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2602 PINTURA COLONIAL BRASILEIRA: O ... - anpap

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18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahia<strong>PINTURA</strong> <strong>COLONIAL</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: O ATRAVESSAMENTO DO TEXTODra. Raquel Quinet Pifano(Profª Dep. Artes e Design/ UFJF)Resumo: Este artigo visa refletir sobre a filiação da pintura colonial brasileira a umatradição de representação artística fundada na identificação da pintura com a poesia,inaugurada por Alberti. Identifica-se na organização da imagem pictórica colonial avalorização do desenho como meio de atender a função narrativa – lição de Alberti.Palavras-chave: Alberti; pintura colonial; texto e imagem visual.Abstract: This article aims to reflect on the filiation of brazilian colonial paiting to the“albertian” artistic tradition. This tradition were based on identification of the paintingwith the poetry. The valuation of the drawing is identified in the organization of thecolonial pictorial image as way to realize its narrative function.Key-words: Alberti; colonial painting; text and visual image.É muito conhecida entre os historiadores da arte a querela travada nosséculos XVI e XVII entre os partidários do desenho e os partidários da cor.Conhecidos como “poussinistas” e “rubenistas”, apesar de por vezesconfigurar-se num tom por demais dogmático, seus embates teóricos lançarammuitas luzes sobre os caminhos que a pintura européia poderia seguir. Não meparece temerário identificar aí o embrião daquilo que se tornaria uma espéciede bandeira empunhada pelos modernistas na defesa da autonomia dos meiospictóricos em relação aos fins narrativos. Considerando que a aceitação dapintura no panteão das artes liberais era algo profundamente condicionado aoreconhecimento de sua homologia com a poesia, o que implicou a definição depintura como desenho (lembremos a expressão “vasariana” artes dodesenho), 1 não soa equivocado identificar na defesa da cor o início de umatrajetória que culminará com a sua autonomia expressiva na Pintura Moderna.Certamente, autonomia expressiva da cor era algo ainda impensado para osteóricos e pintores de filiação “rubenistas” dos séculos XVII e XVIII, uma vezque os argumentos a favor da cor não excluíam ou questionavam a funçãomimética da pintura e muito menos suas possibilidades narrativas. Ao contrário,buscava-se afirmar a cor como elemento da pintura tão apto quanto o desenhoa cumprir seu destino mimético e narrativo. 2 Entretanto, as repercussõesdaquele debate, de tão calorosos adeptos, atravessou séculos rebatendo,poder-se-ia dizer, tanto na prática pictórica, quanto na crítica de artemodernistas.<strong>2602</strong>


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaNão é minha intenção por hora discutir os rumos que aquele debatetomaria ao longo do século XX apesar de reconhecer-lhe a importância noprocesso histórico da arte ocidental. Meu intento é refletir sobre os princípiosartísticos que vigoraram no universo colonial e em que medida, se isso épossível, contribuíram para a formação de uma “visualidade brasileira”.Emblematicamente, a querela entre os partidários da cor e do desenhopolarizava dois conceitos de pintura: um partia do princípio de que a substânciaintelectual da pintura era o desenho e o outro, de que era a cor a dotar apintura de alma e vida. O debate foi longo, começou na Itália durante o séculoXVI e tomou corpo e ares de doutrina na França acadêmica de finais do séculoXVII e início do XVIII. Mas é importante ressaltar que tal debate só se delineouporque em etapa anterior a pintura fora definida como desenho. Tal definiçãoapresentava-se como único instrumento capaz de sustentar sua presença entreas artes liberais. E fora justamente a definição de pintura como desenho que,ao que parece, vigorou na colônia portuguesa do além-mar. A visualidadebrasileira, arrisco-me à sugestão vaga, se formou sob o domínio do desenhopois o mais apto a garantir a afinidade entre a pintura e o texto escrito – noperíodo colonial, o texto bíblico. Certa da pressa na minha afirmação, masfortemente tentada a instigar o leitor, eu diria que, ao olhar o conjunto dapintura brasileira, da colônia aos anos 30/40, aproximadamente, emerge ainsistência do verbo, ou seja, um apego à estrutura narrativa que organiza aimagem. Tal apego, alvo de tantas críticas à pintura modernista, teria origemno nosso passado artístico colonial.A pintura como desenhoFilipe Nunes, autor do único tratado de pintura escrito originalmente emportuguês e publicado em Portugal no século XVII e XVIII, definiu pintura como“uma representação da forma de alguma coisa, lançadas certas linhas etraças.” 3 Note-se que em tal definição a cor não é considerada. A ausência dacor e a referência ao desenho, certamente, justifica-se pelo pressupostodoutrinário da representação pictórica em vigor no mundo lusitano do séculoXVII de que o desenho externo era a evidência da luz natural da Graça(pressuposto derivado da neo-escolástica). Ao iluminar a desproporção dafantasia, a Graça orientava o juízo do artesão na invenção das obras, assim2603


