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Edição 14 | Ano 8 | No.1 | 2010.1 REVISTA - Contemporânea - UERJ

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<strong>REVISTA</strong>Edição <strong>14</strong> | <strong>Ano</strong> 8 | <strong>No.1</strong> | <strong>2010.1</strong>


<strong>REVISTA</strong>Edição <strong>14</strong> | <strong>Ano</strong> 8 | <strong>No.1</strong> | <strong>2010.1</strong>FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<strong>UERJ</strong>


CATALOGAÇÃO NA FONTE<strong>UERJ</strong>/FCS/PPGComRevista Contemporânea - Vol. 1, N° 1 (2003)- . - Rio de Janeiro: <strong>UERJ</strong>, Faculdade de Comunicação Social,2003 -SemestralE-ISSN 1806-04981. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação-Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos.4. Sociologia - Periódicos. I. Universidade do Estado do Riode Janeiro. Faculdade de Comunicação Social.Brasil


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADESFACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIALREITORRicardo Vieiralves de CastroVICE-REITORMaria Christina Paixão MaioliSUB-REITOR DE GRADUAÇÃOLená Medeiros de MenezesSUB-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAMonica da Costa Pereira Lavalle HeilbronSUB-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURARegina Lúcia Monteiro HenriquesDIRETOR DO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADESGlauber Almeida de LemosFACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIALDIRETORJoão Luís de Araujo MaiaVICE-DIRETORRicardo Ferreira FreitasCHEFE DO DEPARTAMENTO DE JORNALISMOLuiza Helena Sampaio Corrêa MarianiCHEFE DO DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICASFernando do Nascimento GonçalvesCHEFE DO DEPARTAMENTO DE TEORIA DA COMUNICAÇÃORonaldo George Helal


Edição <strong>14</strong> | <strong>Ano</strong> 7 | <strong>No.1</strong> | <strong>2010.1</strong>CONTEMPORÂNEA - EDIÇÃO <strong>14</strong> - Vol.7 Nº1 - 2010Revista Contemporânea (E-ISSN 1806-0498) é uma publicação acadêmica semestral e interdisciplinardo Grupo de Pesquisa “Comunicação, Arte e Cidade” do Programa de Pós-Graduação em Comunicaçãoda <strong>UERJ</strong>. É dirigida a pesquisadores, professores, profissionais e estudantes (doutorandos, mestrandos,especialistas, graduados e graduandos) do campo da comunicação e áreas afins. Seu principal objetivoé publicar textos originais e inéditos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, mas também estudosteóricos, revisões de literatura que contribuam para o estudo da Comunicação em suas interfaces comdisciplinas afins. Sua proposta editorial vem justamente ao encontro das tendências atuais de integraçãoe complementaridade entre o campo da Comunicação e as diversas áreas de conhecimento. Além dostextos acadêmicos e resultantes de pesquisa, propõe-se a publicar trabalhos que reflitam sobre a produçãocultural contemporânea, como ensaios fotográficos, vídeos, documentários e trabalhos artísticos.CONSELHOS EDITORIAL E CIENTÍFICOCarlos Alexandre Moreno (<strong>UERJ</strong>), Christiane Luce Gomes (UFMG), Denise Oliveira Siqueira(<strong>UERJ</strong>), Euler David de Siqueira (UFJF), Fátima Régis de Oliveira (<strong>UERJ</strong>), Fernando do NascimentoGonçalves (<strong>UERJ</strong>), João Luís Araújo Maia (<strong>UERJ</strong>), Mônica Fort (PUC/PR), Nízia Villaça (UFRJ),Ricardo Ferreira Freitas (<strong>UERJ</strong>), Ronaldo George Helal (<strong>UERJ</strong>) e Stéphane Hugon (Paris V).EDITOR GERALProf. Dr. Fernando do Nascimento Gonçalves (<strong>UERJ</strong>)REVISÃo E Edição ExecutivaDaniela Muzi (PPGCom/FCS/<strong>UERJ</strong>)Helena Klang (PPGCom/FCS/<strong>UERJ</strong>)José Cláudio Castanheira (PPGCom/FCS/<strong>UERJ</strong>)ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIAUniversidade do Estado do Rio de JaneiroFaculdade de Comunicação Social - PPGC - Mestrado em ComunicaçãoRevista ContemporâneaA/C Prof. Dr. Fernando do Nascimento GonçalvesRua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10129, Bloco FMaracanã - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 20550-013Tel.fax: (21) 2334-0757. E-mail: revista.contemporanea@gmail.comCAPAPriscila Pires (LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>)DIAGRAMAÇÃOJessica Carvalho e Priscila Pires (LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>)EDITORAÇÃO ELETRÔNICAPriscila Pires (LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>)PROJETO GRÁFICOMarcos Maurity e Priscila Pires(LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>)<strong>REVISTA</strong>


SUMÁRIOEdição nº<strong>14</strong><strong>Ano</strong> VIII N.1Jan/Jun 2010Dossiê Imaginários (apresentação)Artigos0317273446637788Formas e interfaces do urbano: sentido dolugar na cidade pós-modernaJulieta Leite e Fábio LaRoccaLimites traçados: marginalidade naMadri de AlmodóvarRafael Nacif de Toledo PizaO Rio de Janeiro do imaginário deHollywood como instrumento depropaganda ideológicaCarlos A. de C. MorenoO Imaginário do Medo: violência urbanae segregação espacial na cidade doRio de JaneiroLayne AmaralDa janela olho e me envolvo com o mundoJorge Ricardo Santos de Lima CostaPegação, Cidadania e Violência: asTerritorialidades do Imaginário da PopulaçãoLGBT do Rio de JaneiroLuiz Eduardo Neves PeretO que é bello é para se ver, só o feioé immoral”: o processo disciplinadordos corpos de atrizes na mídia impressa nasúltimas oito décadasLuiza Real de Andrade AmaralA busca por segurança: imagináriodo medo e geografia urbanaFelipe Botelho Corrêa106122132<strong>14</strong>1151161185196Cartografia do acaso: percursos à derivano imaginário da Candelária, favela daMangueira, RJHeloiza Beatriz Cruz dos ReisA arquitetura do medo: um estudosobre Barra da Tijuca e a prática donão encontroMônica C. P. SousaPara além do Rio de Janeiro: acomunicação da arquiteturaestrangeira da Barra da TijucaRicardo Ferreira FreitasContinuidade, pausa e movimento notecido urbano: a Cidade da Música naBarra da Tijuca – Rio de JaneiroTania da Rocha PittaDas Exposições Universais aos JogosPan-Americanos de 2007: os envolventeslegados arquitetônicos dos megaeventosVania Oliveira FortunaCavernas Pós-Modernas: Grafitismo eDesejo de Espiritualização nos Murosde João PessoaEline de Oliveira CamposA arte de construir no Nordeste:um resgateMadalena de F. P ZaccaraO imaginário na reprodução da naturezano espaço urbano: Parques Vaca Bravae FlamboyantMaria de Lourdes Corsino PeresYcarim Melgaço BarbosaA Contemporânea é uma revistaon-line do programa de pósgraduaçãoem comunicação daUniversidade do Estado do Riode Janeiro, produzida por alunose professores com o suporte doEscritório de Relações Públicas daFaculdade de Comunicação Social.ExpedienteConselho EditorialCarlos Alexandre Moreno - <strong>UERJ</strong>Christiane Luce Gomes - UFMGDenise Oliveira Siqueira - <strong>UERJ</strong>Euler David de Siqueira - UFJFFátima Régis de Oliveira - <strong>UERJ</strong>Fernando N. Gonçalves - <strong>UERJ</strong>João Maia - <strong>UERJ</strong>Mônica Fort - PUC/PRNízia Villaça - UFRJRicardo Ferreira Freitas - <strong>UERJ</strong>Ronaldo Helal - <strong>UERJ</strong>Stéphane Hugon - Paris VEditor GeralProf.Dr.Fernando Gonçalves <strong>UERJ</strong>Revisão e Edição ExecutivaDaniela MuziHelena KlangJosé Cláudio CastanheiraPPGCom/<strong>UERJ</strong>DiagramaçãoJessica Carvalho - LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>Priscila Pires - LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>Editoração Eletrônica e CapaPriscila Pires - LCI/FCS/<strong>UERJ</strong>Projeto GráficoPriscila PiresMarcos MaurityLCI/FCS/<strong>UERJ</strong>Contato:contemporanea.revista@gmail.comSite:www.contemporanea.uerj.brCopyright 2009 <strong>UERJ</strong> | FCS | LCI


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010ApresentaçãoTerreno e arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundoCom interesse em elaborar uma geografia do imaginário, que era umaambição de Gilbert Durand, reunimos nesta edição artigos apresentados no IXFórum Temático Terreno e Arquitetura, uma simbiose entre o ser e o mundo,evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre o Imaginário - CongressoInternacional, realizado em Recife, Pernambuco, em outubro de 2008.Iremos analisar formas arquiteturais que dialogam ou que se impõem aomeio ambiente, que se envolvem a favor ou se desenvolvem contra o terreno.Sabemos que o espaço construído revela muitas vezes a cultura e a sociedadeque o criou. Percebemos em Lisboa, no bairro da Alfama por exemplo, a adaptaçãodos portugueses ao terreno, as construções acompanham as curvas dosolo. A forma arquitetural está em harmonia com as curvas do nosso planeta.Como oposição, poderíamos citar a arquitetura espanhola que veio se instalarcontra a arquitetura e a cultura Maia. Os primeiros se envolvem em harmoniacom o terreno, enquanto que os outros desenvolvem um lugar contra, contraa natureza. Não somente cada cultura reage de maneira diferente frente aoterreno, mas também cada época valoriza mais ou menos o meio ambiente,isto também faz parte do espírito do tempo. Os modernos, para citar somenteum exemplo, procuravam o progresso industrial, a arquitetura respondia a umfuturo melhor e desconhecido. Hoje, com o progresso tecnológico e a facilidadede comunicação e de viagem, a arquitetura perdeu sua dimensão universal,visionária e futurista para responder com sensibilidade a cada programa e acada terreno, valorizando assim o tocar, o local, o presente.Bom passeio!Daniela MuziHelena KlangJosé Cláudio CastanheiraEditores-executivosApresentação


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Formas e interfaces dourbano: sentido do lugar nacidade pós-moderna 1Urban forms and interfaces:place meaning in post-modern cityJulieta Leite | julietaleite@gmail.comDoutoranda pela Université Paris Descartes, Sorbonne, e pesquisadorado Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien (Ceaq). Mestre emDesenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco.Fabio La Rocca | fabio.larocca@ceaq-sorbonne.orgDoutor em Sociologia pela Université Paris Descartes, Sorbonne eResponsável pelo Groupe de Recherche sur l’Image en Sociologie (Gris)ResumoEste artigo tem como objetivo tentar identificar que novas qualidades do lugar sãohoje reveladas. No momento atual, em que a arquitetura real, a rede virtual e novaspráticas sociais parecem se fundir, precisamos elaborar novas configurações do lugarno território. Para tanto, partiremos de algumas acepções definidoras da essência dolugar e de exemplos recentes de práticas sociais do espaço e da arquitetura, analisadosà luz dessas teorias e do ponto de vista das suas relações com as novas tecnologias decomunicação e informação.Palavras-Chaves: arquitetura; novas tecnologias de comunicação e informação;rede virtual; práticas socioespaciais.AbstractThis article aims to identify what new place qualities are revealed today. At the moment,where the real architecture, the virtual network and new social practices appear to merge,we need to develop new configurations of place in the territory. To this end, we begin fromsome acceptations that define the essence of the place and from recent examples of socialpractices of space and architecture, examined in light of these theories and from the pointof view of its relations with new communication and information technologies.Keywords: architecture; new communication and information technologies; virtual network;socio-spatial.Formas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201004IntroduçãoAs atuais relações travadas no espaço e seu simbolismo dão à cidadeuma nova centralidade na cena pós-moderna, na qual os elementos e processostravados no espaço ganham outros valores. Observamos novas formas deconstruir e viver a cidade que passam, por exemplo, pela elaboração da arquiteturacomo pele simbólica, pelas práticas de reinterpretação dos lugares,e pela combinação das dinâmicas socioespaciais com as novas tecnologias decomunicação e de informação.A cidade pós-moderna atravessa uma fase de transfiguração que, para serposta em valor e dar um sentido à sua constante evolução, necessita, fazendoreferência a Foucault, da elaboração de uma “ontologia da atualidade”. Saberver para tentar compreender os diversos elementos que caracterizam a novacena urbana do ponto de vista da materialidade da cidade física e da sensibilidadeda experiência estética. Uma espécie de equilíbrio entre cityscape e mindscapedesigna a forma atual da cidade, entre o banal do espaço construído e oparticular do imaginário urbano.A cidade contemporânea, complexa e multifacetada, constrói-se atravésde lugares diversos, cujo caráter é determinado tanto pela qualidade da suaestrutura físico-espacial quanto pela experiência subjetiva que ele proporciona.As formas de apropriações dos espaços também são outros fatores que refletemna imagem do lugar, atualmente, incluem as práticas de consumo e, de maneiraefêmera, das tribos urbanas. Como exemplos, citamos as apropriações de carátersubversivo das pichações; de caráter histórico-cultural; na delimitação deilhas de centro histórico; étnico-cultural nos guetos; ou socioeconômicas noscondomínios residenciais e shopping centers. Esses dois últimos exemplos caracterizamilhas urbanas da pós-modernidade segundo Ricardo Freitas (1996),ou super-lugares (AAVV, 2007), como novas modalidades de concepção arquitetônicado espaço e de formas-simbólicas da cidade-comunicação ou, usandoa expressão de Massimo Canevaci (1993), cidade polifônica.A difusão das tecnologias de informação e comunicação no cotidianosocial também veio a contribuir com esse processo de redefinição dos lugares.O uso das tecnologias digitais sob forma de aparelhos portáteis e ambientesconectados vem a se combinar com as práticas cada vez mais numerosas dedeslocamentos na cidade. Constrói-se assim a imagem de um espaço descontínuoe fragmentado, que nos leva a repensar os territórios e a importância dosespaços de conexão. Segundo Bruno Marzloff (1996), se o território perde emcontinuidade geográfica, a cidade reencontra sua unidade através das redes dedeslocamentos e de telecomunicações.Novos programas e edificações são elaborados para corresponder àsdinâmicas das multidões móveis e inteligentes: trata-se de estações de serviços(select, outlet), gares, aeroportos, centros comerciais, hipermercados, hotéis.Esteticamente, essas edificações apresentam as mais diversas expressõesFormas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201005segundo seus volumes e fachadas e pontuam o território enquanto novas formasarquiteturais particulares e como rede, pois passam a fazer parte de umaconexão de espaços que servem aos agrupamentos sociais efêmeros e cada vezmais numerosos. Dentro dessa rede de práticas e de espaços interconectados,os lugares são, assim, redefinidos.Segundo Marc Augé (1992), os exemplos que acabamos de apresentarcorrespondem a espaços individualizados e estritamente funcionais, ou seja,a “não-lugares”. Sua principal particularidade é servirem principalmente depassagem e/ou de consumação cultural, tomando a cidade sob forma de espetáculoou museu. Segundo Augé, essas novas práticas e espaços contemporâneosempobrecem a experiência da cidade por meio da experiência do vagardespretensioso, da apreensão visual, do encontro, do imprevisto e mesmo dadescoberta do gênio do lugar. Ao constatar a perda de “lugares antropológicos”,Augé estaria provavelmente se referindo ao possível desaparecimentode uma “atmosfera local” que serve de traço unificador do social ao espacial.No entanto, o pensamento de Pierre Sansot (1996) nos mostra que de dentrode uma apreensão poética podemos ainda apreender em sensibilidade certoslugares da cidade contemporânea.Para o arquiteto Christian Norberg-Schulz (1996), dizer que um espaçoé desprovido de caractere significa que sua atmosfera particular não é reconhecida.No entanto, a interpretação que faz o arquiteto em torno do genius locié que “cada época revela certas qualidades do lugar e sombreia outras” (Op.cit, p. 56). Nossa intenção aqui é de tentar identificar que novas qualidades dolugar são hoje reveladas. No momento atual, em que a arquitetura real, a redevirtual e novas práticas sociais parecem se fundir, precisamos elaborar novasconfigurações do lugar no território. Para tanto, partiremos de algumas acepçõesdefinidoras da essência do lugar e de exemplos recentes de práticas sociaisdo espaço e da arquitetura, analisados à luz dessas teorias e do ponto de vistadas suas relações com as novas tecnologias de comunicação e informação.Lu g a rDe maneira geral, os espaços definem-se como lugares por meio daperspectiva singular da experiência do ambiente físico. Além disso, os lugaressão espaços que têm capacidade de simbolização e possuem uma “aura de identidade”.Desse modo, normalmente eles são definidos por uma história social,cultural ou política, associados a um espaço determinado, seja geometricamente,seja por seus elementos físicos.Para o geógrafo Yi-fu Tuan (1997), o lugar é identificado pela experiênciasensível e estética. Sua percepção compreende, num primeiro momento, asensibilidade por meio dos sentidos – cheiro, gosto, toque, percepção visual – enum segundo momento a concepção e simbolização, ou seja, uma construçãomental. Desse modo, a experiência do lugar corresponde tanto às emoções queFormas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201006suscitam o espaço quanto às suas qualidades espaciais e ao seu entendimento.Dentro desse processo, destaca-se a experiência visual.A imagem do espaço é uma construção mental que associa os elementosconcretos à experiência subjetiva, o que inclui a experiência sensitiva e a memória.Enquanto combinação de espaço construído e espaço vivido, os lugaresadquirem sentidos e imprimem significado ao grupo que o habita. Essa relaçãonos permite pensar o espaço voltado para a ideia de existência, o lugar comosinônimo de “estar no mundo”, fazendo uso aqui do princípio formulado porAugustin Berque (2000): “o ser humano é um ser geográfico”.A construção dos lugares se dá pela experiência subjetiva, mas é principalmentepela apropriação coletiva que eles são reconhecidos. SegundoMaffesoli (1990), a cidade caracterizada por ser um espaço sensível, essencialmenterelacional, onde circulam as emoções, os afetos e os símbolos partilhadoscoletivamente. As emoções da vida social ou da vida espiritual se associamintimamente às dimensões do espaço vivido, pois constituem “um fio vermelhoque delimita o ‘gene do lugar’ (genius loci) [...]. A inscrição espacial é umaverdadeira memória coletiva” (Op.cit. p. 210) e o lugar é considerado como um“vetor do estar junto social”.No que se refere ao genius loci, Maffesoli destaca que é a atmosfera dolugar, dada pela sua vivência emocional, que os transforma em lugares conhecidos.É desse ponto de vista que Maffesoli vê delimitados os lugares: a partirdas práticas e apropriações das “comunidades estéticas”, mesmo que momentaneamente.Uma vez delimitados, esses lugares tornam-se emblemáticos dacidade e para as comunidades, pois servem de fonte para a banalidade da vidacotidiana e aos momentos de identificação, de encontro, de contato direto como próximo e no presente.O t e r re n o d a i n f o rm a ç ã o a m b i e n t eAs diferentes figurações do lugar definem um processo complexo que,segundo Norberg-Schulz, “não pode ser reduzido a um comportamento motor,uma impressão sensorial, uma experiência emocional ou uma compreensãológica, ele abarca todas essas dimensões” (Op.cit. p. 59). Se considerarmosas dinâmicas socioespaciais contemporâneas “pertencemos com certeza a umdado lugar, mas nunca de maneira definitiva” (MAFFESOLI, 1990, p. 217).Depois de apresentados brevemente alguns dos elementos que imprimemo caráter do lugar, observaremos agora como as estruturas espaciais informativasespalhadas na cidade contribuem com a redefinição desse caráternos dias de hoje. Observamos hoje a formação de novos espaços caracterizadospor uma informação ambiente, ou “ubimedia”, segundo Greenfield (2006),presente tanto nas estruturas comunicantes como painéis digitais, fachadaseletrônicas, estações de conexão e terminais de serviços digitais; quanto nosnovos objetos cotidianos como o telefone celular, o GPS, o computador deFormas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201007bolso ou PDA; e, invisivelmente, nos territórios servidos pela conexão sem fio- Wi-Fi ou Bluetooth. Tal infiltração tecnológica afeta de maneira considerávelas superfícies arquitetônicas, concebidas como novas interfaces que formam nacidade uma espécie de novas estruturas em arquipélago ou novas plataformas.A arquitetura transforma-se em link, constituindo assim hubs diversos, metáforatecnológica das megaestruturas de conexão no espaço urbano, cujo conjuntoda origem a uma “Urbis digital”.Analisemos os exemplos dos espaços de conexão sem fio, dos tags edo GPS:Wi-Fi - A conexão com uma rede local sem fio, conhecida com Wi-Fi (wireless fidelity), permite conectar computadores portáteis e outros objetos “comunicantes”à uma rede em banda larga, dentro de um raio de normalmente20 a 50 metros de distância. Esse tipo de conexão é oferecido em zonas degrande concentração de usuários, como edifícios de escritórios, gares, aeroportos,hotéis e, atualmente, em praças, parques e jardins. No caso dos espaçospúblicos, a estação de conexão (ou hotspot), ao definir superfícies de acesso àinternet, caracteriza novas formas de apropriação e delimitação do espaço. Aproliferação do Wi-Fi configura uma “ambiência tecnológica”, que se acrescentaà atmosfera do lugar e define um sinônimo de “ser conectado” comocondição sine qua non de existência. Influencia assim as experiências subjetivas,dentro da uma fusão do ciberespaço à cidade.Tag - Os tags funcionam como códigos de barra localizados sobresuperfícies arquitetônicas ou no espaço urbano. Seu sistema de codificaçãoem alta densidade permite representar uma quantidade importante de informaçõessob forma de imagem reduzida. O acesso às informações é feitopor meio do telefone celular, que direciona o código do tag – via texto/smsou imagem/foto – a uma página na web. Os tags podem assim alimentar acomunicação entre os passantes e o lugar ao mesmo tempo em que se tornamum elemento decorativo próprio à arquitetura pós-moderna. “Um símboloantes da forma” ligado à concepção da “ambiguidade na arquitetura” deVenturi (1999), que faz do código visual uma expressão do pós-modernismona arquitetura, uma celebração pop desse elemento como fonte de variedadeque acentua a riqueza da significação.GPS - O GPS é um sistema que indica uma posição sobre a superfícieda terra com a ajuda de um aparelho que recebe as coordenadas de latitude elongitude por satélite. Sua aplicação mais comum se observa nos automóveis,onde o GPS serve para a orientação do condutor que, ao comunicar ao sistemao endereço do destino desejado, recebe em tempo real as indicações dotrajeto a realizar. Experiências recentes apresentam o GPS adaptado à escalado pedestre, sugerindo itinerários, informando acessos, pontos de interesse,fotos das edificações, entre outros detalhes. No entanto, esse objeto “nômade”pode condicionar nossa experiência espacial e destruir o gosto de se perder noFormas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010espaço, próprio à deriva situacionista ou ainda à aventura da flânerie exaltadapor Benjamin e Baudelaire. Por outro lado, o sucesso do uso do GPS respondeàs necessidades de conforto tecnológico próprio ao indivíduo pós-moderno.Tal novo modo de ler, se orientar e percorrer a cidade traria provavelmentenovas diretrizes e considerações para as análises de Kevin Lynch, em A imagemda cidade (1971), onde o tema da legibilidade espacial é abordado por meio depontos de orientação que ajudam a construir mapas mentais na cidade.Ar q u i t e t u r a d o s s u p e r-l u g a r e s08Observemos agora outra forma de experiência urbana que inclui novaspráticas socioespaciais, mas principalmente novas estruturas da cidade. Umadenominação que nós propomos dar a tais formas de construção na cidadecontemporânea seria de superlugares, como uma acentuação dos “não-lugares”propostos por Augé. A caracterização de tais tipologias está vinculada ao prefixo“super” que indica o excessivo, extraordinário, excepcional. Nestas categoriasclassificaríamos os centros especializados, os fashion districts, os outlets damoda, os novos programas e arquiteturas dos centros comerciais, os espaçosférreos e aeroportos que mudam consideravelmente sua natureza arquiteturale seus modos de apropriação pelas “multidões”, tribos urbanas e indivíduosnômades, formas coletivas da pós-modernidade. Trata-se de lugares dedicadosà consumação, à diversão, ao turismo e à viagem, que se tornam os ícones donosso tempo. Essas estruturas apresentam uma centralidade multifuncional eplurisensorial da sua geografia e, dentro de uma preocupação arquitetônica,buscam transformar a fisionomia do território urbano, criando novos espaços,vividos e contemplados.A passagem do não-lugar ao superlugar faz-se em relação à transformaçãode escala e do território dominado pelos espaços multifuncionais. Trata-seassim não apenas de uma alteração da terminologia, mas, sobretudo, da “essência”do lugar e da evolução de sua natureza. Tais megaestruturas de massamarcam o território e orientam os estilos e comportamentos estéticos dos indivíduos.Basta imaginar, por exemplo, a implantação do “império” Ikea comsua arquitetura de caixa colorida que dão origem a uma “ikea-atitude” queinfluenciam os modos de viver e de habitar; os cinemas multiplex que oferecemuma diversidade de serviços; ou os aeroportos construídos para acolher vôoslow cost do tipo Ryanair que transformam a geografia urbana ao preencher econectar antigas zonas vazias do perímetro suburbano.Os superlugares, com sua arquitetura imponente massificam os espaçose criam “cidades” dentro da cidade com suas particularidades, como a citadelada moda, a cidade eletrônica, do design etc. Tais plataformas são representativasda tendência atual de transformação sensível e de generalização do espaço.Suas especificidades arquitetônicas se caracterizam em certos casos pela reproduçãode estilos e elementos de maneira pictórica, como a cidade medieval,Formas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010os muros da Roma Antiga, ou as colunas gregas. Protótipos desse gênero sãovistos nos outlets da moda das conurbações geográficas da periferia de Florençaou Roma, no Etnapolis em Catane, sinônimo do conceito de bigness de RemKoolhaas; ou em zonas de urbanização recente, como na fronteira da Paris “intramuros”com o centro comercial Bercy2, realizado por Renzo Piano. Essesexemplos diversos indicam o sintoma de uma arquitetura como abrigo de esquemasfuncionais repetidos e em série, que podemos identificar nas característicasdescritas por Venturi em “Learning from Las Vegas” (1977).Tais exemplos associados às recentes formas de construção socioespaciaisindicam o desenvolvimento de espécies de templos ou santuários onde semanifestam formas de religiosidade comunitária, segundo Maffesoli, entre amistificação da consumação e a comunhão de emoções, dimensões do nomadismoe da flânerie pós-moderna.Co n s i d e r a ç õ e s finais09Ao o fazermos referência aos não-lugares de Augé, observamos que elesassumem hoje um novo caractere: é a substância que muda e se nós prefiguramossua transformação em superlugares, é em relação a codificação de umpapel social e à amplificação da funcionalidade. Os superlugares começam aadquirir uma “história” e deixam de ser apenas lugares transitórios, de passagem.Eles passam a constituir uma prática vivida com intensidade e duraçãono tempo, o que exprime as vagabundagens pós-modernas e o inconscientecoletivo nesses territórios flutuantes caracterizados por Maffesoli (1999).Os exemplos de combinação das novas tipologias arquiteturais e as dinâmicassociais com as tecnologias digitais demonstram de que modo têm sealterado a sensibilidade do espaço e as relações de pertencimento e alteridadeque construímos neles e a partir deles. A acepção da cidade contemporânea viaas novas tecnologias digitais assume a forma de um rizoma. A de informaçãoe de comunicação são acrescidas às infraestruturas urbanas cotidianas, modificandosuas ramificações e, de certa maneira, enriquecendo as dimensõessensoriais do espaço. Tal potência tecnológica “re-encanta” a cidade e alimentaa transfiguração do imaginário de um Atlas de geometria variável.As novas formas de práticas socioespaciais apoiadas na informação ena comunicação, ao tomar como conteúdo um instante, um objeto ou umdeterminado espaço, podem proporcionar um retorno à experiência do interativo,do tátil, e mesmo à apreensão sensível do lugar. O uso de tecnologiasdigitais pode também contribuir para a caracterização das novas arquiteturase resignificação dos espaços, permitindo ampliar a atualização e reativação deexperiências e recordações que nutrem o imaginário.Nossa comunicação pretendeu por fim analisar a cidade contemporâneaaprofundando questões em torno de dois processos recentes e interconectados:a re-interpretação dos lugares e sua componente arquitetônica simbólica e aFormas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010conjunção da informação e da comunicação digitais ao espaço urbano. Pormeio de exemplos de práticas de interação entre o meio digital e o espaçourbano ilustramos as considerações teóricas sobre novas formas de apreensãosubjetiva e apropriações coletivas na cidade contemporânea, no que se refere aoespaço e à arquitetura como experiência sensível nos dias de hoje. Os aspectosaqui abordados representam, no fundo, uma maneira de “dizer” a cidade contemporânea,de dar uma visão e de revelar, assim, características pertinentesem sintonia com a ambiência pós-moderna para sensibilizar o pensamento,tendo sempre um olhar atentivo sobre o cotidiano, sobre o que é e como sevive, no presente, a vitalidade urbana.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.10Formas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasAAVV, La civiltà dei superluoghi. Notizie dalla metropoli quotidiana, Bologna:Damiani, 2007.AUGÉ, Marc. Non-Lieux: Introduction à une anthropologie de la surmodernité.Paris: Seuil, 1992.BERQUE, A. Médiance, de milieux en paysage, Paris: Belin, 1990.BERQUE, A. Écoumène. Introduction à l’étude des milieux humains, Paris:Belin, 2000.CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica. São Paulo: Nobel , 1993.FREITAS, Ricardo Ferreira. Shopping centers: espaces type d’un loisir transnational.In:MAFFESOLI, Michel ; DURAND, Gilbert (org.). Cahiers deL’imaginaire. v. 13, p. 95-103. Paris:L’Harmattan, 1996.GREENFIELD, Adam. Every[ware]. La révolution de l’ubimedia, France:FYP, 200711LYNCH, Kevin. L’imge de la cité. Paris: Dunod, 1999.MARZLOFF, Bruno; BELLANGER, François. Transit: Les lieux et les tempsde la mobilité. Paris: L’Aube, 1996.MAFFESOLI, Michel. Au creux des apparences. Pour une étique de l’esthétique.Paris, Plon, 1990.______. La Conquête du présent, sociologie de la vie quotidienne. Paris: Descléede Brouwer, 1999.______. Notes sur la postmodernit:. Le lieu fait lien. Paris: Félin, 2003.NORBERG-SCHULZ, Christian . L’art du lieu: Architecture et paysage, permanenceet mutations. Paris: Ed. Le Moniteur, 1997.SANSOT, Pierre. Poétique de la vile. Paris: Payot, 2004.TUAN, Yi-fu. Space and Place: The perspective of experience. Minneapolis:University of Minnesota Press, 1977.VENTURI, Robert. De l’ambiguïté en architecture, Paris: Dunod, 1999.______.; Scott-Brown, Izenour. L’enseignement de Las Vegas.Paris:Mardaga, 2007.Formas e interfaces do urbano: sentido do lugar na cidade pós-moderna


