s companheiros e ao recordá-las, revolta-se contra as injustiças <strong>de</strong> que são vítimas, num conflito interior quepõe em causa to<strong>do</strong>s os valores que antes <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra. Assim, num processo gradual<strong>de</strong> aprendizagem, modifica-se completamente, renovan<strong>do</strong>-se, pon<strong>do</strong> <strong>de</strong> parte oseu passa<strong>do</strong>, através da construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> renovada, mais consciente.A iniciar o capítulo XIV, já na recta final, <strong>de</strong> novo se afirma a miséria <strong>de</strong>novos emigrantes chega<strong>do</strong>s à selva, <strong>de</strong>sta vez japoneses, pois a pobreza nãoselecciona rostos, nem nacionalida<strong>de</strong>s.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012110


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114[…] toda a gente no seringal se especaria, boquiaberta, ante a nova religiãoque se <strong>de</strong>bruçava, melancólica […] no primeiro convés <strong>do</strong> “JustoChermont”. Era rebanho copioso, <strong>de</strong> pele seca, proeminências ósseas na facee olhar mortiço <strong>de</strong> quem regressa <strong>de</strong> outro mun<strong>do</strong>. (2006, 211).Por outras palavras, os “rebanhos” que chegam em busca <strong>do</strong> sonho, são,como já referimos, das mais diversas nacionalida<strong>de</strong>s, pois a miséria não conhecefronteiras geográficas.No final, constatamos que o protagonista, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início se sobrepõecomo herói, encarnan<strong>do</strong> as aspirações <strong>do</strong>s seringueiros, se transformou numhumanista que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a justiça para to<strong>do</strong>s. Aliás, após o incêndio provoca<strong>do</strong>pelo negro Tiago para assassinar o tirano Juca, inimigo da liberda<strong>de</strong>, peçafundamental <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> exploração e opressão, que man<strong>do</strong>u chicotear osseringueiros que haviam fugi<strong>do</strong>, Alberto conclui que nunca será advoga<strong>do</strong> <strong>de</strong>acusação e aspira a um mun<strong>do</strong> mais humano e mais justo, a uma justiça universal,aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> as suas i<strong>de</strong>ias retrógradas e a<strong>do</strong>ptan<strong>do</strong> outros <strong>de</strong> teor humanista eprogressista.No fim, Alberto não necessita <strong>de</strong> “roubar” para pagar a passagem <strong>de</strong>regresso, como suce<strong>de</strong>u com Manuel da Bouça, mas é a mãe quem lha paga.Relativamente a Torga, à semelhança <strong>do</strong> que suce<strong>de</strong>u com José MariaFerreira <strong>de</strong> Castro, é também no Brasil, que irá crescer, amadurecer e tornar-sehomem, nas condições mais adversas. Essa formação realizar-se-á em duasetapas, sen<strong>do</strong> a primeira preenchida com o trabalho árduo na fazenda <strong>do</strong> tio,on<strong>de</strong> não usufrui <strong>de</strong> qualquer privilégio, exercen<strong>do</strong> as mais duras tarefas.Posteriormente, em Ribeirão Preto terá a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar e <strong>de</strong> ler osmais diversos autores, sacian<strong>do</strong> a sua se<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber.No regresso, tal como suce<strong>de</strong>u com Ferreira <strong>de</strong> Castro e as suaspersonagens, Torga também não traz fortuna material e o primeiro encontro comos pais relata<strong>do</strong> no Terceiro Dia da Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, revela que o fantasma dapobreza continua a atormentá-los, pois como refere:111 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Arrefecia-nos ainda outro gelo: a pobreza. A ausência cobria tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> umasauda<strong>de</strong> <strong>do</strong>irada. E a realida<strong>de</strong> permanecia inalterável.-O Pai escusava <strong>de</strong> andar com essas calças tão rotas!- E que é <strong>do</strong>utras? Tu que cuidas?! Que o vou roubar? (Torga, 1999,159).Deste mo<strong>do</strong>, também o escritor transmontano não integrou a pequenaminoria <strong>de</strong> emigrantes regressa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil enriqueci<strong>do</strong>s, que serviram <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>lo a algumas personagens <strong>de</strong> Aquilino Ribeiro. Nenhum <strong>de</strong>les foi, comoexplicava Oliveira Martins, o caixeiro que se torna negociante, enriquece e, ven<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>no<strong>de</strong> um pecúlio maior ou menor, como esse pecúlio é dinheiro sem fixi<strong>de</strong>z, líquida, recheia acarteira e volta a acabar regaladamente a vida junto às carvalhas da sua infância, na Praça Nova<strong>do</strong> Porto, ou na Rua das Capelistas <strong>de</strong> Lisboa (Martins, 248).ConclusãoEm suma, se como afirmou Epicuro, o “homem é rico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sefamiliariza com a pobreza”, concluímos que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong>, Ferreira <strong>de</strong>Castro e Miguel Torga foram enriqueci<strong>do</strong>s humanamente pela dureza da vida,impulsiona<strong>do</strong>ra da experiência <strong>de</strong> emigração em “terceira classe”, integran<strong>do</strong> orebanho que rumava além-mar na <strong>de</strong>manda <strong>do</strong> El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>. E a fortuna almejada foialcançada, sim, mas sob a forma da palavra <strong>de</strong> escrita, <strong>de</strong> vivências sentidas e“escrevividas”. Delas germinaram obras que <strong>de</strong>ram voz à pobreza e à exclusãosocial, retratan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> forma nua, crua e realista, através <strong>de</strong> uma focalizaçãointerna que nos permite penetrar no universo íntimo <strong>do</strong>s protagonistas e nosmeandros <strong>do</strong> seu olhar, a<strong>de</strong>rin<strong>do</strong> à óptica <strong>de</strong> Manuel da Bouça, Alberto ou <strong>do</strong>narra<strong>do</strong>r autodiegético <strong>de</strong> A Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Obras <strong>de</strong>lineadas na tela da própriavida, on<strong>de</strong> a ficção e a realida<strong>de</strong>, a imaginação e a ficção se entrecruzam nafiligrana da narrativa, espelhan<strong>do</strong> a pobreza <strong>do</strong>s <strong>de</strong>stinos, tantas vezesescamotea<strong>do</strong>s, da excluída gente da “terceira classe”.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012112


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114Referências bibliográficasCASTRO, Ferreira <strong>de</strong> - Emigrantes, 21ª ed, Lisboa, Guimarães Editora.------------------A Selva, 40ª ed., Lisboa, Guimarães Editora.CHEVALIER, Jean et A. Gheerbrant, Dicionário <strong>do</strong>s Símbolos (trad. <strong>de</strong>Cristina Rodriguez e Artur Guerra), Lisboa, Ed. Teorema, 1994.CIRLOT. <strong>Juan</strong> Eduar<strong>do</strong>. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos (trad. Eduar<strong>do</strong> Frias) S.Paulo. Ed. Moraes, 1984.EMERY, Bernard. L’humanisme luso-tropicale selon José Maria Ferreira <strong>de</strong>Castro, Paris, Ellug, 1992.GAGO, Dora Maria Nunes. 2008. Imagens <strong>do</strong> estrangeiro no Diário <strong>de</strong> MiguelTorga, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT.------- 2008. “A imagem <strong>do</strong> Brasil no Diário <strong>de</strong> Miguel Torga: Daemigração ao reencontro”, Portugal e o Outro: olhares, influências e mediação”, (coord.)Otília Pires Martins, Coimbra, Centro <strong>de</strong> Línguas e Culturas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Aveiro, pp.147-160.--------“Trajectoires d’exil chez Ferreira <strong>de</strong> Castro - Emigrants et Forêt vierge:du rêve au cauchemar”, communication presentée au colloque "Exils, errances,rencontres" (décembre 2009), Cergy-Pontoise (France)http://www.u-cergy.fr/IMG/exils._traj.cergy.v.3<strong>do</strong>ra_gago.pd------ – “Pelas veredas da Literatura Comparada: Olhares <strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong>Castro sobre o Brasil, à luz da imagologia”, Revista ALETRIA nº1, vol. 21, daUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, jan-abr.2010,pp.35-48.-------- “Pelas veredas da luso-brasilida<strong>de</strong>: ressonâncias <strong>do</strong> Brasil nas obras<strong>de</strong> Ferreira <strong>de</strong> Castro e Miguel Torga”, Polissema, Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP, Porto2010, nº 10. 77- 91.LETIZIA, Maria Eva B.K., “José Maria Ferreira <strong>de</strong> Castro, uma vivência<strong>de</strong> emigrante nas terras <strong>do</strong> Brasil” , Castriana,, nº2, Ossela, 2004.MARTINS, Oliveira. Fomento Rural e Emigração, 3ª Edição, GuimarãesEditores, 1994.113 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Gago, Dora Nunes – Espelhos da pobreza e da exclusão social em Ferreira <strong>de</strong> Castro eMiguelTorga 99 - 114SERRÃO, Joel. “Conspecto histórico da emigração portuguesa”,http://analisesocial.ics.ul.pt/<strong>do</strong>cumentos/1224258510R3rFG4jc9La79ZA4.pdf, acedi<strong>do</strong> a 8/4/2012.TORGA, Miguel. A Criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, 3ª edição integral, Lisboa,Publicações <strong>Dom</strong> Quixote, 1999.TUAN, Yi-Fu, Topophilia, A Study of environmental Perception and values. NewYork, Columbia University Press, 1990Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012114


RESULTADOS PRELIMINARES DE UM ESTUDO SOBRETRADUÇÃO AUDIOVISUAL INFANTO-JUVENIL: O CASO DADOBRAGEM EM PORTUGALGraça Bigotte ChorãoInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoPortugalgchorao@iscap.ipp.ptResumoNos últimos anos, o volume <strong>de</strong> produções audiovisuais aumentouexponencialmente graças ao <strong>de</strong>senvolvimento das novas tecnologias e àomnipresença <strong>do</strong>s mass media à escala global. No que concerne o público infantojuvenil,o consumo massivo <strong>de</strong> produtos audiovisuais contribuiu para aconstrução <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>r mais familiariza<strong>do</strong> com aimagem/palavra em movimento, seja no ecrã da televisão ou <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r.Com este artigo, preten<strong>do</strong> partilhar os resulta<strong>do</strong>s preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong>exploratório sobre o impacto da <strong>do</strong>bragem em Portugal no público infantojuvenilenquanto consumi<strong>do</strong>res/receptores <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> tradução interlinguística.Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a oferta televisiva é condicionante <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong>produtos audiovisuais traduzi<strong>do</strong>s é crucial compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> estaconjuntura po<strong>de</strong>rá vir a criar públicos mais receptivos à <strong>do</strong>bragem num futuropróximo.AbstractIn recent years, the volume of audiovisual productions has increase<strong>de</strong>xponentially thanks to the <strong>de</strong>velopment of new technologies and the ubiquity ofmass media on a global scale. Regarding child and teen audiences, the massconsumption of audiovisual products contributed to the construction of a new


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127type of viewer familiarised with the image/word in motion, both in a TV orcomputer screen. In this article, I intend to share the preliminary results of anexploratory study on the impact of dubbing in Portuguese television bearing inmind that children and teenagers are the main consumers /receivers of this typeof interlinguistic translation. Consi<strong>de</strong>ring that television programming influences<strong>de</strong>cisively the consumption of translated audiovisual products, it is crucial toun<strong>de</strong>rstand how this scenario could create a more receptive public to dubbing inthe near future.Palavras-chave: <strong>do</strong>bragem, público infanto-juvenil, televisão, Portugal, recepçãoKey words: child and teen audiences; television; Portugal; receptionNos últimos anos, uma das consequências mais visíveis da globalização foia massificação e a vulgarização <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> da informação e <strong>do</strong> entretenimento.O volume <strong>de</strong> produções audiovisuais aumentou exponencialmente graças ao<strong>de</strong>senvolvimento das novas tecnologias e à omnipresença <strong>do</strong>s mass media à escalaglobal. Esta nova realida<strong>de</strong> a que Gambier (2006:1) chama <strong>de</strong> digitopia oferecenovos <strong>de</strong>safios e oportunida<strong>de</strong>s não só ao negócio da produção audiovisual mastambém aos tradutores. Estamos perante uma transformação profunda a <strong>do</strong>isníveis, como refere Kress (2003:1) «on the one hand, the broad move from thenow centuries-long <strong>do</strong>minance of writing to the new <strong>do</strong>minance of the imageand, on the other hand, the move from the <strong>do</strong>minance of the medium of thebook to the <strong>do</strong>minance of the medium of the screen». Sem querer escamotear aimportância <strong>do</strong> cinema, da internet ou <strong>do</strong>s jornais, este <strong>do</strong>mínio consubstancia-seprincipalmente através da televisão pela sua importância na vulgarização e nadisseminação da imagem em movimento. O pequeno ecrã veio aproximarcivilizações e culturas, revelar novas experiências e vivências, abrin<strong>do</strong> novoshorizontes <strong>de</strong> conhecimento.Esta diversida<strong>de</strong> multicultural materializa-se na profusão <strong>de</strong> produtostelevisivos à escala mundial, o que implica obviamente a necessária transferênciaPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012116


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127linguística para o país receptor. Assim, no caso da televisão, é a traduçãoaudiovisual que <strong>de</strong>rruba as barreiras linguísticas e possibilita a comunicaçãointercultural. E, para além disso, é responsável pela transformação social, comodiz Diaz-Cintas(2009:8), «[g]iven the power exerted by the media, it is not anexaggeration to state that AVT is the means through which not only informationbut also the assumptions and values of a society are filtered and transferred toother cultures».No âmbito <strong>do</strong>s públicos infanto-juvenis, o consumo massivo <strong>de</strong> produtosaudiovisuais contribuiu para a construção <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>r maisfamiliariza<strong>do</strong> com a imagem/palavra em movimento, seja no ecrã da televisão ou<strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r até porque, segun<strong>do</strong> O’Connell (2003:226), «computer, vi<strong>de</strong>o,radio and television and other kinds of audiovisual material have become just asimportant as books as far as the education and entertainment of young people isconcerned».Tanto os livros como os programas televisivos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s para os públicosmais jovens têm muito em comum: ambos re<strong>de</strong>finem-se enquanto texto,enquanto construção semiótica como refere Gambier (2006:6), «no text is, strictlyspeaking monomodal. Traditional texts, hypertexts, screen texts combinedifferent semiotic resources».A combinação singular da palavra com a imagem reinventa-se em cadalivro ou em cada filme <strong>de</strong> animação. Citan<strong>do</strong> O’Connell (2003:225),in reality both illustrated children’s books and children’s televisionanimation have a great <strong>de</strong>al in common in terms of how they combine wordand image, and, in<strong>de</strong>ed, both have much to offer children from anentertainment and educational point of view.Cientes <strong>do</strong> papel fulcral que a leitura e o contacto com o livro <strong>de</strong>vem terna educação e formação das nossas crianças, interessa também observar comalguma atenção a importância da comunicação audiovisual. Retoman<strong>do</strong> aspalavras <strong>de</strong> O’Connell (2003:2),117 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127Audiovisual media can actually lead children back to more traditionalwritten texts since many popular programmes, films etc. are based on booksfor children. Moreover, the link can work in the opposite direction with newnovels and comics being written and/or translated to respond to an interestin reading about characters first encountered on screen.São inúmeros os casos <strong>de</strong> filmes e séries <strong>de</strong> animação infantil resultantes<strong>de</strong> adaptações para televisão <strong>de</strong> literatura infanto-juvenil. A título exemplificativo,encontrámos a série Abelha Maia, uma adaptação <strong>do</strong> livro As aventuras da AbelhaMaia <strong>de</strong> Wal<strong>de</strong>mar Bonsels, que mereceu gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> e foi uma dasprimeiras <strong>do</strong>bragens feitas para televisão em Portugal. Outro exemplo foi Vickie,o Viking, que estreou em 1975 com legendas em português e baseava-se noslivros infantis <strong>do</strong> autor sueco Runes Jonsson, cujo primeiro livro foi edita<strong>do</strong> em1964. Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> referir a série <strong>de</strong> animação Alice no País das Maravilhas,<strong>do</strong> escritor britânico Lewis Carrol ou As Aventuras <strong>de</strong> Tom Sawyer <strong>de</strong> Mark Twain.No entanto, o percurso inverso também se verificou: séries <strong>de</strong> animaçãogozan<strong>do</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> resultaram na publicação <strong>de</strong> livros. É o caso dasérie Willy Fog, baseada na obra <strong>de</strong> Júlio Verne, A Volta ao Mun<strong>do</strong> em 80 Dias que,por seu la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>u origem à publicação <strong>de</strong> vários livros sobre as aventuras <strong>de</strong>stapersonagem. O mesmo tem vin<strong>do</strong> a acontecer com séries <strong>de</strong> animação comoRuca, Bob, o Construtor, Pocoyo entre outros.A realida<strong>de</strong> audiovisual em PortugalNo panorama televisivo português, somos invadi<strong>do</strong>s por uma gran<strong>de</strong>quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> programas estrangeiros <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a públicos diversifica<strong>do</strong>s o queobriga a proce<strong>de</strong>r à necessária adaptação para Língua Portuguesa <strong>de</strong>ssesprodutos. Assim, as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tradução audiovisual mais comuns nouniverso televisivo português são a legendagem, a <strong>do</strong>bragem, a narração (voice-Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012118


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127over) e a interpretação simultânea, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> programas e <strong>do</strong>segmento <strong>do</strong> público a que se <strong>de</strong>stinam.A par <strong>do</strong>s países nórdicos e da Grécia, entre outros (Gottlieb, 2005:24) emPortugal, utiliza-se a legendagem como méto<strong>do</strong> tradutivo por excelência, tantopara cinema como para televisão. Embora gran<strong>de</strong> parte da produção audiovisualestrangeira no polissistema televisivo e fílmico português seja legendada, no queconcerne os conteú<strong>do</strong>s infanto-juvenis, a situação inverte-se. Neste universo <strong>de</strong>polisistemas tradutivos, a <strong>do</strong>bragem distancia-se <strong>de</strong>sse posicionamento periféricoe a<strong>do</strong>pta um papel central e nuclear em face da sua utilização constante erecorrente.Importa referir que, mesmo nos países tradicionalmente legenda<strong>do</strong>res, a<strong>do</strong>bragem é a modalida<strong>de</strong> tradutiva preferencial usada nos produtos audiovisuaisinfanto-juvenis. Ocorre sobretu<strong>do</strong> em programas <strong>de</strong> animação (<strong>de</strong>senhosanima<strong>do</strong>s infantis, filmes <strong>de</strong> animação) mas também em séries <strong>de</strong> imagem real.Existe uma aquiescência generalizada em relação à utilização da <strong>do</strong>bragem nocaso <strong>do</strong>s públicos mais jovens sobretu<strong>do</strong> por causa das óbvias dificulda<strong>de</strong>s com avelocida<strong>de</strong> e ritmo <strong>de</strong> leitura das legendas.Partin<strong>do</strong> da observação empírica <strong>de</strong> que as nossas crianças e jovens estãoa crescer familiariza<strong>do</strong>s com filmes, séries <strong>de</strong> animação, programas <strong>de</strong>entretenimento <strong>de</strong> produção estrangeira <strong>do</strong>brada para português, quis aferir quetipos <strong>de</strong> produtos audiovisuais <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s são transmiti<strong>do</strong>s em Portugal e arespectiva carga horária no panorama televisivo.Neste estu<strong>do</strong> preten<strong>do</strong> partilhar os resulta<strong>do</strong>s preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong>exploratório sobre o impacto da <strong>do</strong>bragem em Portugal no público infanto-juvenil enquanto consumi<strong>do</strong>res/receptores <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> tradução interlinguística.Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a oferta televisiva é condicionante <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong>produtos audiovisuais traduzi<strong>do</strong>s é crucial compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> estefenómeno po<strong>de</strong>rá vir a criar públicos mais receptivos à <strong>do</strong>bragem num futuropróximo.119 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127Breve olhar diacrónico sobre a programação infanto-juvenil em PortugalNo artigo 17º da Convenção <strong>do</strong>s Direitos da Criança (ONU, 1989) estácontempla<strong>do</strong> “o acesso da criança à informação e a <strong>do</strong>cumentos provenientes <strong>de</strong>fontes nacionais e internacionais diversas, nomeadamente aqueles que visempromover o seu bem-estar social, espiritual e moral, assim como a sua saú<strong>de</strong>física e mental.”Ao falarmos em meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massas, a consagração <strong>de</strong>stedireito implica a emissão <strong>de</strong> produtos audiovisuais produzi<strong>do</strong>s especificamentepara esta faixa etária, ten<strong>do</strong> em atenção não só as necessida<strong>de</strong>s, os gostos e asmotivações bem como as características cognitivas, físicas, psicológicas eobviamente linguísticas <strong>de</strong>ste grupo.Pareceu-me assim relevante saber qual a programação disponível para ascrianças e jovens portugueses e qual a sua evolução nos últimos anos. Com esteintuito, foram já efectua<strong>do</strong>s alguns estu<strong>do</strong>s sobre a oferta televisiva para criançasnos canais generalistas portugueses e refiro-me em particular aos trabalhospublica<strong>do</strong>s por Ponte (1998) e Pereira (2007). Estas autoras reportamrespectivamente ao perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1957 (data <strong>de</strong> início da televisão em Portugal) até1991 e <strong>de</strong> 1992 a 2002. Ponte distingue <strong>do</strong>is momentos fundamentais naprogramação para públicos infanto-juvenis:• O perío<strong>do</strong> entre 1959 e 1974, em que gran<strong>de</strong> parte da animação era <strong>de</strong>produção europeia e, em alguns casos, proveniente <strong>de</strong> países <strong>de</strong> leste e legendadaem língua portuguesa. Nesta altura é emitida, por exemplo, a série francesaCarrossel Mágico (1966) que terá si<strong>do</strong> o primeiro filme anima<strong>do</strong> <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>;• E o perío<strong>do</strong> entre 1975 e 1991 pauta<strong>do</strong> pela criação <strong>do</strong> Departamento<strong>de</strong> Programas Infantis e Juvenis na RTP em que se promoveu a transmissão <strong>de</strong>programas produzi<strong>do</strong>s em Portugal como, por exemplo, o Fungagá da Bicharada(1975) ou o Zarabadim (1985). Outro caso <strong>de</strong> enorme sucesso nacional foi a RuaSésamo (1989), cuja versão <strong>do</strong> popular programa infantil norte-americanoSesame Street, produzi<strong>do</strong> pela PBS foi adaptada para a língua e culturaportuguesas.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012120


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127Importa referir que, em 1957, a televisão em Portugal resumia-se a umúnico canal público <strong>de</strong> sinal aberto, a RTP, e só em 1968, foi lança<strong>do</strong> um novocanal, a RTP 2.Em 1993, com o início <strong>de</strong> activida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s canais priva<strong>do</strong>s SIC e TVI, aoferta televisiva ganhou novo fôlego e maior diversida<strong>de</strong>. De acor<strong>do</strong> com osda<strong>do</strong>s regista<strong>do</strong>s por Pereira (2007), entre 1993 e 2002, o número total <strong>de</strong> horasanuais <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> aos mais novos passou <strong>de</strong> 1.712 para 3.640, número este queindica uma subida <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 200%. No entanto, se analisarmos o número total<strong>de</strong> horas emitidas nos 4 canais, verificamos que a proporção <strong>de</strong> horas <strong>de</strong>programação infanto-juvenil <strong>de</strong>sceu ligeiramente. Em 1993, registaram-se 20.000horas anuais <strong>de</strong> emissão das quais 11,4% foram <strong>de</strong>dicadas à programação infantil.Em 2002, o tempo total <strong>de</strong> emissão nos 4 canais <strong>de</strong> sinal aberto aumentouexponencialmente para 35.000 horas anuais. Apesar <strong>de</strong>ste crescimento, asemissões dirigidas à faixa etária <strong>do</strong>s 4-14 anos diminuíram para 10,4% (Pereira,2007:33). Tal revela que, contrariamente ao que seria <strong>de</strong> esperar, perante o gran<strong>de</strong>acréscimo <strong>de</strong> horas <strong>de</strong> emissão, não se <strong>de</strong>u igual aumento no que toca aprogramação infanto-juvenil.É interessante notar que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Nacional<strong>de</strong> Estatística (2010), o total <strong>de</strong> população portuguesa em 2008 ascendia a10.627.250 indivíduos <strong>do</strong>s quais 1.622.991 situam-se na faixa etária <strong>do</strong>s 4-14anos. Verifica-se uma a<strong>de</strong>quação entre o rácio <strong>de</strong> população em questão e ashoras <strong>de</strong> programação infanto-juvenil em comparação com o total <strong>de</strong> horasemitidas para o público em geral, ou seja, cerca <strong>de</strong> 11%.Em jeito <strong>de</strong> conclusão, esta breve análise <strong>de</strong>monstrou que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inícioda activida<strong>de</strong>, a televisão portuguesa revelou um interesse crescente pelo públicoinfanto-juvenil, consubstancia<strong>do</strong> na criação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>partamento próprio na RTPe no aumento gradual das horas <strong>de</strong> emissões televisivas. É <strong>de</strong> notar igualmente ofacto <strong>de</strong> existir uma proporcionalida<strong>de</strong> directa entre o rácio da faixa etária <strong>do</strong>s 4-14 anos na população portuguesa e as horas <strong>de</strong> emissão infanto-juvenil natotalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> horas <strong>de</strong> emissão televisiva em Portugal.121 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127A oferta televisiva nos dias <strong>de</strong> hojeNos últimos 15 anos verificou-se uma vulgarização <strong>do</strong> acesso aos canaispor cabo, o que veio a aumentar exponencialmente a quantida<strong>de</strong> e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>programas disponíveis a um eleva<strong>do</strong> número <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>res1. Contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>à multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> opera<strong>do</strong>res e <strong>de</strong> canais transmiti<strong>do</strong>s por cada um <strong>de</strong>les,entendi que, nesta fase inicial, <strong>de</strong>veria restringir o nosso enfoque aos 4 principaiscanais <strong>de</strong> sinal aberto – RTP1 e RTP2 (canais públicos) e SIC e TVI (canaispriva<strong>do</strong>s). Esta opção justifica-se pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter uma amostra maisválida e homogénea com uma maior abrangência em termos <strong>de</strong>mográficos,geográficos e socioculturais.De acor<strong>do</strong> com os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Borges (2007:11) verificou-se que, em 2006,61,1% das horas <strong>de</strong> programação <strong>de</strong>stinadas ao público jovem foram emitidaspela RTP2, em contraponto com 8,2% da RTP1, 23,8% da SIC e 6,8% da TVI.Este da<strong>do</strong> explica-se sobretu<strong>do</strong> pela vocação mais informativa e educacional <strong>do</strong>que comercial que, ao abrigo da reestruturação <strong>do</strong>s canais públicos, foi atribuída àRTP2.Numa primeira fase, pretendi verificar empiricamente se esta tendência semantinha em 2010, quan<strong>do</strong> e on<strong>de</strong> eram transmiti<strong>do</strong>s os programas infantojuvenis,qual a sua origem e qual a opção tradutológica utilizada.Comecei por fazer um levantamento <strong>do</strong>s tempos semanais <strong>de</strong> emissão <strong>do</strong>sprogramas infanto-juvenis em exibição nos canais generalistas da televisãoportuguesa, toman<strong>do</strong> como ponto <strong>de</strong> referência a semana entre 7 <strong>de</strong> Fevereiro e13 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 2010.Para esse efeito, analisei uma publicação semanal <strong>de</strong> divulgação televisiva,TV Sete Dias e acedi diariamente aos sítios Web <strong>de</strong> cada estação televisiva. A1 D e ac ord o c om os d ad os f orne c id os e m lin ha pe l a AN AC O M - Au t orida<strong>de</strong>N ac iona l d e C om u nic aç õe s, o org an i sm o g ove rnam e nt a l q u e re g u la e su pe r vi sio na ose c t or d a s c om u n ic aç õe s e le c t r ónic a s e po st ai s e m P ort u g a l, e m 200 9 c e rc a d e 45%d os l are s port u g u e se s po s su ía m o se rv iç o d e su bsc riç ão d a t e le vi são po r c abo.I nf orm aç ão ac e s sí ve l e mht t p: / / ww w . anac om . pt / st re am ing / 4T0 9_ se r vD TH . pd f ?c ont e nt I d = 1013 14 3& f ie ld = ATTAC H E D_ F I LE ; ac e d id o e m 10. 6. 20 10Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012122


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127partir <strong>de</strong>ssa análise, consegui saber os programas, as horas e os canais em que sãotransmiti<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma semana (<strong>de</strong> <strong>do</strong>mingo a sába<strong>do</strong>). Em traçosgerais, aferi que gran<strong>de</strong> parte da programação infanto-juvenil da televisão públicase concentra na RTP2, ocupan<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> da manhã até cerca das 14h durante asemana e ao sába<strong>do</strong>. O outro canal público, RTP1, limita-se a transmitir aos fins-<strong>de</strong>-semana das 06:30 até às 08:00 da manhã. No que concerne os canais priva<strong>do</strong>s,SIC e TVI, a situação não difere muito sen<strong>do</strong> que o perío<strong>do</strong> matinal <strong>do</strong> fim-<strong>de</strong>-semana está consagra<strong>do</strong> aos mais novos embora com uma maior duração poistermina cerca das 12h. De segunda a sexta-feira, testemunhei a quase inexistência<strong>de</strong> programação infanto-juvenil à excepção da série portuguesa Morangos comaçúcar, emitida diariamente pela TVI no perío<strong>do</strong> entre as 18:15h e as 20h.Depois <strong>de</strong> analisa<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s, foi necessário distinguirprogramas <strong>de</strong> produção estrangeira e <strong>de</strong> produção portuguesa. Feita estadistinção, quis então aferir qual a opção tradutiva usada na programaçãotransmitida pelos 4 canais já menciona<strong>do</strong>s. Importa referir que inseri nesta análiseos programas <strong>de</strong> produção portuguesa originalmente mais vocaciona<strong>do</strong>s apúblicos a<strong>do</strong>lescentes e jovens (faixa <strong>do</strong>s 12-16 anos), a saber, Morangos comAçúcar, Chiquititas, Inspector Max mas que gozam <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> nascamadas etárias mais novas.Em traços gerais, no total das mais <strong>de</strong> 60 horas <strong>de</strong> produção estrangeira,transmitidas nos 4 canais portugueses, verificou-se que a <strong>do</strong>bragem pre<strong>do</strong>minacomo modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tradução preferencial com um expressivo número <strong>de</strong> 98,3%<strong>do</strong> total <strong>de</strong> programação estrangeira traduzida. Isto significa que a RTP2 difundiucerca <strong>de</strong> 41 horas <strong>de</strong> programação <strong>do</strong>brada e os outros canais - SIC, TVI, RTP1 -transmitiram cerca <strong>de</strong> 9, 6 e 3 horas respectivamente. Deste mo<strong>do</strong>, a legendagemsó surgiu num filme com a duração <strong>de</strong> uma hora emitida pela RTP2 no dia 13 <strong>de</strong>Fevereiro <strong>de</strong> 2010 (sába<strong>do</strong>).Optei por não incluir nesta amostragem as séries <strong>de</strong> animação estrangeiracomo Os Simpsons ou os filmes consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s ‘<strong>de</strong> família’, emiti<strong>do</strong>s nas tar<strong>de</strong>s <strong>de</strong>fim-<strong>de</strong>-semana, porque consi<strong>de</strong>rei que o público-alvo é adulto, eventualmenteacompanha<strong>do</strong> por públicos mais jovens.123 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127Embora neste estu<strong>do</strong> não se abor<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma analítica a situação <strong>do</strong>scanais por cabo será, no entanto, <strong>de</strong> ter em conta que os programas infanto-juvenis <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s aumentaram exponencialmente em Portugal sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que o Canal Disney começou a emitir diariamente. É certo que os <strong>de</strong>senhosanima<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s pela Disney foram sen<strong>do</strong> transmiti<strong>do</strong>s regularmente noscanais <strong>de</strong> sinal aberto mas esta influência terá si<strong>do</strong> mais prevalecente através daemissão semanal <strong>de</strong> programas como o Clube Disney entre 1993 e 2001 na RTP1e <strong>do</strong> Disney Kids transmiti<strong>do</strong> pela SIC <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001 até aos nossos dias (Pereira,2007:101-105).Como se po<strong>de</strong> ver na tabela 1, os da<strong>do</strong>s recolhi<strong>do</strong>s pela Marktest em 2009permitiram comprovar que uma parte significativa da programação infanto-juvenil com maior audiência na televisão portuguesa é produções estrangeiras<strong>do</strong>bradas para português, originalmente produzidas pela Disney, o que me obrigaa re-equacionar a inclusão <strong>do</strong>s canais por cabo em futuras investigações.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012124


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127Tabela 1 – Top 50 programas mais vistos na televisão portuguesaEm jeito <strong>de</strong> conclusão, falta ainda contabilizar o número total <strong>de</strong> horassemanais <strong>de</strong> programação em língua portuguesa oferecidas a este público duranteo perío<strong>do</strong> aqui reporta<strong>do</strong>. Se ao volume total das horas emitidas <strong>de</strong> programascom <strong>do</strong>bragem (cerca <strong>de</strong> 60 horas) acrescentarmos as emissões <strong>de</strong> produçãonacional (cerca <strong>de</strong> 15 horas) verificamos que 98,6% <strong>do</strong> volume total <strong>de</strong>programação infanto-juvenil foi transmiti<strong>do</strong> em língua portuguesa.Confirmou-se assim a hipótese inicial <strong>de</strong> que, por via da <strong>do</strong>bragem,125 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127actualmente, as crianças e jovens portuguesas têm um grau <strong>de</strong> contacto cada vezmaior com a língua portuguesa em <strong>de</strong>trimento das línguas estrangeiras.Antevê-se também repercussões ao nível <strong>do</strong> seu <strong>do</strong>mínio da línguaportuguesa escrita e <strong>do</strong> uso das línguas e culturas estrangeiras e da língua inglesa,em particular, pelo menor grau <strong>de</strong> contacto com as mesmas através da televisão.Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> referir o impacto <strong>de</strong>terminante da internet noquotidiano das crianças e <strong>do</strong>s jovens portugueses, facto este que po<strong>de</strong>rá vir aenfraquecer <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong> o peso prepon<strong>de</strong>rante da televisão e atenuar asconsequências já mencionadas anteriormente.Em suma, po<strong>de</strong>mos concluir que a <strong>do</strong>bragem <strong>de</strong> programas estrangeiros éprepon<strong>de</strong>rante no segmento infanto-juvenil da televisão portuguesa sen<strong>do</strong>expectável a ocorrência <strong>de</strong> alterações significativas a nível linguístico e cultural.Estaremos, eventualmente, perante um novo tipo <strong>de</strong> especta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> televisãoque, no futuro, po<strong>de</strong>rá ser muito mais receptivo à <strong>do</strong>bragem <strong>de</strong> séries e filmes <strong>de</strong>imagem real.Referências bibliográficasBORGES, Gabriela. “Programação infanto-juvenil <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>: o caso daRTP2 <strong>de</strong> Portugal”. Revista da Associação Nacional <strong>do</strong>s Programas <strong>de</strong> Pós-Graduação emComunicação . Abril <strong>de</strong> 2007DIAZ-CINTAS, Jorge. “Audiovisual Translation: An overview of itspotential”. New Trends in Audiovisual Translation. Diaz-Cintas (ed.) Bristol:Multilingual Matters, 2009. 1-18.GAMBIER, Yves. “Multimodality and Audiovisual Translation” . MuTra2006- Audiovsiual Scenarios : Conference Proceedings. 2006. 1-8.GOTTLIEB, Henrik. “Multidimensional Translation:Semantics turnedSemiotics”. MuTra: Challenges of Multidimensional Translation. 2005. 1-29.KRESS, Gunther. Literacy in the Media Age. Lon<strong>do</strong>n and New York:Routledge, 2003.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012126


Chorão, Graça Bigotte – Resulta<strong>do</strong>s Preliminares <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre tradução audiovisualinfanto-juvenil: o caso da <strong>do</strong>bragem em Portugal 115 – 127O'CONNELL, Eithnell. “What Dubbers of Children's TelevisionProgrammes Can Learn from Translators of Children's Books?”.META:Translator's Journal. vol.48, nr 1-2 . 2003. 222-232.PEREIRA, Sara . Por Detrás <strong>do</strong> Ecrã.Televisão para Crianças em Portugal.Porto: Porto Editora, 2007.PONTE, Cristina. Televisão para Crianças: O Direito à Diferença. Lisboa:Escola Superior João <strong>de</strong> Deus, 1998.127 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


ORGULHO E PRECONCEITO 1 : A VISÃO DE UM VITORIANOACERCA DE PORTUGAL E DOS PORTUGUESESIvo Rafael SilvaCEI - Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s InterculturaisInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoPortugalivo_rafael@sapo.pt(…) ‘’on<strong>de</strong> quer que haja uma verda<strong>de</strong>ira superiorida<strong>de</strong> intelectual,o orgulho estará sempre sob uma boa orientação.’’Jane Austen, Orgulho e PreconceitoResumoAs narrativas bélicas <strong>de</strong> viagem <strong>do</strong> séc. XIX, no âmbito da Guerra CivilPortuguesa (1828-1834) são particularmente ricas enquanto fonte e memóriahistórica <strong>de</strong> acontecimentos importantes da História <strong>de</strong> Portugal. Mas além <strong>do</strong>seu potencial historiográfico, tais escritos são também o espelho da idiossincrasia– vitoriana – <strong>do</strong> autor reflectida na forma como transforma, constrói, julga ouinterpreta a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> país que visita, bem como a maneira <strong>de</strong> ser <strong>do</strong> seu povo.AbstractThe warlike travel narratives of the nineteenth century, in the PortugueseCivil War context (1828-1834), are especially productive as historical referencesof significant events of the History of Portugal. Despite their historical potential,1 Tít u lo d a t rad u ç ão port u g u e s a d o be s t -s e l le r “ P ri<strong>de</strong> an d P re j udice ” ( 18 13) d aau t ori a d e Jane Au st e n.


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148such narratives are also the reflex of the author’s idiosyncrasy – Victorian –,reflected in the way he changes, constructs, judges and un<strong>de</strong>rstands the reality ofthe country he visits, and the way of life of its people.1. Vitorianismo: um «esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito»Contrariamente a outros ismos (darwinismo, utilitarianismo, socialismo…),o vitorianismo não exprime propriamente um to<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ológico, científico, políticoou filosófico coerente, estrutura<strong>do</strong> e perfeitamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>linea<strong>do</strong>. Pelocontrário, surge até várias vezes <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como um conjunto fragmentário <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ias para<strong>do</strong>xais, <strong>de</strong> comportamentos e atitu<strong>de</strong>s contraditórias e incoerentes.Todavia, apesar da sua diversida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>, é possível i<strong>de</strong>ntificar umaplêia<strong>de</strong> <strong>de</strong> lugares comuns e aspectos transversais naquilo a que Walter Houghtonapeli<strong>do</strong>u <strong>de</strong> “esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito vitoriano” 2 . Será, sem sombra <strong>de</strong> dúvidas, na<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e colectiva que encontraremos a justificaçãopara a particular mundividência <strong>de</strong> um oficial britânico – George Lloyd Hodges –em Portugal no século XIX.Chamou-se, na socieda<strong>de</strong> britânica – apenas a partir <strong>do</strong> séc. XX –, <strong>de</strong>perío<strong>do</strong> vitoriano ao espaço temporal que me<strong>de</strong>ia os anos <strong>de</strong> 1830 e 1870. E a<strong>de</strong>signação advém <strong>do</strong> facto <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> uma época maioritariamente regida pelarainha Vitória, sem que a personalida<strong>de</strong> em si tivesse <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> qualquerespecial papel neste contexto. Quan<strong>do</strong> falamos <strong>de</strong> vitorianos, referimo-nos sempre,<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da hierarquia social, às classes média e alta, classes a quepertenciam os oficiais militares <strong>de</strong> alta patente, como é o caso <strong>do</strong> CoronelHodges; as classes populares ou trabalha<strong>do</strong>ras não se encontram aqui sobconsi<strong>de</strong>ração.Ora, o perío<strong>do</strong> vitoriano assume-se, na sua própria perspectiva, como ogran<strong>de</strong> e verda<strong>de</strong>iro perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> transição, que punha fim à velha tradiçãomedieval, à orto<strong>do</strong>xia católica, à estrutura social fixa e que procurava dar início a2 H OUG H TON , Walt e r E . T h e V ict o rian F ram e o f Min d : 1830 - 18 70. Lo nd on:Y ale U ni ve r sit y P re ss, 1 96 3.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012130


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148uma nova socieda<strong>de</strong>, a um novo pensamento e a uma nova era. Para John StuartMill, uma das mais <strong>de</strong>stacadas personalida<strong>de</strong>s da época, bem como para osvitorianos em geral, o perío<strong>do</strong> que imediatamente os prece<strong>de</strong>u não foipropriamente o iluminismo, nem sequer o século XVIII. Foi a Ida<strong>de</strong> Média.A concepção da História da Humanida<strong>de</strong> havia já si<strong>do</strong> alterada em finais<strong>de</strong> setecentos, passan<strong>do</strong> a encarar-se o <strong>de</strong>senrolar <strong>do</strong>s tempos não como stop-and-go, i. e. fases distintas cujo avanço seria <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> por acontecimentosparticulares, mas antes como um <strong>de</strong>senvolvimento inter-relaciona<strong>do</strong> orgânico eparticular on<strong>de</strong> cada perío<strong>do</strong> é a criança <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> seguinte. Esta visão ganhariaforça na época vitoriana, pois segun<strong>do</strong> Houghton, tanto Thomas Carlyle(conserva<strong>do</strong>r) como John Stuart Mill (liberal) apesar das divergências políticasconvergiram na a<strong>do</strong>pção <strong>de</strong>ssa perspectiva progressiva e progressista da História.A partir <strong>de</strong> 1830, a Inglaterra passa por um conjunto <strong>de</strong> transformações erevoluções sociais. Devem referir-se particularmente as alterações <strong>de</strong> naturezapolítica e legislativa <strong>de</strong> pen<strong>do</strong>r liberal, das quais se <strong>de</strong>staca a Reform Bill (1832).Tu<strong>do</strong> isto <strong>de</strong>corre num ambiente <strong>de</strong> emergente <strong>de</strong>senvolvimento industrial, na era<strong>do</strong> vapor e das gran<strong>de</strong>s unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fabricação e/ou produção. Dá-se no seio dasreformas políticas início à transferência <strong>de</strong> algum <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r da aristocracia para opovo, abrin<strong>do</strong>-se caminho ao que é hoje entendi<strong>do</strong> por socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática. Aor<strong>de</strong>m feudal e agrária, a organização política on<strong>de</strong> duques e con<strong>de</strong>srepresentavam povos e <strong>de</strong>cidiam sobre terras que muitas vezes nem sequerconheciam, ia sen<strong>do</strong> progressivamente substituída por uma socieda<strong>de</strong> plural, maisrepresentativa e fortemente industrializada.Neste contexto, nasce um novo conceito <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>. Até então, amedida <strong>de</strong> locomoção e comunicação permanecia inalterada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há váriosséculos. O cavalo e o barco à vela continuavam a ser o que <strong>de</strong> mais rápi<strong>do</strong> havia àface da terra. Graças ao <strong>de</strong>senvolvimento mecânico e industrial entretantoverifica<strong>do</strong>, popularizou-se o comboio, inauguraram-se vias ferroviárias econstruíram-se gran<strong>de</strong>s navios a vapor, que alcançaram com eficiência e gran<strong>de</strong>utilida<strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>s notáveis, um incremento da rapi<strong>de</strong>z que não tardara a fazer-se sentir igualmente no plano intelectual ou literário. A educação expandiu-se,131 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148tornou-se mais acessível, aumentaram as publicações, os livros e os jornais. Acultura aban<strong>do</strong>nava o redil das elites, massifican<strong>do</strong>-se como nunca antes naHistória da humanida<strong>de</strong>.De acor<strong>do</strong> com Houghton, a melhor forma <strong>de</strong> partir à <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong>pensamento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada geração é analisar precisamente a literatura darespectiva época. Mas refere-se o autor à literatura em lato sensu, i. e., não apenasaos livros propriamente ditos mas também às cartas, aos diários, às narrativas, àHistória, aos sermões, à crítica social, bem como à poesia e à ficção. Há, porém,um aspecto central a ter em conta na análise e interpretação <strong>de</strong> o que expressamtais registos: “as atitu<strong>de</strong>s são ilusórias”, e tentar conferir-lhes uma <strong>de</strong>finição éretirar-lhes a essência. Elas têm <strong>de</strong> ser compreendidas e assimiladas na suaformulação concreta e vivida.No plano essencialmente intelectual, ou filosófico, o perío<strong>do</strong> vitoriano foisobretu<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> perío<strong>do</strong> das interrogações. Tu<strong>do</strong> era questiona<strong>do</strong>. Na segunda eterceira década <strong>do</strong> século XIX não havia ainda respostas, mas havia, como refereHoughton, a consciência <strong>de</strong> que “as velhas certezas já não o eram” e que aconstrução <strong>do</strong> pensamento era agora uma “primeira necessida<strong>de</strong>”. E entre asinterrogações permanentemente colocadas e mais ar<strong>de</strong>ntemente discutidasencontravam-se as <strong>de</strong> natureza teológica e existencial: Deus existe? Se sim, trata-se <strong>de</strong> uma força pessoal ou impessoal? Existe um Paraíso e um Inferno? OuParaíso sem Inferno? Ou nenhum <strong>de</strong>les? Se é que existe uma verda<strong>de</strong>ira religião,será o Deísmo ou o Cristianismo? E o que é o Cristianismo? CatolicismoRomano ou Protestantismo? Igreja ou Chapel? Igreja Anglo-Católica ouEvangélica? O Ser Humano é um ser livre ou autómato? E se o Ser Humano temo po<strong>de</strong>r da escolha moral, qual é a sua base? Uma voz sagrada na consciência?Ou o cálculo e a <strong>de</strong>cisão racional? É o Homem um homem ou um macacoevoluí<strong>do</strong>?Todavia, não temos por exemplo como não associar o optimismo aosvitorianos. Eles encontravam-se efectivamente mergulha<strong>do</strong>s em interrogaçõesteóricas, filosóficas, políticas e económicas inicialmente sem obter respostas. Maspor outro la<strong>do</strong>, para eles uma coisa era certa: por enquanto só tinham dúvidas,Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012132


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148mas nunca <strong>de</strong>scriam na sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar às respostas. Este permanenteoptimismo, à mescla com uma certa presunção e um certo egocentrismo,constituem alguns <strong>do</strong>s traços psicológicos e comportamentais mais marcantes<strong>de</strong>sta época.Tal predisposição ou atitu<strong>de</strong> positiva, constituiu na verda<strong>de</strong> uma reacçãono senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> reconstruir e fazer renascer a esperança face ao contexto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><strong>de</strong>silusão que se vivia por volta <strong>de</strong> 1830, não só no Reino Uni<strong>do</strong> como em toda aEuropa. O sonho e os i<strong>de</strong>ais emergentes da Revolução Francesa haviam<strong>de</strong>semboca<strong>do</strong> num “reino <strong>de</strong> terror”, e a um longo perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> guerras veio asuce<strong>de</strong>r um clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e inquietação social. Essa renovação da esperançaassentou na base <strong>do</strong> progresso, tal como havia <strong>de</strong> resto aconteci<strong>do</strong> na Renascença,e procurou pôr fim ao reina<strong>do</strong> das tiranias e superstições através daimplementação <strong>de</strong> novas leis, <strong>do</strong> estabelecimento <strong>de</strong> governos <strong>de</strong>mocráticos e daimplantação <strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> educação universais.E os vitorianos iam ainda mais longe no seu optimismo. Consi<strong>de</strong>rava-sehomem ‘bom’ – ou artista ‘bom’ – aquele que reconhecia a beleza e agrandiosida<strong>de</strong> da natureza humana, aquele que cultivava sentimentos como aadmiração, o amor e a esperança. A outra face da moeda, o la<strong>do</strong> ‘mau’ <strong>do</strong> homemou <strong>do</strong> artista, era o que apenas via o que era negro e feio, o que se expressava <strong>de</strong>forma capciosa, com escárnio ou com <strong>de</strong>sprezo.Esta propensão para admirar ou enaltecer a nobreza <strong>do</strong>s homensfomentou naturalmente o culto <strong>do</strong> heroísmo, ou da heroicida<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> naliteratura. Os heróis eram sobretu<strong>do</strong> cavaleiros medievais ou personagenslendárias da mitologia grega, romana ou celta. Mas não só. Também o eram “ospatriotas”, aqueles que em nome <strong>do</strong> seu país lutavam militarmente além-fronteiras. Primeiramente no combate à tirania <strong>de</strong> Napoleão na Flandres, e<strong>de</strong>pois na guerra contra o absolutismo <strong>de</strong> D. Miguel I, em Portugal. Sobretu<strong>do</strong>através <strong>de</strong> narrativas – Skecthes ou Narratives –, foram vários os oficiais britânicosque, como George Lloyd Hodges, empreen<strong>de</strong>ram a tarefa <strong>de</strong> dar testemunhamaos compatriotas <strong>do</strong>s feitos e das lutas heróicas que pu<strong>de</strong>ram travar. E ficaram133 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148patenteadas nos seus escritos, no seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> agir e <strong>de</strong> pensar, <strong>de</strong> forma mais oumenos implícita, muitas das típicas atitu<strong>de</strong>s vitorianas a que aqui fazemos alusão.A partir da década <strong>de</strong> 50 <strong>do</strong> séc. XIX começam a vislumbrar-se algumasdas respostas às múltiplas interrogações até ali colocadas. Em 1859, CharlesDarwin publica a sua magnum opus intitulada A Origem das Espécies, o queentusiasmou ainda mais os jovens liberais que se precipitaram no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>contribuir o pouco que fosse para a gran<strong>de</strong> revelação <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o conhecimento. Apartir da observação, análise crítica e influência <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o contexto social eoperário vivi<strong>do</strong> em Inglaterra, emergem as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> teor socialista, <strong>de</strong> inspiraçãooperária, progressista e revolucionária. O filósofo alemão Karl Marx publica em1867 a obra teórica O Capital com os reflexos históricos, sociais e económicosque se conhecem até aos nossos dias.Mas em oposição, esta época significa também a emergência <strong>do</strong> braço forte<strong>do</strong> capitalismo – antítese <strong>do</strong> socialismo marxista –, <strong>do</strong> amplo merca<strong>do</strong>internacional, por cujos resulta<strong>do</strong>s os vitorianos – burgueses – nutriam simpatia,sobretu<strong>do</strong> no que dizia respeito ao po<strong>de</strong>r nacional e ao prestígio. Para isso muitocontribuíram as i<strong>de</strong>ias darwinistas, a luta pela sobrevivência aplicada ao contextoeconómico, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no qual o forte <strong>de</strong>veriaencostar o fraco à pare<strong>de</strong> e assim triunfar. Coube, no entanto, a Herbert Spenceraplicar o mesmo conceito à humanida<strong>de</strong> – o darwinismo social – <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que oprocesso <strong>de</strong> purificação <strong>do</strong>s irracionais, o pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s mais aptos, estava tambémem curso nas socieda<strong>de</strong>s humanas. E não só estabeleceu o paralelismo <strong>de</strong>processos entre racionais e irracionais como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que os fins acabariam porjustificar os meios. Na obra Social Statics (p. 353-4), Spencer escreve as seguintes eelucidativas palavras: “A pobreza <strong>do</strong> incapaz, as angústias sentidas peloimpru<strong>de</strong>nte, a fome <strong>do</strong> preguiçoso, e os empurrões <strong>do</strong> forte que afastam o fraco(…) são os <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> uma alargada e pru<strong>de</strong>nte benevolência.” Ainda queadmitin<strong>do</strong> posteriores <strong>de</strong>svios e <strong>de</strong>turpações à formulação teórica original, éinegável afirmar-se que este pensamento <strong>de</strong> um célebre vitoriano como HerbertSpencer esteve na génese das i<strong>de</strong>ias a que hoje chamamos ou i<strong>de</strong>ntificamos comosen<strong>do</strong> <strong>de</strong> extrema-direita. E o racismo puro e duro tem como exemplo o textoPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012134


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148“The Nigger Question”, <strong>do</strong> já aqui referencia<strong>do</strong> Thomas Carlyle, no qual o autorse limita a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o tratamento brutal <strong>de</strong> um governa<strong>do</strong>r sobre os nativosjamaicanos, acção na vanguarda da qual ele próprio havia também toma<strong>do</strong> parte.Mas ainda antes <strong>de</strong> surgirem as respostas, antes <strong>do</strong> aparecimento dascorrentes e filosofias darwinistas e socialistas, a intensificação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> dúvidateve também consequências negativas. Jeremy Bentham, o funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>utilitarianismo, faleci<strong>do</strong> em 1832, foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s críticos epensa<strong>do</strong>res que prece<strong>de</strong>ram Stuart Mill ou Carlyle, e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s quemais interrogou as coisas estabelecidas. Para ele, “o cepticismo era o mais nobre<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres; e a fé cega, o mais imper<strong>do</strong>ável <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s” 3 . E as consequênciasnegativas <strong>do</strong> contínuo cepticismo <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong> interrogativa não tardaram achegar, porquanto a dúvida permanente os conduzira a uma certa paralisação ouinércia, que era imperioso combater ou contornar. O professor, historia<strong>do</strong>r eromancista Charles Kingsley, por exemplo, sugeria que “se rezasse a Deus paraque houvesse fé” 4 . E fé não na imortalida<strong>de</strong> ou na divinda<strong>de</strong> propriamente ditas,mas fé nalguma coisa pela qual se pu<strong>de</strong>sse viver e morrer. Só isso permitiria quese aban<strong>do</strong>nasse a letargia da dúvida e se passasse novamente à acção. A vonta<strong>de</strong><strong>de</strong> acreditar convivia assim la<strong>do</strong>-a-la<strong>do</strong> com o apelo da razão ou da racionalida<strong>de</strong>.Contrariamente ao que se passou em França no perío<strong>do</strong> pós-revolução,não houve na fase vitoriana qualquer alteração à estrutura hierárquica dasocieda<strong>de</strong> inglesa. Não obstante a emergência das i<strong>de</strong>ias cartistas e socialistas, oconceito <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> não só não teve aceitação como foi ti<strong>do</strong> pela aristocraciacomo uma i<strong>de</strong>ia estranha e ofensiva. Assim, a população <strong>de</strong> Inglaterra continuou aaceitar com relativa naturalida<strong>de</strong> as opiniões que vinham <strong>de</strong> cima, e a <strong>de</strong>ixar-segovernar pelos <strong>de</strong>graus superiores da hierarquia social estabelecida.Sem dúvida para<strong>do</strong>xal ou contraditório, mas absolutamente verda<strong>de</strong>iro eplausível, é o comportamento anti-intelectual também associa<strong>do</strong> ao vitorianismo.Na verda<strong>de</strong>, a revolução industrial em curso colocou a vida e o pensamento geralem órbita da tangibilida<strong>de</strong>. Tu<strong>do</strong> começou a ser feito em prol <strong>de</strong> resulta<strong>do</strong>s,3 H OUG H TON , Walt e r E . T h e V ict o r ian Fr am e of Min d . p. 954 Ibid . p. 98.135 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148lucros, objectivos, promoções laborais e sociais. O inglês pensava sobretu<strong>do</strong> noque <strong>de</strong>via ser feito, e feito <strong>de</strong> imediato, sem que houvesse gran<strong>de</strong> espaço para opensamento ou para a reflexão.É também sabi<strong>do</strong> que o próprio romantismo, movimento artísticocontemporâneo da socieda<strong>de</strong> vitoriana, se caracterizou pela importância ou pelavalorização <strong>do</strong> individualismo, pela centralização <strong>do</strong> eu. O vitoriano era pois umegocêntrico, o que as condições externas, por assim dizer, naturalmente tambémnão <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> favorecer. Numa altura, como já se disse, marcada pela dúvidaou pela ausência <strong>de</strong> respostas, a opinião individual era naturalmente tão válida etão certa como qualquer outra. E a este egocentrismo somava-se a inflexibilida<strong>de</strong>,da<strong>do</strong> que o vitoriano tendia a seguir uma linha única <strong>de</strong> pensamento, a olhar omun<strong>do</strong> sob um único ponto <strong>de</strong> vista, sen<strong>do</strong> muitas vezes incapaz <strong>de</strong> se relativizarou <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os pontos <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> outro. Tinha ainda, ou consequentemente,uma forte tendência para os extremos. Segun<strong>do</strong> Houghton, o vitoriano dividiai<strong>de</strong>ias, pessoas e acções em categorias <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro-falso, bom-mau, certo-erra<strong>do</strong>, sem<strong>de</strong>ixar lugar para intermédios ou para o reconhecimento <strong>do</strong> carácter misto daexperiência humana.Entre as atitu<strong>de</strong>s morais <strong>do</strong>s vitorianos encontra-se também o culto daforça. Por um la<strong>do</strong>, a força associada à maquinaria industrial e ao músculo <strong>do</strong>operário que a põe a funcionar. Por outro, a força <strong>do</strong> carácter, <strong>do</strong> “<strong>do</strong>mínio daspaixões, da paciência, <strong>do</strong>s propósitos e da energia controlada com enfoque notrabalho”. Na base <strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra estão <strong>do</strong>is aspectos essenciais: o puritanismoe a revolução industrial. Há ainda a força física no plano essencialmente militar,como parte característica da própria natureza humana. Segun<strong>do</strong> Thomas Carlyle“o Homem foi feito para lutar; a melhor <strong>de</strong>finição talvez seja a <strong>de</strong> que já nascesolda<strong>do</strong>; a sua vida é ‘uma batalha e uma marcha’ sob coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> Generalcerto.” 5Outra das atitu<strong>de</strong>s morais – e uma das mais interessantes – <strong>do</strong>vitorianismo será sem sombra <strong>de</strong> dúvidas a que se pren<strong>de</strong> com um certo conceito<strong>de</strong> serieda<strong>de</strong>. Não exactamente a serieda<strong>de</strong> hoje dicionarizada, aquela que nos5 H OUG H TON , Walt e r E . T h e V ict o ri an Fram e o f Min d . p. 20 6Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012136