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaDeus, com sua luz, continuava, mesmo depois do pecado original, a iluminar asações humanas – proposição defendida no Concílio de Trento. A doutrina dodesenho, um modelo cultural difundido pela Igreja Católica, fundava-se nainterpretação tanto da retórica aristotélica, quanto dos textos italianos dosquinhentos, entre os quais, Alberti. A importância do desenho é central nosmuitos tratados de pintura de origem tridentina, como podemos verificar emPossevino, Armenini ou Pacheco. Que a pintura colonial brasileira integrava umprograma contrarreformista de catequese é inegável. Mas, interessa-me aquirefletir sobre o arranjo de códigos visuais utilizados nestas pinturas possível deser inserido numa tradição de representação pictórica inaugurada por LeonBatista Alberti no século XV. Certamente, ao emergir na colônia portuguesa, omodelo de representação pictórica “albertiano” passa pelo filtrocontrarreformista, sofrendo adequações, mas ainda assim se mostrando ummodelo legítimo. Filipe Nunes e Alberti tinham em comum a compreensão dapintura como desenho. Mas, se por um lado, ao aproxima-los, o forte matiztridentino do tratadista português os separam, por outro será justamente pelovia tridentina que Nunes assimilará as lições de Alberti.Alberti afirmava que “a pintura resulta da circunscrição, composição erecepção de luz”. 4 Note-se que a ausência da cor não como elemento definidorda pintura (a mesma ausência é encontrada na definição de Nunes um séculomais tarde). Consultando o tratado de Cennino Cennini, escrito por volta de1390, portanto anterior ao de Alberti – o Da Pintura data de 1435 –, a exclusãoda cor no processo de liberalização da pintura é notória. Diferente de Alberti,Cennini considerava “o desenho e o colorir” como “o fundamento da arte e oprincípio de todos os labores de mão. 5 Aqui os termos desenho e coloridorecebem o mesmo destaque, enquanto que em Alberti não há qualquer alusãodireta à cor. A obra de Cennini não constitui propriamente uma teoria da pinturae sim um preceituário técnico endereçado ao artesão. 6 Já a de Alberti tem omérito de, pela primeira vez na história da reflexão sobre arte no ocidente,fazer da pintura “objeto de teoria e doutrina sistematizados”. 7 Ao confrontar asduas definições, praticamente contemporâneas, emerge o paradoxo quecunhou a definição de pintura durante alguns séculos: quando pensadateoricamente, o seu elemento irredutível, aquele que a qualifica enquanto tal ea distingue das demais artes, a cor, simplesmente foi deixada à margem.2604