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Limites traçados: marginalidadena Madri de Almodóvar 1Traced limits : marginality in Almodóvar’s MadridRafael Nacif de Toledo Piza | rafaelnacif@gmail.comMestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação emComunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.ResumoEste artigo tem o objetivo de colocar em perspectiva a produção audiovisual do inícioda carreira do diretor cinematográfico Pedro Almodóvar, com base nas contribuiçõesde Erving Goffman, Horward Becker e Norbert Elias para a sociologia do esvio, enriquecidase atualizadas pelas reflexões de Kenji Yoshino. A “estética do mau gosto” deseus primeiros longas registra seu engajamento na dinâmica contracultural corporificadana Madri dos anos 70 e o imaginário da época, não podendo ser dissociada daluta pela liberdade democrática pós-Franco. Pensar na cinematografia de Almodóvara partir do ponto de vista da Sociologia do Desvio é refletir sobre as políticas de visibilidadede identidades culturais minoritárias na tela e no espaço urbano.Palavras-chave: Almodóvar; contracultura; sociologia do desvio; Madri.AbstractThis article aims to put into perspective the audiovisual production of the earlycareer of film director Pedro Almodóvar, based on the contributions of Erving Goffman,Horward Becker and Norbert Elias for the sociology of deviance, enrichedand updated by the reflections of Kenji Yoshino. The “aesthetics of bad taste” of hisearly films register his long engagement in the countercultural embodied dynamicsof ‘70s Madrid and the imaginary of that period, and can not be divorced from thestruggle for democratic freedom post-Franco. To think Almodóvar’s cinematographyfrom the standpoint of Sociology of Deviance is to reflect on the politics of visibilityof minority cultural identities on screen and in urban space.Keywords: Almodóvar; counterculture; sociology of deviance; Madrid.Limites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o13Um pedaço de giz rosa esquadrinha o cimento batido cinza escuro.Números: 1, 2, 3, 4, 5, 6. No topo da planilha, uma janela para o céu, o paraísode alguns e o inferno de muitos outros. Um diminuto lança o toco de giz queresta e o jogo começa; discreto, silencioso, pleno de sons inaudíveis: as célulasda pele que escamam a cada salto de um pé só, gotículas de suor imperceptíveisa olho nu que inundam uma mosca desavisada, lufadas de ar expelidasempurrando prótons, elétrons e partículas desconhecidas e desprezadas. Ummapa universal de uma brincadeira infantil popular no país do Carnaval podenos ajudar a compreender enquadramentos e delimitações da marginalidadena obra inicial do cineasta Pedro Almodóvar. Com base nas contribuições deGoffman, Becker e Elias para a sociologia do desvio, enriquecidas e atualizadaspelas reflexões de Yoshino, o objetivo deste artigo é colocar em perspectiva aprodução audiovisual do início da carreira do diretor manchego, de forma acaracterizar que os filmes Pepi, Luci e Bom e outras garotas de montão (1980),Labirinto de paixões (1982), Maus hábitos (1983) e O que eu fiz para merecer isto?(1984) registram seu engajamento na dinâmica contracultural corporificada naMadri dos anos 70 e o imaginário da época. A “estética do mau gosto” de seusprimeiros longas não pode ser dissociada da luta pela liberdade democráticapós-Franco. Pensar na cinematografia de Almodóvar a partir do ponto de vistada sociologia do desvio é refletir sobre as políticas de visibilidade de identidadesculturais minoritárias na tela e no espaço urbano. Como uma criança quedesenha num piso qualquer, repetindo uma tradição ensinada e transmitidade geração para geração, Almodóvar ilumina uma Madri sombreada pela censuraditatorial franquista, agarrando a mão-livre da criança autoritária e redesenhandouma amarelinha cujos quadros, mesmo limitados, tornam visíveiso que a mão-livre não desenhou, por condicionamento, hábito, constricção,perversão ou censura. Nunca ter estado em algum lugar não impede alguémde estudá-lo. Certamente, oferece limitações e enviesamentos. Voltamos aosquadros do jogo de amarelinha: eles sempre estarão lá, são parte do jogo esem os quadros a amarelinha como jogo não existe. No cinema, o quadro é atela. Na cidade, o limite é o espaço. No âmbito do imaginário, no entanto, ashibridações tendem ao infinito.Almodóvar dá voz aos marginais, confere-lhes protagonismo. Comopersonagens (re)inseridos no sistema cinematográfico de produção simbólica,eles podem enunciar a si mesmos, partindo de uma determinada estetizaçãoda marginalidade. Almodóvar deixa que os sem-tela invadam o cinema confortável,como que de alguma maneira, sabendo que estes fantasmas de luz vãovoltar ao mundo físico e recontaminar a vida material de si mesmos. A tela deAlmodóvar, propositalmente, é fora de esquadro, porque sua vivência como artistae como produtor de símbolos partiu deste ponto de vista. Almodóvar filmao espaço fora da tela ou traz para dentro da tela de cinema o espaço da vidaque antes vivia fora dela. Assim, ele, mesmo sem querer, devolve ao mundoLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010<strong>14</strong>a potência de marginalidade da contracultura madrilenha dos anos 70, filhada contracultura de outros tempos, alimentando um processo de reinvençãoconstante da sociedade. A tela molecular que separa espectador de imagem nocinema é infiltrada pela liquefação dos papéis sociais na contemporaneidade.Almodóvar representa, com especial atenção, a questão da marginalidade egera consequências sociopolíticas.Quando os irmãos Lumière inventaram o cinema, vivia-se um períodode fim de século, marcado pelo surgimento vertiginoso de inovações tecnológicase da intensificação da industrialização. Era necessário expandir os mercadosconsumidores. As novas soluções científicas e tecnológicas demandavam novoscomportamentos e atitudes. A circulação das mercadorias se apropriou rapidamentedestes novos dispositivos. Em O cinema e a invenção da vida moderna,vários autores discorrem sobre o desenvolvimento das estratégias de comunicaçãona modernidade, partindo das necessidades comerciais como precursorasda propaganda, importante influência para o cinema desde o seu surgimentono final do século XIX. Ismail Xavier comenta a respeito do livro: “O lemaaqui é ‘historic izar’.” (XAVIER in CHARNEY; SCHWARTZ, 2004, p. 11).Siegfried Kracauer observou que a cultura de massa, típica da modernidade,proporcionou ao público espectador uma forma de compreender suascondições de vida e, desta forma, assumir a possibilidade de autorreflexão (nomínimo) ou, mais ainda, de consciência emancipatória. Mas isso entre as décadasde 20 e 30, assim como Walter Benjamin (XAVIER in CHARNEY;SCHWARTZ, 2004, p. 20). Como poderíamos ratificar que Almodóvar estimulaessa capacidade de autorreflexão e emancipação pela representação damarginalidade em seus filmes no início dos anos 80, na Espanha da transição?Ou, de outra maneira, poderíamos pensar que sua integração paulatina aocircuito internacional de filmes cult ou independentes representa a perda dopotencial crítico de sua produção cinematográfica? A chave do problema entãoé historicizar e relativizar a abordagem das representações da marginalidadenos filmes de Almodóvar. Sobre a oposição cultura erudita versus cultura demassa, Ricardo Freitas explica:[...] não se pode mais idealizar uma separação radical entre “cultura deelite” e “cultura de massa” como bem notam diversos pensadores contemporâneos,dos quais destacamos o pensamento de Fredric Jamesonquando estuda as relações entre o cinema e a pós-modernidade. Parao sociólogo americano, um importante crítico marxista de culturados EUA, é preciso repensar a oposição “cultura de elite/cultura demassa”, já que toda produção social pode ser entendida como cultura,sobretudo quando esse processo acontece essencialmente por meiode conjuntos de redes de imagens. Tal abordagem pede que vejamos“culturas de massa” e “de elite” como um fenômeno dialético, sobretudose pensarmos a pós-modernidade como a mais completa traduçãodo capitalismo já vista, dada a ilusão de se viver qualquer situação viaconsumo. Nesse contexto, Jameson defende que quase todos os valoresurbanos são mediados pela cultura de massa, inclusive as representaçõespolíticas e ideológicas. Assim, as obras de cultura de massaLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010deveriam oferecer uma semente genuína de conteúdo como recompensaao público sempre prestes a ser tão manipulado. (FREITAS, 2005,p. 125-137)Parece-nos que a produção cinematográfica de Almodóvar se inscreve,então, no âmbito do cinema cult, inicialmente, assumindo contornos mais críticose, conforme se incorpora ao mercado internacional, ao longo do anos 80e 90, tem seu caráter contestatório reduzido, culminando com a conquista doOscar de melhor filme estrangeiro para Tudo sobre minha mãe em 2000.Goffman, Be c k e r, El i a s e Yo s h i n o : re f l e xõ e s s o b r e m a r g i n a l i d a d e15Em Stigma: notes on the management of spoiled identity, Erving Goffmanestuda a situação do indivíduo desprovido de total aceitação social. É precisamenteessa aceitação que os personagens de Almodóvar, frequentemente, desprezam.A palavra estigma surgiu na Grécia da Antiguidade e nomeava sinaiscorporais que expunham algo ruim sobre o status de alguém. (GOFFMAN,1963, p. 2-5). A principal dificuldade de pessoas estigmatizadas é a aceitação,nomeada pela sociologia contemporânea como inclusão. Quando a falha dealguém é perceptível durante o contato social, ela sentirá que sua presença éindesejável. Os personagens de Almodóvar parecem não se sentir vitimizadospelos estigmas que carregam. Eles os potencializam como armas contraculturais.A pessoa estigmatizada, diz Goffman, vacila entre covardia e coragem,o que torna a comunicação interpessoal desgastante (Ibid., p.16-18). O autorobserva que existe uma diferença entre a identidade virtual e a identidade realde cada sujeito. Essa discrepância, quando conhecida, pode destruir a identidadesocial do indivíduo. Os marginais de Almodóvar não se importam com adestruição de suas identidades sociais, contanto que eles obtenham o que desejamardentemente, seja recuperar um amor do passado, seja esconder uma vidadupla (Ibid., p. 19). Em muitos casos onde a estigmatização do indivíduo estárelacionada com sua admissão à cadeia, ao sanatório, ou ao orfanato, muitodo que ele aprende sobre seu estigma será transmitido durante o contato comaqueles que se tornarão seus colegas. Surgirão ciclos de filiação por meio dosquais ele aproveitará oportunidades para participar no grupo ou irá rejeitá-lasapós tê-las aceito. A maneira como o estigmatizado lida com as informalidadese as formalidades do grupo se torna central no seu processo de socialização.O estigma é então algo que se define nas relações sociais, no curso delas. Umindivíduo isolado não pode ser estigmatizado nunca, porque ele não vive emsociedade. O eremita nunca vai ser sujeito de estigmatização. Apenas aqueleque participa da vida social pode sofrer com o estigma, porque ele se desenvolvepor contraste diante da aplicação bem sucedida da norma pelos outrosmembros do grupo. (GOFFMAN, 1963, p. 38)Em Outsiders: studies in the sociology of deviance, Howard Becker, sociólogonorte-americano, estuda como se opera o processo de marginalizaçãona sociedade. Inicialmente, ele afirma que todos os grupos sociais constroemLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201016regras e tendem a aplicá-las em determinadas circustâncias. Becker explicanos,no entanto, que a pessoa rotulada como outsider pode ter uma visãodiferente do assunto. Ela pode não aceitar a regra sob a qual está sendo julgadae pode não ver aqueles que a julgam como competentes para fazê-lo.Surge, portanto, um segundo sentido do termo que seria: aquele que quebraas regras pode ver seus julgadores como outsiders. Aqui se pode observar apreocupação de Becker em visualizar no sistema de promoção social uma viade mão dupla. O outsider/marginal também tem uma ideologia que justificao seu estilo de vida. Goffman trabalha com esta noção ao afirmar que os estigmatizadosmuitas vezes se percebem como pessoas mais livres e felizes queos “normais”. Almodóvar retrata muito bem em seus filmes essas ideologias,como veremos mais adiante. Em Outsiders, Becker quer clarificar o processoocorrido entre as situações de quebra e afirmação das regras. (BECKER,1963, p. 2) O outsider, então, é aquele sobre quem o rótulo foi aplicado comsucesso. A visão de Becker, neste ponto, se coaduna à visão de Goffmanquando este último destaca ser o estigma uma questão de perspectiva. Paraaplicar o rótulo com sucesso, para estigmatizar, é preciso não apenas conceituaras normas cuja infração constitui desvio, como também aplicá-las.Isto significa: tornar visível o estigma, publicizá-lo, difundi-lo, comunicá-losocialmente. O outsider, para constituir-se como tal, deverá ter seu símbolode inferioridade à mostra. O processo de comunicação, neste caso, é fundamental.Como afirma Goffman, se o grupo não tem conhecimento do estigmanão poderá aplicar a regra de exclusão sobre o outsider e ele poderá facilmenteparticipar das atividades do grupo, mesmo sabendo, em seu íntimo,que poderá ser descoberto a qualquer momento. Aqueles que estigmatizam ofazem partindo de um ponto de vista. Um determinado comportamento sóé desviante quando as pessoas assim o rotulam.Os termos establishment e established sãousados no inglês para nomeargrupos ou indivíduos que ocupam posições de poder. Os chamados estabelecidosse autopercebem e são reconhecidos como modelo moral para os outros.Já os outsiders constituem um grupo heterogêneo de pessoas que se unem porlaços sociais de menor intensidade. Como observa Federico Neiburg, os outsidersexistem no plural por não constituírem um determinado grupo social.O par estabelecidos-outsiders esclarece o funcionamento das relações de poderna sociedade (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 7). Elias iniciou a pesquisa paraescrever Estabelecidos e outsiders motivado pelo elevado índice de delinquênciaobservado por moradores de um dos bairros da região ficticiamente chamada deWinston Parva. Com o passar dos anos, a área considerada mais nobre do localpassou a ter os mesmos índices de delinquência que o outro bairro estigmatizado.No entanto, a imagem que os bairros mais antigos tinham da região maisrecente permanecia estigmatizada (Ibid., p. 15). O autor explica que, com frequência,membros de grupos com maior poder representam a si mesmos comohumanamente superiores. Em geral, grupos mais poderosos veem-se comoLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201017pessoas melhores, que compartilham de uma virtude específica. Em WinstonParva, o grupo estabelecido atribuía características humanas superiores a seusmembros, excluindo do convívio não-profissional os membros do outro grupo.O controle desse processo se dava por meio de fofocas elogiosas e da ameaçade fofocas depreciativas. Elias acrescenta um elemento fundamental para oentendimento do processo de estigmatização: a fofoca (ELIAS; SCOTSON,2000, p. 20). Nem Goffman, nem Becker utilizam o termo, embora se refiramao processo de visiblidade pública da característica desabonadora. Osestabelecidos atribuem ao conjunto do grupo outsider as piores característicasde sua pior parte. A possibilidade de um grupo lançar sobre o outro um rótulode inferioridade humana e destacá-lo é resultado de uma sociodinâmica. Aabordagem mais comum ao falar-se de estigmatização social é aquela que aconfigura como um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos.Conceitua-se esse tipo de observação como preconceito. Elias chama atenção,no entanto, para a diferença entre a estigmatização grupal e o preconceitoindividual e afirma ser necessário relacioná-los. Neste ponto ele demonstraque, para configurar a exclusão, é necessário basear a análise da situação nainterdependência dos grupos e não nas qualidades individuais das pessoas envolvidas.O estigma imposto pelo grupo mais poderoso tende a contaminara autoimagem do outro grupo, enfraquecendo-o e o desarmando. Quando acapacidade de estigmatizar diminui ou se inverte, os antigos outsiders tendema retaliar. Há uma complementaridade entre carisma grupal e desonra grupal.Os estabelecidos perpetuam o tabu contra um contato mais estreito com osoutsiders, de geração para geração. Participar na superioridade de um grupo éuma recompensa por submeter-se às suas regras. Cada indivíduo deve pagareste preço seguindo padrões de controle dos afetos. Em casos extremos, em queas diferenças de poder são muito grandes, os outsiders são vistos como sujos equase inumanos. Para Elias, “dê-se ao grupo uma reputação ruim e é capazque ele corresponda a essa expectativa.”. O grupo estabelecido não reconheceo estigma como uma construção da exclusão gerada pelas relações de poder naluta pela sobrevivência (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 30-33).Em Covering, Kenji Yoshino relaciona sua experiência como descendentede japoneses radicado nos EUA ao disfarce de identidade (que ele chama de covering)como um recurso comumente utilizado na sociedade norte-americanapara que indivíduos considerados diferentes consigam algum nível de inserçãosocial. Embora reconheçamos que a sociodinâmica nos EUA possui peculiaridadesrelativas ao seu processo histórico, não podemos deixar de observar quelá também há disputas de grupos pela sobrevivência, o que significa lutas porpoder e, portanto, o estabelecimento de regras que legitimam estes grupos,fazendo com que aqueles que não sigam as regras sejam estigmatizados comooutsiders. A sociologia do desvio, então, tem reverberações hoje e não poderiadeixar de ter nos anos 80, quando Almodóvar produziu os filmes que serãoanalisados com base nas teorias estudadas anteriormente. Embora existamLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010autores que caracterizem a pós-modernidade em função de uma transitividadedas identidades nos fluxos informacionais contemporâneos, não nos pareceque essa transitividade tenha eliminado a necessidade de associação do homemem grupos, um aspecto universal, assim como a criação de regras que legitimamesses grupos e, portanto, a possibilidade de uma perspectiva contrária aonormativo caracterizar a marginalidade.A Ma d r i n a t e l a a l m o d ov a r i a n a18Claramente inspiradas pelas cultura e contracultura norte-americanas,Madri e Barcelona tornaram-se, ainda durante o regime franquista, centrosde uma produção cultural altamente criativa, expressa não só em filmes, comotambém em histórias em quadrinhos, moda e um determinado estilo de vidamuito semelhante àquele cultuado ao redor de Andy Warhol, em Nova Iorque.Não é à toa que Almodóvar constumava ser apresentado em reuniões e jantarescomo o Warhol espanhol (STRAUSS, 2006, p. 1). Assumidamente influenciadopor cineastas tão diversos quanto John Waters, Pier Paolo Pasolini, CecilB. De Mille, Frank Tashlin, Blake Edwards, Billy Wilder, Stanley Donen,Visconti, Antonioni, Otto Preminger, Lubitsch, Preston Surges, MitchellLeisen, Bergman e Alfred Hitchcock, entre outros, Almodóvar construiu suacarreira informado por diversos gêneros cinematográficos: screwball comedies,thrillers, épicos, filmes do neo-realismo italiano e da nouvelle vague francesa,películas do expressionismo alemão, filmes noir e melodramas. A falta de umaqualificação profissional específica na área de cinema foi certamente compensadapelo ávido consumo de filmes das mais variadas procedências (STRAUSS,2006, p. 2-3). O cineasta aprendeu, desde criança, que havia algo de “errado”com ele pela forma como o tratavam. Nas relações sociais que estabeleceu,mesmo em sua família, lançaram-lhe olhares de reprovação. Almodóvar nãofazia ideia do que reprovavam nele. Apenas sabia que isso o deixava extremamenteisolado, ao ponto de ser hostilizado quando comentava sobre A fonte dadonzela, de Bergman, aos dez anos, com os amiguinhos da escola (Ibid, p. 5).Entre fins dos anos 70 e início da década de 80, Madri presenciou osurgimento de um movimento contracultural juvenil chamado La movida madrileña.Tratava-se de uma reação ao Movimiento franquista. O título tambémpode ter sido criado a partir de uma referência ao uso de drogas: fazer umamovida, segundo Javier Escudero (citado por D’Lugo), significava comprardrogas. O rompimento com as tradições culturais da Espanha totalitária deFranco envolveu os artistas no que D’Lugo explica ser o pasotismo, espécie deestilo pautado pela indiferença, letargia e despolitização. Almodóvar explica:There existed a very independent playfulness. You did things becauseit was fun to do them. In a certain respect, frivolity becamea political position in order to pose a way of life that absolutely rejectedboredom. The apoliticism of those years was a very healthyresponse to all the disastrous political activity that had achievednothing. 2 (D’LUGO, 2006, p. 18).Limites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A transição de regimes autoritários para a democracia, em geral, éprecedida por uma espécie de produção cultural que anuncia os anseios deliberdade de expressão. Essa produção pode ser categorizada como contraculturae, de maneira alguma, fica restrita aos movimentos artísticos ligadosà esquerda pós-68. Ken Goffman e Dan Joy nos mostram que o conceitode contracultura aplica-se a diversos períodos históricos distintos, desde aGrécia Antiga até os dias atuais:A contracultura é “ruptura” por definição, mas também é uma espéciede tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessaras tradições do presente de modo a abrir uma janela para aqueladimensão mais profunda da possibilidade humana que é a fonteperene do verdadeiramente novo – e verdadeiramente grandioso – naexpressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode seruma tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições.(GOFFMAN; JOY, 2007, p. 13).19Os autores listam aspectos que definem a contracultura:• as contraculturas afirmam a precedência da individualidade acimade convenções sociais e restrições governamentais;• as contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mastambém sutilmente;• as contraculturas defendem mudanças individuais e sociais(Ibid.2007, p. 50).Pedro Almodóvar migra da Espanha rural para uma das mais importantesmetrópoles do mundo, Madri, e é lá, em plena década de 70, quando oregime político autoritário de mais de 30 anos no país começa e ceder espaço àordem democrática, que ele se junta a outros artistas. Inspirados por ícones dacomunicação de massa, frequentemente citados em seus filmes, no movimentopunk inglês e na Pop Art, Almodóvar reconfigura a cinematografia espanholadocumentando a ansiedade da juventude madrilenha por novos estilos de vidaque os permitam ser mais autênticos e livres. Informado por Hollywood e pelocinema de autor europeu, combinando camp, kitsch e a cultura de la pluma, odiretor de cinema parte de uma realidade estigmatizada como marginal.Comentando o clima que pairava sobre a Espanha em 15 de junho de1977, quando da realização das primeiras eleições gerais no país, após longuíssimaditadura, o historiador e cineclubista Marti i Rom destacou que, dado ograu de “agitação e conscientização” generalizada, a sensação que se tinha erade que, finalmente, a política e a cultura haviam abandonado as catacumbas,saindo das “cloacas (e prisões) às quais o franquismo as havia confinado” para“inundar o espaço público” (MARTI i ROM, 1983, p. <strong>14</strong>1). Independentedo fato de que essas eleições dariam vitória, com 34% dos votos, aos “herdeiros”de Franco, disfarçados agora sob o manto da UCD (Unión de CentroDemocrático), a Espanha se fazia festiva. Franco estava morto e seu famigeradoregime definhava a olhos vistos. Neste mesmo período, Almodóvar trabalhavaLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201020sobre o roteiro daquele que seria seu primeiro filme comercial, Pepi, Luci, Bomy otras chicas del montón (1980). (SILVA in CAÑIZAL, 1996, p. 54)Na abertura de Pepi, Luci, Bom... , um travelling parte da janela da protagonista,mostrando pés de maconha plantados em vasos caseiros e expostosao sol na sacada de um apartamento. Pepi (Carmem Maura) folheia um álbumde figurinhas adesivas do filme Superman. Um homem (Félix Rotaeta) toca acampainha e bate fortemente na porta. Pepi abre e ele se identifica como policial.Ao ameaçá-la pelo cultivo de mudas de maconha, Pepi resolve oferecer suagenitália para que ele se satisfaça oralmente. O policial aceita o convite e acabatirando a virgindade de Pepi. Ela grita. Surge um letreiro: “Pepi está sedenta devingança!”. E a narrativa do filme se desenvolve a partir daí.Para D’Lugo, o primeiro filme de Almodóvar representa a tensão políticado processo de transição democrática. O diretor espanhol investia contrao cinema de autor da Espanha dos anos 70, reduzindo a memória do regimefranquista a situações altamente paródicas como o episódio das “EreçõesGerais” (D’LUGO, 2006, p. 24). Acevedo-Muñoz reconhece no primeiro filmede Almodóvar todas as referências que fundamentarão seu trabalho futuro. Ainspiração mais óbvia é a cultura jovem britânica dos anos 60 e 70, em especialo movimento punk. O filme revela os interesses da nova juventude madrilenhaem moda, música, drogas e álcool (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 8). Parao autor, desde os créditos de abertura que são desenhados a mão, Almodóvarrepresenta uma espécie de estética do mau gosto. Diz ele: “Almodóvar’s charactersand dramatic situations are introduced as caricatures: exaggerating features,narrative plausibility and emphasizing marginality.” 