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148surge <strong>de</strong>finida como integrida<strong>de</strong>, como respeitante à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o que é ‘sério’,como alguém cumpri<strong>do</strong>r das suas obrigações, <strong>do</strong>s seus impostos, <strong>do</strong>s seus<strong>de</strong>veres cívicos, legais e práticos, mas antes uma serieda<strong>de</strong> muito própria a quepo<strong>de</strong>mos chamar distintivamente <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong> vitoriana, que não se confun<strong>de</strong>com os conceitos mais típicos e abrangentes. E que específico conceito seráentão este? George Eliot dá como exemplo a vida <strong>de</strong> um velho cavalheiro da erapré-vitoriana, que vive “na inabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a causa das coisas,preferin<strong>do</strong> apenas as coisas em si mesmas.” A atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem vive <strong>de</strong>sta forma,<strong>de</strong> quem “vai à igreja para <strong>do</strong>rmir ou repetir as <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong> cre<strong>do</strong> sem ummomento <strong>de</strong> atenção ou sem um pingo <strong>de</strong> convicção sincera”6, não é própria <strong>de</strong>um indivíduo a que naquele contexto se pu<strong>de</strong>sse colocar o rótulo <strong>de</strong> “homemsério”. A serieda<strong>de</strong> vitoriana pressupõe assim, nas palavras <strong>de</strong> Houghton, “ter ouprocurar ter uma convicção genuína acerca das questões fundamentais da vida, e<strong>de</strong> maneira alguma limitar-se a repetir noções convencionais <strong>de</strong> forma insincera,ou ainda a brincar com i<strong>de</strong>ias e palavras como se a intelectualida<strong>de</strong> não passasse<strong>de</strong> um mero jogo.” 7E <strong>de</strong> todas as moral atitu<strong>de</strong>s aquela que, segun<strong>do</strong> Houghton, certamente ospróprios vitorianos confessariam ter, seria indubitavelmente a da hipocrisia. E issopor três razões fundamentais: a primeira, porque escondiam ou suprimiam asverda<strong>de</strong>iras convicções e os seus gostos pessoais – sacrificavam a sincerida<strong>de</strong> pelaproprieda<strong>de</strong>; a segunda, porque fingiam ser melhores que o que eram na realida<strong>de</strong>– falavam <strong>de</strong> sentimentos nobres e viviam <strong>de</strong> forma diferente; e por último,porque fechavam os olhos ao que era feio ou <strong>de</strong>sagradável e fingiam que talrealida<strong>de</strong>, pura e simplesmente, não existia. Conformida<strong>de</strong>, pretensão moral e evasãoeram as imagens <strong>de</strong> marca da hipocrisia vitoriana.Em jeito <strong>de</strong> conclusão, como <strong>de</strong>finir ou resumir, adjectivan<strong>do</strong> ouclassifican<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s os traços i<strong>de</strong>ntitários, sociais, morais e comportamentais quecaracterizam ou caracterizaram a burguesia inglesa da primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século6 H OUG H TON , Walt e r E . T h e V ict o ri an Fram e of M i nd . p. 2197 Ibid ., pp. 22 0 - 1137 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148XIX? Jorge <strong>de</strong> Sena <strong>de</strong>screve o perío<strong>do</strong> vitoriano no seu ensaio sobre LiteraturaInglesa da seguinte e elucidativa forma:O vitorianismo é esse orgulho, a presunção <strong>de</strong>finitiva (…) <strong>de</strong> que Deus erainglês… Orgulho, pu<strong>do</strong>r hipócrita, generosida<strong>de</strong>, humanitarismo, medianiacautelosa, mediocrida<strong>de</strong> brilhante, conforto, progresso técnico, pastiches <strong>do</strong>medievalismo Tu<strong>do</strong>r (…), e um império que a Inglaterra recebera comoprémio <strong>de</strong> ser a mais branca e a mais cristã das raças… Londres era amaior e mais civilizada cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; e, nele, a City era, <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong>,a capital financeira. Este <strong>do</strong>gma da autorida<strong>de</strong> – autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser-seinglês, <strong>de</strong> ser-se superior, <strong>de</strong> ser-se mais po<strong>de</strong>roso, ou mais rico – e darespectiva subordinação é a base intocável da socieda<strong>de</strong> vitoriana:autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> «espírito» sobre o corpo, da igreja sobre a religião, <strong>do</strong> patrãosobre o emprega<strong>do</strong>, <strong>do</strong> pai sobre os filhos, <strong>do</strong> corpo político sobre as massas,<strong>de</strong> «moral» sobre a vida. 8Feita esta análise, o <strong>de</strong>safio que se nos coloca agora pren<strong>de</strong>-se com o facto<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong>scobrir, conhecen<strong>do</strong> genericamente a sua muito particularidiossincrasia ou mundividência, como é que os vitorianos nos veriam a nós,portugueses, nesse século XIX? No intuito <strong>de</strong> obter a necessária resposta, oupelo menos uma possível aproximação, recorreremos à narrativa bélica <strong>de</strong> viagem<strong>de</strong> George Lloyd Hodges – Narrative of The Expedition to Portugal in 1832 9 – umoficial militar em missão em Portugal, por ocasião da guerra civil que entre 1828e 1834 opôs liberais a absolutistas.8 S E N A, J. d e . A L it e rat u ra I n g l es a: E n s aio <strong>de</strong> In t e rpre t ação e <strong>de</strong> His t ó ria . L isb oa:C ot ovia, 1 98 9 [ 19 63 ], pp. 2 63 - 4.9 HOD G E S , G e org e Lloy d . Narr at iv e o f t h e E x pe dit io n t o Po rt u g al in 183 2, Un <strong>de</strong> rt h e Or<strong>de</strong> rs o f H is I m pe rial Maj e s t y D o m P e dro , D u ke o f B rag an z a , Vol. I. Lond re s: Jam e sF rase r, 18 33.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012138


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 1482. George L. Hodges, Portugal e os PortuguesesGeorge Lloyd Hodges, <strong>de</strong> seu nome, nasceu na localida<strong>de</strong> irlan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong>Old Abbey, Limerick, no ano <strong>de</strong> 1790. Alistou-se no exército aos 16 anos <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> servi<strong>do</strong> na Guerra Peninsular <strong>de</strong> 1810 a 1814. Combateu emWaterloo, na Bélgica, on<strong>de</strong> o exército a que pertencia, comanda<strong>do</strong> por ArthurWellesley, Duque <strong>de</strong> Wellington, levara <strong>de</strong> vencidas as tropas <strong>de</strong> NapoleãoBonaparte. Após um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> interregno militar, em finais <strong>de</strong> 1831 écontrata<strong>do</strong> para assumir o coman<strong>do</strong> <strong>de</strong> auxiliares <strong>de</strong> D. Pedro, o duque <strong>de</strong>Bragança, que, regressa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, se preparava para rumar a Portugal com ointuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar o governo absolutista <strong>de</strong> D. Miguel e <strong>de</strong> fazer subir ao trono asua filha – e legítima sucessora – D. Maria da Glória. A 10 <strong>de</strong> Fevereiro, aexpedição ‘liberta<strong>do</strong>ra’ largava o porto <strong>de</strong> Belle-Isle, ten<strong>do</strong> o arquipélago <strong>do</strong>sAçores como <strong>de</strong>stino, seguin<strong>do</strong> Hodges a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio-chefe. No dia 22,<strong>de</strong>sembarcou na ilha <strong>de</strong> S. Miguel, e cinco dias <strong>de</strong>pois na Terceira, on<strong>de</strong> seencontravam há três dias os <strong>de</strong>mais oficiais e solda<strong>do</strong>s que compunham oBatalhão Britânico. No mês <strong>de</strong> Maio, por or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r, a Expediçãoconcentrou-se em S. Miguel. Foi, pois, <strong>de</strong> Ponta Delgada que saiu a empresarumo ao norte <strong>do</strong> continente, para aquela luta ‘libertária’ tão ansiosamente<strong>de</strong>sejada, quer por D. Pedro quer pelos oficiais estrangeiros ao seu serviço. Ofamigera<strong>do</strong> <strong>de</strong>sembarque das tropas – o <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> Desembarque <strong>do</strong> Min<strong>de</strong>lo –,ocorreu a 8 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1832, na Arnosa <strong>de</strong> Pampeli<strong>do</strong>, freguesia <strong>de</strong> Perafita,concelho <strong>de</strong> Matosinhos. Hodges foi, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a sua própria narrativa, um<strong>do</strong>s primeiros a pisar terra firme. Dali seguiu para a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto, on<strong>de</strong> osliberais entraram sem encontrar qualquer tipo <strong>de</strong> resistência. Nas operações <strong>do</strong>conheci<strong>do</strong> episódio <strong>do</strong> Cerco <strong>do</strong> Porto, Hodges <strong>de</strong>stacou-se pela bravura ecoman<strong>do</strong> das respectivas tropas, pelo que foi concomitantemente agracia<strong>do</strong> pelorei que servia com a Or<strong>de</strong>m da Torre e Espada. A sua experiência militar epolítica neste contexto, as principais incidências, peripécias e acções militares porsi vividas ao serviço da Causa Liberal, foram perpetuadas pelo próprio em139 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148testemunho escrito – e histórico – numa narrativa intitulada Narrative of TheExpedition to Portugal in 1832 un<strong>de</strong>r the Or<strong>de</strong>rs of His Imperial Majesty <strong>Dom</strong>Pedro, Duke of Braganza. A obra foi publicada em <strong>do</strong>is volumes, ambos edita<strong>do</strong>sem Londres por James Fraser, em 1833, um ano <strong>de</strong>pois portanto da ocorrência<strong>do</strong>s principais acontecimentos nela narra<strong>do</strong>s.Nesta época, na historiograficamente chamada transição <strong>do</strong> Antigo para oNovo Regime, Portugal era um país economicamente <strong>de</strong>bilita<strong>do</strong>, agasta<strong>do</strong>sobretu<strong>do</strong> pelos conflitos militares <strong>de</strong> 1801 (Guerra das Laranjas), <strong>de</strong> 1807 a 1810(Invasões Francesas), e <strong>de</strong> 1817 (revolta <strong>de</strong> Gomes Freire <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>). Aagricultura, principal activida<strong>de</strong> económica da população portuguesa, conheciareveses não só pela <strong>de</strong>vastação causada pelas guerras e pilhagens, como pelofacto <strong>de</strong> se encontrar ainda agrilhoada num regime <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> feudal, sujeitaa pesa<strong>do</strong>s e antigos elos senhoriais. À existência <strong>de</strong> múltiplos foros ou tributospagos anualmente para a exploração <strong>de</strong> terras, somavam-se limitações restritivasao direito <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> bens. Não havia indústria mas sim pré-indústria, caracterizada pelo artesanato e manufactura, ainda assim afectada pelaconcorrência britânica, também pela <strong>de</strong>vastação das invasões francesas e peladificulda<strong>de</strong> da sua entrada no merca<strong>do</strong> brasileiro. A população era pobre, nãosabia ler nem escrever, e vivia, a cada passo, ensombrada por surtos pestíferoscausa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas e mesmo centenas <strong>de</strong> mortes.10No início <strong>do</strong> século XIX, a socieda<strong>de</strong> portuguesa era assim atrasada epobre, pre<strong>do</strong>minantemente rural, católica e clerical, e maioritariamenteanalfabeta. Contrastava gran<strong>de</strong>mente com a socieda<strong>de</strong> industrial, protestante,capitalista, burguesa e liberal <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provinha não só George Lloyd Hodges,como to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>mais oficiais militares britânicos ocasionalmente em missão emPortugal. Mas seria apenas a observação factual e realista, a apreciação concreta erigorosa das condições sociais existentes, aquela que resultaria da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>Hodges sobre Portugal e os Portugueses? Ou terão si<strong>do</strong> os preconceitos e amo<strong>de</strong>lação cultural e idiossincrática da já por nós apresentada perspectiva10 M E N D E S , J. Am ad o. “ E volu ç ão d a E c onom ia P o rt u g u e sa” i n M ATTO S O,José . H is t ór ia <strong>de</strong> P ort u g al: O L ibe ralis m o. Li sbo a: E d it or ial E st am pa, 19 98, p p 2 70 - 7.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012140


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148vitoriana, a prevalecer sobre o juízo valorativo pessoal, militar ou político, sobreas <strong>de</strong>scrições gerais e particulares, sobre as avaliações qualitativas acerca da terra,da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> povo <strong>do</strong> reino <strong>de</strong> Portugal? Em que medida, com que palavrase consi<strong>de</strong>rações, a cultura <strong>de</strong> quem observa se reflecte na apreciação à culturaobservada? Vejamos, então, exemplos concretos.Logo nas primeiras páginas da sua narrativa, é possível ver que o autornão hesita em qualificar <strong>de</strong> forma bastante assertiva o povo português no seuconjunto:It cannot be too clearly insisted on, that in Portugal, with few exceptions,faction of the worst <strong>de</strong>scription, tyranny of the <strong>de</strong>epest dye, selfish ambition,and mean intrigue, are mingled, as it were, in the very blood of theinhabitants, from the palace to the convent, and are yet farther traceable<strong>do</strong>wn to the cottage of the meanest peasant. 11A alusão à vigência <strong>do</strong> intriguismo em Portugal é recorrente –comportamento que mais vezes é invoca<strong>do</strong> ao longo <strong>de</strong> toda a narrativa –, sen<strong>do</strong>aliás consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelo autor como “a vice apparently irremediable in the nation” .Configura-se, <strong>de</strong> resto, como uma perspectiva habitual e preconceituosa <strong>do</strong>sviajantes europeus sobre a Península Ibérica em geral e Portugal em particular.Segun<strong>do</strong> Castelo Branco Chaves , tais preconceitos haviam si<strong>do</strong> adquiri<strong>do</strong>s pelaleitura <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> autores como Voltaire ou Montesquieu, gran<strong>de</strong>s escritores e<strong>de</strong>scritores da Península Ibérica e <strong>do</strong>s seus autóctones, que nunca tinham,contu<strong>do</strong>, atravessa<strong>do</strong> os Pirenéus e ti<strong>do</strong> contacto com a suposta realida<strong>de</strong> que<strong>de</strong>screviam e adjectivavam.Quanto a consi<strong>de</strong>rações mais específicas da parte <strong>do</strong> autor,<strong>de</strong>signadamente no plano religioso, o contraste não podia ser mais evi<strong>de</strong>nte. Aolongo <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o livro, Hodges critica a religiosida<strong>de</strong> extremada <strong>do</strong>s portugueses,o fanatismo e as atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s próprios responsáveis clericais, realçan<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>11 HOD G E S , G e org e Lloy d . Narr at iv e o f t h e E x pe dit io n t o P o rt u g al , Vol. I, p. 7.141 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148início a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> este país alterar concepções e comportamentos. Veja-secomo o autor se refere, e em que termos, por exemplo, às or<strong>de</strong>ns religiosas –católicas – existentes nas diversas ilhas <strong>do</strong> arquipélago <strong>do</strong>s Açores:Numerous nests of ecclesiastical hornets infested these little islands, andwith the most arbitrary and unrestrained tyranny trampled upon theindustrious people, and by <strong>de</strong>grees reduced them to a state of unbridledsuperstition, ferocious bigotry, and licentiousness of the most <strong>de</strong>gradingnature. A state of moral <strong>de</strong>pravity to this day exists in the convents andmonasteries in the Azores, happily unknown, in its extent, in even themother country in the Peninsula. 12E <strong>de</strong> não muito diferente forma, com igual criticismo, sarcasmo emordacida<strong>de</strong>, se refere às freiras que os ocupavam:The immoral habits of these women [freiras] was a matter of generalnotoriety; and an Irish physician, who had for some time been medicalattendant at the convent, informed me that it was no unusual part of hisduty to officiate as accoucheur; and that at that very time several illegitimatechildren of the nuns were within the walls of the convent. It is a curious fact,that one of these children is quite black, although its reputed mother isaltogether fair, and one of the prettiest nuns of the party. 13Merece realce a última frase <strong>do</strong> parágrafo transcrito, on<strong>de</strong> há uma evi<strong>de</strong>ntemanifestação <strong>do</strong> já atrás referi<strong>do</strong> pensamento racista que também caracterizara operío<strong>do</strong> vitoriano. O autor não só alu<strong>de</strong> a uma criança que tinha a pele “bastantepreta”, como salienta o facto <strong>de</strong> a sua mãe além <strong>de</strong> ser “branca”, ser “uma das maisbonitas freiras <strong>do</strong> convento”.13 4- 3 5.12 HOD G E S , G e org e Ll oy d . Na r rat iv e o f t h e E x pe dit io n t o P o rt ugal , Vo l. I, p p.13 Ibid ., p. 238.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012142


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148Mas voltan<strong>do</strong> à assumida oposição ao catolicismo e ao clericalismo,importa referir que tal atitu<strong>de</strong> se trata <strong>de</strong> uma recorrente característica dasnarrativas viajeiras <strong>do</strong> séc. XIX da autoria <strong>de</strong> escritores britânicos. Na obraMasked Atheism, a autora Maria LaMonaca <strong>de</strong>fine, a propósito da romancistaevangélica Charlotte Tonna, o pensamento anti-católico da época da seguinteforma: “(…)a concept frequently articulated in Victorian literature and culture,that Roman Catholicism was a fake religion – a mask or “sanctified face”concealing the most profane excesses anda ten<strong>de</strong>ncies of a fallen humannature.” 14 Mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>fendida, a i<strong>de</strong>ia com contornos políticos era alvo <strong>de</strong>verda<strong>de</strong>ira propaganda, também visível em diversas narrativas, como é referi<strong>do</strong>por Susan M. Griffin:Reading wi<strong>de</strong>ly and closely in Victorian anti-Catholic narrative makesclear that well-known stories and figures provi<strong>de</strong> a narrative language fordiscussion and analysis of a range of cultural i<strong>de</strong>as and problems, includingthe roles of women, shifting <strong>de</strong>finitions of masculinity, the status ofmarriage, education and citizenship, and literary professionalism, and, mostimportantly, Protestant self-critique. 15Entre os diversos tons prosódicos usa<strong>do</strong>s ao longo da sua narrativa,encontra-se a fina ironia, usada em jeito <strong>de</strong> contestação e crítica às situações que oautor notoriamente se sente no direito <strong>de</strong> reprovar. Hodges regista o “espíritosofista e fútil” <strong>do</strong>s portugueses, a propósito <strong>do</strong> baptismo <strong>de</strong> duas fragatas:It is curious here to observe how much the cavilling and trifling spirit of thePortuguese shewed itself in this re-baptism of the two frigates. At a momentwhen it is to be presumed that more weighty matters were at least sharingtheir attention, three councils (if so they may be seriously styled) were held in14 LAM ON AC A, M . Mas k e d A t h e is m : C at h o l icis m an d t h e S e cu l ar V ict o ri an H o m e .Ohio: O hi on Un i ve r sit y P re ss, 20 08, p. 1.15 G R IFFIN , S . M. An t i -C at h o l ic is m an d Nin e t e e n t h -C e n t u ry Fict io n . C am brid g e :C am brid g e Un iv e rs it y P re s s, 2 0 04, p. 2.143 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148Paris to <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> on this momentous question! The young queen and theempress themselves were not absent from the discussion. 16Num outro episódio, quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong> com um motim entre as tropas,o coronel procura repor a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma forma que evi<strong>de</strong>ncia certos traços <strong>de</strong>personalida<strong>de</strong>. Convoca então um tribunal que con<strong>de</strong>na os solda<strong>do</strong>s à pena <strong>de</strong>trezentas varadas, e sobre este tipo <strong>de</strong> punição, Hodges reage <strong>de</strong> forma nomínimo curiosa. Primeiro, começa por con<strong>de</strong>nar a sua prática classifican<strong>do</strong>-acomo um meio <strong>de</strong>gradante <strong>de</strong> manter a disciplina:On this point I will aver, that there is no man who possesses the commonfeelings of our nature that can witness the <strong>de</strong>gradation of a human being,exposed with bare back, tied up to the halberds, in the gaze of a wholeregiment, without himself participating in the sentiment of <strong>de</strong>gradation, andturning from the odious sight in disgust. For my own part, I am notashamed to confess, that on the occasions of such military executions, atwhich my duty obliged me to attend, I have been so far overcome by thedistressful feelings produced by the resort to this punishment, that I have feltmyself compelled to quit the para<strong>de</strong>-ground; and I have known many of themost distinguished officers of the British service who have expressedthemselves to the same effect. 17Depois, apesar da repulsa que parece a priori provocar nos seus <strong>de</strong>cisores eexecutantes, tal prática não <strong>de</strong>ixou porém <strong>de</strong> ser levada a efeito. Até porque, esegun<strong>do</strong> o próprio Hodges, “have not hitherto been <strong>de</strong>vised any means which Iconsi<strong>de</strong>r altogether a<strong>de</strong>quate as a substitute for the present practice” 18 . Estaaparente contradição <strong>de</strong> alguém dividi<strong>do</strong> entre o ‘<strong>de</strong>ver’ e a ‘misericórdia’ <strong>de</strong>ve16 HOD G E S , G e org e Lloy d . Na rr ativ e o f th e E x pe ditio n to P o rtu g al , Vol. I , p. 29.17 HOD G E S , G e org e Lloy d . Na r rativ e o f th e E x pe ditio n to P o rtu g al , Vol. I , p p .143- 44.18 I bid. , p. 144.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012144


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148merecer atenção. Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enquadrar a postura numa das moralattitu<strong>de</strong>s atrás i<strong>de</strong>ntificadas, <strong>de</strong>signadamente na muito vitoriana hipocrisia.A mundividência <strong>de</strong> um britânico em Portugal é sobretu<strong>do</strong> a <strong>de</strong> umesclareci<strong>do</strong> no meio <strong>do</strong> obscurantismo, da auto-proclamada superiorida<strong>de</strong> morale intelectual ante a ignorância e a cegueira religiosa <strong>de</strong> uma nação consi<strong>de</strong>rada‘inferior’. Exemplo evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> o autor ser ele próprio porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ssessentimentos <strong>de</strong> orgulho <strong>de</strong>smesura<strong>do</strong> e <strong>de</strong> altivez patriótica tipicamente vitorianaé o excerto que se segue:It is, I believe, customary with an Englishman, above the native of anyother soil, to experience certain twinges of regret, confessed or concealed, onquitting the shores of his own country. I cannot say that I was myselfexempt from these sensations, however sanguine I was as to the result of thebold experiment I was about to contribute my humble aid to. 19A manifestação <strong>de</strong> orgulho e superiorida<strong>de</strong> chega mais longe ainda naspalavras e juízos <strong>de</strong> Hodges, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se verifica que o autor relaciona ocomportamento negativo não às circunstâncias, mas à própria maneira <strong>de</strong> ser queé, na sua perspectiva, tipicamente portuguesa:Stratagem in war is very little known to the Portuguese. They have neitherthe ingenuity of thought to <strong>de</strong>vise it, nor the <strong>de</strong>termination of purpose to putit into practice. Procrastination, moreover, is one of their besetting sins. Toall propositions for action, or <strong>de</strong>mands the most urgent, “Amanha!”(tomorrow) is their habitual reply. 20Tal juízo torna-se ainda mais evi<strong>de</strong>nte quan<strong>do</strong> recorre à comparação comos seus compatriotas. A apreciação negativa também aos seus próprios militaressurge na narrativa quase sempre pelo mesmo motivo: o mau comportamento, a19 I bid, p p . 3 9- 40.20 I bid, p p. 2 04 - 0 5.145 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148<strong>do</strong>ença e até a morte provocadas pela embriaguez constante (“It is painful torecur to the mischiefs produced amongst our men by the pernicious habit ofdrinking” 21 ). Só que o mal que afecta o brio <strong>do</strong>s ingleses é apenas e só influência‘externa’, provoca<strong>do</strong> pelo álcool, e por seu próprio consentimento. Por outrola<strong>do</strong>, o ‘mal’ <strong>do</strong> português, numa perspectiva essencialista, não é provoca<strong>do</strong> pornenhuma alteração momentânea nem consentida, é-o sempre <strong>de</strong> raiz, <strong>de</strong> maneira<strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> nascença e <strong>de</strong> espírito.Por estes exemplos se percebe que a narrativa <strong>do</strong> Coronel George LloydHodges, britânico ao serviço da causa liberal, é um exemplo da vasta produçãodiegética subsequente à Guerra Civil, na qual o autor expressa <strong>de</strong> forma clara oseu ponto <strong>de</strong> vista muito marca<strong>do</strong> pela idiossincrasia vitoriana. Umaidiossincrasia orgulhosa, preconceituosa, altiva, etnocêntrica, hipócrita,essencialista e anticlerical.3. ConclusãoReflectida nas apreciações ao Outro – e o Outro, neste caso, é Portugal e osPortugueses – está o <strong>de</strong>senho da uma sui generis construção i<strong>de</strong>ntitária, mo<strong>de</strong>ladapela estrutura educacional ou comportamental basilar da socieda<strong>de</strong> britânica <strong>do</strong>século XIX. O vitorianismo, esse esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito que marcou uma época <strong>de</strong>transição na História <strong>do</strong> Reino Uni<strong>do</strong> e da própria Europa, afigura-se comoperío<strong>do</strong> contraditório e incoerente, transforma<strong>do</strong>r e veloz, berço e mol<strong>de</strong> <strong>do</strong>britânico optimista, orgulhoso, preconceituoso, simultaneamente intelectual eanti-intelectual, obceca<strong>do</strong> com a tangibilida<strong>de</strong> das coisas, mas que só consi<strong>de</strong>ra‘sério’ o que interroga e se interroga sobre as coisas estabelecidas. O vitorianismoé o berço <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong>, da luta <strong>de</strong> classes, da revolução, mas igualmente opotencia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> elitismo, <strong>do</strong> racismo e <strong>do</strong> capitalismo. Um to<strong>do</strong> diverso einconstante, fim <strong>de</strong> velhas estruturas civilizacionais e princípio <strong>de</strong> novas emo<strong>de</strong>rnas perspectivas.21 H ODGE S , G e org e Lloy d . Na r rativ e o f th e E x pe ditio n to P o rtu g al , Vol. I, pp.215- 16.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012146


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129– 148A Narrativa da Expedição a Portugal <strong>de</strong> George L. Hodges, reflectin<strong>do</strong> aposição, os juízos, a mundividência ou idiossincrasia <strong>do</strong> autor sobre Portugal e osPortugueses, é também reflexo <strong>de</strong> algumas das mais notórias característicasmorais e intelectuais associadas a esse perío<strong>do</strong>. Ela é uma incursão pela diferençacivilizacional entre <strong>do</strong>is países ou duas socieda<strong>de</strong>s distintas – a vitoriana e aportuguesa –, mas uma diferença notada neste caso não por via da análiseabrangente das circunstâncias que <strong>de</strong>finem a socieda<strong>de</strong> observada, não peloconhecimento e reconhecimento <strong>do</strong> seu atraso fruto <strong>de</strong> circunstâncias bélicas –passadas e presentes – e económicas, nem sequer tanto pela submissãoobrigatória <strong>do</strong> povo aos ditames <strong>do</strong> absolutismo monárquico – que o autorrejeitava e combatia –, mas antes uma diferença notada e associada a um mal nãoinfligi<strong>do</strong>, não imposto, não externo, mas sim ‘natural’, <strong>de</strong> raiz, <strong>de</strong> ‘nascença’ <strong>de</strong>um país e <strong>de</strong> um povo con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a ser ‘naturalmente inferior’.Referências bibliográficasCHAVES, Castelo Branco. Os Livros <strong>de</strong> Viagens em Portugal no Século XVIIIe a sua Projecção Europeia. Col. Biblioteca Breve nº 15. Lisboa: Instituto <strong>de</strong> Culturae Língua Portuguesa – Ministério da Educação, 1987.GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Lisboa– Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editorial Enciclopédica.GRIFFIN, S. M. Anti-Catholicism and Nineteenth-Century Fiction. Cambridge:Cambridge University Press, 2004.HODGES, George Lloyd. Narrative of the Expedition to Portugal in 1832,Un<strong>de</strong>r the Or<strong>de</strong>rs of His Imperial Majesty <strong>Dom</strong> Pedro, Duke of Braganza. Vol. I-II.Londres: James Fraser, 1833.HOUGHTON, Walter E. The Victorian Frame of Mind: 1830-1870. Lon<strong>do</strong>n:Yale University Press, 1963LAMONACA, M. Masked Atheism: Catholicism and the Secular VictorianHome. Ohio: Ohion University Press, 2008.147 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Silva, Ivo Rafael – Orgulho e Preconceito: a visão <strong>de</strong> um vitoriano acerca <strong>de</strong> Portugal e<strong>do</strong>sportugueses 129 – 148MARX, K. O Capital: Livro I. J. Teixeira Martins e Vital Moreira (trad. eintr.) Coimbra: Centelha - Produção <strong>do</strong> Livro SARL, 1974.MENDES, J. Ama<strong>do</strong>. “Evolução da Economia Portuguesa” inMATTOSO, José. História <strong>de</strong> Portugal: O Liberalismo. Lisboa: Editorial Estampa,1998.SANCHES, M. Ribeiro. “Viagens: da Certeza <strong>de</strong> Si à Reflexivida<strong>de</strong>Etnográfica. Os relatos <strong>de</strong> La Pérouse e <strong>de</strong> Chamisso sobre a Califórnia” inBUESCO, Helena C. e DUARTE, João F. (coord.). Narrativas da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: aConstrução <strong>do</strong> Outro. Lisboa: Colibri, 2001.SENA, J. <strong>de</strong>. A Literatura Inglesa: Ensaio <strong>de</strong> Interpretação e <strong>de</strong> História. Lisboa:Cotovia, 1989 [1963].SILVA, Ivo Rafael. Contributos da Tradução para a Historiografia Portuguesa:Reflexões Pré e Para-tradutivas em torno da “Narrativa da Expedição a Portugal em 1832”.Tese <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>. ISCAP, 2010.SPENCER, Herbert. Social Statics: or The Conditions Essencial to HumanHappiness, Specified at The First of Them Developed. Lon<strong>do</strong>n: John Chapman, 1851.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012148


DETECTIVES WITH PIMPLES:HOW TEEN NOIR IS CROSSING THE FRONTIERS OFTHE TRADITIONAL NOIR FILMSJoão <strong>de</strong> MancelosCentro <strong>de</strong> Línguas e CulturasUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aveiromancelos@live.comAbstractIn the last ten years, teen noir movies and series — such as Donnie Darko(2001), Brick (2005), or Veronica Mars (2004-2007) — have become increasinglypopular among audiences, both in the USA and in Europe, and aroused thecuriosity of critics. These teen noir adventures present darker themes andtechnical features that distinguish them from numerous productions aiming atyoung adults. Their narrative and aesthetic characteristics reinvent and subvertthe tradition of classic noir movies of the forties and fifties, thus generating asense of novelty. In this article, I focus my attention on Veronica Mars, a famousteen noir series, created by Rob Thomas, to examine: a) the teen noir themes; b)the new profile and role of the private investigator; c) the empowerment ofgirls/young women; d) razor-sharp dialogues; e) intertextual references to oldschoolnoir movies. In or<strong>de</strong>r to <strong>do</strong> so, resort to the research of specialists in thefield of neo noir, such as Mark Conrad, Foster Hirsch, or Roz Kaveney. My maingoal is to prove that a new (sub)genre is slowly emerging and revivifying teencinema.


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165ResumoNos últimos <strong>de</strong>z anos, filmes e séries <strong>do</strong> género teen noir — como DonnieDarko (2001), Brick (2005), ou Veronica Mars (2004-2007) — tornaram-secrescentemente populares junto das audiências norte-americanas e europeias, esuscitaram a curiosida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s críticos. Estas aventuras teen noir apresentam temasmais sombrios e aspetos técnicos que as distinguem das numerosas produçõesdirigidas a jovens adultos. As suas caraterísticas narrativas e estéticas reinventame subvertem a tradição <strong>do</strong>s filmes noir clássicos das décadas <strong>de</strong> quarenta ecinquenta, geran<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, uma sensação <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>. Neste artigo, centroa atenção em Veronica Mars, uma famosa série teen noir, criada por Rob Thomas,para examinar: a) os temas teen noir; b) o novo perfil e papel <strong>do</strong> <strong>de</strong>tetive priva<strong>do</strong>;c) o po<strong>de</strong>r das raparigas e jovens; d) os diálogos cortantes; e) as referênciasintertextuais aos filmes clássicos. Para tal, recorro à pesquisa <strong>de</strong> especialistas nocampo <strong>do</strong> neo noir, como Mark Conrad, Foster Hirsch ou Roz Kaveney. O meuobjetivo é provar que um novo (sub)género emerge lentamente e revivifica ocinema para jovens.Keywords: Teen noir, Veronica Mars, Noir cinema, Reinvention, FeminismPalavras-chave: Teen noir, Veronica Mars, Cinema noir, Reinvenção,Feminismo1. “If you’re like me, you just keep chasing the storm” 1In the last ten years, films and TV series such as Heathers (1999), DonnieDarko (2001), Brick (2005) or Veronica Mars (2004-2007) have become increasingly1 The t it le s of t hi s a nd m ost of t he re m aini ng se c t i ons are q u ot e s e x t rac t e df rom e pis od e s of V e ro n ica M ars .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012150


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165popular and captivated cult audiences, both in the United States and in Europe,while arousing the curiosity of critics. These productions present characters,plots, motives and a visual aesthetic, that resemble the noir films created between1941, when The Maltese Falcon premiered, and 1958, when Touch of Evil wasreleased. The new films and series retain, for instances, characters like the femmefatale, who drags men to a dreadful <strong>de</strong>stiny; the good-bad girl, who <strong>do</strong>es nothesitate in resorting to dubious methods in or<strong>de</strong>r to achieve morally correctobjectives; and the lonely <strong>de</strong>tective, now a troubled a<strong>do</strong>lescent — as if SamSpa<strong>de</strong> had gone back to High School. In the first <strong>de</strong>ca<strong>de</strong> of our century, criticscoined the expression teen noir to <strong>de</strong>fine this new genre or, in my opinion, subgenre,since it retains numerous traits of the classic film noir, especially in its contents,thus not creating a significant ruptureIn this article, I intend to a) examine the common elements between teennoir series and classic noir films; b) analyze how this new production reinvents orsubverts the characteristics of the old genre, generating a sense of novelty; c)<strong>de</strong>tect some of the numerous intertextual references present in Veronica Mars,which may lead young viewers to investigate other series, movies or books.Within this frame, I will concentrate my study on TV series Veronica Mars,created by Rob Thomas, premiered on UPN, on September the 22 nd , 2004, andconclu<strong>de</strong>d on May the 22 nd , 2007, on CW Television Network, spanning overthree seasons. These correspond to Veronica’s <strong>de</strong>parture, initiation and return, inthe context of Joseph Campbell’s classic study on comparative mythology, TheHero with a Thousand Faces (1949) (Zin<strong>de</strong>r 111; Campbell 115-18).Even though Veronica Mars did not achieve the expected success — thethird season was abbreviated and the fourth didn’t go beyond the pilot episo<strong>de</strong>— it conquered numerous loyal fans, and became a cult series, enjoyed both byteenagers and adults, regular viewers and aca<strong>de</strong>mics, heterogeneous audiencescomposed of Generations X, Y and Baby Boomers. Even worldwi<strong>de</strong> famousauthor and <strong>de</strong>manding critic Stephen King recognized the quality of thisproduction, when he argued, “Why is Veronica Mars so good? . . . I can’t take myeyes off the damn thing” (Bolte 110).151 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165The series received consi<strong>de</strong>rable critical praise from Village Voice, Time,Variety, TV Gui<strong>de</strong>, etc., elevating it to the status of “canonical television . . . thatshould live on the vi<strong>de</strong>o library shelves of the future” (Wilcox and Turnbull 2).Moreover, the reflections of several journalists, scholars in the field of MediaStudies, and young researchers gave origin to two collections of essays, NeptuneNoir: Unauthorized Investigations into Veronica Mars (2007), and Investigating VeronicaMars (2011), a clear evi<strong>de</strong>nce of the interest this series generated.It is my perception that the reason for Veronica Mars’s artistic success liesprimarily in its innovative characteristics, and in the concomitant rupture with amyriad of easily digested series <strong>de</strong>stined to a<strong>do</strong>lescents, that have been plaguingAmerican television since the fifties. Even though this teen drama was broadcastby two networks which aim at young audiences, UPN and CW, it <strong>do</strong>es not fit inthe traditional soap opera format. As Lisa Emmerton points out:In a market already oversaturated with images of ‘sexy kids <strong>do</strong>ing sexythings’, Veronica Mars took the all-too-familiar scenario in whichprivileged ‘So Cal’ kids revel in their anguish produced by their glamorouslifestyle and turned it on its head. Veronica Mars simultaneously points tothe ina<strong>de</strong>quacies of many contemporary youth dramas and provi<strong>de</strong>s a<strong>de</strong>monstration that it is possible to produce quality series that <strong>de</strong>al with teenissues. (Emmerton 124)The wish to innovate within the frame of the noir genre played a<strong>de</strong>terminant role in the spirit of the series. Rob Thomas had quit his career as ahigh school teacher, in San Antonio, Texas, to try his luck as a writer, in LosAngeles. Thomas began by publishing a few novels — of which only Rats SawGod (1996) obtained significant critical acclaim —, and creating television scripts,<strong>de</strong>stined to young audiences. Eventually, Thomas invested his time and talent ina more daring project: he <strong>de</strong>parted from the unpublished manuscript of a newnovel, revolving around the character of a young man called Keith Mars, whoworked for his father’s private <strong>de</strong>tective agency, to reinvent him as Veronica, aPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012152


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165sixteen-year-old Californian stu<strong>de</strong>nt (Wilcox and Turnbull 1). Focusing on thegenesis of this series, Thomas explains the reasons that led him to select a girl forthe protagonist:This i<strong>de</strong>a that I was attracted to, and had been thinking about since Itaught high school, was this vague notion about teenagers being <strong>de</strong>sensitizedand ja<strong>de</strong>d and sexualized so much earlier than I feel like even mygeneration 15, 20 years before had been. That seemed like a perfect thing totry to shine a spotlight on. [That concept] was interesting to me when theprotagonist was a boy, but when I started thinking in terms of a girl whohad seen too much and experienced too much at too young of an age, itbecame even more potent to me. (Thomas “The Origins” 192)And so, Veronica is born: an attractive, sarcastic and streetwise blon<strong>de</strong>,who has a para<strong>do</strong>xical ten<strong>de</strong>ncy to fight crime by breaking the law. On a firstapproach, this teen would correspond to the stereotyped image of the ‘AmericanSweetheart’ in media — white, blon<strong>de</strong>, beautiful, slim, mo<strong>de</strong>rn —, anotherShirley Temple, one more Lolita, simply a Gidget (Mayer 138). However, afterviewing the first episo<strong>de</strong> of the series, the audience realized Veronica belongs to adifferent stock of heroines. Far from being a futile young lady, this young<strong>de</strong>tective is a complex and mature individual, who challenges preconceptions,meeting not only the usual teenage angst, but also some problems most adultsnever had to struggle with. In this sense, she belongs to a new trend of heroines,breaking with the canonical protagonists, a girl who can act as a role mo<strong>de</strong>l forthe new generation. Ilhana Nash remarks this is a rare case in television series:The <strong>do</strong>minant discourses of American teen narratives have yet to representa girlhood that truly serves girls. One that <strong>de</strong>serves and <strong>de</strong>mands arespectful reaction from adults . . . Instead, we continue to train girls toaccept and even request their own subordination, encouraging them, througha well-established system of rewards, to fashion their i<strong>de</strong>ntities with153 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165signifiers of a romance plot that conflates paternal(ist) interests with sexualcommodification. This is the girlhood we call normal, the one thatpopulates the ‘wholesome’ family comedies that comfort and reassure uswith their fables of averageness. (Nash 227-28)But how different is Veronica from the mentioned stereotype? And howclose is she to noir characters? Like Sam Spa<strong>de</strong>, the epitome of the classic noir<strong>de</strong>tective, created by Dashiell Hammet, Veronica is an outcast who operates inthe most sinister margins of society. However, it was not always like that: as theonly daughter of the sheriff of Neptune, Keith Mars, and the girlfriend ofDuncan, son of billionaire Jake Kane, young Veronica was accepted or, at least,tolerated, by her wealthier peers.To grant the audience access to Veronica’s thoughts about the dramaticchanges that took place in her life as young female, the director used the voiceovertechnique, so typical of the classic noir films, but granted it with a morefeminine and sensitive tone (Vaughn 44-45). For instances, in the episo<strong>de</strong> titled“Meet John Smith”, Veronica meditates upon her existence, with wis<strong>do</strong>munusual for someone of her age:Tragedy blows through your life like a torna<strong>do</strong>, uprooting everything,creating chaos. You wait for the dust to settle, and then you choose. Youcan live in the wreckage and pretend it’s still the mansion you remember.Or you can crawl from the rubble and slowly rebuild. Because after disasterstrikes, the important thing is that you move on. But if you’re like me, youjust keep chasing the storm. (“Meet John Smith”)In the context of this series, the voice-over functions as the chorus inGreek tragedies, commenting upon inci<strong>de</strong>nts; bridging several steps of theepiso<strong>de</strong>s; and representing the opinion of a middle-class endangered by thepower of the rich families of Neptune.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012154


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 1652. “Neptune, California, a town without a middle class”This series presents an unusual dimension that makes it enormouslyappealing for ethnic audiences: the attention paid both to social struggle andmulticultural interaction. Within this frame, Veronica’s high school functions as amicrocosm for the entire nation, a dystopian space where conviviality, alliancesand conflicts are frequent. At the beginning of the series, Veronica remarks:This is my school. If you go here, your parents are either millionaires oryour parents work for millionaires. Neptune, California, a town without amiddle class. If you’re in the second group, you get a job; fast food, movietheatres, mini-marts. Or you could be me. My after-school job means tailingphilan<strong>de</strong>ring spouses or investigating false injury claims. (“Pilot”)In fact, most of Veronica’s colleagues have wealthy parents and inhabit aprestigious area, whose zip co<strong>de</strong> is 90909, and because of that, they are known asthe 09ers, a term that resembles the word onanist, and hints at the selfishness ofthat group. On the other si<strong>de</strong>, there are the <strong>de</strong>stitute stu<strong>de</strong>nts, who coinci<strong>de</strong> withthe African-Americans, such as Wallace, Veronica’s right arm, or the Hispanics,like Weevil. In this sense, and similarly to the classic noir films, the series VeronicaMars mirrors the problems of an era, the zeitgeist of the USA in the first <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>of this century. In high school, the socioeconomic asymmetries are easilyrevealed, and status <strong>de</strong>rives from wealth and power. The richer stu<strong>de</strong>nts displaytheir prosperity through luxury gadgets, clothes and powerful cars; theun<strong>de</strong>rprivileged ones hold part-time jobs, and compete for scholarships, realizingeducation can be a way of climbing up the social lad<strong>de</strong>r.Besi<strong>de</strong>s presenting social problems, this series also approaches the <strong>de</strong>licatetheme of ethnic interaction in a kalei<strong>do</strong>scopic society, and frequently displayshow class and race intermingle. That is a rare trait in most teen series, whichprefer to avoid serious or contentious matters, and rather concentrate on who155 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165sleeps with who, who gets pregnant or who climbs up the lad<strong>de</strong>r of popularity. Inthis context, Rhonda Wilcox and Sue Turnbull argue that:The series is far from color-blind. Overt remarks about race are ma<strong>de</strong> fromthe pilot on. Eli ‘Weevil Navarro calls Veronica’s soon-to-be-friendWallace ‘that skinny Negro’ . . . In the second episo<strong>de</strong>, Logan taunts theLatino Weevil with the fact that his grandmother works as a <strong>do</strong>mestic inthe Echolls household. At a Christmas holiday high stakes poker game atthe Echolls house, that Weevil talks his way into, a young movie star whois another one of the players complains to Logan, ‘That’s like the tenthracist thing you’ve said.’ (Wilcox and Turnbull 11)In this tense community, Keith Mars (Veronica’s father) commitsprofessional suici<strong>de</strong> when he dares to accuse billionaire Jake Kane of havingassassinated his own daughter, Lilly Kane, causing a sud<strong>de</strong>n commotion inNeptune’s high society. Criminal research conclu<strong>de</strong>s that Kane is innocent andAbel Koontz, a former employee of his enterprise, is convicted of mur<strong>de</strong>r andcon<strong>de</strong>mned to <strong>de</strong>ath. Consequently, all the members of the Mars family sufferthe revenge perpetrated by the rich community of Neptune: an emergencyelection is called and, as a result, Keith is replaced by sheriff Don Lamb, anunscrupulous officer; shocked by this sud<strong>de</strong>n loss of status, Lianne Mars, Keith’swife, aban<strong>do</strong>ns her home; while Veronica is banned from the circle of herwealthy colleagues. Suggestively, the title song, performed by alternative rockband The Dandy Warhols, states:A long time ago, we used to be friendsBut I haven't thought of you lately at allIf ever again, a greeting I send to you,Short and sweet to the soul is all I intend. (2)Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012156


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 1653. “Do you want to know how I lost my virginity?”The culmination of this silent revenge occurs when Veronica goes toShelley Pomroy’s party, to prove that backstabbing did not affect her, and drinks,without knowing, “rum, Coke and a roofie”. Early morning, when she wakes up,she realizes that she had been raped. In her own words, simultaneously sarcasticand painful, she asks: “Do you want to know how I lost my virginity? So <strong>do</strong> I”(“Pilot”). When Veronica reports the rape to, Lamb, the sarcastic new sheriff, herefuses to believe her testimony, thinking this is a clever revenge against thetown’s rich boys.According to Deanna Carlyle, Veronica symbolizes the victim in a societywhere law benefits the rich and governors <strong>do</strong> not protect the country’s frailestcitizens. Carlyle also points out that, in a certain way, the young lady embodiespost-9/11 America or the country after the New Orleans’ flood, i.e., a nationraped and aban<strong>do</strong>ned by its lea<strong>de</strong>rs:Just as 9/11 was the <strong>de</strong>fining event for America’s current sense ofviolation, the New Orleans flood was the <strong>de</strong>fining event for America’scurrent sense of aban<strong>do</strong>nment. When Hurricane Katrina <strong>de</strong>stroyed much ofthe Louisiana and Mississippi coastline and endangered thousands ofAmerican lives, national resources were not mobilized as efficiently as theywere, say, to inva<strong>de</strong>Afghanistan or Iraq . . . The New Orleans <strong>de</strong>bacle and Veronica Marshave this in common: they bring to the surface an American theme that hasbeen psychologically <strong>de</strong>nied and barely kept in check for much of the present<strong>de</strong>ca<strong>de</strong> — namely that many of our high-ranking authority figures, ourpolitical lea<strong>de</strong>rs, the ‘fathers’ and ‘mothers’ of our nation, may not trulycare about protecting us, their citizen children, but may in fact be moreinterested in bending the truth and securing their power-base. (Carlyle 153)157 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165The sexual abuse constitutes the turning point in Veronica’s life: thehappy and careless girl becomes the angry and bitter young adult, acquiring thetoughness of classic <strong>de</strong>tectives. The emotional transformation presents a physicalcounterpart: similarly to what happens with other females traumatized by rape,Veronica now wears long sleeved shirts and layers in spite of the SouthernCalifornia weather (Burnett and Townsend 98). Such care for <strong>de</strong>tails just proveshow careful the screenwriter and the directors of the series were, when breathinglife to the character of the young <strong>de</strong>tective.However, in spite of her rape, Veronica refuses to be a victim and <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>snot to change the world or society, but to protect as many individuals as she can.In an interview granted to Portrait magazine, commenting upon the character sheplays, young actress Kristen Bell states:I think the whole premise of the show is about what she [Veronica] choosesto <strong>do</strong> with a bad set of events that are forced on her . . . the show is abouther saying ‘am I going to sit in my room and cry, or am I going to go outand make the most of it and become the person I need to be to get throughthis?’ and that’s what she <strong>do</strong>es. (Lee)4. “I hear you <strong>do</strong> <strong>de</strong>tective stuff for people”Working now as private <strong>de</strong>tectives, Veronica and her father move to ahumbler house and suffer ostracism. In a typical North American town, whereprestige results from material and professional success, the Mars became anexample of failure and exclusion. Like numerous characters from classic noirs,Veronica is an individual with a troubled past: her best friend, Lilly, wasmur<strong>de</strong>red, her mother run away, and she herself was raped. As Thomas pointsout, in an interview granted to The Observer:I wanted to create a character who was so far <strong>do</strong>wn her outlook was:‘There's nothing anyone can <strong>do</strong> to me now. I’ve been through it all. (…) IPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012158


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165wanted a teenage girl who no longer got embarrassed or worried about whatothers said about her, or fretted over what she was going to wear. (Hughes6).A pessimistic perspective of the world and a <strong>de</strong>ep pri<strong>de</strong> are other elementsVeronica shares with the classic <strong>de</strong>tective. In an article titled “The Simples Art ofMur<strong>de</strong>r”, published in December 1944, on the Atlantic Monthly, RaymondChandler draws the psychological profile of the private eye:He is a relatively poor man, or he would not be a <strong>de</strong>tective at all. He is acommon man or he could not go among common people. He has a sense ofcharacter, or he would not know his job. He will take no man’s moneydishonestly and no man’s insolence without a due and dispassionate revenge.He is a lonely man and his pri<strong>de</strong> is that you will treat him as a proud manor be very sorry you ever saw him. He talks as the man of his age talks —that is, with a ru<strong>de</strong> wit, a lively sense of the grotesque, a disgust for sham,and a contempt for pettiness. (Chandler 33)Like a regular <strong>de</strong>tective, Veronica solves cases — but in the context of thestu<strong>de</strong>nt’s community of Neptune High School. Normally, the a<strong>do</strong>lescent <strong>de</strong>alswith thefts, credit card schemes or harassment, at affordable prices, whileassisting her father with several tasks. According to Thomas:Using noir i<strong>de</strong>as in a high-school setting <strong>do</strong>es lend itself to juicystorylines. An adult noir storyline might be a husband mur<strong>de</strong>rs his wife forthe insurance money. Our high-school noir storylines need to dial back abit — a quality story for us would be: My boyfriend took dirty pictures ofme. Help me get them back. (Calvillo 8-9).Veronica is both moved by a <strong>de</strong>sire for justice and by financial needs. Afew excerpts of dialogue reveal her entrepreneur spirit: “Jackson: I <strong>do</strong>n’t care159 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165what they say about you, Veronica Mars. You rock! Veronica: Yes, I <strong>do</strong>. I alsotake cash” (“Silence of the lambs”). Another example: “Jackson: I hear you <strong>do</strong><strong>de</strong>tective stuff for people. Veronica: I <strong>do</strong> favor for friends. Jackson: I can pay.Veronica: Sit <strong>do</strong>wn, friend! What can I <strong>do</strong> for you?” (“Silence of the Lamb”).Other quick and tense dialogues resemble the typical conversations onefinds in noir and neo noir films. In my opinion Veronica Mars only <strong>de</strong>parts fromthe classic dialogues in the sense that her tone is often more humorous thansarcastic, and more sarcastic than threatening, as one would expect from astreetwise girl. One example: “Keith: Have you been playing nice with the otherchildren? Veronica: You know Dad, I'm old school, an eye for an eye. Keith: Ithink that's actually Old Testament” (“Meet John Smith”). Anotherfather/daughter conversation: “Veronica: Tough day? Keith: [imitating PhillipMarlowe] That ain’t the half of it. See, this dame walks in, and you should’ve seenthe getaway sticks on her. Says something’s hinky with her old man. Veronica:[imitating Marlowe]: Did ya put the screws to him? Keith: You ain’t kiddin’, hesang like a canary. Veronica: [normal voice] You’re in luck, Phillip Marlowe,because it's <strong>de</strong>ssert for dinner night, and I've got a sundae thing set up here.Keith: [normal voice] If child services finds out about this, they will take youaway. Veronica: Well, that's a risk I'm willing to take. Keith: Honey, shouldn'’ wetry something at the base of the food pyramid? You know, fruits and vegetables.Veronica: [gasps] What is that? A maraschino cherry?” (“Return of the Kane”).In the resolution of her cases, Veronica reveals another characteristic ofthe noirs: a belief that the ends justify the means. In this spirit, the young<strong>de</strong>tective interferes in a police investigation; has less than legal access to hermother’s safe box; frames a colleague who humiliated her; threatens a secretsociety of young men with revealing publicly their i<strong>de</strong>ntity; and steals from thesheriff squad the vi<strong>de</strong>otapes that may lead to the culprit in Lilly’s assassination.Thomas comments on the protagonist’s ambiguity:The element that I find attractive about noir is the sha<strong>de</strong>s of grey incharacters. It acknowledges that all of us have a dark si<strong>de</strong>. I think thatPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012160


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165most television focuses on white-hatted heroes. Teen shows, particularly,tend to have good guys and bad guys. We work pretty diligently to keepVeronica from ever being too huggable. She’s overly bent on getting even.She's brusque. She has a rather Old Testament sense of justice. (Hughes6)Veronica presents a profile similar to the so-called good-bad girl, one ofthe most intriguing characters in the gallery of classic noir movies, somewherebetween the femme fatale (attractive and malicious) and the homebuil<strong>de</strong>r (the<strong>de</strong>tective’s wife or girlfriend, or occasionally, his angelical secretary, like “GirlFriday” Effie Perine, in The Maltese Falcon, 1941). Those films sometimes revealthe presence of a good-bad girl, a woman who is on the hero’s si<strong>de</strong>, even thoughit may not seem so, at the beginning. She is a seductive, attractive and fiercelyin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt woman, as Gilda in the homonymous film (1946), Joyce Harwood,in The Blue Dahlia (1946), Susan Hayward, in Deadline at Dawn (1946) or VivianRutledge, in The Big Sleep (1946). Like the femme fatale, the good-bad girl can alsohave hid<strong>de</strong>n plans — but these are well-intentioned and they rarely cause the<strong>de</strong>struction of the hero (Spicer 92-93). In this tradition, Veronica always obtainswhat she wants, legally or manipulating her friends (Tucker 42). For instances,she obtains Weevil’s protection, thanks to her charm: “Weevil: See, there you gowith that head-tilt thing. You know, you think you’re all badass, but wheneveryou need something it’s all, ‘hey’. Veronica: Just be glad I <strong>do</strong>n't flip my hair. I’<strong>do</strong>wn you” (“An Echolls Family Christmas”).5. “That Maltese Falcon is still eluding us”The directors of the several episo<strong>de</strong>s of Veronica Mars also resort to manyof the elements that characterize the visual the aesthetics of film noir and, to acertain extent, of neo noir: chiaroscuro lighting, skewed framing, sha<strong>do</strong>ws,silhouettes, scenes lit for night, oblique lines, odd shapes, etc. (Buckland 91).161 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165Concentrating on the first episo<strong>de</strong>, Paul Zin<strong>de</strong>r summarizes some of thesefeatures:In the series pilot, scenes that catalyze Veronica’s stubborn pursuit of thetruth are introduced in a heavily-filtered (mind-altered) visual stylepronouncing each moment a facet of Veronica’s larger memory. Duncan’sunceremonious (and unexplained) rejection of Veronica occurs near theNeptune High lockers, filmed through a dark blue filter as overexposedbacklight shines in the far distance, as though Veronica’s happiness justsits out of her reach. The hue covering the flash of Lilly’s pronouncementthat ‘I’ve got a secret, a good one’ is a softer blue, and accentuates thegol<strong>de</strong>n highlights in Lilly and Veronica’s hair, making them angelic spiritsof the past. When Veronica awakens in flashback to find herself victim ofsexual assault, a counter-intuitive high-contrast cheerful yellow light mocksher <strong>de</strong>spair, as she weeps quietly in the morning sun. The harsh blue filterreturns when Sheriff Lamb dismisses her reported rape in his office, inimages whose clarity confirms his infuriating incompetence. A unique visualstrategy transfigures each of Veronica’s retrospections, separating the scenesfrom her current reality, which lends them an otherworldly (unconscious)significance. (Zin<strong>de</strong>r 112)Besi<strong>de</strong>s the character of the <strong>de</strong>tective, the plots and aesthetics, VeronicaMars constantly pays a tribute to noir films, through intertextual references. Forinstances, when Meg, a colleague of Veronica, asks her: “So, are you working onany interesting cases with your father?”, the young <strong>de</strong>tective replies: “Well, thatMaltese Falcon is still eluding us, but…” (“Weapons of Class Destruction”).More recent films, such as The Outsi<strong>de</strong>rs, are also mentioned. When themotorcycle gang attacks a group of rich stu<strong>de</strong>nts, Wallace notices: “I sud<strong>de</strong>nlyfeel like I’m in a scene from The Outsi<strong>de</strong>rs”, and Veronica comments: “Be cool,Sodapop” (“Pilot”). In addition to these cultural references, there are allusions tonoir and neo noir films: The Big Sleep (1946), Chinatown (1974), Scarface (1983), BodyPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012162


Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165Heat (1981), or Fatal Attraction (1987). A cultivated cinema fan will certainly enjoydiscovering those references along the episo<strong>de</strong>s, a terra cognita in an ocean ofmo<strong>de</strong>rnity, and an invitation to watch or revisit the classic noir films. Notsurprisingly, cult audiences did their best to show their appreciation to RobThomas and the producers:(…) LiveJournal fans credited Veronica Mars’s Season Three renewal tothe fact that they hired a plane to fly “Renew Veronica Mars! CW2006!” banner over the network offices in or<strong>de</strong>r to influence CWexecutives’ <strong>de</strong>cision about the fate of Veronica Mars (Gillan 206)6. “Normal Is the Watchword”I would like to conclu<strong>de</strong>, by pointing out that Veronica Mars inclu<strong>de</strong>sseveral characteristics of the classic noirs, while innovating within theconventions of the genre: it revolves around a lonely <strong>de</strong>tective, but theprotagonist is a girl; it resorts to the voice-over technique, but the reflections ofthe character <strong>de</strong>al mainly with problems faced by a<strong>do</strong>lescents; the social struggleis present, but this time it focuses upon the situation of the middle class; thesetting is not the big city, but chiefly suburban spaces atten<strong>de</strong>d by young people,namely the high school or the beach; most of the action takes place during theday — what Steven San<strong>de</strong>rs called “sunshine noir” (185) — generating in theaudience a sense of insecurity.The plot and characters of Veronica Mars are simultaneously entertainingand thought-provoking, and <strong>de</strong>monstrate it is still possible to reinvent a genre,and create an intelligent series within the frame of commercial television. Thenoir spirit haunts all the episo<strong>de</strong>s of a series that remains the dark mirror of thenation — eternally young, dangerous and unpredictable.Referências bibliográficas163 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


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Mancelos, João <strong>de</strong> – Detectives with pimples: How teen noir e crossing the frontier ofthetraditional noir films 149 - 165KLEIN, Amanda Ann. “The Noir of Neptune”. Neptune Noir:Unauthorized Investigations into Veronica Mars. Ed. Rob Thomas, and Leah Wilson.Dallas: Benbella Books, 2006. 83-92.LEE, Angela. “Veronica Mars: Ten Things I’ll Miss About You – AFangirl’s O<strong>de</strong>”. Portrait June 1, 2007: 16-17.MAYER, Sophie. “We Used to Be Friends: Breaking Up with America’sSweetheart”. Investigating Veronica Mars: Essays on the Teen Detective Series. Ed.Rhonda Wilcox, and Sue Turnbull. Jefferson: McFarland, 2011. 137-151.NASH, Ilhana. American Sweethearts: Teenage Girls in Twentieth-Century PopularCulture. Bloomington: Indiana UP, 2006.SANDERS, Steven M. “Sunshine Noir: Postmo<strong>de</strong>rnism and Miami Vice”.The Philosophy of Neo Noir. Ed. Mark T. Conrad. Lexington: UP of Kentucky 2007.SPICER, Andrew. Film Noir. Essex: Pearson Education, 2002.THOMAS, Rob. Veronica Mars. United Paramount Network and CWTelevision Network, 2004-2007.—. “The Origins of Veronica Mars”. http://robthomasproductions.com.Webpage. 5 November 2011.TUCKER, Anja Christine Rørnes Tucker, “Teen Noir: A Study of theRecent Revival in the Teen Genre”. Master thesis. Dept. of Foreign Languages,University of Bergen, 2008.VAUGHN, Evelyn. “Veronica Mars. Detective. Girl.” Neptune Noir:Unauthorized Investigations into Veronica Mars. Ed. Rob Thomas, and Leah Wilson.Dallas: Benbella Books, 2006. 34-45.WILCOX, Rhonda, and Sue Turnbull. “Introduction. CanonicalVeronica”. Investigating Veronica Mars: Essays on the Teen Detective Series. Eds.Rhonda Wilcox, and Sue Turnbull. Jefferson: McFarland, 2011.ZINDER, Paul. “Get my Revenge On: The Anti-hero’s Journey”.Investigating Veronica Mars: Essays on the Teen Detective Series. Ed. Rhonda Wilcox,and Sue Turnbull. Jefferson: McFarland, 2011. 110-122.165 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


LE MOMENT VENU OU L’ÉVEIL DES ÉDITORIAUXMUTATIONS DE LA LITTÉRATURE FRANÇAISE DESANNÉES QUATRE-VINGT VUES PAR LES REVUESLITTÉRAIRESJosé <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> AlmeidaInstituto <strong>de</strong> Literatura Comparada Margarida LosaFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> PortoPortugaljalmeida@letras.up.ptRésuméLes années quatre-vingt signalent un point <strong>de</strong> bascule <strong>dans</strong> et unemutation majeure <strong>dans</strong> les caractéristiques narratives <strong>de</strong> la littérature française.D’une certaine façon, elles entament la contemporanéité littéraire telle que nousla connaissons du point <strong>de</strong> vue critique. Nous insisterons sur le rôle <strong>de</strong>s revues et<strong>de</strong>s éditoriaux <strong>dans</strong> ce processus. Ils manifestent quelques hésitations <strong>de</strong> lacritique par rapport à la littérature naissante.AbstractThe eighties represent a turning point and an important change in thenarrative features of French literature. In a way, they start the literarycontemporarity as we know it from a critical point of view. They show somehesitations of critique about the emerging literature.Mots-clés: Éditoriaux, Critique littéraire, Littérature française, Années quatre-vingt.Keywords: Editorials, Literary critique, French literature, Eighties.