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaEnquanto atividade manual, a pintura era desenho e cor, mas elevada àatividade liberal, só desenho, a cor perdeu-se no caminho.No processo de liberalização da pintura, a cor foi dissimulada em“recepção de luz”, “luz e sombra” ou “claro-escuro”, como que denunciando umcerto constrangimento por sua participação na constituição da pintura. Umaatividade intelectual não poderia definir-se por um elemento tão “sensível”,“sensual”, “mundano”, “erótico” ou qualquer outra imagem a que o mundosensível remeta. Para a filosofia, a cor (na pintura) sempre foi elementoperturbador por ser, segundo Lichtenstein, um “componente irredutível darepresentação que escapa à hegemonia da linguagem, essa expressividadepura de um visível silencioso que constitui a imagem enquanto tal”. 8 Diante dapresença quase autoritária da cor, evidência do sensível, como os artistasteóricosdo século XV provariam sua vinculação com o inteligível? 9 Para inserira pintura no campo da razão teórica, o único caminho possível era definir odesenho como seu a priori intelectual. Se o retorno à Antigüidade Clássicamostrou a possibilidade de liberalizar a pintura 10 , coube a esses mesmos textosantigos indicar o desenho como a evidência da sua natureza intelectual. Ora,foi justamente na Arte Poética do grande Aristóteles que os eruditos dohumanismo encontraram argumento para a defesa do desenho como o maisapto a garantir à pintura o posto pretendido por seus teóricos: “Algo semelhantese verifica nas artes do desenho: se o artista espalhasse as cores, por maissedutoras que fossem, como que ao acaso, não causaria prazer tão intensocomo se apresentasse uma imagem de contornos bem definidos.” 11Como grande humanista, Alberti aderiu fielmente a um programa derenovação cultural pautado no estudo dos antigos empreendido por um grupode eruditos e artistas liderados por Petrarca. Central nesse movimento deretorno era a valorização de uma cultura literária antiga da qual se deduziu oprestígio da doutrina do ut pictura poesis para a pintura. A imagem visualascendeu social e metafisicamente porque provou ser capaz de se submeter àracionalidade do Conceito, sendo, assim, aceita (não sem desconfiança) nopanteão do Logos. À razão do conceito subsiste a lógica do texto, daí aexaltação do desenho, pois somente a racionalidade da linha seria apta a darforma ao informe, ou seja, à mancha que caracteriza primordialmente a matériacor, que, finalmente, poderia ser domada. Graças ao desenho, a cor, elemento2605


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahiairredutível da pintura, poderia narrar a história com a mesma eficiência que apoesia. Alberti não atribuía à pintura a função e o mérito de contar umahistória? Em seu tratado afirmou: “a grande obra do pintor é a história(istoria)”. 12 Narrar uma história era, portanto, o mais elevado objetivo do pintor.A pintura era “circunscrição, composição e recepção de luz”. Circuncrição erao desenho, desenho utilizado também na composição. A composição, o“processo de pintar pelo qual as partes das coisas vistas se ajustam napintura”, permitia articular e organizar os elementos que compunham a cena demodo a narrar a história. 13 Para tal, Alberti fornecia ao pintor uma série detécnicas pictóricas que lhe permitiriam alcançar com a pintura os mesmosefeitos da poesia, explicitando, assim, segundo Kossovitch, “a máximaoperante no Da Pintura, o ut pictura poesis”, ou seja, a pintura como a poesia. 14Seguindo o modelo da “Arte Poética” de Horácio (o qual se insere nummodelo mais vasto da retórica), o Da Pintura apresenta o mesmo esquematripartido: o primeiro livro trata dos rudimentos, o segundo livro trata da pinturae o terceiro, do pintor. Tal esquema corresponderia, segundo a estrutura dapoética aristotélica, à invenção, elocução e engenho. 15 Os rudimentos referemse,sobretudo, à matemática. A representação pictórica albertiana assentava-sesobre dois pontos fundamentais: a representação do espaço em perspectivaeuclidiana e a aplicação de uma estrutura literária à imagem pictórica.Colocando em relação os meios formais com os fins narrativos, 16 Alberti assimforneceu um conjunto de preceptivas não só aos artistas, mas aos amadoresda pintura.Baxandall observou que se o livro I do Da Pintura concebia a pinturaatravés de esquemas euclidianos, o livro dois a concebia através de umesquema ciceroniano, logo, seria neste segundo livro que a máxima do utpictura poesis encontraria sua melhor formulação. 17 De fato, tal máxima tornasemais precisa na transferência de um conceito até então exclusivamenteliterário para a pintura: a compositio. A noção de composição pictóricapostulada por Alberti neste momento seria a mais influente no curso tanto daprática, quanto da reflexão européia sobre pintura, sendo responsável por umpadrão de representação pictórica situado no cruzamento da geometria(perspectiva) com a retórica. Como interseção da geometria e da retórica, era2606