3 (Ibid., p. 9, grifonosso). Para Cañizal, Almodóvar se utiliza da autorreferencialidade no tratamentoque dá à poética da família. O autor demonstra que o diretor se destacaem relação a outros realizadores do cinema espanhol de início dos anos 80,cujas abordagens do tema família ficaram datadas. Cañizal reconhece a circulaçãode novos “tipos” urbanos por Madri como um aspecto importante a serdestacado como ponto de referência do filme (CAÑIZAL, 1996, p. 32). Aoobservarmos, com mais atenção, as protagonistas do filme, podemos destacaralgumas de suas características em relação à visão de marginalidade trabalhadapor Goffman, Becker, Elias e Yoshino. Neste primeiro longa-metragem,Almodóvar posiciona no centro da narrativa três mulheres, cada uma delassimbolizando uma concepção de feminilidade possível no início da década de80 na Espanha da transição. Ao dar voz a estas mulheres, o diretor já operaum deslocamento no discurso hegemônico do cinema espanhol do período.No conjunto de filmes que D’Lugo reúne sob a alcunha de exemplares da “estéticado mau gosto”, Almodóvar lança aos espectadores a sua interpretação doque representa o processo de democratização na Espanha. A cena que melhorrepresenta este momento é a sequência do estupro que inicia o filme (ele utilizarácenas de violação em diversos longas, como Matador, Kika, De salto alto,entre outros). A sociedade de consumo e as facilidades das novas tecnologiasLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201021de informação e comunicação penetram a alma feminina e liberam nas protagonistaso desejo de realizarem tudo aquilo que não puderam fazer enquantotiveram que se submeter ao jugo patriarcal. A ordem do pai é substituída agorapela ordem do capital. As novas mulheres estão dispostas a pagar o preço, oupelo menos tentar se adequar a nova realidade. Almodóvar nos mostrará, maistarde, em O que eu fiz para merecer isto?, o preço pago por esta liberdade conquistadaa duras penas.Em Labirinto de paixões (Laberinto de pasiones, 1982), a sequência deabertura mostra um grande flea market em Madri, chamado Rastro. Uma panorâmicaaérea registra a multidão no fluxo urbano. Sexilia (Cecilia Roth,curiosamente ganhou um nome de personagem similiar a seu nome real), aprotagonista do filme, passeia como uma flanêuse pelo mercado. Corta parauma sugestiva cena de um varal de óculos escuros com lentes espelhadas.Nestas lentes, vemos o reflexo de um homem experimentando diversos modelos.Podemos considerar essa cena uma metáfora da importância de diferentespontos de vista em Almodóvar. Close ups de Sexilia com expressão de desejosão intercalados com tomadas de quadris masculinos com calças justas. Ocorpo do homem surge como objeto de desejo sexual de maneira explícita. Atradicional visão masculina do corpo da mulher é transportada para o olhar deSexilia. A visão do homem pela visão da mulher. Visão frontal e traseira. Sobo letreiro que anuncia o título do filme, vemos o protagonista, aquele homemque vimos refletido nas lentes dos óculos no flea market. O olhar do homemse confunde com o olhar da mulher. Desejo de homem e desejo de mulhersão equiparados por meio do olhar. Permanece a inserção de takes de quadrismasculinos. Provavelmente, o homem é gay. Almodóvar narra as aventuras deSexilia e Riza Niro pela Madri contracultural.Muñoz interpreta Labirinto como uma crônica da Madri onde eclodiua movida, o movimento de vanguarda com acentos pop e punk ocorridodurante o período de transição para a democracia. Para o autor, a caricaturada psicanálise é um aspecto fundamental para o entendimento deste filmeem particular, em concordância com D’Lugo (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007,p. 26-27). Os temas de maior destaque na produção são: crise de identidade,trauma sexual, incesto e abuso patriarcal. O filme não exclui, entretanto, comentáriospolíticos quando a personagem Queti fala que qualquer um, como tempo, se acostuma a tudo. Muñoz identifica essa fala como uma referênciaao regime franquista. Ao contrário do que o próprio Almodóvar comenta ementrevistas a Strauss, Franco está presente em seus filmes iniciais. As EreçõesGerais, fragmento que deu origem a Pepi..., são uma paródia ao processo políticoespanhol. Parece-nos que o próprio diretor subestima a potencialidadeideológica de sua produção.Em Maus hábitos, uma panorâmica áerea estática de Madri em exposiçãosuperacelerada (como em Koianisqatsi) mostra o amanhecer da cidade. Aprotagonista caminha pela rua. Almodóvar começa um plano filmando umaLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201022janela onde se vê uma festa num apartamento. O namorado da protagonistaé viciado em heroína e aguardava o retorno da namorada com a droga. Elesdiscutem e ela ameaça abandoná-lo, dizendo que ele tem cara de louco. Pegao diário dele e pergunta se escreveu novamente sobre ela. A mulher se dirigeao banheiro depois de levar outro fora do namorado. Ela se olha num espelhoque tem três faces e repete para si mesma: “Largue ele.” Ouve um estrondo.Corre para a sala e encontra o namorado morto por overdose. Apressa-se emabandonar o local e leva o diário dele. O filme narra as aventuras de Yolandae um grupo de freiras marginais para sobreviver ao claustro. À primeira vista,as referências mais evidentes contidas em Maus hábitos apontam para influênciasde cineastas como Pasolini e Buñuel que trataram o tema “religião” comalto potencial crítico. Para D’Lugo, Almodóvar realiza com Maus hábitos seuprimeiro melodrama com base na experiência da nova mulher espanhola queenfrenta a transição para a democracia lutando pela sobrevivência e se autodescobrindona cidade enquanto o país enfrenta uma grave crise econômica esociocultural provocada por migrações internas. Para o crítico e pesquisador,o diretor espanhol representa a cidade de Madri como espaço de liberação datirania sexual e dos códigos sociais do patriarcado, em vez de fonte de destruiçãoda família (D’LUGO, 2006, p. 31). Trata-se de um ponto polêmico.Como afirmam Acevedo-Muñoz e Cañizal, Almodóvar passa a representar apartir deste filme, além da ansiedade da sociedade espanhola pelas consequênciaspositivas da ordem democrática, uma certa nostalgia pelo interior dopaís, fazendo uma clara referência a suas raízes rurais e ao processo migratóriointenso que ocorreu no período de transição. O potencial retorno à Albaceteparece ser uma solução razoável para a zoófila Irmã Perdida, que acompanhao exército de noviças e freiras seguidoras da Madre Geral. A cena final mostrao grupo de freiras se retirando do convento das Redentoras Humilhadas comouma infantaria fascista. Inclusive a expressão corporal do conjunto e o som demarcha enfatizam essa interpretação. Se Almodóvar julga a cidade esse espaçode liberação, por que, neste período, classificado por Acevedo-Muñoz como oda fase da “estética do mau gosto”, o diretor representa nas duas obras maistardias, Maus hábitos, e O que eu fiz para merecer isto?, a nostalgia da província,uma província que ele mesmo descreveu como um espaço onde começou suacarreira outsider pelos olhares que lançaram sobre ele?O que eu fiz para merecer isto? (1984) começa com um travelling panorâmicosobre uma praça onde uma equipe de cinema grava um filme. Esta cenaremete à sequência de abertura de Le mépris, de Jean-Luc Godard. Passa pelaequipe a protagonista, Gloria (Carmen Maura), que entra num prédio. Cortapara cenas de treinamento de luta marcial alternados com letreiros com os nomesdos atores. A faxineira da academia é convidada para transar no chuveiro comum dos lutadores. Almodóvar repete planos de Psicose, de Alfred Hitchcock. Olutador é impotente e a relação não é consumada. Completamente encharcada,ao som de uma canção em alemão, ela simula uma luta com o bastão orientalLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201023usado no treino pelos lutadores da academia. Almodóvar conta as desventurasde Glória, dona de casa à beira de um ataque de nervos. Segundo ele mesmo,a incorporação que fez de Jean-Luc Godard, Alfred Hitchcock e TennesseeWilliams ao roteiro enriquece a sua obra e tornam-se parte indissocíavel dela(STRAUSS, 2006, p. 45). Almodóvar, pela primeira vez, faz um filme de críticaà sociedade do consumo. Ele alcança este objetivo reificando Glória nasequência em que vemos o olhar da câmera, suturado ao olhar do espectador,o nosso olhar, ao ponto de vista dos objetos de consumo que ela admira nasvitrines. Esta foi a maneira que o diretor espanhol encontrou para expressar onível de solidão e abandono da protagonista. Ela se relaciona com produtos,mercadorias, utensílios e equipamentos domésticos. Ele afirma: “They’re thesole witnesses to her pain, her solitude and her anxieties. […] I’m very interestedby this aspect of advertising: the value it gives to objects and the way itturns them into characters.” 4 (Ibid., p. 47). Nesta mesma entrevista, o diretorreconhece que seus filmes são produtos e que respeita as leis do mercado, inclusiveusando estratégias de publicidade e promoção. Ele também admite, noentanto, que se sente contraditório ao fazê-lo (Ibid., p. 48).D’Lugo vê como um dos temas principais deste filme a migração. O blocode apartamentos filmado localiza-se no ápice da auto-estrada M-30, um caminhopercorrido muitas vezes pelo próprio Almodóvar, quando ele trabalhavana companhia telefônica logo depois que chegou a Madri (D’LUGO, 2006, p.40). Para Muñoz, O que eu fiz para merecer isto? é o filme mais introspectivo dodiretor espanhol. Ele o reconhece como a primeira obra-prima de Almodóvar,pois ele consegue integrar comédia e melodrama ao retratar a luta da classetrabalhadora por um espaço na sociedade, enfrentando as dificuldades econômicasentremeadas por frustrações sexuais e crises de identidade. O autor reconheceque a crise de identidade, no caso, é retomada a partir do perfil da IrmãRata de Beco de Maus hábitos. O tema também está presente em seu filmeanterior, Labirinto de paixões. Almodóvar vai reintroduzi-lo, posteriormente,em De salto alto (1991) e A flor do meu segredo (1995) (ACEVEDO-MUÑOZ,2007, p. 49-50). No filme, o diretor comenta o resultado da luta democráticana Espanha: a Madri governada pelo Partido Socialista enfrenta crises econômicase sociais. A família tradicional representada por Almodóvar em O que eufiz para mercer isto? está destruída, fragmentada, oprimida, despedaçada. Seusmembros buscam reconfigurar seus papéis na família e na sociedade. E este éum processo traumático. O passado vinculado à presença de uma figura patriarcale autoritária, explica Muñoz, parece ser a única coisa que os membrosdesta unidade familiar compartilham de fato (2007, p. 52). Muñoz comentasobre a ironia do final da trama. O homem que ocupa o lugar do pai falecidoao lado da mãe é seu filho mais novo, prostituído e homossexual. Assim comoCañizal, Muñoz identifica aqui a tentativa de Almodóvar de representar umareconfiguração da família na Espanha da transição democrática.Robert Stam, citado por Silva, destaca que “o Carnaval é o locusLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201024privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico,numa espécie de explosão de alteridade.” (SILVA apud CAÑIZAL,1996, p. 57, grifo nosso). Como vimos no decorrer deste trabalho, os quatrofilmes iniciais de Almodóvar, nos anos 80, representam contribuições fundamentaispara compreendermos como o cinema espanhol se apropriou dafigura do marginal para criar um discurso de legitimidade da contraculturamadrilenha. Assumindo, como Goffman, Becker e Elias, que a marginalidadenão é uma qualidade do indivíduo, mas uma construção social desenvolvidano decorrer do processo de socialização, e que depende daquelesque determinam as normas a partir das quais o outro é julgado, podemosconcluir que Almodóvar retrata em Pepi, Luci e Bom..., Labirinto de paixões,Maus hábitos e O que eu fiz para merecer isto? a marginalidade que vivenciouno período de resistência cultural na Espanha de Franco. Nos dois primeirosfilmes, observamos uma espécie de celebração das liberdades democráticasconquistadas pelo povo espanhol. Os protagonistas nos mostram isto: Pepi,Luci e Bom; Sexilia e Riza são personagens que representam a transitividadedo processo político na Espanha da época. Em ambos os filmes, vemos asruas do país povoadas por pessoas que ciculam livremente, independente deraça, gênero, orientação sexual etc. Já em Maus hábitos e O que eu fiz paramerecer isto?, a partir de temas distintos, o diretor espanhol desenha umpanorama da reconfiguração íntima da aceitação social. Personagens comoYolanda e a Madre Julia, no filme de 1983, e Gloria, no filme de 1984, representama crise em que se lançou a sociedade espanhola depois do períodode transição, quando exageros e descalabros retratados nas obras anterioresmostraram suas consequências. O policial afirma em Pepi, Luci e Bom...:“com tanta liberdade, com tanta democracia, onde esse país vai parar.”.Almodóvar, ao mesmo tempo em que representa a ruptura com a figurapatriarcal nos filmes do início da década de 80, demonstra, nos doislongas mais recentes, de 83 e 84, a nostalgia por um núcleo familiar que asociedade de consumo não foi capaz de restituir. A marginalidade, comopotência de crítica às regras do grupo estabelecido, está representada, nosdois primeiros filmes (Pepi, Luci, Bom..., Labirinto de paixões), na homossexualidadede Pepi e Bom, na valorização de ícones da cultura de massa, naparódia às estratégias de publicidade, no hedonismo niilista, na ocupaçãodo tempo livre com uso de substâncias psicoativas e com produtos culturaisque claramente se opõem aos valores da cultura erudita, folclórica e moderna,típicos da Europa Ocidental. A ironia e o sarcasmo que alimentamAlmodóvar em suas duas primeiras incursões comerciais ao mundo do cinema,são substituídas por um certo tipo de consciência crítica do passado emfilmes cujos roteiros, de forma mais madura, vão revelar a falência do processocivilizatório que deposita sobre a técnica e o consumo a realização doser humano. Em Maus hábitos, a marginalidade das freiras é potencializadapela equiparação entre instituição religiosa, não mais capaz de dar conta dasLimites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010necessidades metafísicas do novo sujeito urbano na Espanha democrática, egrupos estigmatizados pela cultura tradicional espanhola em conluio com oregime repressor de Franco. A sociedade de consumo absorve as mitologias,as representações, os símbolos e o imaginário e os reinterpreta para reproduziro processo de produção como único modo de existência possível.Muito além de discutir se o cinema de Almodóvar pode ser categorizadocomo cinema de arte, de autor ou se, atualmente, ele se alinha mais ao entretenimento,neste trabalho, nossa principal preocupação foi revelar o pontode vista que deu origem a sua produção cinematográfica, relacionando-o aocontexto histórico vivenciado pela Espanha da época. Usando recursos típicosda pós-modernidade, como o pastiche, a paródia e a metalinguagem, odiretor espanhol tece uma rede de significados sobre a sociedade espanholado período de transição, permitindo que pensemos em possíveis paraleloscom representações estéticas de fases análogas na história de outras sociedades.A mistura de gêneros identificada em seus trabalhos, por exemplo, é, decerta forma, uma representação de novos arranjos de negociações simbólicase sociais contemporâneas.25Notas1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Existia uma diversão independente. Você fazia coisas porque era divertido fazê-las.De certa maneira, a frivolidade tornou-se uma posição política de forma a imporum estilo de vida que rejeitava o tédio com veemência. A alienação daqueles anosfoi uma resposta muito saudável a toda a desastrosa atividade política que nãoconquistou nada (tradução nossa).3Os personagens e situações dramáticas de Almodóvar são apresentados comocaricaturas: aspectos exagerados, plausibilidade narrativa e ênfase na marginalidade(tradução nossa).4Eles são as únicas testemunhas de sua dor, de sua solidão e de suas ansiedades.[…] Eu tenho muito interesse neste aspecto da publicidade: o valor que ela conferea objetos e a forma como ela os torna personagens (tradução nossa).Limites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasACEVEDO-MUÑOZ, Ernesto. Pedro Almodóvar. (World directors series).Londres: British Film Institute, 2007.BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York:The Free Press, 1963.CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Urdidura de sigilos: ensaios sobre o cinema deAlmodóvar. São Paulo: Annablume; ECA/USP, 1996.CANEVACCI, Massimo. Antropologia do cinema. São Paulo: EditoraBrasiliense, 1990.CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da modernidade.São Paulo: Cosac & Naify, 2004.D’LUGO, Marvin. Pedro Almodóvar. (Contemporary film directors). Chicago:University of Illinois Press, 2006.26ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L.. Os estabelecidos e os outsiders: sociologiadas relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2000.FISCHER, Sandra. Clausura e compartilhamento: a representação da famíliano cinema de Saura e Almodóvar. São Paulo: Annablume, 2006.FREITAS, Ricardo Ferreira. Comunicação, consumo e moda: entre os roteiros dasaparências. In: Comunicação, mídia e consumo, São Paulo: ESPM, v. 2, n. 4, p.125-137. jul. 2005.GOFFMAN, Erving. Stigma: notes on the management of spoiled identity.New York: Simon & Schuster Inc., 1963.GOFFMAN, Ken (R. U. Sirius); JOY, Dan. Contracultura através dos tempos:do mito de prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.LOPES, Denilson (Org.). Cinema dos anos 90. Chapecó: Argos, 2005.STRAUSS, Frederic. Almodóvar on Almodóvar. Edição revisada. New York:Faber and Faber Inc., 2006. Versão original publicada em 1994, na França,pela Cahiers du Cinéma, Editions de l’Etoile.YOSHINO, Kenji. Covering: the hidden assault on our civil rights. New York:Random House, 2007.Limites traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O Rio de Janeiro do imagináriode Hollywood como instrumentode propaganda ideológica 1Rio de Janeiro of Hollywood’s imaginaryas an instrument of ideological propagandaCarlos A. de C. Moreno | moreno@openlink.com.brProfessor adjunto do Departamento de Relações Públicas da Faculdadede Comunicação Social da Uerj. Doutor em Letras pela UFRJ. Mestre eBacharel em Comunicação pela UFRJ.ResumoEste artigo procura analisar a construção do imaginário estadudinense sobre o Brasil,a partir de filmes que abordam o Rio de Janeiro, produzidos por estúdios americanosnas primeiras décadas do século XX. Na relação EUA-Brasil, pretende avaliar o usodo cinema como instrumento de propaganda ideológica.Palavras-chaves: imaginário, cinema, ideologia, Hollywood, Rio de Janeiro.AbstractThis article analyzes the representation of Brazil, specially Rio de Janeiro, presentedin movies produced by Hollywood in the early decades of the twentieth century. Alsoevaluate the use of cinema as an instrument of ideological propaganda.Keywords: representation, movies, ideology, Hollywood, Rio de Janeiro.O Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã oO imaginário pode ser inicialmente compreendido como a dinâmicadas imagens, que são as representações que os seres humanos têm das coisas,a partir dos sentidos. Já a ideologia, embora também diga respeito ao processode abstração, diferencia-se do imaginário por estar investida por umaconcepção de mundo.Desde seu estabelecimento industrial, o imaginário de Hollywood corresponde,assim, à dinâmica de imagens que os filmes produzidos pelos grandesestúdios cinematográficos estadunidenses veiculam acerca dos fenômenosculturais mundiais. Tal estética de representação pode eventualmente combinar-secom a propaganda ideológica, como no caso do filme Uma noite noRio, de 1940. Em meio à política de boa vizinhança do governo dos EUA, quebuscava aproximação com o governo de Getúlio Vargas para apoiar a ação dosAliados contra os países do Eixo na Segunda Guerra Mundial, o filme reforçauma determinada imagem metropolitana do Rio de Janeiro que, a partir deentão, se consagra nas salas de cinema e na imaginação não só de estrangeiroscomo até mesmo de brasileiros.28Pr o p a g a n d a i d e o l ó g i c aSegundo J. B. Pinho, “a propaganda ideológica encarrega-se da difusãode uma dada ideologia, ou seja, um conjunto de ideias a respeito da realidade”(1990, p. 22). Noam Chomsky menciona que a expressão “propaganda ideológica”era utilizada, antes da Segunda Guerra Mundial, muito aberta e livrementecomo controle do juízo público, mas adquiriu “uma conotação ruimdurante a guerra por causa de Hitler” (1999, p. 12).Um filme pode ser abordado como representação ficcional da vidacotidiana e, ao mesmo tempo, considerado um instrumento cabível emum esforço de propaganda ideológica. Nesse caso, a análise do filme correspondea um exercício de crítica da ideologia. Nas situações de propagaçãoideológica por meio de uma obra de ficção, o trabalho de leitura docrítico da ideologia lida com conteúdos que devem ser contextualizadosem termos históricos e políticos.Crítica d a i d e o l o g i aNo livro Mitologias, Roland Barthes propõe a realização de “uma críticaideológica da cultura dita de massa” (1980, p. 181). Aproximadamentedurante dois anos, de 1954 a 1956, ele tentou refletir sobre alguns mitosda vida cotidiana francesa:O ponto de partida desta reflexão era, as mais das vezes, um sentimentode impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a arte, osenso comum, mascaram continuamente uma realidade que, pelo fatode ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso perfeitamenteO Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010histórica: resumindo, sofria por ver a todo momento confundidas, nosrelatos da nossa atualidade, Natureza e História, e queria recuperar naexposição decorativa do-que-é-óbvio o abuso ideológico que, na minhaopinião, nele se dissimula. (Ibid., p. 7).Para Barthes, a sociedade francesa da década de 1950 é “campo privilegiadodas significações míticas” (Ibid. p. 158). Acima de tudo, por setratar ainda de uma sociedade burguesa, em que “o estatuto profundopermanece: um determinado regime de propriedade, uma determinadaordem, uma determinada ideologia” (Idem):29A França inteira está mergulhada nessa ideologia anônima: a nossaimprensa, o nosso cinema, o nosso teatro, a nossa literatura de grandedivulgação, os nossos cerimoniais, a nossa Justiça, as nossas conversas,o tempo que faz, o crime que julgamos, o casamento com que noscomovemos, a cozinha com que sonhamos, o vestuário que usamos,tudo, na nossa vida cotidiana é tributário da representação que aburguesia criou para ela e para nós, das relações entre o homem e omundo. [...] É através da sua ética que a burguesia impregna a França:praticadas no nível nacional, as normas burguesas são vividas comoleis evidentes de uma ordem natural: quanto mais a classe burguesapropaga as suas representações, tanto mais elas se naturalizam. O fatoburguês é assim absorvido num universo indistinto, cujo único habitanteé o Homem Eterno, nem proletário nem burguês. (BARTHES,1980, p. 160).A sociedade sobre a qual reflete Roland Barthes é o campo privilegiadodas significações míticas porque o mito é “formalmente o instrumento maisapropriado para a inversão ideológica” (Ibid., p. 162):A semiologia ensinou-nos que a função do mito é transformar umaintenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade. Ora,este processo é o próprio processo da ideologia burguesa. (Idem).Os críticos da ideologia vêm tratando das desigualdades e das contradiçõesda vida moderna, tal como elas emergem no plano das representações cotidianas.Nessa tradição intelectual, tão bem caracterizada pelo trabalho do mitólogoRoland Barthes, desponta mais recentemente a obra do filósofo e psicanalista eslovenoSlavoj Zizek. Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP, vê em Zizekum “interlocutor maior nos debates sobre o destino do pensamento político deesquerda”, cuja via de abordagem da cultura contemporânea seria justamentemarcada pelo encontro de um certo resgate da tradição dialética hegeliana comuma inédita “clinica da cultura” de orientação lacaniana (SAFATLE, 2003, p.179). Sobre a originalidade do texto de Zizek, Safatle evoca um estilo de curtoscircuitos:prosa vertiginosa fundada em cortes sucessivos de planos conceituaisque permitem, por exemplo, passar diretamente da discussão de impasses filosóficosao trabalho de cineastas contemporâneos (Ibid., p. 180). Tal estilo e tal valorizaçãode um meio como o cinema parecem extremamente pertinentes nestainclusão do pensamento de Zizek no campo dos estudos de mídia.Slavoj Zizek afirma categoricamente a existência da ideologia como “matrizgeradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e oO Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010inimaginável, bem como as mudanças nessa relação” (1996, p. 7):“Ideologia” pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativaque desconhece sua dependência em relação à realidade social, até umconjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que osindivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as idéiasfalsas que legitimam um poder político dominante. (ZIZEK, 1996, p. 9)Para Zizek, a ideologia “reside na externalização do resultado de uma necessidadeinterna” (Ibid., p. 10). E a tarefa da crítica da ideologia é “justamentediscernir a necessidade oculta, naquilo que manifesta como mera contingência”(Idem):Na tradição do Esclarecimento, a “ideologia” representa a ideia desfocada(“falsa”) da realidade, provocada por vários interesses “patológicos”(medo da morte e das forças naturais, interesses de poder etc.);para a análise do discurso, a própria ideia de um acesso à realidade quenão seja distorcido por nenhum dispositivo discursivo ou conjunçãocom o poder é ideológica. O “nível zero” da ideologia consiste em (des)apreender uma formação discursiva como um fato extradiscursivo.30Já na década de 1950, em Mitologias, Roland Barthes propôs a noçãode ideologia como a “naturalização” da ordem simbólica – isto é, comoa percepção que reifica os resultados dos processos discursivos empropriedades da “coisa em si”. (Ibid., p. 16)De acordo com Zizek, a problemática da ideologia traz de volta “àcentralidade do antagonismo social (a ‘luta de classes’)” (Ibid., p. 33). Seuargumento é o de que se lida aqui com uma topologia paradoxal (Ibid., p.35). Nela, a superfície (a “mera ideologia”) vincula-se diretamente com aquiloque é “mais profundo que a própria profundeza”, o que é mais real do que aprópria realidade (Idem).O c o n t e x t oDe acordo com a historiadora Bianca Freire-Medeiros, no início do séculoXX, a América Latina era vista pelo público estadunidense “como atada auma condição de irreversível atraso” (2005, p. 7):Espanhóis e portugueses eram, aos olhos dos puritanos do Norte,irrecuperavelmente falsos, mesquinhos, cruéis e destinados a perpetuara lógica pouco produtiva da era colonial, bem como a estagnar nalanguidez dos trópicos.Em meados da década de 1920, Sylvio Gurgel do Amaral, embaixadordo Brasil em Washington, queixava-se da falta de interesse da imprensaamericana por assuntos brasileiros: quando ao maior país da Américado Sul era reservada atenção, tratava-se invariavelmente de alguma notíciasensacionalista e pouco elogiosa. Segundo o embaixador, o Brasilera apresentado como “um vasto hospital” habitado por perigosospeixes, cobras e insetos. (Idem).O comportamento abertamente preconceituoso dos Estados Unidos emrelação à América Latina começa a mudar por causa da Grande DepressãoO Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010(FREIRE-MEDEIROS, 2005, p. 8). A severa crise econômica leva a uma novapercepção do papel do Estado por parte da sociedade civil, e há uma expansãodo setor público nos EUA. Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, ogoverno estadunidense passa a ver os países e povos da América Latina comoaliados estratégicos, que devem ser tratados como bons vizinhos (Ibid., p. 9):31Se já era possível perceber, no fim dos anos de 1920, uma atitude maisprogressista dos americanos do Norte em relação à América Latina, nasdécadas seguintes esta se torna parte de sua política oficial. O recém-eleitopresidente Franklin D. Roosevelt sabia, de pronto, que, se quisesse mantera unidade continental face à ameaça das forças do Eixo, as relações interamericanasteriam que ser redefinidas em termos de uma postura menosarbitrária. Seu antecessor, Herbert Hoover, havia começado a retirada dasforças militares americanas de Cuba e Nicarágua, bem como as “viagens deboa vontade” (em 1928, a duas semanas das eleições, Hoover visitara onzepaíses na América Latina). Mas foi apenas com o democrata Roosevelt queo princípio de não-intervenção passou a ocupar lugar central na políticaamericana. A velha fórmula da política de boa vizinhança foi retomada etodos os jornais, as duas estações de rádio existentes à época, e obviamenteHollywood, foram conclamados a participar da luta contra o nazi-fascismo.Sua missão era ajudar a criar, em níveis doméstico e internacional,uma atmosfera de apreciação e respeito pela cultura da América ibérica, aomesmo tempo em que deveriam mobilizar a opinião pública latino-americanaem favor dos interesses e objetivos dos EUA no contexto da SegundaGuerra Mundial. (Idem).O Rio v i s t o p o r Ho l l y w o o d a t é 1933The Girl from Rio, de 1927, foi o primeiro filme estadunidense a ter oRio de Janeiro como cenário. Nele, segundo Freire-Medeiros, “as personagenscariocas tinham nomes hispânicos, e o Rio era apresentado como umavila esquálida” (Ibid., p. 8). Em 1931, outra produção de Hollywood tinhacomo título o equivalente a “Rio, caminho para o inferno”. Repercutiu tãomal que o governo brasileiro solicitou que o filme fosse retirado de circulação,mas não foi atendido (Idem).A situação muda com Voando para o Rio, de 1933. De acordocom Freire-Medeiros, a cidade apresentada no filme “dispõe de todos oselementos definidores de uma metrópole cosmopolita”:As primeiras tomadas, que transportam o espectador ao Rio, sãopersuasivas: a bordo do avião do piloto e band leader americano Roger(Gene Raymond), é possível acompanhar um desfile de imagens decartão-postal que começa na Baía de Guanabara, passa pelo centro dacidade (onde figuras elegantes disputam, com velozes carros da época,o espaço em frente à Confeitaria Colombo), vai ao Alto da Boa Vista,visita o moderno Jockey Club, dá a volta no Pão de Açúcar e se encerrano Jardim Botânico. Há uma nítida preocupação em combinar, demaneira equilibrada, as imagens de uma cidade naturalmente exuberantecom as de uma metrópole civilizada. (FREIRE-MEDEIROS,2005, p. 11)Bianca Freire-Medeiros relata que Voando para o Rio foi “o primeiroO Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010e último musical hollywoodiano passado no Brasil a incorporar atores negrosem seu elenco” (Ibid., p. 15). Em um de seus números musicais, a cantora afroamericanaEtta Moten “explica ‘how to be a Carioca’”, vestida de baiana, “simbolizandoa presença da herança africana na cultura brasileira e introduzindouma imagem mais tarde imortalizada por Carmen Miranda” (Idem).A c i d a d e d e Ca r m e n Mi r a n d a32Uma noite no Rio foi o segundo filme de Carmen Miranda nos EUA.No início de 1940, ela havia rodado Serenata tropical, já pela 20 th CenturyFox. Sobre Uma noite no Rio, comenta Freire-Medeiros:Este seria não somente o primeiro papel falado de Carmen, mas,acima de tudo, sua estreia como reconhecida “embaixatriz da boavizinhança”. Depois do fiasco de Serenata tropical na América Latina,a preocupação da Fox em agradar tanto aos americanos do Sul quantoaos do Norte levou o estúdio a submeter o script de Uma noite no Rio –baseado no roteiro original de Folies Bergères – à Embaixada Brasileira,que, de fato, censurou várias cenas consideradas “pouco convincentes”.A Fox também requisitou, junto ao Departamento de Informação ePropaganda do governo Vargas, fotografias do Rio para assegurar uma(re)criação fiel dos sets.Os créditos que abrem o filme são apresentados num colorido layoutcercado de estrelas, notas musicais, montanhas e palmeiras. O públicosabe de antemão o que esperar: romance e música num paraíso tropical.A cena de abertura, um establishing shot do Rio, traz um cenáriocom ainda mais montanhas, palmeiras e fogos de artifício. Dançarinosempunhando pequenas tochas abrem caminho para a presença multicoloridade Carmen cantando, em português, “Chica, chica, boom,chic”. “Um Rio elegante, bem vestido, de ambientes luxuosos, commúsica nossa”, celebrou, nas páginas de Cinearte, o jornalista e consultortécnico para a 20 th Century Fox, Gilberto Souto. (Ibid., p. 18-9)A sequência de abertura de Uma noite no Rio é exemplar não sóem termos de revelar a imagem de uma metrópole moderna em meio apalmeiras e samambaias, mas também como instrumento de propagandada mensagem da política da boa vizinhança. Nela, o ator Don Ameche,vestindo um uniforme da Marinha estadunidense, apresenta uma cançãosobre os laços comuns que supostamente unem americanos do norte e dosul. Enquanto isso, Carmen Miranda, de falsa baiana, sorri e faz cócegas,de leve, na barriga de Ameche. Encena-se, assim, um quadro em que oamericano do norte, imperialista mas bem-intencionado, encontra a parceiraideal numa americana do sul exótica e dócil.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.O Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasBARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980.CHOMSKY, Noam. Propaganda ideológica e controle do juízo público. Rio deJaneiro: Achiamé, 1999.FREIRE-MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.PINHO, J. B. Propaganda institucional: Usos e funções da propaganda em relaçõespúblicas. São Paulo: Summus, 1990.SAFATLE, Vladimir. “A política do real de Slavoj Zizek”. In: ZIZEK, S. Bemvindoao deserto do real! São Paulo: Boitempo, 2003.ZIZEK, Slavoj. “O espectro da ideologia”. In: ___ (org.). Um mapa da ideologia.Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.33O Rio de Janeiro do imaginário de Hollywood como instrumento de propaganda ideológica