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -Le 179 désarroi <strong>de</strong> la critique vis-à-vis d’une écriture ne ressortissant plus àl’analyse textuelle s’est progressivement manifesté au cours <strong>de</strong>s années quatre-vingt sous forme d’articles <strong>de</strong> revues littéraires, - elles-mêmes en mutation -, oud’articles <strong>de</strong> presse, et ce, sur une pério<strong>de</strong> <strong>de</strong> tâtonnements allant<strong>de</strong> 1976 à1991.Les propos <strong>de</strong> ces différents apports convergent quant au dépassement <strong>de</strong>notions qui leur semblent incomplètes, périmées ou sujettes à caution. La critiquelittéraire a le sentiment <strong>de</strong> ne plus possé<strong>de</strong>r les outils requis pour approcher unelittérature en mouvement, ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>voir sacrifier quelques notions théoriques auplaisir du texte, à l’imaginaire <strong>de</strong> la représentation et <strong>de</strong> la référence. Lescaractéristiques narratives et stylistiques <strong>de</strong> certains romans, notammentparus auxéditions <strong>de</strong> Minuit (Echenoz, Toussaint, Gailly ou Chevillard, par exemple)posent problème ou laissent perplexe.À partir <strong>de</strong>s années quatre-vingt-dix, lacritique tient un discours plus systématique et naturel sur le nouveau paysagelittéraire, même si elle ne fait pas toujours corps avec lui 1 . Il faut dire que, pourcertains auteurs, l’année 1989 marque définitivement et soli<strong>de</strong>ment un point <strong>de</strong>virage 2 .En 1976 paraît le nº 5 <strong>de</strong> Digraphe <strong>do</strong>nt l’éditorial intitulé “Le momentvenu” en dit long sur l’impression d’impasse qu’éprouvent <strong>de</strong>s revues littérairesnées <strong>dans</strong> les années soixante-dix, désireuses <strong>de</strong> “briser le cercle narcissique <strong>dans</strong>lequel les groupes littéraires tend[aient] à se refermer” 3 . Dans un discours daté(“positions révolutionnaires”, etc.), mais en franche évolution, Digraphe fait lepoint sur les enjeux du moment. L’éditorial commence par reconnaître que larupture avec le texte représentatif et l’accentuation à <strong>de</strong>s fins théoriques dusignifiant ont conduit à une interchangeabilité <strong>de</strong> l’écriture et <strong>de</strong> la théorie censéeen rendre compte, perceptible <strong>dans</strong> <strong>de</strong>s “textes surcodés” 4 et passibles, à lalongue, d’illisibilité. En somme, la surenchère formaliste s’est faite au prix <strong>de</strong> la1 C ’ e st , par e x e m p le , le c a s d e J e an - M ar ie D om e nac h, ou d e la re vu e T x t pou rd e s rai so ns d iam é t r ale m e nt d if f é re nt e s.2 Cf . S ALG AS , Je an - P ie rre – “ S ur d e ux phot os d e g rou pe ” , L a Q uinz ainel it t é rai re , nº 5 32, 1 6 - 31 m ai 19 8 9, p. 24.3 s/ n - “ Le m om e nt ve nu ” , D ig raph e , nº 5, 1 97 6, p. 1 0.4 I bid. , p. 6.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012168


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179lisibilité et surtout du lecteur, - la théorie étant l’unique grille <strong>de</strong> lectureenvisageable : “Or la mo<strong>de</strong>rnité littéraire ne se limite ni à ce formalisme, ni auxtextes qu’il a revendiqués au prix parfois <strong>de</strong> quelque nivellement” 5.Ce constat <strong>de</strong> stagnation et <strong>de</strong> stérilité <strong>de</strong> la textualité hermétique <strong>de</strong> lalittérature française telle qu’elle s’est conçue <strong>de</strong> façon expérimentale <strong>dans</strong> lesannées soixante-dix est, par ailleurs, renforcé par les effets socio-idéologiques <strong>de</strong>la décennie : tentative frustrée <strong>de</strong> la part <strong>de</strong> l’avant-gar<strong>de</strong> littéraire <strong>de</strong> s’accaparerles efforts <strong>de</strong> l’avant-gar<strong>de</strong> politique ; soupçons à gauche à l’endroit <strong>de</strong> cesbizarreries formalistes, vite jugées “bourgeoises” et à effets contre-productifsdroitiers 6 .Très courageusement, l’éditorial suggère une révision <strong>de</strong> l’effet <strong>de</strong> récitet son redimensionnement par rapport à la théorie littéraire en guise <strong>de</strong>concession mitigée : “Au moins sera-t-il possible d’écrire sans surchargethéorique” 7 . Dès lors, “un immense travail reste à faire” 8, <strong>do</strong>nt la littératureultérieure se chargera, pour faire sortir l’écriture <strong>de</strong> la crise <strong>de</strong>s avant-gar<strong>de</strong>s ; cequi,à l’époque,suppose une réponse à <strong>de</strong>s questions, elles aussi très parlantes 9 .En 1987, le nº 258 <strong>de</strong> La Pensée, - revue qui ne cache pas ses optionsidéologiques gauchiste -, s’interroge sous la plume <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Prévostsurl’émergence d’ “une nouvelle mo<strong>de</strong>rnité romanesque” 10 . Prévost constatequelques signes <strong>de</strong> mutation <strong>dans</strong> le roman français <strong>do</strong>nt il regrette la régressionquantitative. Il se réjouit du Nobel <strong>de</strong> littérature décerné à Clau<strong>de</strong> Simon commed’un “éclat inextinguible <strong>de</strong> la génération du Nouveau Roman” 11 ,reconnaissance/consécration solennelle du triomphe <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnité 12 , mais aussi5I bid e m .6I bid ., p. 9. Do min iq u e V ia r t rappe lle lu i au s si c e d é r apag e t ou jou r spos sib le : ” c om m e le m o nt re P au l Re n ard , l a l it t é rat u re d e ‘ l’ art pou r l’ a rt ’ nes’ af f u ble sou ve nt d ’ u n t e l m as q u e q u e pou r c onf i rm e r sou t e r rai ne m e nt u ne id é ol og iepart ic u liè re , b ou rg e o i se e t d roit iè re ” . VI AR T, D om in iq u e – “ Q u e st io ns à l alit t é rat u re ” , L a l it t é rat u re f r an ça is e co n t e m po rain e . Q u e s t io n s e t pe rs pe ct iv e s , Re c u e il d ’ é t u d e spu blié par F r an k Bae rt e t D om iniq u e V ia rt , Lou va in, P re sse s Un ive rs it ai re s d eLou va in, 1 99 3. p. 1 4.7 s/ n - “ Le m om e nt ve nu ” , D ig raph e , nº 5, 1 97 6, p. 8.8 Ibid , p. 9.9 C f . Ibid ., p. 10.10 C f . P R E VOS T, C lau d e – “ Une nou ve l le m od e rnit é rom ane sq u e ?” , L a P e ns é e ,nº 2 58, ju il le t - aoû t 1 98 7, pp. 6 3 - 68.11 Ibid ., p. 63.12 C f . I bid ., p. 64.169 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -du congédiement 179 <strong>de</strong> sa version expérimentale, avant-gardiste et strictementintransitive 13 .Par contre, Clau<strong>de</strong> Prévost se montre plutôt luci<strong>de</strong> quant au contexte et àla modalité d’un “retour” <strong>de</strong> la fiction. D’une part, il dissocie catégoriquementl’idée d’une crise du roman <strong>de</strong> celle d’une crise sociale ou sociétaire, - ce que nefera pas Jean-Marie <strong>Dom</strong>enach quelques années plus tard. La crise ne seraitmême imputable qu’au “vi<strong>de</strong> théorique” 14 . D’autre part, il anticipe avecclairvoyance sur la portée réelle <strong>de</strong> “l’éclatement du récit” 15 .En effet, il ne s’agiraitpas tant d’une liquidation pure et simple que d’une réévaluation <strong>de</strong> la <strong>de</strong>rnièreavant-gar<strong>de</strong> 16 . Enfin, Clau<strong>de</strong> Prévost se fait le témoin <strong>de</strong>s réactions antagoniquescausées par la nouvelle fiction française. Si d’aucuns déplorent cette évolution,voyant <strong>dans</strong> le retour une “régression” et, partant, une “réaction” au projetlittéraire et politique mo<strong>de</strong>rne, d’autres applaudissent déjà: “la mo<strong>de</strong>rnité estmorte, vive le post-mo<strong>de</strong>rne !” 17 . Le mot est lancé.En 1987, c’est au tour <strong>de</strong> L’Infini et d’Alain Nadaud <strong>de</strong> faire sensation parun article qui ose tourner la page. Le titre s’avère à nouveau très parlant : “Où enest la littérature ? ou pour un nouvel imaginaire” 18 . Cette livraison susciteplusieurs remarques. Premièrement, elle a lieu <strong>dans</strong> L’Infini, direct successeur <strong>de</strong>Tel Quel à un moment-clé pour la littérature française. Deuxièmement, la questionainsi posée ressemble davantage à un pied <strong>de</strong> nez qu’à un clin d’œil inoffensif auxquestions que l’existentialisme sartrien ou les Nouveaux Romanciers posaient à lalittérature : Que peut la littérature ?, Qu’est-ce que la littérature ? Finalement, elleintroduit le besoin d’une ouverture à un nouvel imaginaire et, dès lors, interrogel’écriture quant au récit et à la représentation et entend sortir hors du carcanintransitif.13 C f . D E M OULIN , L au re nt – “ G é né rat io n innom m ab le ” , Le t t r e s du jou r ( I I ),T e xt yl e s , nº 14, 19 97, p. 8.14 P R E VOS T, C lau d e – “ Une nou ve l le m od e rnit é r om ane sq u e ?” , p. 66.15 I bid ., p. 65.16 C f . Ibid ., p. 67.17 I bid ., p. 65.18 C f . N AD AUD , Alai n – “ Où e n e st l a l it t é rat u re ? Ou p our un n ouve lim ag in ai re ” , L’ Inf ini , nº 1 9, é t é 19 87, pp. 3 - 1 2.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012170


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179Mais l’acuité <strong>de</strong> l’analyse d’Alain Nadaud se reflète aussi à d’autres égards.Il dresse le portrait ou le profil sociologique <strong>de</strong>s “jeunes” écrivains : naissanceaprès la Secon<strong>de</strong> Guerre, a<strong>do</strong>lescence marquée par les événements <strong>de</strong> Mai 68,influence incontournable <strong>de</strong>s années soixante-dix et <strong>de</strong> l’écoletextuelleparisienne, mais surtout impression <strong>de</strong> ne former que <strong>de</strong> vagues “territoiresd’écriture” 19 , et justement <strong>de</strong> ne possé<strong>de</strong>r que l’écriture comme “plus petitcommun dénominateur” 20 .Il se démarque déjà volontiers <strong>de</strong> l’emprise <strong>de</strong> lathéorie littéraire qui avait régné sur les années soixante-dix et <strong>do</strong>nt il dresse aussiun premier bilan équilibré avec un tout premier recul. Ce point d’équilibres’avérera essentiel pour l’approche <strong>de</strong> l’écriture contemporaine.De fait, Alain Nadaud ne nie pas le précieux travail <strong>de</strong> la théorie surl’écriture, “à l’origine d’un formidable souffle” 21 ; et encore moins celui <strong>de</strong>ssciences sociales sur le roman, c’est-à-dire “l’efficacité réelle qu’ont eue lapsychanalyse et le structuralisme en matière d’analyse textuelle” 22. Mais ce bilan estmitigé. Nadaud regrette en effet “quelques ravages <strong>dans</strong> l’imaginaire <strong>de</strong> notretemps” 23 et déplore que l’on ait pu confondre “le produit <strong>de</strong> cette réflexion avec lalittérature elle-même” 24 . C’est <strong>do</strong>nc une synthèse dialectique qui redéfinissel’écriture que Nadaud dégage <strong>de</strong> la nouvelle fiction française. Pour ce, il fautd’abord faire la part <strong>de</strong>s choses, souligner ce qu’il y a <strong>de</strong> durable <strong>dans</strong> la nouvellefiction et en écarter ce qui ressortit à “l’air du temps” 25 . Ensuite, dégager ce quis’affirme comme véritablement “novateur” et seulement alors, mettre lalittérature à l’épreuve <strong>de</strong> son passé proche et <strong>de</strong> son présent.La conclusion qui enressort peut être légitimement rapprochéedu discours postmo<strong>de</strong>rne sur lalittérature 26 quant au <strong>de</strong>gré d’assimilation du projet littéraire mo<strong>de</strong>rne par lapostmo<strong>de</strong>rnité, et son caractère inoffensif, parce que déjà assimilé :19 I bid. , p. 4.20 I bi<strong>de</strong> m .21 I bi<strong>de</strong> m .22 I bid. , p. 6.23 I bid. , p. 4.24 I bid. , p. 7.25 C f. I bid. , p. 5.26 Cf . BAD I R , S é m ir – “ Ve rs la po st m od e rnit é . R e t ou r à Bau d e lai r e ?” , É crit u re s ,nº 5, “ Le dé p li. Lit t é rat u re e t p ost m o<strong>de</strong> rnit é ” , au t om ne 1 99 3, p. 18 s.171 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -Car 179 instruit par ce qui a pu être découvert <strong>de</strong>s processus d’écriture à la foispar la psychanalyse, la sociologie marxiste et la linguistique structurale,l’écrivain d’aujourd’hui n’est pas près <strong>de</strong> se laisser surprendre (…). De cequ’il écrit, il y a comme l’aveu implicite <strong>de</strong> n’en être plus tout à fait ladupe 27.Autrement dit, il s’agit <strong>do</strong>rénavant <strong>de</strong> poser le récit après et malgré lasémiotique ; le sujet après et malgré la psychanalyse.Alain Nadaud insiste <strong>do</strong>nc surun point <strong>de</strong> compromis pour la littérature contemporaine, sur sa mitoyenneté àl’égard <strong>de</strong>s avant-gar<strong>de</strong>s du siècle. De ce fait, il entend faire perpétuer lamo<strong>de</strong>rnité sous une forme enrichie, élargie et épanouie, sans rupture oureniement :Et, pour ma part, je n’ai jamais vécu la lecture du Degré zéro <strong>de</strong> l’écriture,<strong>de</strong> S/Z ou, plus encore, <strong>de</strong> l’analyse structurale faite par Jakobson et Lévi-Strauss <strong>de</strong>s Chats <strong>de</strong> Charles Bau<strong>de</strong>laire comme une <strong>de</strong>struction <strong>de</strong> l’idée<strong>de</strong> littérature mais, au contraire, comme la mise à l’épreuve <strong>de</strong> sa réalité 28 .Il entend aussi réconcilier le lectorat avec la fiction ; en faire une “partieprenante” 29 ; ce qui indique bien l’hermétisme auquel il s’agit <strong>de</strong> renoncerdésormais.Cette interrogation prendra plus tard (1988) la forme d’un débat,modéré par Alain Finkielkraut, entre <strong>de</strong>ux conceptions <strong>de</strong> la contemporanéitélittéraire française : celle d’Alain Nadaud, que nous venons d’énoncer et qu’ilrépétera, et celle <strong>de</strong> Danièle Sallenave, <strong>do</strong>nt l’écriture <strong>de</strong>ssine une rupture radicaleavec la textualité, et à vrai dire, avec elle-même. À ce sta<strong>de</strong> du débat critique,laquestion tourne autour <strong>de</strong> la validité <strong>de</strong>s visions barthésienne et sartrienne <strong>de</strong> lalittérature et, dès lors, du problème <strong>de</strong> la représentation, et <strong>de</strong> celui du sujet. Lasubtilité <strong>de</strong>s interventions, notamment sur la question <strong>de</strong> la référence, reflète27N AD AUD , Ala in – “ Où e n e st la lit t é rat u re ? Ou p o ur un nouve lim ag in ai re ”, p. 8.28Ibid ., p. 729Ibid ., p. 11.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012172


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179clairement ce qui se joue <strong>dans</strong> la contiguïté <strong>de</strong>s pério<strong>de</strong>s littéraires, et surtout <strong>dans</strong>la “spontanéité” 30 <strong>de</strong> l’émergence <strong>de</strong> celle qui fait l’objet <strong>de</strong> notre étu<strong>de</strong>. AlainNadaud l’a bien saisi :L’écrivain d’aujourd’hui est <strong>do</strong>nc pris <strong>dans</strong> une sorte d’ambiguïté et <strong>de</strong>contradiction là encore, entre d’une part cette naïveté indispensable autravail créateur et, <strong>de</strong> l’autre, tout ce qu’il sait par-<strong>de</strong>rrière lui, qui a puêtre assimilé, mais il n’en continue pas moins à exercer une vigilance,comme un surmoi, avec tous les effets <strong>de</strong> censure que l’on peut soupçonner 31 .Le fait même que ces questions se posent avec cette acuité rend compte<strong>de</strong> la performance d’un “surmoi” et d’“effets <strong>de</strong> censure” <strong>de</strong> la part <strong>de</strong> la pério<strong>de</strong>antérieure. Pour Alain Nadaud, l’écriture française contemporaine ne saurait fairel’économie <strong>de</strong>s apports théoriques précé<strong>de</strong>nts. Elle n’est pas dupe. Le soupçonl’imprègne. Le travail scriptural et le maniement du langage <strong>de</strong>meurent la tâchepremière <strong>de</strong> l’écrivain ; ce que Nadaud qualifie <strong>de</strong> “pulsion d’écriture” 32 . Unedémarche qui entend faire filtrer la référence et le mon<strong>de</strong> par le langage : “Mais lemon<strong>de</strong> extérieur est déjà tout entier contenu <strong>dans</strong> le langage. Et, à ce titre, lelangage est <strong>do</strong>nc un objet” 33 .Même problème du côté du sujet et du personnage où, à nouveau, il s’agitd’intégrer, <strong>dans</strong> une logique <strong>de</strong> contiguïté, “la psychologie […] à la texture même<strong>de</strong> la narration” 34 . Autrement dit, pour Nadaud, s’il y a “mitoyenneté” entre les<strong>de</strong>ux pério<strong>de</strong>s, elle passe nécessairement par un subtil transfert <strong>de</strong>s présupposésthéoriques <strong>de</strong>s années soixante et soixante-dixvers l’écriture, dite contemporaine<strong>de</strong>puis les années quatre-vingt <strong>dans</strong> le <strong>do</strong>maine, - encore ouvert (1987/88) -,“unesorte <strong>de</strong> no man’s land littéraire”<strong>de</strong> la fiction aux dires <strong>de</strong> Nadaud 35: “Pluspersonne sur le plan <strong>de</strong> la théorie ne sait très bien où il en est, et c’est à travers30N u m é ro spé c i al “ Où e n e st l a l i t t é rat u re ?” , L’ I nf i ni, n º 2 3, au t om ne 19 88, p. 9 3.31 I bid ., p. 92.32 I bid ., p. 97.33 I bid ., p. 98.34 I bid ., p. 10 1.35 I bid ., p. 10 0.173 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -<strong>de</strong>s œuvres 179 <strong>de</strong> fiction qu’en sous-main se perpétue la question” 36 . La contiguïtén’évacue aucunement la complexité. Bien au contraire, elle surajoute uneinterrogation plus subtile.Pour Danièle Sallenave, - qui, au moment <strong>de</strong> ce débat, opère une volte-face <strong>dans</strong> son écriture -, il s’agit <strong>de</strong> déclarer haut et fort la péremption <strong>de</strong>s notionshéritées <strong>de</strong>s années antérieures : à savoir le primat du texte et du langage, lesurinvestissement <strong>de</strong> la théorie littéraire, l’intransitivité, “l’hypostase <strong>de</strong>l’écriture” 37 , le refus du sujet et du récit, ainsi que le dépassement <strong>de</strong> la définitionsartrienne <strong>de</strong> l’écriture. Dès lors, Sallenave s’engage <strong>dans</strong> une rupture radicale quiressemble à une reconversion, à une rétractation. Pour s’en convaincre, il suffirait<strong>de</strong> rappeler quelques uns <strong>de</strong> ses arguments. D’abord, Danièle Sallenave ne croitplus au pouvoir ou <strong>de</strong>voir <strong>de</strong> <strong>de</strong>struction infinie <strong>de</strong>s rapports <strong>de</strong> représentation et<strong>de</strong> suspension <strong>de</strong> la référence 38 . De même, elle renoue avec une psychologienettement volontariste du personnage comme “mouvement <strong>de</strong> construction etexploration <strong>de</strong> soi et du mon<strong>de</strong>” 39 . De ce débat, - marquant pour l’époque -, ilrésulte que la mo<strong>de</strong>rnité ne s’éteint pas sans perpétuer ses questions, sansimposer ses soupçons, sans s’épanouir subtilement <strong>dans</strong> la pluralité et lacomplexité <strong>de</strong>s écritures actuelles.En 1988, Esprit s’indigne : “une rentrée sans écrivain”, entérinant par làl’idée reçue <strong>de</strong>puis quelques années d’un vi<strong>de</strong> irrémédiable 40 survenu après lagénération telquellienne. Ayant parcouru trois romans, <strong>do</strong>nt un <strong>de</strong>s nouveauxécrivains <strong>de</strong> Minuit, Françoise Gaillard a le sentiment “d’une époque quivisiblement est encore en quête <strong>de</strong> sa littérature” 41 . Sous prétexte d’uncommentaire du roman <strong>de</strong> Patrick Deville, Françoise Gaillard finit par avouer unvéritable désarroi critique et une incapacité à placer ce texte à la suite <strong>de</strong> ce à quoiMinuit nous habitués. À nouveau, ce sont les interrogations qui reflètent le mieux36 I bi<strong>de</strong> m .37 I bid ., p. 96.38 I bid ., p. 98.39 I bid ., p. 95.40Cf . S ALG AS , Je a n - P ie r re – “ S u r d e u x phot os d e g rou pe ”, p. 24 .41G AI LLAR D , F ranç oi se – “ Cou ps d e sond e . Une re nt ré e s ans é c r iv ain s” ,E s prit , nº 144, no ve m bre 1988, p. 117.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012174


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179la problématique du contiguet, dès lors, du contemporain <strong>dans</strong> la littératurefrançaise. Toute la question est <strong>de</strong> savoir où s’achève une époque et oùcommence une autre, si tant est que cette démarcation est possible.S’agissant <strong>de</strong>strès prestigieuses et connotées Éditions <strong>de</strong> Minuit, Françoise Gaillard affirmed’entrée <strong>de</strong> jeu l’impossibilité <strong>de</strong> faire l’économie <strong>de</strong> l’héritage <strong>de</strong>s annéessoixante et soixante-dix. Aussi l’étonnante sobriété du roman <strong>de</strong> Patrick Deville 42est-elle immédiatement référée au nouveau roman : “(…) aux Éditions <strong>de</strong> Minuiton est toujours, peu ou prou, les héritiers du nouveau roman, on fait <strong>dans</strong> lesobre” 43 . Le retour, très particulier il est vrai, du tout nouveau roman minuitard àune certaine pratique du récit 44 pose alors problème.La critique se sent déconcertée et balbutie. Il est clair que c’est l’écriturequi met la critique à dure épreuve et non plus le contraire : “Elle sent lacontrainte, elle sent la vieille recette déguisée en nouvelle cuisine. L’époque est aurécit ? On fait du récit, mais du récit sans histoire (…)” 45. Et Françoise Gaillard <strong>de</strong>conclure, catégorique, à une “littérature du peu” 46 , anticipant, sans le savoir, surce que la critique accueillera comme étant du “minimalisme”, mais le rattachantmalgré tout à “une certaine mo<strong>de</strong>rnité” 47 épanouie 48 et affranchie <strong>de</strong> la théorie. Laconclusion interrogative <strong>de</strong> ces “repères” rend compte à elle seule <strong>de</strong>s mutationsen cours <strong>dans</strong> la littérature française sous forme <strong>de</strong> suppositions: “On pourraitsupposer qu’après tant d’années <strong>de</strong> <strong>do</strong>mination <strong>de</strong>s sciences humaines, le vent atourné (…). Ce serait le signe soit que la pensée est en pleine déroute, soit que lalittérature a retrouvé son aura” 49 .42 I bid. , p. 11 8 s.43I bi<strong>de</strong> m .44 Cf . S C HOOTS , F ie ke – “ P as s e r e n <strong>do</strong> u ce à l a <strong>do</strong> u an e ” . L ’ é crit u r e m in im al is t e <strong>de</strong>Min u it , Am st e rd am / At lant a, R od opi, 19 97, p p. 1 0 - 1 3.45 G AI LLAR D , F ranç oi se – “ C ou ps d e sond e . Une re nt ré e s an s é c ri va ins ” , p.11 9.46 I bid e m .47 I bi<strong>de</strong> m .48BAE TE N S , J an – “ L it t é rat u re e x pé rim e nt a le : le s anné e s 8 0 ” , L a l itté ratu ref ran çais e co n t e m po rain e . Q u e s t io n s e t pe rs pe ct iv e s , re c u e il d ’ é t u d e s pu blié pa r F ran k Bae rt e tD om iniq u e V iart , L ou va in, P re s se s Uni ve r sit a ire s d e Lou vai n, 1 99 3, p. 15 0.49 G AI LLAR D , F ranç oi se – “ C ou ps d e sond e . Une re nt ré e s an s é c ri va ins ” , p.12 2.175 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -En 1791989, le nº 54 <strong>de</strong> la revue Le Débat 50 pose <strong>dans</strong> son éditorial quatrequestions précises à la littérature, qui sont autant <strong>de</strong> caractéristiques <strong>de</strong> l’écriturequi commence à se lire <strong>dans</strong> les années quatre-vingt : la survivance <strong>de</strong> la tradition<strong>dans</strong> la culture contemporaine (autant dire le retour aux instances <strong>de</strong> l’écritured’avant la mo<strong>de</strong>rnité) ; la dimension du retour en force du sujet(autobiographique, voire autofictionnel), surtout malgré le travail <strong>de</strong>s avant-gar<strong>de</strong>s ; l’immixtion <strong>de</strong> l’histoire <strong>dans</strong> la fiction et, dès lors, un retour du récit etl’élargissement du cadre représentatif. Finalement, l’état <strong>de</strong>s lieux <strong>de</strong> la poésie ausein <strong>de</strong> la littérature contemporaine.De ces interrogations, il ressort qu’ellescorrespon<strong>de</strong>nt déjà à un constat et surtout qu’elles contiennent implicitementleur réponse. La littérature contemporaine espère une synthèse dialectiqueintégrant la tradition au sein <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnité, la subjectivité malgré ou par-<strong>de</strong>là lesoupçon ; le récit malgré et par-<strong>de</strong>là le texte. À nouveau, la critique s’aperçoit queses grilles <strong>de</strong> lectures, - si elles sont encore valables -, <strong>do</strong>ivent être élargies ouréévaluées. Elle se rend compte du tournant où elle se trouve.Dans le même sens, mais plutôt en commentaire au tout nouveau romanminuitard, - <strong>do</strong>nt on est tenté <strong>de</strong> croire, à tort, qu’il incarne la totalité <strong>de</strong> lanouveauté romanesque ou <strong>de</strong> la contemporanéité littéraire -, Jacques-PierreAmette se fait l’écho, <strong>dans</strong> Le Point <strong>de</strong>s mutations en cours. Il s’agit d’une critiquecurieuse et expectative <strong>de</strong>vant <strong>de</strong>s textes d’une nouvelle génération d’écrivainsissus <strong>de</strong>s Éditions <strong>de</strong> Minuit et qui fait bouger le paysage littéraire français 51 .Amette n’hésite pas à nommer cette génération <strong>de</strong> “postmo<strong>de</strong>rne” 52 . En fontpartie <strong>de</strong>s écrivains tels que le Belge Jean-Philippe Toussaint, les Français JeanEchenoz, Bertrand Visage ou encore Patrick Deville 53 <strong>do</strong>nt l’écriture suggère, iciaussi, la synthèse, l’intégration, voire le recyclage <strong>de</strong> la tradition et <strong>de</strong> lamo<strong>de</strong>rnité : ”(…) l’écriture blanche durassienne n’est jamais loin ; ni Lacan, ni les50 C f . s/ n - “ Q u e st ions à la l it t é r at u re ” , Le D é bat , nº 54, 1 98 9.51 C f . AME TTE , Jac que s - P ie rre – “ Le nou ve au ‘ n ou ve au rom an ’ ” , L e Po in t , 16jan vie r 1 98 9.52 I bi<strong>de</strong> m .53 E n f ait , Jac q u e s - P ie r re Am e t t e f ait allu s ion, pa r m é g ard e , à P at ric k D e v re tq u i ne pe u t ê t re , vu le c ont e x t e , q u e P hilippe D e vi lle . V oir au s si su r c e poi ntS C H OOTS , F ie ke – “ P as se r e n d ou c e à l a d ou ane ” . L ’ é cr it u re m in im al is t e <strong>de</strong> M in u it , p.19 not e 26.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012176


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179linguistes associés, ni les cours <strong>de</strong> facs structuralistes. Mais ces écrivains onttransformé cette culture universitaire grâce à un humour a<strong>do</strong>lescent, uneimpertinence intellectuelle que n’avaient ni les Roland Barthes ni les Robbe-Grillet” 54 .Ce qui à nouveau s’avère pertinent et consensuel vers la fin <strong>de</strong>s annéesquatre-vingt, c’est cette perception qu’une page est tournée après le nouveauroman et la génération telquellienne et théorique. Cette évolution <strong>dans</strong> l’écriture et<strong>dans</strong> les habitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lecture 55 ne correspond toutefois pas à un retour pur etsimple à l’académisme ; encore moins à un congédiement <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnité. Lacontiguïté que l’on entrevoit à ce sta<strong>de</strong> repose sur l’évaluation subtile, ludique,citationnelle et surtout dialectique <strong>de</strong> l’héritage mo<strong>de</strong>rne. De ce point <strong>de</strong> vue, unecertaine mo<strong>de</strong>rnité est perpétuée et s’épanouit <strong>dans</strong> la pluralité <strong>de</strong>s écriturescontemporaines, tant c’est toujours par ses notions, ses ruptures que le travaild’écriture se pose(ra).À ce propos, il faut faire une brève allusion à l’éditorial <strong>de</strong> Txt 56 , revue<strong>de</strong>meurée fidèle au travail textuel et théorique <strong>de</strong>s années soixante-dix et qui, en1991, entérine, - ne serait-ce qu’à rebours <strong>de</strong> l’ensemble <strong>de</strong>s apports critiquescités plus haut -, l’irrémédiable mutation du paysage littéraire. Txt, <strong>dans</strong> sonéditorial sarcastiquement intitulé “voilà les textes”, déplore que l’heure ne soitplus au travail <strong>de</strong> la forme et à l’intransitivité du texte ; ce qui place cette revue<strong>dans</strong> le rôle d’une sorte <strong>de</strong> résistance intellectuelle, <strong>de</strong> réserve morale <strong>de</strong> lamo<strong>de</strong>rnité littéraire : “Pourtant, nous ne sommes pas <strong>de</strong> ceux qui pensent quec’en est fini <strong>de</strong> ‘l’expérimentation’ et <strong>de</strong> l’exigence du ‘nouveau’. Nous nesommes pas prêts à renoncer à l’urgence impensée du ‘mo<strong>de</strong>rne’ (…)” 57 .54 AM E TTE , J ac que s - P ie rre – “ Le nou ve au ‘ nou ve au rom a n’ ” , Le Po in t , 16jan vie r 1 98 9.55 On a q u e lq u e pe u né g l ig é le rôle d u le c t e u r d an s la m u t at i on e n c ou r s d uc ham p l it t é rai re .56 C f . s/ n - “ Voilà le s t e x t e s” , Tx t , nº 26/ 27, pr int e m ps 1 99 1. N ou s n’ avon s pa sc it é l’ é d it or ia l “ G é né rat io n 8 9 ” d e L ’ Inf ini , nº 2 6, é t é 1 9 89, vu s on c arac t è re pe u“ t hé oriq u e ” e t c rit iq u e . E n f a it , c e q u i e st ju st e m e nt f ra ppa nt d ans c e t é d it or ia l, - oùd e s é c r iva in s c ont e m por ain s so nt pr ié s d e c it e r d e s au t e u rs d e ré f é re n c e - , c ’ e st quele s m aît re s à pe nse r d e la g é né rat i on d u N ou ve au R om a n e t d e Te l Q u e l ont é t éou blié s. T rou d e m é m oire ou re lè ve d é f in it ive ?57 “ Voi là le s t e x t e s” , Tx t , nº 2 6/ 2 7, pr int e m ps 1 99 1 ( l’ é dit or ia l) .177 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 -Le 179 ton “pamphlétaire” semble d’un autre âge et signale un refus <strong>de</strong> toutinfléchissement <strong>dans</strong> la dynamique mo<strong>de</strong>rne : “Nous savons au contraire que lalittérature, aujourd’hui comme toujours, affronte l’impossible, l’inadéquation <strong>de</strong> lalangue et <strong>de</strong> la pensée aux choses, aux corps et aux expériences que nous faisonsintimement du réel” 58. Mais force est <strong>de</strong> constater que cette écriture a bel et bienévolué, qu’on le veuille ou non : “Nous nous inquiétons <strong>do</strong>nc <strong>de</strong> ce qu’il en estdu travail <strong>de</strong> la langue <strong>dans</strong> la littérature <strong>de</strong> notre temps” 59 .Tâche difficile que celle que se propose Txt : constituer “une mini-anthologie” <strong>de</strong> ce travail langagier d’aujourd’hui. Le défi s’apparente plutôt à unedénonciation <strong>de</strong> l’aridité <strong>de</strong> l’écriture actuelle avec preuves à l’appui. D’ailleurs,l’avertissement en guise <strong>de</strong> concession <strong>de</strong> l’éditorial suggère un divorceinéluctable entre le discours (encore) tenu par Txt et le corpus concret qu’elleentend interroger sous prétexte sournois d’un hypothétique “travail <strong>de</strong> lalangue” : “Le travail <strong>de</strong> langue <strong>do</strong>nt ces textes témoignent n’est pas forcément <strong>de</strong>l’ordre <strong>de</strong> ce que nous (…) enten<strong>do</strong>ns généralement par ce terme” 60 . Ilsemblerait que les revues se soient définitivement rendu compte du tournantopéré par <strong>de</strong>s romanciers <strong>do</strong>nt les soucis esthétiques et narratifs sont autres, maisqui <strong>de</strong>vaient, eux aussi et à leur tour, connaître la reconnaissance et susciter unnouvel intérêt critique.Referências bibliográficasAMETTE, Jacques-Pierre (1989). “Le nouveau ‘nouveau roman’” in LePoint, 16 janvier, pp. 8-10.BADIR, Sémir (1993). “Vers la postmo<strong>de</strong>rnité. Retour à Bau<strong>de</strong>laire ?” inÉcritures, nº 5, “Le dépli. Littérature et postmo<strong>de</strong>rnité”, pp. 8-21.58 I bi<strong>de</strong> m .59 I bi<strong>de</strong> m .60I bid e m .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012178


Almeida, José <strong>Dom</strong>ingues <strong>de</strong> – Le moment venu ou l’eveil dês editoriaux. Mutations <strong>de</strong>lalittèrature française dês années quatre-vingt vues par les revues littèraires 167 - 179BAETENS, Jan (1993). “Littérature expérimentale : les années 80”, in Lalittérature française contemporaine. Questions et perspectives. Recueil d’étu<strong>de</strong>s publié parFrank Baert et <strong>Dom</strong>inique Viart, Louvain: Presses Universitaires <strong>de</strong> Louvain, pp.141-152.S/N. (1991). “Voilà les textes” inTxt, nº 26/27, pp. 1-108.DEMOULIN, Laurent (1997). “Génération innommable”, in Textyles,“Lettres du jour (II)”, nº 14, pp. 7-17.GAILLARD, Françoise (1988). “Coups <strong>de</strong> son<strong>de</strong>. Une rentrée sansécrivains” in Esprit, nº 144, pp. 117-123.NADAUD, Alain (1987). “Où en est la littérature ? Ou pour un nouvelimaginaire” in L’Infini, nº 19, p. 6.PREVOST, Clau<strong>de</strong> (1987). “Une nouvelle mo<strong>de</strong>rnité romanesque ?”inLaPensée, nº 258, juillet-août, pp. 63-68.SALGAS, Jean-Pierre (1989). “Sur <strong>de</strong>ux photos <strong>de</strong> groupe” in LaQuinzaine littéraire, nº 532, 16-31 mai, pp. 16-31.SCHOOTS, Fieke (1997).“Passer en <strong>do</strong>uce à la <strong>do</strong>uane”. L’écriture minimaliste <strong>de</strong>Minuit, Amsterdam/Atlanta: Ro<strong>do</strong>pi.VIART, <strong>Dom</strong>inique (1993). “Questions à la littérature”,La littératurefrançaise contemporaine. Questions et perspectives. Recueil d’étu<strong>de</strong>s publié par FrankBaert et <strong>Dom</strong>inique Viart, Louvain: Presses Universitaires <strong>de</strong> Louvain, pp. 11-34.S/N(1976). “Le moment venu” inDigraphe, nº 5, pp. 5-9.179 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


MIGRACIÓN, PRÁCTICAS ARTÍSTICAS Y ARTIVISMOSLaia Manonelles MonerUniversidad <strong>de</strong> BarcelonaEspanhalaiamanonelles@ub.eduResumenUna <strong>de</strong> las potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l arte es <strong>de</strong>venir una herramienta paraenfocar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s conflictos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nuevos ángulos y articular preguntas queimpacten en la comunidad. Aquí el arte se fun<strong>de</strong> con la filosofía, la sociología, laantropología, con el activismo, y con la propia vida. A partir <strong>de</strong> tales parámetros,se esbozarán diversas propuestas artísticas que ilustran cómo distintos crea<strong>do</strong>resabordan –<strong>de</strong>s<strong>de</strong> distintos ángulos– el fenómeno <strong>de</strong> la migraciónDentro <strong>de</strong> la amplia miríada <strong>de</strong> perspectivas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> las que se pue<strong>de</strong> tratarla migración es interesante resaltar el trabajo <strong>de</strong> varios artistas que se transformanen altavoces <strong>de</strong> las experiencias <strong>de</strong> otras personas, tal y como ejemplifican losproyectos <strong>de</strong> Pep Dardanyà, Marisa González, He Chengyue y Josep MaríaMartín. Des<strong>de</strong> un ángulo radicalmente distinto, Santiago Sierra y el colectivo Yeslab reproducen y llevan al límite las mismas dinámicas <strong>de</strong> explotación que critican,y para finalizar, bajo el prisma <strong>de</strong> la experiencia vivida, la artista Fiona Tanexplora su propio proceso migratorio e investiga la construcción <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad.AbstractOne of the potentials of art is to become a tool to focus on certainconflicts from new angles and articulate questions that cause an impact on thecommunity. In that context art merges with philosophy, sociology, anthropology,activism, and life itself. Within these parameters several artistic experiences will


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197be outlined to illustrate how different artists approach -from different angles- thephenomenon of migration.Among the wi<strong>de</strong> myriad of perspectives from which migration can betreated it is interesting to point out the work of several artists who becomespeakers of the experiences of others, as exemplified by Pep Dardanyà, MarisaGonzalez, He Chengyue and Josep Maria Martin. From a radically differentangle, Santiago Sierra and the group Yes lab reproduce the same dynamics ofexploitation criticized by them and push their limits, and finally, through theprism of the experience, the artist Fiona Tan explores her own migration processand investigates the construction of i<strong>de</strong>ntity.Palabras clave: Arte contemporáneo, arte <strong>de</strong> acción, arte público, artivismo,migración, diáspora.Keywords: Contemporary art, performance art, public art, artivism, migration,diasporaUna <strong>de</strong> las potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l arte es <strong>de</strong>venir una herramienta paraenfocar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s conflictos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nuevos ángulos y articular preguntas queimpacten en la comunidad. Se trata <strong>de</strong> cuestionar, <strong>de</strong> repensar ciertasproblemáticas, <strong>de</strong> visibilizar las fisuras que los sistemas hegemónicos ocultan,minimizan, tamizan. Aquí el arte se fun<strong>de</strong> con la filosofía, la sociología, laantropología, con el activismo, y con la propia vida. A partir <strong>de</strong> tales parámetros,se esbozarán diversas propuestas artísticas que ilustran cómo distintos crea<strong>do</strong>resabordan –<strong>de</strong>s<strong>de</strong> distintos ángulos– el fenómeno <strong>de</strong> la migración, la recepción <strong>de</strong>ésta en las socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “acogida” y las nuevas formas <strong>de</strong> neocolonialismo en lasociedad actual.Dentro <strong>de</strong> la amplia miríada <strong>de</strong> perspectivas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> las que se pue<strong>de</strong> tratarla migración es interesante resaltar el trabajo <strong>de</strong> varios artistas que se transformanen altavoces <strong>de</strong> las experiencias <strong>de</strong> otras personas, tal y como ejemplifican losproyectos <strong>de</strong> Pep Dardanyà, Marisa González, He Chengyue y Josep MaríaPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012182


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Martín. Des<strong>de</strong> un ángulo radicalmente distinto, Santiago Sierra reproduce y llevaal límite, en unas acciones tan polémicas como controvertidas, las mismasdinámicas <strong>de</strong> explotación que critica. Seguidamente, en el marco <strong>de</strong> una línea <strong>de</strong>trabajo marcadamente política, se bosquejará la iniciativa Patriots for the self-<strong>de</strong>portation que fun<strong>de</strong> el arte con el activismo, y para finalizar, bajo el prisma <strong>de</strong> laexperiencia vivida, la artista Fiona Tan explora su propio proceso migratorio einvestiga la construcción <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad.Si empezamos a hilvanar las iniciativas <strong>de</strong> ciertos artistas que a<strong>do</strong>ptan elrol <strong>de</strong> media<strong>do</strong>res, entre las personas que han vivi<strong>do</strong> un proceso migratorio y lacomunidad, vemos claramente que su objetivo principal es crear puentes <strong>de</strong>enlace, generar un diálogo que ayu<strong>de</strong> a trascen<strong>de</strong>r la <strong>de</strong>sconfianza, el mie<strong>do</strong> al“otro”, <strong>de</strong>sarticulan<strong>do</strong> los prejuicios y los estereotipos que se generan <strong>de</strong>s<strong>de</strong> losmedios <strong>de</strong> comunicación y <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s políticos 1 .El artista y antropólogo Pep Dardanyà, en el marco <strong>de</strong> la exhibición Elcorazón <strong>de</strong> las tinieblas 2 , comisariada por Jorge Luis Marzo y Marc Roig en el Palau<strong>de</strong> la Virreina <strong>de</strong> Barcelona, presentó la instalación Módulo <strong>de</strong> atención personalizada(2002) [Fig. 1]. En dicha obra el artista contrató a cuatro inmigrantes que habíanllega<strong>do</strong> a Barcelona para que se convirtieran en “ora<strong>do</strong>res” y explicaran su propiahistoria, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> unos singulares “módulos <strong>de</strong> atención personalizada”instala<strong>do</strong>s en la sala expositiva. De este mo<strong>do</strong>, se generó un espacio <strong>de</strong> diálogo enel que se <strong>de</strong>sarticulaba la figura <strong>de</strong>l intermediario. Es <strong>de</strong>cir, el público podíapreguntar, interactuar, conversar y recibir la información directamente, sin filtros.Asimismo, Dardanyà enfatiza el efecto <strong>de</strong> tales conversaciones en los ora<strong>do</strong>res yaque afianzaron su lastimada autoestima al narrar y compartir las dificulta<strong>de</strong>spropias <strong>de</strong> tal periplo:1 E s im po rt ant e re c ord a r q u e la m ig rac ión e s u no d e los t e m a s q u e oc u pan u nlu g ar e st rat é g ic o e n los p rog ra m as e le c t or ale s d e d ist int os pa rt id os po lít i c os, y a se apara a rt ic u l ar d isc u rso s x e nóf obos o bie n p ara im pu ls ar po lít ic as d e int e g rac ión einic iat i va s t ale s c om o l as plat af orm as “ ant i - ru m ore s ”.2 E l t ít u lo d e la e x po sic ión se insp ir a d ire c t am e nt e e n e l li bro d e Jo se p hC onrad s obre e l c olo ni al ism o e u rope o e n Áf ric a, c onc re t am e nt e e n e l C o ng o, d e l si g l oXI X.183 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Ellos la viven como una experiencia muy traumática, la mayoría noquieren hablar <strong>de</strong> ello. A<strong>de</strong>más, están convenci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> que es unaexperiencia que no interesa a la gente <strong>de</strong> aquí y no la hacen visible. Esteproyecto hace visible esta experiencia, y a medida que ellos la ibanexplican<strong>do</strong> y se daban cuenta <strong>de</strong> que su experiencia vital generaba interésen los visitantes <strong>de</strong> la exposición, su autoestima –respecto a estaexperiencia propia– fue subien<strong>do</strong>, fue in crescen<strong>do</strong>. Eso fue una parteimportante <strong>de</strong>l proyecto para ellos y también para mí, porque le daba mássenti<strong>do</strong> (Manonelles, 2009: 402-403).Pep Dardanyà a<strong>do</strong>pta el rol <strong>de</strong> media<strong>do</strong>r al facilitar un espacio y untiempo en el que se encuentran los inmigrantes llega<strong>do</strong>s a Barcelona, impulsa<strong>do</strong>spor la extrema pobreza, y los visitantes <strong>de</strong> centros artísticos. En este proyectovemos claramente cómo se aglutina el arte y la vida, sien<strong>do</strong> el objetivo finalvisibilizar el colectivo <strong>de</strong> inmigrantes e implicar a la ciudadanía en su proceso <strong>de</strong>integración (Í<strong>de</strong>m: 405).Otra artista que se preocupa por visibilizar las experiencias <strong>de</strong> quienesemigran para mantener a sus familias en su país <strong>de</strong> origen es Marisa González.En su proyecto fotográfico y vi<strong>de</strong>ográfico Filipinas en Hong Kong (2010) [Fig. 2] secentra en analizar el colectivo <strong>de</strong> filipinas que trabajan como internas en elservicio <strong>do</strong>méstico en Hong Kong. Aquí es importante recalcar que hay más <strong>de</strong>150.000 filipinas que están trabajan<strong>do</strong> en dicha capital, recibien<strong>do</strong> un salarioinferior <strong>de</strong>l salario mínimo <strong>de</strong> los emplea<strong>do</strong>s chinos. No obstante, estaremuneración es sustancialmente superior <strong>de</strong> la que podrían ganar –conprofesiones cualificadas– en su país, convirtién<strong>do</strong>se así en el principal puntaleconómico <strong>de</strong> sus familias. No existen leyes <strong>de</strong> agrupación familiar, no haypermiso <strong>de</strong> trabajo para los hombres filipinos y, en tal contexto, el proyecto parte<strong>de</strong> la voluntad <strong>de</strong> capturar la cotidianidad <strong>de</strong> estas mujeres en su único día libre,el <strong>do</strong>mingo. Marisa González retrata cómo, en su día <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso, ocupan elcentro <strong>de</strong> la ciudad, invadien<strong>do</strong> las calles más cosmopolitas, ubicán<strong>do</strong>se en loshalls <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s edificios como el <strong>de</strong>l Banco HSBC <strong>de</strong> Norman Foster. EstosPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012184


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197espacios se transforman en plazas en las que conviven, conversan, comen,duermen, leen, cosen, juegan a las cartas, bailan y elaboran las cajas que enviarána sus familias.En el <strong>do</strong>cumental una voz en off narra cómo un gran número <strong>de</strong>emigradas tiene que aceptar trabajos por <strong>de</strong>bajo <strong>de</strong>l alto nivel profesional,exigién<strong>do</strong>les para ser contratadas el bachillerato superior o bien carrerasuniversitarias. Son reclutadas, principalmente, mediante agencias en Manila que, ala vez, las explotan con altas comisiones. Con to<strong>do</strong>, las personas emigradas<strong>de</strong>vienen la principal fuente <strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> la economía filipina.Una <strong>de</strong> las entrevistadas, que hace 24 años que está trabajan<strong>do</strong> en HongKong, explica cómo con su empleo en el servicio <strong>do</strong>méstico ha podi<strong>do</strong> pagar losestudios <strong>de</strong> medicina <strong>de</strong> su hija, la educación <strong>de</strong> sus cinco hermanos y los gastoshospitalarios <strong>de</strong> su padre gravemente enfermo. Habla <strong>de</strong>l sacrificio, <strong>de</strong> la soleda<strong>de</strong>n la que viven lejos <strong>de</strong> sus familias, <strong>de</strong> sus esposos y <strong>de</strong> sus hijos. Tambiénrevela que, en muchas ocasiones, pa<strong>de</strong>cen un trato discriminatorio y abusivo,recordan<strong>do</strong> que solamente tienen <strong>de</strong>recho a <strong>do</strong>s semanas <strong>de</strong> vacaciones cada <strong>do</strong>saños para ir a Filipinas. A la vez, manifiesta que los días festivos es cuan<strong>do</strong>pue<strong>de</strong>n recuperar una parte <strong>de</strong> sus costumbres y <strong>de</strong> su i<strong>de</strong>ntidad. ¿Cómo?invadien<strong>do</strong> los parques y las calles <strong>de</strong>l distrito financiero en el centro <strong>de</strong> HongKong para reunirse. Construyen casitas <strong>de</strong> cartón para apropiarse <strong>de</strong>l lugar,<strong>de</strong>limitar su territorio, socializarse, compartir, <strong>de</strong>scansar, hacer sus gestionespersonales y realizar las cajas con enseres y regalos que envían periódicamente asus familias.Dentro <strong>de</strong>l marco <strong>de</strong> Photoespaña, en la galería Evelyn Botella <strong>de</strong> Madrid,Marisa González presentó to<strong>do</strong> este material fílmico y fotográfico –compuestopor 40 fotografías, varios ví<strong>de</strong>os y un <strong>do</strong>cumental– en el que se expone ladiáspora <strong>de</strong> las mujeres filipinas. Registra estos encuentros y conversa condiversas mujeres para que le expliquen su experiencia, cómo se han adapta<strong>do</strong> a supaís <strong>de</strong> acogida y cómo construyen –<strong>de</strong>s<strong>de</strong> la distancia– la relación con susfamilias. La artista se <strong>de</strong>splazó a Filipinas para complementar el proyecto ycontactar con los familiares <strong>de</strong> dichas mujeres, entrevistarles y así conocer <strong>de</strong>185 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197primera mano la cotidianidad y los sentimientos <strong>de</strong> quienes se quedan,convivien<strong>do</strong> con la ausencia <strong>de</strong> estas madres, esposas, hermanas e hijas.Otro artista que trabaja en una dirección parecida es He Chongyue quien,en su iniciativa El fin. Una población que envejece: La serie <strong>de</strong> Planificación Familiar [Fig.3], utiliza la fotografía y el ví<strong>de</strong>o para capturar la cotidianidad <strong>de</strong> las familias quese quedan en sus pueblos <strong>de</strong> origen esperan<strong>do</strong> recibir el dinero que les envían losfamiliares que se han <strong>de</strong>splaza<strong>do</strong> a las gran<strong>de</strong>s capitales para trabajar. Des<strong>de</strong> elaño 2007, He Chongyue inició una investigación sobre la planificación familiarimplantada a finales <strong>de</strong> los años setenta y sus consecuencias directas en los bajosíndices <strong>de</strong> natalidad y el envejecimiento <strong>de</strong> la población.He Chongyue entrevistó a campesinos <strong>de</strong> edad avanzada <strong>de</strong> variasprovincias, como Hebei, Shanxi, Sichuan, Yunnan y Guizhou, quienes explicancómo sus hijos se han <strong>de</strong>splaza<strong>do</strong> a las gran<strong>de</strong>s metrópolis –en plenatransformación urbanística– para buscar un mejor trabajo y mantener a sus hijosque se queda en el pueblo <strong>de</strong> origen cuida<strong>do</strong>s y educa<strong>do</strong>s por los abuelos. Elartista ejecutó un profun<strong>do</strong> trabajo <strong>de</strong> campo, que ha contrasta<strong>do</strong> con sociólogosy filósofos, incidien<strong>do</strong> sobre to<strong>do</strong> en los problemas <strong>de</strong>l envejecimiento <strong>de</strong> lapoblación <strong>de</strong> las zonas rurales, sien<strong>do</strong> precisamente tales áreas las que menospresupuesto disponen para aten<strong>de</strong>r las necesida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> dicho teji<strong>do</strong> social.Una vez más, el arte <strong>de</strong>viene un instrumento para <strong>do</strong>cumentar la realidad,tanto Marisa González como He Chongyue inci<strong>de</strong>n en las consecuencias <strong>de</strong> losprocesos migratorios y en el impacto directo <strong>de</strong> su ausencia en el marco familiar.Con las iniciativas esbozadas vemos cómo el arte se <strong>de</strong>tiene en alumbrar laprecariedad laboral y la dureza <strong>de</strong> quien tiene que iniciar una nueva vida fuera <strong>de</strong>su lugar <strong>de</strong> origen. Pues hay que recordar que el objetivo último <strong>de</strong> estaspropuestas es provocar una reacción al especta<strong>do</strong>r, ser un punto <strong>de</strong> partida paragenerar preguntas, reflexiones y <strong>de</strong>bates.Prosiguien<strong>do</strong> el presente itinerario, en el trabajo <strong>de</strong> investigación a partir<strong>de</strong>l fenómeno <strong>de</strong> la migración, es interesante introducir a Josep María Martín.Este artista plantea nuevas estrategias <strong>de</strong> intervención en <strong>de</strong>terminadasPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012186


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197problemáticas sociales a partir <strong>de</strong> iniciativas artísticas multidisciplinares quesubrayan la importancia <strong>de</strong>l proceso, la investigación, el diálogo y la participaciónactiva <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s los agentes implica<strong>do</strong>s. Son proyectos comunitarios y el trabajocolectivo es la vía para transformar la realidad.En la propuesta Un prototipo para la buena emigración. Centro <strong>de</strong> formación einformación juvenil sobre la frontera, realizada en Casa Ymca Tijuana (México),<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l proyecto expositivo InSite_05, en 2005, reflexiona sobre lamigración <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el sur al norte y sus riesgos, centrán<strong>do</strong>se en el flujo migratorioentre Tijuana y San Diego. Para ello diseñó y fabricó un Prototipo <strong>de</strong>l Centro <strong>de</strong>Información y Formación Juvenil Sobre la Frontera para ampliar el Centro <strong>de</strong>Acogida para jóvenes <strong>de</strong>porta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> los Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s a México.Dentro <strong>de</strong> las activida<strong>de</strong>s programadas en dicho centro se crearon 14juegos, conjuntamente con los alumnos <strong>de</strong>l máster <strong>de</strong> Diseño Gráfico Aplica<strong>do</strong> ala Comunicación <strong>de</strong> Elisava (Universidad Pompeu Fabra <strong>de</strong> Barcelona), paraarticular la información <strong>de</strong> las consecuencias <strong>de</strong> pasar la frontera. Josep MaríaMartín propone un espacio y herramientas para hablar <strong>de</strong> la <strong>de</strong>sorientación, lamarginalidad, la exclusión y el aban<strong>do</strong>no que tienen que encarar los jóvenes<strong>de</strong>porta<strong>do</strong>s, pues hay que recalcar que un 30% <strong>de</strong> las personas que inician talperiplo son menores.Este prototipo pretendía convertirse en un espacio para forjar un diálogoy un <strong>de</strong>bate con los jóvenes <strong>de</strong> acogida, conjuntamente con los especialistas quetrabajan en tales centros. Con to<strong>do</strong>, hay que mencionar que el proyecto fuecensura<strong>do</strong> y la organización <strong>de</strong>cidió retirarlo porque “suponía el riesgo <strong>de</strong> incitara la migración ilegal”. Vemos aquí como el juego <strong>de</strong> intereses, los malentendi<strong>do</strong>s,y el anhelo <strong>de</strong> controlar los canales <strong>de</strong> información priman.En otro <strong>de</strong> sus proyectos, Una casa digestiva para Lavapiés, <strong>de</strong>sarrolla<strong>do</strong>en el contexto <strong>de</strong> la convocatoria <strong>de</strong> intervención artística en el espacio públicoUrban Buddy Scheme, comisariada por Cecilia An<strong>de</strong>rsson en Madrid abierto(2009-2010), el artista parte <strong>de</strong> la <strong>de</strong>terminación <strong>de</strong> visibilizar la realidad <strong>de</strong> unpiso patera en Madrid, resaltan<strong>do</strong> las analogías entre el sistema digestivo y un187 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197hogar <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se tejen y procesan las experiencias individuales y colectivas. Al igualque Marisa González y He Chengyue, recurre a las entrevistas para bosquejar larealidad <strong>de</strong> quien habita en un “piso patera”. Contactó con Mouhama<strong>do</strong>u BambaDiop, un senegalés que vive junto con otros 16 compatriotas sin papeles y unespañol en el barrio madrileño <strong>de</strong> Lavapiés, y empezó un diálogo a partir <strong>de</strong>l cualambos construyeron un <strong>do</strong>cumental y viajaron a Senegal para <strong>de</strong>sarrollar unproyecto socio-económico en Kayar, su pueblo natal, y para <strong>de</strong>construir el mito<strong>de</strong> una vida fácil y próspera en Europa.En el ví<strong>de</strong>o, <strong>de</strong> cuarenta minutos, Mouhama<strong>do</strong>u Bamba Diop explica sullegada en cayuco a las islas Canarias, su cotidianidad en España, la dureza <strong>de</strong> laprecariedad laboral, la realidad <strong>de</strong> los “pisos patera” y el recuer<strong>do</strong> <strong>de</strong> su esposa,sus hijos y la familia que se quedaron en África. Cito, a continuación, unfragmento <strong>de</strong>l manifiesto que Mouhama<strong>do</strong>u Bamba Diop y sus compañerosrealizaron:Des<strong>de</strong> nuestro 'piso patera'Somos un grupo <strong>de</strong> senegaleses que llegamos a España en cayuco, soñan<strong>do</strong>que en Europa podríamos <strong>de</strong>sarrollarnos como personas y ayudar a nuestrasfamilias y a nuestra Comunidad. Llegamos a Madrid <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> un viajesuicida. Hoy vivimos diecisiete senegaleses en un pequeño espacio <strong>de</strong>Lavapiés. Reivindicamos ser, tener, hacer, estar, subsistir, ser ampara<strong>do</strong>s,sentir, pertenecer...en libertad. Ser y ser reconoci<strong>do</strong>s como personas cultivadas,formadas en el profun<strong>do</strong> respeto hacia los <strong>de</strong>más. Ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>sciudadanos <strong>de</strong> pleno <strong>de</strong>recho, aquí, allí y en cualquier parte. Ser y serreconoci<strong>do</strong>s como personas espirituales que creemos en Dios y su profeta,siempre <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el profun<strong>do</strong> respeto hacia otras creencias o <strong>de</strong>screí<strong>do</strong>s. Tener unhogar digno gracias a nuestro trabajo y esfuerzo para po<strong>de</strong>r crear una familiay <strong>de</strong>jar un lega<strong>do</strong> material a nuestros <strong>de</strong>scendientes, que lesayu<strong>de</strong> a progresar. Hacer una labor digna que nos permita sentirnos plenos yrealiza<strong>do</strong>s. Trabajar con los valores sociales que asumimos y respetamos y elcumplimiento <strong>de</strong> la ley. Hacernos oír para ser teni<strong>do</strong>s en cuenta en laPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012188