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahiaela que garantia à pintura o poder de representar a história, a grande obra dopintor.Composição, compositio, era uma técnica de organização eestruturação do discurso que todo aluno de escola humanista aprendia. Assim,sobrepondo à arte da pintura a noção de compositio, Alberti “inventou” um novoesquema de organização do quadro, construindo a narrativa pictórica conformeo modelo retórico. A técnica da compositio construía a oração segundo quatroníveis hierárquicos: palavras formam frases, frases formam cláusulas ecláusulas formam a oração. Em sua transposição Alberti propôs: as superfíciesformam membros, os membros formam os corpos, os corpos formam a história.E assim ensinava ao pintor, que deveria ser um erudito, como compor ahistória pintada. 18E por fim, na definição de Alberti, temos a recepção de luz. Esta refereseà distribuição do claro-escuro e de seus efeitos sobre as superfíciescoloridas de cada objeto visto, assim como no conjunto. 19 Neste momentoAlberti tece algumas considerações sobre a cor, mas a sua sujeição à recepçãode luz (ou luz e sombra) denuncia a superioridade do desenho no sistemaalbertiano. Luz e sombra são variações do preto e do branco que dizem maisrespeito ao desenho do que ao colorido.Texto e desenho na pintura colonialO sistema de representação albertiano foi, no mínimo, muito adequadoà função da pintura colonial. Ao que tudo indica, nem na colônia nem mesmona metrópole existia no tímido debate artístico a preocupação com umapossível autonomia expressiva da forma em relação ao texto como o fez opróprio Alberti. Alberti conferiu à imagem visual, mais especificamente àrepresentação da figura humana, o poder de expressar movimentos da alma eo fez porque, segundo Baxandall, era profundo conhecedor de Cícero eQuintiliano. 20 A força expressiva do gesto capaz de superar a palavra já haviasido reconhecida pelos oradores antigos, sobretudo Quintiliano ao tratar daactio, quinta parte da retórica. Embora organizando-se literariamente, não éjusto supor que a pintura produzida num contexto humanista não guardasseautonomia expressiva em relação à poesia. É muito sintomática a afirmação deLeonardo “a pintura é uma poesia muda e a poesia uma pintura cega.” 21 O2607


verbo. 22 São Francisco de Assis Agonizante (fig. 1) é uma pintura sobre madeira18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahiatratado de Nunes não se detém sobre a representação da figura humana eseus movimentos de alma, e mesmo a representação da figura humana napintura colonial, grosso modo, trai a ausência de tal questão. De Alberti ficou alição de que a pintura narra uma história e do desenho como elemento formalmais adequado a tal propósito. Daí, passemos à leitura de uma pinturacolonial, obra que não somente os meios formais se submetem aos finsnarrativos, como apresenta ao leitor o texto escrito, confirmando o domínio doque, junto com outro painel, São Francisco de Assis Penitente, compõe o forroda sacristia da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis emMariana, Minas Gerais. As duas pinturas são atribuídas a Manuel da CostaAtaíde e datam aproximadamente da segunda metade do século XVIII. A cenapintada representa o exato momento da morte de São Francisco de Assis.Momento em que, por seu sofrimento, privação e morte, o santo alcançará avida eterna. Como exemplo a ser seguido, São Francisco personifica osprincípios morais da conduta e dos valores cristãos. Nessa pintura, arepresentação do espaço segue as leis da perspectiva artificialis construídapela arte italiana do século XV e teorizada por Alberti. À direita do painel,vemos, numa projeção em profundidade, o mar com uma embarcação, maisadiante, algumas construções e por fim, bem ao longe, correspondendo à linhado horizonte, as montanhas que em tons de azul quase se fundem com o céu.A gradação da tonalidade do azul das montanhas e do céu sugere certacompreensão da pesquisa sobre a percepção visual da atmosfera empreendidapela arte do Renascimento, sobretudo, por Leonardo da Vinci. 23 À esquerda,compondo a cena no primeiro plano e obstruindo a visão do horizonte, vemosparte de um casebre e de uma árvore encobertos pela grande nuvem doprimeiro plano.No centro do primeiro plano, São Francisco segura a cruz. Do ladoesquerdo, dois anjos cantores. Do lado direito, o conjunto de objetos, atributosda penitência e transitoriedade da vida: o crânio, a ampulheta, o rosário, o livroe o cilício. Acima dos atributos e em meio à nuvem, o anjo tocando um violino –segundo Roig, os anjos músicos são atributos de São Francisco de Assis. 24 Osdois anjos à esquerda, o santo e os atributos estão representados sobre uma2608