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O Imaginário do Medo: violênciaurbana e segregação espacial nacidade do Rio de Janeiro 1The imaginary of fear: urban violence and spatialsegregations in the city of Rio de JaneiroLayne Amaral | sem emailMestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicaçãoda Uerj. Professora da Faculdade de Jornalismo Pinheiro Guimarães.ResumoNo contexto de uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais e pelos conflitosoriundos da violência, percebe-se uma nova configuração dos espaços urbanos nasmetrópoles contemporâneas. Tendo em vista o papel das narrativas midiáticas naformação das subjetividades e um crescimento na produção de documentários nacinematografia nacional, pretende-se observar de que forma a cidade do Rio de Janeiroé representada nessas produções, analisando o quadro de segregação espacial esocial decorrentes desses conflitos.Palavras-chave: imaginário; cidade; violência urbana; segregação.AbstractIn the context of a society marked by social inequalities and by conflicts resulting fromviolence, we find a new configuration of urban spaces in contemporary metropolis. Giventhe role of media narratives in shaping subjectivities and an increase in the productionof documentaries for national cinematography, we intend to observe how the city of Riode Janeiro is represented in these productions, analyzing the context of spatial and socialsegregation arising from these conflicts.Keywords: imaginary; city; urban violence; segregation.O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Os moradores descobrem, decepcionados, que,quanto mais seguros se sentem dentro dos muros,tanto menos familiar e mais ameaçadora parece a selva lá fora.Zygmunt BaumanNão existe terror no estrondo, apenas na antecipação dele.Alfred Hitchcock35Em meio às consequências do processo de globalização nas sociedadescontemporâneas destaca-se, em especial, a nova configuração das metrópolese o remodelamento do espaço público como lugar de interação social. A crisenas instituições públicas e a desigualdade social, aliadas ao crescimento daviolência urbana, ocasionam uma segregação do espaço público que pode serentrevista no cotidiano das grandes cidades. Em uma análise do que chama de“centros regionais emergentes”, cidades como São Paulo e México, Canclini jáhavia observado este processo de decomposição do espaço urbano, onde a elitesocial se afasta do convívio com outros grupos: “seu peculiar modo de exercera cidadania consiste em isolar-se da conflituosidade urbana mediante a privatizaçãode espaços supervigiados” (CANCLINI, 2003, p. 163).Nessas metrópoles, a origem do crime está frequentemente associada àsperiferias e os criminosos são vistos como pessoas que vêm desses espaços marginais,que supostamente lhe dão origem. A configuração espacial que localizaas periferias às margens dos centros urbanos é comum à maioria das cidadescontemporâneas, entretanto o Rio de Janeiro apresenta uma situação singular.Sua periferia não se encontra nas margens dos aglomerados urbanos, mas inseridanesses, através da formação das favelas nos diversos morros que compõema paisagem carioca. A desigualdade, dessa forma, é visível em vários pontos dacidade sendo ainda mais ostensiva na Zona Sul carioca, onde residem as classesmais altas. Essa segmentação do espaço urbano, aliada à ausência quase totaldo Estado nas favelas, contribuiu também para a formação de territórios fortificadosnesses locais, dominados pelo tráfico de drogas. Tal imaginário sobreo crime e a segregação social provocada pela divisão espacial levam, segundoCaldeira (2000) e Soares (Apud Athayde, 2005), não apenas à formação deestereótipos sobre o crime e o criminoso, mas à estigmatização de grupos inteiros.No caso, os moradores das favelas cariocas, onde o crime está localizado.Nesse contexto, os diferentes discursos sobre o crime são úteis para reorganizara narrativa sobre tais experiências. A repetição da narrativa, contudo,passa reorganizar também o sentido do contexto social em que ocorreu e, descontextualizada,pode contribuir para a formação de estigmas e estereótipos.A importância da análise dos documentários reside no fato de sua narrativaapresentar um discurso polifônico, ao tratar o tema de maneira dialógica e ouvindoos vários envolvidos no conflito urbano, incluindo os policiais e muitasvezes os próprios criminosos.O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O presente trabalho tem como objetivo analisar a representação da cidadedo Rio de Janeiro, no contexto da violência urbana, a partir dos documentáriosque falam sobre o tema. Apoiando-se em teorias sobre a representaçãomidiática da violência e os efeitos dos conflitos urbanos na remodelação dascidades contemporâneas, pretende-se perceber nas narrativas os efeitos da segregaçãoespacial e social oriundas da crise de segurança no espaço público.Nesse panorama, o recorte será pautado pelas produções documentais ondea cidade e o crime violento são os elementos principais. Os discursos serãoretratados a partir dos documentários Notícias de uma guerra particular (JoãoMoreira Salles, 1998) e Violência S.A. (Newton Cannito, 2005).O Lu g a r d o Cr i m e36Notícias de uma guerra particular foi rodado nos anos de 97 e 98 e abordacomo a questão do tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro se transformouem um conflito armado permanente. O diretor João Salles ouviu policiais, traficantese moradores das favelas cariocas a fim de mostrar as dinâmicas desseconflito. Um dos primeiros aspectos que se pode perceber em relação à cidadediz respeito à forma como as favelas cariocas são encaradas como o “lugar” docrime. As cenas de abertura do documentário têm início com a panorâmica deuma favela, enquanto o narrador em off fala das estatísticas da polícia federalsobre o número de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas, na época darealização do documentário: 100mil pessoas. E continua: “nem todas essaspessoas moram em favelas, no entanto a repressão se concentra exclusivamentenos morros cariocas”.Esse imaginário da favela como local do crime é abordado por PauloVaz no estudo Pobreza e Risco: a imagem da favela no noticiário do crime. Emseu artigo, Vaz observa que a cobertura efetuada pela mídia elabora conexõesentre a violência urbana e o tráfico de drogas, dissociando-o de certa forma daatividade que o caracteriza - o comércio ilegal de drogas - e relacionando-o a“toda sorte de assalto, tiroteio, falsa blitz e assassinato”. Uma segunda relaçãopercebida por Vaz mostra as favelas como lugar de origem dos traficantes, fechandocírculo que correlaciona as favelas à violência:Com a construção da associação entre tráfico e crime, favela etráfico, e com a dissociação entre tráfico e comércio ilícito, onexo que está sendo proposto aos moradores da cidade é entre afavela e toda sortede violência que acontece noRio de Janeiro. (Vaz, 2005, p. 5).No documentário Violência S.A., apesar de filmado em São Paulo, tambémexiste uma referência às favelas cariocas como sendo “o habitat naturaldeste tipo de profissional: [...] os bandidos”. Em Notícias de uma guerra particular,Paulo Lins, autor do livro Cidade de Deus, confirma esse estereótipoformado sobre as favelas ao observar que o crime ali sempre existiu, mas quesó passou a receber atenção da mídia ao descer para o asfalto: “sempre morreuO Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010gente na favela e não saía na imprensa. Era coisa normal. Só se dava no espaçoda favela, não atravessava o túnel. A mídia foi descobrir a violência quandoela saiu da favela. Quando começou sequestro, comando vermelho, tráfico dedrogas, a bala perdida... Só depois.”.Ex c l u s ã o e Re p re s s ã o37Paulo Vaz também observa uma omissão do sofrimento em relação ao moradorda favela, que em nenhum dos casos noticiados aparece somente como vítima,apesar de a taxa de homicídios ser seis vezes maior nesses lugares do que no restanteda cidade: “A opção por omitir o sofrimento dos moradores do morro onde ocorreum tiroteio – ‘Tiroteio no Salgueiro provoca pânico na Tijuca’ (7/3/01) – vitimizandosomente a classe média, sugere ou que os favelados já estão acostumados, ouque são os criminosos, não interessando assim seu sofrimento” (VAZ, 2005, p. 6).Percebe-se, nesse aspecto, que parece existir um desejo de que as favelase os conflitos, decorrentes dos embates entre traficantes e policiais, devamficar restritos a esses territórios, mantendo a ordem no asfalto. Em Notícias deuma guerra particular, Hélio Luz, ex-secretário de segurança pública do Riode Janeiro, admite que existe uma política de repressão nas favelas e reconheceque a polícia foi criada para ser violenta e corrupta, para fazer a segurança doEstado e da elite e manter a favela sob controle: “Como é que você mantém2 milhões de pessoas sob controle? Ganhando 112 reais, quando ganham...Como mantém esses excluídos todos sob controle? Com repressão, como é quevai manter? É polícia política mesmo. Isso aqui é uma sociedade injusta e nósgarantimos essa sociedade injusta.”.Esta organização das forças policiais no Rio de Janeiro é analisada historicamentepor Holloway (1993, Apud CALDEIRA) que observou um tratamentodesigual direcionado a grupos sociais diferentes, inclusive com “espancamentose prisões arbitrarias” cometidas contra os pobres, a fim de manter aordem e a hierarquia estabelecidas. Esse padrão de comportamento revelava,segundo Holloway, que no Rio de Janeiro do século XIX “o trabalho principalda polícia não era a repressão ao crime – que certamente existia -, mas o controledos pobres”. (CALDEIRA, 2000, p. <strong>14</strong>5)Além da repressão, as favelas cariocas também são palco da guerra particularentre traficantes e policiais ou entre traficantes e traficantes, na disputapor pontos de venda entre facções rivais. Contando com armamentos cada vezmais sofisticados, muitos dos quais pertencentes às próprias forças armadas,o que se vê é um estado de guerra permanente nesses lugares. Em Notícias, ocapitão do Bope Rodrigo Pimentel conta quando viu uma guerra entre traficantesde dois morros que utilizavam munição traçante, e conclui: “em qualoutra capital do mundo você vê uma cena dessa e que não esteja em guerra?O Rio de Janeiro vive uma guerra. [...] Eu estou participando de uma guerra,acontece que estou voltando pra casa todo dia. É a única diferença.”.O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Mídia e Vitimização38Este conflito armado aumenta a sensação de insegurança tanto entreos moradores das favelas, como entre a população do ‘asfalto’ que transitaentre essas áreas consideradas ‘de risco’. Entretanto, apesar de as taxas dehomicídio terem diminuído nos últimos anos no Rio de Janeiro 2 , a “sensação”de que a cidade está mais violenta fortalece o sentimento de medode ser vítima do crime.A importância da mídia na formação do imaginário é observada porGilbert Durand (2004), que observa como esta é onipresente em nossas vidas,“do berço ao túmulo”, influenciando em nossas escolhas e costumes. No casodo Rio de Janeiro, há um imaginário sobre a cidade ser uma das mais violentasdo país. Entretanto, em relatório recente sobre a violência no país, mostra-seque a cidade ocupa o 205º lugar 3 no número de homicídios, estando atrás deoutras capitais e de balneários como Porto Seguro (BA) e Armação de Búzios(RJ). Nos casos de homicídios especificamente por arma de fogo, o Rio deJaneiro ocupa o 86º lugar 4·.Barry Glassner, em sua análise sobre a cultura do medo, observa a influênciada mídia na formação desse imaginário. Analisando a cobertura de notíciassobre crimes na sociedade norte-americana, Glassner percebe que, apesar de osíndices de criminalidade terem caído por anos seguidos, “62% dos americanosse descreviam como ‘verdadeiramente desesperados’ em relação à criminalidade”(2003, p. 19). Apesar de não culpabilizar a mídia pelo estabelecimentodesse sentimento, o autor não deixa de observar sua importância, recuperandoas ideias de George Gerbner sobre a ‘síndrome do mundo vil’: “Veja umaquantidade suficiente de brutalidade na TV e você começará a acreditar queestá vivendo em um mundo cruel e sombrio, em que você se sente vulnerável einseguro.” (GLASSNER, 2003, p. 100).De fato, parece que a influência da informação sobre violência na TV,em especial nos telejornais, tem antes um caráter mimético do que catártico,conduzindo à “síndrome do mundo vil”. Gerbner conduziu um estudo de trêsdécadas sobre a violência exibida na televisão e mostra de que forma uma veiculaçãoexagerada produz uma sensação de insegurança e ansiedade crescenteem relação ao mundo mostrado na TV. Ressaltando a dimensão mítica adquiridapelas narrativas televisivas, Gerbner acredita que pessoas que assistemmuita TV têm maior tendência a ter uma visão distorcida da realidade.O que isso significa é que se você cresce em um lar onde se assistemais de três horas diárias de televisão, para todos os efeitos práticosvocê vive em um mundo vil – e age de acordo – do que seuvizinho que vive no mesmo mundo, mas assiste menos televisão.(GERBNER, 1994, p. 1) 5 .No caso específico da violência, essas pessoas podem acreditar que osíndices de criminalidade estão aumentando e superestimar o medo de seremO Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201039vítimas de crimes violentos. O autor também observa como esse medo de setornar vítima de um crime pode levar ao desejo por medidas punitivas maisrigorosas, como a pena de morte, a fim de aumentar a segurança.Em uma análise do que aconteceu um ano após o atentado de 11 desetembro aos Estados Unidos, Slavoj Zizek (2003) percebe como o medo devitimização (no caso, por novos ataques terroristas) pode justificar ataques preventivos.Zizek ressalta que a legitimação destes atos é conferida aos que falamda posição de vítima e que são, por isso, inocentes. A fim de legitimar tais ataquesé necessário também que se construa a ideia de que o evento pode ser repetidoe generalizado. Tal como ocorre com as vítimas da criminalidade, o fatode que o evento poderia ter acontecido a qualquer um que estivesse no localnaquele momento, torna possível essa generalização. A identificação, dessa forma,é relacionada somente à vítima e cria, na audiência, a ideia de vitimização.Pode-se observar também que, geralmente, a forma descontextualizada comosão exibidas as narrativas sobre o crime impossibilitam um entendimento dasdinâmicas da violência, aumentando o quadro de segregação social.Em um estudo que relaciona mídia e violência no Rio de Janeiro,Coelho (2004) analisa alguns pressupostos teóricos que observam os efeitosdessa violência midiatizada nos cidadãos. Em sua pesquisa, a autora percebeque os discursos veiculados na mídia constroem um imaginário que podeproduzir práticas sociais que apresentam uma visão do outro “como símbolode uma diferença que se quer eliminar em prol de uma visão da ordem”(RONDELLI, Apud Coelho, 2004, p. 79). Utilizando a ideia das comunidadesimaginadas de Benedict Anderson, Sento-Sé também aborda a formaçãodesse sentimento de vitimização a partir das narrativas sobre o crime e daidentificação com suas vítimas:No que diz respeito à segurança, isto quer dizer que não é necessárioque um dado indivíduo, ou alguém de seu círculo mais próximo, tenhapassado por uma situação de vitimização para que se sinta atingidopela violência de que tem notícia. (Apud COELHO, 2004, p. 80).O Co n s u m o d a Se g u r a n ç aÉ esse imaginário sobre as cidades que legitima a adoção de medidas desegurança privada, através da contratação de guardas particulares e a construçãode enclaves fortificados. Em um estudo sobre o crime na cidade de SãoPaulo, Teresa Caldeira observou que:o principal instrumento desse novo padrão de segregação espacial éo que eu chamo de ‘enclaves fortificados’. Trata-se de espaços privatizados,fechados e monitorados para residência, consumo, lazere trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento.(CALDEIRA, 2000, p. 211).Tais enclaves são lugares extremamente semelhantes em sua organizaçãodo espaço. Shoppings, escolas, hospitais, escritórios e condomínios de luxoO Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201040possuem várias características em comum. São espaços públicos, isolados pormuros e grades, com detalhes arquitetônicos e extrema organização. Suas entradase saídas são protegidas por guardas, que não só cuidam da segurançade quem está dentro, mas também controlam o acesso de quem vem de fora.Crachás, câmeras de vigilância, interfones e portões são instrumentos cada vezmais comuns nos portais de acesso a esses novos espaços.Newton Cannito, no documentário Violência S.A. procura abordar deforma bem-humorada e irônica a reação do ‘cidadão de bem’ frente a essainsegurança crescente. O documentário mostra várias entrevistas feitas com‘profissionais da segurança’ que ensinam como se prevenir e confirmam o crescimentoda adoção de medidas de vigilância, especialmente após a notícia dealgum crime na mídia. De acordo com Marco Zarif, da Jordan Blindados:“quando aparece na mídia a notícia de sequestro de algum famoso, mãe dejogador famoso, a gente sente no dia seguinte, na semana seguinte. O telefonejá começa a tocar mais, pede-se cotação por e-mail.”.Apesar de parecer oferecer a sonhada segurança, a autossuficiência dessesenclaves, o excesso de vigilância e a adoção de blindagens, produz uma modificaçãonas cidades que torna ainda mais evidente a segregação social. Michael Hardtem sua abordagem sobre as sociedades de controle de Deleuze já havia observado odesaparecimento do espaço público como lugar de interação social na pós-modernidade:“A paisagem urbana não é mais a do espaço público, do encontro casuale do agrupamento de todos, mas dos espaços fechados das galerias comerciais, daautoestrada e dos condomínios com entrada privativa.” (HARDT, 2000, p. 360).Divisão Es p a c i a l e Se g r e g a ç ã o So c i a lEssas ‘territorialidades excludentes’ que promovem divisão física entreos espaços seguros das comunidades privilegiadas e os espaços onde vivem ascomunidades desprivilegiadas, muitas vezes territórios ocupados pelo tráfico ecom total ausência do Estado, não é apenas espacial levando também à segregaçãosocial entre as classes:o enclausuramento voluntário implica um empobrecimento adicionalda vivência da cidade e da experiência do contato com o outro (sejaele o favelado, o suburbano etc.), conduz à autosegregação, indiretamente,ao reforço de preconceitos, na esteira da ignorância e do medo.(SOUZA, 2004, p. 61).Esta nova modalidade de segregação pode ser observada em vários momentosnos documentários analisados. Em Notícias de uma guerra particular,Hélio Luz reconhece as desigualdades visíveis ao observar o contraste entrea elite de São Conrado convivendo ao lado da Rocinha. De forma mais contundente,Violência S.A. mostra como a segregação espacial torna-se tambémsocial, ao entrevistar uma moradora de um bairro da classe alta de São Paulo.A entrevistada conta que gosta da vida nas grandes cidades, mas para seproteger da violência adota várias medidas de proteção, como a construçãoO Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201041de um bunker em sua casa (“minha filha nasceu num bunker”) e o uso deblindagem nos automóveis para se proteger no trânsito pelas ruas. Apesarde reconhecer que grande parte da violência tem origem nas desigualdadessociais, não abre mão de suas medidas de segurança: “[...] uma maravilha,hoje não quero outra coisa. Não ando sem ser blindado. Com a desigualdadesocial, é a melhor coisa. Você se isola, né?”.Esta forma de isolamento dos conflitos do meio urbano é abordada deforma cortante por Bauman, ao falar dos condomínios supervigiados comoespaços bem-sucedidos de secessão. Para o autor, a ‘elite’ busca, nessas comunidadescercadas, um distanciamento dos conflitos provocados pela intimidadeconfusa no dia-a-dia urbano: “O que seus moradores estão dispostos a comprarao preço de um braço ou uma perna é o direito de manter-se à distância e viverlivre dos intrusos” (BAUMAN, 2003, p. 52).São essas narrativas sobre o crime, fortalecidas pela presença constantede notícias sobre os conflitos do tráfico nos morros cariocas, que acabam porlevar a novas formas de se deslocar pela cidade. De acordo com Vaz: “temosnão só a quem temer, como determinados lugares a recear. Porém, para umaclasse média prudente – que, informada sobre os riscos que corre, evitará aproximidade da favela – o morro não aparece apenas como lugar perigoso, masprincipalmente, como lugar de onde os crimes provêm” (VAZ, 2005, p. 05).Fo r m a n d o Pr e c o n c e i t o sA questão da alteridade está presente em muitas pesquisas que estudam aviolência urbana e mostra como a falta de interação ocasionada pela segregaçãoespacial pode levar à criação de preconceitos. A habilidade no estranhamentoem relação ao outro e no reconhecimento das diferenças acaba por se tornarreduzida nos espaços homogêneos dos condomínios vigiados e leva à formaçãode categorias simplistas na descrição dos criminosos.Em uma das cenas de Violência S.A. observa-se a facilidade com que sãoformados esses estereótipos e preconceitos. O documentário exibe partes dolivro Como conviver com a violência?, escrito por um ex-delegado de polícia,enquanto este descreve o suposto criminoso: “são jovens, de 16 a 34 anos, classesocial baixa, família desestruturada, usuário de drogas, não tem ofício”. Essacorrelação do mundo crime com as classes sociais desprivilegiadas também foiobservado por Caldeira, mostrando que, além de excluídos, os habitantes dasáreas mais pobres da cidade são vítimas também do preconceito:Como seria de esperar, os habitantes desses espaços são tidos comomarginais [...] São considerados também socialmente marginais: diz-seque têm famílias divididas, são filhos de mães solteiras, crianças quenão foram criadas devidamente. De certo modo, tudo o que quebra ospadrões do que se considera boa conduta pode ser associado a criminosos,ao crime e a seus espaços. O que pertence ao crime é tudo que asociedade considera impróprio. (CALDEIRA, 2000, p. 80).O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Em Violência S.A. esse aspecto também pode ser percebido nas formas decontrole de acesso aos espaços privilegiados. Temendo ter suas residências e escritóriosinvadidos, a elite se preocupa com supostos assaltantes que se fazem passar porentregadores, o que mais uma vez alimenta o medo e gera segregação. No documentário,o narrador em off anuncia ironicamente: “O grupo Garantia Real, nos ajudaa controlar acessos e evitar contatos”, seguido pela explicação do diretor da empresa:“Quais são os pontos vulneráveis? Muros e entradas. Dividir entrada de serviço eentrada social. Não é uma questão de racismo. Simplesmente dividir para dar ummelhor atendimento para serviço e entrada social. Serviço tem que cadastrar.”.Outras formas dessa segregação podem ser observadas ainda em relaçãoaos pedintes que habitam os cruzamentos das grandes cidades.As pessoas guiam com janelas fechadas e portas trancadas. Elas têmmedo especialmente de parar nos sinais porque os noticiários estãocheios de casos de trombadinhas que usam facas ou cacos de vidropara roubar motoristas [...] É difícil distinguir esses trombadinhas docrescente número de pedintes e vendedores de rua que disputam asmesmas esquinas. (CALDEIRA, 2000, p. 320).42Esse medo típico das grandes metrópoles é exibido em Violência S.A.,chamado ironicamente de “Dilema do Farol”: “Inibida entre o humanismo e omedo, a cidadania moderna fica inibida a cada farol. A questão é, abrir ou nãoabrir?”. Uma vez mais o ‘manual de convivência com a violência’ fortalece asegregação e afirma que diante do perigo iminente, a estratégia é: “Mantenhao vidro fechado e não dê atenção ao que dizem”. O narrador mais uma vezironiza, citando trechos do manual: “um dos grandes problemas são os pedintes.Não se impressione com garotinhas, idosos, paraplégicos. Não podemosconfiar em ‘na-da dis-so’. Seja cauteloso e não se emocione”.Se g u r a n ç a Pú b l i c a x Se g u r a n ç a Pr i v a d aOutro aspecto relevante em relação a esses espaços protegidos diz respeitoao crescimento da segurança privada pela descrença na proteção oferecidapelo Estado. Grande parte das pessoas que atuam na segurança privada são expoliciaisou policiais que trabalham em seus dias de folga. Porém, a distânciaentre segurança pública e privada é, muitas vezes, tênue e as duas se misturam,alimentando um setor ilegal da atividade. No Rio de Janeiro, este esquemade desvio da função policial pública ocorre também através da alteração dasrotas de patrulhamento, quando os policiais, mesmo durante seu turno detrabalho, fazem uma segurança mais ostensiva nas áreas onde possuem “‘acordos’”.Uma forma ainda mais grave desses desvios é o acordo entre policiais etraficantes, conhecidos como ‘“arregos”’, situação em que os policiais em serviçocobram uma “‘taxa’” dos traficantes para não “‘atrapalhar seus negócios.”’.(ATHAYDE, 2005, p. :136).Outra forma grave de corrupção diz respeito ao contrabando de armas.Notícias de uma guerra particular aborda essa questão ao perguntar a umO Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201043traficante se a polícia vende armas para o tráfico, ao que ele responde, ironicamente:“Se a polícia vende armas? Ah, a gente não vende pra eles, né?”. Aindaque o caso de policiais que se envolvam com o crime organizado representeuma minoria dentro da organização, tal atitude mostra a total inversão dafunção da segurança pública, levando ao descrédito da instituição e a maisinvestimentos na segurança privada.Outras referências à criminalidade e ao crime organizado aparecem aolongo dos documentários. O que é percebido nas narrativas é que esse crimeorganizado não poderia funcionar envolvendo apenas traficantes. Além dasreferências feitas aos setores corruptos da polícia, percebe-se que a tráfico éapenas a ponta desse iceberg. Hélio Luz mais uma vez é cortante e deixa claraessa situação ao afirmar: “Eles não tem nada, são excluídos mesmo. O que nóstemos no morro é um varejão. Como é que o Uê vai operar 5 milhões de dólares?Ele é apenas o cara que fica com as barracas na praça, é só isso.”.A responsabilidade da sociedade também é um aspecto destacado nosdocumentários. Os desvios cometidos pela elite são abordados por diversosautores, desde a impunidade ao avançar um sinal até o consumo das drogas,que seria uma das causas da violência urbana. Hélio Luz, novamente, nos chamaatenção para este fato, questionando se há o interesse em uma polícia querealmente não seja corrupta: “[...] então a gente chega e atua na favela e atua noPosto 9. Para de cheirar em Ipanema. Vai ter mandado de segurança e pé naporta na Delfim Moreira, não é isso? Quer uma polícia que não seja corrupta?Ela não tem limite. A sociedade vai conseguir segurar isso?”