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197formulación <strong>de</strong> las leyes y presionar para cambiar aquellas normas que noshacen invisibles al resto <strong>de</strong> la sociedad. Estar y ocupar un lugar en estasociedad, asumien<strong>do</strong> los valores culturales importantes y necesarios para laconvivencia pero conservan<strong>do</strong> nuestra i<strong>de</strong>ntidad e invitan<strong>do</strong> a cuantos nosro<strong>de</strong>an a que conozcan nuestras costumbres y nuestra cultura, toman<strong>do</strong>igualmente lo que consi<strong>de</strong>ren valioso.Subsistir como senegaleses en un mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> blancos mantenien<strong>do</strong> la fe y laesperanza, sabién<strong>do</strong>nos con el alma en nuestra Tierra con nuestras familias,como la tienen to<strong>do</strong>s los que tienen que partir y aban<strong>do</strong>nar a los suyos enbusca <strong>de</strong> una oportunidad.Ser ampara<strong>do</strong>s y protegi<strong>do</strong>s en nuestro <strong>de</strong>recho a un futuro mejor sin poner enpeligro nuestras vidas. Ser protegi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> los oportunistas, las mafias y losmandamases que no hacen lo necesario para evitar la muerte <strong>de</strong> personas quebuscan una vida mejor.Sentir y sentirnos ama<strong>do</strong>s y respeta<strong>do</strong>s. Sentirnos visibles y escucha<strong>do</strong>s.Sentir el sentir <strong>de</strong> los <strong>de</strong>más como algo nuestro y sentirnos toma<strong>do</strong>s en cuenta.Sentir nuestras inquietu<strong>de</strong>s y nuestras palabras escuchadas. Sentir frío, calor,amor, enfa<strong>do</strong>, indignación, admiración...Ababacar Gningue, Aliou Badara Diouf, Assane Kebe, Bassirou Thioune,Daouda Kebe, Djibril Diop, Djibril Ndiaye, Ibrahima Gueye, IbrahimaToure Niang, Ma<strong>de</strong>guene Gueye, Mo<strong>do</strong>u Diouf, Mo<strong>do</strong>u Sall Ndiaye,Mouhama<strong>do</strong>u Bamba Diop, Mouhama<strong>do</strong>u Lamine Diatta, Moury Con<strong>de</strong> 3Des<strong>de</strong> una perspectiva absolutamente distinta a las iniciativas previamenteintroducidas pero partien<strong>do</strong> <strong>de</strong> la misma realidad, Santiago Sierra plantea susintervenciones artísticas. Dicho autor cuestiona <strong>de</strong> manera frontal la precarieda<strong>de</strong>n la que viven muchos ciudadanos, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> cómo el sistema capitalistautiliza las personas como mercancías aprovechán<strong>do</strong>se <strong>de</strong> su vulnerabilidad.Dentro <strong>de</strong> tales parámetros, en varias <strong>de</strong> sus obras producidas para museos, ferias3 Vé ase e l t e x t o c om ple t o e n: ht t p: / /m ad rid abie rt o. c om / e s/ int e rv e nc i one s -art i st ic a s / 20 09/ j ose p - m ar ia - m a rt in. ht m l189 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197y bienales <strong>de</strong> arte, reproduce y lleva al límite las mismas estrategias <strong>de</strong> explotaciónlaboral que pa<strong>de</strong>cen los más <strong>de</strong>sfavoreci<strong>do</strong>s: inmigrantes, vagabun<strong>do</strong>s, prostitutasy to<strong>do</strong> aquel que vive en la pobreza.Ejemplos <strong>de</strong> ello los encontramos en varias <strong>de</strong> sus acciones. EnConcentración <strong>de</strong> trabaja<strong>do</strong>res in<strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>s (1999) realizada en la feria FIARC, enParís en el stand <strong>de</strong> la galería BF-15, con la ayuda <strong>de</strong>l colectivo Sans papiers – quelucha para la legalización <strong>de</strong> los trabaja<strong>do</strong>res–, propuso que cien personas <strong>de</strong>lcolectivo <strong>de</strong> in<strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>s se paseara por la feria el día <strong>de</strong> la inauguración,aunque finalmente sólo fueron 12 y sin pancartas por el mie<strong>do</strong> a la <strong>de</strong>portación.En muchas <strong>de</strong> sus propuestas juega un papel esencial la remuneración, aquelloque se acepta por pura necesidad. Esta i<strong>de</strong>a queda recogida en distintaspropuestas en las que contrata a varias personas para tatuarles una línea en laespalda (Cuba, 1999 y España, 2000), o bien cuan<strong>do</strong> ofrece una retribución a diezpersonas para masturbarse frente una cámara <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o (Habana, 2000), parapermanecer tumbadas en el interior <strong>de</strong> una caja durante una fiesta (La Habana,2000), para limpiar el calza<strong>do</strong> <strong>de</strong> los asistentes a una inauguración sin elconsentimiento <strong>de</strong> éstos (México D.F. 2000) o para permanecer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>lmaletero <strong>de</strong> un coche (Limerick, 2000). En la Bienal <strong>de</strong> Venecia pagó a 133personas para teñirlas <strong>de</strong> rubio (2001), en Cádiz retribuyó a inmigrantes africanospara que cavaran sus propias tumbas en una colina (2002) y, en Barcelona,contrató a varios inmigrantes para que permanecieran encerra<strong>do</strong>s en el interior <strong>de</strong>una bo<strong>de</strong>ga <strong>de</strong> un barco <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> las 18.00 a las 21.00 por 4000 pesetas lajornada. Aunque hay que apuntar que esta última acción terminó antes <strong>de</strong> loprevisto 4 .En la misma dirección, en 2008, ejecutó el ví<strong>de</strong>o Los penetra<strong>do</strong>s (45minutos), sien<strong>do</strong> especialmente polémico al ser tilda<strong>do</strong> <strong>de</strong> pornografía. Buscó,4 Ta l y c om o e x p lic a C a rm ina Borb one t ; l a d i re c t or a e je c u t iv a d e l a t r ie n a lB arce l o n a A rt R e po rt : “ Al pare c e r, se c orr ió la v oz e nt re los inm ig rant e s d e q u e allíhabí a u n t ra baj o y hu bo m om e nt os d e t e nsi ón po rq u e h a bía m ás g e n t e d e la q u epod íam os a su m ir. Ad e m ás, a lg u nos d e e llo s no t e nían l os pape le s e n re g l a y e rac om plic ad o c om pr oba r t od os los c a sos. E l ju e ve s v iv im os u na s it u ac i ón u n t a nt ovio le nt a p orq u e d e l os 25 q u e se p re se nt a ron só lo oc ho t e nían e l c o nt rat o y nopod íam os ar rie sg a rno s a d e jar lo s su b ir al barc o. ( … ) S e su m ar o n m u c hos pro ble m a s yd e c id im os su spe nd e r la int e r ve n c ión” ( Bo rbo ne t , 20 01) .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012190


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197mediante anuncios publicitarios, personas que quisieran participar en el proyectoa cambio <strong>de</strong> recibir 250 euros: “Si te interesa, pue<strong>de</strong>s ver trabajos <strong>de</strong>l artista en supágina… Teclea Santiago Sierra en Google. El ví<strong>de</strong>o sólo se proyectará engalerías <strong>de</strong> arte… No es pornografía”.Dicho ví<strong>de</strong>o, que se pu<strong>do</strong> contemplar en la galería <strong>de</strong> arte madrileña Helga<strong>de</strong> Alvear, está compuesto por varios actos en los que se suce<strong>de</strong>n diversasescenas <strong>de</strong> sexo anal entre hombres y mujeres <strong>de</strong> raza negra y blanca. Con estasescenas, <strong>de</strong> forma tan literal como metafórica, Santiago Sierra muestra el mie<strong>do</strong>vincula<strong>do</strong> a la inmigración, al “otro”, no sólo a nivel laboral sino también a supotencialidad sexual.En varias <strong>de</strong> sus acciones recurre a la transgresión y la provocación parasacudir al público, es una forma controvertida <strong>de</strong> hacer política. En una entrevistapublicada en el periódico El País explica:Con respecto a lo humillante observo que tatuarse o masturbarse o estaraisla<strong>do</strong> o rapa<strong>do</strong> no son actos que podamos calificar como humillantes ensí mismos, hay algo que los hace ver así: lo escalofriante es que estos actosse hagan bajo una remuneración. Ahí está la brutalidad. Laremuneración es un sistema que permite la compra <strong>de</strong>l cuerpo y tiempo<strong>de</strong>l trabaja<strong>do</strong>r, busqué una forma efectiva <strong>de</strong> mostrarlo y creo haberacerta<strong>do</strong> (…). El recurso a la cru<strong>de</strong>za formal es por supuesto un efectoretórico que ayuda a una mayor contun<strong>de</strong>ncia y efectividad en el discurso.To<strong>do</strong> arte apela a lo sensible para hacerse enten<strong>de</strong>r, el impacto o ciertaestética <strong>de</strong>l shock resultan <strong>de</strong> gran ayuda (Sierra, 2002).Tales trabajos preten<strong>de</strong>n <strong>de</strong>sarticular la indiferencia y sobrecoger,conmocionar, incomodar, increpar. Es <strong>de</strong>cir, que el abuso, la opresión y lavejación no pasen <strong>de</strong>sapercibidas. Con to<strong>do</strong>, se le critica que reproduzca lasmismas pautas que preten<strong>de</strong> socavar. En concreto, José Manuel Cuesta en unaentrevista le preguntó el motivo por el que ejecuta la misma explotación que<strong>de</strong>sea <strong>de</strong>sactivar, y Santiago Sierra respondió que la función <strong>de</strong>l artista es enfocar191 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197la realidad sin filtros para ayudar a que ésta se comprenda (Cuesta, 2002). Aquíaparece la dualidad entre la subversión y subvención, puesto que el mismosistema que se cuestiona es el que financia las posibles críticas.Esta misma <strong>de</strong>terminación <strong>de</strong> aglutinar el arte con la política es la que llevaa cabo el colectivo alemán A.F.R.I.K.A, quienes fun<strong>de</strong>n el arte con el activismo<strong>de</strong>s<strong>de</strong> su emergencia en los años noventa <strong>de</strong>l pasa<strong>do</strong> siglo. En su libro Manual <strong>de</strong>guerrilla <strong>de</strong> la comunicación. Cómo acabar con el mal explican –parafrasean<strong>do</strong> a RolandBarthes– que “la mejor subversión es la <strong>de</strong> alterar los códigos, en vez <strong>de</strong><strong>de</strong>struirlos”. ¿Cómo luchar contra estos códigos preestableci<strong>do</strong>s? A partir <strong>de</strong>prácticas políticas que ataquen el sistema hegemónico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, con losmismos logotipos y los símbolos <strong>de</strong>l po<strong>de</strong>r pero otorgán<strong>do</strong>les una interpretaciónalternativa. A.F.R.I.K.A Gruppe, en una conferencia en el marco <strong>de</strong> la jornadas“Cómo acabar con el mal” organizadas por Enmedio 5 , subrayó que una <strong>de</strong> las víaspara intervenir en la cotidianidad es a partir <strong>de</strong>l “Detóurnement”, <strong>de</strong> la capacidad <strong>de</strong>tergiversar, <strong>de</strong> distorsionar semióticamente los significa<strong>do</strong>s, modificán<strong>do</strong>los, obien mediante la sobre-i<strong>de</strong>ntificación. Dicho <strong>de</strong> otro mo<strong>do</strong>; se “alteran” loslogotipos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s marcas y carteles publicitarios para provocar un cambioradical <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> (cítese a mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ejemplo la metamorfosis <strong>de</strong> la marcapetrolera Shell a hell).Un ejemplo <strong>de</strong> acción que recurre a la sobre-i<strong>de</strong>ntificación, sobre-interpretan<strong>do</strong> un concepto o i<strong>de</strong>a lleván<strong>do</strong>lo al límite para evi<strong>de</strong>nciar laincoherencia <strong>de</strong> ciertas políticas extremistas, es la propuesta “Patriots for the self-<strong>de</strong>portation” articulada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la plataforma Yes Lab. Dicha iniciativa es un proyecto<strong>de</strong>l Hemispheric Institute of Performance and Politics <strong>de</strong> la New York University, que seinspiró en el grupo <strong>de</strong> artivistas Yes Man para llevar a cabo la campaña “Patriots forthe self-<strong>de</strong>portation”. Precisamente, a partir <strong>de</strong> las i<strong>de</strong>as <strong>de</strong> varios parti<strong>do</strong>sextremamente conserva<strong>do</strong>res, tales como Tea party o el grupo American Patrol,surgió este portal virtual en el que se emplea el mismo lenguaje utiliza<strong>do</strong> porestos grupos –que apoyan unas políticas discriminatorias hacia los inmigrantes–5 Vé ase m á s inf o rm ac ión e n: ht t p: / / c om oac abarc one lm a l. ne t /Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012192


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197con el objetivo <strong>de</strong> revelar y alertar sobre la absurdidad y la exclusión social <strong>de</strong>dichas políticas. La plataforma Yes Lab, mediante “Patriots for the self-<strong>de</strong>portation”, aligual que Santiago Sierra en varias <strong>de</strong> sus propuestas, lleva estas i<strong>de</strong>as extremistasal límite animan<strong>do</strong> a que cada norteamericano escrute su árbol genealógico paraaveriguar si tiene algún inmigrante en su familia y –si lo halla– se les anima a quese auto-<strong>de</strong>porte. Cito la introducción <strong>de</strong>l portal:A growing force within the Tea Party and beyond, Patriots for Self-Deportationbelieves that securing our bor<strong>de</strong>rs is not enough. We must make sure that all resi<strong>de</strong>nts and“citizens” have a true right to be in this great land. We believe our current laws must bechanged to abolish anchor babies, whose children, throughout history, should have never receivedautomatic citizenship to this nation. If the Fe<strong>de</strong>ral government will not take action NOW,then it is up to us, WE THE PEOPLE, to put an end to the invasion and internal <strong>de</strong>caythat threatens to <strong>de</strong>stroy the fabric of the USA. If you entered illegally or stayed illegally, youare a CRIMINAL. We <strong>de</strong>mand a purge for The Real America.We hold FOUR CORE VALUES:1) America belongs to REAL Americans.2) Illegals and their anchor babies are here ILLEGALLY.3) US citizenship is for those who can show PROOF their original ancestorswere here legally.4) All illegals and <strong>de</strong>scendants of illegals are here ILLEGALLY and must beDEPORTED at once.If you can’t prove you belong here, you must REPATRIATE.Many of us have learned that we gained citizenship due to a criminal ancestor.If this is true for you too, <strong>do</strong> what’s right: Self-Deport!Until the 14th Amendment is changed, stopping illegal citizenship begins with US! 66 ht t p: //se lf <strong>de</strong> port . org /193 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Una <strong>de</strong> las artistas vinculadas con el proyecto, Megan Hanley, expresacómo esta iniciativa surge para llamar la atención <strong>de</strong> la dirección <strong>de</strong> ciertosparti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> extrema-<strong>de</strong>recha que atacan frontalmente los <strong>de</strong>rechos <strong>de</strong> losinmigrantes. Siguien<strong>do</strong> la retórica absurda y radical parten <strong>de</strong>l concepto <strong>de</strong> la“auto-<strong>de</strong>portación” para visibilizar como to<strong>do</strong>s los ciudadanos norteamericanos–a excepción <strong>de</strong> los indios– <strong>de</strong>berían “auto-<strong>de</strong>portarse” al ser <strong>de</strong>scendientes <strong>de</strong>emigrantes.El senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>l humor y la ironía son un medio para provocar la reflexión.Luther Blisset & Sonja Brünzels <strong>de</strong>finen <strong>de</strong> la guerrilla <strong>de</strong> la comunicación conlas siguientes palabras:La guerrilla <strong>de</strong> la comunicación quiere socavar la normalidad y lapretendida naturalidad <strong>de</strong>l or<strong>de</strong>n imperante. (…). Su proyecto es la crítica<strong>de</strong> la nocuestionabilidad <strong>de</strong> lo existente. Dicha subversivilidad preten<strong>de</strong>transformar los discursos cerra<strong>do</strong>s en situaciones abiertas, cuestionan<strong>do</strong> lanormalidad mediante un inespera<strong>do</strong> factor <strong>de</strong> confusión. Cada acciónmirada por sí misma constituye sólo una forma momentánea y aislada <strong>de</strong>transgresión. Pero a medida en que los grupos políticos van abrien<strong>do</strong>espacios en vez <strong>de</strong> cerrarlos o fijarlos, se crean posibilida<strong>de</strong>s para visiones ypequeñas anticipaciones <strong>de</strong> una alternativa a la sociedad actual.(a.f.r.i.k.a. 2000: 7).En este manual se amalgama la práctica con la teoría, recogien<strong>do</strong> variasacciones llevadas a cabo que parten <strong>de</strong> la apropiación <strong>de</strong> los signos utiliza<strong>do</strong>s porlas estrategias <strong>de</strong>l po<strong>de</strong>r para subvertirlos 7 . Esta obra nace <strong>de</strong>l <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> compartirestas i<strong>de</strong>as sin preten<strong>de</strong>r convertirse en un manual al uso, cada situación esdistinta. Cito la introducción:7 E s int e re sa nt e m e nc ion ar u no d e los t é rm ino s e m ple ad o e n t al m arc o;“ S ubv e rt is ing” , e n e l q u e se a m alg am a l a su bve rs ión c on l as t ác t ic as p rop ia s d e l“ adv e rt is in g ” , d e la pu bl ic id ad .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012194


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Este libro se propone a la lectora como una caja <strong>de</strong> herramientas que ofrecepalabras, metáforas e imágenes y que anima a reflexionar sobreposibilida<strong>de</strong>s similares en la propia práctica. Hacer eso en sí mismo yacontribuye a <strong>de</strong>sarrollar la práctica propia. Y ésta es también la mejorcontribución que se pue<strong>de</strong> hacer a una futura teoría <strong>de</strong> la subversión.El “artivismo” cuestiona el or<strong>de</strong>n imperante, interviene la cotidianidadcon la finalidad <strong>de</strong> enfocar distintas problemáticas para suscitar un <strong>de</strong>batepúblico. La sorpresa, lo inespera<strong>do</strong>, tergiversar el discurso articula<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> elpo<strong>de</strong>r son las vías para construir una “guerrilla <strong>de</strong> la comunicación” que trazaotras formas <strong>de</strong> hacer política. Estas tácticas proce<strong>de</strong>n <strong>de</strong>l Dadaísmo, <strong>de</strong>lSurrealismo, <strong>de</strong> la Internacional Situacionista y <strong>de</strong> otros grupos artísticos que hanconcebi<strong>do</strong> el arte como una herramienta para <strong>de</strong>tonar el pensamiento y explorarnuevos lenguajes políticos.Para concluir este recorri<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ro necesario introducir el prisma <strong>de</strong> laperspectiva biográfica a partir <strong>de</strong> la artista Fiona Tan (Pekan Baru, In<strong>do</strong>nesia),quien parte <strong>de</strong>l ámbito fílmico y vi<strong>de</strong>ográfico para rumiar sobre la migración, elcolonialismo, la memoria, el paso <strong>de</strong>l tiempo y la construcción <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad.Narra su propio proceso migratorio tal y como ella misma afirma "Yo soy unaemigrante y mi trabajo también emigra". Su obra se nutre <strong>de</strong> su propia biografía,hija <strong>de</strong> padre chino y madre australiana nació en In<strong>do</strong>nesia, creció en Australia yluego consolidó su carrera en Holanda, en Amsterdam. En relación a suexposición Punto <strong>de</strong> partida, realizada en el Centro Andaluz <strong>de</strong> ArteContemporáneo (CAAC) <strong>de</strong> Sevilla (2012), explica:"En esta muestra hay <strong>do</strong>s conceptos fundamentales que están presentes ento<strong>do</strong> mi pensamiento: viaje y tiempo. Se trata <strong>de</strong> un viaje que tiene <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> sí muchos viajes. Para los visitantes pue<strong>de</strong> ser un viaje metafórico ymetafísico” 8 .8 http:// www.fionatan.nl/195 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Justamente, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> esta muestra, pue<strong>de</strong> contemplarse su trabajo MayYou Live in Interesting Times (1997), un ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> una hora en el que la artistaentrevista a su propia familia para construir su historia, su genealogía. Que vivas entiempos interesantes <strong>de</strong>viene una investigación sociológica al centrarse en retratar ladiáspora <strong>de</strong> la comunidad china <strong>de</strong> In<strong>do</strong>nesia. Fiona Tan revela que visitó sietepaíses para hacer el trabajo <strong>do</strong>cumental y, en relación a esta movilidad, una <strong>de</strong> sustías comenta: "Nos llaman los ‘judíos amarillos’ porque no tenemos país". Estaobra parte <strong>de</strong> su experiencia familiar pero va más allá, la historia individual sevincula con la historia colectiva al explorar cómo se forja la i<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> lasociedad china cuan<strong>do</strong> viven lejos <strong>de</strong> su país <strong>de</strong> origen. Fiona Tan, en esta obra,fun<strong>de</strong> el arte con la historia, la sociología, la antropología, la etnografía pararevisar y cuestionar la construcción <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> quien emigra. Indaga lasensación <strong>de</strong> <strong>de</strong>sarraigo, el mito que envuelve la cultura originaria, la<strong>de</strong>construcción <strong>de</strong> ésta y su recreación imaginaria.Todas estas propuestas muestran como el arte es entendi<strong>do</strong> como uninstrumento ético y político. Las iniciativas esbozadas –mediante estrategiasdistintas– entran <strong>de</strong> lleno en el marco público para provocar, para crear cortocortocircuitos,para encuadrar y examinar distintas problemáticas propias <strong>de</strong> lasociedad en la que vivimos. Se trata <strong>de</strong> visibilizar los conflictos para que seananaliza<strong>do</strong>s, repensa<strong>do</strong>s y <strong>de</strong>bati<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nuevas perspectivas. El arte <strong>de</strong>vieneuna vía para preguntar, para rumiar, para pasar a la acción, recordan<strong>do</strong> a lacomunidad la responsabilidad <strong>de</strong> afrontar las tensiones y las <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Es asícomo todas estas iniciativas se transforman en un punto <strong>de</strong> partida.Referências bibliográficasAAVV. 2008. He Chong Yue. Mil millones contra uno: ser padres según lamentalidad feudal. España: Sala Parpalló.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012196


Moner, Laia Manonelles – Migracion, prácticas artísticas y artivismos 181 -197Borbonet. 2001: 17 <strong>de</strong> julio. EL PAÍS | Cataluña.Cuesta, J. M. 2002: 28 <strong>de</strong> septiembre. Blanco y Negro Cultural.Delga<strong>do</strong>, Manuel. 2002. Estefany. Girona: La Fundació Espais d’ArtContemporani <strong>de</strong> Girona.Enmedio: http://comoacabarconelmal.net/Martín, J. M: http://madridabierto.com/es/intervenciones-artisticas/2009/josep-maria-martin.htmlGrupo autónomo A.f.r.i.k.a / Luther Blisset & Sonja Brünzels. 2000.Manual <strong>de</strong> guerrilla <strong>de</strong> la comunicación. Virus editorial.Manonelles, Laia. 2009. El arte <strong>de</strong> acción como terapia y subversión.Peregrinaciones en el arte contemporáneo. Tesis <strong>do</strong>ctoral, Universidad <strong>de</strong> Barcelona.Martín,J.M:http://elpais.com/diario/2010/02/06/madrid/1265459054_850215.htmlSierra, S. 2002: 13 <strong>de</strong> julio. El País.Sierra, S: http://www.santiago-sierra.comTan, F: http://www.fionatan.nl/Yes lab: http://yeslab.org/project/self-<strong>de</strong>portYes lab: http://self<strong>de</strong>port.org/Zhang Huan: http://www.zhanghuan.com197 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


L'HYPOCRISIE DANS DOM JUAN DE MOLIÈRELúcia Margarida Pinho Lucas <strong>de</strong> Freitas <strong>de</strong> Carvalho PedrosaInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> Portolpedrosa@iscap.ipp.ptPortugalResuméDans <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, Molière continue son combat contre l’hypocrisie socialequi caractérise la société <strong>de</strong> son époque et qui est symbolisée par la noblesse duroyaume. L’originalité <strong>de</strong> cette pièce <strong>de</strong> théâtre rési<strong>de</strong> <strong>dans</strong> la complexité dupersonnage principal, <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, et <strong>dans</strong> le mélange <strong>de</strong> religieux, <strong>de</strong> tragique, <strong>de</strong>comique, <strong>de</strong> surnaturel et <strong>de</strong> spectaculaire sur lequel elle est fondée.Dans cette pièce, rien n’est laissé au hasard: le temps et l’espace reflètentbien le caractère libertin <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> et le langage est une arme <strong>do</strong>nt il se sertpour conquérir et séduire une femme. Le langage est ici un miroir <strong>de</strong> la réalité,c’est-à-dire du mon<strong>de</strong> où tous les personnages sont insérés. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> tantôtutilise le langage <strong>de</strong> l’hypocrisie pour se défendre tantôt il se sert <strong>de</strong> la rhétoriquepour séduire ses victimes: c’est à travers le pouvoir verbal qu’il arrache unefemme à un homme. Le langage est la clé du jeu <strong>de</strong> miroirs sur lequel la pièce estfondée.Molière montre <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> que le langage est un instrument dangereux<strong>dans</strong> les mains <strong>de</strong>s hypocrites qui s’en servent pour défier l’ordre social, lareligion, la famille et la morale.ResumoEm <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, Molière continua o seu combate contra a hipocrisia social quecaracteriza a socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu tempo e que aqui é representada pela classe danobreza. A originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta peça <strong>de</strong> teatro resi<strong>de</strong> na complexida<strong>de</strong> da


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 199 -207personagem principal, <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, e na mistura <strong>do</strong> religioso com o trágico, ocómico, o sobrenatural e o espectacular, que constituem os seus alicerces.Nesta peça nada é <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> ao acaso: o tempo e o espaço refletem bem ocaráter libertino <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> e a linguagem é a arma da qual ele se serve paraconquistar e seduzir uma mulher. A linguagem é um espelho da realida<strong>de</strong>, <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual as personagens fazem parte. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> ora utiliza a linguagem dahipocrisia para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, ora se serve da retórica para seduzir as suas vítimas.É através <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r das palavras que ele arranca uma mulher <strong>do</strong>s braços <strong>de</strong> umhomem. A linguagem é a chave <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> espelhos que constitui a estrutura<strong>de</strong>sta peça.Molière põe em evidência em <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> que a linguagem é um instrumentoperigoso nas mãos <strong>do</strong>s hipócritas que <strong>de</strong>la se servem para <strong>de</strong>safiar a or<strong>de</strong>m social,a religião, a família e a moral.Mots-clés: <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, Hypocrisie, Libertinage, Langage, Femme, Comédie,TragédiePalavras-chave: <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, Hipocrisia, Libertinagem, Linguagem, Mulher,Comédia, Tragédia<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> est la plus libre et la plus irrégulière <strong>de</strong>s pièces <strong>de</strong> Molière. C'estune pièce baroque où l’on trouve un mélange <strong>de</strong> religieux, <strong>de</strong> tragique, <strong>de</strong>comique, <strong>de</strong> spectaculaire et <strong>de</strong> surnaturel. Molière continue ici le combat contrel'hypocrisie qu'il avait déjà entrepris <strong>dans</strong> Le Tartuffe. Il veut déshabiller l'homme,faire tomber sa masque pour montrer sa vraie nature. La qualité <strong>de</strong> la pièce rési<strong>de</strong><strong>dans</strong> le riche portrait du personnage principal, <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, <strong>dans</strong> la mise en reliefdu comique <strong>de</strong> caractère et <strong>dans</strong> l'étu<strong>de</strong> <strong>de</strong>s attitu<strong>de</strong>s.La noblesse du royaume, <strong>de</strong> laquelle <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> est un exemple, est la cible<strong>de</strong> la satire <strong>de</strong> Molière. Il veut que l'on rie <strong>de</strong> cette classe qui règne encore àl'époque. C'est une noblesse pervertie et hypocrite qui se soucie seulement <strong>de</strong> sesPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012200


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 196 -207plaisirs: « L'hypocrisie est un vice à la mo<strong>de</strong>, et tous les vices à la mo<strong>de</strong> passentpour vertus. » (<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, 1994, 117)La formule du prolixe et intelligent Sganarelle, « grand seigneur méchanthomme est une terrible chose», révèle le sujet <strong>de</strong> la pièce: le libertinage. Ceconcept implique l'idée du <strong>do</strong>uble et <strong>de</strong> l'hypocrisie, <strong>do</strong>nt le langage estl'instrument le plus important et précieux. C'est Sganarelle qui, au début <strong>de</strong> lapièce, commence par dévoiler le <strong>do</strong>uble, le jeu <strong>de</strong> l'être et du paraître mené parson maître: « mais, par précaution, je t' [Gusman] apprends, inter nos, que tu voisen <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, mon maître, le plus grand scélérat que la terre ait jamais porté, unenragé, un chien, un diable, un Turc, un hérétique, qui ne croit ni Ciel, [ni saint,ni Dieu]... » (27).<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> est un libertin, un conquéreur professionnel qui trace un projeten avance, cherche <strong>de</strong>s stratégies et agit selon <strong>de</strong>s règles. C'est un homme <strong>de</strong> têteet pas <strong>de</strong> sentiments qui s'impose le <strong>de</strong>voir d'aimer toutes les femmes. Mais pourlui, la gran<strong>de</strong> réjouissance ne rési<strong>de</strong> pas <strong>dans</strong> la séduction facile, mais <strong>dans</strong> le jeu,<strong>dans</strong> la bataille qu'il entreprend contre les femmes qui lui résistent. Il réussit à lesfaire rendre les armes, les épouse en série et, après, il les aban<strong>do</strong>nne, car s'il y a« celle qui en cet instant l'occupe, mille autres atten<strong>de</strong>nt qu'à leur tour il lescueille! » (Gutwirth, 1986, 29)L'espace et le temps reflètent très bien le caractère <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>. Commeil aime la liberté et les femmes, il se déplace souvent. Il y a différentschangements <strong>de</strong> décor, palais, campagne, forêt, ce qui montre un grand besoin <strong>de</strong>liberté: « <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> ne peut pas [se] résoudre à enfermer [son] cœur entre quatremurailles » (87). Cette liberté <strong>de</strong> mouvement est aussi exprimée par l'écoulementdu temps. On témoigne <strong>dans</strong> la pièce d'une liberté physique et temporelle quimanifeste une évolution <strong>dans</strong> le caractère <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, qui <strong>de</strong>vient <strong>de</strong> plus enplus instable et pervers: « Je ne suis plus le même qu'hier au soir » (32).L'astucieux Sganarelle réussit d'une façon très intelligente à établir un rapportentre la personnalité <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> et le manque d'unité <strong>de</strong> lieu: « Eh! mon Dieu!je sais mon <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> sur le but du <strong>do</strong>igt, et connais votre cœur pour le plus201 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 199 -207grand coureur du mon<strong>de</strong>: il se plaît à se promener <strong>de</strong> liens en liens, et n'aimeguère à <strong>de</strong>meurer en place. » (30).<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> révèle un moi souverain et toute une aisance victorieuse, mais ilne respecte que son bon plaisir. Il rejette toutes les valeurs et se montre incapabled'avoir un lien avec les hommes, avec la société. C'est un être unique: « Les yeuxsecs, le cœur vi<strong>de</strong>, <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> échappe à la condition humaine » (Gutwirth, 31) etla renie complètement.Il vit pour conquérir et séduire. Dans sa lutte contre la femme il emploietoutes sortes <strong>de</strong> moyens: la frau<strong>de</strong>, le mensonge et l'hypocrisie. La plupart <strong>de</strong> sessuccès sont obtenus par l'effet <strong>de</strong> la parole. Dans la séduction il y a un rapportétroit entre le sexuel et le linguistique: c'est une séduction en <strong>de</strong>ux langues. <strong>Dom</strong><strong>Juan</strong> a une conception performative du langage, ce n'est pas seulement un moyen<strong>de</strong> communication, mais surtout une arme, un élément agissant.Selon Nietzsche, <strong>dans</strong> son œuvre La Généalogie <strong>de</strong> la morale, l'homme est unanimal parlant et prometteur. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> en est un bon exemple, parce qu’il séduiten parlant et en promettant aux femmes <strong>de</strong> les épouser et <strong>de</strong> les aimer pourtoujours. D'ailleurs, c'est ce qu'il fait avec ses victimes, les paysannes Charlotte etMathurine, mais il essaie <strong>de</strong> se défendre, en utilisant le langage <strong>de</strong> l'hypocrisie et laduplicité: « Vous soutenez également toutes <strong>de</strong>ux que je vous ai promis <strong>de</strong> vousprendre pour femmes (...) celle à qui j'ai promis effectivement n'a-t-elle pas, enelle-même <strong>de</strong> quoi se moquer du discours <strong>de</strong> l'autre, et <strong>do</strong>it-elle se mettre enpeine, pourvu que j'accomplisse ma promesse? Tous les discours n'avancentpoint les choses. Il faut faire et non pas dire et les effets déci<strong>de</strong>nt mieux que lesparoles. » (64-65) Toute séduction <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> se fon<strong>de</strong> <strong>dans</strong> la promesse. Entant qu'être parlant, il est incapable <strong>de</strong> ne pas promettre, mais il est le héros <strong>de</strong> larupture <strong>de</strong> la promesse, car il s'occupe seulement du moment présent; il le goûteavec beaucoup <strong>de</strong> plaisir. Par contre, il ne peut pas « répondre <strong>de</strong> soi en tantqu'avenir, ni <strong>de</strong> son plaisir » (Felman, 18). Mais parallèlement à ce langage verbal,il y a tout un langage du corps au service <strong>de</strong> la promesse qui est symbolisé <strong>dans</strong> legeste <strong>de</strong> <strong>do</strong>nner la main. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> pèche et <strong>de</strong>vient victime pour avoir <strong>do</strong>nnétrop souvent la main. Il <strong>do</strong>nne sa main en gage, comme promesse <strong>de</strong> mariage etPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012202


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 196 -207en se mariant successivement. L'ironie du <strong>de</strong>stin rési<strong>de</strong> <strong>dans</strong> le fait qu'il finit parpérir pour avoir <strong>do</strong>nné la main à la statue du Comman<strong>de</strong>ur, en tombant <strong>do</strong>nc<strong>dans</strong> son propre piège.Chez <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> il n'y a pas <strong>de</strong> limites entre le plaisir du langage et celui ducorps: « On goûte une <strong>do</strong>uceur extrême à séduire, par cent hommages, le cœurd'une jeune beauté (...) mais lorsqu'on est le maître une fois, tout le beau <strong>de</strong> lapassion est fini; il n'y a plus rien à dire, ni rien à souhaiter et il n'y a plus rien àfaire. » (32) Voilà, en quelques mots, toute la <strong>do</strong>ctrine du libertin qui chercheseulement le plaisir <strong>dans</strong> la séduction, ce qui scandalise Sganarelle: « A! quelhomme! quel homme! quel homme ! » (117)<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> a toujours besoin <strong>de</strong> se situer au niveau <strong>de</strong> l'énonciation. Ilconnaît bien la rhétorique, l'art <strong>de</strong> la persuasion, et sait bien la mettre en pratique.Il a pleine conscience <strong>de</strong> ce fait, en disant à Sganarelle: « Mais quel est ce pouvoirabsolument magique que je détiens par ma parole, et quel en est l'intérêt? Quelintérêt peut conserver l'existence, si je sais que ma parole est le pouvoir absolu? »(118) C'est à travers ce pouvoir verbal qu'il essaie toujours d'arracher une femmeà un homme. Il séduit Elvire en l'arrachant aux mains <strong>de</strong> l'Eglise, <strong>de</strong> Dieu, etCharlotte qui <strong>de</strong>vient infidèle à sa promesse <strong>de</strong> mariage avec Pierrot.Dans la pièce, il est question d'un métalangage. On parle <strong>de</strong> ce qu'on dit;on met en question et on réfléchit sur ce qu'on a dit. Sganarelle fait souvent <strong>de</strong>scommentaires sur ce que <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> a dit et il se <strong>de</strong>man<strong>de</strong> à quoi va mener tel outel discours. « Vertu <strong>de</strong> ma vie, comme vous débitez! Il semble que vous avezappris cela par cœur, et vous parlez comme un livre. » (33) Le langage est la clédu jeu <strong>de</strong> miroirs sur lequel la pièce est fondée.Pour la plupart <strong>de</strong>s personnages, le langage sert à communiquer la véritésur le mon<strong>de</strong>. Il y a un rapport étroit entre le langage et la réalité, entre le signelinguistique et le référent, quoiqu'on trouve plusieurs niveaux <strong>de</strong> langage. Pierrot,l’amoureux <strong>de</strong> Charlotte, nous montre d'une façon très comique cettei<strong>de</strong>ntification parfaite entre ce qu'il dit (« la même chose ») et la réalité, le référent(« la même chose »): « Je te dis toujou la mesme chose, parce que c'est toujou la203 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 199 -207mesme chose; et si n'estoit pas toujou la mesme chose, je ne dirois pas toujou lamesme chose. » (49)Cette conception du langage comme miroir <strong>de</strong> la réalité, du mon<strong>de</strong> <strong>dans</strong>lequel les personnages sont insérés est aussi visible <strong>dans</strong> les tira<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Dom</strong>Louis, le père <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, « Apprenez enfin qu'un gentilhomme qui vit mal estun monstre <strong>dans</strong> la nature (…) que je regar<strong>de</strong> bien moins au nom qu’on signequ’aux actions qu’on fait » (102), et <strong>de</strong> Sganarelle qui dit que <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> est ungrand seigneur méchant homme pour montrer qu'il est <strong>de</strong>hors du co<strong>de</strong> <strong>de</strong> lamorale sociale.<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> se sert du langage pour nier cette morale et la mettre enquestion. C'est un être marginal qui vit <strong>dans</strong> une autre réalité, <strong>dans</strong> un mon<strong>de</strong> àl'envers. Il n'utilise pas le langage pour dire la vérité, mais pour mettre en dérisionle sens commun. Le langage est pour lui une matière plastique qu'il modèle à songré, <strong>de</strong> façon que le vrai et le faux, le réel et l'irréel se mêlent. Sganarelle a pleineconscience du fait que la vérité ou la fausseté dépen<strong>de</strong>nt <strong>de</strong> la volonté <strong>de</strong> <strong>Dom</strong><strong>Juan</strong> qui est un personnage <strong>do</strong>uble: « Assurément que vous avez raison, si vous levoulez; on ne peut pas aller là contre. Mais si vous ne le vouliez pas, ce seraitpeut-être une autre affaire. » (31)On trouve aussi un rapport entre le langage et le surnaturel. Quand <strong>Dom</strong><strong>Juan</strong> déci<strong>de</strong> <strong>de</strong> se convertir pour tromper tout le mon<strong>de</strong>, c'est à travers le langagequ'il passe <strong>de</strong> libertin à religieux hypocrite. Il est agnostique, il nie Dieu et le senscommun traditionnel et Done Elvire veut le convertir. Sganarelle, à son tour,croit que le Ciel va le punir mais <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> se moque <strong>de</strong> toutes ces niaiseries. Ilse sert du Ciel et par métonymie <strong>de</strong> Dieu pour s'excuser d'avoir aban<strong>do</strong>nné safemme: « J'obéis à la voix du Ciel; C'est le Ciel qui le veut ainsi » (124). Il croitqu’il réussit à la convaincre, car Done Elvire passe <strong>de</strong> la révolte à la résignation etse tourne vers Dieu. Il feint <strong>de</strong> se régénérer et emploie un langage pieux commemasque pour convaincre sa femme et son père: « Oui, vous me voyez revenu <strong>de</strong>toutes mes erreurs (...) et le Ciel tout d'un coup a fait en moi un changement; jeregar<strong>de</strong> avec horreur (...) les désordres criminels <strong>de</strong> la vie que j'ai menée. » (115) Iljoue le rôle <strong>de</strong> l'hypocrite, ce qui le rend supérieur aux autres: « Je m'érigerai enPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012204


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 196 -207censeur <strong>de</strong>s actions d'autrui, jugerai mal <strong>de</strong> tout le mon<strong>de</strong> et n'aurait bonneopinion que <strong>de</strong> moi. » (120) Le langage comme masque sert à la séduction, àl'amusement, à la protection et à la vengeance. Il y a tout un vocabulaire employépar <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> et Sganarelle qui se rapporte au mensonge, à la tromperie, à l'idéedu <strong>do</strong>uble: monstre, méchant, scélérat, fourbe, hypocrite, criminel, infâme,infidélité, injure, trahison, dissimuler, manquer à sa parole, tromper...L'hypocrisie <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> ne sert pas seulement à séduire et à conquérirles belles femmes. Elle sert aussi à défier la religion et la société <strong>dans</strong> laquelle ilcrée la confusion. Le dénouement montre que seulement le pouvoir divin estcapable d'arrêter <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, <strong>de</strong> faire tomber sa masque et <strong>de</strong> dévoiler son <strong>do</strong>uble.Seulement le Ciel (Dieu) est capable <strong>de</strong> distinguer nettement le vrai du faux, lapitié <strong>de</strong> l'hypocrisie.Tout au long <strong>de</strong> la pièce <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> semble être impunissable, mais lestira<strong>de</strong>s d'Elvire et <strong>de</strong> Sganarelle où ils parlent très souvent du pouvoir du Cielannoncent une catastrophe: « Apprenez <strong>de</strong> moi, qui suis votre valet, que le Cielpunit tôt ou tard les impies, qu'une méchante vie amène une méchante mort »(34). Il défie les lois universelles et le Ciel et il se montre toujours souverain,maître <strong>de</strong> lui-même. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> est seigneur d'un mon<strong>de</strong> à l'envers, mais <strong>dans</strong> laréalité quotidienne il va <strong>de</strong>venir une proie. Seulement le Ciel, <strong>dans</strong> la figure <strong>de</strong> lastatue du Comman<strong>de</strong>ur et du Spectre, peut offrir un combat digne à « ce grandseigneur méchant homme ». Le dénouement surnaturel <strong>de</strong> la pièce est imprévu. Ilcache une condamnation à l'attitu<strong>de</strong> agnostique <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> qui croit seulementque « <strong>de</strong>ux et <strong>de</strong>ux sont quatre (...) et que quatre et quatre sont huit » (73) et vientà la rencontre <strong>de</strong>s craintes superstitieuses <strong>de</strong> Sganarelle. Le Ciel envoie un spectreet une statue pour ramener <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> à la réalité et le punir. Done Elvire est lespectre en femme dévoilée qui tente en vain <strong>de</strong> sauver, pour la <strong>de</strong>rnière fois,<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> la damnation éternelle.Dès que <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> se met à parler hypocritement le langage <strong>de</strong> ladévotion pour commettre le mal, il pousse à bout la patience du Ciel: la statue duComman<strong>de</strong>ur va lui <strong>do</strong>nner le coup fatal et c'est grâce à elle que <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> sort<strong>de</strong> son mon<strong>de</strong> <strong>do</strong>uble. Il n'y a qu'une seule fois où il tient sa parole: au moment205 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 199 -207où la statue lui dit « <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>, vous m'avez hier <strong>do</strong>nné parole <strong>de</strong> venir mangeravec moi » (126), il lui répond « oui » et lui <strong>do</strong>nne sa main. Ce oui ramène <strong>Dom</strong><strong>Juan</strong> à la réalité et à ce moment son langage <strong>de</strong>vient mystique: « O ciel! que sens-je? Un feu invisible me brûle, je n'en puis plus et tout mon corps <strong>de</strong>vient... » (127)Pour la première fois, il utilise le langage comme miroir <strong>de</strong> la vérité: la réalité <strong>de</strong> ladamnation. Le langage <strong>de</strong>vient un moyen <strong>de</strong> communication traditionnel.<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> tombe <strong>dans</strong> le gouffre qu'il avait toujours voulu éviter et il estdévoré par les flammes. Ainsi, « [le] Ciel offensé, [les] lois violées, [les] fillesséduites, [les] familles déshonorées, [les] parents outragés, [les] femmes mises àmal » (127) accomplissent leur vengeance. Cette tonalité tragique <strong>de</strong> la fin <strong>de</strong> lapièce est rompue par le cri égoïste, désespéré et en même temps comique, <strong>de</strong>Sganarelle: « Tout le mon<strong>de</strong> est content <strong>dans</strong> cette histoire. Il n'y a que moi seul<strong>de</strong> malheureux (...) Mes gages, mes gages, mes gages! » (127) Sganarelle est aussipuni, parce qu'il est en quelque sorte un <strong>do</strong>uble <strong>de</strong> son maître à un autre niveau.Il se montre toujours extasié avec l'éclat du langage <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>: « Vertu <strong>de</strong> mavie, comme vous débitez! » (33) Il le voit comme son modèle linguistique etessaie <strong>de</strong> se lancer <strong>dans</strong> l'éloquence. Il parle souvent <strong>dans</strong> un ton <strong>do</strong>ctoral, mais ila <strong>de</strong>s problèmes à finir ses tira<strong>de</strong>s et emploie souvent <strong>de</strong>s lieux communs et <strong>de</strong>sphrases pompeuses qui n'ont pas <strong>de</strong> sens: « Quoique puisse dire Aristote et toutela Philosophie, il n'est rien d'égal au tabac. » (25) À l'exemple <strong>de</strong> son maître, ilessaie aussi <strong>de</strong> faire jurer le Pauvre, « Va, va, jure un peu; il n'y a pas <strong>de</strong> mal » (78),et il se sert du langage pour tromper les autres, malgré lui: « Un père venir faire<strong>de</strong>s remontrances à son fils, et lui dire <strong>de</strong> corriger ses actions! (...) Cela peut-ilsouffrir à un homme comme vous, qui savez comme il faut vivre? (...) (À part.) Ôcomplaisance maudite! à quoi me réduis-tu? » (103) Mais Sganarelle s'opposeaussi à <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>. C'est un moralisateur lâche et balourd qui critique la conduiteet l'irréligion <strong>de</strong> son maître, seulement parce qu'il est très superstitieux et craint lechâtiment du Ciel. En effet, le dénouement <strong>de</strong> la pièce prouve qu'il a raison, carle Ciel et la société se vengent bien du couple <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>-Sganarelle.Molière, <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> met en question la validité du langage. C'est uninstrument dangereux <strong>dans</strong> les mains <strong>de</strong>s hypocrites qui l'utilisent pour défierPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012206


Pedrosa, Lúcia - L’hipocrisie <strong>dans</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière 196 -207l'ordre social, la religion, la famille et la morale. Le langage <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> reflèteson athéisme qui, selon Molière, est la racine <strong>de</strong> toute sa perversion. « Si <strong>Dom</strong><strong>Juan</strong> n'est qu'un homme, il est le symbole <strong>de</strong> l'humain (...); mais s'il est aussi lemaître, s'il représente le pouvoir d'une caste sur d'autres, il symbolise ce qu'il y ad'illégitime <strong>dans</strong> ce pouvoir, puisqu'il est fondé sur exactement le contraire <strong>de</strong> laloi. » (Guicharnaud, 1963)Referências bibliográficasCELLARD, Jacques, Shoshana Felman, Philippe Sollers, VivianeForrester et Monique Schnei<strong>de</strong>r. "<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> ou la Promesse d'Amour." Tel Quel87 (1981): 16-36.GAINES, James. "Le Menteur and <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>: A Case of Theatrical andLiterary Adaptation." Romance Quarterly 32 (1985): 245-254.GUICHARNAUD, J. Molière, une aventure théâtrale. Paris: Gallimard, 1963.GUTWIRTH, Marcel. "<strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> et le Tabou d'Inceste." Romanic Review 77(1986): 25-32.MALACHY, Thérèse. "Le Carnaval Solitaire <strong>de</strong> <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong> <strong>de</strong> Molière." LesLettres Romanes 35 (1981): 49-57.MOLIERE. <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>. Paris: Larousse, 1994.NIETZSCHE, Friedrich. La Généalogie <strong>de</strong> la morale. Paris: Le Livre <strong>de</strong>Poche, 2000.WEINREB, Ruth Plant. "In Defense of <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>: Deceit and Hypocrisyin Tirso <strong>de</strong> Molina, Molière, Mozart, and G.B.Shaw." Romanic Review 74 (1983):425-440.WOSHINSKY. "The Discours of Disbelief in Molière's <strong>Dom</strong> <strong>Juan</strong>."Romanic Review 72 (1981): 401-408.207 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


A DINÂMICA COMUNICATIVA DOS SÍTIOS WEB DEINSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR POLICIAL EMILITARMaria Clara CunhaInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> Portomcastro@iscap.ipp.ptPortugalResumoNeste artigo procuramos refletir sobre a forma como as instituições <strong>de</strong>ensino superior policial e militar comunicam com os seus públicos através <strong>do</strong>srespetivos sítios web. Para esse efeito, recorrer-se-á sobretu<strong>do</strong> ao enfoqueepistemológico <strong>do</strong> Interacionismo Sociodiscursivo, no âmbito da Linguística <strong>do</strong>Texto e <strong>do</strong> Discurso.AbstractThis paper aims at reflecting upon the way military training aca<strong>de</strong>miescommunicate with their target audiences through their websites. Text Linguisticsand Discourse Analysis is the un<strong>de</strong>rlying theoretical framework which provi<strong>de</strong>sthe grounding for the Socio-Discursive Interactionism approach that was chosen.Palavras-chave: Sítio web, Comunicação em meio digital, Texto, RepresentaçõesKey words: Website, Digital media communication, Text, Conceptions


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225A Linguística <strong>do</strong> Texto e <strong>do</strong> Discurso constitui a moldura <strong>de</strong> inscriçãoepistemológica <strong>do</strong> presente artigo, ten<strong>do</strong> como insígnia a teoria <strong>do</strong>Interacionismo Sociodiscursivo (Bronckart, 2007) 1 . Esta abre novos percursos <strong>de</strong>indagação <strong>do</strong>s textos, concretamente assumin<strong>do</strong> que a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem seproduz no <strong>de</strong>vir histórico-social, sen<strong>do</strong> aqueles, enquanto produto verbal dainteração humana, media<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sta ação/ativida<strong>de</strong> e representantes <strong>de</strong>la.O ISD procura <strong>de</strong>monstrar que as práticas <strong>de</strong> linguagem situadas são osmaiores instrumentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano, tanto sob o ponto <strong>de</strong> vista<strong>do</strong> conhecimento e <strong>do</strong> saber como em relação às capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> agir e dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduos. Neste quadro importa compreen<strong>de</strong>r o funcionamentoe as especificida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>signadamente <strong>do</strong> agir verbal que conduz à emergência <strong>de</strong>espaços gnoseológicos, pelo que se <strong>de</strong>seja contribuir para o entendimento <strong>do</strong> quea Internet proporciona em termos <strong>de</strong> realização efetiva <strong>de</strong>sse mesmo agir, que sefaz através <strong>do</strong>s textos (incluin<strong>do</strong> tanto a dimensão verbal como a não verbal 2 )servin<strong>do</strong>-nos, para tal, <strong>de</strong> sítios web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensino superior militar epolicial portuguesas.Reconhecen<strong>do</strong>-se que os textos são objetos complexos e plurissemióticos,associa<strong>do</strong>s a ativida<strong>de</strong>s (quer gerais quer <strong>de</strong> linguagem), à conduta <strong>de</strong> agentes(quer individualiza<strong>do</strong>s quer coletivos), ao uso <strong>do</strong>s recursos e ao respeito pelasregras <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong> uma língua e construí<strong>do</strong>s em conformida<strong>de</strong> commo<strong>de</strong>los prévios disponíveis, justifica-se enveredar, à partida, por umaabordagem meto<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte (cf. Bronckart 2007), isto é, <strong>do</strong> agir para asativida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>stas para a organização microlinguística. Contu<strong>do</strong>, mostra-setambém necessário invocar uma orientação bidirecional, que inclua uma viainversa (ascen<strong>de</strong>nte), isto é, da estrutura <strong>do</strong>s textos, <strong>do</strong>s recursos linguísticos queestes mobilizam para chegar ao género em que se incluem e às facetas dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> agir das instituições 3 .1 D orav ant e re f e r id a pe l a s ig l a I S D .2 E st a ve rt e nt e , c ont u d o, nã o se r á e x plo rad a ne s t e t raba lho.3 N ão é f ina lid ad e d e st e art i g o d e m onst ra r e st e pe r c u rs o c o m d e t alhe , m as,sim , f oc ar os re su lt ad os q u e se pod e m obt e r.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012210


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225Por outro la<strong>do</strong> e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a produção <strong>de</strong> textos catalisa asrepresentações que o sujeito tem <strong>do</strong> contexto <strong>de</strong> ação e o seu conhecimento real<strong>de</strong> diferentes géneros, tentar-se-á <strong>de</strong>screver sucintamente <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> é que ostextos e os géneros dão conta <strong>de</strong> um agir institucional.Chega<strong>do</strong>s aqui, gostaríamos <strong>de</strong> elencar um conjunto <strong>de</strong>questões/problemas <strong>de</strong> investigação que apontam para a natureza complexa epolifacetada da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem na Internet e que po<strong>de</strong>m conduzir àequação <strong>de</strong> alguns eixos <strong>de</strong> reflexão/análise:• Como se configura, em termos linguísticos, o agir institucional naInternet?• Como se estabelece a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada agir institucional?• Que públicos são visa<strong>do</strong>s?• Quais as características <strong>de</strong>ssa interação?• Qual o papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pela Internet?• Que relação há entre os mo<strong>do</strong>s <strong>do</strong> agir (forma como a instituição <strong>de</strong>screveo seu agir) e os textos empíricos que as instituições produzem?• Que géneros <strong>de</strong> texto estão mais associa<strong>do</strong>s às ativida<strong>de</strong>s institucionais?• E como é que os textos retratam o seu agir específico?• Os traços espera<strong>do</strong>s relativamente a um da<strong>do</strong> género variam consoante ainstituição?• Quais os aspectos mais tematiza<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> referencial <strong>de</strong>sse género?• A arquitetura <strong>do</strong>s sítios web, a sua estrutura <strong>de</strong> navegação e a sua interfacegráfica influem no mo<strong>do</strong> como as instituições se dão a conhecer?• A combinação e a disposição nos sítios web <strong>do</strong>s elementos não verbais edas unida<strong>de</strong>s linguísticas resulta em que tipo <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>/predisposição porparte das entida<strong>de</strong>s?O ângulo meto<strong>do</strong>lógico que o ISD favorece – marcadamente sensível àsvariáveis externas e contextuais das produções verbais – leva-nos a encarar o211 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225texto como produto da ativida<strong>de</strong> humana, liga<strong>do</strong> às necessida<strong>de</strong>s, interesses econdições <strong>de</strong> funcionamento das formações sociais em que é produzi<strong>do</strong>,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se como uma unida<strong>de</strong> comunicativa global, <strong>de</strong> nível superior, cujascaraterísticas <strong>de</strong> composição <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das proprieda<strong>de</strong>s das situações <strong>de</strong>interação, das ativida<strong>de</strong>s e das condições histórico-sociais da sua elaboração.No entanto, importará sinalizar que estamos a viver numa época <strong>de</strong> maiorvariabilida<strong>de</strong>, com bastantes <strong>de</strong>safios para explorar, <strong>de</strong>signadamente anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver méto<strong>do</strong>s/estratégias/ferramentas que nos permitamconhecer e trabalhar (sobre) os textos no ambiente mutante que é a Internet epara isso sugere-se o recurso adicional a outras perspectivas/autores,sumariamente indicada/os em seguida:o A Gramática Sistémico-Funcional (Halliday & Matthiessen, 2004).A sua matriz social centra-se nos usos da linguagem em socieda<strong>de</strong>; porconsequência, consi<strong>de</strong>ra os aspetos pragmáticos <strong>do</strong> uso da língua, associa<strong>do</strong>s àforma como esta atua no contexto social e à influência que este exerce na suaconfiguração (contemplan<strong>do</strong> itens como as necessida<strong>de</strong>s, as ativida<strong>de</strong>s, ospropósitos, as estratégias, o tipo <strong>de</strong> papel <strong>do</strong>s indivíduos | instituições, asmudanças neles ocorridas), ten<strong>do</strong> como conceito base a “função”. Assim, aforma linguística é <strong>de</strong>terminada pela função no senti<strong>do</strong> em que a organizaçãointerna da linguagem se dá em termos das funções que ela <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>sempenhar navida social.o A Gramática [<strong>do</strong> <strong>de</strong>sign] visual (Kress & Van Leeuwen, 1996).Saída da Escola <strong>de</strong> Halliday, é uma teoria que permite uma abordagem <strong>do</strong>não verbal, na perceção das motivações e efeitos da seleção <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadascores, imagens, formas, sons, recursos tipográficos, etc. Estes códigos semióticosmerecem ser valoriza<strong>do</strong>s e importa compreen<strong>de</strong>r porque surgem – isola<strong>do</strong>s ouem conjunto – e como captar os diferentes senti<strong>do</strong>s que po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012212


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225Uma vez que a estrutura visual é polissémica por natureza, este instrumentoteórico po<strong>de</strong> ajudar a reduzir esse traço e assim permitir uma apreensão maisprofunda <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s objetivos <strong>de</strong>ssa mesma estrutura.o Não menos importante, e em torno <strong>do</strong>s tópicos que emergem dacomunicação mediada por computa<strong>do</strong>r, elegem-se alguns autores, <strong>de</strong> quese <strong>de</strong>stacam: Marcuschi (2003, 2005a, 2005b, 2007a, 2007b, 2008) PierreLevy (1999, 2011), Pollyana Ferrari (2007, 2010), Alex Primo (2000, 2007,2008) e David Crystal (2001, 2006).Os estu<strong>do</strong>s por eles realiza<strong>do</strong>s permitem compreen<strong>de</strong>r melhor a natureza,as feições e a dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios web. A título <strong>de</strong> exemplo, oconceito <strong>de</strong> ‘hipertextualida<strong>de</strong>’ reveste-se da maior relevância na esfera digitalpois remete para uma nova modalida<strong>de</strong> linguístico-textual que amplia aspossibilida<strong>de</strong>s da interação, geran<strong>do</strong> um dispositivo comunicativo próprio e nãoapenas a simples materialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo tipo <strong>de</strong> tessitura textual; com efeito,as estratégias <strong>de</strong> hipertextualização <strong>do</strong>s textos/géneros digitais alimentam<strong>de</strong>terminadas finalida<strong>de</strong>s comunicativas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> impacto.O hipertexto encarna uma nova forma <strong>de</strong> textualida<strong>de</strong>, dir-se-á ‘líquida’,baseada na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> penetração e irradiação <strong>de</strong> um texto marca<strong>do</strong> porrelações que abrem portas para novos patamares <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Os efeitos damultilinearida<strong>de</strong> e da fragmentação que os sítios web proporcionam a este nívelpautam-se pela total flexibilização, o que põe em causa os princípios aristotélicos<strong>do</strong> texto. Os itinerários <strong>do</strong> leitor/utiliza<strong>do</strong>r são distintos, subordinan<strong>do</strong>-se a umalógica <strong>de</strong> interesses/necessida<strong>de</strong>s/condições <strong>do</strong> momento, quase sempre <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m associativa e não hierarquizada que po<strong>de</strong>m, no entanto, conduzir a umaleitura interminável e circular, que <strong>de</strong>riva <strong>do</strong>s caminhos <strong>do</strong> imediatismo (<strong>do</strong>aqui|agora) e que subverte as regras consagradas <strong>do</strong> texto em papel. A relaçãointertextual fica escancarada e interrompe a or<strong>de</strong>m linear <strong>de</strong> leitura. A<strong>de</strong>scodificação <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s acompanha esses itinerários não sequenciais, oque, por sua vez, sublinha-se, é a base da máxima conetivida<strong>de</strong>.213 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225As instituições <strong>de</strong> ensino que analisaremos brevemente neste artigo foramescolhidas ten<strong>do</strong> em conta certos fatores, nomeadamente: uma organizaçãoprópria, propósitos específicos, a função social que <strong>de</strong>sempenham, o grau <strong>de</strong>amplitu<strong>de</strong> da sua atuação, práticas, normas e valores que as <strong>de</strong>finem, o que àpartida se presume que se reflita na forma como se dirigem aos seus públicosexternos, como constroem a interacção com os utiliza<strong>do</strong>res (efetivos, potenciais,i<strong>de</strong>ais).Apresentar-se-á um <strong>de</strong>senho resumi<strong>do</strong> das páginas web das instituiçõesbem como a compilação <strong>de</strong> alguns da<strong>do</strong>s que já permitiram <strong>de</strong>tetar e aflorarcertas conclusões, que são também propostas 4 .Em síntese, assume-se neste trabalho uma perspectiva <strong>de</strong> análise que sebaseia no trinómio “arquitetura – interface gráfica – ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem”.Aca<strong>de</strong>mia da Força Aéreahttp://www.aca<strong>de</strong>miafa.edu.pt/in<strong>de</strong>x.phpVerifica-se apenas o acesso a formulários <strong>de</strong> candidatura/recrutamento;legislação variada (<strong>de</strong>cretos-lei, portarias e <strong>de</strong>spachos). Os órgãos <strong>de</strong> gestão dãosea conhecer somente em organogramas não nominais sob a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong>“estrutura orgânica” num separa<strong>do</strong>r intitula<strong>do</strong> ‘ORGANIZAÇÃO’. Todas asáreas <strong>de</strong> texto encontradas são meramente <strong>de</strong>scritivas e sem quaisquerhiperligações, sen<strong>do</strong> que é inexistente qualquer tipo <strong>de</strong> repositório <strong>do</strong>cumental.Como pormenor curioso, há a referir uma mensagem <strong>de</strong> boas-vindas <strong>do</strong>comandante da Aca<strong>de</strong>mia a que se junta a sua biografia (no menu secundário).Todavia, o sítio web tem <strong>do</strong>is menus horizontais <strong>de</strong> navegação tipo drop<strong>do</strong>wn:um primário e outro secundário, respetivamente com sete (que, por suavez, se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram em subníveis que variam entre os três e os sete) e oitosepara<strong>do</strong>res, que permitem uma navegação organizada e funcional.4 A re c o lha d e d ad os f oi e f e t u ad a e nt re Ab ri l e M ai o d e 20 12.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012214