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahiaespécie de monte que os coloca na mesma linha. Os dois anjos, conforme asregras da perspectiva, estão em pé firmemente apoiados sobre o monte, efeitoobtido pela correta posição dos pés e a sombra projetada para a esquerda,concordando com a sombra da árvore, apesar de tal sombra não se projetarsobre a nuvem.Os atributos (o crânio, o rosário e a ampulheta) encontram-se em cimado livro aberto de onde pende parte do rosário. Já o cilício, também pendente,está sob o livro. As extremidades caídas do rosário e do cilício “apontam” parao açoite no chão. Na composição da obra, esses objetos pendentes, além dafunção metafórica, são elementos formais que conduzem o olhar para o açoitecaído no chão, indicando, assim, aquele breve momento entre o fim da vidaterrena e o início da vida eterna, quando o santo, sem forças para segurá-lo,deixa-o cair. Assim como o cilício, o açoite, objeto de auto-flagelo, é símbolo dapenitência. Nessa cena, ele aparece no chão, representando o fim dasprovações do santo. A solução de Ataíde para sugerir ao leitor da obra que oaçoite teria caído da mão do santo é obtida mais pela posição do grupo deatributos do que pelo gesto de São Francisco. O crucifixo colocadoobliquamente em seu colo toca o livro, unindo o santo aos atributos, alegoria damorte e do tempo que, por sua vez, por estarem pendentes, ligam-se ao açoite.Somando o seu significado metafórico à sua disposição na cena, o grupo deatributos será em grande parte responsável pela identificação do tema centraldessa pintura: a morte de São Francisco.Ao penderem em direção ao açoite no chão, o rosário e o cilíciosubstituem o movimento da mão de deixar cair o açoite. A mão vazia do santoé representada num “gesto” contido, estático, sem relações precisas com osoutros elementos da cena. Ela simplesmente repousa no colo do santo e asugestão de que estaria segurando algo se faz por sua ligeira flexão. Seumovimento, por si só, não expressa o momento da morte tal como o faz, porexemplo, o gesto enfático, fortemente persuasivo do braço “que se abandona,mas que é percorrido por um último sopro de vida” do Cristo pintado porCaravaggio no Sepultamento de Cristo (fig. 2). O mesmo gesto queencontraremos, quase dois séculos depois, em A Morte de Marat (fig. 3)pintado por David. 25 A dos atributos, elementos de leitura do texto pictórico, que2609


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, Bahiasubstituem a força expressiva do gesto da figura humana, nos sugere certahierarquia entre texto e imagem visual nesta pintura.São Francisco não está propriamente sentado entre os anjos e osatributos. Vemo-lo numa espécie de monte de feno, ou manjedoura, que ocontorna e o destaca como figura principal da cena. Além desse elementocontorno,a posição em que é representado o retira do plano sobre o qual osanjos estão apoiados. O joelho flexionado e a outra perna estendida nãocoincidem com a altura e distância do monte sobre o qual o santo estariasentado. O contorno e a não coincidência com a posição dos anjos que oladeiam criam a impressão de que o santo está flutuando. De fato, segundodescrições da morte de São Francisco, no momento de sua morte um fradeteria visto sua alma subir ao céu em uma nuvem branca. 26 Daí, a posição dospés: eles não estão apoiados no chão e também a sombra que separa o santodo chão.Ainda no que diz respeito à representação dos pés, chama a atençãocerto desacordo com a teoria das proporções humanas e do movimento queorientou a produção artística européia a partir do século XV. O pé à esquerda,além de invertido, é visto por baixo, movimento que não concorda com aposição de ambas as pernas e do outro pé. Qual seria o motivo de tal“inversão”? Seria simplesmente um “erro” na representação da figura humanaou teria uma explicação alegórica? A proposição de “erro” não parece tãoextravagante se lembrarmos do movimento das pernas do São Francisco deAssis recebendo as Chagas esculpido por Aleijadinho na fachada da igrejafranciscana de Ouro Preto (fig. 4). Por outro lado, a pesquisa de um possívelsignificado iconográfico ainda não foi realizada. De qualquer modo, taldesacordo fere o princípio de verossimilhança, derivado da poética aristotélica,que fundamentou toda a representação artística italiana humanista edemonstra a pouca atenção dada por nossos pintores à representação dafigura humana.Atrás do santo, dos anjos cantores e dos atributos, vemos uma grandenuvem povoada de anjos e querubins. A nuvem branca que, segundo adescrição acima, transporta o santo para o céu é representada em movimentoscirculares e apresenta certa “densidade”, como se fosse um bloco sólido. Tal“concretude” se acentua quando comparada ao fundo rarefeito do horizonte.2610