.Co n s i d e r a ç õ e s FinaisTodos os autores pesquisados concordam em suas falas sobre a criminalidadeque a segregação social provocada pela divisão espacial é um agravantepara a violência urbana. As possíveis causas dessa violência são antesatribuídas às desigualdades sociais, corrupção, preconceitos e uma política dearmas que permite sua circulação em grande quantidade, do que à existênciade criminosos “sem salvação”, como parece acreditar o senso comum. A crençanesses estereótipos que atingem grupos inteiros nos distancia cada vez mais demedidas que poderiam levar à solução dos conflitos e, paralelamente, podemagravar ainda mais o quadro de violência estabelecido ao estimular a adoção demedidas punitivas mais rigorosas.Sem qualquer intenção de minimizar a questão da violência e ainda menosde suscitar uma visão apocalíptica da mídia, o que as teorias e consideraçõesaqui apresentadas se propõem é a provocar reflexões sobre a violência esuas implicações sociais. Numa sociedade onde as tecnologias de comunicaçãosão cada vez mais presentes e as narrativas midiáticas adquirem grande importânciana construção de nossa visão de mundo, torna-se urgente reavaliar asconexões que fazemos a fim de entender suas dinâmicas.O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Dados do Instituto de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio de Janeiro(ISP). Relatório do 1º semestre de 2008. Rio de Janeiro: 2008. Disponível em:.Acesso em: 27 jul. 20083Homicídios por cem mil habitantes. Dados do Mapa da Violência dos MunicípiosBrasileiros - 2008 (WAISELFISZ, 2008).4É importante ressaltar que estes números dizem respeito à unidade comumenteutilizada nas estatísticas de criminalidade (crime por cem mil habitantes). No casode homicídios por arma de fogo, a cidade do Rio de Janeiro apresenta taxa de 37,1,estando nos primeiros lugares as cidades de Goianésia do Pará (PA), com 102,9; Fozdo Iguaçu (PR), 98,3 e Porto Seguro (BA), 90,1. Entretanto, em números absolutos(independente do número de habitantes), o Rio de Janeiro está em primeiro lugar, oque talvez possa explicar as descontextualizações e fortalecer o imaginário de que éa cidade mais violenta do país.5”What this means is that if you are growing up in a home where there is morethan say three hours of television per day, for all practical purposes you live in ameaner world - and act accordingly - than your next-door neighbor who lives in thesame world but watches less television”. (tradução nossa).44O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasBAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadaniaem São Paulo. São Paulo: ed. 34 / Edusp, 2000.CANCLINI, Néstor García. A Globalização Imaginada. São Paulo: Ed.Iluminuras, 2003.DURAND, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia daimagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004.GERBNER, George. Reclaiming Our Cultural Mythology. Spring 1994.Disponível em: < http://www.context.org/ICLIB/IC38/Gerbner.htm>. Acessoem: 8 jul. 2008.GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. São Paulo: Francis, 2003.HARDT, Michael. A Sociedade de Controle In: ALLIEZ, Éric. Gilles Deleuze:Uma vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.45WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros –2008. Brasília, DF, 1ª Edição, 2008. Realização: RITLA, Instituto Sangari,Ministério da Saúde, Ministério da Justiça. Disponível em: .Acessado em:[27 jul. 2008.SOUZA, Marcelo Lopes de. Planejamento e gestão urbanos numa era demedo In: Revista Rio de Janeiro, n. 12 Co-editada: Uerj, LPP, Fórum Rio,Jan/Abr 2004.VAZ, P.; CAVALCANTI, Mariana; CARVALHO, Carolina Sá; JULIÃO,Luciana. Pobreza e Risco: a imagem da favela no noticiário de crime. In: XIVEncontro Anual da Compós, 2005, Niterói.ZIZEK, Slavoj. Reapropriações: A Lição do Mulá Omar. In: Bem-vindo aoDeserto do Real. São Paulo: Boitempo, 2003.Re f e rê n c i a s FílmicasNOTÍCIAS de uma guerra particular. Roteiro e Direção de João Moreira Sallese Kátia Lund. Rio de Janeiro: GNT, 1998, 53min, documentário.VIOLÊNCIA S.A. Roteiro e direção de Eduardo Benaim, Jorge Saad Jafet,Newton Cannito, Co-produção: MC2 Filme, TV Cultura, Sesc TV, 2005, 55min, documentário.O Imaginário do Medo: violência urbana e segregação espacial na cidade do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Da janela olho e meenvolvo com o mundo 1From the window I look andget involved with the worldJorge Ricardo Santos de Lima Costa | jrslc@bol.com.brArquiteto e Professor adjunto do curso de Comunicação/Cinema daUniverCidade. Doutor em Psicologia Social pela Uerj cuja tese se intitula“A paixão de olhar: a cidade no cinema brasileiro”.ResumoEste artigo realiza uma análise sobre o filme Do outro lado da rua, de MarcosBernstein, para abordar a experiência e o imaginário urbano. A partir da protagonistaRegina – interpretada por Fernanda Montenegro – discorre sobre ouniverso da personagem, a narrativa, a fotografia, a direção de arte e outrosaspectos do filme, que traduzem em imagens as questões existênciais quepermeiam a vida na cidade.Palavras-chaves: imaginário; cinema; solidão; cidade.AbstractThis article presents an analysis of the film Do outro lado da rua, by Marcos Bernstein,to address the experience and the urban imaginary. From the protagonist Regina – playedby Fernanda Montenegro – discusses the character’s universe, the narrative, photography,art direction and other aspects of the film, wich translates into images the existencial questionsthat permeate life in the city.Keywords: imaginary; cinema; loneliless; city.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201047Ao andar pelas ruas de uma cidade o homem se depara com um vastoacervo de formas urbanas que compõe a paisagem cultural da sociedade. Asobras arquitetônicas, os elementos urbanísticos, os meios de transporte e omovimento do homem no espaço urbano desenham uma paisagem cuja fisionomiaapresenta um campo de conhecimento que delineia o percurso históricoda cidade. Os diversos tempos deste percurso constituem o material da narrativado lugar e a forma com que o homem inventa o cotidiano, transforma oambiente social produzindo histórias que o revelam enquanto agente de criaçãodo imaginário social.As experiências ao longo do tempo organizam um discurso histórico produzidonos lugares de subjetivação da prática do sujeito – o cotidiano das realizaçõesefetivas originárias do imaginário social. Os locais públicos e os espaçosprivados da vida do homem urbano representam o cenário no qual são criadosos relatos de demarcação dos processos de individualidade e de alteridade. Oconfronto com o outro delimita a fronteira entre as diversas espacialidades eseus respectivos modos de expressão. O sentido do discurso histórico institui anoção de identidade social em seu processo dinâmico de produção simbólica,as marcas identitárias de uma cidade resultam de um modo de interpretar omundo, da forma com que o homem simboliza os conteúdos formadores douniverso do imaginário. Interpretar uma realidade significa escrever (demarcar)no tecido urbano as impressões captadas do imaginário e imprescindíveisà organização da vida na cidade, do universo imagético que a caracteriza.O cinema apresenta o ponto de vista de personagens (narradores) de umuniverso urbano retratado que configura um determinado discurso da ordemsocial e cultural. O imaginário do filme é o imaginário de seus personagens emconfronto com o imaginário da cidade que detém um acervo de experiências,desejos e pensamentos constituídos ao longo do tempo. A construção narrativado filme mostra a marca da identidade dos narradores da história e do espaçono qual ela se desenrola.Michel de Certeau, em sua obra A Cultura no Plura” (1995), nos fala queo imaginário urbano tem uma predominância do “ver”, no qual o homem é levadoa captar o sentido das impressões visuais, constituindo o valor da imagemem um elemento representativo do imaginário social. No contexto do universourbano temos, então, uma exaltação da “pulsão escópica” (visual), conceitodenominado por Christian Metz (1983), que leva o homem a sistematizar umaprodução acelerada de conhecimento. A velocidade da informação visual configurauma forma de pensamento na qual a imagem aparece como um signoque traz significados para a interpretação do mundo. A cidade instituída é umacervo e uma fonte permanente de escrita, de produção de novas imagens:A cidade contemporânea torna-se um labirinto de imagens. Ela se dáuma grafia própria, diurna e noturna, que dispõe um vocabulário deimagens sobre um novo espaço de escritura. Uma paisagem de cartazesorganiza nossa realidade. É uma linguagem mural com o repertórioDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010das suas felicidades próximas. Esconde os edifícios onde o trabalho foiencerrado, cobre os universos fechados do cotidiano; instala artifíciosque seguem os trajetos da faina para lhes justapor os momentossucessivos do prazer. Uma cidade que constitui um verdadeiro “museuimaginário” forma o contraponto da cidade ao trabalho. (CERTEAU,1995, p. 46),48A imagem da cidade vai sendo remodelada a partir de novas leiturase interpretações em um momento histórico particular. A realidade urbana éfruto de uma apropriação constante de algo da ordem do “exotismo ótico”,de imagens ainda não nomeadas pela sociedade, mas que poderão ser incorporadasa partir de um olhar revelador de uma experiência social. A busca eo conhecimento de novos significados da produção imagética implica em umdesvelamento das diversas camadas encobertas pelas imagens instituídas. Aconstituição de um “espaço”, a prática de um “lugar”, como elucida Certeau(1994), a transfiguração do sentido de estabilidade e o respectivo cruzamentode experiências de direção, velocidade e tempo traçam o momento do surgimentode imagens até então apagadas por um processo de alienação relativoà capacidade ótica, às possibilidades de “ver” outras imagens. A cidade é umagrande galeria de quadros de imagem – a arquitetura, a publicidade, os equipamentosurbanos, as imagens digitais formam seu acervo visual, que vão seremodelando ao longo do tempo em um processo de manipulação do espaço.A forma e a qualidade da imagem encobrem e interferem no valor estético esimbólico do espaço transfigurando o sentido da composição urbana. A naturezade uma cidade, enquanto um “museu imaginário”, nos remete aos diversosespaços que estão escondidos, guardando um acervo de imagens a ser descobertopelo caminhante, pelo flâneur e pelo poder imaginário do ser humano.O imaginário urbano é um campo de percepção vivenciado pelo homemem relação à vida na cidade, a partir de experiências visuais, afetivas ementais, que fazem com que o presente seja um momento de inspiração paraa produção de material significante que transforme o espaço estabelecido. Aspossibilidades advindas da inspiração do homem estão sujeitas a um processode seleção que é definido segundo critérios políticos e econômicos estipuladospelos organizadores da ordem social. A materialização de um elemento douniverso do imaginário percorre uma trajetória de redimensionamento da realidade,de promoção de uma mudança de paradigma das formas simbólicas.As práticas urbanas são o reflexo de um processo de subjetivação de fatos epensamentos vivenciados no mundo imaginário, elas constituem o que foi possívelser nomeado para que se desse prosseguimento à atualização das formasde representação da vida social.A alusão ao tempo é um fato na demarcação do universo do imaginário.O passado e o por vir aparecem como referências ao tempo presente no quetange às possibilidades de significação de novas realidades, o presente é umadimensão fugaz – instantânea, entre os dois momentos que estão instituindo anoção de tempo. O homem escreve sua história se reportando ao imaginário eDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201049trazendo ideias aos lugares de produção da cultura social, a instituição de novaspráticas cria uma forma diferenciada de pensar o cotidiano e redirecionaro percurso da sociedade. Os projetos urbanísticos constituem um corte epistemológicona realidade da organização e do funcionamento da cidade, elesdemarcam um novo mapa que conduzirá as práticas cotidianas emergentes.O cotidiano é o universo no qual o homem experimenta a todo momento asimbolização de conteúdos do imaginário social.O passado da cidade inscrito no imaginário social é uma fonte de questionamentoacerca de seu destino traçado ao longo da história. O material “morto”do corpo da cidade – as áreas abandonadas, as ruínas urbanas, relacionado a umaexperiência cristalizada – destituída de significados, em um tempo decorrido,acompanha o desenvolvimento da sociedade trazendo material para a (re) formulaçãoda noção de identidade social. O distanciamento no tempo de produçõesculturais de uma época não implica em um esquecimento do valor históricodessas produções para a efetivação da memória social instituinte. A história deixamarcas no espírito de uma sociedade que poderão ser resgatadas e incorporadas aum momento de redefinição de um discurso. Pensar a vida na cidade é retomar osentido dos diversos estágios que contribuíram para a formação da cidade atual,a retomada significa reelaborar a escrita que constituiu uma forma inacabada noque tange às possibilidades de criação do universo do imaginário.A solidão de uma mulher de terceira idade em um bairro marcado pelaviolência nos faz acompanhar o drama de Regina (Fernanda Montenegro) pelobairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, no filme brasileiro O outro lado da rua(2004), de Marcos Bernstein. O olhar de Regina percorre o caminho da sombra,do universo do crime, do duvidoso e do abandono. A solidão a faz tomar atitudesem prol da justiça pelo outro, ela observa o outro para se afastar de sua dor, entregao outro para fazer valer a lei do bem-estar social. Todo este percurso promoveo retorno para dentro de si, em direção ao seu afeto perdido, a apropriação doespaço cria uma nova forma de expressão humana. Os labirintos da cidade sãoo cenário da jornada de uma mulher em busca de sentido para sua vida em umaexperiência no espaço urbano que se apresenta como uma oportunidade para orefinamento do sentimento e da comunicação afetiva.A experiência vivida no espaço urbano, Copacabana como cenário deuma dramaturgia voltada para o afeto enquanto elemento de transformaçãosocial, demarca a efetivação do “espaço” a partir da predominância do “ver”,segundo Certeau (1995), a exaltação da “pulsão escópica” (visual), como indicaMetz (1983). A determinação do redimensionamento do afeto se dá através dainvestigação do sentido das cenas (imagens) da cidade que vão promovendo odespertar desse afeto adormecido, a crítica do olhar aparece como instrumentode aproximação ao universo do outro.A cidade aprisiona o homem, mas também pode possibilitar sua libertação.O sentido de orientação e de perda na cidade postulado por BenjaminDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201050(1993) possibilita um aprendizado que se dá em O outro lado da rua através doolhar que aprisiona e, posteriormente, liberta. A prisão de Regina ao olhar aafasta da possibilidade de troca, a potência de seu olhar esvazia a entrega aooutro, ela declara: “Vejo coisas demais, é isso. Eu acho que eu ainda me vejode um jeito que ninguém mais me vê. Eu me vejo como eu sempre fui, entende?”.As janelas nas quais Regina se lança ao mundo são as barreiras e, aomesmo tempo, o canal de comunicação com a vida na cidade. O alvo do olharinquisidor de Regina, o sujeito de sua investigação, torna-se objeto de desejo.Camargo (Raul Cortez) é a figura que redimensiona seu olhar em direção auma nova forma de se relacionar com o mundo.O imaginário de Regina é materializado nos espaços por onde ela circula.O sentimento de isolamento aparece no momento após a tentativa de assaltoa uma senhora no banco, ela desabafa conversando com a sua própria secretáriaeletrônica, cena presenciada pela cachorra Betina, e se vê inteiramente sozinhano espaço da rua por onde transita a multidão solitária de uma grande cidade.O espaço psicológico (o vazio do espaço urbano) sob o seu ponto de vista simbolizaa solidão de uma mulher de terceira idade perdida em uma cidade queameaça os seus habitantes.O apartamento de Regina é banhado de luz e sombra sendo o cenário decenas nas quais ela aparece solitária, um ambiente que remete a uma caverna deonde alguém espia e se esconde do mundo. A cachorra Betina é a única possibilidadede interação afetiva, apesar das limitações de sua natureza animal, ela afaz se manter operante na vivência do espaço da cidade e do apartamento.O percurso ao longo de Copacabana vivenciado por Regina demarca oselementos que norteiam o seu imaginário: a praça onde os velhos se encontrampara jogar cartas; o caminho de sua casa para a praia que proporciona uma aberturados horizontes limitados de seu apartamento; a ida à delegacia para comunicara suspeita de um crime – a morte da mulher de Camargo, visto que ela exerceo serviço voluntário de “olheira” da polícia sob o pseudônimo de Branca de Neve–, aparecem como espaços que são a marca do imaginário de uma mulher movidapela solidão e pela tentativa de preencher o vazio existencial de sua vida.A linguagem do corpo da cidade está diretamente relacionada à linguagemdo corpo do homem. Richard Sennett, em sua obra Carne e Pedra (1997),na qual apresenta uma nova história urbana através da experiência corporal,estabelece o argumento de que:Em geral, a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporaisespecíficas a cada povo: este é o meu argumento em Carne e Pedra.Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar,a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umascom as outras. (SENNETT, 1997, p. 300).O corpo marca o tecido urbano com uma carga de sofrimento, umaenergia afetiva que engendra novas configurações, funções, reformulando aDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201051cultura do espaço. A cidade se justifica a partir do corpo do homem em suasconstantes intervenções cotidianas, na incorporação de mitos de seu “mapa”,ou seja, na constituição de um verdadeiro “percurso” humano, de acordo comCerteau (1994). O “percurso” se apresenta como um instrumento antropológico,um ato de enunciação, que se constitui ao longo do “mapa”, do aparatofísico no qual se dá a narrativa urbana.A ideia de Sennett de que a vivência do homem, o choque do corpono tecido urbano, influi na forma das cidades nos leva a pensar a respeitodas relações entre os corpos humanos na prática do espaço, a importância daqualidade do contato na instituição de formas urbanas significantes. A cargaafetiva resultante das experiências dos diversos percursos ao longo do espaçoda cidade apresenta uma tipologia que sugere determinados estados deespírito. Temos espaços de contemplação (parques e praças), tensão (favelas ecomplexos penitenciários), alegria (praias e bares), tristeza e dor (cemitérios ehospitais), reflexão (centros de cultura). O homem é influenciado pela formae pela função dos espaços que organizam a vida da cidade, como também elesubverte, redimensiona o seu sentido original. A prática do espaço institui umimaginário próprio à produção cultural do homem no percurso histórico dedesenvolvimento das qualidades sociais e humanas.A expedição de Regina (Fernanda Montenegro) em O outro lado da ruaé da ordem do visual, visto que ela espia o outro em busca de delação. Da suajanela, com a ajuda do binóculo, Regina espreita Camargo (Raul Cortez) emum suposto crime. Na realidade, ela é vítima de uma cilada armada pelo seupróprio ofício, a espiação de Camargo é o pretexto para ela se aproximar de seudesejo, de se entregar ao outro e conquistar a liberdade.Regina espia Camargo em seu apartamento.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201052O corpo tenso e deprimido de Regina enquadrado na janela de um edifíciode uma grande cidade é um corpo-objeto, um organismo passivo, à esperade um outro olhar, de um outro corpo desejante, o seu corpo no apartamentoé mais um objeto de uma cena marcada pela solidão e pela tristeza. Por outrolado, o corpo de Regina no espaço da cidade é ativo, ágil no movimento e maliciosono pensamento. A passagem do universo privado (o apartamento) parao público (a cidade) é feita sob um olhar inquisidor da realidade urbana, ela saià busca de um sentido de justiça no trato social, reflexo de seus desencontrosafetivos e familiares.O “mapa” do cotidiano de Regina se restringe às ruas e à praia deCopacabana, áreas próximas ao seu apartamento – uma “caverna-símbolo” daexaltação do olhar e do corpo oprimido. A prática do “lugar” de Regina estáassociada a uma vivência da cultura do perigo e da desconfiança pelo outro,ela se expõe a cada momento de sua jornada. O “percurso” criado por ela seestrutura a partir de um combate de corpos, mentes e afetos subordinados àsameaças de um imaginário urbano em guerra. Vemos, então, um “espaço”retraído que segrega os seus habitantes em apartamentos confinados a espaçospúblicos cercados e rotulados por um tipo de necessidade social – a praça dosvelhos e o submundo das casas noturnas onde mora o “perigo”. Copacabanade O outro lado da rua é o lugar de corpos em constante processo de exaltaçãoe sujeitos a uma demanda social oriunda de um espaço de tensão como a favelalocalizada no bairro.A busca da legibilidade da imagem que Regina toma como meta paracomprovar o que os seus olhos viram - a suposta cena na qual Camargo dá fim àvida de sua mulher é o fio condutor do filme. A cena faz alusão à arte do cinema,ao enquadramento que se dá a partir dos quadros das janelas de Copacabana.O olhar de Regina potencializado pelo binóculo (o olho-câmera) imprime nanarrativa uma referência à arte e à técnica da imagem cinematográfica.A “performance” de Regina se constitui a partir da exploração de umquadro particular da paisagem urbana que a leva ao enfrentamento afetivocom o outro, a investigação da legibilidade da imagem captada por ela tomao registro visual como verdade. Ao longo do desenvolvimento da história, naaproximação com o objeto e o sujeito da cena, o registro visual cede lugar aoregistro de um corpo pulsante em afeto. O encontro entre Camargo e Reginatraduz a legibilidade da imagem em contrapartida com a legibilidade do corpoem processo de atração.A fisionomia dos espaços e dos personagens urbanos demarca um quadrode rostos e de expressões que se situa na superfície, na forma. A expediçãodo olhar de Regina nos mostra o seu processo de transposição das superfíciesem direção ao significado e ao conteúdo das formas-personagens da cidade. Oscorpos da cena, então, ultrapassam o sentido de meros objetos emoldurados ese tornam sujeitos da paisagem.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A construção do espaço no filme – o projeto cenográfico (a direçãode arte) –, aparece como um dos elementos que compõe o ambiente para oexercício tanto da criatividade do ator (construção narrativa), quanto do espectador(conexão com a obra). O ambiente deve sugerir, e não ilustrar, oconteúdo dramático através de uma concepção visual marcada pelo equilíbrioe pelo ritmo, utilizando elementos cênicos que sejam essenciais (oportunos)ao desenvolvimento do trabalho do ator no espaço da cena cinematográfica.Como comenta o cenógrafo e diretor italiano Gianni Ratto, em Antitratado deCenografia (1999):Cenografia é o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qualqueremos assistir. Portanto, falando de cenografia, podemos entendertanto o que está contido num espaço quanto o próprio espaço. Acenografia faz parte do instrumental do espetáculo. Ela deve fugir dopersonalismo, do individualismo. (RATTO, 1999, p. 22).53O cenário e os objetos nele contidos não se constituem apenas comoum desenho de um ambiente de uma história, eles fundamentam uma formadramática quando os elementos desenhados são incorporados pelo gesto, pelomovimento e pelo olhar do ator através do enquadramento da câmera. O projetocenográfico é um mapa da trajetória dos personagens em seu processo deprodução de sentido dos objetos que demarcam e justificam a constituição deum acontecimento. Os objetos cênicos fazem parte de uma unidade plástica doquadro de imagem, eles não evidenciam sua forma como uma expressão meramentepictórica, mas como elementos de composição dramática que situame direcionam a imagem no tempo. Diante disto, a pintura aparece como umaarte que oferece um referencial plástico para a construção da imagem do filme.Ratto afirma sobre a influência da pintura no cinema:O cinema, assim como o teatro, deve muito à arte dos grandes mestresda pintura. A composição dos grandes afrescos e das grandes telas deartistas como Rafael, Tintoretto, Rembrandt, Caravaggio, David etcnão pode ter deixado de influenciar as composições dos grandes planosdos filmes históricos, nem as imagens extremamente elaboradas na luz,na cor e na colocação das personagens visualizadas por diretores comoGriffith, Kurosawa, Bergman, DeMille etc. (RATTO, 1999, p. 36).Podemos constatar um paralelo entre o vocabulário plástico do cinemae da pintura no que se refere à cor, formas, contrastes, valores e superfícies, autilização destes elementos sensíveis não representam, no entanto, o espaço, otempo e a ficção da mesma maneira. O material plástico da pintura é da ordemdo pictórico – ele traduz um momento – e o do cinema é da ordem do dramático– ele é elaborado para a construção de uma narrativa, da encenação de umacontecimento. As citações pictóricas empregadas pelo cinema são a base para aarticulação de uma memória instituída no processo de produção do espaço e dotempo da narrativa cinematográfica, a imagem da pintura é um elemento plásticoque passa por uma ressignificação dos princípios espirituais que emanam doobjeto de arte para ser aplicado no contexto semântico da linguagem do cinema.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O jogo de luz e sombra no apartamento de Regina.54O apartamento de Regina, mais especificamente, as salas, são os espaços,lugares nos quais ela vive intensamente a sua solidão, neles podemos perceber ainfluência da pintura na constituição da imagem cinematográfica.A influência da arte realista do pintor Edward Hopper (1882-1967) apareceno uso do jogo de luz e sombra enquanto elemento que integra o designdo ambiente vivenciado por Regina. O realismo de Hopper não se apresentacomo uma mera cópia do que ele observa, mas como uma impressão particularda natureza. As pinturas Eleven A. M. (1926), Room in Brooklyn (1932),Morning in a City (1944), Hotel by a Railroad (1952), Morning Sun (1952), CitySunlight (1954), Western Motel (1957) e Sunlight in a Cafeteria (1958) são obrasque revelam o estilo de Hopper no que se refere à recepção da luz nos espaçosretratados, à solidão de seus personagens e à cidade americana contemporâneacomo temas centrais de sua produção artística.O entrosamento entre a direção de arte e a direção de fotografia resultouem uma qualidade de imagem marcada pelo uso da luz e da sombra quedramatiza o cenário de uma mulher que vive o vazio afetivo. O apartamentode Regina é um “esconderijo” e o lugar onde a realidade de seu abandono enquantomulher, idosa e mãe é demonstrado visceralmente, o ambiente reflete adepressão de uma personagem que utiliza determinados elementos cenográficos(sofá, cadeira e bidê) para se entregar e viver a sua tristeza e solidão. O jogode luz e de sombra – um instrumental pictórico– pontua o estado de abandonoe de “ressonância” de experiências vividas, o uso de uma cor fria (azul) carrega,também, o ambiente de um impressionismo que evidencia a sensação dopersonagem que criou e vive um espaço dramático repleto de memória de umavida em conflito existencial.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201055O olhar do diretor de cinema através da câmera é, também, um elementode construção da composição cenográfica. A realização do projeto de direçãode arte é o material de trabalho do diretor que irá montar um enquadramentoidentificador de um sentido narrativo, a forma como ele irá mostrar um determinadoespaço é um desdobramento do projeto original, uma transfiguração deum objeto real. O diretor elabora a escrita da imagem dando sentido aos diversossegmentos do espaço, sejam eles “lugares artificiais” (cenários) ou “lugares naturais”(locações: arquitetura e paisagem). De qualquer forma, os lugares da cenacinematográfica aparecem como elementos marcantes para a representação deum universo imaginado. O cenário é produzido sob o ponto de vista de uma históriaa ser contada, é o lugar de construção de uma nova memória, de experiênciasinstituintes de uma cultura dramática. A locação já traz em seu imaginárioa marca de histórias vividas, é o lugar de uma memória instituída, do confrontocom um potencial dramático estabelecido por um tempo decorrido. O diretor aocaptar imagens em uma locação se depara com um acervo de realizações efetivasque irá influenciar o processo de criação artística.Os “lugares artificiais” (cenários) em O outro lado da rua aparecem comoo laboratório existencial de vidas que se encontram em uma grande cidade. Oapartamento de Regina (Fernanda Montenegro) é o seu posto de trabalho – ajanela é utilizada como um grande quadro para um olho (binóculo/câmera)voraz que vigia e julga um outro personagem, Camargo (Raul Cortez), comose ele estivesse projetado em uma tela de cinema, em um apartamento do outrolado de uma rua em Copacabana. O lugar de moradia de Regina aparece comoum “esconderijo” no qual ela exercita o olhar, pensa e percorre o universosombrio de seus sentimentos. Na realidade, o movimento dela é para a rua, apraia, a praça – “os lugares naturais” (locações) onde ela trama situações paracomprovar a sua tese baseada na crença no que ela vê. Ela consegue mudara rotina de Camargo que vive em um apartamento (cenário) luminoso comdesign sofisticado repleto de vazamentos (janelas e divisórias), uma marca dofilme – o olhar que espreita algo que está escondido, sugerido. Os dois cenáriosse caracterizam por um realismo absoluto no tocante à composição de umaarquitetura contemporânea de uma cidade tropical brasileira. Regina conseguemudar o ritmo de vida de Camargo, supostamente uma vida mais ligada àcasa, o levando para a rua, um espaço de comprovação de uma tese “imaginária”e de embates afetivos e perceptivos. A rua (“lugar natural” – locação)é, então, o espaço da experimentação de olhares e sentimentos gestados nosapartamentos (“lugar artificial” – cenário) de personagens que são o símboloda vida em uma grande cidade litorânea. O espaço de reclusão abastece o universopsicológico dos personagens com uma recarga de experiências que nãosão vividas no espaço da rua. O movimento para fora representa uma mudançade comportamento compatível com os seus objetivos individuais e com a maneirade se viver em uma cidade violenta e repleta de cenas que configuram oimaginário urbano.