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225Aca<strong>de</strong>mia Militarhttp://www.aca<strong>de</strong>miamilitar.pt/Os géneros <strong>de</strong> texto disponibiliza<strong>do</strong>s no portal são: a revista da Aca<strong>de</strong>miaMilitar (<strong>de</strong>nominada Proelium), manuais e curtas monografias sobre assuntosdistintos (que aparecem num <strong>do</strong>s subníveis da secção ÓRGÃOS, que <strong>de</strong>riva <strong>do</strong>separa<strong>do</strong>r principal ACADEMIA MILITAR) e inúmeros relatórios académicos(que se acham na secção AVALIAÇÃO DO ENSINO que provém <strong>do</strong> separa<strong>do</strong>rprincipal ENSINO). Há também um formulário <strong>de</strong> contacto e na opçãoESTUDOS PÓS-GRADUADOS existem regulamentos <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> e normaspara a execução <strong>de</strong> trabalhos académicos; na página inicial existe uma zona visívelpara últimas notícias. Novamente, surge uma saudação <strong>do</strong> Comandante assimcomo as sínteses curriculares <strong>de</strong>ste e <strong>do</strong> 2º Comandante, na secção ÓRGÃOS.Os órgãos <strong>de</strong> gestão estão i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>: Comandante e 2ºComandante – já menciona<strong>do</strong>s – e a Direção <strong>de</strong> Ensino, que se subdivi<strong>de</strong> emcinco Departamentos <strong>de</strong> Ensino, em quatro <strong>de</strong>stes estão nomea<strong>do</strong>s osresponsáveis (somente o Departamento <strong>de</strong> Línguas Estrangeiras não apresentaninguém), não se fazen<strong>do</strong> referência a qualquer outra entida<strong>de</strong>.Este sítio web também ostenta <strong>do</strong>is menus horizontais <strong>de</strong> navegação tipodrop-<strong>do</strong>wn: um primário e outro secundário, respetivamente com sete (que, porsua vez, se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram em subníveis que variam entre os cinco e os sete, alguns<strong>do</strong>s quais orientam o utiliza<strong>do</strong>r para áreas adicionais <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>) e seissepara<strong>do</strong>res. O <strong>de</strong>senho da navegação possibilita ace<strong>de</strong>r a mais áreaspesquisáveis, que estão bem i<strong>de</strong>ntificadas, porém algumas apresentam-se semqualquer informação.Escola Navalhttp://escolanaval.marinha.pt/PT/Pages/escolanaval_homepage.aspxAtravés <strong>do</strong> sítio web po<strong>de</strong>m encontrar-se apenas os seguintes géneros <strong>de</strong>texto: biografia <strong>do</strong> comandante e normas regulamentares <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, aloja<strong>do</strong>s215 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225em diferentes aponta<strong>do</strong>res (ESCOLA NAVAL e ENSINO respetivamente) dahomepage; aqui aparecem, igualmente, notícias e a mensagem <strong>de</strong> acolhimento <strong>do</strong>comandante. Os órgãos <strong>de</strong> governo da instituição surgem com a <strong>de</strong>nominação“Constituintes da Escola Naval” e representam-se em diversos organogramas nãonominais num separa<strong>do</strong>r <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> ‘ORGANIZAÇÃO’.Na página inicial, a navegação faz-se a partir <strong>de</strong> um menu lateral com seissepara<strong>do</strong>res tipo drop-<strong>do</strong>wn que se abrem para vários subníveis, que variam entreos três e os sete. Todavia a usabilida<strong>de</strong> não é a melhor, pois o cibernauta aodirigir-se para qualquer um <strong>do</strong>s subníveis per<strong>de</strong> o acesso à barra <strong>de</strong> navegaçãoprincipal e o retorno a ela nem é simples nem eficiente. Regista-se algumaredundância na informação disponibilizada.Instituto Superior <strong>de</strong> Ciências Policiais e Segurança Internahttp://www.iscpsi.pt/Trata-se <strong>de</strong> uma página muito longa, sen<strong>do</strong> necessário fazê-la <strong>de</strong>slizarverticalmente para ver to<strong>do</strong>s os conteú<strong>do</strong>s. Aqui, o internauta tem acesso direto ànewsletter e a duas revistas (Politeia e a Revista Brasileira <strong>de</strong> Ciências Policiais).Entretanto, os outros géneros <strong>de</strong> texto a que se proporciona acesso são:no âmbito <strong>do</strong> campo ADMISSÃO (aponta<strong>do</strong>r que consta <strong>do</strong> menu principal)surge a maioria – formulário <strong>de</strong> candidatura, portaria com as condições <strong>de</strong>admissão, <strong>de</strong>clarações, calendário <strong>do</strong> concurso <strong>de</strong> admissão; apenas resta umamensagem <strong>de</strong> receção e <strong>de</strong> apresentação da instituição pelo Superinten<strong>de</strong>nte quea dirige.A informação respeitante aos órgãos <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança da Escola que <strong>de</strong>veriasurgir na opção ORGANOGRAMA, pertencente à rubrica da barra <strong>do</strong> menuprincipal intitulada O INSTITUTO, está completamente ausente, aliás este não écaso único visto que há diversas hiperligações <strong>do</strong> sítio web que não estãooperacionais, o que causa uma impressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sleixo e <strong>de</strong>satualização.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012216


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225O menu da página, tipo drop-<strong>do</strong>wn, agrega oito botões que, por sua vez,apontam para um número <strong>de</strong> opções que variam entre as quatro e as nove,algumas das quais se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram noutras subopções.Escola <strong>do</strong> Serviço <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Militarhttp://www.exercito.pt/SITES/ESSM/Paginas/<strong>de</strong>fault.aspxNão tem um sítio web autónomo uma vez que está integrada no portal <strong>do</strong>Exército, sen<strong>do</strong> possível chegar a esta instituição <strong>de</strong> ensino superior universitárioatravés <strong>do</strong> aponta<strong>do</strong>r FORMAÇÃO, visível na barra <strong>de</strong> navegação principal, eapós clicar no link com o seu nome. O menu tem um formato estático pelo quetodas as rubricas (num total <strong>de</strong> nove) estão sempre visíveis, o utiliza<strong>do</strong>r apenastem <strong>de</strong> nelas clicar para ver os conteú<strong>do</strong>s. O único género <strong>de</strong> texto que se po<strong>de</strong>encontrar é a Revista Portuguesa <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Militar, que está disponível paraconsulta.Os órgãos dirigentes são <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s, só aparece um organograma nãonominal no separa<strong>do</strong>r ORGANIZAÇÃO.A informação é limitada e em alguns casos bastante antiga, há elementosque remontam a 2005. Não há nenhum acervo <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentação disponível.Seguidamente, apresenta-se, em quadro, os géneros <strong>de</strong> texto encontra<strong>do</strong>snos sítios web das instituições <strong>de</strong> ensino militar visitadas:217 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225InstitutoGéneros <strong>de</strong> textoAca<strong>de</strong>mia daForça AéreaAca<strong>de</strong>miaMilitarEscola Navalbiografia • • •boletimcalendário<strong>de</strong>claração<strong>de</strong>creto-lei<strong>de</strong>spachoformulário <strong>de</strong>candidatura/recrutamento/contacto••manual •mensagem <strong>de</strong>boasvindasmonografia •newsletterSuperior <strong>de</strong>CiênciasPoliciais eSegurançaInterna•••• • •• • • •normas • •notícias • ••portaria • •regulamento •relatório •Escola <strong>do</strong>Serviço <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Militarrevista • • •Os principais factos constata<strong>do</strong>s revelam que, por um la<strong>do</strong>, a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>géneros <strong>de</strong> texto é escassa; por outro la<strong>do</strong>, os géneros – cuja ocorrência estáassinalada a cor e é <strong>de</strong>monstrativa <strong>do</strong>s prevalecentes – são <strong>de</strong> naturezadiferenciada.Perante estes elementos, levantam-se algumas interrogações:Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012218


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225• Como é que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> agir institucional se constrói através <strong>de</strong> géneros <strong>de</strong>texto diferentes?• Como se reconhecem nos textos estes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> agir?• Há alguma influência da estrutura e da operacionalização <strong>do</strong>s sítios web na formacomo a entida<strong>de</strong> se dá a conhecer?Tentaremos, brevemente, aduzir algumas conclusões.É inquestionável que as instituições militares apresentam caraterísticaspróprias que as diferenciam das da socieda<strong>de</strong> civil, nomeadamente na relativaautonomia <strong>de</strong> que gozam bem como na especificida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> espíritomilitares, patentes em rituais, simbologia, posturas, prescrições, valores, etc., sópara referir alguns <strong>de</strong>stes componentes.Ao advento da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação não ficou alheia a esfera militar,situação que po<strong>de</strong> ser comprovada pela presença das suas várias organizações naInternet, nomeadamente na WWW.O que parece ter muda<strong>do</strong>- Uma das mais intensas pressões exercidas sobre a educação e o ensino,atualmente, é a crescente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso a informação e conhecimento, apar <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong> abordagens/meto<strong>do</strong>logias e o alargamento da ofertaformativa (quer em áreas científicas quer em graus académicos). As novasmodalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação vieram alterar o paradigma <strong>do</strong> ensino tradicionalpara aten<strong>de</strong>r às exigências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo, sobretu<strong>do</strong> o oci<strong>de</strong>ntal, emque recursos tecnológicos em constante evolução permitem ao ser humanointeragir como, quan<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> e ao ritmo que <strong>de</strong>sejar.- Este novo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas veio mitigar o distanciamento entre o setormilitar e a comunida<strong>de</strong> paisana pois a Internet facilita e promove a aproximação,virtual, das pessoas às entida<strong>de</strong>s (mas não <strong>de</strong>sfaz por completotradições/barreiras instituídas) potencian<strong>do</strong> o fortalecimento <strong>de</strong> atributosdiferenciais que <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> estariam mais acantona<strong>do</strong>s ou mesmo veda<strong>do</strong>s.219 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225Esta abertura <strong>de</strong>svenda, também, algo da dimensão mais privada das instituiçõesmilitares <strong>de</strong> ensino (as rotinas, os laços, as solenida<strong>de</strong>s, as praxes, asiniciativas…). De notar, contu<strong>do</strong>, que em nenhum <strong>do</strong>s sítios web se facultam, porexemplo, <strong>do</strong>cumentos que reflitam <strong>de</strong>cisões ou disposições regulamentaresinternas.- De qualquer forma, o perfil das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ensino, as candidaturasonline, as visitas guiadas virtuais, apenas para aludir a alguns exemplos, permitemum acesso e um conhecimento institucional que nunca existiu antes da Internet.- A linguagem mu<strong>do</strong>u, seja no mo<strong>do</strong> como a instituição se dá a conhecerseja na forma como interpela quem visualiza as suas páginas, sobretu<strong>do</strong> opotencial candidato (aliás, pensan<strong>do</strong> nele, quase todas disponibilizam formulários<strong>de</strong> candidatura/recrutamento/contacto), crian<strong>do</strong> um clima <strong>de</strong> envolvimento,acessibilida<strong>de</strong> e dinamismo – veja-se o pre<strong>do</strong>mínio das mensagens <strong>de</strong> boas-vindasacompanhadas das biografias <strong>do</strong> coman<strong>do</strong> <strong>de</strong> topo das Escolas, num esforço <strong>de</strong>comunicação notório reforça<strong>do</strong> por galerias <strong>de</strong> imagens, objetos multimédia e atéa presença nas re<strong>de</strong>s sociais (facebook). Em duas das Escolas (Aca<strong>de</strong>mia ForçaAérea e Escola Naval) promovem-se, igualmente, sinergiasexternasmaterializadas em projetos, convénios, protocolos, parcerias com entida<strong>de</strong>sinternacionais congéneres e não só.O que parece permanecer intacto- Uma tría<strong>de</strong> “visão | missão | estratégias” bem <strong>de</strong>finida, que traduz umamobilização coletiva numa direção [futura] comum, estribada num lastro passa<strong>do</strong>orgulhosamente assumi<strong>do</strong>, o que torna a trajetória da organização coerente,orientada para priorida<strong>de</strong>s e num alinhamento acerta<strong>do</strong> com as metas/aspiraçõescorporativas que intenta concretizar.- A exaltação da imagem e <strong>do</strong> funcionamento <strong>de</strong>stas prestigiadasinstituições <strong>de</strong> ensino, em que se enaltece a excelência e a <strong>de</strong>dicação na(re)qualificação <strong>do</strong>s recursos humanos militares, pautada por eleva<strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong>Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012220


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 - 225proficiência e motivação, que os prepara para, com brio, servirem dignamente anação.- O conceito <strong>de</strong> educação – que se afigura mais amplo <strong>do</strong> que no meiocivil – incorpora ensino, cultura, investigação, a<strong>de</strong>stramento e recreação, quecoabitam num mesmo espaço. De salientar que quase todas estas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ensino funcionam em regime <strong>de</strong> internato.- Um repositório <strong>de</strong> representações, convicções, preceitos,comportamentos e mecanismos simbólicos <strong>do</strong>minantes que plasmam umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, uma estrutura <strong>de</strong> caráter, uma <strong>do</strong>utrina e uma cultura profissionalcaraterísticas e homogeneizadas com vista a que o indivíduo tenha consciênciaplena <strong>do</strong> seu papel militar, tais como: hinos, grito <strong>do</strong> aluno, heráldica, códigos <strong>de</strong>honra, divisas, patronos, cerimónias (<strong>de</strong>sfiles, juramentos, bailes <strong>de</strong> gala)… Aspróprias cores <strong>do</strong>s sítios web espelham as <strong>do</strong>s brasões/armas da instituição (queoscilam entre o azul, o vermelho e o ver<strong>de</strong>).- A morfologia das instituições (feita <strong>de</strong> muros, sentinelas, uniformes,práticas …) e a lógica <strong>de</strong> um sistema, pois são organismos que continuam a sermuito fecha<strong>do</strong>s e hierarquiza<strong>do</strong>s ainda que menos en<strong>do</strong>génicos <strong>do</strong> que já foram,uma vez que já se voltam para o exterior.Procurou-se neste artigo, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> esquematiza<strong>do</strong>, em consonância com oquadro epistemológico <strong>de</strong>linea<strong>do</strong> apontar para uma caracterização <strong>do</strong>s sítios web<strong>de</strong> natureza institucional, em particular <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensino militar e policial.Mostra-se necessário encontrar uma moldura explicativa que consi<strong>de</strong>re ocalei<strong>do</strong>scópio <strong>de</strong> textos, agentes, linguagens, experiências e mun<strong>do</strong>s para que aweb catapulta e propor uma visão que permita ampliar a compreensão <strong>do</strong> objeto<strong>de</strong> pesquisa, <strong>de</strong>senhada por uma conceção indissociável <strong>do</strong>s usos da linguagem,da relação que os indivíduos têm entre si, com o que os ro<strong>de</strong>ia e com o que nelesinterfere.Proce<strong>de</strong>r a um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta ín<strong>do</strong>le parece premente hoje, uma vez que severifica um funcionamento diferente das relações (inter)subjetivas no espaçovirtual, relações essas que se repercutem nos <strong>do</strong>mínios da experiência coletiva eindividual. A relação com o mun<strong>do</strong> e com os outros, com os nossos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong>221 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Cunha, Maria Clara – Dinâmica comunicativa <strong>do</strong>s sítios Web <strong>de</strong> instituições <strong>de</strong> ensinosuperior policial e militar 209 -225agir e <strong>de</strong> reagir está incrustada na prática da linguagem e as novas tecnologiasestão ao serviço <strong>de</strong>stas necessida<strong>de</strong>s/exigências/aspirações. Para as instituições é,igualmente, um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se tornarem [mais] visíveis, <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrarem as suasvantagens competitivas, <strong>de</strong> alargarem a sua esfera <strong>de</strong> influência e <strong>de</strong> promoveremum ethos discursivo que lhes confira um posicionamento estratégico e <strong>de</strong>prestígio.Não nos interessa o aparato tecnológico que as soluções proporcionadas epotenciadas pela Internet e pelos ambientes móveis nos dão, mas aspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interacção, experimentação, (inter)conhecimento, cooperação eaproximação entre as pessoas e estas e as instituições. Importa ultrapassar opatamar das aparências e <strong>do</strong> tangível para <strong>de</strong>scobrir o(s) senti<strong>do</strong>(s) – nas aceçõescomplementares <strong>de</strong> ‘significa<strong>do</strong>’ e <strong>de</strong> ‘direção’ – das experiências polimorfas dacomunicação online.Referências bibliográficasADAM, Jean-Michel (2001). “En finir avec les types <strong>de</strong> textes” inBallabriga, M. Analyse <strong>de</strong>s discours. Types et genres: Communication etInterprétation. Toulouse: EUS, pp. 25-43.ARAUJO, J. C., Biasi-Rodrigues, B. (orgs) (2005). Interação na Internet.Novas formas <strong>de</strong> usar a linguagem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Lucerna.ASKEHAVE, Inger, Nielsen, Anne Ellerup, (2005). What are theCharacteristics of Digital Genres? - Genre Theory from a Multi-modalPerspective, in Proceedings of the 38th Hawaii International Conference onSystem Sciences(http://www.men<strong>de</strong>ley.com/research/characteristics-digital-genres-genretheory-multimodal-perspective/,consulta<strong>do</strong> em Novembro 2011).BRONCKART, Jean-Paul (2007). Ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem, textos ediscursos – Por um interacionismo sociodiscursivo, 2ª ed. São Paulo: EDUC.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012222


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MUNDOS DENTRO DE UM MUNDO:REPRESENTAÇÕES INTERCULTURAIS NA POLÓNIA SOB AINFLUÊNCIA NAZI (1939-1942) 1Nuno Neves Andra<strong>de</strong>CEI – Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s InterculturaisInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> Portonuno.rna@gmail.comPortugalSinopseEuropa, 1939A Alemanha, sob a influência <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> Alemão Nazi, <strong>de</strong>u início a umconfronto que mu<strong>do</strong>u a face <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Inicialmente os seus países vizinhosEuropeus, <strong>de</strong>pois alguns mais distantes e até o continente Africano sentiram oseu po<strong>de</strong>r e tremeram <strong>de</strong> me<strong>do</strong>.Me<strong>do</strong>, um sentimento tão po<strong>de</strong>roso que em pequenas quantida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>aguçar os senti<strong>do</strong>s mas que, em quantida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong> gerar pânico, suprimiro intelecto e até levar a negar aquilo que temos presente como verda<strong>de</strong>sabsolutas.A Europa era uma mistura <strong>de</strong> culturas; até os próprios países eram umamistura <strong>de</strong> culturas.A Polónia era um <strong>de</strong>sses países. Neste país, Polacos, Ju<strong>de</strong>us, Ucranianos eRomanis viviam numa paz frágil mas dura<strong>do</strong>ra. Quan<strong>do</strong> a II Guerra Mundialcomeçou, as cida<strong>de</strong>s polacas foram conquistadas uma após a outra e, uns após osoutros, os seus cidadãos foram confina<strong>do</strong>s à sua cida<strong>de</strong> para manter a or<strong>de</strong>mpública. Nesta época <strong>de</strong> incerteza e insegurança po<strong>de</strong>ríamos pensar que todasestas culturas, diferentes nas suas fundações mas todas elas constituídas por seres1 Art ig o e l abo rad o n o âm b it o d a bol sa d e int e g r aç ão na in ve st ig aç ão c ie nt íf i c ae d e se nvol v im e nt o ao ab rig o d o prot oc ol o d e c oope raç ão e nt re o I P P e o banc oS ant and e r T ot t a


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254humanos que respon<strong>de</strong>m da mesma forma em situações <strong>de</strong>sta natureza, sentir-se-iam na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se juntar, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> parte as suas diferenças e tentariamfazer tu<strong>do</strong> o que estivesse ao seu alcance para assegurar aquilo que é anecessida<strong>de</strong> básica <strong>de</strong> qualquer ser humano: sobreviver.A sobrevivência é o instinto mais básico atribuí<strong>do</strong> ao ser humano. Ome<strong>do</strong> <strong>de</strong> não ser capaz <strong>de</strong> sobreviver gerou algo que vai contra este tipo <strong>de</strong>certezas. Gerou ódio. Não ódio contra o inimigo comum mas sim uma culturacontra a outra. O exército Alemão Nazi foi implacável na sua marcha em busca<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio total mas, em alguns casos, não foi ele apenas a face <strong>do</strong> terror.O exército Alemão Nazi conquistava e seguia em frente, a caminho dapróxima conquista, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> governos <strong>de</strong> fachada para manter a or<strong>de</strong>m. O me<strong>do</strong>e o terror eram gera<strong>do</strong>s por outrém. Um verda<strong>de</strong>iro choque <strong>de</strong> culturas cujoresulta<strong>do</strong> foi um <strong>do</strong>s maiores <strong>de</strong>rramamentos <strong>de</strong> sangue na história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>civiliza<strong>do</strong>.AbstractEurope, 1939.Germany, un<strong>de</strong>r the influence of the Nazi party, began a confrontationthat shaped the face of the world. Firstly, the neighboring countries of Europe,then the farthest ones and even the African continent felt its force and trembledwith fear.Fear, such a powerful feeling that, in small <strong>do</strong>ses, can hone senses but, inlarge quantities can instill panic, suppress the intellectual capabilities and even<strong>de</strong>stroy all that is held as true in each mind.Europe was a mix of several cultures; even countries were a mix of severalcultures. Poland was one of these countries. In this country, Poles, Jews,Ukrainians and Romani lived together in a frail but lasting peace. When the IIWorld War began, Polish cities were captured, and one after another citizenswere confined to their city in or<strong>de</strong>r to keep the public or<strong>de</strong>r. In this time ofturmoil and uncertainty, one could think that all these cultures, different on theirPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012228


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254foundations but all composed of human beings that respond in the same way tosituations of this nature, would be drawn together, cast asi<strong>de</strong> their differencesand try to <strong>do</strong> what is necessary to ensure the most basic need known to Men,survive.Survival is the most basic instinct of the human race. The fear of notbeing able to survive generated something that went against this certainty. Itgenerated hate. Not towards the common enemy but from one culture againstanother. The Nazi German army was ruthless on its march towards <strong>do</strong>minancebut, in some cases, it was not the sole face of terror. The Nazi German armyconquered and moved on, leaving governments as a front to keep or<strong>de</strong>r. Theterror was instilled by others. A true clash of cultures whose aftermath was oneof the biggest bloodshed in the history of the civilized world.I<strong>de</strong>ologiaPalavras chave: Representação, Discurso, Relacionamento Intercultural,Key words: Representation, Discourse, Intercultural Relations, I<strong>de</strong>ologyPolónia: Amigos ou Inimigos?A Polónia, um país da Europa Central, em 1939 era verda<strong>de</strong>iramente umpaís <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s diferenças culturais. Em parte <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à imigração proveniente<strong>do</strong>s países vizinhos mas também <strong>de</strong> países longínquos, tal como os Romani e acomunida<strong>de</strong> Judia.Os segun<strong>do</strong>s, os Ju<strong>de</strong>us, eram assim <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua religião e nãopor causa <strong>do</strong> seu país. Os primeiros Ju<strong>de</strong>us eram originários da Ju<strong>de</strong>ia, que erauma das <strong>do</strong>ze tribos <strong>de</strong> Israel, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Judah, quarto filho <strong>de</strong> Jacob e229 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254Leah. A disputa acerca da proveniência <strong>do</strong> nome, se era originalmente da tribo ou<strong>do</strong> território, ainda resi<strong>de</strong> 2 .Sen<strong>do</strong> originalmente <strong>do</strong> território a sul <strong>de</strong> Jerusalém, os Ju<strong>de</strong>us emigrarampara a Europa por diversas razões, tanto políticas como monetárias.Devi<strong>do</strong> à religião, a separação entre Polacos e Ju<strong>de</strong>us era evi<strong>de</strong>nte. Mesmoviven<strong>do</strong> em proximida<strong>de</strong> e sen<strong>do</strong> economicamente inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,permaneciam <strong>do</strong>is grupos distintos.Esta separação entre as duas culturas foi sentida <strong>de</strong> forma mais intensanos anos que antece<strong>de</strong>ram a II Guerra Mundial (finais <strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 30 e inícioda década <strong>de</strong> 40) <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao aumento <strong>do</strong>s discursos com ín<strong>do</strong>le anti-semita naPolónia e na Alemanha.Após a I Guerra Mundial, a Alemanha ficou <strong>de</strong>vastada e foi privada <strong>do</strong>seu po<strong>de</strong>r militar e económico. Essa situação precária levou a uma erupção <strong>do</strong>sentimento <strong>de</strong> insatisfação social, uma recessão económica, falta <strong>de</strong> orgulhonacional e a uma procura constante para a causa da situação <strong>de</strong>plorável daAlemanha.No centro <strong>de</strong>sta instabilida<strong>de</strong> política, uma figura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r surgiu <strong>do</strong> meio<strong>do</strong> povo, para guiar o povo: A<strong>do</strong>lf Hitler. De forma gradual mas segura, Hitlerfoi ganhan<strong>do</strong> apoiantes e subin<strong>do</strong> na hierarquia <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Utilizan<strong>do</strong> os i<strong>de</strong>ais<strong>do</strong> Reino (Reich) <strong>de</strong> Willem II, Hitler e o parti<strong>do</strong> iniciaram uma campanhapolítica contra aqueles que consi<strong>de</strong>rava serem a razão para a capitulação daAlemanha.No final da I Guerra Mundial, numa altura em que a Alemanha enfrentavaa <strong>de</strong>struição às mãos <strong>do</strong>s seus inimigos, foi instituí<strong>do</strong> um call of arms a to<strong>do</strong>s osJu<strong>de</strong>us capazes para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a sua pátria. Neste tempo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>,to<strong>do</strong>s os editais provenientes <strong>do</strong> governo referentes à segurança nacional e aoapelo às armas eram obrigatórios mas este foi um <strong>do</strong>s editais mais importantesque os lí<strong>de</strong>res Alemães fizeram.2C f I nf orm aç ão e m E nc y c lop ae d ia Br it ann ic a, ht t p: / / w w w . brit annic a. c om /E Bc he c ke d / t opic / 3 07 14 6/ Ju d a h, ac e d id o e m 12/ 04/ 20 12.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012230


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254Milhares <strong>de</strong> Ju<strong>de</strong>us alistaram-se e reforçaram as fileiras <strong>do</strong> exército alemãopara lutar na <strong>de</strong>fesa da Alemanha. Mesmo com estes reforços, a Alemanha foiincapaz <strong>de</strong> lidar com o po<strong>de</strong>r e a <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong>s seus inimigos e viu-se nanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar a <strong>de</strong>rrota e ren<strong>de</strong>r-se.No final <strong>de</strong>ste confronto, a Alemanha foi forçada a assinar o Armistício,on<strong>de</strong> foi forçada à <strong>de</strong>smilitarização e con<strong>de</strong>nada a pagar in<strong>de</strong>mnizações aosvence<strong>do</strong>res. Esta situação gerou um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> revolta e <strong>de</strong> fúria no povoAlemão, que começou a consi<strong>de</strong>rar os Ju<strong>de</strong>us como a verda<strong>de</strong>ira razão pela quala Alemanha per<strong>de</strong>ra a guerra. Era este o mote <strong>de</strong> vários discursos políticos quereferiam os Ju<strong>de</strong>us como traiçoeiros e estan<strong>do</strong> na realida<strong>de</strong> a trabalhar em favor<strong>do</strong>s Alia<strong>do</strong>s contra a Alemanha, quan<strong>do</strong> ainda partilhavam as trincheiras com oexército Alemão.Imagem 1Várias imagens que abordavam este acto e veiculavam essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> traiçãoforam criadas, sen<strong>do</strong> a <strong>de</strong> 1920 aqui reproduzida (Imagem 1) uma das maisconhecidas entre os posters <strong>de</strong> propaganda Nazi. Representa o exército Alemão,231 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254a lutar pela pátria nas trincheiras, utilizan<strong>do</strong> o seu uniforme e, por cima, fora dastrincheiras mas vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> espaço alemão, envergan<strong>do</strong> roupascaracterísticas da aristocracia, o governo, instiga<strong>do</strong> e apoia<strong>do</strong> pelos Ju<strong>de</strong>us. Estes,train<strong>do</strong> o próprio exército alemão que lutava contra os opressores, assinaram oArmistício e con<strong>de</strong>naram o povo alemão à <strong>de</strong>rrota. Outra imagem alusiva a estaépoca (Imagem 2) mostra um solda<strong>do</strong> Alemão nas trincheiras, com a seuuniforme escuro, enquanto que um Ju<strong>de</strong>u, com um uniforme branco, emoposição clara com o militar Alemão, empunha uma adaga, estan<strong>do</strong> prestes aapunhalar o militar Alemão.Imagem 2O militar Ju<strong>de</strong>u é mostra<strong>do</strong> <strong>de</strong> branco, com uma Estrela <strong>de</strong> David nocapacete. A sua face é completamente diferente <strong>do</strong> militar Alemão; a face <strong>do</strong>Alemão é rígida e transmite concentração ao passo que o rosto <strong>do</strong> Ju<strong>de</strong>u expressa<strong>de</strong>sapego com a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar numa trincheira. De notar que apropaganda Nazi tentava mostrar aqueles que seriam diferentes <strong>de</strong> si e <strong>do</strong> seui<strong>de</strong>al, exageran<strong>do</strong> nas características peculiares. A face <strong>do</strong> Ju<strong>de</strong>u aparenta ser aface <strong>de</strong> um símio, com lábios e nariz gran<strong>de</strong>s e com um uniforme completamentecontrário ao natural.O Ju<strong>de</strong>u é representa<strong>do</strong> com seios femininos, o que po<strong>de</strong> querer englobarto<strong>do</strong>s os Ju<strong>de</strong>us em apenas uma pessoa, assexuada e generalizada segun<strong>do</strong> asi<strong>de</strong>ias pré-concebidas que o Alemão <strong>de</strong>veria ter (algo que abordaremos <strong>de</strong>pois)Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012232


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254acerca <strong>do</strong> povo Ju<strong>de</strong>u. Estes preconceitos semi-revela<strong>do</strong>s, enfatizavam a falta <strong>de</strong><strong>de</strong>coro que o povo ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong>veria ter (e <strong>de</strong>sta forma ser visto), com mãos gordas e<strong>de</strong>formadas e completamente fora da trincheira. De ressalvar que, mesmo fora datrincheira, o Ju<strong>de</strong>u surge <strong>do</strong> la<strong>do</strong> que o Alemão está a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. Este tipo <strong>de</strong>representação da comunida<strong>de</strong> Judaica tinha o objectivo <strong>de</strong> diminuir uma cultura aum conjunto <strong>de</strong> regras e maneirismos que se a<strong>de</strong>quassem à visão que o cria<strong>do</strong>rqueria que o seu público-alvo também partilhasse. Como referi<strong>do</strong> anteriormente,atribuía-se a esta representação um caracter assexua<strong>do</strong>, facilmente apreendi<strong>do</strong>pela população como sen<strong>do</strong> não o homem Ju<strong>de</strong>u mas sim O Ju<strong>de</strong>u, tornan<strong>do</strong>-seassim este tipo <strong>de</strong> representação numa base para a propaganda Alemã Nazicontra os Ju<strong>de</strong>us que estariam contra os princípios <strong>do</strong> Reich.A Alemanha Nazi utilizava este meio como forma <strong>de</strong> criar e apresentaruma imagem <strong>do</strong> povo Ju<strong>de</strong>u, e não só, <strong>de</strong> uma forma mais a<strong>de</strong>quada às suasnecessida<strong>de</strong>s. Criar uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> foi uma tarefa entregue às mais altaspatentes <strong>de</strong>ntro da organização Nazi. Consistia na criação <strong>de</strong> uma representação,reduzin<strong>do</strong> toda uma cultura ao conceito <strong>de</strong> Outro. Como referem Fabian,othering expresses the insight that the other is never simply given, never justfound or encountered, but ma<strong>de</strong> (Fabian 1991: 208)e Hallam and Street,Since 'otherness' is always actively ma<strong>de</strong> rather than given, it emphasisesthe social construction of reality. (Hallam, Street 2000: 249)Isto significa que o Ju<strong>de</strong>u que o parti<strong>do</strong> Nazi tentava dar a conhecer aomun<strong>do</strong> como o verda<strong>de</strong>iro Ju<strong>de</strong>u era apenas uma imagem, uma criação construídaatravés <strong>de</strong> uma junção <strong>de</strong> várias características isoladas, que seriamrepresentativas da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que significaria ser Ju<strong>de</strong>u. Este tipo <strong>de</strong> criação<strong>de</strong>veu-se à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar ambas as raças para criar a raça perfeita.233 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254Quan<strong>do</strong> refiro ambas as raças, é importante notar que a raça Judaica foiuma criação Nazi, ou melhor, uma imagem criada e apresentada pelo parti<strong>do</strong>Nazi e sua propaganda. No entanto a raça Ariana também foi criada e pré-estabelecida pela propaganda Nazi.Foram ambas criadas pela mesma organização, mas utilizan<strong>do</strong> méto<strong>do</strong>scompletamente distintos:The i<strong>de</strong>a of racialization has been <strong>de</strong>ployed to illustrate the argument thatrace is a social construct and not a universal or essential category of eitherbiology or culture. Races <strong>do</strong> not exist outsi<strong>de</strong> of representation but areformed in and by it in a process of social and political struggle. (Barker2003: 23).A Racialização referida por Barker <strong>de</strong>fine que as raças não existem paraalém da construção que lhes foi conferida e não constituem um conceitouniversal, visto que to<strong>do</strong>s criamos este tipo <strong>de</strong> construções a um nível pessoal, <strong>de</strong>forma a conferir senti<strong>do</strong> a algo que para nós será estranho ou fora da nossaesfera <strong>de</strong> naturalida<strong>de</strong>.Desta forma, a racialização apenas existe <strong>de</strong>ntro da sua própriarepresentação, sen<strong>do</strong> uma realida<strong>de</strong> criada para atribuir senti<strong>do</strong> a algo estranhoou mesmo criada mediante uma necessida<strong>de</strong>, seja ela económica, i<strong>de</strong>ológica oucom o intuito <strong>de</strong> criar opressão.O facto <strong>de</strong> as raças existirem ou não num contexto biológico é irrelevanteneste caso, visto que o factor primordial neste contexto é a relevância e arepresentação atribuídas para se enquadrar num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ambiente social oueconómico.A representação <strong>do</strong> povo Ju<strong>de</strong>u criada pela Alemanha Nazi tinha oobjectivo <strong>de</strong> o diminuir culturalmente e tornar alvo <strong>de</strong> ódio e escárnio por meioda construção <strong>de</strong> uma imagem <strong>de</strong>moníaca e velhaca daquela população, crian<strong>do</strong>um sentimento <strong>de</strong> retribuição divina <strong>de</strong> justiça nas mentes e corações daquelesque não eram Ju<strong>de</strong>us e, mais importante, na população Alemã. Na realida<strong>de</strong>, oPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012234


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254conceito <strong>de</strong> DEUS foi utiliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma regular em discursos e actos leva<strong>do</strong>s acabo pelo Parti<strong>do</strong> Nazi. O conceito divino <strong>de</strong> Deus foi usa<strong>do</strong> pelos lí<strong>de</strong>res Nazis<strong>de</strong> forma a apelar a uma Alemanha maioritariamente Cristã e assim atrair umgran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas e diferentes massas <strong>de</strong> diferentes estratos sociais.Desta forma, o Parti<strong>do</strong> Nazi seria o elemento agrega<strong>do</strong>r <strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong> e ospróprios membros seriam consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s mensageiros <strong>de</strong> Deus.No congresso <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Nazi <strong>de</strong> Nuremberga em 1934, Hitler dirige-se àpopulação dizen<strong>do</strong> que foi Deus quem criou este Reino (Reich)! 3 , como se po<strong>de</strong> ver nofilme propagandista <strong>de</strong> Leni Riefenstahl, Triumph <strong>de</strong>s Willens, <strong>de</strong> 1935.Nesse filme/<strong>do</strong>cumentário po<strong>de</strong>mos assistir ao congresso on<strong>de</strong> Ru<strong>do</strong>lphHess, na sua intervenção inicial, se dirige ao Führer: Tu és a Alemanha, quan<strong>do</strong> ages,a nação age, quan<strong>do</strong> julgas, o povo julga! 4 .Este tipo <strong>de</strong> comentário tem o intuito <strong>de</strong> tornar o Führer uma imagem <strong>de</strong>referência para toda a Alemanha, alguém que to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem seguir e reverenciar.A utilização <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is termos comparativos em separa<strong>do</strong> – Alemanha,povo – não tem o objectivo <strong>de</strong> atribuir uma importância reduzida à população,mas sim atribuir uma responsabilida<strong>de</strong> e um direito que até à data a população daAlemanha não tinha, ou não reconhecia que tinha, face ao passa<strong>do</strong> conturba<strong>do</strong><strong>do</strong> final da I Guerra Mundial. Estes termos agir e julgar também são importantes<strong>de</strong> analisar. Hess refere que quan<strong>do</strong> o lí<strong>de</strong>r age, toda a nação age, como um sóelemento; os seus lí<strong>de</strong>res funcionarão como um, na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interessesnacionais e a Alemanha segui-los-à; quan<strong>do</strong> julga, o povo partilhará <strong>de</strong>ssejulgamento. Ou melhor, o povo <strong>de</strong>verá partilhar <strong>de</strong>ste julgamento <strong>do</strong> seu lí<strong>de</strong>r.Depois da imagem criada em torno <strong>de</strong> A<strong>do</strong>lf Hitler, apresenta<strong>do</strong> como o lí<strong>de</strong>rque veio <strong>do</strong> seio da população, o homem <strong>do</strong> povo, simples mas com um i<strong>de</strong>al,seria fácil para a população reconhecer naquele homem a responsabilida<strong>de</strong> e odireito inerente <strong>de</strong> agir e julgar sem receios. Porque ele seria um homem <strong>do</strong> povo,3 T riu m ph <strong>de</strong> s Wil l ens ( 1935) , re aliz aç ão d e Le ni R ie f e nst a hl ( nos sa t rad u ç ão) .C onsu lt a r: ht t p: / / w ww . y ou t u be. c om / w at c h?v= G H s2c oAz LJ 84 T riu m ph <strong>de</strong> s Wil l e n s ( 1935) , re aliz aç ão d e Le ni R ie f e nst a hl ( nos sa t rad u ç ão) .C onsu lt a r: ht t p: / / w ww . y ou t u be. c om / w at c h?v= G H s2c oAz LJ 8235 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254que só quer restaurar a Alemanha no seu lugar por direito e <strong>de</strong>volver o po<strong>de</strong>r aopovo que sofre por causa da traição <strong>de</strong> alguns.Após esta cena, Leni leva-nos a um <strong>de</strong>scampa<strong>do</strong> cheio com 52.000trabalha<strong>do</strong>res, em fila. To<strong>do</strong>s os esta<strong>do</strong>s que antes estavam dividi<strong>do</strong>s sãorepresenta<strong>do</strong>s por um trabalha<strong>do</strong>r, agora unifica<strong>do</strong>s <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> uma ban<strong>de</strong>ira e<strong>de</strong> um só lí<strong>de</strong>r, sob o controlo <strong>do</strong> Führer.Esta imagem foi utilizada <strong>de</strong> forma ardilosa, para passar a imagem <strong>de</strong> umanação, a nação que age e que está unida, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s para to<strong>do</strong>s.Este tipo <strong>de</strong> representações era comum nos filmes <strong>de</strong> propaganda Nazi.Eram habitualmente acompanhadas <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong> forma a ajudar a população aassimilar a i<strong>de</strong>ia correcta e com o objectivo <strong>de</strong> criar um elo relacional com essaspessoas, para que estas voluntariamente se aliassem ao conceito <strong>do</strong> Reich. Oparti<strong>do</strong> Nazi tentava veicular uma imagem <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a seguir para a população,<strong>de</strong> forma a obter uma reacção positiva na forma da imitação. Na teoria, se umindividuo é sujeito a um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> comportamento que lhe é apresenta<strong>do</strong>numa forma e com que ele facilmente se possa relacionar, esse mesmo individuo,por imitação ou colagem, irá produzir <strong>de</strong> forma mas efectiva o comportamentoespera<strong>do</strong> 5 .Não só os Ju<strong>de</strong>us eram alvo <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> representação mas também aprópria raça Ariana é uma construção, uma criação, utilizan<strong>do</strong> uma basecompletamente diferente na sua representação. Enquanto que os Ju<strong>de</strong>us<strong>de</strong>veriam ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s sem valor e os únicos culpa<strong>do</strong>s pela <strong>de</strong>rrota daAlemanha na I Guerra Mundial, os Arianos <strong>de</strong>veriam ser representa<strong>do</strong>s comopo<strong>de</strong>rosos e a raça suprema, sen<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s que se associavam a eles estariam aseguir o caminho certo e divino.A representação imagética da raça Ariana como po<strong>de</strong>rosa não era apenasuma forma <strong>de</strong> autovalorizarão ou <strong>de</strong> compensar batalhas perdidas,5 P ara m ai s i nf orm aç ão a c e rc a d e I m it aç ão ve r: Band u r a, A . ( 196 2) , S o cialL e arning t h ro ugh Im it at io n . Linc o l n, N E : Unive rs it y of N e bra ska P re ss.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012236


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254power is not simply the glue that holds the social together, or the coerciveforce which subordinates one set of people to another, though it certainly isthis. (Barker 2003: 9)Para o parti<strong>do</strong> Nazi, a simbolização e a ostentação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r eram a formaperfeita <strong>de</strong> atingir os seus objectivos <strong>de</strong> glória e tornar os <strong>de</strong>mais seus servos,quer pela aliança política quer pela subjugação militar.O processo Nazi <strong>de</strong> representação vai <strong>de</strong> encontro àquilo que éconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> actualmente o trabalho i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> representação que é:to translate social and cultural heterogeneity into homogenous unity and toemphasize boundaries which map zones of inclusion and exclusion.(Hallam, Street 2000: 6)Pelo contrário, os Nazis usaram essas diferenças para criar uma divisãoainda maior, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a que ninguém conseguisse encontrar pontos <strong>de</strong>convergência. Ao torná-las públicas da forma que eram apresentadas, os lí<strong>de</strong>resNazis reduziram uma cultura inteira a simples situacionais, <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senti<strong>do</strong> por si só, sem regras e <strong>de</strong>scontextualiza<strong>do</strong>s, o que levou à criação <strong>de</strong> umaimagem global baseada em actos aleatórios completamente <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>contexto social.Esta representação criada pelos Nazis e inserida no contexto político esocial começou a mudar comportamentos e atitu<strong>de</strong>s nos países vizinhos como aPolónia.Durante o perío<strong>do</strong> que antece<strong>de</strong>u a guerra, a situação política e económica daPolónia era muito precária. O regime Sanacja 6 levou o país perto da ruína com as6 S anac j a é a alc u nh a d e u m bloc o po lít ic o lid e r ad o por M arsha l Jo se fP ilsu d s ki, q u e d e t in ha o pod e r na P ol óni a e nt re 19 26 e 19 39. O nom e e st á li g ad o a oslog an d e “ lim pe z a m ora l” d a vi d a pú blic a n o paí s. Log o a pós a m ort e d e P ilsu d s ki e m19 35, o nac ion al ism o e o a nt i - se m it i sm o no S an a cj a f oram f ort ale c id os. D u r ant e aoc u paç ão N az i, o s c írc u los ant e rio rm e nt e l ig ad o s ao S an acj a d e se m pe nha ram u m p ape ld e lid e ranç a na o rg an iz aç ã o m i lit a r c la nd e st in a m ais f o rt e , o A rm ia K r aj o w a ( E x é rc it onac io na l) .237 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254suas visões políticas e a sua falta <strong>de</strong> acção ante os problemas pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>scompatriotas.O país estava sem orientação efectiva e as visões políticas em relação aosJu<strong>de</strong>us que viviam no país levaram ao aumento <strong>do</strong> comportamento anti-semita, oque tornou a Polónia no segun<strong>do</strong> país on<strong>de</strong> o anti-semitismo mais se fazia sentir,apenas ultrapassa<strong>do</strong> pela Alemanha.Relatos daquele perío<strong>do</strong> referem que - <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à negligência em relação aosproblemas <strong>de</strong> base <strong>do</strong> país e à posição política mantida pelos governantes faceaos Ju<strong>de</strong>us - a população culpava os Ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> toda a situação e foi levada a crerque existia um “po<strong>de</strong>r internacional Ju<strong>de</strong>u que tinha como objectivo controlar omun<strong>do</strong> inteiro.” 7Este po<strong>de</strong>r internacional é também referi<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma mais evi<strong>de</strong>nte anos<strong>de</strong>pois, num filme <strong>de</strong> propaganda chama<strong>do</strong> Der Ewige Ju<strong>de</strong> (O Ju<strong>de</strong>u Eterno) <strong>de</strong>1940, on<strong>de</strong> o parti<strong>do</strong> Nazi tentou, <strong>de</strong> forma mais gráfica e com disseminaçãomaior, passar a imagem <strong>de</strong> um conclave Judaico internacional, que teria oobjectivo <strong>de</strong> tomar conta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ocupan<strong>do</strong> as posições mais importantes <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r, usan<strong>do</strong> para isso o que era chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> “dinheiro sujo” 8.Num país on<strong>de</strong> <strong>do</strong>is terços asseguravam a sua subsistência pelaagricultura, negligenciar esta fonte <strong>de</strong> rendimento era con<strong>de</strong>nar o país. Ao invés<strong>de</strong> se concentrar na melhoria e no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sta área industrial, ogoverno Polaco criou um programa chama<strong>do</strong> En<strong>de</strong>ko-Sanacja, que visava retirarpela força <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos provinciais da terra as bancas no merca<strong>do</strong> que pertenciamaos Ju<strong>de</strong>us. Este e outros programas subsequentes em várias províncias por todaa Polónia faziam parte <strong>de</strong> um plano para afastar as atenções <strong>do</strong>s problemas reaise gerar uma onda <strong>de</strong> xenofobia e ódio social 9 .Olhan<strong>do</strong> para a <strong>de</strong>mografia na Polónia em 1939, vemos que era uma paíscom 35.100.00 habitantes, <strong>do</strong>s quais, 23.900.00 eram Polacos nativos, 3.300.007 D e r E w ige Ju<strong>de</strong> ( 1940) , re al iz aç ã o d e F rit z H ipple r, no ssa t r ad u ç ão. C onsu lt a r:ht t p: / / ww w . y ou t u be . c om/ w at ch?v= d k 3f Y d JC arY & s ki pc on t r int e r= 18 D e r E w ige Ju<strong>de</strong> ( 1940) , re al iz aç ã o d e F rit z H ipple r, no ssa t r ad u ç ão. C onsu lt a r:ht t p: / / ww w . y ou t u be . c om/ w at ch?v= d k 3f Y d JC arY & s ki pc ont r int e r= 19 R IN GE LB LUM , E m m an u el (1992 ), P o lish -J e w i s h r e lat ions dur i ng t hes e c ond w or ld w ar . E va n s ton Illin ois : N o rt h west e rn Un i v ersi t y Pr ess.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012238


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254eram Ju<strong>de</strong>us, 800.00 eram Alemães e 7.100.00 eram <strong>de</strong> outras origens,nomeadamente da Bielorrússia e Ucrânia.Esta diferenciação entre Polacos e Ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong>ve ser vista apenas na divisãoentre naturais da Polónia ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> imigrantes da Ju<strong>de</strong>ia.Devemos ter em atenção que havia inúmeros naturais Polacos que eramJu<strong>de</strong>us a nível religioso.Esta divisão é clara a vários níveis, mas é ainda mais evi<strong>de</strong>nte no círculoestudantil. Eva Galler, uma sobrevivente da II Guerra Mundial, conta a suaexperiência como estudante nos anos que antece<strong>de</strong>ram este conflito:We weren't separated by the line. But socially everybody stuck to their own.The Ukrainians stuck to their own, the Poles to their own, Jews to theirown. Jewsweren't accepted. We were in the school, we were friends. But outsi<strong>de</strong> theschool nobody associated. 10Deste excerto <strong>de</strong> uma entrevista dada a Plater Robinson, um especialistada Educação <strong>do</strong> Holocausto <strong>do</strong> Southern Institute for Education and Research<strong>do</strong> Louisiana, EUA, po<strong>de</strong>mos assumir que, mesmo não existin<strong>do</strong> uma realdivisória neste momento entre as duas culturas, a separação era evi<strong>de</strong>nte e bemclara:I <strong>do</strong>n't know why. It was always the anti-Semitism and the Jews feltinferior. We were always inferior and we were very lucky and happy thatsomebody wanted to associate in the school. It was like this. I <strong>do</strong>n't know,we accepted it. I had very good friends in the school, and in the school Iused to help them or we used to...somehow, somehow, the Jewish stu<strong>de</strong>ntswere always the brighter. I <strong>do</strong>n't know why. And we helped friends and10ht t p: / / hist ory 1 90 0s. a bou t . c om / g i/ o. ht m ?z i= 1/ X J& z Ti= 1& sd n = hist o ry 1 90 0s& c d n= e d u c at ion& t m= 19& f = 00& t t = 14& bt = 1& bt s= 1& zu = ht t p%3A/ / w w w . sou t he rnin st it u t e . inf o/ holoc au st _ e d u c at ion / e va_ g al le r. ht m l , ac e d id o e m 1 7/ 11/ 2 01 1239 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254everything and they were happy in school, but outsi<strong>de</strong> the school they didn'tmix with us. 11A situação estava a agravar-se com o tempo e, em 1931, o sistemaeducacional tornou-se extremamente perigoso para os estudantes Ju<strong>de</strong>us. Noensino superior, as universida<strong>de</strong>s estavam a tornar-se gradualmente em bastiões<strong>de</strong> reaccionismo nacionalista (Ringelblum 1992: 16) e palco para violentas revoltas.Medidas <strong>de</strong> exclusão foram tomadas para assegurar que a separação entre osnaturais da Polónia e os Ju<strong>de</strong>us se iria tornar real. Tal como Eva Galler refere nasua entrevista, esta linha que separava as duas culturas era imaginária, no entanto,analisan<strong>do</strong> a situação em 1931, conseguimos <strong>de</strong>scortinar um crescen<strong>do</strong> da divisãona esfera estudantil.A divisão das salas em la<strong>do</strong> Ariano e la<strong>do</strong> Ju<strong>de</strong>u em 1937, aimplementação <strong>de</strong> numerus clausus, ou melhor, numerus nulus, <strong>de</strong> forma a proibir aosestudantes Ju<strong>de</strong>us o acesso ao ensino superior, a implementação constante <strong>de</strong>programas contra os Ju<strong>de</strong>us e actos violentos em várias cida<strong>de</strong>s são apenasexemplos <strong>de</strong> manifestações da influência Ariana na cultura na Polónia. Des<strong>de</strong>1936 em diante, o slogan Nazi <strong>de</strong> Arianização, ou melhor, a implementação <strong>do</strong>s<strong>de</strong>cretos raciais <strong>de</strong> Nuremberga na Polónia, ganhou muitos segui<strong>do</strong>res,especialmente nas profissões liberais, da<strong>do</strong> que muitos <strong>do</strong>s programas eramcontra a economia judaica (que muitos consi<strong>de</strong>ravam uma economia paralela). Porexemplo, o direito social <strong>de</strong> um Ju<strong>de</strong>u possuir terras foi revoga<strong>do</strong>.Muitas associações assinaram <strong>de</strong>cretos que proibiam Ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> fazer parte<strong>de</strong>las e, sob a influência <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Nacionalista, em 1939, uma série <strong>de</strong> leisforam propostas para privar os Ju<strong>de</strong>us Polacos da sua cidadania.Este tipo <strong>de</strong> acções foi toma<strong>do</strong> em muitos <strong>do</strong>s casos por me<strong>do</strong>. Me<strong>do</strong> nãosó da Alemanha Nazi mas também <strong>do</strong> la<strong>do</strong> soviético, que sempre foi umapresença <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que se <strong>de</strong>veria ter em atenção. Entre estes <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s, aPolónia estava ameaçada por ambos. De facto, os governantes Polacos teriam11ht t p: //hist ory 1 90 0s. a bou t . c om / g i/ o. ht m ?z i= 1/ X J& z Ti= 1& sd n = hist o ry 1 90 0s& c d n= e d u c at ion& t m= 19& f = 00& t t = 14& bt = 1& bt s= 1& zu = ht t p%3A/ / w w w . sou t he rnin st it u t e . inf o/holoc au st _e du c at ion /e va_g al le r. ht m l, ac e di<strong>do</strong> e m 1 7/11/2 01 1.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012240


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254mais receio <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r Soviético <strong>do</strong> que <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r Nazi. Esta po<strong>de</strong> ser uma dasrazões pela qual o governo Polaco sentiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer ressoar as visõesNazis na sua população e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então em diante, aceitar e aplicar o programa <strong>de</strong>Arianização como uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural.Isto não reflectia as visões políticas <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, mas certamente era um meio<strong>de</strong> assegurar que a Polónia iria manter-se segura no caso <strong>de</strong> uma invasãoSoviética.Este tipo <strong>de</strong> comportamento político também po<strong>de</strong> ser visto pelo prismada estabilida<strong>de</strong>. Estan<strong>do</strong> a Polónia “ameaçada” em duas frentes muito maispo<strong>de</strong>rosas e numerosas, arriscar que uma outra possível frente se mantivesse emactivida<strong>de</strong>, era um risco que não po<strong>de</strong>ria correr. Ainda ressoan<strong>do</strong> nos seusouvi<strong>do</strong>s os discursos Nazis acerca da suposta traição levada a cabo pelos Ju<strong>de</strong>usna I Guerra Mundial, po<strong>de</strong>mos pensar que uma das razões para ocomportamento político po<strong>de</strong>ria ser mesmo essa. Dessa forma,po<strong>de</strong>ríamosentão consi<strong>de</strong>rar que, para impedir que algo como isso voltasse a acontecer, ogoverno polaco procurou impor uma hegemonia i<strong>de</strong>ológica, on<strong>de</strong> uma facçãolí<strong>de</strong>r exerce pressão sobre outra, quer pelo uso da força, quer pelo consentimentoda maioria. Ora essa maioria na Polónia era exactamente natural da própriaPolónia, constituída por várias classes sociais e influências religiosas.Como refere Gramsci:The normal exercise of hegemony on the classical terrain of theparliamentary regime is characterized by the combination of force andconsent, which balance each other reciprocally without force pre<strong>do</strong>minatingexcessively over consent. In<strong>de</strong>ed, the attempt is always to ensure that forcewould appear to be based on the consent of the majority expressed by theso-called organs of public opinion – newspapers and associations.(Gramsci, 1971: 80)Pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> a guerra ter início, esse sentimento anti-Semita veicula<strong>do</strong>pelo governo Polaco <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ressoar no cerne da população. Ringelblum utiliza241 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254uma expressão muito curiosa mas que mostra a parcialida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s relatos da época.Claro que, ten<strong>do</strong> agora uma visão bem mais educada e elucidada <strong>do</strong>sacontecimentos, sentimos uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar parti<strong>do</strong> acerca <strong>de</strong>stemomento da vida europeia. Ringelblum utiliza a expressão “(the Polish community)came to its senses”, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> então a parcialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma pessoa que está a vivereste tempo <strong>de</strong> incerteza e <strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos traduzir esta expressão, <strong>de</strong>uma forma mais directa, por “ganharam juízo” mas, neste caso, <strong>de</strong>vemosconsi<strong>de</strong>rar que o senti<strong>do</strong> da<strong>do</strong> por Ringelblum quan<strong>do</strong> se refere a esta mudançapor parte da população Polaca seria o reconhecimento <strong>de</strong> que a atitu<strong>de</strong> veiculadapelo governo Polaco era um reflexo das visões Nazi, mais especificamente <strong>de</strong>Hitler.To<strong>do</strong>s aqueles programas cria<strong>do</strong>s pelo governo Polaco contra os Ju<strong>de</strong>us eas suas repercussões na população Judia e Polaca, com especial atenção àimprensa anti-Semita, acalmaram a incitação contra os Ju<strong>de</strong>us e o ambientetornou-se mais leve, com os ataques contra os Ju<strong>de</strong>us a ficarem reduzi<strong>do</strong>s a nada,surgin<strong>do</strong> inclusive um sentimento <strong>de</strong> cooperação entre a população e <strong>de</strong>entendimento por parte <strong>do</strong> próprio governo:Anti-Semitism disappeared as if at the touch of a magic wand. Even themost ar<strong>de</strong>nt anti-Semites grasped that at this time Jews and Poles had acommon enemy and that the Jews were excellent allies who would <strong>do</strong> allthey possibly could to bring <strong>de</strong>struction on the Jews’ greatest enemies. Theeasing of tension could be felt at every step: in the streets, trams and officesa spirit of harmony and cooperation prevailed everywhere. The Jew, whobefore the war felt himself to be a second – or third- class citizen, a pariahto be beaten, kicked, and insulted at every turn, eliminated from all officeor public position, etc., again became a citizen with equal rights, asked toren<strong>de</strong>r help to the common fatherland (Ringelblum 1992: 24-25)Um clima <strong>de</strong> cooperação fazia-se sentir pelo país, fazen<strong>do</strong> crer que oobjectivo <strong>do</strong> povo Polaco centrava-se na resolução <strong>do</strong> conflito que pairava sobrePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012242