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaSeria essa nuvem “mística”, moradia dos anjos, diferente das nuvens do céuempírico? Além disso, por seu peso e seu limite bem definido com o céu, elanão parece vir do alto, ao contrário, parece vir de baixo. Os anjosrepresentados na parte superior da nuvem confirmam sua “concretude”. Excetopelo anjo da esquerda que está voando (note-se o tecido esvoaçante, omovimento das pernas, braços e asas), os demais estão literalmente sobre anuvem. O anjo do centro tem os pés apoiados como se estivesse em terrafirme. Seus pés não estão pendentes, mas encontram-se numa linhahorizontal. À direita, o anjo mantém semelhante posição de apoio, apesar dotecido esvoaçante para o alto. A mesma “concretude” é percebida naqueleelemento-contorno que suspende o santo do chão. Tal “concretude” parecetrair/ denunciar certa dificuldade em representar o invisível, dificuldadecorroborada pela representação da figura humana que não “expressasentimentos da alma”. Poderíamos daí inferir ser essa solidez indício dadificuldade do colono em conceber uma dimensão mais abstrata da teologiacatólica? Se verdadeiro, este seria uma espécie de “limite” para a pintura(forma pictórica), ou seja, fazer o fiel entender com clareza os artigos da fécatólica.Se o conjunto dos atributos tem a função discursiva de explicar o fim davida terrena de São Francisco (e não por acaso, estão em baixo do quadro, naterra), o texto escrito, o gesto do anjo e o triângulo, símbolo da Trindade, noalto da cena, explicam o início da vida eterna. O anjo em cima da nuvem àdireita tem função claramente apologética: com a mão esquerda, exibe umpergaminho com a seguinte frase: Pretioza in conspectú Dei, Mors Sanctorume jus (preciosa na presença de Deus, morte santa e justa). O outro braço, numgesto demonstrativo, aponta para o triângulo com o olho no centro (símbolo daSantíssima Trindade). Do símbolo da Santíssima Trindade, partem raios queatingem a cabeça do santo e o banham de luz. De contorno preciso, o feixe deluz formado por esses raios, assim como a nuvem, é denso e concreto,apresentado com muita clareza na leitura da obra. A cena representa o exatomomento em que sua alma eleva-se ao céu. O anjo exibe o texto e apontapara a Trindade: um gesto direto e didático relaciona o texto à imagem visual. Aimagem ilustra e explica o texto que, por sua vez, determina a própria imagem.2611


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaPara atender a exigência de clareza do texto pictórico o desenho oudebuxo organiza toda a figuração. Através de limites precisos, da pinceladafluida, o desenho ou debuxo domina a matéria cor, fazendo que em momentoalgum seja perceptível a realidade primeira da pintura: tinta sobre um suporteplano. Ademais, o desenho preciso de contornos claros, sem hesitaçãogarantem o reconhecimento imediato de cada objeto que compõe a cena.Concorre para tal a relação luz e sombra empregada aqui. Decorre de umaconcepção de pintura determinada pelo valor do desenho, a noção (quetambém remonta a Alberti) da importância do claro-escuro para conferir relevoaos objetos representados. Usando uma escala luminosa assentada numavariação de luz que evita a sombra absoluta, a precisão do desenho é mantida.Da noção de que a pintura como a poesia narra uma história deriva a grandefunção da pintura colonial que será cumprida com muita eficiência: narrar ahistória bíblica. Mais uma vez, o desenho e a luz garantem a legibilidade dapintura que, se facilmente legível, poderá levar a palavra de Deus ao maisincauto colono.Fig. 1 – Ataíde, São Francisco de Assis Agonizante, séc. XVIII, Forro daSacristia da Igreja São Francisco de Assis, Mariana2612


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaFig. 2 – Caravaggio, Deposição de Cristo, 1602-1604, PinacotecaVaticana, RomaFig. 3 – Jacques-Louis David, A morte de Marat, 1793, Musées Royauxde Beaux-Arts, Bruxelas2613