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Na s j a n e l a s d a c i d a d e o h o m e m se e n c o n t r a56Nas janelas dos apartamentos de um edifício, e ao longo do percurso pelacidade – a vivência nas calçadas – o homem se situa em um universo marcadopela presença de seu corpo em um espaço fragmentado. Ele se movimenta porpartes articuladas (áreas urbanas), mas que não o articulam no tocante a umapresença mais engajada no corpo afetivo de uma cidade que não oferece umaprática de incorporação dos sentidos urbanos, da apreensão de valores subjetivose simbólicos. A insuficiência de práxis socioculturais – projetos educativose culturais – impossibilita que o objeto urbano seja apropriado adequadamentena sua forma e função tornando-se um elemento significativo de sentido davida social. A cidade seduz o homem e o rejeita em um processo de busca derealização do desejo humano e de afirmação da função da cidade enquantosímbolo social e afetivo. Temos, então, um embate (um conflito) permanenteentre o ser (o humano) e o estar (a função do humano) no mundo (na cidade),o homem se encontra em um espaço que o perturba, mas o faz crescer em plenacrise de sentido social.A janela é considerada como o “olho da arquitetura”, o elemento quecria um diálogo entre o espaço interior (o universo da intimidade e dos significados)e o espaço exterior (o universo público e dos sentidos). A janela propiciaum redimensionamento da arquitetura, tornando-a um objeto que passa a teruma função dentro do contexto urbano. A abertura nas paredes que compõema volumetria do edifício cria um movimento para fora, o significado do objetoarquitetônico ultrapassa um sentido particular, alcançando um sentido coletivono qual ocorre um intenso diálogo entre os objetos urbanos (os edifícios) e otodo (o conjunto da cidade). O quadro da janela é o lugar do olhar e, respectivamente,do ser que produz esse olhar para fora, em um processo de exposiçãoe identificação de sentidos de uma narrativa urbana. Desta forma, o homemvivencia e cria histórias que produzirão o acervo do imaginário urbano; a arquitetura(um material objetivo) produz, através de sua presença artística etécnica, um acervo da ordem da subjetividade.Em O Desenho da Janela (1995), o pesquisador Luiz Antônio Jorgedesenvolve a analogia entre a janela e o olhar tendo como objetivo a abordagemontológica do personagem que compõe a janela no âmbito da arquitetura,segundo ele:A janela é por onde se olha a cidade como um texto. E o olho é oinstrumento para olhar e por onde se olha, sem exigir a locomoçãodo sujeito do olhar ou que ele saia de si: o espírito é preservado dessaexposição. Ele olha sem expor o sujeito dessa ação. A visão é essepoder mágico que nos põe diante das coisas, ou as coisas ao alcance donosso olhar. A janela oferece essa mesma proteção, a de poder ocultaro sujeito dessa ação. Ação que tem como pressuposto uma intenção,pois não se vê sem abrir os olhos. E isso é o que a cidade representa: odespertar, a atração aprisionadora dos olhares interessados, a seduçãopela exposição das suas cenas cotidianas. A clausura e a proteçãodo espaço privado são substituídas por um espaço mais aberto e,Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010conseqüentemente, menos protegido, porém mais ativo, pois detéma ação de olhar, o desejo de acompanhar a romanesca vida da cidade.(JORGE, 1995. p. 40).57Estar em uma janela significa a possibilidade de espiar e presenciar a dinâmicada vida de uma cidade em uma vista panorâmica que amplia o sentidodo espaço urbano. Este ato no quadro da janela aparece como lugar da produçãodo imaginário – a cidade é um texto a ser lido, nas várias formas do olhare da criação de múltiplas cidades que vão aparecendo a cada vislumbramentode novas paisagens. O movimento do olhar promove a variação do ângulo devisão em relação ao objeto observado e a descoberta de paisagens que estavamocultas ou desfocadas até então. O ser que habita a janela exerce o papel dealguém que vigia o outro, a rua, um apartamento, uma casa, realizando descobertase alimentando o seu espírito e criando o sentido de se viver em umagrande cidade. Ele exerce a liberdade de olhar, imaginar e se sentir envolto emum quadro de proteção que o lança para o mundo e o devolve para sua intimidadea partir do esgotamento do olhar e do corpo. A abertura da janela na obraarquitetônica possibilita o exercício de um olhar solitário, perdido em formasanimadas e estáticas que enriquecem a vivência humana.A janela é o cenário para o surgimento de pensamentos, desejos e açõesde personagens que criarão uma cena de vida (um drama) na própria janelaou em outros espaços relacionados aos novos interesses de interação social. Narealidade, a janela é um “lugar natural” (uma locação) que faz parte da estruturada arquitetura de um edifício, porém o seu uso físico e a produção doimaginário nela criado a torna um “lugar artificial” (uma cenografia), pois elavai sendo remodelada a cada cena vivida. O quadro da janela já não é um lugarestático, objetos surgem, figurinos são trocados, ou seja, novas “performances”dão vida e sentido a um lugar que é redesenhado e recriado a cada entrada deum personagem em cena.A solidão é marca da existência humana, um estado a ser vivido, compreendidoe aperfeiçoado pelo homem em seu processo de vida, ela tem umafunção nobre para os sábios e filósofos que desejam se dedicar à humanidade eofertar pensamentos que possam dar sentido e confortar a vida do homem. Ofilósofo francês André Comte-Sponville, em sua obra O Amor a Solidão (2001),comenta sobre o conceito de solidão:Quanto à solidão, é evidentemente o quinhão de todos nós: o sábio sóestá mais próximo da dele porque está mais próximo da verdade. Masa solidão não é o isolamento: alguns a vivem como ermitões, claro,numa gruta ou num deserto, mas outros num mosteiro, e outros ainda– os mais numerosos – na família ou na multidão. Ser isolado é nãoter contatos, relações, amigos, amores – o que, evidentemente, é umadesgraça. Ser só é ser si mesmo, sem recurso, e é a verdade da existênciahumana. (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 29).O que vemos, então, é a qualidade do estado de espírito e a opção dequem vive ou precisa viver um determinado estilo de vida. A solidão pode serDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201058proveitosa para o exercício do pensamento, o conhecimento de si mesmo e dooutro e a organização de uma forma de vida especial, e estar acompanhada ounão de pessoas ao seu redor. O homem pode se encontrar em um grupo humano,na multidão, e se sentir isolado ou integrado à dinâmica do funcionamentoe da natureza desses grupos. Ao vermos um suposto isolamento, podemoschegar à conclusão de que aquele personagem visto está bem consigo mesmoou sofrendo de incompreensão de sua própria natureza humana e da falta dooutro. A presença do outro não significa obrigatoriamente o preenchimento deum vazio existencial, estar bem com o outro deve revelar o amor por si próprioe o reconhecimento dos limites da natureza humana e do relacionamentosocial. O excesso de pessoas pode levar o homem ao isolamento, como a faltadeles pode levá-lo ao encontro com sua verdadeira forma de viver, de compreendero sentido da solidão.Comte-Sponville prossegue em sua reflexão sobre a abrangência da solidãona sociedade apresentando sua inserção no contexto social: a solidão e asocialidade não são dois mundos diferentes, mas duas relações diferentes como mundo, ambas necessárias, aliás, e constituindo juntas esses sujeitos que somos,ou que acreditamos ser. A solidão, mais uma vez, não está à margem dasociedade, mas nela ( 2001, p. 35).Viver em sociedade de forma produtiva socialmente significa conviverconsigo próprio – a vivência da solidão, e com o outro, a sociedade, ointer-relacionamento se dá a partir de uma referência individual refinada noencontro com o outro da experiência social no objetivo de se demarcar osentido da vida em sociedade.Percorrer os caminhos de uma cidade consiste em viver uma solidãoconsciente de que em determinados momentos o exercício de socialidade deveráser realizado para o fortalecimento da estrutura social. Caminhar consigomesmo e parar para encontrar aquele que caminha em nossa direção configuraum movimento de amadurecimento do homem no percurso urbano.O espírito do flâneur que pode ser vivenciado pelo homem dos grandescentros urbanos proporciona um contato íntimo com a solidão. O homem viveo silêncio interior, mas aguça o seu olhar em direção ao sentido dos lugares,ou seja, ao significado do que ele vê, vivenciando através do seu corpo – umelemento físico que guarda uma carga de sofrimento decorrente da relação coma forma urbana. O “lugar praticado” se redimensiona, então, como “espaço”,categorias desenvolvidas por Certeau (1994), e que indicam a possibilidade dainterferência do homem na cidade. O ato de flanar não significa isolamento,mas o exercício de uma solidão consciente e necessária para a apreensão darealidade social e do significado da cidade enquanto símbolo de transformaçãosocial e de produção de cultura. A prática do lugar se dá a partir do engajamentodo corpo, porém na cidade contemporânea percebemos a predominância do“ver”, como indica Certeau (1995), a exaltação da “pulsão escópica” (visual),Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201059conforme a definição de Metz (1983), sugerida pelo estímulo ao consumo material.A força do olhar é constituída pelo apelo de um acervo de imagensmateriais e eletrônicas que fazem com que haja um estímulo predominante noâmbito visual, a força do olhar é o resultado da supremacia das imagens quesuplantam o corpo que as sediam. A vivência da solidão não exige, então, ummovimento explícito do corpo no espaço urbano, o homem em estado estáticopode realizar uma grande viagem através do olhar que atravessa a paisagem.Em O outro lado da rua, a abertura do filme já revela o elemento arquitetônicoque irá direcionar uma narrativa que explora o olhar em direção àredescoberta do afeto, a profusão das janelas do bairro de Copacabana aparececomo quadros fechados sem a presença do homem. Isto sugere que a janelaenquanto o “olho da arquitetura” está pronta para ser aberta para o mundo eser utilizada como o “espaço” de vivências inusitadas, é uma cena que demonstraum certo mistério, um suspense, as janelas guardam um segredo, históriasde vida que serão reveladas ao longo do filme. As janelas vazias anunciam asolidão ou o isolamento do homem na cidade, elas são o alento para o exercíciotranquilo do olhar e da produção do imaginário.Regina (Fernanda Montenegro) espia através do binóculo as diversascenas que aparecem nas janelas em frente ao seu edifício e que representam adiversidade de estilos de vida de uma grande cidade, ela quer encontrar algoque preencha o seu vazio, o seu isolamento enquanto funcionária pública aposentada,idosa, distante da família e de uma relação afetiva. A janela na qualocorre a espiação nos leva ao interior de um apartamento onde mora umamulher deprimida que, apesar de seu movimento dinâmico no espaço público– Regina é uma mulher da “rua” –, vive um isolamento explícito mostrado nasdiversas cenas de depressão que aparecem ao longo de um apartamento frio evazio de alegria e calor humanos.A ação no mundo (na cidade) de Regina representa o exercício de uma figurapública que saiu da janela e foi para as calçadas de Copacabana à procurade pessoas, fatos, descobertas e reconhecimento. A crítica de urbanismo JaneJacobs, em sua obra clássica Morte e Vida de Grandes Cidades (2007), discorresobre o papel de uma figura pública em um grande centro urbano:A estrutura social da vida nas calçadas depende em parte do que podeser chamado de uma figura pública autonomeada. A figura pública éaquela que tem contato freqüente com um amplo círculo de pessoas einteresse em tornar-se uma figura pública. Ela não precisa ter nenhumtalento ou conhecimento especial para desempenhar sua função, emboraquase sempre os tenha. Precisa apenas estar presente, e é necessárioque possua um número adequado de pares. Sua principal qualificaçãoé ser pública, conviver com várias pessoas diferentes. É assimque se transmitem as notícias que são do interesse das ruas. (JACOBS,2007, p. 73).Regina é uma mulher que olha pela janela do seu apartamento (esconderijo)e age e fala (conversa) nas calçadas nas quais ela vai procurandoDa janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O espaço psicológico de Regina após a tentativa de assalto.61A cena final do filme na qual Regina e Camargo, usando o binóculo,trocam olhares de suas janelas simboliza o encontro consciente do outro, aconjunção de olhares que fundamenta a estrutura do desejo mútuo, o desmascaramentoe a transformação de papéis sociais e afetivos e o reconhecimento daexperiência urbana enquanto fator de descoberta da alteridade e da dimensãoda cultura social.Da janela, ao longo das calçadas de Copacabana, e de volta à janela,Regina e Camargo afirmam a possibilidade de transformação do homem emum meio urbano hostil e segregador. O olhar é o elemento que depura a realidadee pode promover o refinamento da vida humana na cidade, o corpo introjetaa experiência urbana e dialoga consigo mesmo e com o outro. SegundoSennett (1997), a forma urbana é decorrente da vivência corporal de seus usuáriose as calçadas, assim, vão se configurando de acordo com os gestos, osdesejos e os pensamentos dos personagens de uma cena urbana em constanteprocesso de criação de sentido.A janela, o “olho da arquitetura”, permite que nós possamos assistir àprodução de um filme que está sendo rodado ao longo das calçadas, locaçõesnaturais da experiência do homem na cidade. Através da janela vislumbramoso mundo e passamos a compreender o ritmo, o movimento e o sentido da vidaurbana.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s bibliográficasBENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1993.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano 1: artes do fazer. São Paulo:Vozes, 1994.______.A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.COMTE-SPONVILLE, André. O Amor a Solidão. São Paulo: MartinsFontes, 2001.COSTA, Jorge Ricardo Santos de Lima. Homem, símbolos e espaço urbano.1998. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Documento) – Centro deCiências Humanas, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007.JORGE, Luis Antonio. O Desenho da janela. São Paulo: Annablume, 1995.62METZ, Christian. História e Discurso IN XAVIER, Ismail (org.). A experiênciado cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia. São Paulo: Ed. Senac, 1999.SENNETT, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997.Da janela olho e me envolvo com o mundo


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Pegação, Cidadania eViolência: as Territorialidadesdo Imaginário da PopulaçãoLGBT do Rio de Janeiro 1Fool around, Citizenship and Violence: Images of theterritoriality of the LGBT population of Rio de JaneiroLuiz Eduardo Neves Peret | leperet@gmail.comJornalista e Mestre em Comunicação pelo Programa dePós-Graduação em Comunicação da Uerj.ResumoEsta comunicação apresenta os resultados parciais de pesquisa realizada entre e , comum grupo focal da população LGBT, residente na cidade do Rio de Janeiro, por meiode entrevistas e da confecção de mapas subjetivos, segundo as categorias subjetivas“medo”, “conforto/aconchego” e “segurança”. Os resultados foram comparados compesquisa realizada em , com frequentadores de uma rua do bairro de Madureira,onde ocorrem encontros semanais da população LGBT, especialmente adolescentes.Elaborou-se um pequeno mapa das territorialidades subjetivas da população LGBTno que se refere à expressão da sexualidade – relacionada com os direitos básicos de cidadaniaque lhes são, em geral, negados ou são objeto de hostilidades – e seus medosem relação à violência urbana, agravada pela discriminação e homofobia.Palavras-chave: LGBT; aconchego; segurança; homofobia.AbstractThis paper presents partial results of research conducted between and , with a focus groupof LGBT people, residing in Rio de Janeiro, through interviews and subjective maps, accordingto the subjective categories “fear”, “comfort/warmth” and “security”. The resultswere compared with a research conducted in , with teenagers from Madureira neighborhood,where there are weekly meetings of LGBT people. Was drawn up a short statementof subjective territoriality of LGBT people in relation to the expression of sexuality - relatedto their basic rights of citizenship, in general, denied or object of hostilities - and their fearsin relation to urban violence, compounded by discrimination and homophobia.Keywords: LBGT; comfort; security; homophobia.O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o64Na atualidade, a falta de segurança nos centros urbanos tem se apresentadocomo um tema cada vez mais preocupante para a população, o governoe o meio acadêmico. Porém, há um recorte específico da questão de segurançaque permanece como um problema endêmico há décadas, tanto nas grandescidades quanto no interior: a população LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais,Travestis, Transexuais e Transgêneros.Basta lembrarmos que o movimento Gay Pride, que originou as Paradasdo Orgulho Gay – hoje chamadas de Paradas de Consciência LGBT – teveinício em um confronto relativo à segurança. E não se tratou, somente, deum pequeno grupo, mas da segurança pública e afirmação de espaços: na madrugadade 28 de junho de 1969, o que teria sido mais uma batida policial derotina, no bar Stonewall Inn, no bairro Greenwich Village, em Nova Iorque,tornou-se um espaço de conflito aberto e mostrou claramente a situação insustentávelque a população LGBT enfrentava nos EUA, forçada a se manterescondida das vistas do público, com medo da prisão, dos espancamentos edemais abusos da autoridade policial, sem a possibilidade de defesa de quaisquerdireitos civis.A partir dali, uma parte dessa população se organizou em grupos demilitância, estabeleceu metas pela visibilidade pública e conscientização e participoude movimentos de emancipação, ao lado de feministas, antirracistas epacifistas contrários às intervenções norte-americanas em outros países. Logosurgiram jornais especializados na questão dos direitos civis negados à populaçãoLGBT e, no primeiro aniversário dos confrontos de Stonewall, NovaIorque e Los Angeles tiveram as primeiras Paradas do Orgulho.O movimento em prol dos direitos LGBT se organizou em vários países,com diferentes graus de sucesso. Com o advento da Aids – que se espalhouamplamente entre os gays – parte do movimento se concentrou no cuidado dosportadores do HIV e na defesa dos seus direitos. Outros grupos voltaram suaatenção para as questões lésbicas. Outros, ainda, enveredaram pelo caminhoda integração social de travestis e pelo direito à cirurgia de redesignação degênero (“mudança de sexo”) e à mudança de identidade de transexuais.Uma das maiores lutas atuais do movimento brasileiro de emancipação econscientização LGBT – também conhecido como Movimento HomossexualBrasileiro ou MHB – é a aprovação do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados(PLC) 122/2006, que iguala a discriminação por orientação sexual e identidadede gênero – popularmente chamada de “homofobia” – ao crime de racismoe prevê as mesmas sanções legais, inclusive multa e prisão. A principalargumentação dos grupos contrários ao Projeto (a maioria dos quais é de basereligiosa cristã evangélica) é de que a nova lei seria inconstitucional, porqueimpediria a livre expressão religiosa. A “livre expressão religiosa” citada é, emessência, a possibilidade de líderes religiosos, em cultos e sermões, continuaremO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201065a pregar às suas congregações que a homossexualidade é um pecado mortal,que Deus criou homem e mulher para a relação heterossexual e que qualquercoisa diferente disso é uma abominação.O projeto de lei, em que pese realmente se propor a limitar abusos, nãotem como meta primária a censura aos religiosos – muito menos “queimar aBíblia”, como pastores mais exaltados denunciam em entrevistas e reportagens.As principais funções dessa lei seriam impedir empregadores de demitirfuncionários(as) por discriminação de gênero e sexualidade, impor penas maisseveras a quem agride (física ou mesmo verbalmente) homossexuais, além depunir estabelecimentos que tentassem expulsar ou censurar o comportamentoafetivo de casais do mesmo sexo. Uma das questões centrais na argumentaçãoda lei é, justamente, a mesma que provocou os eventos de Stonewall, há quase40 anos: a falta de segurança para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuaise transgêneros em ambientes públicos. O conceito de “segurança”, aqui, nãose traduz apenas na problemática dos assaltos, assassinatos e seqüestros, masem um tipo de violência cotidiana que ainda aflige essa população.São os olhares, as atitudes veladas, os comentários, a violência física everbal, as tomadas de decisão que atrapalham, minam e enfraquecem as condiçõesde vida mais primárias. Quantas pessoas LGBT têm, no Brasil, a possibilidadede expressar, em público, sua afetividade com a mesma “naturalidade” 2e desvelo que os casais heterossexuais? Várias são as pesquisas que tratam dotema da sociabilidade homossexual, em especial no Carnaval, nas Paradas eem determinados ambientes, públicos ou privados, em que a grande concentraçãode pessoas homossexuais age como um estímulo de segurança e confortopara que aconteçam manifestações de afeto sem medo de represálias nemagressões.É importante salientar, porém, que mesmo nesses ambientes e nos pontosespecíficos no tempo em que a manifestação pública da homossociabilidadeé possível – como no Carnaval e nas Paradas – ainda são registrados casos deagressão verbal e física. O que nos leva a questionar a aparente fragilidade desseslocais e momentos, no que tange às questões de segurança. Um exemplorecente é a quantidade enorme de obstáculos que as entidades responsáveis pelaorganização das Paradas têm encontrado, no tocante à liberação de alvarás paraa realização desses eventos. Detalhes técnicos e burocracias que não afetam aconsecução de outros eventos são constantemente levantados por agentes deprefeituras, defesa civil, polícia militar, corpos de bombeiros e outros órgãos,principalmente aqueles voltados para a segurança pública.O Brasil é, atualmente, o país com a maior quantidade de paradas, caminhadase marchas LGBT – são 150 oficialmente registradas pela AssociaçãoBrasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) 3 ,além de mais 33 eventos correlatos (congressos, exposições, festivais etc.) – mas,simultaneamente, é um dos países ocidentais em que os direitos fundamentaisO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010dessa população (como o direito à união civil e/ou casamento, adoção, participaçãoem espólio, pensão ao cônjuge etc.) não são garantidos em lei e dependemde jurisprudências e da boa vontade de promotores e juízes.A propósito dessas ansiedades e perspectivas, o pesquisador SimonHutta 4 veio ao Brasil, entre 2007 e 2008, para realizar uma pesquisa intitulada“Geografias de Violência e Geborgenheit: Lutas Queer pela Segurança noBrasil”, na qual ele fez oficinas e exercícios práticos com grupos focais, registrosem vídeo de paradas e também de uma ampla gama de atividades relacionadasà população LGBT, coletas de informações primárias (diretamente com ossujeitos) e secundárias (com os sujeitos coletando informações com terceiros)e entrevistas. O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa paralelaa uma de suas iniciativas, da qual tivemos a oportunidade de participar,primeiro como sujeito em um grupo focal e, mais tarde, como co-pesquisador,na coleta e consolidação dos dados. Gostaríamos de agradecer ao pesquisadorpelo seu incentivo e apoio na realização desta pesquisa.Ge o g r a f i a, Se x u a l i d a d e e Gê n e ro66A geografia tem percebido um aumento considerável de proposições eteorias em torno do espaço, já não mais no contexto puramente físico, masprincipalmente no sentido das relações sociais e da cultura. As relações entrecorpo e cidade, entre arquitetura e estruturas de controle e entre o avançotecnológico da comunicação e o processo de “desterritorialização” da geografiaclássica constituem um campo de pesquisa bastante frutífero.Os últimos anos do século XX e os primeiros deste século estão marcadospor um efeito de ambivalência nas relações sociais. Graças à tecnologia, oplaneta se tornou uma grande “teia”. A comunicação acelerou processos e criounovas formas de relacionamento. Agrupamentos sociais de diferentes naturezasse formam e se espalham, sem o confinamento geográfico de antes. Usos e costumes,produtos e possibilidades que eram disponíveis apenas a determinadacultura, agora podem ser vistos, sentidos e usados por qualquer um que tenhaacesso à comunicação global. Novas experiências digitais modificam valorestradicionais e as formas de lidarmos com eles, nas ordens tanto do públicoquanto do privado.Por outro lado, vemos movimentos de resistência localizados, em queo sistema comunitário local não se rende aos processos de “pasteurização” incentivadospela globalização. As comunidades se adaptam à tecnologia e aosnovos valores sociais e culturais, aproveitando-os para se lançarem tambémao mundo, sem perderem de vista suas raízes. Os fatos cotidianos e banais dodia-a-dia valorizam e fortalecem as relações comunitárias locais. Os homens“comuns” ganham importância dentro do espaço compartilhado e se tornamatores sociais. A cultura do cotidiano adquire força como noção privilegiadapara interpretar as múltiplas sociabilidades que se estabelecem nas cidades.O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201067O ponto de vista clássico sobre a interação social na cidade eraantes permeado pela lógica iluminista do racionalismo, na qual o estilode vida urbano e moderno se opunha ao modelo tradicional, típico daárea rural e das regiões mais atrasadas em termos de técnica. O espaçoda (con)vivência era substituído, no ambiente urbano, pelo espaço daassociação. Atualmente, percebe-se uma mudança na forma de análisedessas interações, onde se valoriza novamente a comunidade, um conceitoabordado de diferentes maneiras ao longo do tempo, por diferentes autores(MAIA In FREITAS, 2005, p. 36-37). Da mesma forma, as relaçõesentre o corpo e a cidade, sua estrutura arquitetônica, suas múltiplas vozese seus diferentes afetos sociais, emotivos e subjetivos, têm se constituídoem um vasto tema de análise. Para tanto, geógrafos, sociólogos, filósofos,historiadores, comunicadores, psicólogos, biólogos, físicos e pesquisadoresde diversas outras áreas reúnem esforços interdisciplinares para melhorcompreender a realidade urbana que se coloca e quais os seus reaisefeitos em relação à Humanidade 5 .A pesquisa principal que serve de base a este artigo se fundamenta, emgrande parte, nas Teorias Queer, o que implica uma breve exposição inicial sobresua proposta e trajetória. Os Estudos Queer têm como princípio a contestaçãoao modelo que permeia as ciências humanas e sociais: homem, heterossexual,branco, de classe média ou alta e ideologias conservadoras. Observa-seque esse modelo influencia uma série de tendências nos próprios estudos sobrea população LGBT.O estereótipo heteronormativo e suas hierarquias sexuais têm servido,inclusive, como protótipo para algumas das principais iniciativas políticas deintegração social da população LGBT à sociedade (como a definição de “família”e os conceitos relativos à adoção de crianças, a partir do modelo heteronormativo),em vez de propor alternativas ao modelo hegemônico. As TeoriasQueer discordam veementemente de tal postura e procuram não definir hierarquias,nem linearidade, entre os conceitos de gênero, sexo e desejo, partindodo princípio de que há inúmeras configurações possíveis entre esses elementos.Segundo Joseli Silva,na geografia este pensamento se manifesta nos estudos das chamadas“geografia feminista” e “geografia das sexualidades”. A influênciaqueer se desenvolve nas pesquisas geográficas a partir dos anos 90,privilegiando um novo olhar para os enfoques de gênero e sexuais.As(os) geógrafas(os) desta tendência argumentam que não há posiçõesbinárias entre gêneros, mas complexidades de relações que constroemidentidades paradoxais. O ponto central de suas críticas é a “falácia” daoposição hetero/homo sexual que organiza o conhecimento e as açõesdos sujeitos no mundo. Advogam uma política identitária de sujeitosque podem, de forma relacional e processual, transgredir e sustentar ossistemas explorando as relações entre a sexualidade e espaço para revelara vasta disposição de negociação constante entre corpos e lugares.