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254o país.De facto, a ameaça Nazi tornava-se cada vez mais presente nas vidas dapopulação, o que leva a crer que esta mudança <strong>de</strong> comportamento <strong>de</strong>ver-se-ia aoreconhecimento <strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> que ultrapassava qualquer divergênciacultural. Tratar-se-ia <strong>de</strong> uma questão <strong>de</strong> sobrevivência. Nos tempos que seseguiram à invasão Nazi, quer Polacos, quer Ju<strong>de</strong>us trabalharam incessantementepara superar as adversida<strong>de</strong>s e sobreviver aos ataques e incursões. On<strong>de</strong> antes osJu<strong>de</strong>us estavam proibi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> entrar, as portas agora abriam-se; on<strong>de</strong> estavamproibi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> agir, os pedi<strong>do</strong>s não paravam <strong>de</strong> chegar. Mais <strong>do</strong> que a questãocultural, ou neste caso, racial, os trabalhos eram feitos por quem tinha realcapacida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da sua religião, raça ou estrato social. Cristãos eJu<strong>de</strong>us, jovens, que antes tinham proclama<strong>do</strong> ódio entre eles, trabalhavam agoraem conjunto para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a pátria comum, contra um inimigo comum. Como érelata<strong>do</strong> por Ringelblum:The common danger, common toil and labour of the Jewish and the Polishpopulation amidst the rain of projectiles, the reverberation of the explodingbombs and the bursts of shrapnel, united the tenants of each block in theirfight against the common enemy, brought the two people closer together andbridged the gulf that had been created by the common enemy.(Ringelblum 1992: 27)No entanto, e como a história é feita <strong>de</strong> memórias <strong>de</strong> várias experiências,enquanto existia esta cooperação, noutros locais <strong>do</strong> país também existia ocontrário, numa altura em que os Nazis já levavam a cabo a sua incursãoterrestre. Portanto, esse sentimento <strong>de</strong> cooperação que ainda existiria em algunslocais e centros, não se fazia sentir em to<strong>do</strong> o território. Ainda na entrevista dadapor Eva Galler, quan<strong>do</strong> Plater Robinson a questiona sobre a separação entre oscolegas <strong>de</strong> escola e qual o grau <strong>de</strong> separação, Eva Galler respon<strong>de</strong>:243 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254Complete separation. Complete separation. Even my, I had one brotherwho had a real good Ukrainian friend and we had a Ukrainian teacherwho came in because ol<strong>de</strong>r brothers they didn't go away to school to anothercity so my father took a private tutor, and he lived in our street. He was anunemployed Ukrainian teacher, and he taught my brothers. And came intoour house, and was like a friend. My mother fed him, and the other brotherhad Ukrainian friend because he learned the trait, he wanted to be a tailor,he learned tailoring. That Ukrainian boy worked together with him, andthey became very good friends, but the minute the Germans came in, theyturned to enemies. One even, that teacher, slapped my mother on the street.Because there was a <strong>de</strong>cree that Jews couldn't walk on the si<strong>de</strong>walk. Onlythe mud. And my mother forgot, and went on the si<strong>de</strong>walk. And thatteacher passed by, and even though my mother was so much ol<strong>de</strong>r than him,he struck my mother. And mother came in and cried so much. She said,she wouldn't be so much insulted in a German would <strong>do</strong> to her, or astranger, but a person whom she served food and fed and came in to ourhouse, and he beat her. 12Este é apenas um <strong>do</strong>s muitos relatos da influência Nazi na vida e mentedas populações que conquistaram no <strong>de</strong>curso da sua marcha <strong>de</strong> terror. Claro queexistem também relatos <strong>de</strong> polacos e <strong>de</strong> outras nacionalida<strong>de</strong>s que contrariaraméditos, regras, imposições e ameaças, arriscan<strong>do</strong> a sua própria vida para auxiliaros <strong>de</strong>mais. Casos como o <strong>de</strong> Anne Frank, na Holanda, que foi acolhida com a suafamília num anexo, são <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s.Este tipo <strong>de</strong> comportamento vin<strong>do</strong> das massas após a invasão Nazi <strong>de</strong>ve-se a várias razões. O me<strong>do</strong> é uma <strong>de</strong>las. O me<strong>do</strong> foi uma das armas maispo<strong>de</strong>rosas ao serviço <strong>do</strong> exército Nazi durante a sua existência. Ao chegar a umacida<strong>de</strong> ou al<strong>de</strong>ia, o exército Nazi instaurava um clima <strong>de</strong> repressão e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mpautada pelo me<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s eram trata<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma igual nos primeiros tempos12ht t p: / / hist ory 1 90 0s. a bou t . c om / g i/ o. ht m ?z i= 1/ X J& z Ti= 1& sd n = hi st o ry 1 90 0s& c d n= e d u c at ion& t m= 19& f = 00& t t = 14& bt = 1& bt s= 1& zu = ht t p%3A/ / w w w . sou t he rnin st it u t e . inf o/holoc au st _e du c at ion /e va_g al le r. ht m l, ac e di<strong>do</strong> e m 1 7/11/2 01 1.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012244


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254mas <strong>de</strong>pois rapidamente se fazia sentir a certeza <strong>de</strong> quem eram os verda<strong>de</strong>irosalvos: a população Judia.O processo <strong>de</strong> conquista era simples. Durante a invasão, instaurava-se ome<strong>do</strong>; <strong>de</strong>pois, para mitigar esse me<strong>do</strong>, governos sombra eram cria<strong>do</strong>s compessoas conhecidas da população mas que não exerciam nenhum po<strong>de</strong>r real;<strong>de</strong>pois chegavam as indicações para melhor viver em comunida<strong>de</strong>, uma“educação <strong>do</strong>s povos incultos” por parte <strong>de</strong> uma cultura que se apresentavacomo avançada e educada. Finalmente, o pináculo da influência Nazi, que eracriar a ilusão <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia perfeita, <strong>de</strong> forma que os povos invadi<strong>do</strong>stomassem como suas as <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> governo Nazi. O exército e o governo Nazinão tinham <strong>de</strong> levar a cabo acções segregativas junto da população porque,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> (re-)educar a cultura dita inculta – inculta na óptica <strong>do</strong>s interessesNazis, visto que a forma <strong>de</strong> ver e viver <strong>de</strong>ssas populações não se a<strong>de</strong>quaria aosreais intentos das suas necessida<strong>de</strong>s como cultura “superior” - elas mesmas iriamtomar as <strong>de</strong>cisões que o governo queria, mas consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-as como suas.Isto dava um falso sentimento <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> cognitiva, visto que essapopulação acreditava que a <strong>de</strong>liberação era sua e somente sua, saída da suavonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> o fazer.E <strong>de</strong> que forma conseguiu o governo Nazi este equilíbrio entre po<strong>de</strong>refectivo e ilusão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nos territórios subjuga<strong>do</strong>s? Através daquilo que foichama<strong>do</strong> <strong>de</strong> “máquina propagandista”.No seio da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Nazi está este meio <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> informaçãointerno e externo que era a máquina propagandista. Interno, porque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oinicio que este meio <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massas teve o duplo objectivo <strong>de</strong>veicular para o povo Alemão a i<strong>de</strong>ologia Nazi. Externo, da<strong>do</strong> que o outroobjectivo era educar as massas “incultas” <strong>do</strong>s países subjuga<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> forma ainseri-los no contexto Nazi.Este conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia referi<strong>do</strong> várias vezes durante este texto é umconceito que foi alvo <strong>de</strong> evoluções e mutações no <strong>de</strong>curso da história mundial.As visões Nazi fazem parte <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia, as acções tomadasenquadram-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia vigente. Mas, o que é i<strong>de</strong>ologia?245 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254A i<strong>de</strong>ologia po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser entendida a nível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias constituintes,práticas e significa<strong>do</strong>s atribuí<strong>do</strong>s. Atribuí<strong>do</strong>s porque, mesmo que estejam arepresentar verda<strong>de</strong>s universais, não passam <strong>de</strong> indicações <strong>de</strong> orientação quesustentam grupos sociais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A i<strong>de</strong>ologia é a conceptualização <strong>de</strong>experiências vividas e também a matéria unificante <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias organizadassistematicamente, que exercem um papel <strong>de</strong> união entre elementos sociais 13 .Este conceito foi utiliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma eficiente nos seus intentos peloslí<strong>de</strong>res Nazis, visto que criava a situação perfeita para atingir os seus objectivos.Como Barker refere, recordan<strong>do</strong> Poulantzas (1976), a i<strong>de</strong>ologia tem umafunção que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “separação e união”, em que a i<strong>de</strong>ologia disfarça a“real” fundação da produção <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>slocan<strong>do</strong> o ênfasepensamento para a troca. Isto quer dizer que, neste caso, a i<strong>de</strong>ologia foca-se maisnuma óptica <strong>de</strong> transmissão da informação, sobre uma suposta realida<strong>de</strong>, e nãotanto no pensamento crítico acerca da realida<strong>de</strong> envolvente. Deixa a realida<strong>de</strong>aprendida num segun<strong>do</strong> plano e releva a simples recepção e transmissão <strong>de</strong>conhecimento, sem a tentativa <strong>de</strong> individualizar por parte <strong>do</strong> receptor ainformação recebida e assimilada nas suas estruturas <strong>de</strong> pensamento.No entanto, alguns estudiosos apresentam algumas em relação a estepensamento, nomeadamente acerca da funcionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ologia sem ainfluência <strong>de</strong> alguém, ou seja, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que i<strong>de</strong>ologia é uma ferramenta<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> agente e que trabalha na sombra, sem influência da pessoa. Logo,se consi<strong>de</strong>rarmos uma socieda<strong>de</strong> puramente i<strong>de</strong>ológica, on<strong>de</strong> a mesma i<strong>de</strong>ologiaé partilhada, como po<strong>de</strong>riam surgir pensamentos não-i<strong>de</strong>ológicos?Nessa linha <strong>de</strong> pensamento, remetemo-nos para Gramsci e a suahegemonia i<strong>de</strong>ológica, referida anteriormente.Levan<strong>do</strong> estas consi<strong>de</strong>rações para a acção Nazi sobre os países invadi<strong>do</strong>s,temos que, para estabelecer a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> no seio <strong>do</strong>s países invadi<strong>do</strong>s, ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural natural <strong>de</strong>veria ser reestruturada. Então, por meio da força, oexército Nazi <strong>de</strong>struía os espíritos <strong>do</strong>s indivíduos, levan<strong>do</strong>-os a crer que tu<strong>do</strong><strong>do</strong>13 BAR K E R , C hris ( 20 12 ) , C ul t ural S t udie s – T h e o ry an d P ract ice , 4t h E dit ion .Lond on: S AG E P u bl ic at ion s, p 67.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012246


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254estava perdi<strong>do</strong>, até ao ponto em que aceitariam qualquer coisa para sobreviver.Depois, entrava em jogo a propaganda Nazi que, através <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong>comunicação habituais e alguns outros rudimentares, levava uma nova visão, umanova i<strong>de</strong>ologia a esses povos que, mediante a situação a que estavam sujeitos, aaceitariam como sua, visto que a máquina propagandista estava <strong>de</strong> tal formaconstruída, para apresentar os fundamentos, as “provas” das suas acusações.Numa altura em que pouco restava, a promessa <strong>de</strong> educar as “massasincultas” era algo que os Nazis <strong>de</strong>sejavam, pois isso iria tornar os seus alvos eminstrumentos nas suas mãos, <strong>de</strong> forma inconspícua. Logo, a acção era clara:<strong>de</strong>struir para construir.Dos vários meios que a propaganda Nazi tinha ao seu dispor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oséditos até à cinematografia, vou aqui apenas utilizar a segunda como objecto <strong>de</strong>reflexão.Nos anos seguintes ao início das invasões da Polonia, um <strong>do</strong>s inúmeros<strong>de</strong>cretos Nazis foi o <strong>de</strong> proibir a entrada <strong>de</strong> Ju<strong>de</strong>us nas salas <strong>de</strong> cinema. Uma artepara os Nazis consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong> pessoas eruditas, para as massas cultas. O filmepropagandista <strong>de</strong> mais sucesso foi “Jud Süss”, no entanto, para este efeito, ireiutilizar outro filme, “Der Ewige Ju<strong>de</strong>” (O Ju<strong>de</strong>u Eterno), dada a sua natureza<strong>do</strong>cumental.Este filme relata a “verda<strong>de</strong>” acerca <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us. Filma<strong>do</strong> no gueto <strong>de</strong>Lodz, na Pólonia, em finais <strong>de</strong> 1939, trata-se <strong>de</strong> uma montagem <strong>de</strong> várias cenasfilmadas durante as invasões, <strong>de</strong> forma a mostrar a “verda<strong>de</strong>ira” face <strong>de</strong>ste Ju<strong>de</strong>u,que tem si<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o folclore medieval como o “wan<strong>de</strong>ring Jew” (oJu<strong>de</strong>u errante).O filme começa por <strong>de</strong>finir à partida que os Ju<strong>de</strong>us não são civiliza<strong>do</strong>s.Apenas os que vivem na Alemanha o são (por estarem sujeitos às influências dai<strong>de</strong>ologia Nazi) e mesmo esses mostram apenas uma visão parcial <strong>do</strong> seu“carácter racial”. Este tipo <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> perante os Ju<strong>de</strong>us era algo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>natural e aplicava-se não apenas aos Ju<strong>de</strong>us mas também a to<strong>do</strong>s aqueles que nãose enquadravam no i<strong>de</strong>al Nazi. No seguimento <strong>de</strong>ssa afirmação inicial, FritzHippler, o realiza<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ste filme, passa então a mostrar o que na realida<strong>de</strong> o povo247 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254Ju<strong>de</strong>u seria. Imagens <strong>do</strong> gueto <strong>de</strong> Lodz, na Polónia, na altura das invasões,mostra como os Ju<strong>de</strong>us alegadamente seriam, por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>ssa “máscara” <strong>de</strong>europeus civiliza<strong>do</strong>s.Numa tentativa <strong>de</strong> se aproximarem <strong>de</strong> uma população polaca enfraquecidapela situação <strong>do</strong> seu país e tentan<strong>do</strong> criar um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> relação entre as duasculturas, os Nazis, filman<strong>do</strong> a população rural Polaca, alegam que só <strong>de</strong>pois dasinvasões é que estes passaram a ter uma visão correcta da forma como vivem osJu<strong>de</strong>us na Polónia. No relato que acompanha as imagens é dito: “(…), nor havethey suffered from the chaos of war as has the native Pole”.Isto é referente à falta <strong>de</strong> presença Judia nas al<strong>de</strong>ias. Algo que,recor<strong>de</strong>mos, está liga<strong>do</strong> a uma das acções mais fortes tomada pelo governoPolaco na pré-invasão, que foi exactamente retirar as terras aos Ju<strong>de</strong>us e dá-lasaos naturais Polacos, para que eles as pu<strong>de</strong>ssem explorar, tal como referiuRingelblum. Porém, afirmar que não existiam Ju<strong>de</strong>us nas al<strong>de</strong>ias não é totalmenteverda<strong>de</strong>, visto que Eva Galler vivia numa al<strong>de</strong>ia Polaca com muitos outrosJu<strong>de</strong>us. Daí, po<strong>de</strong>mos retirar que, para efeitos <strong>de</strong> eficiência na transmissão <strong>de</strong>uma imagem cultural, era necessário <strong>de</strong>turpar a verda<strong>de</strong> e escolher uma situaçãopontual capaz <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certo mo<strong>do</strong> expandida eque permitisse retratar a imagem que se procurava veicular. Usan<strong>do</strong> uma situaçãopontual, transforman<strong>do</strong>-a numa verda<strong>de</strong> assumida, <strong>de</strong> forma que quem fosseexposto a essa maquinação, ten<strong>de</strong>ncialmente iria acreditar no que lhe havia si<strong>do</strong>apresenta<strong>do</strong>.Não só isso mas também os Nazis queriam alienar os Ju<strong>de</strong>us da realida<strong>de</strong>Polaca, afirman<strong>do</strong> que eles não seriam Polacos e por isso colocar-se-iam àmargem, indiferentes à guerra - já que, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s ataques, os Ju<strong>de</strong>us voltavamaos seus negócios, - queren<strong>do</strong> com isso mostrar os Ju<strong>de</strong>us como materialistas einsensíveis ao sofrimento <strong>do</strong>s seus vizinhos.Continuan<strong>do</strong> esta tentativa <strong>de</strong> fazer os Polacos acreditar que os Ju<strong>de</strong>us oshaviam engana<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s durante anos, inclusive aos próprios Nazis, o filmevolta a referir o passa<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> uma ilusão criada pelos Ju<strong>de</strong>us. É afirma<strong>do</strong>que, vinte e cinco anos antes, não tinham visto a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> gueto polaco masPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012248


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254agora viam-na perfeitamente: “This time our eyes are sharpened by ourexperience in the last few <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s”, referin<strong>do</strong>-se à traição que o povo Ju<strong>de</strong>u teriacometi<strong>do</strong> durante a I Guerra Mundial, assim consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelos Nazis. Onarra<strong>do</strong>r refere ainda que, em 1914, os Nazis falharam em reconhecer o povoJu<strong>de</strong>u como uma praga que assolava o povo ariano. É usada no filme uma frase<strong>de</strong> Richard Wagner, que chama aos Ju<strong>de</strong>us o <strong>de</strong>mónio por <strong>de</strong>trás da corrupção dahumanida<strong>de</strong> 14.Durante o filme to<strong>do</strong>, trata<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>cumentário, são usadasinúmeras imagens, apenas contextualizadas pelas palavras que o acompanham,<strong>de</strong>screven<strong>do</strong> os Ju<strong>de</strong>us como pessoas incivilizadas, aproveita<strong>do</strong>res e um riscopara a socieda<strong>de</strong>. O filme caracteriza o Ju<strong>de</strong>u, comparan<strong>do</strong>-o com a sua casa, sujae negligenciada, com animais e pestes, acusan<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> viverem assim porquequerem, visto que eles têm o suficiente para possuir casas dignas, mas quepreferem viver em casebres. Fica claro que o objectivo era mostrar que o Ju<strong>de</strong>unão só era um risco para a consciência colectiva mas também para a socieda<strong>de</strong>.As imagens utilizadas mostram comportamentos característicos <strong>do</strong>sJu<strong>de</strong>us, mas completamente <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> contexto para ridicularizar as suascrenças, seja pelas palavras proferidas, seja pelos actos toma<strong>do</strong>s. Exemplo dissoserá a imagem que mostra um Ju<strong>de</strong>u a “abanar-se” enquanto profere orações quepara os Nazis eram incompreensíveis.Passan<strong>do</strong> para as ruas, apresenta o Ju<strong>de</strong>u como criatura preguiçosa e umfar<strong>do</strong> para a socieda<strong>de</strong>, sem fazer trabalho algum, ou melhor, um trabalhoconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> útil, excepto aquele a que é força<strong>do</strong> a fazer pelos Nazis.No que concerne o trabalho, os Nazis usam imagens daquilo queconsi<strong>de</strong>ram ser o trabalho “preferencial” <strong>de</strong> um Ju<strong>de</strong>u: a venda <strong>de</strong> pequenosprodutos, senta<strong>do</strong>s na rua, sem fazer qualquer tipo <strong>de</strong> esforço para realmenteven<strong>de</strong>r, estan<strong>do</strong> o tempo to<strong>do</strong> a conversar.Ao contrário <strong>do</strong> que era dito pelos Ju<strong>de</strong>us, os Nazis negam o facto <strong>de</strong>aqueles só terem tais trabalhos porque os outros, ditos “dignos”, lhes estavam14 D e r E w ige Ju<strong>de</strong> ( 1940) , re al iz aç ã o d e F rit z H ipp le r, nos sa t rad u ç ão. C onsu lt ar:ht t p: / / ww w . y ou t u be . c om/ w at ch?v= d k 3f Y d JC arY & s ki pc ont r int e r= 1249 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254veda<strong>do</strong>s. Reconhecem que está na natureza <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us a venda <strong>de</strong> produtos,sen<strong>do</strong> mesmo encoraja<strong>do</strong>s a tornar-se ven<strong>de</strong><strong>do</strong>res “correctos”. No entanto, asimagens seguintes apresentam mulheres Judias a gritar, em fúria. Isto era umatentativa <strong>de</strong> mostrar a incapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Ju<strong>de</strong>u em usar as capacida<strong>de</strong>sconversacionais <strong>de</strong> forma correcta.Nem mesmo as crianças Judias são poupadas nesta criação <strong>de</strong> uma novai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para o povo Ju<strong>de</strong>u, sen<strong>do</strong> usadas imagens <strong>de</strong> crianças a pedir nas ruas.Referem ainda no filme que isto não é um sinal <strong>de</strong> pobreza, visto que, segun<strong>do</strong> osNazis, os Ju<strong>de</strong>us são ricos e apenas não ostentam a sua riqueza para se infiltraremna Europa <strong>de</strong> forma mais inconspícua. Essas crianças estariam orgulhosas <strong>de</strong> agircomo adultos, não fazen<strong>do</strong> nada e aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s outros. Em termoscomparativos, é referi<strong>do</strong> também que as crianças Judias não têm a moralida<strong>de</strong> e oi<strong>de</strong>alismo das crianças Nazis.No contexto divino, este filme refere que os Ju<strong>de</strong>us consi<strong>de</strong>ram que onegócio é algo sagra<strong>do</strong> e que os ensinamentos religiosos em relação às acções que<strong>de</strong>vem ser levadas a cabo durante essa activida<strong>de</strong> passam pelo engano e a usura.Imediatamente usam como referencial correcto o mo<strong>de</strong>lo Nazi, que enaltece otrabalho como activida<strong>de</strong> que tem sempre um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> valor, que quer e <strong>de</strong>vecriar algo com valor (implicitamente estabelece que os produtos Ju<strong>de</strong>us não têmvalor). Até a própria forma <strong>de</strong> criar pelo trabalho é referida. As pessoas queprocuram criar produtos com valor e qualida<strong>de</strong> usam a força bruta e não a atitu<strong>de</strong>que os Ju<strong>de</strong>us (segun<strong>do</strong> as conjecturas Nazis) têm.Neste processo <strong>de</strong> enriquecimento por parte <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us, estes<strong>de</strong>monstrariam uma falta <strong>de</strong> carácter e <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> inclusivé entre os seus iguais.São retrata<strong>do</strong>s como pessoas sem escrúpulos que ganham a vida à custa <strong>do</strong>soutros, mesmo que isso signifique passar por cima <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais, sejam eles quemforem.Os Nazis, neste <strong>do</strong>cumentário, fazem uma série <strong>de</strong> acusações <strong>de</strong> forma agerar uma onda <strong>de</strong> revolta por parte <strong>do</strong>s outros povos, contra os Ju<strong>de</strong>us. No casoda Polónia, acusam os Ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> apenas se retirarem para os guetos paraenriquecerem à custa da população; chamam-lhes usurpa<strong>do</strong>res, porque sePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012250


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254aproveitam da miséria alheia para enriquecer e assim piorar a situação <strong>de</strong> ambosos países (Polónia e Alemanha). A própria acção mercantil exercida por parte <strong>do</strong>sJu<strong>de</strong>us em nada contribuiria para a economia, visto que eles seriam uma razãopara a <strong>de</strong>preciação <strong>do</strong>s bens, porque reduziriam os produtos cria<strong>do</strong>spelosarianos a simples merca<strong>do</strong>rias. Generalizan<strong>do</strong> as suas acusações, referem aindaque não existiria qualquer diferença entre os Ju<strong>de</strong>us da Polónia e os Ju<strong>de</strong>us naPalestina: são to<strong>do</strong>s oportunistas e sanguessugas 15 .De entre as imagens usadas neste filme, os Nazis utilizaram tambémmapas anima<strong>do</strong>s para ajudar à compreensão e ilustrar as i<strong>de</strong>ias que queriampassar. Nessa animação, mostram to<strong>do</strong>s os locais por on<strong>de</strong> os Ju<strong>de</strong>us passaram,fican<strong>do</strong> lá e aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s povos, até não conseguirem mais e <strong>de</strong>poispassar para outros países. Os Nazis chamavam a esse processo <strong>de</strong> “pilhagem”<strong>do</strong>s habitantes culturalmente superiores. Nesta representação das migraçõesJudias, os pontos on<strong>de</strong> mais se fazem representar é precisamente o Reino Uni<strong>do</strong>,o norte <strong>de</strong> África, Espanha e França. Na Espanha e em França as pessoasrevoltaram-se contra eles, o que os fez seguir o caminho para Este, passan<strong>do</strong> pelaAlemanha e pela Polónia, países “<strong>de</strong> cultura ariana”. Este termo foi usa<strong>do</strong> com ointuito <strong>de</strong> inserir a Polónia no seio da cultura Nazi. Os Ju<strong>de</strong>us estabeleceram-sena parte Soviética da Polónia (esta referência servia também para fazer com que opovo Polaco não se associasse aos Soviéticos). Após esta representação gráfica, omapa transforma-se num mapa global, on<strong>de</strong> os Ju<strong>de</strong>us surgem por to<strong>do</strong> o globo.Esta representação faz lembrar o mapa evolutivo <strong>de</strong> um vírus ou <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença.Ainda neste espírito <strong>de</strong> educação das massas Polacas, a utilização <strong>de</strong>termos comparativos é muito frequente e assim os Nazis usam neste filme acomparação <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us com ratos. Como referi<strong>do</strong> no filme, os ratos são umapeste não originária da Europa mas sim da Ásia, que migraram para a Europa,trazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>enças, actuan<strong>do</strong> como parasitas, viajan<strong>do</strong> em grupo para semear<strong>de</strong>struição. Os Nazis afirmam que os Ju<strong>de</strong>us têm exactamente o mesmocomportamento. Os Nazis sempre utilizaram os números para ilustrar os seus15 D e r E w ige Ju<strong>de</strong> ( 1940) , re al iz aç ã o d e F rit z H ipp le r, nos sa t rad u ç ão. C onsu lt ar:ht t p: //ww w . y ou t u be . c om/w at ch ?v= d k 3f Y d JC arY & s ki pc ont r int e r= 1251 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254pontos <strong>de</strong> vista e, nesse senti<strong>do</strong>, acusam os Ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> crimeinternacional:Sen<strong>do</strong> apenas 1% da população mundial, eles são culpa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 34% <strong>do</strong>snegócios <strong>de</strong> droga, 47% <strong>do</strong>s roubos, 47% <strong>do</strong>s jogos <strong>de</strong> azar vicia<strong>do</strong>s, 82%<strong>do</strong> crime organiza<strong>do</strong> internacional e 98% da prostituição. 16“ Der Ewige Ju<strong>de</strong>” refere ainda que a maioria <strong>do</strong> jargão utliza<strong>do</strong> pelosJu<strong>de</strong>us surge <strong>do</strong> Hebreu e <strong>do</strong> Yiddish, pois os Ju<strong>de</strong>us seriem seres altamenteadaptáveis, mediante as suas próprias necessida<strong>de</strong>s. Para <strong>de</strong>monstrar essaadaptabilida<strong>de</strong>, os Nazis usam uma séria <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> Ju<strong>de</strong>us com as suasroupas características (segun<strong>do</strong> os Nazis) que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os tornar maisapresentáveis, torná-los-iam capazes <strong>de</strong> se inserir em qualquer comunida<strong>de</strong>. Istoserviria para <strong>de</strong>ixar um aviso a to<strong>do</strong>s: que os Ju<strong>de</strong>us seriam inteligentes ao ponto<strong>de</strong> se fazer passar por não-Ju<strong>de</strong>us e que isso seria uma das maiores armas queutilizavam para levar a cabo as suas intenções.De entre muitos outros exemplos que são usa<strong>do</strong>s durante este filme paramostrar a “verda<strong>de</strong>ira” face <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us, por certo que a mais revela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>sintentos Nazis <strong>de</strong> tornar a cultura Judaica em algo repulsivo são as imagensutilizadas <strong>de</strong> vários sacrifícios <strong>de</strong> animais, alegadamente perpetra<strong>do</strong>s por Ju<strong>de</strong>us.Estas imagens eram precedidas <strong>de</strong> um aviso para os especta<strong>do</strong>res mais sensíveis,<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua violência e natureza gráfica. Mas logo <strong>de</strong> seguida lê-se que seriapreferível mostrar a verda<strong>de</strong>ira face <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us a escon<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong>. Após estasimagens, a audiência é confrontada com a realida<strong>de</strong> Nazi, on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os Alemães(termo usa<strong>do</strong> no filme) teriam amor pelos animais, ao contrário <strong>do</strong>s Ju<strong>de</strong>us. Parailustrar esse amor, o filme refere que Hitler aprovara uma lei que proibia estaforma <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> animais no início <strong>do</strong> seu mandato.16 D e r E w ige Ju<strong>de</strong> ( 1940) , re al iz aç ã o d e F rit z H ipp le r, nos sa t rad u ç ão. C onsu lt ar:ht t p: / / ww w . y ou t u be . c om/ w at ch?v= d k 3f Y d JC arY & s ki pc ont r int e r= 1Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012252


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227 - 254O filme termina referin<strong>do</strong> que a limpeza étnica é o lega<strong>do</strong> que o parti<strong>do</strong>nacional-socialista <strong>de</strong>ixa à nação Alemã para sempre.Este é apenas um <strong>do</strong>s muitos filmes usa<strong>do</strong>s como veículo <strong>de</strong> informação eeducação pelos Nazis no seu objectivo <strong>de</strong> libertar as “massas incultas” <strong>de</strong> umasituação <strong>de</strong> ilusão em que eles viveriam, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao trabalho na sombra <strong>de</strong>milhares <strong>de</strong> Ju<strong>de</strong>us.Todas as relações, sejam elas interculturais ou não, passam por alturas <strong>de</strong>teste, tenham elas fundações sólidas ou estejam apoiadas numa paz ténue, comono caso da cultura Polaca e da Judaica. Vários factores po<strong>de</strong>m levar a umavariação e diferença nos comportamentos, sejam eles involuntários, como nocaso <strong>de</strong> uma crise económica ou social ou mesmo num conflito arma<strong>do</strong>, sejameles voluntários, com o intuito <strong>de</strong> gerar uma mudança nessas relações, como foi ocaso da Alemanha Nazi na altura da II Guerra Mundial.Sen<strong>do</strong> a Polónia um país com diversas culturas e diversas vivências eexperiências, foi fácil para o regime Nazi utilizar essas diferenças culturais econseguir que uma cultura se levantasse contra outra. Aproveitan<strong>do</strong> a frágilcoexistência <strong>do</strong>s Polacos nativos com os Ju<strong>de</strong>us, a máquina propagandista Naziconseguiu mudar mentalida<strong>de</strong>s através <strong>de</strong> processos complexos e extremamenteardilosos, com consequências simples mas <strong>de</strong>strutivas.As invasões e os conflitos que marcaram este perío<strong>do</strong> foram construí<strong>do</strong>sem várias frentes. Por um la<strong>do</strong>, tinhamos o me<strong>do</strong> planta<strong>do</strong> e cuida<strong>do</strong> no seio daspopulações invadidas pelos militares e as suas armas. Ao mesmo tempo,tinhamos a <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong> uma cultura nos seus constituintes mais básicos, <strong>de</strong>forma a apresentar uma “verda<strong>de</strong>” construída com o intuito <strong>de</strong>criaranimosida<strong>de</strong>s e conflitos. Isto segui<strong>do</strong> pela posterior construção <strong>de</strong> uma “novaraça”, fundin<strong>do</strong> pequenos aspectos e infundin<strong>do</strong> toda a sua visão numa novaconstrução, criada com o objectivo <strong>de</strong> gerar novos sentimentos para com umacultura, a<strong>do</strong>ptada pelos Nazis como sua inimiga.Des<strong>de</strong> a racialização à representação cultural e social, os artifíciosutiliza<strong>do</strong>s pela propaganda Nazi sempre tiveram <strong>do</strong>is objectivos principais: criaruma nova “raça superior”, a raça Ariana, e construir uma nova versão da raça253 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Andra<strong>de</strong>, Nuno Neves – Mun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>: Representações interculturais naPolónia sob a influência nazi 227-254Judaica, uma que se a<strong>de</strong>quasse às suas necessida<strong>de</strong>s estratégicas por altura da IIGuerra Mundial.Referências bibliográficasBARKER, C. (2003), Cultural Studies - Theory and practice, secon<strong>de</strong>dition, Lon<strong>do</strong>n: Sage Publications.BARKER, C. (2012), Cultural Studies – Theory and practice, fourthedition, Lon<strong>do</strong>n: Sage Publications.FABIAN, J. (1991 [1985]), “Culture, time and the object of anthropology[1985]”, in Time and the work of anthropology. Critical Essays 1971-1991, Chur,Switzerland: Harwood Aca<strong>de</strong>mic Publishers.GRAMSCI, A. (1971), Selections from the prison notebooks, edited by Q.Hoare and G. Nowell-Smith, Lon<strong>do</strong>n: Lawrence & Wishart.HALLAM, E and Street, B (2000), Cultural Encounters – Representing“otherness” , New York: RoutledgeHALL, S. (1997), Representation – Cultural Representations and SignifyingPractices, Lon<strong>do</strong>n: The Open University.POULANTZAS, N. (1976), Political Power and Social Classes, Lon<strong>do</strong>n: NewLeaf Books.RINGELBLUM, E. (1992), Polish-Jewish relations during the second world war.Evanston Illinois: Northwestern University Press.SHEEHAN, M (1996), The Balance of Power – History and Theory, Lon<strong>do</strong>n:Routledge.Der Ewige Ju<strong>de</strong> (1940), realização <strong>de</strong> Fritz Hippler. URL:http://www.youtube.com/watch?v=dk3fYdJCarY&skipcontrinter=1 acedi<strong>do</strong>em 14/03/2012.Triumph <strong>de</strong>s Willens (1935), realização <strong>de</strong> Leni Riefenstahl. URL:http://www.youtube.com/watch?v=GHs2coAzLJ8 acedi<strong>do</strong> em 13/03/2012.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012254


A PERFORMANCE E O DESFAZIMENTO DOLOGOCENTRISMO NAS ARTES CÊNICASTales FreyUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> CoimbraPortugaltalesfrey@me.comResumoNeste artigo, preten<strong>de</strong>-se analisar a performance como um gênero artísticoque exige uma reflexão em torno <strong>do</strong> ritual e das transposições <strong>do</strong>s atos cotidianospara o campo da arte, mas principalmente como uma manifestação que implica ainevitável consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que é um recurso cênico não mais calca<strong>do</strong> na palavra,funcionan<strong>do</strong> como fator <strong>de</strong>terminante para o teatro pós-mo<strong>de</strong>rnista, que fazconstante recusa ao texto em prol <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> teatro pós-dramático.AbstractThis article intends to analyze the performance art as an artistic genre thatrequires a reflection on the ritual and the transpositions of «everyday acts» to thefield of art, but mainly as a manifestation that implies the inevitable assumptionthat a scenic resource no more hinges on the word, functioning as a <strong>de</strong>terminantfor Postmo<strong>de</strong>rnist theater, which is constant refusal of text in favor of so-calledPostdramatisches Theater.Palavras-chave: Performance, Teatro pós-dramático, LogocentrismoKey words: Performance art, Postdramatisches Theater, Logocentrism.


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Antes <strong>de</strong> mais, cabe enfatizar que a performance, enquanto gênero artístico,teve seu <strong>de</strong>senvolvimento nas artes visuais, mas a sua finalida<strong>de</strong> éindubitavelmente cênica.Há quem sustente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a performance esteja diretamenterelacionada a rituais muito mais remotos, mas, aqui, é assinala<strong>do</strong> que o conceito<strong>de</strong> performance liga<strong>do</strong> à arte se expandiu como gênero no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século XX,momento da história em que a palavra, o logos, per<strong>de</strong> a hegemonia nas artescênicas, que caminham para um senti<strong>do</strong>, inclusive, figural 1 <strong>de</strong> comunicação, on<strong>de</strong>signos substituem palavras, on<strong>de</strong> o texto convencional dá lugar ao semiótico.Segun<strong>do</strong> a autora Roselee Goldberg, a história da performance se explicitacom a publicação <strong>do</strong> primeiro manifesto futurista por Filippo TommasoMarinetti no jornal Le Fígaro em Paris no ano <strong>de</strong> 1909. Para essa autora, osprimórdios da performance estão liga<strong>do</strong>s ao Futurismo e às ações das chamadasvanguardas históricas, mas só nas décadas <strong>de</strong> 1960 e 1970 é que a performancepassou a ser aceita como um meio <strong>de</strong> expressão artística in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,conquistan<strong>do</strong> sua autonomia na história da arte. Esse perío<strong>do</strong> coinci<strong>de</strong> com aafirmação da arte conceitual, em que a i<strong>de</strong>ia era mais importante que o produto,sen<strong>do</strong>, então, a performance um meio frequente para executar tais pensamentos.Jorge Glusberg afirma que <strong>do</strong>is acontecimentos foram <strong>de</strong>terminantes parao futuro da performance: o recital apresenta<strong>do</strong> pelos componentes <strong>do</strong> DancersWorkshop na Judson Memorial Church <strong>de</strong> New York e a fundação <strong>do</strong>movimento Fluxus. 2 Utilizan<strong>do</strong> o termo “pré-história” para comentar as origens<strong>de</strong>ste gênero artístico, Glusberg ainda aponta os <strong>de</strong>safios e provocações <strong>do</strong>sfuturistas e <strong>do</strong>s dadaístas como movimentos que estabeleceram pontos <strong>de</strong>contato com o que, hoje, conhecemos por performance.Para o autor Renato Cohen:(...) há uma corrente ancestral da performance, que passa pelos primeirosritos tribais, pelas celebrações dionisíacas <strong>do</strong>s gregos e romanos, pelo1 Te rm o u t il iz ad o pe l o pe n sad or Ly ot ard .2 C f . G LUS BE R G , Jorg e . A art e da pe rf o rm a n ce , p. 3 7.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012256


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275histrionismo <strong>do</strong>s menestréis e por inúmeros outros gêneros calca<strong>do</strong>s nainterpretação extrovertida, que vão <strong>de</strong>saguar no cabaret <strong>do</strong> século XIX ena mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. 3Talvez a origem, não só para a performance <strong>do</strong> século XX, mas para a arteem geral que foi feita a partir <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>ve-se ao pensamento <strong>de</strong> Nietzsche, quefunciona como uma mola propulsora para a chamada pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e para aquiloque Lyotard, pensa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> vertente nietzschiana, <strong>de</strong>nominou por pluralismoartístico, pois Nietzsche se afirma como questiona<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s valores morais datradição, mais especificamente, <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> moral <strong>de</strong> matriz cristã (uma moral<strong>de</strong> escravos que permanecem escravos), on<strong>de</strong> “(...) não há metafísica que não<strong>de</strong>precie a existência em nome <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> suprassensível (...)” 4 . EmNietzsche, está timbrada a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, ou seja, o que está em evidência éo homem não mais tangencia<strong>do</strong> à proibição, ao impedimento e ao limite, mas simao excesso, à hybris, ao <strong>de</strong>scomedimento <strong>do</strong> excesso dionisíaco, excesso cria<strong>do</strong>r.É uma filosofia que afirma a força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>mun<strong>do</strong> que vivia <strong>de</strong> um maquinal extermínio da força criativa <strong>do</strong> sujeito. Mo<strong>de</strong>loeste que esteve, durante toda a história até o advento da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, vincula<strong>do</strong>aos impedimentos impostos pela religião.Através <strong>do</strong> niilismo, que acusa toda a cultura <strong>de</strong> raiz metafísica, “i<strong>de</strong>alascético” que caracteriza a moral oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> raiz cristã, Nietzsche afirma a vidacomo tal, sem estar subordina<strong>do</strong> a nenhum sentimento que traduza culpabilida<strong>de</strong>ou menorida<strong>de</strong>. A arte para Nietzsche é aparência enquanto tal, sem que, porisso, sua realida<strong>de</strong> seja diminuída e, num senti<strong>do</strong> contrário a um i<strong>de</strong>al ascético,Nietzsche afirma um caráter plural da experiência <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, o que, ao menosnas artes, é <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> na explosão <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagens artísticas,<strong>de</strong>ntre elas, a arte da performance e os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos a partir <strong>de</strong>ssa expressão,como a vi<strong>de</strong>operformance, por exemplo.3 C OH E N , R e nat o. A pe rf o rm an ce co m o l in g u ag e m , p. 41.4 D E LE UZ E , G ille s. N ie t z s ch e e a filos ofia , p. 55.257 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Em O nascimento da tragédia, Nietzsche <strong>de</strong>signa uma oposição entre Dionisoe Apolo, sen<strong>do</strong> que um é posiciona<strong>do</strong> contra o outro, sen<strong>do</strong> Dioniso umarepresentação da liberda<strong>de</strong>, da pulsão, contra Apolo, a castração. O dionisíaco é aexpressão <strong>do</strong> excesso que <strong>de</strong>sfaz uma or<strong>de</strong>m e uma moral apresentadas comoopressivas.O elemento apolíneo configura a razão, a perfeição, a or<strong>de</strong>m, a harmonia,sen<strong>do</strong> assim, a linguagem verbal e a representação figurativa se incluem no quediz respeito a Apolo. Para Nietzsche, o logos teria transporta<strong>do</strong> um elemento <strong>de</strong>repressão e ocultação em nome <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, distancian<strong>do</strong> o homem<strong>de</strong> uma autêntica experiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Numa visão nietzschiana, a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sponta <strong>do</strong> excesso, que somente amúsica e Dioniso po<strong>de</strong>m permitir; “(...) comparada à música, toda expressãoverbal possui qualquer coisa <strong>de</strong> in<strong>de</strong>cente; o verbo atrasa e embrutece; o verbo<strong>de</strong>spersonaliza: o verbo banaliza aquilo que é raro”. 5A música, aqui, representa to<strong>do</strong> e qualquer elemento que aban<strong>do</strong>na alinguagem racional e “embrutece<strong>do</strong>ra” <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m apolínea, a qual, analisada sobuma ótica teatral <strong>de</strong> recusa ao “textocentrismo”, vai <strong>de</strong> encontro com o ritual queantece<strong>de</strong> as normas estabelecidas posteriormente à expressão cênica teatral. Aperformance, que é, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, uma expressão cênica, teve seu <strong>de</strong>senvolvimento,como manifesto artístico in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século XX, momento emque começa a ocorrer uma forte rejeição ao texto como elemento <strong>do</strong>minante, oqual acabou por se tornar incontestável para as artes cênicas durante séculos.O processo histórico <strong>de</strong> afastamento <strong>do</strong> texto e <strong>do</strong> teatro exige uma nova<strong>de</strong>finição, sem preconceitos, <strong>de</strong> sua relação. Ela po<strong>de</strong> ser iniciada pelaconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que o teatro veio em primeiro lugar: surgiu <strong>do</strong> ritual, apropriou aforma da dança mimética, configurou-se como um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> comportamento ecomo uma prática antes <strong>de</strong> qualquer escritura. 6Nietzsche, através <strong>de</strong> O nascimento da tragédia, propõe-nos uma visão <strong>de</strong>mun<strong>do</strong> sob a crítica aos apegos morais tradicionais e à noção <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.5 N I ETZS C H E, F ried rich. L a v o l o n t é <strong>de</strong> pu is s an ce T OME I I , p. 438.6 LE H M AN N , H ans - Th ie s. T e at r o pó s -dram át ico , p. 7 6.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012258


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Segun<strong>do</strong> Nietzsche, a tragédia nasce a partir <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> coro e damúsica, mais <strong>do</strong> que <strong>do</strong> verbo, da palavra (logos) e da representação. Nietzscheassegura, assim, uma “superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> não verbal sobre o verbal, <strong>do</strong> nãorepresentacional sobre o representacional” 7 . É váli<strong>do</strong> fazer uma ressalva comrelação à crítica ao discurso lógico-verbal em Nietzsche, pois este pensa<strong>do</strong>r é“um filósofo que pensa através <strong>de</strong> conceitos” 8 , é um “poeta que produz arteatravés <strong>de</strong> palavras” 9 .O nascimento da tragédia se trata, ainda, <strong>de</strong> um ajuste teórico para a ópera <strong>de</strong>Wagner em particular, sen<strong>do</strong> um texto que afirma duas i<strong>de</strong>ias que caminham <strong>de</strong>forma contrária: “a experiência da realida<strong>de</strong> através da representação e aexperiência da realida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> algo que, sen<strong>do</strong> embora <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m cultural,não é representação”. 10Nietzsche comprova que ao la<strong>do</strong> da linha <strong>de</strong> pensamento Sócrates/Platãohavia uma manifestação colateral que permitia a liberda<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra (nãoconstrangida às coações <strong>de</strong> um logos limitativo); existia Dioniso ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Apolo.Com isso, Nietzsche <strong>de</strong>clara um retorno a uma sacralida<strong>de</strong> pré-religiosa em que aarte podia funcionar como um sustentáculo metafísico <strong>do</strong> próprio real.O excesso <strong>de</strong>svenda-se como sen<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>, a contradição, o <strong>de</strong>leitenasci<strong>do</strong> das <strong>do</strong>res falava <strong>de</strong> si a partir <strong>do</strong> coração da natureza. E assim, em to<strong>do</strong>sos lugares on<strong>de</strong> penetrava o elemento dionisíaco, o elemento apolíneo erasuprimi<strong>do</strong> e <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>. 11A partir da con<strong>de</strong>nação ao “i<strong>de</strong>al ascético”, Nietzsche propicia às artesuma re<strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> ritual, mas sem que esse esteja preso à religião castra<strong>do</strong>ra elimita<strong>do</strong>ra. Através <strong>do</strong> niilismo, Nietzsche faz seu protesto em prol da liberda<strong>de</strong>.Notavelmente, quan<strong>do</strong> falamos em performance, happening ou liveart,relacionamos o ritual a estes procedimentos artísticos, ten<strong>do</strong> consciência <strong>de</strong> que,7 G OM E S , He ld e r. Fr ie d r ich Nie t z s ch e : a art e com o m o<strong>de</strong> lo da re laç ã o e n t re o h om e m eo re al , p. 13.8 ibi <strong>de</strong> m , p. 05.9 i<strong>de</strong> m .10 G OM E S , He ld e r. Fr ie dr ich Nie t z s ch e : a art e com o m o<strong>de</strong> lo da re laç ã o e n t re o h om e me o re al , p. 14.11 N I ETZS C H E, F ried rich. O n as c im e n t o da t rag é dia, p. 41 .259 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275evi<strong>de</strong>ntemente, não estamos falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um ritual propriamente dito, ou seja, algorelativo a rito, algo conecta<strong>do</strong> a uma or<strong>de</strong>m prescrita das cerimônias que sepraticam numa religião ou qualquer cerimonial, seita, culto, enfim, pois, na arteda performance (incluin<strong>do</strong> suas variações <strong>de</strong> nomenclaturas), há um caráterartístico atribuí<strong>do</strong>. O fato <strong>de</strong>ve-se principalmente por haver, neste manifestoartístico, uma ritualização <strong>do</strong>s atos cotidianos, um transpor <strong>do</strong> contextocorriqueiro para o artístico.Segun<strong>do</strong> o autor Renato Cohen:(...) arte <strong>de</strong> fronteira, no seu contínuo movimento <strong>de</strong> ruptura com o quepo<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> “arte estabelecida”, a performance acaba penetran<strong>do</strong>por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesmaforma, acaba tocan<strong>do</strong> nos tênues limites que separam vida e arte .12O autor ainda explica que a performance possui uma conexão ontológicacom um movimento maior, uma forma distinta <strong>de</strong> olhar a arte, sen<strong>do</strong> a liveart,haven<strong>do</strong> aí uma maneira peculiar <strong>de</strong> voltar o olhar para a arte: é estabelecida umaaproximação direta da arte com a vida, levan<strong>do</strong> em conta a espontaneida<strong>de</strong>, onatural, em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong> que é previamente prepara<strong>do</strong>, testa<strong>do</strong> e ensaia<strong>do</strong>.Tiran<strong>do</strong> a arte <strong>de</strong> sua função meramente estética, a liveart, arte ao vivo (arte viva),não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um movimento <strong>de</strong> ruptura, o qual emerge como uma maneira <strong>de</strong>extrair o caráter sagra<strong>do</strong> da arte, porém como um resgate da característicaritualística <strong>de</strong>la através <strong>de</strong> um movimento que procura removê-la <strong>do</strong> ambienteconvencional (teatros, museus e galerias) para estabelecer, para a arte, umaposição estrategicamente mais viva e transforma<strong>do</strong>ra.Cohen afirma que a liveart acontece assim:(...) <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, se tira a arte <strong>de</strong> uma posição sacra, inatingível, vai sebuscar, <strong>de</strong> outro, a ritualização <strong>do</strong>s atos comuns da vida: <strong>do</strong>rmir, comer,12 C OH E N , R e nat o. A pe rf o rm an ce co m o l in g u ag e m , p. 38.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012260


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275movimentar-se, beber um copo <strong>de</strong> água (como numa performance <strong>de</strong> GeorgeBrecht <strong>do</strong> Fluxus) passam a ser encara<strong>do</strong>s como atos rituais e artísticos .13Sobre esse aspecto <strong>de</strong> pensar a arte da performance, John Cage disse, certavez, que “gostaria que se pu<strong>de</strong>sse consi<strong>de</strong>rar a vida cotidiana como teatro.” 14Levan<strong>do</strong> em conta esta forma <strong>de</strong> encarar a arte, na dança, além <strong>de</strong> Laban, Isa<strong>do</strong>raDuncan e Mercê Cunninghan, por exemplo, <strong>de</strong>satam as amarras que mantinhama dança sob uma estrutura mais rígida, incluin<strong>do</strong>, ao seu repertório, ocorrências<strong>do</strong> próprio dia-a-dia, como caminhar, parar, sentar e mudar <strong>de</strong> roupa, porexemplo. “Personagens diárias (e não míticas), como guardas, operários,mulheres gordas, etc., passam a fazer parte das coreografias (...)” 15 . Pina Bausch,por exemplo, incorpora, nas últimas décadas <strong>do</strong> século XX, esse tipo <strong>de</strong>personagem em cena na sua conhecida “dança-teatro”.Na música, alguns artistas, durante o futurismo na Europa, <strong>de</strong>slocaramelementos cotidianos para a arte, dan<strong>do</strong> origem às músicas feitas <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong>s 16 , queJohn Cage (USA) também se apoiou para <strong>de</strong>senvolver, então, o silêncio comoarte musical, 4’33”, on<strong>de</strong> provou que não existe a possibilida<strong>de</strong> da não existência<strong>de</strong> som em nenhum ambiente; sempre haverá alguma espécie <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> emqualquer situação e em qualquer lugar que estivermos.Tal como Duchamp, que <strong>de</strong>slocaram objetos cotidianos para o espaço <strong>do</strong>Museu, atribuin<strong>do</strong>-lhes valor artístico, na arte da performance, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ato maisordinário até o mais extraordinário da vida cotidiana foram inseri<strong>do</strong>s nostrabalhos artísticos e expostos como arte. O principal pivô é o corpo <strong>do</strong> artista,que se apresenta <strong>de</strong> forma crua, diferentemente <strong>do</strong>s atores <strong>de</strong> teatro, que estãoprotegi<strong>do</strong>s por uma personagem. Na arte da performance o que ocorre é quepo<strong>de</strong>mos ver o próprio artista a executar algo e não uma personagem a fazer umacena.13 i<strong>de</strong> m .14 i<strong>de</strong> m .15 ibi <strong>de</strong> m , p. 39.16 E m 1913, R u s so lo, e m R om a, e sc re ve u se u m an if e st o A Art e <strong>do</strong> s Ru í<strong>do</strong> s .261 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Nas artes cênicas, a quebra mais radical com as convenções se dáefetivamente no happening, expressão que <strong>de</strong>sfaz a distinção entre palco e plateia,além das <strong>de</strong>finições aristotélicas <strong>de</strong> estruturação <strong>de</strong> cena. É vali<strong>do</strong> frisar que aespontaneida<strong>de</strong> é explorada em outros gêneros teatrais, tais como o teatro <strong>do</strong>absur<strong>do</strong> e o teatro expressionista, mas é no happening que este aspecto <strong>de</strong>spontacom maior veemência. “El ‘happening’ respon<strong>de</strong> a la intención <strong>de</strong> apropriardirectamente la vida a través <strong>de</strong> una acción” 17 .Para o autor Renato Cohen, as principais diferenças <strong>do</strong> ator com relaçãoao performer é que o primeiro, ao nível da sustentação, está mais envolvi<strong>do</strong> coma representação, enquanto que o segun<strong>do</strong> está apoia<strong>do</strong> na liveart, sen<strong>do</strong> que,diferentemente <strong>do</strong> ator-intérprete, o performer expõe sua presença como pessoae não como personagem, embora haja sim um distanciamento <strong>do</strong> artista comrelação a figura que ele expõe como atuante. Também, o “fio condutor” 18 <strong>do</strong> atoré a narração e <strong>do</strong> performer se ampara na colagem/ritual. Outras diferençassignificativas apontadas são com relação à ênfase marcada pela dramaturgia e pelacrítica social-política por parte <strong>do</strong> ator, já <strong>do</strong> performer a ênfase é plástica,terapêutica e <strong>de</strong>marcada pelo discurso poético.A origem <strong>do</strong> happening, liveart e, portanto, da arte da performance, estáclaramente reconhecida: o ritual. E é váli<strong>do</strong> frisar que o ritual, que prece<strong>de</strong>, porexemplo, a tragédia grega, está apoia<strong>do</strong> numa conjuntura <strong>de</strong> elementos queultrapassam os limites da palavra. E numa pré-história mais recente <strong>do</strong> gênero daperformance art, entre outros indícios, po<strong>de</strong>mos observar a teatralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>Futurismo, a <strong>de</strong>scontextualização <strong>do</strong> Dadaísmo e o gesto da ActionPainting. 19Roselee Goldberg afirma em A arte da performance: <strong>do</strong> futurismo ao presenteque, sempre que algum movimento pareceu localizar algum impasse, os artistasapoiaram-se nas ações performáticas como um mo<strong>do</strong> possível <strong>de</strong> rescindir comas categorias existentes e apontar para novas direções. O registro inicial <strong>de</strong>sta17 F I Z , S im ón M arc h án. D e l ar t e obt e j u al al art e <strong>de</strong> con ce pt o: e pílog o s obre las e n s ibil ida d‘ po s t m o <strong>de</strong> rn a’ , p. 19 318 C f . C OH E N, R e nat o. A pe rf o rm an ce co m o l in g u ag e m , p. 135.19 Os t rê s ind íc ios m e nc ion a d os c om o or ig e m d o g ê ne r o d a art e d ape rf orm a nc e sã o apont ad os pe lo au t o r R e nat o d e F u sc o e m H is t ó ria da art eco n t e m po rân e a , p. 356.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012262


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275i<strong>de</strong>ia para a autora vem com a montagem <strong>de</strong> Ubu Rei, <strong>de</strong> Alfred Jarry, em que oprotagonista repetia inúmeras vezes a palavra “merda” e o próprio Alfred Jarryentrava em cena, anuncian<strong>do</strong> as ações que iriam ocorrer, sen<strong>do</strong> assim umespetáculo <strong>de</strong>terminante para marcar o início da história <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento daperformance nos mol<strong>de</strong>s que apreciamos no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século XX. Essa peçafoi marcada por elementos que instauravam a quebra <strong>de</strong> paradigmas com relaçãoàs artes cênicas da época, sen<strong>do</strong> um alvoroço que perdurou décadas <strong>de</strong> fama eruptura. Então, Jarry “<strong>de</strong>moliu os frágeis pressupostos dramáticos <strong>de</strong> sua época,atacan<strong>do</strong> as convenções sociais” 20 . O espetáculo foi apresenta<strong>do</strong> duas vezes sobaplausos e muitas vaias no Théâtre <strong>de</strong> Lòeuvre.Dois meses <strong>de</strong>pois da publicação <strong>do</strong> manifesto futurista no jornal LeFígaro, Marinetti estreou sua própria peça, RoiBombance, no mesmo teatro.Conforme Goldberg observa, sem ocultar certa influência <strong>de</strong> Jarry, a concepção<strong>de</strong>ste artista futurista era uma sátira à revolução e à <strong>de</strong>mocracia.Ao regressar à Itália, Marinetti não tar<strong>do</strong>u e principiou a sua concepção <strong>de</strong>Poupees Électriques no Teatro Alfieri, em Turim. Manteve a influência absorvida <strong>de</strong>Jarry e criou uma impetuosa introdução fundamentada no manifesto <strong>de</strong> 1909.Esta obra fez <strong>de</strong> Marinetti “uma curiosida<strong>de</strong> no mun<strong>do</strong> da arte italiana” 21 .A performance futurista, no início, era mais um manifesto <strong>do</strong> que práticaem si, mais merchandising <strong>do</strong> que produção <strong>de</strong> fato. Os performers futuristasmantinham a fama <strong>de</strong> ba<strong>de</strong>rneiros, então acabavam por <strong>de</strong>spertar vaias e aspiores reações na plateia, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> assim que o público não estava apático,mas sim vivo to<strong>do</strong> o tempo. Esse era o verda<strong>de</strong>iro objetivo <strong>do</strong>s artistas <strong>de</strong>sseperío<strong>do</strong>: manter a plateia ativa. Essa plateia participava o tempo to<strong>do</strong> e os artistasnão ansiavam pelo impassível aplauso final. Inclusive, Marinetti chegou a escreverum manifesto sobre “o prazer <strong>de</strong> ser vaia<strong>do</strong>”.Junto com os pintores Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo,Gino Severini e GiacomoBalla, Marinetti publicou ainda o Manifesto técnico da20 G LUS BE RG , Jor g e . A art e da p e rf o rm an ce , p. 13.21 G OLD BE R G , Rose le e . A art e d a pe rf o rm an ce – D o fu t u ris m o ao pre s e n te , p. 03.263 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275pintura futurista, base que os jovens futuristas usaram para traduzir i<strong>de</strong>ias sobre“velocida<strong>de</strong> e amor ao perigo” 22 .Os artistas futuristas voltaram-se para a arte da performance como umamaneira <strong>de</strong> obrigar o público a tomar ciência das suas i<strong>de</strong>ias. Aliás, a arte daperformance – ainda que neste instante não estivesse no formato como hojeconhecemos – estabelece uma relação bastante peculiar no que diz respeitoobra/especta<strong>do</strong>r, pois parece promover uma linha menos <strong>de</strong>limitada <strong>de</strong>separação entre estes <strong>do</strong>is polos. Por isso, Marinetti apreciava o chama<strong>do</strong> “teatrodas varieda<strong>de</strong>s”, porque, para ele, este estilo <strong>de</strong> teatro não possuía mestres ou<strong>do</strong>gmas e era um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al para as performances futuristas, já que não haviaum roteiro a ser segui<strong>do</strong> e isso obrigava o público a participar, libertan<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>lugar <strong>de</strong> voyeur, ou seja, <strong>de</strong> mero observa<strong>do</strong>r.As performances obviamente toavam como eventos peculiares para a época.Em um espetáculo chama<strong>do</strong> Fogo <strong>de</strong> Artifício, <strong>de</strong> Balla, realiza<strong>do</strong> em Roma,quarenta e nove cenários diferentes, acompanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> varia<strong>do</strong>s efeitos <strong>de</strong> luzes,garantiam a obra, a qual não incluía nenhum corpo humano em cena. Esseespetáculo era composto somente por luz e cenário. Uma majestosa imissão <strong>de</strong>cenários e <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> luz que <strong>de</strong>spontavam e submergiam para apenas umaúnica apresentação <strong>de</strong> somente cinco minutos.Embora o corpo <strong>do</strong> artista tenha si<strong>do</strong> suprimi<strong>do</strong> nesta concepçãoperformática <strong>de</strong> Balla, no chama<strong>do</strong> “teatro sintético”, os cenários é que eramreduzi<strong>do</strong>s ao mínimo; o espetáculo era efetua<strong>do</strong> com quase nenhum a<strong>do</strong>rno.Dessas ações da época em que o corpo passa a ganhar <strong>de</strong>staque em <strong>de</strong>trimento<strong>do</strong>s ornamentos, merece <strong>de</strong>staque especial o espetáculo Pés, realiza<strong>do</strong> porMarinetti, on<strong>de</strong> uma cortina cobria os performers até o nível da cintura, exigin<strong>do</strong>assim a máxima expressivida<strong>de</strong> das extremida<strong>de</strong>s inferiores.Neste perío<strong>do</strong>, Marinetti concretiza uma outra obra sem gran<strong>de</strong>sparafernálias, a qual foi intitulada por Não há cão algum, consistin<strong>do</strong> pura esimplesmente em uma passagem <strong>de</strong> um cão pelo palco. Aqui, assim como noespetáculo Fogo <strong>de</strong> Artifício, <strong>de</strong> Balla, não há nenhum corpo humano na obra,22 ibi <strong>de</strong> m , p. 04.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012264