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaFig. 4 – Aleijadinho, Visão de Alverne, séc. XVIII, detalhe da portada daIgreja São Francisco de Assis, Ouro Preto1 VASARI (1998)2 HEINICH (1993)3 NUNES (1982) p. 894 ALBERTI (1992) p. 1025 Cennino Cennini, Il libro dell’arte o trattato della pittura. Apud.: KOSSOVICTH (1988) p. 1836 KOSSOVITCH (1992) p. 107 Ibidem p. 98 LICHTENSTEIN (1994) p. 149É importante chamar a atenção do leitor para o conflito existente entre a razão teórica e o sensívelnaquela época, em que o pensamento de modo geral tinha uma orientação metafísica.10 Nos meios helenísticos e romanos cresceu fortemente a estima pela arte e artistas. Segundo Panofsky,“o pintor em primeiro lugar e a seguir o escultor passarão cada vez mais a figurar como personalidadessuperiores e protegidas dos deuses”. In: PANOFSKY (1994) p. 16 - 1711 Aristóteles, Poética, VI. ARISTÓTELES (s/d) p. 24912 ALBERTI (1992) p. 10413 Ibidem p. 10714 KOSSOVITCH (1992) p. 2115 CHASTEL (1993)16 BAXANDALL (1991) p. 20917 BAXANDALL (1971) p. 12918 Sobre a invenção da composição pictórica por Alberti ver BAXANALL (1971)19 KOSSOVITCH (1992)20 BAXANDALL (1971)21 Leonardo da Vinci, O Paragone, 1490-1517. Apud.: LICHTENSTEIN (2004) vol 7, p. 1922 A presença do texto escrito é muito frequente na pintura colonial.23 ARGAN (1989)24 ROIG (1950) p. 11325 ARGAN (1993) p. 4426 CARR-GOMM (2004)2614


18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes PlásticasTransversalidades nas Artes Visuais – 21 a 26/09/2009 - Salvador, BahiaREFERÊNCIASALBERTI, Leon Batista. Da Pintura. (Trad.: Antônio da Silva Mendonça) Campinas:Ed. da UNICAMP, 1992.ARISTOTELES. Arte Retórica e Arte Poética. (Trad.: Antônio Pinto de Carvalho) Riode Janeiro: Ediouro, s/d. Estudo introdutório de Goffredo Telles Júnior (ColeçãoUniversidade de Bolso)ARGAN, Giulio Carlo. Storia dell’arte italiana. Milão: Sansoni per la Scuola, 26º edição,3 v, 1989.ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.BAXANDALL, Michael. Giotto and the orators: Humanist observers of painting in Italyand discovery of pictorial composition 1350-1450. Oxford – Warburg studies/ NewYork: Oxford University Press, 1971.BAXANDALL, Michael. O olhar renascente – Pintura e experiência social na Itália daRenascença. (Tradução: Maria Cecília Preto da Rocha de Almeida) Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1991. (Oficina das Artes, v.6)CARR-GOMM, Sarah. Dicionário de Símbolos na Arte: guia ilustrado da pintura e daescultura ocidentais. (tradução Marta de Senna). Bauru: EDUSC, 2004.CHASTEL, André. Arte e umanesimo. In: ARGAN, Giulio Carlo. Storia dell’arte italiana.26º edição, Milão, Sansoni per la Scuola, 1993, v2.HANSEN, João Adolfo. Ut Pictura Poesis e Verossimilhança na Doutrina do Conceitono Século XVII Colonial. In: Revista de Crítica Literária Latino Americana. Lima, nº45,1º semestre de 1997, pp.171-191.HEINICH, Nathalie. Du peintre a l’artiste – artesans et académiciens à l’âge classique.Paris: Minuit, 1993.KOSSOVITCH, Leon. Apresentação. In: ALBERTI, Leon Batista. Da Pintura. (Trad.:Antônio da Silva Mendonça) Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992, pp.09-31.LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A Pintura: textos essenciais – Vol. 7: O paralelodas artes. Apresentação de Jacqueline Lichtenstein. São Paulo: Ed. 34, 2005.PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. [Tradução Paulo Neves]São Paulo: Martins Fontes, 1994. (Coleção Tópicos)NUNES, Philippe. Arte da Pintura. Symmetria, e Perspectiva. Porto: EditorialPaisagem, 1982.ROIG, Juan Fernando. Iconografia de los santos. Barcelona: Ediciones Omega, 1950.VASARI, Giorgio. The Lives of the Artists. (Trad.: Julia Conaway Bondanella e PeterBondanella) Oxford; New York: Oxford University Press, 1998.CURRICULO RESUMIDO:Raquel Quinet Pifano é professora adjunto do Departamento de Artes e Designdo Instituto de Artes e Design da UFJF, MG. Doutora em História e Crítica daArte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/ UFRJ eMestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Rio.2615

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