(SILVA, 2007, p.5).O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201068A posição binária entre gêneros, mesmo amplamente criticada na academiacontemporânea, ainda rege o pensamento de boa parte da sociedade, quenão apenas mantém uma hierarquia de valores entre o “masculino” e o “feminino”,como ainda confunde gênero com sexualidade, enxergando gays como“homens femininos” e lésbicas como “mulheres masculinas”. Mais ainda, muitasvezes homens e mulheres homossexuais são tão fortemente influenciadospelos estereótipos impostos pela sociedade que acabam realmente emulando oscomportamentos que essa mesma sociedade lhes atribui, pelos quais os “reconhece”e, na maior parte das vezes, que são motivo de chacota, discriminaçãoe humilhação pública, alienando as pessoas GLBT ainda mais.No caso de travestis e transexuais, que hoje são reconhecidas pela academiae pelo Movimento como pessoas com uma identidade de gênero transitóriae/ou equivocada em relação ao seu corpo biológico (e não mais como “homossexuaislevados ao extremo de modificarem seus corpos”), ou seja, finalmentepercebidas pelo seu gênero e não pela sexualidade, a agressão física, emocionale psicológica é ainda maior, bem como a internalização dos processos discriminatórios.Muitas travestis femininas ainda se veem como homens e ainda seconfundem quanto à própria identidade. As dificuldades de acesso à educaçãoe o isolamento social que lhes é imposto só pioram esse estado de coisas. Seurefúgio é seu território, geralmente próximo à área de prostituição local, emque muitas delas vão viver e morrer. Só há relativamente poucos anos têmsurgido iniciativas no sentido de reduzir a vulnerabilidade dessas pessoas, bemcomo estudos sérios a respeito do seu cotidiano. A propósito da agressão e dadúvida internalizada, registra Silva:Os maiores sofrimentos vividos pelas travestis na infância,por unanimidade, foram na escola. Quando elas resgatamestas experiências, alertam para o fato de que ainda nãohaviam se tornado travestis e realizam evocações que seconfundem com o masculino e o feminino. A expressão“eu ainda era uma gay” é bastante comum, assim como apercepção de que o ser travesti é “mais evoluído” do que oser gay, como se houvesse uma trajetória a ser percorrida portodas as pessoas que não se encaixam no padrão da normado gênero masculino. (SILVA, 2007, p.9).Tal quadro geral de insegurança, repressão emocional e psicológica a quesão submetidas as pessoas LGBT é reproduzido nos depoimentos e exercícioscitados adiante.Ge b o r g e n h e i t n o Rio d e Ja n e i r oO conceito de Geborgenheit sugere, à primeira vista, a tradução como“segurança” ou “proteção”. Entretanto, ele não se limita à ausência de perigo.Geborgenheit é um termo complexo que se refere a um sentimento subjetivode segurança, fundamentado na relação direta do sujeito com o ambiente. EleO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201069pode ser, portanto, traduzido como um misto de “segurança”, “aconchego” 6 ,“conforto”. No caso específico da população LGBT, o “aconchego” tem relaçãodireta com a sensação de ser socialmente aceito. E a aceitação como elementodeterminante do aconchego ocorre, primariamente, em duas vias: umatemporal – ocasiões específicas em que acontecem aglomerações da populaçãoLGBT, como em determinados blocos de – e uma espacial – locais que sãocriados especificamente para a população LGBT, ou por ela apropriados comoáreas de convivência.Na cidade do Rio de Janeiro, há locais que ocuparam posições de destaqueem diferentes momentos e cujos ciclos já se encerraram. O McDonald’s daRua Senador Dantas, na Cinelândia, recebia em meados dos anos 1980 umaclientela específica nas noites dos fins de semana. Travestis e drag queens, antesde fazerem apresentações em boates próximas (em especial no caso das travestis)ou iniciarem mais uma jornada de trabalho na área de prostituição entrea Lapa e a Glória, iam jantar, conversar e trocar informações sobre trabalho.Gays e lésbicas, além de garotos de programa (michês) que trabalhavam na região,também paravam para conversar. Com os problemas com a segurança daárea e uma série de mudanças no ambiente – inclusive o fechamento de várioscinemas, um dos quais deu lugar a um templo da Igreja Universal do Reino deDeus – a frequência diminuiu. O McDonald’s mudou de lugar e, mesmo aindarecebendo públicos diversos, seu caráter de “point gay” se perdeu – excetopara a prática da “pegação”, que será discutida mais adiante.A Rua Visconde Silva, em Botafogo, teve, nos anos 1990, uma concentraçãode casas noturnas voltadas para gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais‘simpatizantes’ (eram bares e boates autodenominados GLS). Foi apelidada pelosfrequentadores de “Rua da Lama” e, à época, a aglomeração em frente às portasdas casas gerou efeitos na própria rua: casais andavam de mãos dadas e se beijavam,com pouco ou nenhum medo de represálias. Mesmo a rua sendo via depassagem de carros e ônibus (o que ocasionalmente abria espaço para uma manifestaçãodiscriminatória), os frequentadores tinham pouco do que se queixar.Ainda há uma ou duas boates no local, mas o ritmo do local caiu muito.A Rua Farme de Amoedo, em Ipanema, há décadas tem sido um localde encontro maciço de gays e, em menor número, de lésbicas. Um domingode verão na “área gay” da praia (delimitada por bandeiras do arco-íris emquiosques na areia) não é considerado completo sem uma ida à porta do Bar“Bofetada”. No Carnaval, quando a Banda de Ipanema (um exemplo de agrupamentocom limites temporais) se dispersa, a maior parte das pessoas fica naFarme. A concentração de homens de sunga gera um clima de libido exacerbadae, no Carnaval, excessos que beiram o atentado ao pudor não são incomuns.Porém, mesmo nesse “recanto paradisíaco”, há problemas. Nos anos 1990, umgrupo de rapazes autodenominados “judocas” (supostamente praticantes dejiu-jítsu) atacava casais e agrupamentos na rua e provocava tumultos à porta do“Bofetada”. Recentemente, um grupo chamado “Farmeganistão” (em citaçãoO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201070aos conflitos sangrentos do Afeganistão), formado por moradores das redondezas,iniciou um movimento violento e repressivo para expulsar a populaçãoLGBT da área, sem sucesso. A Farme resiste bravamente às ondas de homofobiaque vêm se chocar contra suas mesas e balcões.Desde o final dos anos 1990, a Rua Almerinda Freitas, em Madureira,começou a testemunhar por um fenômeno gregário semelhante. Rua comercialdurante o dia, nas noites de quarta-feira ela passou a reunir gays, lésbicas,bissexuais e ‘simpatizantes’. A boate “Papa G” atraía grande público e, mesmoquando ela fechou as portas, os encontros permaneceram, com a presença deum notável contingente de menores de idade, que não poderiam ainda frequentarbares e boates. O fato de a rua ter pouco movimento à noite e estar localizadano centro de Madureira, perto de várias vias de acesso para trens, ônibus evans, ajudou a promover sua fama como “point” da noite LGBT suburbana. Aboate reabriu e fechou para reformas várias vezes, mas o movimento permanecee o espaço da rua (que em outras noites é um “não-lugar” antropológico 7 ), édominado e transformado em espaço festivo, quase “dionisíaco”. Drags andam“montadas” (maquiadas e em trajes femininos) e casais se beijam sem medo.O genius loci (espírito do lugar) que se apossou daquele espaço parece ser, semdúvida, um “espírito do arco-íris” 8 .Pr o p o s t a, Me t o d o l o g i a e Re s u l t a d o s Pr e l i m i n a r e sA pesquisa principal, ainda em andamento e que faz parte do projeto dedoutorado do pesquisador Simon Hutta, se compõe de diferentes metodologiasde coleta de dados acerca da subjetividade da população LGBT brasileira, noque se refere às questões de segurança, aconchego e aceitação, nos diferentesespaços urbanos.Tivemos a oportunidade de participar de um grupo focal da populaçãoLGBT como sujeito e, mais adiante, como co-pesquisador, na coleta, transcriçãoe análise preliminar de informações obtidas no próprio grupo e, também,de outras pessoas LGBT por meio de entrevistas. Os resultados a serem aquiapresentados representam uma fração do que ainda está sendo consolidadopara uma análise mais profunda. Chamou nossa atenção, todavia, que mesmoem um estágio inicial, algumas respostas se repetem com notável frequênciae parecem transmitir um sentido comum a algumas ansiedades e perspectivasdas minorias sexuais nos centros urbanos.A participação foi voluntária; foram assinadas permissões de registroanônimo dos depoimentos (os sujeitos serão identificados por iniciais e idades),concentrando-se nos hábitos afetivos de cada sujeito. Por “hábitos afetivos”,entendemos suas atividades cotidianas no que se refere à expressão de sua afetividadee sexualidade: frequentar ambientes voltados para o público LGBT,namorar, manter relações sexuais etc. O grupo acolheu heterossexuais que frequentamambientes LGBT e/ou que têm amizade e respeito por essa populaçãoO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010(‘simpatizantes’). Foram realizadas 10 reuniões, com frequência variada (nemtodos os sujeitos vinham a todas as reuniões e às vezes traziam outras pessoas).Só um sujeito era menor de idade (16) e uma permissão foi obtida para suaparticipação. Dos sujeitos (cerca de 10 frequentadores fixos e mais seis pessoasentrevistadas), a maior parte era formada por gays entre 21 e 40 anos. Nãohouve participação significativa de travestis (duas foram a uma reunião, masnão participaram da oficina). Em meio às conversas, oficinas e entrevistas, foramcolocadas, em destaque, as seguintes questões:- Quais são os seus lugares favoritos na cidade?- O que te faz sentir confortável ou seguro?- Existem espaços ou locais que você detesta ou teme?- Existem locais ou momentos onde você se sente mais à vontade para expressaros seus afetos e paixões do que em outros?71As respostas e os comentários variaram relativamente pouco. Com a notávelexceção do menor de idade, que tinha pouca experiência com a vida noturnae pouco conhecimento geográfico da cidade 9 , os sujeitos disseram se sentirmais seguros e confortáveis para expressar afetividade à noite, no Centro do Riode Janeiro (principalmente na Lapa), na Zona Sul (Copacabana e Ipanema) eem Madureira, além de citarem algumas boates e bares LGBT de outras áreas.Quanto à questão da segurança propriamente dita, manifestou-se um aparenteparadoxo relativo à polícia: a presença dela (em especial da PM) dá uma sensaçãode segurança em relação a assaltos, mas ao mesmo tempo inibe a manifestaçãode afeto – fruto, segundo os próprios sujeitos, de anos de repressão a gays, lésbicase travestis por parte da autoridade policial, além de comentários sobre despreparopara lidar com questões LGBT e, ainda, corrupção:Já aconteceu de uma patrulhinha nos parar porque estávamos andandode mãos dadas e nos beijando na rua. Deram uma “dura” nagente e disseram que beijo entre homens era “atentado ao pudor”. Aí,tentaram fazer com que nós oferecêssemos dinheiro. Só quando eume apresentei como jornalista, disse que não teria problema em ir àdelegacia e mostrei que não tinha medo deles, foi que eles recuaram enos mandaram ‘circular’. Mas, até ali, nos trataram como se fôssemoscriminosos!” (“E”, 40).Essa sensação de insegurança perante a autoridade vem se associar às questõescitadas anteriormente acerca da falta de iniciativa dessa mesma autoridadeem apoiar eventos de conscientização da população LGBT, como as paradas.Um outro fato que chamou a atenção foi de que a maior parte dos sujeitosassociou automaticamente “expressão afetiva” com “relação sexual”. Comono caso de “R”, 27:Para mim, o espaço de expressão de afeto é o motel. Eu não frequentoa noite gay, meu namorado gosta, mas eu não gosto. E minha famíliaé crente (sic). Então, minha única opção é o motel. Quando não é noO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010carro. Isso acontece: nós vamos de carro até um motel que está lotado.Enquanto esperamos na fila, transamos dentro do carro. Os vidros sãoescuros, ninguém vê. Aí, acabamos damos a volta e saímos da fila. Evamos fazer um lanche.Em mais de um caso, o sujeito fez uma separação clara entre afeto esexo casual:Minha mãe sabe de mim, mas eu a respeito 10 . Se é um lance demomento, ou se estou só ficando, eu levo pro motel. Só se a coisafica séria, vira namoro mesmo, depois de um mês ou mais, aí eu levopra casa, apresento à minha mãe. Mas, beijo, sexo, só no meu quarto,depois que ela vai dormir.” (“M”, 28)72A partir dos depoimentos, oficinas e entrevistas, evidenciou-se um quadrode experiências que mostram uma profunda necessidade insatisfeita deespaço para manifestar afeto entre pessoas do mesmo sexo, paradoxalmente limitadapor um sentimento de insegurança e por uma “homofobia internalizada”por parte dos próprios sujeitos. Além do medo de expressar sua sexualidadeem público, as pessoas guardam ranços de criação e da cultura dominante, quedeterminam que qualquer manifestação aberta de afeto e intimidade é “desrespeitosae inadequada”.No caso da homossexualidade, que por si só é considerada “obscena”e “pecaminosa”, as duas situações de inadequação se adicionam e se completam,gerando uma repressão que parte da própria população reprimida.Os espaços de convivência e livre manifestação são, principalmente, boates,bares e motéis, além do próprio lar em casos específicos. A ideia de andarde mãos dadas na rua ou de beijar em público ainda incomoda muitos dospróprios sujeitos que sofrem a repressão da sociedade e acabam projetandoessa mesma repressão em suas vidas.Resta, então, às pessoas LGBT, a sociabilidade dionisíaca que age comoagente gregário. Maffesoli, falando das forças de coesão social que garantema sobrevivência da cidade, diz que ela “contém em si outras entidades do mesmogênero: bairros, grupos étnicos, corporações, tribos diversas que vão seorganizar em torno de territórios (reais ou simbólicos) e de mitos comuns”(MAFFESOLI, 1998, p. 171-172).É nos encontros em recantos escuros e ambientes marginalizados queessa população – mesmo reproduzindo a mesma ordem heteronormativaque a discrimina – tem espaço para se expressar e se relacionar, sem medode ser feliz.Para Giddens, a história da sociedade moderna é uma história emocional,de buscas sexuais dos homens, mantidas separadas de suas identidades públicascomo “homens de família”. Uma história que independe de orientaçãosexual: por causa da distância entre a prática sexual homossexual e a reproduçãoda espécie, torna-se claro para ele que os homossexuais foram mais bemsucedidos nessa busca, por ela estar dissociada, desde o princípio, da separaçãoO Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201073de gêneros e suas funções sociais estabelecidas historicamente, mesmo quandoo relacionamento homossexual imita o modelo heterossexual no tocante àsrelações de poder e gênero (GIDDENS, 1993, p. 138; 217). É na prática da“pegação” que a busca se evidencia ainda mais.“Pegação” é um termo usado, no meio heterossexual, para definir a buscade parceiros(as) em festas, encontros e danceterias. Ele tem, contudo, sua origemno ambiente gay, no qual indica a procura anônima, imediata e impessoalde satisfação afetiva e/ou sexual, geralmente em cantos discretos e/ou fechadosdentro de ambientes públicos. Ela varia desde olhares ávidos que se trocam emsilêncio e à distância, até a masturbação mútua, a felação e mesmo relação asexual completa. A prática da pegação chega a constituir uma “tradição” emalguns locais, como banheiros de shopping e rodoviárias, alguns parques ànoite, becos e praias, entre outros.Maffesoli (1985, p. 40-41) salienta que um dos efeitos negativos dadomesticação dos costumes é esquecer que a efervescência é necessária a todaestruturação social. Ele fala de uma “incontinência” que, sem ser exclusiva deindivíduos marginais e não integrados à sociedade, remete àquilo que é “encoberto”.Para o autor, esse comportamento dionisíaco é fundamental para amanutenção da sociedade “formal”, no sentido de oferecer um contrapontoque reforça e confirma a regra. Não por acaso, ele enfatiza o papel fundamentalque a diversidade das manifestações sexuais – como a masturbação,a prostituição, a homossexualidade e o travestismo, entre outras – exerce naprópria base da estrutura produtiva da sociedade capitalista, complementandoo pensamento de Giddens.Um exemplo claro do que acontece nesses ambientes é o que foi registradona pesquisa de 2003, na Rua Almerinda Freitas, em Madureira:Durante todo o evento, as conversas, normalmente em torno detrivialidades, quase sempre voltam ao tema do sexo – falando dele,referindo-se a relacionamentos (factuais ou potenciais) dos participantes,ou comentando, com olhares curiosos, a aparência de determinadohomem que circula no espaço. O jogo visual tem um caráter significativo:a roupa, os acessórios e a maneira de andar e se movimentarchamam a atenção, atraem, repelem (...) há de se notar que o própriomeio social – permeado de valores religiosos e conservadores – induz aque haja um movimento de resistência, no qual a sedução sutil aindaé cultivada e valorizada. Isso é mais claro no meio homossexual, ondeainda é necessário esconder sentimentos, disfarçar atitudes e comportamentos.(PERET, 2006, p. 11-12).Conforme se pode perceber, os encontros semanais na rua – mais até doque a pegação mais explícita que acontece durante toda a semana no MadureiraShopping e que é fortemente reprimida, pelo seu caráter de ilegalidade e atentadoao pudor – oferecem aos seus frequentadores um profundo sentimentode satisfação, segurança, participação, aceitação e, em consequência disso, deaconchego.O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Co n s i d e r a ç õ e s Finais74O recorte feito nas entrevistas, mesmo pequeno, foi bastante significativo.A aleatoriedade na origem, grau de instrução e nível de poder aquisitivo dossujeitos entrevistados nos pareceu suficiente para o protocolo metodológico emuso, como garantia da não interferência desses fatores nos resultados. Em umabreve comparação com os resultados das 300 entrevistas realizadas na pesquisade 2003, algumas posições se mantêm claras.Nas entrevistas e oficinas, ficou evidente que ainda há um longo caminhoa ser trilhado, não limitado à elaboração de políticas públicas e naaprovação de lei que garantam a segurança, os direitos civis e a cidadania dapopulação LGBT, mas estendido a uma mudança geral na cultura. Não adiantahaver uma lei que reconheça a união civil e/ou o casamento homossexual,se casais de gays e lésbicas não se sentem livres para sair à rua de mãos dadasou trocar beijos e carinhos em público, por medo de represálias, às vezes daprópria polícia que deveria protegê-los. É importante que haja uma legislaçãoclara para ajudar a identificar e punir a discriminação, mas mais importante éque as origens dessa discriminação sejam estudadas, reconhecidas e desfeitasna fonte. É primordial que pais e professores – pois é no seio da família e nointerior da escola que a discriminação e o isolamento começam – haja capacitação,vontade de agregar, aceitação da diferença e da diversidade.As reações das pessoas entrevistadas expõem um desejo de integração àsociedade, ora pelo reconhecimento de seu direito de expressar seus sentimentose afetividade, ora pela adequação à noção hegemônica de “família” comoum casal monogâmico com filhos. O que não dá suporte às estratégias dionisíacasde apropriação de espaços para a prática da pegação e do relacionamentofugaz e anônimo. Há aqueles teóricos que creem que a pegação é meramenteuma reação aos processos discriminatórios que forçam gays, lésbicas, bissexuaise travestis a se esconderem e manterem seus relacionamentos em segredo. Énosso entendimento, contudo, que a pegação é inerente à construção social e àhistória das relações humanas.O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Sobre o processo de “naturalização” - expressa na “aceitação como natural” - docomportamento afetivo heterossexual, vide FURLANI, 2003.3Para mais informações e uma lista detalhada, vide .4Mestre em Psicologia pela Universidade Livre de Berlim e doutorando emGeografia Humana pela Universidade Aberta de Milton Keynes, Grã-Bretanha. Perfilno disponível no site da Universidade: .5Para uma visão mais ampla do estado da arte das pesquisas envolvendo geografiasocial, cultural e da sexualidade, sugerimos BINNIE e VALENTINE, 1999.6Após a explicação inicial dos elementos que envolviam o conceito deGeborgenheit, mediante sugestão coletiva do primeiro grupo focal, Hutta passoua usar “aconchego” ao invés de “segurança” como tradução mais completa dotermo.7AUGÉ, 1994.8Vide resultados completos da pesquisa realizada na Rua Almerinda Freitas e aproposição sobre o seu “genius loci” em PERET, 2006.759Esse sujeito foi o único que citou a internet como espaço de expressão de homoafetividade.Pode haver uma relação entre a idade e o acesso à tecnologia quepossa explicar essa conduta. Não há dados suficientes para confirmar nem desmentiressa hipótese.10Vale notar que o conceito de “respeito” aos pais e aos filhos pequenos – nosentido de evitar manifestar afeto e/ou intimidades na presença deles – transcendea sexualidade e a identidade de gênero, fundamentando-se em raízes culturais profundas,relativas à religião e à organização familiar. Vide FURLANI, 2003O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasAUGÉ, Marc. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.Campinas: Papirus, 1994.BINNIE, Jon; VALENTINE, Gil. Geographies of sexuality - a review ofprogress. In: Progress in Human Geography. Londres, v. 23, n. 2, 1999.FREITAS, Ricardo; NACIF, Rafael (org.). Destinos da cidade. Rio de Janeiro:Eduerj, 2005.FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,1988.FURLANI, Jimena. Mitos e tabus da sexualidade humana. Belo Horizonte:Autêntica, 2003.GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismonas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993.76LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro:Aeroplano, 2002.MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionísio: contribuição para uma sociologiada orgia. Rio de Janeiro: Graal, 1985.______. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense, 1988.PERET, Eduardo. A Consagração do GAYnius Loci: Os Encontros deMadureira. Anais do III Congresso da ABEH. Belo Horizonte: UFMG, 2006.SENNET, Richard.Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2001.SILVA, Joseli Maria; IELO, Frederico de Paula. A produção do espaço interditona experiência cotidiana do sujeito transgênero. In: VII Encontro Nacionalda ANPEGE. Niterói, v. 1. p. 1-16, 2007.O Pegação, Cidadania e Violência: as Territorialidades do Imaginário da População LGBT do Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010“O que é bello é parase ver, só o feio é immoral”:o processo disciplinador dos corpos deatrizes na mídia impressa nas últimasoito décadas 1“What is bello is to see, just the ugly is immoral”: thedisciplinarian process of actresses´s bodies in mediapress in the last eight decadesLuiza Real de Andrade Amaral | lulureal@oi.com.brMestre em Comunicação social pela <strong>UERJ</strong>.ResumoAtualmente, muito se fala sobre a estética feminina, especialmente, na mídia. São inúmeraspublicações e programas de televisão dedicados ao assunto, além das reportagenssobre celebridades que, frequentemente, discutem a (boa ou má) forma física dascelebridades. Mas será que esta preocupação é tão recente quanto geralmente imaginamos?Durante uma pesquisa realizada no arquivo do jornal O Globo, nos deparamoscom o especial Um inquérito esthético, publicado 1926, que reproduzia textos comdeclarações pejorativas em relação às formas femininas das atrizes da época. Este artigopretende identificar as similaridades entre o imaginário sobre o corpo da mulher publicadona série Um inquérito esthético e em matérias mais recentes, principalmentepela revista Veja, entre 2007 e o primeiro trimestre de 2008. Para compreendermosmelhor a questão do corpo e realizarmos a análise pretendida, utilizaremos como referênciasteóricas conceitos como o de técnicas corporais de Marcel Mauss, o de corposdóceis de Michel Foucault e o de dominação masculina de Pierre Bourdieu.Palavras-chave: Corpo; Representações; Imaginário; Mídia.AbstractCurrently, much is said about feminine aesthetics, especially in media. There are manypublications and television programs dedicated to this subject, in addition to reporting oncelebrities which often discuss the (good or bad) physical form of celebrities. But does thisconcern is as recent as generally imagined? During a survey conducted in the archives of OGlobo, we were faced with the special Um inquérito esthético, published in 1926, whichreproduced texts with derogatory remarks about the forms of the female actresses of the time.This article aims to identify the similarities between the imaginary on the woman’s bodypublished in the series Um inquérito esthético and in latest materials, mainly by Veja magazine,between 2007 and the first quarter of 2008. To better understand the issue of bodyand perform the desired analysis, we will use theoretical concepts such as body techniquesfrom Marcel Mauss; the docile bodies, from Michel Foucault and the male domination,from Pierre Bourdieu.Keywords: Body Representations; Imaginary; Media.“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o78“Mulher musculosa não vende bem na avenida.” 2 É assim que o personaltrainer Xande Negão explica a mudança no treinamento de Gracyanne Barbosa,semanas antes do carnaval. A dançarina – conhecida por ostentar músculos bemdefinidos (considerados por alguns como muito masculinos) – se preparava, então,para ser pela primeira vez madrinha de bateria de uma escola de samba doRio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira. Para isso, Gracyanne decidiutrocar a rotina de exercícios pesados e emagrecer seis quilos.A declaração do profissional de Educação Física reforça a concepção deque para se destacar no desfile de escolas de sambas, as mulheres precisam deum corpo feminino, cheio de curvas. O corpo desenhado não somente pormúsculos, mas pelo contraste entre busto, cintura e quadril. Um corpo que fazreferência à fertilidade, como o das esculturas pré-históricas de Vênus.Devemos lembrar que o carnaval carioca é uma manifestação da culturabrasileira conhecida internacionalmente, que sofre grande cobertura de diversosveículos midiáticos. As madrinhas de bateria, geralmente integrantes daclasse artística, recebem atenção especial dos media, que as acompanham desdeos seus processos de preparação (como treinamentos físicos e tratamentosestéticos) até a sua apresentação durante o desfile.Com isso, o corpo das madrinhas de bateria acaba sendo divulgadocomo exemplo de beleza brasileira. Logo, se o corpo cheio de músculos não éo que “vende bem na avenida”, também não seria o que satisfaz os principaispadrões estéticos brasileiros. Os músculos, ao contrário das curvas, não são apreferência nacional.A princípio, a crítica à masculinização do corpo da mulher parece recente.Ela faria parte de um conjunto maior de julgamentos à nova postura femininaapós a segunda metade do século XX. A busca por igualdade nas relaçõessociais e de trabalho também se tornaria física através de um novo culto aocorpo. Além de trabalhar fora e virar chefe da casa (ocupando, muitas vezes, opapel de provedora da família) – entre outras atribuições – a mulher tambémpassou a cuidar-se de formas diversificadas.A presença feminina em academias de ginástica e em esportes antes ditosmasculinos tornou-se frequente. Hoje em dia, vemos meninas boxeadoras, skatistas,surfistas e halterofilistas, o que às vezes causa um certo estranhamento:mulheres que, mesmo não masculinizadas, não aparentam mais tanta fragilidadefísica. Mas será que esta preocupação em relação ao corpo feminino é tãorecente quanto geralmente imaginamos?Inicialmente, ao pensarmos um trabalho sobre as representações do corpo,tivemos a idéia de, inicialmente, comparar as alterações físicas dos corposdas primeiras e das mais recentes madrinhas de escolas de samba da cidadedo Rio de Janeiro. Porém, ao realizarmos uma outra pesquisa (sobre a“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010representação do samba no jornal O Globo na década de 20), deparamos-noscom o especial Um inquérito esthético, publicada pelo periódico dentro da suacoluna O Globo no Theatro (dedicada à critica teatral) durante os meses de janeiroe fevereiro de 1926. O objetivo da série era discutir a legitimidade do nuartístico em espetáculos brasileiros.Ao lermos os textos redigidos por renomados diretores e autores teatrais,nos surpreendemos com o número de declarações pejorativas em relação aofísico das atrizes da época. Após entrarmos em contato com este material, nãopudemos deixar de traçar um paralelo entre as abordagens sobre o corpo femininorealizadas atualmente e as veiculadas há mais de 80 anos.Por esta razão, decidimos identificar similaridades nas representaçõessobre o corpo da mulher na série Um inquérito esthético e em matérias maiscontemporâneas publicadas, principalmente pela revista Veja entre 2007 e oprimeiro trimestre de 2008. Para compreendermos melhor a questão do corpoe realizarmos a análise pretendida, utilizaremos como referências teóricas conceitoscomo o de técnicas corporais, de Marcel Mauss; o de corpos dóceis, deMichel Foucault e o de dominação masculina, de Pierre Bordieu.79Um inquérito e s t h é t i c o: a q u e s t ã o d o n u a r t í s t i c o n o t e a t ro n a c i o n a lEm 26 de janeiro de 1926, o jornal O Globo propôs, em sua coluna,O Globo no Theatro, uma discussão acerca do nu artístico. Inspirada em debatesrealizados na França sobre o mesmo tema, a série especial, intituladaUm inquérito esthético, trouxe notas escritas por renomados autores e diretoresteatrais da época.Ao todo, foram divulgados <strong>14</strong> textos entre 26 de janeiro e 18 de fevereirode 1926. Destes, somente três – assinados por Marques Porto, Gama eSilva e Ad. Pajuna – se mostraram contrários à nudez artística. Entre as razõesapresentadas está o grande número de analfabetos no país, o caráter desnecessárioda inserção de tais atos em tramas cênicas e, até mesmo, o crescimentodo número de ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis.As outras notas se mostraram favoráveis à nudez, principalmente quandoesta estivesse relacionada ao contexto do espetáculo encenado (o que a caracterizariacomo artística). Não raramente, foram citados exemplos de comooutras formas artísticas, tal qual a pintura, sobreviveram graças à exibição danudez. “As mais notáveis obras de arte têm sido inspiradas no nu. Vênus deMilo, Suzanne no banho de Tintorette, A pequena banhista de Ingres, imortalizaramseus autores. O Vaticano é um verdadeiro museu dessas maravilhas”(Um inquérito esthético, O Globo, 04/02/1926). Além disso, para muitos, ovalor indecente do nu estaria mais nas intenções da platéia do que nos objetivosde diretores e autores, como podemos observar em declarações como:“Impede, porém, a educação do espectador saber admirar este espetáculo artístico.A obscenidade está não no nu, mas no espírito de quem vê” (Um inquérito“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201080esthético, O Globo, 03/02/1926) e “O nu artístico só é immoral para os immoraes”(02/02/1926).Mesmo sendo aprovada pela maioria dos pesquisados, a nudez artística nãoera bem-vista nos espetáculos brasileiros. Nem tanto pelo comportamento do público,mas devido às escolhas dos elencos das companhias teatrais. Não raramente,os autores se diziam mais favoráveis ao maillot (ao uso do maiô) do que à nudez,pois ele esconderia as péssimas condições dos corpos das coristas femininas.Foi possível encontrar críticas como “[...] acho que o maillot não deveser abolido. Em muitos casos, elle tem ‘talento’ (como se diz em gíria theatral),para corrigir na morphologia externa do corpo humano, muitas semanas que,sem elle, seriam ‘senões’ [...]” (27/01/1926), “Sou, pois, a favor do nu, masquando este mostra o bello. Emquanto, porém, nos nossos theatros não se escolhepernas dignas de serem artisticamente apreciadas, que venha o maillot emuito algodão por baixo” (02/02/1926), “Sou pelo nu expressão da arte, desdeque o pêlo nu seja uma perfeição da cabeça ao tornozello. Porém, forçoso éporvir que não deve uma beldade a meia ou o maillot despir se não tiver, emverdade, de deusas linhas perfeitas” (06/02/1926) e “Além disso, para que o nuseja realmente esthético, é mista que o corpo que o exhiba seja perfeito e de linhasrigorosamente harmoniosas, e nós temos visto, no gênero, pernas e braçosdeformados, constellados de marcas [...]” (09/02/1926).Até mesmo um dos textos contrários ao nu artístico, o de Ad. Pajuna,dedicou-se a julgar as formas femininas: “O corpo feminino (falo em these ealiás com audácia, pois não tenho prática no assunto) perdeu todo o encantoque lhe dava a fraqueza, que era a sua maior força” (18/02/1926).