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275somente um animal irracional o faz existir enquanto evento, atribuin<strong>do</strong> assim umcaráter completamente novo em comparação com os eventos teatrais eperformativos <strong>de</strong> até então. De acor<strong>do</strong> com a noção apresentada por JacóGuinsburg em O teatro no gesto, a tría<strong>de</strong> básica (atuante, texto e público) daexpressão cênica está presente em ambos espetáculos, embora o corpo humanoesteja ausente. Para Cohen, em Performance como linguagem, o atuante po<strong>de</strong> ser umboneco, um animal ou até mesmo um objeto e o texto <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong> no seusenti<strong>do</strong> semiológico e não literal. 23Segun<strong>do</strong> Goldberg, “os futuristas acreditavam que uma obra só teria valorna medida em que fosse improvisada (...) e não exaustivamente preparada” 24 .Neste aspecto, em Luz, <strong>de</strong> Cangiullo, em que a performance não teve o menorpreparo senão uma elaboração <strong>de</strong> um roteiro, a ação tem início com o palco e aplateia em escuridão absoluta durante “três NEGROS minutos” 25 , então o quehavia si<strong>do</strong> planeja<strong>do</strong> para a ação era que houvesse atores espalha<strong>do</strong>s na plateiapara <strong>de</strong>spertar a obsessão pela entrada <strong>de</strong> luzes, ocasionan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e o<strong>de</strong>sespero geral até que, por fim, to<strong>do</strong> espaço fosse ilumina<strong>do</strong> <strong>de</strong> formacompletamente exagerada. O espetáculo foi, então, transferi<strong>do</strong> <strong>do</strong> palco para aplateia, fazen<strong>do</strong> existir somente atuantes e não especta<strong>do</strong>res, sen<strong>do</strong> esta umareminiscência <strong>de</strong> A<strong>do</strong>lphe Appia.Na Rússia, em São Petersburgo, além <strong>do</strong>s encontros no Café CachorroSem Dono, situa<strong>do</strong> na praça Mikhailovskaya, os performers partiam para as ruastoma<strong>do</strong>s por trajes singulares como forma <strong>de</strong> “marchar” contra uma velhaor<strong>de</strong>m. Os performers apresentavam-se, portanto, ao gran<strong>de</strong> público quan<strong>do</strong>caminhavam pelas ruas com suas vestimentas excêntricas, rostos pinta<strong>do</strong>s,“rabanetes ou colheres nas casas <strong>do</strong>s botões.” 26Vladimir Burliuk levava rotineiramente consigo um par <strong>de</strong> halteres <strong>de</strong>quase <strong>de</strong>z quilos, Maiakovski usava diariamente uma fantasia <strong>de</strong> zangão. Essaseram atitu<strong>de</strong>s que libertavam as convenções da vida e da arte, fazen<strong>do</strong> valer a23 C f . C OH E N, R e nat o. A pe rf o rm an ce co m o l in g u ag e m , p. 28.24 G OLD BE R G , Rose le e . A art e d a pe rf o rm an ce – D o fu t u ris m o ao pre s e n te , p. 2 0.25 ibid e m , p. 19.26 ibid e m , p. 22.265 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275afirmação <strong>de</strong> Marinetti quan<strong>do</strong> diz: “chegará o tempo em que a vida <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong>ser mera questão <strong>de</strong> pão e trabalho ou uma trajetória <strong>de</strong> puro ócio: será uma obra<strong>de</strong> arte.” Essa <strong>de</strong>claração, a qual fez certo senti<strong>do</strong> também para Duchamp, quecortou os cabelos sob a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar uma estrela na parte traseira dacabeça, ostentan<strong>do</strong> seu corpo como suporte artístico, “gesto que po<strong>de</strong> ser vistocomo um vislumbre da arte <strong>de</strong> performance, ou pelo menos, da bodyart” 27 , hoje,po<strong>de</strong> nos fazer compreen<strong>de</strong>r melhor atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pessoas como Rick Genest,conheci<strong>do</strong> por Zombie Boy, um jovem que, através <strong>de</strong> uma bodymodification,vinculou a sua investigação estética pessoal <strong>de</strong> forma obsessiva sobre a suaprópria pele, acarretan<strong>do</strong> uma irremovível imagem <strong>de</strong> esqueleto realizada em si.Também, Erik Sprague, conheci<strong>do</strong> como “homem lagarto”, abdicou <strong>de</strong> suasilhueta humana para se assemelhar a este animal e, com a língua bifurcada e ocorpo coberto <strong>de</strong> escamas (tatuagem), prometeu, em 2011, que irá implantar umrabo 28 . Em suas apresentações, conforme faria o animal, Sprague come moscas epromove seus espetáculos carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ostentação da sua <strong>do</strong>r para seremcontempla<strong>do</strong>s pelos amantes <strong>do</strong> freak show.A exemplo da relação estabelecida entre o ato performático, a própria vida<strong>do</strong> artista e um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização da palavra na arte teatral, emZurique, no Cabaré Voltaire 29,Frank We<strong>de</strong>kind, que, nas suas encenações,enfatizava a representação teatral para manter a plateia sempre consciente <strong>de</strong>estar no teatro, promulgan<strong>do</strong> certas noções brechtianas, chegava a urinar e a semasturbar no palco <strong>do</strong> Cabaré Voltaire. O público via <strong>de</strong> fato o artista a executaralgo, on<strong>de</strong> a representação não permitia que o especta<strong>do</strong>r se envolvesse e“acreditasse” na realida<strong>de</strong> posta em cena, mas sim na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fazer a cena.We<strong>de</strong>kind não exibia uma personagem, expunha-se enquanto artista na suaradicalida<strong>de</strong> nada interpretativa quan<strong>do</strong> executava suas ações vistas como“libertinas” 30 . O artista se apresentava em cabarés quan<strong>do</strong> estava sem dinheiro ou27 G LUS BE RG , Jor g e . A art e da p e rf o rm an ce , p. 19.28 I nf orm aç ão obt id a n o s it e of ic i al d e E ri k S p rag u e :ht t p: / / ww w . t he liz ard m an. c om / . C onsu lt a re al iz ad a e m 07 d e Ja n e ir o d e 20 12.29 F u nd ad opor E m m y H e nning s e H u g o Bal l.30 P e los c on se r vad ore s, F r ank W e d e kind e r a v ist o c om o u m a “ a m e aç a a m o ralpú blic a” .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012266


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275quan<strong>do</strong> tinha suas encenações teatrais proibidas pela censura oficial.Naturalmente, por conta das suas propostas artísticas nada convencionais, eravisto como um artista marginal 31 .Emergiam na arte <strong>do</strong> início <strong>do</strong> Século XX, i<strong>de</strong>ias dadaístas e surrealistas <strong>de</strong>acaso e <strong>de</strong> ações “não intencionais”, que influenciavam diretamente a arte daperformance. Em meio aos movimentos surrealistas, surgem as chamadas “peçaspara ler”, com um universo tão onírico, que tornava o texto escrito praticamente“imontável”.Antonin Artaud, artista francês, prontamente localizou um jeito <strong>de</strong> sair<strong>de</strong>sse impasse e fun<strong>do</strong>u, com Roger Vitrac, o teatro Alfred Jarry, em 1927, emhomenagem a esse inova<strong>do</strong>r, com o objetivo <strong>de</strong> restabelecer a liberda<strong>de</strong> total aoteatro, algo que há na música, na poesia e na pintura e da qual o teatro, segun<strong>do</strong>ele, ficou priva<strong>do</strong> até esse momento. Artaud dizia que “no ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste aque chegou nossa sensibilida<strong>de</strong>, certamente precisamos, antes <strong>de</strong> mais nada, <strong>de</strong>um teatro que nos <strong>de</strong>sperte: nervos e coração” 32.As convenções teatrais venceram. Tais como somos, somos incapazes <strong>de</strong>aceitar um teatro que continuasse a trapacear conosco. Temos necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>crer naquilo que vemos. Um espetáculo que se repete todas as noites segun<strong>do</strong> osmesmo ritos, sempre idênticos a si próprios, não po<strong>de</strong> conquistar nossa a<strong>de</strong>são.Temos necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o espetáculo ao qual assistimos seja único, que ele nosdê a impressão <strong>de</strong> ser tão imprevisto e tão incapaz <strong>de</strong> se repetir quanto qualquerato da vida, qualquer acontecimento trazi<strong>do</strong> pelas circunstâncias. 33Em O teatro e o seu duplo, escrito no início da década <strong>de</strong> 1930, Artaud<strong>de</strong>svenda o urro, a respiração e o corpo <strong>do</strong> indivíduo como espaço primordial <strong>do</strong>ato teatral, <strong>de</strong>nuncia o teatro digestivo e renuncia o castra<strong>do</strong>r logocentrismo,rejeitan<strong>do</strong>, assim, a supremacia da palavra. O “teatro da cruelda<strong>de</strong>” <strong>de</strong> Artaud nãopermitia nenhuma distância entre intérprete e plateia; to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veriam ser atuantese to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veriam fazer parte <strong>do</strong> processo ao mesmo tempo.40.31 C f . G OLD BE RG , Rose le e . A art e da pe rf o rm an ce – D o fu t u ris m o ao pre s e n te , p.32 AR TAUD , Ant o nin. O t e at ro e s e u du pl o , p. 95.33 AR TAUD , Ant o nin. L inguage m e v ida , p. 3 3.267 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Artaud lança uma questão que se erige para admitir que o teatroreencontre sua autêntica linguagem: “(...) <strong>de</strong> sons, <strong>de</strong> gritos, <strong>de</strong> luzes, <strong>de</strong>onomatopeias (...)” 34 on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os elementos objetivos se transformem emsignos. Estes signos, <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s da embrutece<strong>do</strong>ra imposição da palavra, sãovisuais, sonoros e tem a mesma importância intelectual e <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s sensíveisquanto a que palavras contêm.Com ações iniciadas em 1962, as quais envolviam rituais e sangue,Hermann Nitsch, artista austríaco nasci<strong>do</strong> em 1938, retoma alguns antigos ritosdionisíacos e cristãos, transportan<strong>do</strong>-os para um contexto mo<strong>de</strong>rno, on<strong>de</strong>supostamente ilustrava o conceito aristotélico <strong>de</strong> catarse através <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, <strong>do</strong>terror e da compaixão. Nitsch via seus trabalhos como uma extensão daactionpainting, on<strong>de</strong>, ao invés <strong>de</strong> tinta, as entranhas <strong>de</strong> animais sacrifica<strong>do</strong>s eramlançadas contra os participantes da atuação para compor a sua pintura ao vivo.Segun<strong>do</strong> o artista, os impulsos instintivos e <strong>de</strong>safora<strong>do</strong>s da humanida<strong>de</strong> tinhamsi<strong>do</strong> <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>s pelas mídias e, na experiência mo<strong>de</strong>rna, até mesmo o ritual comanimais, algo completamente natural para o homem primitivo, foi suprimi<strong>do</strong>. Osatos ritualiza<strong>do</strong>s compunham um meio <strong>de</strong> emancipar essa energia abafada através<strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> expurgação e re<strong>de</strong>nção com base no sofrimento. 35É notável que, sem Artaud, talvez o reencontro com o ritual (instante pré-arte) tão presente na arte <strong>do</strong> século XX e ainda na <strong>do</strong> século XXI não seriapossível. Festas Raves, eventos com exibições <strong>de</strong> suspensões, mo<strong>de</strong>rnprimitives,entre outras ostentações da <strong>do</strong>r (forma <strong>de</strong> relação com a catarse presente nosrituais pré-teatrais), são imersões que relatam uma cultura que exibe a afliçãocomo espetáculo ritualiza<strong>do</strong>, os quais recusam o texto como cerne <strong>de</strong> umaconcepção teatral, remontan<strong>do</strong> os i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Artaud, que foi o germe <strong>do</strong>shappenings e das criações coletivas <strong>de</strong> Grotowski e <strong>de</strong> Robert Wilson.Outras i<strong>de</strong>ias que se fazem ainda inexauríveis para a arte teatral atual,vieram da escola da Bauhaus e <strong>do</strong>s conhecimentos espaciais problematiza<strong>do</strong>s nas20 8.34 AR TAUD , Ant o nin. O t e at ro e s e u du pl o , p. 102.35 C f . G OLD BE RG , Rose le e . A art e da pe rf o rm an ce – D o fu t u ris m o ao pre s e n te , p.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012268


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275teorias e práticas <strong>de</strong> Shlemmer. Esse artista <strong>de</strong>senvolveu uma teoria maisespecífica da arte da performance, estabelecida na forma da clássica oposiçãonietzschiana entre Apolo e Dioniso. Dos ensinamentos e das exercitaçõespropostas por Shlemmer advém o aspecto mais marcante da Bauhaus, sen<strong>do</strong> asíntese entre a arte e tecnologia para atingir as formas “puras”. Para este fim, aperformance foi o recurso mais eficaz, pois acoplava os recursos mecânicos e aconcepção pictórica <strong>de</strong>senvolvida, as quais refletiam, ao mesmo tempo, asensibilida<strong>de</strong> artística e a tecnologia da Bauhaus.Outro aspecto notável neste perío<strong>do</strong> é a modificação corporal ou aconversão <strong>do</strong> corpo em uma espécie <strong>de</strong> corpo-máquina. O figurinoschlemmeriano era constituí<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s principais elementos dasconcepções das performances da Bauhaus, o qual estabelecia a compressão entreo corpo e o espaço <strong>de</strong> movimentação <strong>de</strong>sse corpo. Schlemmer rompeu com astendências inicialmente expressionistas das oficinas <strong>de</strong> teatro da Bauhaus paraarquitetar coerentemente com uma geometrização abstracionista através da busca<strong>do</strong>s elementos <strong>do</strong> movimento e <strong>do</strong> espaço.Relação entre “o Homem e a Máquina” ocupa o mesmo lugar <strong>de</strong> relevotanto nas análises da Bauhaus sobre a arte e tecnologia, como nas abordagens <strong>do</strong>sperformers liga<strong>do</strong>s ao construtivismo russo ou ao futurismo italiano. Osfigurinos da oficina <strong>de</strong> teatro eram <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a figura humana semetamorfoseasse num objeto mecânico, sen<strong>do</strong> esta uma re<strong>de</strong>finição da silhuetahumana bastante trabalhada pelo performer Stelarc, o qual, <strong>de</strong>ntro das suaspropostas performáticas realizadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as últimas décadas <strong>do</strong> século XX atéhoje, “retira o potencial <strong>do</strong> humano e apresenta o corpo como obsoleto, comouma estrutura ultrapassada.” 36 O artista procura expandir, por meio da tecnologiae da robótica, “as capacida<strong>de</strong>s sensoriais, operacionais, funcionais, perceptivas emotoras <strong>do</strong> ser humano” 37 .A Escola da Bauhaus foi fechada em 1932 pelos nazistas e, em 1933, nosEUA, vinte e <strong>do</strong>is estudantes e nove membros <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>cente da Bauhaus36 P I R E S , Be at riz F e rre ira. O co rp o co m o s u po rt e da art e , p. 95.37 ibid e m , p. 96.269 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275mudaram-se para um gran<strong>de</strong> edifício <strong>de</strong> colunas brancas <strong>do</strong> qual se avistava acida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Black Mountain. Em 1936, Xanti Schawinsky entrou para o BlackMountain College e logo esboçou um programa <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s cênicos, em gran<strong>de</strong>parte, uma extensão <strong>de</strong> experiências anteriores da Bauhaus. “Este curso nãopreten<strong>de</strong> oferecer formação em nenhum segmento específico <strong>do</strong> teatrocontemporâneo” 38 , o curso propunha um estu<strong>do</strong> geral <strong>de</strong> fenômenosfundamentais, tais como espaço, forma, cor, luz, som, movimento, música,tempo, etc. Mais uma evidência <strong>de</strong> que a palavra não exercia mais a hegemoniapara a elaboração da cena.Durante a Segunda Guerra Mundial houve um acentua<strong>do</strong> <strong>de</strong>créscimo dasações performáticas na Europa, enquanto que, nos EUA, a arte da performanceemergiu justamente no final <strong>do</strong>s anos 30, com a chegada <strong>do</strong>s exila<strong>do</strong>s <strong>de</strong> guerra,haven<strong>do</strong>, por este motivo, um enorme fluxo <strong>de</strong> europeus que passaram a vivernos EUA, principalmente em New York. Por volta <strong>de</strong> 1945, a arte daperformance tinha se torna<strong>do</strong> uma ativida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte no país.Nos EUA, em 1937, John Cage exprime suas i<strong>de</strong>ias no manifestointitula<strong>do</strong> O futuro da música, on<strong>de</strong> faz uso <strong>de</strong> sons <strong>de</strong> veículos a passar, da chuva,<strong>de</strong> estações <strong>de</strong> rádio, etc. Em 1952, surge sua obra silenciosa 4’33’’, a qualcomprova que não existe o silêncio. O primeiro interprete da obra, David Tu<strong>do</strong>r,sentava-se ao piano durante os quatro minutos e trinta e três segun<strong>do</strong>s, agitan<strong>do</strong>silenciosamente os braços por três vezes. Nessa peça favorita <strong>de</strong> Cage, osespecta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>veriam compreen<strong>de</strong>r que toda ausência <strong>de</strong> música era justamentea música; <strong>do</strong> suposto silêncio, emergia o som <strong>do</strong>s ruí<strong>do</strong>s. Diferentemente <strong>do</strong>sfuturistas que eram vaia<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>spertavam a ira da plateia, Cage foi bem recebi<strong>do</strong>pelos especta<strong>do</strong>res americanos.Influencia<strong>do</strong> pelo Zen-Budismo, Cage pensava que a arte não <strong>de</strong>veria serdiferente da vida, mas sim uma ação <strong>de</strong>ntro da própria vida, levan<strong>do</strong> em conta acasualida<strong>de</strong> e o aci<strong>de</strong>ntal. Com isso, as i<strong>de</strong>ias dadaístas e surrealistas <strong>de</strong> acaso eações não intencionais foram transpostas para suas obras. Alguns pintores, os38 G OLD BE R G , Rose le e . A art e d a pe rf o rm an ce – D o fu t u ris m o ao pre s e n te , p. 111.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012270


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275quais acabaram por ultrapassar os limites da tela, entre eles, Rauschemberg eJackson Pollock, foram influencia<strong>do</strong>s pelas aulas <strong>de</strong> Cage e pelos relatos <strong>de</strong>eventos ocorri<strong>do</strong>s no Black Mountain College.Em 1959, em New York, Kaprow possibilita que um grupo <strong>de</strong> pessoasassista ao 18 happenings em 6 partes. No convite, havia a informação <strong>de</strong> que opúblico faria parte integrante <strong>do</strong>s happenings e que po<strong>de</strong>ria vivenciá-losimultaneamente. Além disso, continha a informação <strong>de</strong> que o especta<strong>do</strong>r não<strong>de</strong>veria aplaudir ao fim <strong>de</strong> cada unida<strong>de</strong>, mas que po<strong>de</strong>ria fazer isso <strong>de</strong>pois dasexta unida<strong>de</strong>, se julgasse conveniente.Happening é um termo inventa<strong>do</strong> por Allan Kaprow ao fim da década <strong>de</strong>50, sob a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominar um acontecimento que é <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> napresença <strong>do</strong> público, sem que haja “obstáculos à criativida<strong>de</strong> pura”, ou seja,objetos, transposições ou mediações. 39 Conforme explicita o autor Renato <strong>de</strong>Fusco, no happening, há uma inevitável passagem da ação bidimensional da pinturae da ação tridimensional da escultura para uma “espacialida<strong>de</strong> mais vastavivida”, a cena teatral. Porém, o próprio ambiente convencional <strong>do</strong> teatro passa aser evita<strong>do</strong>, bem como os meios expressivos tradicionais, em uma criação querejeita a supremacia da palavra em prol da gestualida<strong>de</strong>.Em 1960, a dança, influenciada pelas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Cage, <strong>do</strong>s happenings e dasobras <strong>do</strong> grupo Fluxus, ganha uma nova extensão:eNo que diz respeito a questões <strong>de</strong> princípio, os bailarinos geralmentecompartilhavam as mesmas preocupações <strong>do</strong>s outros artistas, como, porexemplo, a recusa em separar as ativida<strong>de</strong>s artísticas da vida cotidiana e aconsequente incorporação <strong>de</strong> atos e objetos <strong>do</strong> cotidiano como material paraas performances. 40Yves Klein, em Antropometrias <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> azul, <strong>de</strong> 1960, através <strong>de</strong> umapintura ao vivo, o artista propôs o aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong>s elementos comuns para aexecução da pintura. Há aqui uma forte relação com a actionpainting <strong>de</strong> Pollock.39 C f . F US C O, R e nat o d e . H is t ó ria da a rt e co n t e m po rân e a , p. 35 6.40 ibi <strong>de</strong> m , p. 12 9.271 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275Muitos <strong>do</strong>s artistas nomea<strong>do</strong>s a seguir trouxeram clara influência dasações <strong>de</strong> Yves Klein, que dizia que “a arte era uma concepção <strong>de</strong> vida” 41 . A partirda década <strong>de</strong> 1970, a história da performance passou a ser mais estável, não sen<strong>do</strong>realizada como uma manifestação transitória para dar início a uma obra maismadura na pintura ou na escultura, como, por exemplo, no caso <strong>do</strong> futurismo nadécada <strong>de</strong> 1910.A chamada Arte Conceitual, oriunda <strong>de</strong>ste mesmo perío<strong>do</strong>, vinha com umaproposta contrária à da função comercial, haven<strong>do</strong>, portanto, uma rejeição <strong>do</strong>smateriais como tela, pincel, etc. O corpo passou a ser um recurso pertinente paraexpor tais i<strong>de</strong>ais artísticos, então os performers usavam o corpo como suporte(justamente como Klein fez alguns anos antes). “Ten<strong>do</strong> em conta que a arteconceitual implicava a experiência <strong>do</strong> tempo, <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> material, e não a suarepresentação na forma <strong>de</strong> objetos, o corpo tornou-se o meio <strong>de</strong> expressão maisdireto” 42 .Nesse perío<strong>do</strong>, há uma explosão <strong>de</strong> ações voltadas para o corpo, o queAmélia Jones chama <strong>de</strong> Bodyart, que é uma <strong>de</strong>signação vaga para abranger umavasta gama <strong>de</strong> interpretações, segun<strong>do</strong> Goldberg, portanto o termo performanceabrange melhor todas nomenclaturas que dizem respeito a um mesmo tipo <strong>de</strong>expressão que tem o corpo como principal ponto <strong>de</strong> criação.Nessa época, emergiu uma série <strong>de</strong> artistas que trabalharam com umconjunto <strong>de</strong> interferências criadas em seus corpos. Dentre eles, DennisOppenheim, que colocou um homem com uma perna mecânica e, com ummaçarico, foi <strong>de</strong>rreten<strong>do</strong> e alteran<strong>do</strong> a postura <strong>de</strong>sse indivíduo, enquanto suaperna era liquefeita. Em outra ação, o artista repousou um livro no peito e <strong>de</strong>ixouque o sol queimasse a sua pele, sob a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> marcar o objeto no seu corpo.Também <strong>de</strong>ste mesmo perío<strong>do</strong>, Chris Bur<strong>de</strong>n recebeu um tiro a quatro metros<strong>de</strong> distância em seu braço para retratar o perigo <strong>de</strong> forma inova<strong>do</strong>ra quan<strong>do</strong>comparada às obras teatrais ou das artes visuais. Gina Pane fazia cortes auto-infligi<strong>do</strong>s nas mãos, nas costas e no rosto; acreditava que a <strong>do</strong>r ritualizada tinha41 ibi <strong>de</strong> m , p. 13 5.42 ibi <strong>de</strong> m , p. 19 3.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012272


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275um efeito purifica<strong>do</strong>r e pretendia sensibilizar uma socieda<strong>de</strong> anestesiada. Usava,como elementos nas suas performances, o sangue, o fogo, o leite e a recriação da<strong>do</strong>r.Nas últimas décadas <strong>do</strong> século XX, sob a era da Media Art, assim comona arte em geral ocorre um hibridismo exacerba<strong>do</strong>, entre o teatro a performance,o efeito é <strong>de</strong> indistinção, pois um meio <strong>de</strong> expressão passa a interpenetrar nooutro. Die Klage Der Kaiserin, <strong>de</strong> Pina Bausch é um exemplo da fusão entre ví<strong>de</strong>o,dança, teatro e performance, resultan<strong>do</strong> numa espécie <strong>de</strong> vi<strong>de</strong>odança 43 se não for <strong>de</strong>fato isso.Assim como nas artes visuais, as quais fizeram um retorno à pintura nosanos <strong>de</strong> 1980, o teatro e a dança promoveram um distanciamento <strong>do</strong>sfundamentos intelectuais das experiências <strong>do</strong>s anos <strong>de</strong> 1970. Os artistas <strong>de</strong>sseperío<strong>do</strong> produziram obras mais tradicionais (entretenimento), com cenários,figurinos, corpos treina<strong>do</strong>s, embora alguns artistas tenham permaneci<strong>do</strong> ativosatravés <strong>do</strong>s mol<strong>de</strong>s mais radicais da performance art.O teatro “pós-dramático”, conforme nomeia Hans-Thies Lehmann, surgeexatamente quan<strong>do</strong> a performance evolui para uma condição que não a torna tãodistante <strong>do</strong> teatro, tornan<strong>do</strong>-se o que Roselee Goldberg chama <strong>de</strong> “novaperformance”, “novo teatro” ou ainda, “performance fringe”. O teatro, aperformance e a dança aos mol<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s anteriores não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> serfeitos, mas insurgia nesse momento, com maior ênfase, a síntese das expressõesartísticas que estão impressas nos trabalhos <strong>de</strong> Pina Bausch, Gerald Thomas,Laurie An<strong>de</strong>rson, Jan Fabre, Anatoli Vassiliev, Peter Brook, Bob Wilson, ouainda, <strong>do</strong> grupo ForcedEntertainment, entre outros. Estes artistas e coletivos da“geração da mídia” são exemplos <strong>de</strong> que, na arte contemporânea, não há maispossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pensar isoladamente o teatro, a dança, a música ou qualqueroutro meio <strong>de</strong> expressão; as artes estão completamente integradas. Portanto, nãofaz senti<strong>do</strong> manter o teatro sob as amarras da palavra, pois a comunicação teatral43 Vid e od anç a é u m a f orm a a rt í st ic a q u e ai nd a e st á e m d e se n vol vim e nt o e mt od o o m u nd o; é bas ic am e nt e f or m ad a d a ju nç ão d a d anç a , d o víd e o, d as n ova st e c nolog ia s e d o c ine m a.273 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275passa a ser calcada em outros novos recursos, oriun<strong>do</strong>s das artes visuais, da dançae <strong>de</strong> outros manifestos artísticos.Caminhamos para uma arte total, para uma transmídia, para a eliminação<strong>de</strong> suportes que impe<strong>de</strong>m ou que se tornem mais importantes que a própriatransmissão da mensagem artística. 44Toman<strong>do</strong> emprestada a observação da autora Christine Mello com relaçãoao ví<strong>de</strong>o e seus limites, as expressões artísticas, “ao mo<strong>do</strong> antropofágico, <strong>de</strong>vemser <strong>de</strong>sfrutadas, comidas, negadas, transmutadas” 45 .Referências bibliográficasARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Editora Pespectiva, 2004.ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.COHEN, Renato. A performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva,1994.COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo:Perspectiva, 2006.DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto: Res-Editora, s/d.FIZ, SimónMarchán. Del arte objetual al arte <strong>de</strong> concepto – Epilogo sobre lasensibilidad “postmo<strong>de</strong>rna” (1960-1974). Madrid: Akal, 2001.FUSCO, Renato <strong>de</strong>. História da arte contemporânea. Lisboa: EditorialPresença,1988.GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2011.GOLDBERG, Roselee. A arte da performance – Do futurismo ao presente. SãoPaulo: Martins Fontes, 2006.GOMES, Hel<strong>de</strong>r. Friedrich Nietzsche: a arte como mo<strong>de</strong>lo da relação entre ohomem e o real. Porto: Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto, s/ data.44 C OH E N , R e nat o. P e rf o rm ance com o l inguage m , p. 163.45 M E LLO, C hr ist i ne . E xt re m ida <strong>de</strong> s <strong>do</strong> v í<strong>de</strong> o , p. 21.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012274


Frey, Tales – A performance e o <strong>de</strong>sfazimento <strong>do</strong> logocentrismo nas artes cénicas 255 -275JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto <strong>de</strong> arte. São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo:Estação Liberda<strong>de</strong>, 2005.JONES, Amélia. BodyArt - Performingthesubject. Minneapolis/Lon<strong>do</strong>n:University of Minnesota Press, 1998.2007.LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify,LYOTARD, Jean-François. O pós-mo<strong>de</strong>rno explica<strong>do</strong> às crianças. Lisboa:Publicações <strong>Dom</strong> Quixote, 1987.1995.1997.LYOTARD, Jean-François. A condição pós-mo<strong>de</strong>rna. Lisboa: Gradiva, 1987.MELIM, Regina. Performance nas artes visuais. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2008.MELLO, Christine. Extremida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> ví<strong>de</strong>o. São Paulo: Editora Senac, 2008.NIETZSCHE, Friedrich. La volonté <strong>de</strong> puissance, Vol. II. Paris: Gallimard,NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Lisboa: Relógio D`água,PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte. São Paulo: EditoraSENAC, 2003.SCOVINO, Felipe. Arquivo contemporâneo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7 Letras, 2009.VERGINE, Lea. Il corpo come linguaggio (la “body-art” e storiesimili). Milão:GiampaoloPrearo Editore, 1974.275 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


IO (ANCORA) SONO L’AMORE: ALGUMASCONSIDERAÇÕES SOBRE AMOR E ADULTÉRIOFEMININOS NO FILME DE LUCA GUADAGNINOVerônica Daminelli Fernan<strong>de</strong>sFaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Sociais e Humanas da Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> LisboaFCSH-UNLPortugalveronica.daminelli@gmail.comResumoEste trabalho analisa a protagonista <strong>do</strong> filme “Io sono l’amore”a partir <strong>do</strong>imaginário oci<strong>de</strong>ntal que impeliu a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> das mulheres para o amor. Pornotropicrusso a ser insemina<strong>do</strong> pela civilização italiana, Emma será a proprieda<strong>de</strong>erotizada que encontra no adultério a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transgredir contra ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>que sustenta. Porém, se a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ameaça a or<strong>de</strong>m para qual asmulheres servem <strong>de</strong> base, elaainda colaboracom a inteligibilida<strong>de</strong> que liga asmulheres ao imaginário amoroso dito livre.Palavras-chave: Mulheres, Porno, Tropics, Adultério, Dispositivo amoroso,ItáliaAbstractThis paper analyses the main character in the film "Io sonol'amore"through the Western imagination that impelled the i<strong>de</strong>ntity ofwomen for love.Russian porno-tropic to be inseminated by the italian civilization, Emma will bethe eroticized property that finds in the adultery the possibility to transgressthei<strong>de</strong>ntity that she supports. However, if femaleinfi<strong>de</strong>lity threatens the social or<strong>de</strong>r


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293to which women serveas a base, it seems to also work with the intelligibilitythatconnects womento the pseu<strong>do</strong>-free loving's imaginary.Keywords: Women, Porno, Tropics, Adultery, Love <strong>de</strong>vice, Italy“A mulher nada é sem o amor.”(Honoré <strong>de</strong> Balzac, A mulher <strong>de</strong> Trinta Anos)“Sou mestre na arte <strong>de</strong> falar em silêncio,passei minha vida toda conversan<strong>do</strong> em silêncioe em silêncio acabei viven<strong>do</strong> tragédias inteiras comigo mesmo.”(Fió<strong>do</strong>r Dostoiévski, Uma criatura dócil)Lança<strong>do</strong> nos cinemas portugueses em 2010, “I am love” (“Io sono l’amore”;Luca Guadagnino; 2009) chegou às telas eleito pela crítica especializada como um<strong>do</strong>s melhores filmes daquele ano. Com Tilda Swinton no papel principal,basicamente conta a história <strong>de</strong> um amor proibi<strong>do</strong> e <strong>de</strong> um adultério feminino.Giran<strong>do</strong> em torno <strong>de</strong>Emma Ricchi, uma russa que migra para Itália nos anos 80para se tornar matriarca <strong>de</strong> uma família tradicional milanesa, o filme conta ainda ahistória da perda da fábrica da família, um estabelecimento que sustentou porgerações a mansão e a riqueza <strong>do</strong>s Ricchi. Sem conseguir resisitr como negóciofamiliar, ela é vendida para uma holding inglesa, e o seu valor é divi<strong>do</strong> entre osher<strong>de</strong>iros da família: os três filhos que Emma tem com o mari<strong>do</strong> italiano.É a partir <strong>de</strong> como o filho mais próximo <strong>de</strong> Emma, E<strong>do</strong>, preten<strong>de</strong>investira sua parte da herança em umnovo restaurante que a questão <strong>de</strong> Emma começa ase <strong>de</strong>senvolver, já que é por Antonio, chef <strong>de</strong> cozinha, que ela vai se apaixonar. Éentre comentários sobre o amor, nacionalida<strong>de</strong>s, conflito <strong>de</strong> classes e a mudança<strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> capital industrial para o especulativo que a relação vai começarPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012278


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293a se dar.Se o escândalo da traição já se daria pela própria posição social <strong>do</strong>sRicchi na Milão retratada<strong>do</strong>s anos 2000, ele se agrava por ser Antonio não apenaso futuro sócio <strong>de</strong> E<strong>do</strong> no restaurante que vão abrir juntos, mas seu amigotambém. De fato, <strong>de</strong>ntro da tradição oci<strong>de</strong>ntal que culpabiliza o adultério feminino,Emma vai pagar coma morte <strong>de</strong> E<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo concretiza<strong>do</strong> fora da fábrica (literale simbólica; privada e social) <strong>do</strong>s Ricchi.No entanto, se a <strong>de</strong>cadência da burguesia italiana metaforicamenterepresentada pela insustentabilida<strong>de</strong> da fábricasegue o <strong>de</strong>smoronar daquelafamília numa Itália financeira e moralmente em crise resulta<strong>do</strong> da era SilvioBerlusconi,isto <strong>de</strong> maneira alguma significa dizer que a crise modificaintrinsecamente a or<strong>de</strong>m das coisas e as concepções patriarcais. Ao contrário,vemos a imagem <strong>de</strong> uma elite que ainda pune“as paixões inúteis”,fora da hierarquiafamiliar, e, <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, culpa o <strong>de</strong>sejo femininoquan<strong>do</strong> não sustenta a manutençãoe coesão <strong>do</strong> status quo.Isso porque é a “female sexuality” que é capaz <strong>de</strong> rachar oimaginário que semiótica e literalmente <strong>de</strong>fine o local <strong>do</strong> Eu e <strong>do</strong> Outro, <strong>do</strong>schama<strong>do</strong>s masculino e <strong>do</strong> feminino, <strong>do</strong> nacional e <strong>do</strong> estrangeiro (Nagel, 2003: 167,203).Sen<strong>do</strong> assim, como propomos aqui mostrar, embora rompa com a famíliaque sustenta, em nenhum momento Emma rompe, <strong>de</strong> fato, com as tecnologias<strong>de</strong> gênero que cristalizam a chamada inteligibilida<strong>de</strong> das mulheres. Num tempoem que a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos quase impõe a violência da ligação amorosa, ainfi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> não parece tão transgressora assim. No filme como na vida, aquiloque Guadagnino e Tilda, que co-produziram o filme e investiram no projeto mais<strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, acabam por dizer é que o amor femininoparece resistir como estruturamuito bem sedimentada contra a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo das mulheres. Se háliberda<strong>de</strong> para elas, ela ainda parece ser conquistada e representada pela ligaçãocom um Homem. E se assim continua a ser, é porque, <strong>de</strong> fato, a inteligibilida<strong>de</strong>das mulheres continua a ser inseparável <strong>do</strong> dispositivo amoroso e <strong>do</strong> acessofemininoao Um masculino<strong>de</strong> eleição.279 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293Geografia e gênero: a mulher russa como porno-tropicNira Yuval-Davis fala que as formas <strong>de</strong> opressão não po<strong>de</strong>m serseparadas, ao lembrar que as mulheres <strong>do</strong>s países periféricos sofrem com umdiscurso duplamente reforça<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> <strong>de</strong>finidas as suas subjetivida<strong>de</strong>s em <strong>do</strong>isníveis (Yuval-Davis, 2008: 8; Spivak, 2010). Se o gênero feminino ocupa lugarsubalterno nos discursos <strong>de</strong> representação da Nação, as mulheres <strong>do</strong>s paísesperiféricos são aquelas que têm constantemente <strong>de</strong> renegociar não apenas a suahierarquia na escala social interna, como também estruturar a sua relação com odiscurso imperial, ten<strong>do</strong>, assim, <strong>de</strong> mediar o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> discursopatriarcal e <strong>de</strong>ntro da lógica imperialista. Sobre sexo e geografia, Joane Nagellembra que os espaços geográficos são sempre marca<strong>do</strong>s por zonas sexuais. Seexistem “red light districts for prostitution, “gay districts” for homosexuals, singles bars, adultentertainment and zones for families”, o mesmo se po<strong>de</strong> dizer sobre o espaço global(Nagel, 2003: 47). Áreas etnicamente segregadas e fronteiras étnico-sexuaistambém são estabelecidas pela relação centro-periferia cujas barreiras sexuaismoldam a cultura, os discursos e também o espaço geográfico(Nagel, 2003: 47,48). Anne McClintock fala da tradição <strong>do</strong> centro-europeu em erotizarlibidinosamente as mulheres estrangeiras da periferia geográficacomo exóticas,símbolos <strong>de</strong> terras menos <strong>de</strong>senvolvidas e com necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sereminseminadas por civilizações ditas superiores, justifican<strong>do</strong> a violência eenten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o gênero como fundamental para manter a segurança da lógicaimperial (McClintock, 1995: 3; 22).A Rússia <strong>de</strong> Emma, <strong>de</strong>ssa forma, representano filme o papel <strong>de</strong> naçõesexcêntricas cujas mitologias são fundadas a partir <strong>de</strong> um discurso cria<strong>do</strong> peloestrangeiro hiper-ultra-civiliza<strong>do</strong>. Suas mulheres serão representadas comosubjetivida<strong>de</strong>s disponíveis para as culturas mais “<strong>de</strong>senvolvidas”, o que McClintock<strong>de</strong>finiu como porno-tropics, termo cria<strong>do</strong> para <strong>de</strong>signar o espaço geográficoperiférico em que o <strong>de</strong>sejo sexual “masculino” estrangeiro po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver seusimaginários eróticos. Nesses espaços, as mulheres estarão sempre figuran<strong>do</strong>excessos <strong>de</strong> paixão e <strong>de</strong> amor, quase sempre à disposição <strong>do</strong>s homensPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012280


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293(McClintock, 1995: 22). Aqui, “o feminino” não apenas será compara<strong>do</strong> à terraestrangeira, pobre e inferior para o país mais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>, mas será <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>como categoria da natureza a ser <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, conquista<strong>do</strong> e preenchi<strong>do</strong>(McClintock, 1995: 24). É o homem (e o discurso mo<strong>de</strong>rno) aquele capaz nãoapenas <strong>de</strong> se apropriar, conquistar e <strong>de</strong>finir a terra <strong>do</strong> Outro, como tambéminscrever as mulheres estrangeiras na tradição filosófica <strong>do</strong> matrix da cultura emque o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s discursos nacionalistas vai prece<strong>de</strong>r a emergência <strong>do</strong> humano(Irigary, 1997: 102; Butler, 1993: 7).Ainda que tenha importância significativa na história mundialnomeadamente no século XX, é importante lembrar quea Rússia para<strong>do</strong>xalmenteestá fora <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> uma maneirasingularmente própria.De extensãoenorme, raramente é possível imaginar uma vida consi<strong>de</strong>radacivilizada fora dasgran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s em que o cotidiano dasenormes classes <strong>de</strong>stituídas se dá (Moser,2009:153). Além disso, como Tolstóibem nos faz ver em seus romances, parecesempre ter havi<strong>do</strong> uma preocupação com uma autenticida<strong>de</strong> nacional inseparávelda influência francesa, o que, para muitos, dá à sua literatura, arte e cultura umsabor colonial, <strong>de</strong> segunda mão (Moser, 2009: 154), que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> olhar <strong>de</strong>aceitação <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> estrangeiro superior. Tal condição para<strong>do</strong>xal buscou umasolução que explicaria a relação russa com o Outro europeu civiliza<strong>do</strong>, ainda maisapós o fim <strong>do</strong> comunismo, época <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong> para a socieda<strong>de</strong> russa como umto<strong>do</strong> e para as mulheres em particular.Nação muitas vezes associada àprostituição, disponibilida<strong>de</strong> e pobreza, a Rússia e as suas mulheres mais <strong>do</strong> quenunca têm a sua auto-percepção <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> olhar <strong>do</strong>s países centrais.A importância da influência francesa, no filme substituída pela cultura <strong>do</strong>norte da Itália, coloca, então, Emma emergin<strong>do</strong> com uma ansieda<strong>de</strong> silenciosacontraposta a todas as imagens estáticas, tradicionais e consolidadas da Milãoque,no filme, representa o Centro Europeu rico e <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>, camuflan<strong>do</strong> aviolência em que a posse <strong>do</strong> corpo “feminino” é concretizada <strong>de</strong> duas formasdiferentes: como mulher e como estrangeira. Emma, como a Rússia, <strong>de</strong>ve ser,assim, construída e <strong>de</strong>finida <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o conhecimento erótico gen<strong>de</strong>riza<strong>do</strong>.A periferia geográfica é feminilizada e disponível para a exploração masculina e a281 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293inseminação da civilização, referência direta <strong>do</strong> “feminino” à geografia comopatrimônio analisa<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> um conhecimento científico que garante aopo<strong>de</strong>r masculino e imperial o direito <strong>de</strong> controlar o espaço geográfico e arepresentação das mulheres (McClintock, 1995: 28).Emma, <strong>de</strong>ssa maneira, surge como representação <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong>inferiorida<strong>de</strong> e insignificância periférica que busca uma compensação na tentativa<strong>de</strong> se a<strong>de</strong>quar aos valores <strong>de</strong> uma das economias mais potentes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, aItália. Seu cuida<strong>do</strong> em tentar ser perfeita é explicita<strong>do</strong> em boa parte na primeirameta<strong>de</strong> <strong>do</strong> filme. Dona <strong>de</strong> casa organizada, mãe compreensiva, mulher atenciosacom o seu mari<strong>do</strong> italiano, ela serve com a exatidão <strong>de</strong> cada gesto à estruturafamiliar e à fábrica <strong>do</strong>s Ricchi que, no filme, acompanha a história da família e, aomesmo tempo, é metáfora da nação italiana em ascenção pós-SegundaGuerra.Uma nação que já não existe mais, que está moralmenteem ruínascomo osescândalos <strong>do</strong> antigo primeiro ministro Berlusconi fizeram ver, mas que, mesmoassim, tem dificulda<strong>de</strong>s em se abrir e aceitar a diferença na sua totalida<strong>de</strong>. Aceita-se a mulher estrangeira, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela se vista completamente <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>smo<strong>de</strong>los Armanie a partir da fábrica social italiana <strong>de</strong> formas e conteú<strong>do</strong>,processo <strong>de</strong> significação que a tu<strong>do</strong> critica, diferencia ou fora-localiza, meta-linguagem que busca a tu<strong>do</strong> or<strong>de</strong>nar para justificar a opressão e o preconceito.Emma, assim, faz o que <strong>de</strong>ve fazer, é aquilo que <strong>de</strong>ve ser e procura seadaptar ao ambiente em que passa a viver: roupas,atitu<strong>de</strong>s e mais: ganha um novonome compreensível/adapta<strong>do</strong> à realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Milão. Ao mudar o seu antigonome e, consequentemente, aceitar a sua nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> italiana, acaba setornan<strong>do</strong> a personagem que foi criada e que criou para si, ofuscan<strong>do</strong> <strong>de</strong> formasóbria a sua origem. Como diz Benjamin Moser, é pelo processo <strong>de</strong> nomear queas coisas são trazidas à existência (Moser, 2009: 57). Quan<strong>do</strong> recebe o nomeitaliano, Emma Ricchi, referência irônica e direta à personagem <strong>de</strong> GustaveFlaubert, talvez a adúltera mais famosa da literatura oci<strong>de</strong>ntal, Emma pareceper<strong>de</strong>r não apenas a única coisa que singulariza cada ser-humano, mas também asua nacionalida<strong>de</strong>, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem que só é mencionada pela famíliaPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012282


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293milanesa praticamente quan<strong>do</strong> algo <strong>de</strong> ruim acontece. Quan<strong>do</strong> é assim, é o<strong>de</strong>stempero <strong>do</strong> sangue russo a falar.De fato, ao aban<strong>do</strong>nar a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem, ela acaba se tornan<strong>do</strong>personagem <strong>do</strong> seu novo nome, da criação <strong>do</strong> seu novo eu, em que o processo<strong>de</strong> <strong>de</strong>snomear e o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertencer são inseparáveis, para os italianos, daadaptação à realida<strong>de</strong> superior. Viven<strong>do</strong> como italiana, vestin<strong>do</strong>-se como italiana,ela é castrada na sua diferença, acomodada na condição inferiorizada, aceitan<strong>do</strong> asua ficção, sua inexistência transformada em verda<strong>de</strong> e o caráter inventa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sienquanto sujeito. Não é à toa que, no jantar inicial que abre o filme, apenasimagens da família italiana em construção <strong>de</strong> Emma apareçam: fotos com osfilhos pequenos, fotos com o mari<strong>do</strong>, nada da Rússia.Emma, assim, não tempassa<strong>do</strong> e está fechada: pouco se sabe <strong>de</strong>la, da sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, da sua interiorida<strong>de</strong>e subjetivida<strong>de</strong> que sejam anteriores ao seu casamento. Quan<strong>do</strong> passamos a saber<strong>de</strong> algo, isto se dá apenas quan<strong>do</strong> ela inicia o seu envolvimento com oamante.Até lá, a não ser pela sopa típica da Rússia que insiste em tomar, seushábitos e suas memórias <strong>de</strong> origem são praticamente apaga<strong>do</strong>s. Não há históriaou fotos da sua família russa.Nada disso existe perante a vida italiana que Emmavive. Daí o mari<strong>do</strong> ter razão quan<strong>do</strong> diz a ela, ao <strong>de</strong>scobrir a traição: “Tu nonesisti”.Adultério feminino e puniçãoEm seu livro sobre infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s, Stephen Brook corrobora: a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>masculina sempre foi permissiva <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2500 anos passa<strong>do</strong>s seja com prostitutas,cortesãs ou mesmo com outras mulheres (Brook, 1994: xi). Por outro la<strong>do</strong>, asmulheres sempre estiveram restritas aos seus papéis e espaços <strong>do</strong>mésticos, com asua sexualida<strong>de</strong> monitorada por séculos, sen<strong>do</strong> culpabilizadas quan<strong>do</strong> infiéis. Defato, a tensão se dá a partir <strong>do</strong> momento em que os interesses das mulheres,principalmente no que diz respeito à “female sexuality”, são coloca<strong>do</strong>s como umarachadura no imaginário que <strong>de</strong>fine o dito “feminino natural”que sustenta a or<strong>de</strong>mda socieda<strong>de</strong> (Nagel, 2003: 167, 203).283 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293A partir <strong>de</strong>sse contexto, tem senti<strong>do</strong> perguntar: se o adultério <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ser con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX pelo direito penal, por que ainda nãoaconteceu o mesmo com as mentalida<strong>de</strong>s (Houel, 2001)? Se o divórcio é aceito,<strong>de</strong> que forma ele foi oficializa<strong>do</strong> sem trazer junto nenhum efeito colateral para amanutenção da or<strong>de</strong>m das coisas? Por que ainda, como pergunta Annik Houel,persiste a rejeição puritana e violenta à infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> feminina (Houel, 2001: 9)? E,mais ainda, com o casamento por amor sen<strong>do</strong> o mo<strong>de</strong>lo atual típico <strong>de</strong> ligaçãoentre homens e mulheres da socieda<strong>de</strong> patriarcal, por que continuam a ser asmulheres as mais notabilizadas nas representações artísticas, sociais e políticaspela sua infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e por que é que, quan<strong>do</strong> traem, parecem ganhar tão gran<strong>de</strong><strong>de</strong>staque (negativo) social?A problematização é compreensível se pensarmos que o adultério colocaem causa não apenas o <strong>de</strong>sejo “feminino”, mas vai além. Se infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, como dizBrook, é uma negação (Brook, 1994: i), ela é a negação da realida<strong>de</strong> estática dafamília patriarcal, que seria a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao casamento e a moral social imposta,subverten<strong>do</strong> a hierarquia em busca <strong>de</strong> circunstâncias que se realizam fora <strong>do</strong>discurso da or<strong>de</strong>m. O adultério, mais <strong>do</strong> que uma relação entre indivíduos queencaram a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> como uma questão pessoal, seria um dano não contra oparceiro traí<strong>do</strong>, mas uma lesão realizada contra a fábrica social (Brook, 1994:xvii). Assim, qualquer tipo <strong>de</strong> amor que não é aproveitável para a civilização éconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> inútil e fora da moral. E qualquer mulher que se <strong>de</strong>ixar guiar porseus <strong>de</strong>sejos e “excessos” só po<strong>de</strong> vir a trazer problemas, ser encarada comoaberração e grotesca, terminar punida ou na miséria profunda (Del Priore, 2011:89).Nesse senti<strong>do</strong>, a crise da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> não abriu necessariamente novaspossibilida<strong>de</strong>s para as mulheres e muito menos significou a perda da confiança narazão e na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> masculina (Russo, 1995: 27), ambas ainda noções universaise estáticas <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> normalida<strong>de</strong>. Para McClintock, a <strong>de</strong>generação semprefoi menos um fato biológico <strong>do</strong> que uma questão <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social (McClintock,1995: 47). Os esforços constantes para controlar os corpos femininos e as suassexualida<strong>de</strong>s foram naturaliza<strong>do</strong>s principalmente com a ajuda <strong>do</strong> darwinismo quePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012284


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293chegou organizan<strong>do</strong> culturas como narrativas globais manejadas pelos europeusno meio <strong>do</strong> século XIX (McClintock, 1995: 45). A natureza das mulheres, assim,era <strong>de</strong>finida primordialmente com o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> servir ao homem, como mães eesposas, símbolo <strong>do</strong> controle racial, econômico e político. De fato, a maternida<strong>de</strong>se tornou racionalizada pela necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s filhos, pelo regimento das agendas<strong>do</strong>mésticas e em função da administração da educação <strong>do</strong>mésticacontribuísse para o crescimento <strong>do</strong> corpo social (McClintock, 1995: 47).Dessa maneira, à Emma cabe apenas a punição pelo seu adultériocom a morte <strong>do</strong>filho E<strong>do</strong>, com o afastamento <strong>do</strong>s familiares e pela inacessibilida<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>riopolítico e econômico que a família <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> tem na cida<strong>de</strong>. Sua relação com ohomem mais jovem não apenas <strong>de</strong>strói a família em que vivia, como causa amorte <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s her<strong>de</strong>iros, não ten<strong>do</strong> utilida<strong>de</strong> prática alguma para uma Itáliacontemporânea com problemas sérios <strong>de</strong>correntes da queda <strong>do</strong> crescimento<strong>de</strong>mográfico. Nesse senti<strong>do</strong>, a sexualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la é mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>sviante, éproblema <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública. A opção pelo rompimento com a famíliacompromete o futuro <strong>de</strong> uma nação que não po<strong>de</strong> aceitar que Emma dispa a sua“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> italiana”com a mesma facilida<strong>de</strong> com que a obrigou a aban<strong>do</strong>nar a sua“nacionalida<strong>de</strong> russa”.Como Nina Baym explica, a existência <strong>do</strong> nacionalismo e <strong>do</strong>seu imaginário comunitário exige a oposição ou mesmo supressão <strong>do</strong> ser priva<strong>do</strong>.Nesse senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>senvolver a ignorância quase completa sobre a vidainterior ou, então, <strong>de</strong>ve-se criar espaços para a construção da culpa, da paixãocomo mal <strong>de</strong>sviante e <strong>de</strong> aflição humana. O “eu individual” <strong>de</strong> Emma, assim, éperverso, fazen<strong>do</strong> mal à família e socieda<strong>de</strong> em que toda a sua energia<strong>de</strong>veriaestar sen<strong>do</strong> investida com o objetivo <strong>de</strong> estabelecer o progresso e acontinuação (Baym, 2010: 308, 309). Seguin<strong>do</strong> Freud nessa posição, a socieda<strong>de</strong> ea civilização seriam incompatíveis com uma privacida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, livre. Trata-se<strong>de</strong> uma cultura que está comprometida com a representação e com as <strong>de</strong>mandas<strong>de</strong> construção da socieda<strong>de</strong>, em que cada aspecto da vida humana <strong>de</strong>ve estar sobcontrole, sen<strong>do</strong>, assim, incompatível com a vida privada ou íntima (Baym, 2010:309).que285 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293Dessa maneira, ao travar uma batalha pelo seu <strong>de</strong>sejo priva<strong>do</strong>, Emma temque ser punida por toda a família <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e tem que pagar <strong>de</strong> preferência como pior sofrimento que uma mulher teoricamente po<strong>de</strong> aguentar: a perda <strong>de</strong> umfilho. A sua força subversiva (privada e pública) <strong>de</strong>ve ser con<strong>de</strong>nada a partir <strong>do</strong>momento em que não sacrifica mais a própria vida a favor dasocieda<strong>de</strong>. Mais <strong>do</strong>que mãe, Emma não quer mais ser a representação pura, fiel e casta dacomunida<strong>de</strong> que escolheu (e foi escolhida) para representar. Tem que fugir e seafastar <strong>do</strong> resto da famíliana mesma proporção em que se coloca insubordinada e<strong>de</strong>terminada a trair o i<strong>de</strong>al da família e <strong>do</strong> nacionalismo italianos.Dormin<strong>do</strong> com o inimigo, o amorSe Emma não consegue, entretanto, aguentar mais a sua imagemcoercitiva, será principalmente na sua segunda relação sexual com Antonio queveremos a sua vonta<strong>de</strong> em se <strong>de</strong>spir. É ali que ela aceita que ele vá tiran<strong>do</strong> cadapeça <strong>de</strong> roupa sua, com a permissão consciente <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>ixa para trás mais <strong>de</strong>20 anos <strong>de</strong> uma subjetivida<strong>de</strong> subordinadaque esteve colada ao seu corpo damesma forma que as roupas que teve que usar até o momento.No entanto, nãoserá ela que se vai <strong>de</strong>spir, mas Antonio que vai, com calma, retirar cada peça <strong>de</strong>roupa <strong>de</strong>la como se retirasse a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> construída para ela se encaixar <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> imaginário tradicional italiano. Ela, então, está na casa campestre <strong>do</strong> amigo <strong>do</strong>filho: mais próxima da natureza, mais longe das construções acerca da suainteligibilida<strong>de</strong> e, consequentemente, mais perto <strong>de</strong> um, como diria ClariceLispector, “coração selvagem”. Quan<strong>do</strong>, enfim, ela está nua, ele po<strong>de</strong> vê-la sem asconstruções, sem preenchimento, sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, nua subjetiva e corporalmente,apenas à espera <strong>de</strong> ser reconhecida. É Antonio ainda que quer saber <strong>do</strong> seupassa<strong>do</strong>, da sua origem, da sua língua materna. E Emma, por sua vez, já nãoparece saber quem é. Se é capaz <strong>de</strong> resumir o seu primeiro encontro com omari<strong>do</strong> na Rússia, só lhe parece, entretanto, restarna memória a receita da sopaque tanto ela quanto E<strong>do</strong>, o filho que acabará por morrer, gostam tanto.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012286


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293É em relação à sopa que Emma consegue, por pouco tempo, mostrar queainda tem acesso à sua subjetivida<strong>de</strong>. Depen<strong>de</strong>nte anteriormente <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> eagora <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>Antonio nos <strong>de</strong>spimentos das roupas como metáfora dacultura que a violentou, Emma parece <strong>de</strong>positar na sopa as últimas memóriasacerca da Rússia, bem como <strong>do</strong> seu eu com gostos e subjetivida<strong>de</strong> próprios. Aodar a Antonio a receita <strong>do</strong> prato, ela vai <strong>de</strong>svendar, pela primeira vez em to<strong>do</strong>filme, o segre<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ingredientes, mas também aquilo que <strong>de</strong> mais próximo aindaconserva da sua origem. De fato, Emma parece enten<strong>de</strong>r que passar a receitadaquele prato singular é dar a Antonio o acesso à sua singularida<strong>de</strong> que buscaamar e ser amanda pelo que é, com seu corpo já sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, já nem russo enem italiano, e espaço vazio à espera <strong>de</strong> inscrição. É Antonio, mais uma vez,então, que finaliza o rompimento total com a família e a realida<strong>de</strong> italiana aocortar o cabelo <strong>de</strong> Emma. Ao cortá-lo, eledá ao cabelo <strong>de</strong> Emma um caimentomais curto, mais jovem e menos controlável, tentan<strong>do</strong> recuperar não apenassimbolicamente os anos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> por ela perdi<strong>do</strong>s, mas ainda rompercom aimagem que há anos ela vem carregan<strong>do</strong> para se inserir e ser aceita na culturaitaliana. O corte <strong>de</strong> cabelo, assim, é uma espécie <strong>de</strong> rompimento radical com aItália em que Emma viveu até então. Corte este que só po<strong>de</strong>ria ser maiorjustamente com o gran finale que a morte <strong>de</strong> E<strong>do</strong> é capaz <strong>de</strong> causar: ao <strong>de</strong>scobrir oadultério da mãe, eles discutem, E<strong>do</strong> cai, bate a cabeça e morre.É aqui que o filme parece sair <strong>do</strong> lugar-comum das paixões <strong>de</strong> ocasião quea tu<strong>do</strong> movem ou <strong>de</strong>stroem e arrisca uma reflexão maior sobre autonomia dasmulheres em tempos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, colocan<strong>do</strong> em questão as noções <strong>de</strong>emancipação e libertação femininas. É Antonio que <strong>de</strong>scontrói Emma, corta oseu cabelo, tira as suas roupas, quer saber a sua história. Tu<strong>do</strong> parece acontecerdamesma forma como anteriormente havia aconteci<strong>do</strong> com o mari<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> este<strong>de</strong>finiu os espaços <strong>de</strong> atuação <strong>de</strong>la. É ainda pelo acaso da morte <strong>do</strong> filho que sua<strong>de</strong>cisão é, enfim, tomada, e ela <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se separar e fugir.Nesse senti<strong>do</strong>, cabeperguntar: quenova Emma é essa que passa anos sob outra i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e sóconsegue se reinventar após vivenciar uma tragédia e uma relação amorosa comoutro homem? Que Emma é essa que, mesmo quan<strong>do</strong> foge, já no fim <strong>do</strong> filme,287 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293foge em função <strong>do</strong> acaso, continuan<strong>do</strong> sem falar, permanecen<strong>do</strong> no silêncio,ainda sem voz, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte/vítima <strong>do</strong> apoio <strong>de</strong> um outro homem para po<strong>de</strong>rcriar o seu próprio eu?Para enten<strong>de</strong>r os mecanismos que ainda hoje fazem as mulheres seencontrarem no esta<strong>do</strong> (Esta<strong>do</strong>) em que se encontram, tem-se que enten<strong>de</strong>rcomo uma população inteira po<strong>de</strong> ser mantida sob controle. De acor<strong>do</strong> comVirginie Despentes, o erotismo é o campo da luta pelo po<strong>de</strong>r, em que um sistemacultural específico gerou implicações na forma como as mulheres exerceriam,ainda hoje, a sua “in<strong>de</strong>pendência”, ou seja, foram historicamente atraídas àquiloque as enfraquece e que as <strong>de</strong>strói, manten<strong>do</strong>-as sempre fora <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong> po<strong>de</strong>ríntimo e social (Despentes, 2006: 49). Aqui, tem to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> a crítica que sefaz à manutenção <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo das mulheres contemporâneas em buscarem noamor o exercício da sua dita “feminilida<strong>de</strong> natural”. Ou, como sugere Despentes, avonta<strong>de</strong> feminina <strong>de</strong> <strong>do</strong>rmir com o inimigo. É ele ainda que parece pressionar asmulheres à posição inferior quan<strong>do</strong> buscam incansavelmente a unida<strong>de</strong> familiar,o prazer erótico ou a sua subjetivida<strong>de</strong> apenas por intermédio masculino mesmoquan<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> casamento. Se o adultério antes se perpetuavacomosobrevivência a um casamento estabeleci<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> interesses econômicoscom <strong>do</strong>utrinas morais tradicionais estabelecidas (Del Priore, 2011: 67), naatualida<strong>de</strong> simplesmente não se aceita um casamento infeliz, sem amor. Comodiz Annik Houek, o casamento, mais <strong>do</strong> que nunca, é sinônimo da enormeexigência que o amor supõe (Houek, 2001: 24):Os divorcia<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem voltar a casar ou viver em união livre; <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong>outro mo<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s acabam por se situar num sistema <strong>de</strong> monogamia,justifica<strong>do</strong> apenas pelo amor (Houek, 2001: 24).Nesse senti<strong>do</strong>, a própria i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> amante é um ponto fortementetransgressor apenas na aparência se pensarmos que, com tantas conquistas nocampo econômico, as mulheres ainda não conseguiram se livrar da <strong>de</strong>pendênciaamorosa. Na verda<strong>de</strong>, aquilo que parece ser uma atmosfera transgressora emPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012288


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293relação ao mari<strong>do</strong>, contra o social imposto, coloca <strong>de</strong> volta o “feminino”emdiálogo com as <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> amor que ligou a sexualida<strong>de</strong> das mulheres ao Um<strong>de</strong> eleição masculino e ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> constituir uma ligação que nunca quebra, <strong>de</strong>fato, a or<strong>de</strong>m das coisas. As mulheres, assim, mais uma vez ocupam o lugar que ocódigo reserva a elas: o <strong>de</strong> objeto a ser ama<strong>do</strong>. Como diria Lacan, em Encore, naausência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo próprio, as mulheres continuariam <strong>de</strong>sejan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong>homem. Nesse senti<strong>do</strong>, a função <strong>do</strong> amante parece ser a <strong>de</strong> substituir o mari<strong>do</strong>,instalan<strong>do</strong>-se, assim, pela ligação amorosa, uma resposta eficaz ao problema dainfi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Houel lembra que amante é uma palavra há muito empregadaquan<strong>do</strong> o envolvimento é fora <strong>do</strong> casamento (Houek, 2001: 19). Sem significar“aquele que ama”, ela tornou-se comprometida <strong>de</strong>mais com uma conotação <strong>de</strong>adultério. Amante é aquele que tem relações com aquela com quem não é casa<strong>do</strong>,aquele que se apaixona por uma mulher casada (Houek, 2001: 19). Conforme eladiz, mesmo hoje, nenhuma outra palavra conseguiu sobrepor-se àquilo que otermo simbolicamente quer dizer. Mais ainda, nenhuma outra i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> proibição,mas também <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, como fuga à monogamia consi<strong>de</strong>rada coercitiva –ainda mais num mun<strong>do</strong> em que se escolhe por liberda<strong>de</strong>, “por amor” – colou-setão bem ao que uma mulher não <strong>de</strong>ve permitir.Teoricamente, o amante põe em cena o <strong>de</strong>sejo “feminino” que a socieda<strong>de</strong> esuas leis reprimiram. No entanto, a relação infiel “feminina” não é apenas punidanas representações sociais, como novamente reafirma a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> amor <strong>de</strong>um homem para que as mulheres questionem as suas posições políticas nassocieda<strong>de</strong>s em que se localizam. Assim, mais uma vez, ser mulher é amar. Ou,como diz o próprio título <strong>do</strong> filme: elas são o amor. E, assim, quanto maispriva<strong>do</strong> se torna o amor, mais ele se torna público, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com asrepresentações acerca da diferença, da inferiorida<strong>de</strong>, da complementarieda<strong>de</strong> da“mulher”no “homem”.Afinal, se as mulheres não forem o amor, se não o<strong>de</strong>sejarem com toda a sua força, como serão mantidas sob controle? Mais ainda,quão mulheres serão aquelas que não amam <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte? Afinal,para este, a feminilida<strong>de</strong> ainda se baseia na emoção, na <strong>do</strong>cilida<strong>de</strong>, na<strong>de</strong>pendência e no amor <strong>de</strong> um homem e da família. Po<strong>de</strong>-se transgredir o289 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293casamento, mas não as regras <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> baseada no afeto livre, no <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> ter a sua sexualida<strong>de</strong> e o seu sentimento, como diria Despentes, ainda<strong>de</strong>finida, moldada, confiscada e policiada pelos homens (Despentes, 2006: 101).O amor, assim, é o argumento <strong>de</strong> persuasão na <strong>do</strong>mestificação “feminina” que fazdas mulheres esposas perfeitas e mães <strong>do</strong> lar e da pátria, sen<strong>do</strong> encara<strong>do</strong> comoúltimo recurso necessário a uma socieda<strong>de</strong> que parece basear a sua coesão pelaviolência <strong>do</strong> imaginário operativo amoroso.Nesse senti<strong>do</strong>, Emma mais não faz <strong>do</strong> que continuar no círculo vicioso <strong>do</strong>qual a“i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina”não consegue sair. Quan<strong>do</strong> começa o seurompimento com a realida<strong>de</strong> que a sufoca, é pela ligação e pelo amor <strong>de</strong> umoutro homem e nunca uma atitu<strong>de</strong> particular e exclusivamente sua, consciente daviolência que sofre enquanto porno-tropicno discurso da fábrica socialitaliana,que ela reage. É pelo incentivo da relação, pela certeza <strong>de</strong> que não estará só ereconstruirá a si a partir <strong>de</strong> outra ligação que ela já não é mais capaz <strong>de</strong> aceitar oseu sofrimento e sacrifício. Aqui, to<strong>do</strong> o trabalho <strong>de</strong> Guadagnino não consegueescapar da tradição occi<strong>de</strong>ntal que impe<strong>de</strong> as mulheres <strong>de</strong> falarem por si próprias.A história <strong>de</strong> Emma é filmada por um homem, mostra a sua ligação com omari<strong>do</strong>, a sua punição com a morte <strong>do</strong> filho e, finalmente, tem a sua “salvação”pelas mãos <strong>do</strong> jovem chef. Emma nunca tem voz. Ela ri, sofre, chora, masprefere fugir sempre que confrontada com a sua interiorida<strong>de</strong>. Não por acaso, ofilme termina exatamente <strong>de</strong>sta forma.Quan<strong>do</strong>, enfim, po<strong>de</strong> dizer à toda famíliaque não quer mais viver a vida imposta, ela foge. Foge em silêncio para ser salvapor alguém, continuação <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> em que se habituou a não falar por simesma.Se Emma é alguém que quer mais <strong>do</strong> que amor, quer encontrar a siprópria, o caminho escolhi<strong>do</strong> parece ser mais uma vez erra<strong>do</strong>. Uma pedra nocaminho continua lá, como diria Drummond. E o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> rota também, comofala Badinter. Porque é novamente para o amor que ela se volta na sua busca porsi. Enquanto ainda se i<strong>de</strong>ntificarcom imaginário amoroso, enquanto aindaprecisar da salvação <strong>de</strong> um homem para se encontrar e lidar com a falta inerenteque cada ser-humano tem, o encontro consigo própria será sempre adia<strong>do</strong>, já quePolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012290


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293trata-se <strong>de</strong> uma busca que nenhuma relação vai po<strong>de</strong>r realizar. Isso porque aconstrução <strong>do</strong> um <strong>de</strong>sejo “feminino” continua inseparável das construções acercada “subjetivida<strong>de</strong> feminina”, pensan<strong>do</strong> esta como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma oposiçãoficcional em que o simbólico masculino <strong>de</strong>ve completar o vazio e a inferiorida<strong>de</strong>simbólicos das mulheres. “Io sono l’amore” é um filme que começa e termina nomesmo lugar: na impossibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “sujeito feminino” ser por si só, como LuceIrigary já havia afirma<strong>do</strong> no seu famoso aritgo “This sex which is not one”. Oerotismo, então, continua fazen<strong>do</strong> parte <strong>do</strong>s imperativos masculinos, estrangeiroao “feminino”,em que o corpo da “mulher” está sempre disponível para um<strong>de</strong>sejo que não é o <strong>de</strong>la própria, mas que a <strong>de</strong>ixa constantemente na <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>s homens (Irigary, 1985: 23-25).Consi<strong>de</strong>rações finaisSe o adultério é um peca<strong>do</strong> que a socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna transformou emcrime, <strong>de</strong> forma alguma isso se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma igualitária para homens e mulheres.Se, com o advento <strong>do</strong> divórcio, as socieda<strong>de</strong>s chamadas civilizadas continuam aconduzir as suas histórias eaçõesculpabilizan<strong>do</strong> e punin<strong>do</strong> o adultério dasmulheres, trata-se mais <strong>do</strong> que ligar o real e o imaginário acerca <strong>do</strong> amor. Naverda<strong>de</strong>, trata-se da continuação <strong>do</strong> mito <strong>do</strong> “amor feminino” em que a esferaprivada da vida (e a sua representação) é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> espaço político e simbólico<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>fine o senti<strong>do</strong> para o social em cima <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo das mulheres.Nesse senti<strong>do</strong>, a produção <strong>de</strong> uma visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> patriarcal novamentese apossa das representações femininas, estabelecen<strong>do</strong> a hierarquia entre homense mulheres, <strong>do</strong>minantes e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, em que o corpo da mulher é o objetosujeito à produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, ainda que <strong>de</strong> maneira instável e contraditória, noque diz respeito ao amor, ao adultério, a nações e suas ligações. Emma, assim,embora localizada num contexto atual, em nenhum momento coloca em causa omo<strong>de</strong>lo monogâmico hierarquiza<strong>do</strong>, duplamente violento, mas parece reforçá-loao encontrar no amor a única salvação para a sua condição. Se ela conseguetransgredir as regras <strong>do</strong> casamento, não é capaz <strong>de</strong> romper com as regras291 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293baseadas no afeto livre para on<strong>de</strong> a sua sexualida<strong>de</strong>, o seu sentimento e a suasubjetivida<strong>de</strong> procuram <strong>de</strong>finição. Se é punida por, <strong>de</strong> certa forma, causar adiscussão que leva à morte <strong>do</strong> filho, ela encontra no amor o argumento <strong>de</strong>persuasão incontestável para continuar no padrão <strong>do</strong> qual <strong>de</strong>veria fugir. Suatransgressão só serve para manter a or<strong>de</strong>m, servin<strong>do</strong> <strong>de</strong> suporte à inteligibilida<strong>de</strong>e às leis que <strong>de</strong>finem a norma social através da propagação <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong>cultural que fortalece grupos constituí<strong>do</strong>s ainda que <strong>de</strong>srespeite <strong>de</strong> forma violentaas subjetivida<strong>de</strong>s. Se Emma rompe com o mo<strong>de</strong>lo italiano, tentan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> seruma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> marginalizada enquantoporno-tropic que a <strong>de</strong>fine e estigmatiza nadiferença <strong>de</strong> uma cultura inferior na matrix <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> centro-europeu-civiliza<strong>do</strong>, ela, no entanto, continua her<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> bovarismo, uma espécie <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>lo adúltero que se dá pela alienação das mulheres acerca das suassubjetivida<strong>de</strong>s.Emma, então, é a representação <strong>de</strong>ssa complexida<strong>de</strong>. Quer romper, masnão rompe. Quer ser, mas não é. Aceitan<strong>do</strong> o silêncio, ela não tem Ego <strong>de</strong>sejante.Ela é página em branco que coloca nas mãos masculinas a sua história e, por isso,não escapa <strong>do</strong> exílio que é para si mesma. Seu final infeliz, sua punição, não tem aver apenas com a morte <strong>do</strong> filho pela qual é culpabilizadae se vai culpar. É pior.Pior porque a sua fuga é vã, e o seu sofrimento também. Ela corre e foge, maspara voltar sempre para o mesmo lugar: o da violência operativa <strong>do</strong> imaginárioamoroso que hierarquiza e sedimenta a subjetivida<strong>de</strong> das mulheres na<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> amor <strong>do</strong>s homens. Talvez o correto não fosse o final “Run,Emma, run”que Guadagnino faz Emma escolher. Talvez o melhor fosse Emmaficar, falar e po<strong>de</strong>r enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vez: ela não vivemais na França <strong>de</strong> Flaubert. Ouvivemos?Referências bibliográficasBAYM, Nina. 2010. Pósfácio. In HAWTHORNE, Nathaniel A letraescarlate. São Paulo, Cia das Letras.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012292


Fernan<strong>de</strong>s, Verónica Daminelli – (Io Ancora) Sono l’amore: Algumas consi<strong>de</strong>raçõessobreamor e adultério femininos no filme <strong>de</strong> Luca Guadagnino 277 - 293BROOK, Stephen. 1994. Infi<strong>de</strong>lities. Lon<strong>do</strong>n, Vinking,.BUTLER, Judith. 1993. Bodies that matter. On the discursive limits of “Sex”.New York, Routledge,CLARK, Anna. 2008. Introduction: sexuality and the problem of westerncivilization. In CLARK, Anna Desire: a history of european sexuality. New York,Routledge,DEL PRIORE, Mary. 2011. Histórias íntimas: sexualida<strong>de</strong> e erotismo na história<strong>do</strong> Brasil. São Paulo, Editora Planeta <strong>do</strong> Brasil,Press,University.DESPENTES, Virginie. 2006. King Kong Theory. New York, The FeministFLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Lisboa, Publicações Europa, s/d.HOUEL, Annik. 2001. O adultério no feminino. Porto, Ambar,IRIGARY, Luce. 1985. This sex with is not one. New York, CornellLACAN, Jacques. 1975. On feminine sexuality, the limits of love and knowledge,1972-1973. New York: Norton & Company,McCLINTOCK, Anne. 1995. Imperial Leather. Rece, Gen<strong>de</strong>r and Sexuality inthe colonial contest. New York, Routledge,MOSER, Benjamin. 2009. Clarice, uma biografia. São Paulo, Cosac & Naify,NAGEL, Joane. 2003. Race, Ethnicity, and Sexuality.Intimate Intersections,Forbid<strong>de</strong>n Frontiers.New York, Oxford University Press,RUSSO, Marry. 1995. The female grotesque: risk, excess and mo<strong>de</strong>rnity. NewYork, Routledge,UFMG,SPIVAK, Gayatri C. 2010. Po<strong>de</strong> o subalterno falar? Belo Horizonte, EditoraTOLSTÓI, L. 2011. Ana Karenina. São Paulo, CosacNaify,YUVAL-DAVIS, Nira. 2008. Gen<strong>de</strong>r & Nation.Los Angeles, SAGEPublica293 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Traduções


TRADUÇÃO DE СТАРЫЙ ГЕНИЙ 1DE NIKOLAI LESKOV 2O VELHO GÉNIODaniil Kuksenkovdaniel678@mail.ru(Aluno <strong>de</strong> Licenciatura em Assessoria e Tradução)Maria Helena Guimarães Ustimenkohcosta@iscap.ipp.pt(Docente <strong>de</strong> várias U.C. <strong>de</strong> Língua Russa)Instituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> PortoISCAPPortugalO génio não tem ida<strong>de</strong>: eleultrapassa tu<strong>do</strong> o que faz pararas mentes comuns.Duque <strong>de</strong> La RochefoucauldCapítulo 1Há alguns anos atrás, chegou a São Petersburgo uma pequena velhinha,senhora <strong>de</strong> terras, que tinha, a crer nas suas palavras, “um caso clamoroso”. Ocaso consistia no facto <strong>de</strong> ela, pela sua boa vonta<strong>de</strong>, coração e simplicida<strong>de</strong>, e por1 I n Le sk ov N . S . ( 1989) , Ob ras C o m pl e t as , M osc ov o: P ra vd a, Vol. 7, p p. 161 -169.2 N ikola i Le sko v ( 1831 - 1895) é , ind u bit ave lm e nt e , u m d os e sc r it ore s m aisorig in ai s d o sé c . X I X . As su a s ob ras d ist i ng u e m - se pe lo re c u rso a u m a li ng u ag e mprof u nd am e nt e a nc or ad a nu m a R ú ss ia anc e st ra l e pe las su as pe r son ag e n s, q u e , n aopin ião d e M áx im o G o rk i, no s pe rm it e m se nt i r d e m ais pe rt o a R u s’ , pod e nd o e st eau t or, e sc re v e G or ki, se r c o loc ad o ao lad o d e nom e s c om o T o lst o i, G og o l, Tu rg u e ne vou G ont c haro v. N o e nsai o “ T he S t ory t e lle r” , d e d ic ad o, e m g rand e pa rt e , ao au t or,Walt e r Be n jam i n re f e re q u e , pa ra Le s ko v , e sc re ve r nã o e ra u m a art e libe ra l, m as simu m t rabalh o art e san al, o q u e m u it o d iz sob re as ra íz e s d a su a e sc r it a.


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307mera compaixão, ter ajuda<strong>do</strong> um dândi da alta socieda<strong>de</strong> a sair <strong>de</strong> uma situaçãomuito difícil, ten<strong>do</strong> hipoteca<strong>do</strong> a seu favor a sua pequena casa, que constituía nãosó toda a sua proprieda<strong>de</strong> imobiliária, mas também a da sua filha inválida e daneta. A casa foi hipotecada por 15 mil rublos, quantia que o dândi tomou <strong>de</strong>empréstimo na totalida<strong>de</strong> com o compromisso <strong>de</strong> pagar no mais breve espaço <strong>de</strong>tempo.A boa da velhinha acreditou nele – e como po<strong>de</strong>ria ela não acreditar –quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r pertencia a uma das melhores famílias, tinha diante <strong>de</strong> si umabrilhante carreira, recebia bons rendimentos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s e uma boaremuneração pelo posto que <strong>de</strong>tinha. As dificulda<strong>de</strong>s financeiras, das quais avelhinha o havia ajuda<strong>do</strong> a sair, seriam consequência <strong>de</strong> uma qualquer paixãofugaz ou <strong>de</strong> uma imprudência a jogar às cartas no clube <strong>do</strong>s nobres, pelo que lheseria, evi<strong>de</strong>ntemente, muito fácil, corrigir a situação: “É só chegar a SãoPetersburgo”.A velhinha conhecera em tempos a mãe <strong>de</strong>ste senhor e, em nome davelha amiza<strong>de</strong>, aju<strong>do</strong>u-o. Ele, por seu turno, partiu são e salvo para SãoPetersburgo e, <strong>de</strong>pois, é escusa<strong>do</strong> dizer, começou um jogo muito comum em taiscasos: o jogo <strong>do</strong> gato e <strong>do</strong> rato. Ao chegar o prazo <strong>do</strong> pagamento, a velhinha fez-se lembrar, escreven<strong>do</strong> cartas – <strong>de</strong> início, brandas, <strong>de</strong>pois, mais ásperas e, porfim, já praguejava – insinuan<strong>do</strong> que “é injusto”. Mas o seu <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r era animalexperiente e, por isso, não respon<strong>de</strong>u a nenhuma das cartas da velhinha.Entretanto, o tempo vai passan<strong>do</strong>, e aproxima-se o dia da caução e perante apobre da mulher, que pensava passar o resto <strong>do</strong>s seus dias na sua casinha, abre-se, <strong>de</strong> repente, a perspectiva terrível <strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> fome e <strong>de</strong> frio com a filhaaleijada e a pequena neta.A velhinha, <strong>de</strong>sesperada, <strong>de</strong>ixou a filha <strong>do</strong>ente e a criança à guarda dabon<strong>do</strong>sa da vizinha, juntou tu<strong>do</strong> o que lhe restava e correu a São Petersburgo a"diligenciar" 3.3 N d T: Aspas d o au t o r.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012298


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307Capítulo 2No início, as suas diligências tiveram sucesso: encontrou um advoga<strong>do</strong>compassivo e <strong>de</strong> bom coração e, no tribunal, a <strong>de</strong>cisão foi tomada <strong>de</strong> uma formarápida e favorável, mas, quan<strong>do</strong> a acção chegou à execução, aí é que surgiu oproblema, e tão gran<strong>de</strong> ele era que bem se podia consi<strong>de</strong>rar um verda<strong>de</strong>iroquebra-cabeças. Não é que se tratasse <strong>do</strong> caso <strong>de</strong> a polícia ou <strong>de</strong> outros agentes<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r estarem a ser negligentes com o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. De facto, diz-se mesmo queaté eles estavam, há muito, fartos <strong>de</strong>le e que to<strong>do</strong>s tinham pena da velhinha e que<strong>de</strong>sejavam ajudá-la, só que não ousavam… O seu parentesco e atributos eram <strong>de</strong>tal forma po<strong>de</strong>rosos que não era possível impor-lhe sanções como a qualqueroutro transgressor.Sobre a força e importância <strong>de</strong> tais ligações nada sei <strong>de</strong> concreto econsi<strong>de</strong>ro, aliás, não ser isso importante. Em to<strong>do</strong> o caso, a verda<strong>de</strong> é que o quequalquer velha maga sobre ele venha a dizer, para ele melhor vai ser.Também não sei como vos narrar com precisão que acção era necessário<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar contra ele. Só sei que era preciso “entregar ao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r medianterecibo” 4 um papel qualquer. Mas isso, nenhuma personalida<strong>de</strong>, nenhuma patenteo podia fazer. A quem quer que a velhinha se dirigisse, to<strong>do</strong>s lhe aconselhavam omesmo:- Minha cara senhora, a presa é sua! É melhor esquecer isso! Nós temosmuita pena da senhora, mas que po<strong>de</strong>mos nós fazer quan<strong>do</strong> ele não paga aninguém… Console-se com o facto <strong>de</strong> a senhora não ser nem a primeira, nem aúltima.- Meus Deus! – respon<strong>de</strong>u a velhinha – como é que eu me vou consolarpelo facto <strong>de</strong> não ser eu a única nesta situação? Pois eu, meus pombinhos,<strong>de</strong>sejaria bem melhor para mim e para os outros.- Está bem – respon<strong>de</strong>ram eles – para que to<strong>do</strong>s fiquem bem, a senhora<strong>de</strong>ixe para lá isso. Isso foi fabrica<strong>do</strong> por especialistas, daí não ter solução.Mas ela, na sua simplicida<strong>de</strong>, insistia:4 N d T: Aspas d o au t o r.299 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307- Mas por que não tem solução? A fortuna <strong>de</strong>le é, em to<strong>do</strong> o caso, maior<strong>do</strong> que aquilo que ele <strong>de</strong>ve. Que <strong>de</strong>volva, pois, o que <strong>de</strong>ve que ainda fica commuito.- Ai, minha senhora, a quem tem “muito” 5 pouco se lhe encontra enunca lhe é suficiente. Mas o mais importante resi<strong>de</strong> no facto <strong>de</strong> ele não estarhabitua<strong>do</strong> a pagar e se ele se melindra é bem capaz <strong>de</strong> lhe causar dissabores.- Que dissabores?- Mas para que pergunta? An<strong>de</strong> <strong>de</strong>vagar pela Avenida Nevskiy, casocontrário po<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer <strong>de</strong> repente.- Desculpem lá, – diz a velhinha – mas eu não acredito em vocês. Eleteve dificulda<strong>de</strong>s, mas é boa pessoa.- Sim, – respon<strong>de</strong>m – claro que ele é um nobre senhor, mas paga tar<strong>de</strong> emal e se alguém tenta fazer alguma coisa, ele po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r mal.- Mas, então, tomem medidas.- Olhem-me esta? – respon<strong>de</strong>m. Ponto final parágrafo: nós nãopo<strong>de</strong>mos “tomar medidas” 6 contra to<strong>do</strong>s. Para quê lidar com gente <strong>de</strong>ssa?- E qual é a diferença?Os interpela<strong>do</strong>s ficam apenas a olhar para ela, como quem se quer irembora ou para propor que ela se fosse queixar a instâncias superiores.Capítulo 3E ela dirigiu-se mais acima. O acesso era mais difícil e a conversa menore, claro, mais abstracta.Dizem: “On<strong>de</strong> está ele? Sobre ele reportam-nos que não está!”- Per<strong>do</strong>ai-me, - chora a velha senhora – mas eu vejo-o na rua to<strong>do</strong>s osdias; ele vive em casa <strong>de</strong>le.- Essa casa não é <strong>de</strong>le. Ele não tem casa. A casa é da mulher.- Mas isso tanto faz: seja mari<strong>do</strong>, seja mulher, o diabo é o mesmo.5 N d T: Id em .6 N d T: Id em .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012300


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307- Isso julga a senhora, mas a lei julga <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>. A mulher tambémapresentou contas <strong>de</strong>le e queixou-se ao tribunal e ele não está regista<strong>do</strong> em casa<strong>de</strong>la… Sabe-se lá <strong>de</strong>le. Já toda a gente está farta. E para que lhe foi dar odinheiro?! Quan<strong>do</strong> ele se encontra em São Petersburgo, ele regista-se num quartomobila<strong>do</strong> qualquer, mas não vive lá. E se pensa que nós o protegemos ou quetemos pena <strong>de</strong>le, então a senhora está muito enganada: procure-o, apanhe-o - issoé um assunto seu – e, então aí, sim, “entregam-lho” 7 .De nenhuma das altas instâncias conseguiu a velhinha obter qualquerresulta<strong>do</strong> anima<strong>do</strong>r e, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua <strong>de</strong>sconfiança provinciana, começou a cogitar,se a causa <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> não seria que “colher vazia, separa a companhia” 8 , comodiziam os antigos.- Não me digas? - murmura ela - não precisas <strong>de</strong> me convencer que eubem vejo que tu<strong>do</strong> se move à força <strong>do</strong> mesmo. Há que dar unto.E lá foi ela “untar” 9 e voltou ainda mais triste. Diz ela, “comecei logocom um maço <strong>de</strong> mil”, quer dizer, ela prometeu mil rublos <strong>do</strong> dinheiro que lhefoi extorqui<strong>do</strong>, mas ninguém a quis ouvir e quan<strong>do</strong> ela foi aumentan<strong>do</strong> o valordiscretamente até prometer três mil, pediram-lhe mesmo que saísse.Não aceitam três mil só para apresentar um papel! Afinal <strong>de</strong> contas, oque é isto? Não, antigamente era melhor.Mas, também, – lembro-lhe eu - esqueceu-se, se calhar, como é que tu<strong>do</strong>corria melhor na altura. É que quem <strong>de</strong>sse mais, esse é que tinha a razão <strong>do</strong> seula<strong>do</strong>.- Isso - respon<strong>de</strong> – é absolutamente verda<strong>de</strong> para si, mas só entreantigos funcionários <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> é que havia peritos ousa<strong>do</strong>s.Aconteciaperguntares: “Po<strong>de</strong> ser?” E ele respon<strong>de</strong>r: “Na Rússia não há impossíveis”, e, <strong>de</strong>repente, magica para lá uma história e faz. Ora apareceu-me agora um <strong>de</strong>ssesindivíduos que não me <strong>de</strong>ixa em paz, mas não sei se hei <strong>de</strong> acreditar ou não? Nósos <strong>do</strong>is, almoçamos no pa<strong>de</strong>iro da Galeria Mariinsky, pois eu agora tenho <strong>de</strong>7 N d T: Aspas d o au t o r.8 N d T: Aspas d o au t o r. P rové rb i o ru s so.9 Nd T : aspas d o au t o r.301 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307poupar e tremo a cada moeda que gasto. Comida quente há muito tempo que nãocomo, poupo tu<strong>do</strong> para o processo. E ele, provavelmente, também o faz porpobreza ou por ser bebe<strong>do</strong>r... Mas vai dizen<strong>do</strong> persuasivamente: “dê-mequinhentos rublos que eu faço a entrega”. O que pensas tu disto?- Ó minha querida senhora – respon<strong>do</strong>-lhe eu – asseguro-lhe, que sousensível às suas mágoas, só que eu nem sequer <strong>do</strong>s meus assuntos sei tratar, peloque, <strong>de</strong>cididamente, nada lhe posso aconselhar. A senhora <strong>de</strong>veria, pelo menos,perguntar a mais alguém sobre ele: quem é ele e quem po<strong>de</strong> ser seu garante?- Eu já perguntei ao pa<strong>de</strong>iro, só que ele nada sabe. “Ora bem, diz ela, épreciso pensar: ou ele é um comerciante, cujo comércio baixou, ou alguém quefoi <strong>de</strong>spromovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> quaisquer <strong>do</strong>s seus títulos.”- Então? Pergunte directamente ao próprio.- Perguntei, quem era ele e qual o seu posto. “Falar disso, diz ele, na nossasocieda<strong>de</strong>, é totalmente supérfluo e inadmissível: chame-me Ivan Ivanitch 10 , e omeu cargo não é alto, correspon<strong>de</strong> a um casaco da pele <strong>de</strong> catorze ovelhas 11 , que,quan<strong>do</strong> quero, viro <strong>do</strong> avesso.- Ora aí está. Bem po<strong>de</strong> ver que resulta daí uma personalida<strong>de</strong>completamente obscura.- Sim, é obscura… “Um cargo <strong>de</strong> catorze ovelhas”, isso percebo porquetambém fui casada com um funcionário. Isso significa que ele é <strong>de</strong> décima quartacategoria. E quanto ao nome e recomendações, <strong>de</strong>clara sem ro<strong>de</strong>ios que: “notocante a recomendações, diz ele, ignoro-as e não as tenho. Tenho, isso sim,i<strong>de</strong>ias geniais na minha cabeça e conheço pessoas dignas, que estão prontas a pôrem execução qualquer plano meu por trezentos rublos.elevar.- Mas, meu caro senhor, por que razão exactamente trezentos?- Por nada, nós temos já um preço fixo, que não <strong>de</strong>sejamos baixar, nem10 N d T: F u nc iona c om o pse u d ó nim o d e alg u é m q u e , d ad a a su a ac t iv id ad epou c o le g al, n ão se q u e r d ar a c onhe c e r. O c or re c t o se ria I van o vit c h.11 N d T: N a R ú ssia I m pe r ial, a t abe la re la it va ao g rau d os f u nc ion ár ios,int rod u z id a, e m 17 22 p or P e d ro, o G rand e , abr ang i a c at orz e c at e g or ia s d ef u nc ioná ri os. Le sko v, re c o rre n d o à m e t oním ia re f e re o c asac o d e pe le s a q u e t inhad ire it o u m f u nc ion ár io d a 1 4ª c at e g ori a.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012302


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307- Meu senhor, não percebo nada.- E nem precisa <strong>de</strong> perceber. Os <strong>de</strong> agora, como vê, levam muitosmilhares, mas nós ficamo-nos pelas centenas. Eu levo duzentos pela i<strong>de</strong>ia e peladirecção e trezentos para o herói executor, uma forma proporcional, já que, pelaexecução, ele po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong> passar três meses na ca<strong>de</strong>ia, além <strong>de</strong> que dá um<strong>de</strong>sfecho ao processo. Quem quiser que acredite em nós. Eu cá só <strong>de</strong>ito mãos aprocessos impossíveis e com quem não tem fé, nada há a fazer.” Mas no que tocaa mim – acrescenta a velhinha – imagine a minha tentação. É que eu, não seiporquê, acredito nele…- Decididamente - digo – não sei por que acredita nele?- Imagina que tenho um pressentimento, sei lá, qualquer coisa assim. Etenho sonhos. E tu<strong>do</strong> isso como que me persua<strong>de</strong> e acalenta a ter confiança.- Não é melhor esperar mais um pouco?- Espero, enquanto for possível..Mas <strong>de</strong>pressa se tornou impossível.Capítulo 4Aparece em minha casa a velhinha num esta<strong>do</strong> da mais comovente eprofunda aflição. Em primeiro lugar, estava a chegar o Natal, em segun<strong>do</strong> lugar,os seus escrevem-lhe que a casa entraria à venda por aqueles dias e, em terceirolugar, ela encontrou o seu <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> braço da<strong>do</strong> com uma dama e <strong>de</strong>itou acorrer atrás <strong>de</strong>les e até o agarrou pela manga e apelou à ajuda das pessoas,gritan<strong>do</strong> com lágrimas nos olhos: “Meu Deus, ele <strong>de</strong>ve-me dinheiro!”Mas isso só levou a que a afastassem <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r e da sua dama, sen<strong>do</strong>chamada à responsabilida<strong>de</strong> por violação da or<strong>de</strong>m pública. Mas pior <strong>do</strong> queestas três circunstâncias é que havia uma quarta, que residia no facto <strong>de</strong> o<strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r da velhinha ter consegui<strong>do</strong> para si umas férias fora <strong>do</strong> país, partin<strong>do</strong>, omais tardar amanhã, com a esplêndida dama <strong>do</strong> seu coração, para o estrangeiro,on<strong>de</strong> ficará um ou <strong>do</strong>is anos, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> mesmo acontecer não voltar mais,“porque ela é muita rica”.303 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307Não podia existir a menor dúvida <strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> se passara exactamenteassim como contava a velhinha. Ela apren<strong>de</strong>u a seguir, <strong>de</strong> olhos bem abertos,cada passo <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r fugidio e sabia to<strong>do</strong>s os seus segre<strong>do</strong>s através <strong>do</strong>scria<strong>do</strong>s, que subornava.Amanhã, portanto, esta longa e <strong>do</strong>lorosa comédia chegará ao fim.Amanhã, sem dúvida que ele <strong>de</strong>saparecerá como o fumo e por muito tempo, epo<strong>de</strong> mesmo ser que para sempre, pois a sua acompanhante, com certeza, não<strong>de</strong>sejaria dar nas vistas a cada instante.A velhinha já tinha coloca<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isto, em to<strong>do</strong> o <strong>de</strong>talhe, à consi<strong>de</strong>ração<strong>do</strong> negocista, com um cargo <strong>de</strong> catorze ovelhas. E também ele dizia, enquantosenta<strong>do</strong>s em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s tabuleiros no pa<strong>de</strong>iro da Galeria Mariinsky:“Sim, é um caso premente, mas ainda é possível ajudar: ponha quinhentosrublos em cima da mesa e já amanhã a sua alma se sentirá aliviada. Mas, se nãotiver fé em mim, lá se vão os seus quinze mil.- Eu, meu amigo – conta-me a velhinha - já <strong>de</strong>cidi confiar nele… Que hei<strong>de</strong> eu fazer? Ninguém se encarrega <strong>do</strong> caso, mas ele não, ele empenha-se e dizcom firmeza: “Eu entrego.” Por favor, não olhes para mim, assim, com esseolhar perscruta<strong>do</strong>r. Eu não sou <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> nenhum louca. Eu própria não enten<strong>do</strong>nada. Só que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, tenho uma estranha confiança nele, ditada pelopressentimento. E também sonhei tais sonhos que me fizeram tomar a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>o levar comigo.- Para on<strong>de</strong>?- É que nós só nos encontramos no pa<strong>de</strong>iro à hora <strong>do</strong> almoço. E, nessecaso, já será tar<strong>de</strong>. Assim, eu levo-o agora comigo e não o largo até amanhã. Éevi<strong>de</strong>nte que, na minha ida<strong>de</strong>, já ninguém vai pensar mal e eu tenho <strong>de</strong> tomarconta <strong>de</strong>le, pois eu tenho <strong>de</strong> lhe entregar agora mesmo os quinhentos rublos esem qualquer recibo.- E está mesmo <strong>de</strong>terminada a fazer isso?- Claro que estou. Que mais posso eu fazer? Eu já lhe <strong>de</strong>i umadiantamento <strong>de</strong> cem rublos e ele está agora à minha espera na taberna. Está atomar chá. E eu vim ter contigo para te pedir um favor. Eu ainda tenho duzentosPolissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012304


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307e cinquenta rublos, só não tenho os restantes cento e cinquenta. Ajuda-me,empresta-me o dinheiro que <strong>de</strong>pois eu <strong>de</strong>volvo. Mesmo que vendam a casa, unscento e cinquenta rublos ainda irão sobrar daí.Eu conhecia-a como uma mulher da maior honestida<strong>de</strong> e o tormento <strong>de</strong>laera tão comovente que pensei: <strong>de</strong>volve, não <strong>de</strong>volve, que Deus esteja com ela.Com cento e cinquenta rublos, ninguém fica rico nem pobre, enquanto que elaficará sem tormentos na alma por não ter tenta<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os meios para“entregar” 12 o papel que po<strong>de</strong>ria salvar a situação.E lá pegou ela no dinheiro, ruman<strong>do</strong> à taberna, para ir ter com o seutemerário negocista e foi, com curiosida<strong>de</strong>, que esperei por ela na manhã seguintepara me inteirar que mais novo estratagema teriam agora arquiteta<strong>do</strong> paraenriquecer em São Petersburgo.Só que aquilo que fiquei a saber ultrapassou as minhas expectativas: ogénio da galeria não envergonhou nem a fé, nem os pressentimentos da boavelhinha.Capítulo 5No terceiro dia da Festa <strong>de</strong> Natal, ela entra a voar em minha casa,envergan<strong>do</strong> um vesti<strong>do</strong> para o caminho e trazen<strong>do</strong> na mão um saco <strong>de</strong> viagem ea primeira coisa que faz é pôr-me em cima da mesa os cento e cinquenta rublosque tomara <strong>de</strong> empréstimo e, em seguida, mostra um papel relativo àtransferência bancária <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> quinze mil rublos…- Não acredito no que vejo! Que significa isto?- Nada, a não ser que eu recebi to<strong>do</strong> o meu dinheiro e com juros.- Como? Não me diga que foi esse funcionariozinho <strong>do</strong> Ivan Ivanich queorganizou tu<strong>do</strong>?- Sim, foi ele, embora houvesse um outro, a quem ele <strong>de</strong>u trezentos rublos<strong>do</strong> seu dinheiro, pois era impossível passarmos sem a ajuda <strong>de</strong>ssa pessoa.12 N d T: Aspas d o au t o r.305 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307- E que outro agente era esse? Vá, conte-me lá <strong>de</strong>talhadamente como éque eles a ajudaram!- Ajudaram-me <strong>de</strong> forma muito honesta. Quan<strong>do</strong> cheguei à taberna e <strong>de</strong>i odinheiro a Ivan Ivanich, ele contou, aceitou e disse: “ Agora, minha senhora,vamos lá embora. Eu, diz ele, sou, em minha opinião, um génio, mas preciso <strong>de</strong>alguém que execute o meu plano, pois eu próprio não passo <strong>de</strong> um misteriosoincógnito, pelo que não posso usar a minha pessoa para realizar actos jurídicos”.Andámos por muitos lugares insalubres e por banhos públicos, sempre à procura<strong>de</strong> um tal “luta<strong>do</strong>r sérvio” 13 , mas durante muito tempo não conseguimosencontrá-lo. Mas, por fim, lá o encontrámos. Vinha esse luta<strong>do</strong>r a sair <strong>de</strong> umburaco qualquer, em traje militar sérvio, to<strong>do</strong> esfarrapa<strong>do</strong> e com um charuto <strong>de</strong>jornal entre os <strong>de</strong>ntes e diz: “Eu posso fazer tu<strong>do</strong>, a quem preciso for, masprimeiro há que beber”. Estávamos os três senta<strong>do</strong>s na taberna a negociar e oluta<strong>do</strong>r sérvio exigiu: “quero cem rublos por mês durante três meses”. Nisto eacordámos. Eu ainda não estava a perceber nada, mas vi que Ivan Ivanich lhe <strong>de</strong>uo dinheiro, o que significava que ele confiava e que eu fiquei mais aliviada. E<strong>de</strong>pois, eu levei o Ivan Ivanich comigo para que ficasse em minha casa e aoluta<strong>do</strong>r sérvio <strong>de</strong>ixámo-lo a <strong>do</strong>rmir nos banhos públicos, para que aparecesse <strong>de</strong>manhã. Ele apareceu <strong>de</strong> manhã e diz: “Estou pronto!” E Ivan Ivanichmurmurou-me: “man<strong>de</strong> alguém buscar vodka para ele, pois a coragem <strong>de</strong>le vaiser precisa.. Eu não lhe darei muito a beber, mas um pouco é indispensável para abravura: está prestes a ter lugar o seu <strong>de</strong>sempenho mais importante.”O luta<strong>do</strong>r sérvio bebeu e eles foram para a estação <strong>de</strong> caminho-<strong>de</strong>-ferro,da qual <strong>de</strong>veriam partir, <strong>de</strong> comboio, o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r da velhinha e a sua dama. Avelhinha ainda não percebia nada <strong>do</strong> que eles tinham planea<strong>do</strong> nem <strong>de</strong> como oiriam executar, mas o luta<strong>do</strong>r acalmou-a, dizen<strong>do</strong>: “tu<strong>do</strong> vai correr honesta ehonradamente.” O público começou a chegar ao comboio e ali apareceu o<strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> repente, com a sua dama. O lacaio vai buscar os bilhetes para eles eele está senta<strong>do</strong> com a sua dama a tomar chá e a observar toda a gente que passa13 N d T: Aspas d o au t o r.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012306


Kuksenkov, Daniil, Ustimenko, Maria Helena Guimarães – Tradução <strong>de</strong> Старый гений <strong>de</strong>Nikolai Leskov 297 – 307com inquietação. A velhinha, que se escon<strong>de</strong>ra atrás <strong>de</strong> Ivan Ivanich, aponta parao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r e diz: “É aquele!”O luta<strong>do</strong>r sérvio viu, disse “está bem” e logo se levantou e passou ao la<strong>do</strong><strong>do</strong> dândi uma vez, <strong>de</strong>pois segunda vez, e <strong>de</strong>pois, à terceira vez, parou mesmo emfrente <strong>de</strong>le e disse:chá.- Por que é que está a olhar para mim <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>?O <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r respon<strong>de</strong>:- Eu não estou <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> nenhum a olhar para si. Eu estou a tomar o meu- Ah, ah! E o luta<strong>do</strong>r diz: não está a olhar, está a tomar chá? É isso? Entãoeu vou obrigá-lo a olhar para mim. Tome aqui, <strong>de</strong> mim, para o seu chá, estesumo <strong>de</strong> limão, açúcar e um pedaço <strong>de</strong> chocolate!... Zás, zás, zás! E bate-lhe trêsvezes na cara.A dama lançou-se para um la<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r também queria fugir, dizen<strong>do</strong>não estar agora para reclamações, mas a polícia apareceu logo, intrometen<strong>do</strong>-se:“Isto, num lugar público, é proibi<strong>do</strong>”, e pren<strong>de</strong>ram o luta<strong>do</strong>r sérvio, bem como oesbofetea<strong>do</strong>, que, numa agitação tremenda, não sabia se havia <strong>de</strong> correr atrás dasua dama, se respon<strong>de</strong>r à polícia. E, entretanto, já o registo da ocorrência estápronto e o comboio parte... A dama partira e ele ficara… e mal anunciou o seutítulo, nome e sobrenome, o polícia diz: “A propósito, para o senhor, eu tenhoaqui na pasta um papel para entrega.” Nada lhe restava fazer, a não ser pegar nopapel que lhe estavam a entregar perante testemunhas e, para se livrar daobrigação <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar a cida<strong>de</strong>, logo ali pagou com um cheque a totalida<strong>de</strong> dadívida e com juros.E foi <strong>de</strong>sta forma que foram vencidas as dificulda<strong>de</strong>s inexpugnáveis, que averda<strong>de</strong> triunfou e que, na honesta, mas pobre casa, voltou a reinar o sossego e aFesta tornou-se também mais feliz e alegre.A pessoa que encontrou a forma <strong>de</strong> resolver este caso difícil parece, pois,ter to<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar, <strong>de</strong> facto, um génio.307 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012


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LITERARY TEXTS AND INTERCULTURAL LEARNINGEXPLORING NEW DIRECTIONSCarina CerqueiraCEI - Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s InterculturaisInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> Portoina_nocas@hotmail.comPortugalHoje em dia, a interculturalida<strong>de</strong> faz parte das análises, estu<strong>do</strong>s epensamentos <strong>de</strong> muitos estudiosos e teóricos das mais diversas disciplinas.Vivemos num mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> migrações constantes, não só <strong>de</strong> pessoas e bens, mastambém <strong>de</strong> culturas e i<strong>de</strong>ologias. Esta mobilida<strong>de</strong> cultural constante implicaintensas transformações e a subsequente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reanalisar a meto<strong>do</strong>logia<strong>de</strong> interacção entre povos nos mais diversos cenários. A obra em análise(“Literary Texts and Intercultural Learning – Exploring New directions”)<strong>de</strong>corre da alteração vísivel nas nossas salas <strong>de</strong> aulas, cada vez maisinternacionais, tornan<strong>do</strong>-se, assim, peremptório focalizar o processo pedagógico<strong>do</strong> ensino intercultural.Ana Gonçalves Matos é a autora <strong>de</strong>sta obra, Professora Auxiliar noDepartamento <strong>de</strong> Línguas, Culturas e Literaturas Mo<strong>de</strong>rnas da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Ciências Sociais e Humanas/Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa, é investiga<strong>do</strong>ra noCETAPS (Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies).A autora propõe uma direcção - o estu<strong>do</strong>/ensino <strong>do</strong> género literárioenquanto forma <strong>de</strong> estabelecer contacto activo com a interculturalida<strong>de</strong> – e aliaainda a dinâmica da análise crítica e <strong>do</strong> reconhecimento linguístico, social ecultural.Apoiada na experiência <strong>do</strong>cente e nos conhecimentos científicos daautora-investiga<strong>do</strong>ra, a obra alia as vertentes teórica e práctica, focalizan<strong>do</strong> epromoven<strong>do</strong> as inúmeras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizagem dissiminadas no textoliterário. Através <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso aplica<strong>do</strong> à sala <strong>de</strong> aula, a autora procura


Cerqueira, Carina – Literary texts and intercultural learning: exploring new directions311 - 314promover a importância da leitura <strong>do</strong> texto literário - no seu senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> abertura<strong>do</strong> “third space” - local on<strong>de</strong> o aluno/leitor po<strong>de</strong> encontrar a sua “voz” i<strong>de</strong>ntitáriae criticamente reflectir sobre a interculturalida<strong>de</strong>. Como nos refere a própriaautora: «It is interesting to relate the frequent image of the rea<strong>de</strong>r as a traveller,moving between different spaces, to that of third space in an interculturalencounter.» (MATOS, 2012)Ler literatura é assim estabelecer o diálogo intercultural, posição on<strong>de</strong> oleitor tem liberda<strong>de</strong> para fomentar diferentes contactos – sejam, internos e/ouexternos; narrativos, literários e/ou culturais. No primeiro capítulo («Reading as thirdplace»), estuda-se a estreita relação entre escritor e leitor, <strong>de</strong>terminada pelopensamento crítico. O leitor distancia-se <strong>do</strong>s seus próprios pensamentos ereflecte/absorve/critica a produção literária <strong>de</strong> outrém, entran<strong>do</strong> através daleitura num espaço fluí<strong>do</strong> <strong>de</strong> movimento cultural.A análise crítica <strong>do</strong> texto literário permite aos leitores o questionamento ea formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal e social, possibilita o contacto com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>snovas e ainda promove um encontro entre aquilo que é familiar e o que éestranho.Ao consi<strong>de</strong>rar o ambiente prático <strong>de</strong> ensino, é importante uma re<strong>do</strong>bradaatenção <strong>do</strong> professor às obras seleccionadas, pois estas opções po<strong>de</strong>m interferirdirecta e <strong>de</strong>cisivamente na formação i<strong>de</strong>ntitária <strong>do</strong>s alunos. Como a própriaautora não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> mencionar: «One of the un<strong>de</strong>rlying i<strong>de</strong>as <strong>de</strong>velopedthroughout this book is that language, culture and interculturality are significantlyinterwined in the reality of the literary text.» (MATOS, 2012)No segun<strong>do</strong> capítulo (« Literature and intercultural foreign languageeducation») a autora parte <strong>do</strong> exemplo da tradução da poesia <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong> Pessoapara salientar as dificulda<strong>de</strong>s inerentes não só à transposição <strong>de</strong> palavras econceitos entre línguas e culturas, mas também a subjectivida<strong>de</strong> intrínseca àleitura <strong>do</strong> texto literário. A intenção contida nas palavras <strong>do</strong> autor po<strong>de</strong> não seraquela percepcionada pelo leitor, contu<strong>do</strong>, é nesta dicotomia possivel, provável econstante que se situa a riqueza da interpretação.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012312


Cerqueira, Carina – Literary texts and intercultural learning: exploring new directions311 - 314A autora insiste na promoção <strong>de</strong> diversas interpretações, na análise <strong>de</strong>diferentes experiências sociais e culturais, expressas nas linhas literárias <strong>do</strong>stextos, nem sempre favoráveis às culturas em estu<strong>do</strong>, mas que por sua vezpermitem ao aluno uma análise crítica e mais próxima da cultura em estu<strong>do</strong>.Devi<strong>do</strong> ao forte enraizamento social e cultural <strong>do</strong> texto literário, a autora salienta:«[…] the strong emotional appeal; the fact that it appeals to the whole personalityof the rea<strong>de</strong>r; it is playful and sanction-free; it provi<strong>de</strong>s space for innovation (forexample, the construction of alternative social realities).» (MATOS, 2012)reflecte:No terceiro capítulo (« Pedagogical criteria and a reading mo<strong>de</strong>l»), a autora«[…] literature has the potential to problematize relevant issues in ourlives. Therefore, a critical pedagogy should inform the discussion andreflection on the texts, helping prepare the stu<strong>de</strong>nts to interact withotherness and thus contributing, for instance, to the area of citizenshipeducation.» (MATOS, 2012)Segun<strong>do</strong> a autora, quan<strong>do</strong> seleccionamos um texto a leccionar na sala <strong>de</strong>aula, <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar a pretensa distinção entre textos canônicos e textosperiféricos, a proveniência <strong>do</strong> autor e a <strong>de</strong>scrição intercultural inserida nanarrativa, influências que <strong>de</strong>terminam a categorização <strong>do</strong> texto. É aqui que aautora salienta a importância não só <strong>de</strong> <strong>de</strong>smistificar estas categorias <strong>de</strong>hierarquização mas também da aprendizam intercultural adstrita a cadaexperiência <strong>de</strong> leitura, nos mais varia<strong>do</strong>s enquadramentos. No estabelecimento <strong>de</strong>uma ponte entre teoria e prática, a autora apresenta um mo<strong>de</strong>lo pedagógico on<strong>de</strong>o texto literário é analisa<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma crítica, no intuito <strong>de</strong>promover/compreen<strong>de</strong>r a interculturalida<strong>de</strong>.No quarto capítulo («The classroom: A threshold»), é-nos apresentada umameto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> ensino baseada na aplicação prática à sala <strong>de</strong> aula que, pelo seucariz pragmático, permite-nos reflectir no potencial pedagógico da estrutura emcausa:313 Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 - 2012


Cerqueira, Carina – Literary texts and intercultural learning: exploring new directions311 - 314«The study explores how intercultural learning through reading anddiscussing literary texts unfolds in the context of foreign language educationthrough the close scrutiny of classroom interaction with two groups of six toseven adults stu<strong>de</strong>nts who read literary texts and discussed the readingsduring three sessions.» (MATOS, 2012).A autora propõe uma meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> análise, contu<strong>do</strong>, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>salientar a abertura <strong>de</strong> conceitos. Este estu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> antes <strong>de</strong> mais servir <strong>de</strong>interrogação, enaltecer a relevância <strong>do</strong> texto literário como fonte <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>interculturalida<strong>de</strong> e, em paralelo, indicar consi<strong>de</strong>rações sobre a sua aplicabilida<strong>de</strong>pedagógica na sala <strong>de</strong> aula.Por fim, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enaltecer a opção da autora pela escrita eapresentação <strong>de</strong>ste trabalho em Língua Inglesa. A internacionalização <strong>do</strong>sestu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s em Portugal <strong>de</strong>ve ser uma preocupação junto <strong>do</strong>s nossosinvestiga<strong>do</strong>res, pois só através da abrangência <strong>do</strong> trabalho po<strong>de</strong>mos auspiciarobter o reconhecimento <strong>do</strong> mesmo. Desta forma, salientemos este trabalhocomo mais um passo na direcção da internacionalização <strong>do</strong> valoroso trabalho <strong>de</strong>investigação realiza<strong>do</strong> em Portugal.Referências bibliográficasMATOS, Ana Gonçalves. (2012) Literary Texts and Intercultural Learning –Exploring new directions. Berna: Peter Lang.Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012314


OS BUDDENBROOK 1 , DE THOMAS MANNMicaela da Silva Marques MouraInstituto Superior <strong>de</strong> Contabilida<strong>de</strong> e Administração <strong>do</strong> Portomicaela.marques.moura@gmail.comPortugalPrémio Nobel em 1929, Thomas Mann (1875-1955) publicou esteromance em 1901. O livro retrata a vida <strong>de</strong> uma família alemã burguesa ao longo<strong>de</strong> quatro gerações no séc. XIX (1835-1877). O título completo da obra OsBud<strong>de</strong>nbrook - Declínio <strong>de</strong> Uma família <strong>de</strong>svenda o essencial <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>: a <strong>de</strong>cadência<strong>de</strong> uma família plurigeracional, cuja primeira geração – que equivale ao apogeu –é sucedida por outras três que sofrem uma <strong>de</strong>cadência biológica, psicológica,económica e social. Com Johann Bud<strong>de</strong>nbrook Sénior o negócio familiar, umaempresa <strong>de</strong> cereais, atinge o seu auge e a família consolida a sua imagem social. Apartir <strong>do</strong> filho Jean o capital da firma começa a diminuir; os netos Thomas, Tony,Christian e Clara acentuam o <strong>de</strong>clínio económico e financeiro e com o bisnetoHanno a família extingue-se.A obra está marcada por um largo espectro linguístico, que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> odialecto bávaro ao sociolecto <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s comerciantes lübeckianos. No entanto,<strong>do</strong>mina o alto-alemão – a língua primária da alta burguesia-, o baixo-alemão – oidioma original da Alemanha setentrional e fala<strong>do</strong> por toda a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lübeck -e o francês – a língua franca da alta socieda<strong>de</strong> europeia, estes <strong>do</strong>is últimosutiliza<strong>do</strong>s sobretu<strong>do</strong> pelos vários membros da família Bud<strong>de</strong>nbrook das duasprimeiras gerações.Na minha opinião o tratamento <strong>de</strong>stes níveis linguísticos na traduçãoportuguesa é um <strong>do</strong>s aspectos que mais valoriza a recente tradução para1 M ann, Thom as, O S BUD D E N BR OOK , 1. ª e d iç ão 2 0 11, t rad . G ild aE nc arn aç ão Lope s, P u bl ic aç õe s D . Q u ix ot e .


Moura, Micaela da Silva Marques – Os Bud<strong>de</strong>nbrook <strong>de</strong> Thomas Mann 315 - 316português <strong>de</strong>ste romance 2 <strong>de</strong> Gilda Encarnação Lopes 3 , que teve <strong>de</strong> fazer opçõesfundamentais para traduzir este texto. Um <strong>de</strong>les diz respeito ao facto <strong>de</strong> traduziro dialecto baixo-alemão (Platt<strong>de</strong>utsch) para o português padrão e manter asexpressões francesas no seu original. Todavia, estas últimas, ao contrário <strong>do</strong> quesurge no texto original, estão em itálico, como mostra o seguinte exemplo: »Je,<strong>de</strong>n Düwel ook, c’est la question, ma très chère <strong>de</strong>moiselle!« (p.7 4 ), que tem aseguinte tradução portuguesa: »Pois é, com os diabos, c’est la question, ma très chère<strong>de</strong>moiselle!« (p. 9). Outro exemplo pren<strong>de</strong>-se com o facto <strong>de</strong> a tradutora, emalgumas passagens <strong>do</strong> livro, ter opta<strong>do</strong> por um equivalente em língua portuguesapara ultrapassar certos <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> pronúncia, como é o caso <strong>de</strong>: »Immer <strong>de</strong>rNämliche, mon vieux, Bethsy?« »Immer« sprach sie wie »Ümmer« aus. (p.9), quese encontra introduzi<strong>do</strong> por: Oh, mon vieux, sempre igual a si mesmo, não é,Bethsy? - A velha senhora dizia ‘sampre’ em vez <strong>de</strong> ‘sempre’ (p. 11).Deste romance existem várias versões cinematográficas – todas com otítulo homónimo <strong>do</strong> livro. A primeira <strong>de</strong> 1923, <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r Gerhard Lamprecht,tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> um filme mu<strong>do</strong>; a segunda <strong>de</strong> 1959 realizada por AlfredWei<strong>de</strong>nmann e a terceira <strong>de</strong> 2008 com a realização <strong>de</strong> Heinrich Breloer. Em 1979Franz Peter Wirth filmou a série televisiva Os Bud<strong>de</strong>nbrooks, conhecida emPortugal. O facto <strong>de</strong> existirem tantos filmes, que foram feitos na verda<strong>de</strong> aolongo <strong>do</strong>s 110 anos <strong>de</strong> existência <strong>de</strong>ste romance, realça o interesse que este livrotem suscita<strong>do</strong> ao longo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s estes anos.Esta tradução <strong>de</strong> Gilda Encarnação Lopes é uma excelente oportunida<strong>de</strong>para o público português mais interessa<strong>do</strong> se iniciar na obra <strong>de</strong>ste autorlübeckiano mundialmente aprecia<strong>do</strong>.2 E st a não é o pr im e i ro t r an sl at o d e st a o br a p ara po rt u g u ê s, no e nt ant o, oant e ri or f o i t rad u z id o po r H e rbe rt C a ro ( 19 06 - 19 91) , c o n he c id o t r ad u t or a le m ãorad ic ad o n o Bra s il, e pu b lic ad o pe lo s L iv ros d e B ras il. E st e t rad u t or t am bé m f oi oau t or d as pr im e i ras ve rs õe s por t u g u e sas d e : A M ont anh a M ág i c a, C arl ot a e m We im ar,D ou t or F au st o e A s C abe ç a s Tr oc ad as.3 G ild a E nc arnaç ão Lope s t am b é m t rad u z iu o rom anc e m ann ia no: A M ont anhaM ág ic a ( 2 00 9) .4 M ann, Thom as, D I E BUD D E N BR OOK S , 17. Au f lag e 19 76, D e u t sc he rTasc he nbu c h Ve r lag .Polissema – Revista <strong>de</strong> Letras <strong>do</strong> ISCAP – Vol. 12 -2012316


POLISSEMANORMAS DE APRESENTAÇÃONORMAS GERAIS To<strong>do</strong>s os artigos <strong>de</strong>vem ser disponibiliza<strong>do</strong>s em RTF (Rich Text Format), epáginas A4, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> à seguinte formatação: espaçamento - 1,5 cm; margenslaterais - 3,17 cm; topo e rodapé - 2,54 cm. O tipo <strong>de</strong> letra será Times New Roman: 12 para o corpo <strong>de</strong> texto; 10 para asnotas <strong>de</strong> rodapé; 11 para citações <strong>de</strong>stacadas e Referências bibliográficas. O título <strong>de</strong>verá ser escrito to<strong>do</strong> em maiúsculas. Para efeitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, não <strong>de</strong>verá usar negrito ou sublinha<strong>do</strong> mas sim itálico. Não usar cabeçalho e rodapé a não ser para indicar o número da página. Quadros, diagramas, gráficos ou imagens <strong>de</strong>verão ser igualmente entregues emficheiro anexo. Nome, instituição a que pertence e email <strong>de</strong>vem vir <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> título. Um resumo com 200-300 palavras na língua original <strong>do</strong> artigo e outro noutralíngua <strong>de</strong>vem aparecer no início <strong>do</strong> artigo. 5 a 10 palavras-chave na língua original <strong>do</strong> artigo e noutra língua <strong>de</strong>vem aparecerno início <strong>do</strong> artigo, entre os resumos e o texto. A revista aceita contribuições em Português, Inglês, Francês, Alemão ouEspanhol.


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