É importante ressaltarmos que apenas uma nota, a assinada por RaulPederneira, fala sobre a nudez masculina: “Se há ‘nu artístico’ em theatro, deveser elle epiceno e não exclusivamente feminino, como quase sempre acontece”(27/01/1926). Ademais, nenhuma crítica foi feita em relação ao físico dos atores.Notamos, então, que a responsabilidade de se ter um corpo digno de seradmirável nu restringiu-se somente às mulheres.Este tipo de “obrigação” ainda pode ser encontrado nos dias atuais,quando observamos a preocupação de atrizes em manter um rígido padrão debeleza durante a sua carreira tentando, inclusive, retardar as ações do tempo. Éeste fenômeno, que pôde ser observado pelo menos nas últimas oito décadas,que pretendemos discutir a seguir.as a t r i z e s e a d o c i l i d a d e d e s e u s c o r p o sUm dos melhores momentos de nudez feminina em filmes que eu já vifoi a de Isabella Rosellini em Veludo azul. Era um corpo não-malhado.Na década de 1980, depois da Madonna, os padrões mudaram. Nosfilmes de praia da década de 1960, as garotas são bonitas, mas elas nãotêm coxão e as barriguinhas não são duras. Não se vê mais isso.”(apudGOLDENBERG, 2002, p. 26)“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201081Esta declaração, feita pela atriz Rosie Perez (conhecida por protagonizaruma cena de nudez com cubos de gelo no filme Faça a coisa certa, de SpikeLee), demonstra como as intérpretes femininas se sentem pressionadas a exibirum corpo esteticamente perfeito.Apesar de não serem os mesmos dos dias atuais, os padrões estéticos nãopassaram a ser considerados quesitos de avaliações de desempenho e de sucessode atrizes só recentemente. Em seu trabalho No universo da beleza: notas de camposobre cirurgia plástica no Rio de Janeiro, Alexander Edmonds informa que, em1923, a atriz norte-americana Fanny Brice já chamava a atenção do público porter operado o nariz a fim de, segundo ela, se adequar a um maior número depapéis. Este tipo de cirurgia foi exaltada, alguns anos mais tarde, pelo cirurgiãoWilliam Wesley Carter, que definiu um nariz bem formado como “fator decisivo”para o sucesso nas telas de cinema (EDMONDS, 2002, p. 222).Como exemplo da alternância dos padrões estéticos vivenciado pelasatrizes, atualmente, podemos citar a troca das intervenções cirúrgicas no narizpela implantação de próteses de silicone nos seios. Em uma matéria da revistaVeja sobre o cirurgião plástico Carlos Fernando de Almeida, a atriz PaulaBurlamaqui afirma que: “Escolhi o Carlos Fernando porque ele faz os melhorespeitos que já vi” (O doutor mão leve, Veja 31/10/2007). Paula pretendia colocaruma prótese de, no mínimo, 300 mililitros, mas concordou com a sugestãode 175 mililitros. De acordo com o cirurgião, o importante é que o implantenão pareça artificial. Logo, notamos que a preocupação não é só atingir umadeterminada forma física, mas também aparentar uma beleza natural.Mas por que a aparência é considerada requisito para o sucesso mais comumenteentre as atrizes? Para Pierre Bourdieu, em A dominação masculina, amulher é vista pela sociedade sob a ótica das trocas – inicialmente, as realizadasatravés das relações de casamento – o que a transforma em um objeto simbólico.A mulher tornou-se um objeto de troca que segue os interesses masculinos. Porisso, o corpo feminino tem de estar sempre apresentável, tem de ser obediente e,para tanto, deve ser mais frágil do que o corpo do homem. (2003, p. 56).O conceito de corpo como objeto simbólico e administrado através dedominação também é estudado por Michel Foucault em seu conceito de corpodócil. Para Foucault: “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode serutilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (2008, p. 118).De acordo com o filósofo, é um exemplo de docilidade o corpo dosoldado. Se até o século XVII se escolhiam os integrantes do exército entreos camponeses com características físicas específicas (como ombros largose braços longos), a partir da segunda metade do século XVIII, o soldadocomeçou a ser moldado:[...] de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-seaos poucos as posturas; lentamente uma coação calculadapercorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto,“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010torna-o perpetuamente disponível, se prolonga, em silêncio, no automatismodos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foidada a “fisionomia do soldado”. (Ibid, p. 117)82Ou seja, o corpo dócil assume o papel de corpo-máquina. Neste ponto,podemos encontrar uma interseção entre Foucault e Marcel Mauss. Ao trabalharo conceito de técnicas corporais, Mauss também leva o corpo ao status demaquinaria, ao afirmar que ele é “o primeiro e o mais natural instrumento dohomem” (1974, p. 217). Para aproveitar o uso deste “instrumento”, o homemdispõe de técnicas corporais – “maneiras como os homens, sociedade por sociedade,sabem servir-se de seus corpos” (Ibid, p. 211). Segundo Mauss, as formascomo dormimos, andamos e até mesmo utilizamos salto alto são técnicas corporais.Afinal, são modos característicos de um uso não-natural do corpo emdeterminado grupo social.Foucault também ressalta que, para atingir as suas funções específicas,o corpo precisa de técnicas e deve ser constantemente preparado através dasdisciplinas, “métodos que permitem o controle minucioso das operações docorpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem umarelação de docilidade-utilidade” (2008, p. 118).Estas disciplinas objetivam transformar os corpos em capacidades. Elaspossibilitam o surgimento de uma “mecânica do poder” que “define como sepode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façamo que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo arapidez e a eficácia que se determina” (Ibid, p. 119).É através da disciplina que o indivíduo aprende a aprimorar a relaçãoentre o gesto e o resto do corpo. Para utilizar bem o “corpo-instrumento”, nadapode ficar parado: o corpo todo é o suporte para uma ação. Uma corista, porexemplo, não utiliza somente os pés para dançar: há as posturas de colunas,braços e pernas, além de tensões de músculos do corpo inteiro que são necessáriospara que ela realize apenas um passo de sua coreografia.Ou seja, para se tornar atriz, a mulher tem de disciplinar-se, conhecernão só as técnicas de interpretação, mas também as outras formas de disciplinado comportamento feminino. De acordo com a antropóloga MirianGoldenberg, as mulheres, dentro do processo de dominação masculina propostapor Bourdieu, sofrem uma dependência simbólica: “elas existem primeiropelo, e para, o olhar dos outros, como objetos receptivos, atraentes,disponíveis” (2004, p. 75).Portanto, a fim de se obter sucesso na carreira artística, não adiantasomente saber decorar textos, interpretar, ter domínio de coreografias e impostaçãode voz: a atriz tem de estar de acordo com o que se espera do papelfeminino na sociedade. Para tanto, é possível identificarmos técnicas que vãose modificando no decorrer dos anos.“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Em seus estudos, Mauss já havia observado mudanças cronológicas nastécnicas de natação:Outrora, ensinavam-nos a mergulhar depois de termos nadado. Equando nos ensinavam a mergulhar, ensinavam-nos a fechar os olhos,depois a abri-los na água. Hoje em dia a técnica é inversa. Toda aaprendizagem é começada habituando a criança a permanecer na águacom olhos abertos. (1974, p. 212)Também é possível verificarmos diferenças nas técnicas que as atrizesutilizavam para atingir o padrão estético de sua época. Conforme os estudosde D. B. Sant’Anna sobre o embelezamento feminino, até a metade do séculoXX, as mulheres eram incentivadas a mascarar seus defeitos estéticos comtruques de roupas e maquiagem: as intervenções cirúrgicas só deveriam serutilizadas em último caso (apud EDMONDS, 2002, p. 215). Na nota Uminquérito esthéthico, assinada por Cândido Costa, há a descrição destes processosde embelezamento:83O nu artístico em theatro só merece esse nome isento de maillot, a suaexhibição nada tem de immoral; seu fim é pôr em relevo os contornos,as perfeições, a vida, o natural; admira-se-o como quando se estádiante de uma estátua; deve, porém, restringir-se aos corpos de linhasimpecáveis, não aos que vemos por ahi, em maioria: formas... Semformas. Mostrando, apenas, o que se pode conseguir com uma vasoirou uma gillete para escanhoar tíbias e axilas; depois, grossa camada devaselina e talco; ainda por cima flores e garatujas a bistrê e batom rougenas rótulas! Será isso nu artístico? Não, isso é camouflage. (Um inquéritoesthético, O Globo, 08/02/1926)Nas últimas décadas, contudo, procedimentos mais invasivos como cirurgiasplásticas, tratamentos e treinamentos intensivos em academias de ginásticastornaram-se técnicas comuns para adequar os corpos femininos àsdemandas estéticas contemporâneas. O que, de acordo com Edmonds, torna aidentidade “cada vez mais expressa, exibida e revelada no corpo físico” (2002,p. 216). Estas novas técnicas disciplinares podem ser observadas nos trechosabaixo, retirados de duas matérias da revista Veja:Os músculos do corpo humano funcionam como uma espécie demotor bioquímico. [...] A fonte de energia desse processo todo éuma substância chamada trifosfato de adenosina. Os estudiososdos processos bioquímicos do organismo conhecem-na pela siglaATP, mas os leigos podem chamá-la simplesmente de... GracyanneBarbosa. A dançarina sul-mato-grossense de 25 anos é um prodígiode aumento muscular. Aos 15 anos, já media 1,75 metro, maspesava apenas 45 quilos. Com dedicação incondicional aos exercícios,moldou o corpo e se transformou quase numa fisiculturista.Faz uma hora diária de exercícios aeróbicos pesados, mais trêssessões semanais de musculatura de nível profissional: enfrentaquatro séries de oito agachamentos segurando uma barra de ferrode 180 quilos, anda 30 metros agachando-se a cada passo com 70quilos nas costas, e no leg press, o aparelho para exercitar as coxas,empurra uma plataforma com meia tonelada. (Quanto mais exercíciomelhor?, Veja, 06/02/2008)“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010E:Bem instalada em sua poupança poderosa, Sabrina (Sato) se dá ao luxoda preguiça. Quando resolve aparecer na academia, faz um circuitoexaustivo, intercalando aparelhos de musculação com esteira. “Deveriadurar uma hora. Mas ela está sempre atrasada e não fica aqui mais doque 45 minutos”, resigna-se seu treinador. Adianta? Em sendo Sabrina,ora se adianta – basta olhar para o portentoso nível de delineamentojustamente da reticente batata da perna. Sabrina compensa a falta dedisciplina na musculação com recursos muito próprios: frequentementetroca o elevador (mora no 16º andar) pela escada, que sobe de doisem dois degraus, faz agachamentos enquanto toma sol na piscina e,que ninguém nos ouça entregar semelhante intimidade, “fora de casasó faço xixi em pé”. A drenagem linfática é semanal, no salão de belezaque abriu com a irmã no bairro de Vila Clementino, em São Paulo.“Sempre peço para pegar pesado. Às vezes fico roxa, mas dá resultado.Se bem que tem um pouco de celulite aqui, está vendo?”, aponta,levantando a saia. Não, ninguém vê nada remotamente semelhante.(Quer iguais? Vai querendo., Veja, 17/10/2007)84Estes processos visam disciplinar o corpo feminino, transformando-oem um objeto digno de ser admirado. O que deve ser exposto na atriz é ocorpo nu, o corpo-produtor da fascinação de outrem. Esta preparação para anudez vai ao encontro da reflexão proposta por Goldenberg sobre a inversãodos conceitos de decência e indecência: “a utilização de uma indumentáriaque deixa à mostra determinadas partes do corpo, ou mesmo a exibição docorpo nu, não é considerada, muitas vezes, tão indecentes quanto a exibiçãodo corpo fora de forma e o uso de roupas não condizentes como a forma física”(GOLDENBERG, 2004, p.28). Porém, em nossa pesquisa, notamos que estadicotomia já se fazia presente no final dos anos 20. Tanto que ao analisarmosas notas publicadas na série Um inquérito esthético, encontramos declaraçõescomo: “O que é bello é para se ver. Só o feio é immoral” (Um inquérito esthético,O Globo, 05/02/1926).Estas críticas, a princípio, podem parecer simples opiniões, mas são, naverdade, mais uma face do processo disciplinador vivenciado pelos corpos femininos.Seguindo a reflexão proposta por Foucault, os críticos são, assim, o dispositivode vigilância necessário a toda disciplina e seus escritos servem de puniçõespara que os corpos em situação de não-conformidade. As críticas fazem com queas atrizes sintam vergonha da não-adequação à sua função, corrijam a sua posturae se deixem ser modificadas, tornando, assim, seus corpos dóceis.Co n s i d e r a ç õ e s finaisVimos neste trabalho que, entre os meses de janeiro e fevereiro de 1926,o jornal O Globo publicou, na coluna O Globo no Theatro, a série Um inquéritoesthético, sobre o nu artístico. Nela, personalidades do teatro nacional da época expunhamsua opinião sobre o nu artístico e a utilização do maillot (maiô) nos espetáculosnacionais. Ao todo, foram <strong>14</strong> notas divulgadas. Ao lermos o material, nossurpreendemos com o número de autores favoráveis à exposição da nudez: dez.“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201085Contudo, a nossa maior surpresa foi o número de notas queixosas àscondições do corpo das atrizes brasileiras da época. Dos textos publicados,três fizeram alguma referência negativa às formas das coristas das companhiasde teatro. Percebemos que muitas dessas críticas se assemelhavam aos julgamentosàs formas físicas das atrizes contemporâneas.Logo, começamos a pensar: por que a preocupação de ser a aparência umrequisito para atingir o sucesso é tão comum entre as atrizes há tanto tempo?Para tentar responder esta pergunta, recorremos aos conceitos de corpos dóceisde Foucault, de técnicas corporais de Marcel Mauss e de dominação masculinade Pierre Bourdieu.Se Mauss admite em seus estudos sobre as técnicas corporais que hádiferenças entre os corpos dos homens e mulheres que não podem ser atenuadasnem mesmo com o ensino de técnicas – ao indicar que, em uma briga:“O homem normalmente cerra o punho com o polegar para fora, a mulherjá o faz com o polegar para dentro; talvez por não ter sido educada para isso,mas estou certo de que, se a educassem, isso seria difícil” (1974, p. 219) –,Pierre Bourdieu trabalha a diferença entre homens e mulheres pelo simbolismo:o corpo feminino é visto como um objeto, um bem que será disponibilizadoem relações de troca. Logo, elas têm que ser agradáveis ao olhar e maisfrágeis do que os homens.Para Foucault, o corpo também é objeto de dominações. A fim de setornar útil, o corpo passa por processos disciplinadores que irão aprimorá-lo. Ocorpo torna-se dócil, preparado para atingir suas funcionalidades com o máximoaproveitamento de seus gestos e do tempo, já que “um corpo disciplinadoé a base de um gesto eficiente” (2008, p.130).Dentre outras funções, os corpos das atrizes têm de entreter quem osassiste. Para tanto, é preciso que elas dominem técnicas de interpretação, deimpostação de voz e de dança. Mas os corpos das atrizes também são disciplinadosa ser uma representação-padrão para outras mulheres. Suas formasfísicas são trabalhadas para se tornarem o exemplo do valor simbólico que ocorpo feminino tem de apresentar dentro das trocas realizadas nas relaçõessociais. As atrizes devem ser a síntese da feminilidade, ou seja, o símbolo deque todas as mulheres devem ser “sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas,discretas, contidas ou, até mesmo, apagadas”, conforme Goldenberg(GOLDENBERG, 2004, p. 75).É por isso que as atrizes devem apresentar um corpo sem marcas, definido,que não precisaria ser escondido por trás de um maillot (maiô) ou detruques de maquiagem. Ao mesmo tempo, não pode ser um corpo que seassemelhe às capacidades físicas dos homens. É por esta razão que “Mulhermusculosa não vende bem na avenida” ou “A mulher moderna pratica todosos sports [...] que desenvolvem, é verdade, mas tiram a graça e a harmonia daslinhas” (Um inquérito esthético, O Globo, 18/02/1926).“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Para obter resultados, o processo disciplinador precisa de alguns instrumentos,entre eles a vigilância e a sanção normalizadora (FOUCAULT, 2008).Como já vimos anteriormente, no caso disciplinar das atrizes, a vigilância ficaa cargo dos autores e jornalistas que observam atenciosamente seus corpos. Jáo castigo vem através das críticas às suas formas físicas: a divulgação de textose fotos com menções negativas aos seus físicos, faz com que as atrizes reconheçama sua não-conformidade e sintam a necessidade de adequar seus corpos.Como são “pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão”como afirma Foucault (Ibid., p. 120), as disciplinas podem ultrapassar as limitaçõesde seus campos de atuação. Mauss presenciou este tipo de fenômenoao perceber que as enfermeiras americanas e as jovens francesas começavam aandar da mesma forma, graças ao cinema (1974, p. 2<strong>14</strong>).Por esta razão, o processo disciplinador imposto às atrizes – junto comseus mecanismos de vigilância e sanção – acabam também por influenciaroutros corpos. Mulheres que se espelham no corpo dócil das atrizes para conhecere atingir a síntese de feminilidade. Corpos que também querem serdisciplinados. São os novos corpos dóceis femininos.86No t a s1 Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2 Quanto mais exercício melhor? (Veja, 06/02/2008)“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s bibliográficasBOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2003.EDMONDS, Alexander. No universo da beleza: notas de campo sobre cirurgiaplástica no Rio de Janeiro. In: GOLDENBERG, Mirian. (Org.) Nu evestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro:Record, 2002.FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2008.GOLDENBERG, Mirian. De perto ninguém é normal: estudos sobre corpo, sexualidade,gênero e desvio na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2004.GOLDENBERG, Mirian; RAMOS, Marcelo Silva. A civilização das formas:o corpo como valor. In: GOLDENBERG, Mirian. (Org.) Nu e vestido: dez antropólogosrevelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002.MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia.São Paulo: EDUSP, 1974.87On-l i n e:Edições Revista VejaQuanto mais exercício melhor? (último acesso: 02/05/2008)Doutor mão leve. (último acesso:02/05/2008)Quer iguais? Vai querendo. último acesso: 02/05/2008)“O que é bello é para se ver, só o feio é immoral”: o processo disciplinador dos corpos de atrizes na mídia impressa nas últimas oito décadas


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A busca por segurança:imaginário do medo egeografia urbanaSearching Security: Imaginaryfear and urban geographyFelipe Botelho Corrêa | correa_felipe@yahoo.comDoutorando em Estudos de Literatura pela PUC-Rio.ResumoO artigo focaliza uma das várias relações entre imaginário do medo, violência urbana eimprensa de massa que foram desenvolvidas no ensaio “Imaginários do medo: imprensae violência urbana” (CORRÊA, 2008). Especificamente, o trabalho aborda as mudançasno espaço público da cidade do Rio de Janeiro, através de uma leitura crítica de umasérie de reportagens (“A guerra do Rio”) analisada em contraponto com o imagináriodo medo relacionado aos crimes violentos. Assim, são enfatizadas as principais transformaçõesna geografia urbana carioca, desde os anos 1980. Partindo da concepção deque o espaço construído é um texto que pode ser tomado como instrumento de análiseda cultura e da sociedade que o recria incessantemente, abordamos as relações entre asmudanças no cotidiano da cidade e as narrativas sobre violência urbana veiculadas naimprensa de massa. Esta comunicação desenvolve problemas relacionados à segurançapública, abordando aspectos contemporâneos, como a segregação do espaço público eas mudanças na arquitetura do espaço urbano, conforme é representada na imprensa.Palavras-Chave: imaginário do medo; espaço público; violência urbana; favelas; imprensa.AbstractThe focus of this paper is the relationships between the imaginary fear, urban violence andmass media that were developed in the essay “Imaginary fear: journalism and urban violence”;(CORREA, 2008). Specifically, the study identifies changes in the public space of thecity of Rio de Janeiro, through a critical reading of a series of reports (“War of Rio de Janeiro”)analyzed in contrast to the imaginary of fear related to violent crimes. Thus, we emphasizethe major changes in urban geography of Rio, since the 1980s. Starting from the conceptionthat the built space is a text that can be taken as an analytical tool of culture and society thatconstantly recreate it, discusses the relationship between changes in the life of the city and thenarratives on violence broadcasted in mass media. This communication develops problemsrelated to social security, addressing contemporary issues such as segregation of public spaceand the changes in the architecture of urban space, as represented in the press.Keywords: imaginary fear; public space; urban violence; slums; press.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A c i d a d e e o s m a p a s89Ao circularmos pelas ruas da cidade, que elementos nos guiam? Essa éuma pergunta que normalmente não nos fazemos, pois, como Walter Benjaminjá atentara, o difícil não é se achar em uma cidade, mas perder-se nela 2 . Osespaços urbanos estão carregados de significados, de sentidos e de direções quenormalizam a circulação dos indivíduos. As placas com os nomes das avenidas,praças e ruas criam caminhos pela cidade que podem ser percorridos de diferentesmaneiras e estilos. Mas há, inexoravelmente, um mapa simbólico que operafronteiras impalpáveis no cotidiano dos habitantes. São formas discursivas queprojetam caminhos a serem seguidos, sejam eles concretos ou simbólicos.É claro que estas trajetórias determinadas podem ser burladas pela criatividadedo homem comum no dia-a-dia, com as suas práticas desviacionistase as suas inusitadas práticas do espaço, mas não podemos negar que tais possibilidadessão balizadas por estruturas mais amplas, instituídas no próprioimaginário da sociedade. Há significações que são produzidas socialmente, porarticulações diversas, em vários setores, sendo os meios massivos importanteslugares de produção desses significados.Ao apontarmos tal questão, precisamos olhar para a cidade não por análisesque privilegiam somente os aspectos funcionais. Para indagar-nos sobreos guias dos cidadãos, é preciso pensar a cidade como linguagem, como nospropõe Nestor Canclini:La problemática urbana como uma tensíon entre realizacíon y expressividad,há llevado a pensar también a las sociedades urbanas comolenguaje. Las ciudades no son solo um fenômeno físico, un modo deocupar e, espacio, de aglomerarse, sino también lugares donde ocurrenfenómenos expressivos que entran en ténsion con la racionalizacíon,con las pretensiones de racionalizar la vida social. Han sido sobre todolas industrias culturales de la expressividad, como constituyentes delorden y de las experiencias urbanas, las que han tematizado esta cuestión.(CANCLINI, 1997, p.72).Assim, há aspectos da cidade que fogem à racionalização, que já estãopresentes na ideia de urbanização 3 , e só podem ser alcançados por outro viés.A expressividade é uma das formas de tornar explícito aspectos que são caladosquando o “estatuto da técnica” prevalece como única possibilidade. O imagináriourbano, nesta perspectiva que abordamos, é esse conjunto de significaçõesque não cessa de ser recriado cotidianamente através de narrativas e imagensque dão sentido às práticas e, por vezes, abrem um caminho para elas.A cidade é esse “lugar” privilegiado de constituição do simbólico: esteque inexoravelmente cria diferenciações, separações e fronteiras que só existemnas formas expressivas, na linguagem, na narração. Essas fronteiras são formasde dar significado ao espaço urbano, mas que não são estáticas. A mobilidadeque estas apresentam vem da própria forma de falar da cidade: as formas deenunciar, articular e, se formos mais longe, de balizar significados.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201090A ideia de mapa, então, nos parece de grande valia para que possamosmobilizar todo esse aspecto relacionado ao imaginário urbano, pois o mapanos remete ao olhar que preza pelas demarcações, as distinções, os contrastes,que, com a ajuda da técnica, dá um sentido macro ao espaço micro queé percorrido pelos cidadãos no cotidiano. Além disso, pelos significados quecarrega, o mapa é ferramenta de conhecimento, algo que privilegia a visão emdetrimento da prática do espaço.No entanto, sabemos que há outras cartografias que guiam os habitantes.Essas são o que poderíamos chamar de mapas simbólicos, que ganham significadosno imaginário social através das atividades expressivas ligadas ao cotidiano,como é o caso das mensagens veiculadas nos meios de comunicação massivos.Essas atividades fazem parte de uma economia de relatos que expressam as percepçõesda cidade. É através desses processos de reconhecimento, de seleção e deexpressão que o espaço urbano vai sendo construído no imaginário social.O habitante de uma cidade, por exemplo, ao contrário de um turista ouum estrangeiro, não precisa de um mapa para se locomover e lê-la. Ele praticao espaço tendo como guia o seu mapa simbólico, que se confunde com a suaexperiência. Quando falamos em mapas simbólicos, queremos suscitar que hácertos significados que só podem ser lidos quando há uma vivência, quando ocaminhante percorre cotidianamente os labirintos que as ruas parecem formare, consequentemente, acaba por se apropriar, seletivamente, da cidade.Em todas as cidades, seus habitantes têm maneiras de marcar seusterritórios. Não existe cidade, cinzenta ou branca, que não anuncie, dealguma forma, que seus espaços são percorridos e denominados porseus cidadãos. Teríamos, desse modo, pelo menos dois grandes tipos deespaços a reconhecer no ambiente urbano: um oficial, projetado pelasinstituições e feito antes que o cidadão o conceba à sua maneira; outroque [...] proponho chamar de diferencial, que consiste numa marcaterritorial usada e inventada na medida em que o cidadão o nomeia ouinscreve. Haverá muitas e variadas combinações entre um e outro polo;a noção de limite pode ser útil para compreender que aquilo que separao espaço oficial do território é uma fronteira descoberta por quemultrapassa as suas margens. Isto é, porque existe o limite. Acreditamosque se possa aceitar que algo separa o que nos é dado daquilo de quenos apossamos (SILVA, 2001, p. 21).Os mapas parecem ser, então, uma chave de análise importante ao trabalharmoscom a problemática dos imaginários urbanos, ainda mais quandoa proposta é fazer uma leitura deste imaginário – que é criação incessante– em relação aos medos relacionados à violência urbana. A cartografia, tantoa simbólica quanto a que resulta em mapas materiais que guiam os turistas,por exemplo, é uma escrita definidora de fronteiras e limites 4 . No âmbitosimbólico, os mapas promovem a criação de fronteiras identitárias: dinâmicasdo dia-a-dia que são nutridas de conflitos e tensões. No âmbito da descriçãodos territórios, ou seja, no conjunto de estudos e operações científicas,técnicas e artísticas que orientam os trabalhos de elaboração de cartografias,A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201091os mapas determinam fronteiras geográficas, que não deixam de ser ao mesmotempo físicas e mentais.Como forma de representação, o mapa é um suporte expressivo quejunta lugares completamente distintos em uma superfície plana, legível etotalizante. Trata-se de um conjunto de símbolos convencionados, históricae culturalmente, que remetem a uma visão abstrata, inatingível pela experiência.É, além disso, a concretização do esforço de cristalizar possibilidadese delimitar olhares.Em sua forma final, aquela que é visível, o mapa contemporâneo nãonos deixa ver os andaimes que possibilitaram sua construção. O produto dacartografia moderna é um tipo de representação que atravessa os lugares e saiilesa, sem marcas aparentes dos lugares onde passaram 5 . De fato, os lugares sãoa própria possibilidade dessas representações, mas os mapas – com suas regrasde escrita – têm como característica esse olhar distanciado, que apaga detalhes,itinerários e práticas de espaço. Eles são a consubstanciação da ficção de umolhar-total, essa ficção que é, decerto, a ação de imaginar por uma perspectivaúnica e que se quer verdadeira.Mas se a questão aqui é propriamente a produção de um imagináriosocial do medo, que mapas estão presentes nessas representações? O que propomos,aqui, é uma análise dos mapas como escritas produtoras de significado noimaginário urbano, por isso, os mapas serão tomados por sua potencialidade deorganização de um imaginário do medo, como forma expressiva, e, também,como vocabulário que é utilizado para dar sentido às inúmeras violências – quena imprensa estão relacionadas, majoritariamente, à ideia de criminalidade –que são praticadas nas metrópoles contemporâneas.Partimos da ideia de que essas representações influenciam as práticascotidianas das pessoas, que, por exemplo, praticam seus itinerários de acordocom um mapa simbólico construído, incessantemente, por narrações que dãosentido aos elementos que compõem a cidade.Cada cidade tem seu próprio estilo. Se aceitamos que a relação entrecoisa física, a cidade, sua vida social, seu uso e representação, suasescrituras, formam um conjunto de trocas constantes, então vamosconcluir que em uma cidade o físico produz efeitos no simbólico: suasescrituras e representações. E que as representações que se façam daurbe, do mesmo modo, afetam e conduzem seu uso social e modificama concepção do espaço. (SILVA, 2001, p. XXIV).Podemos visualizar melhor o que estamos falando ao propormos, porexemplo, a ideia de um mapa da violência, que, consequentemente, é tambémum mapa do medo. Com o crescimento do número de crimes violentos noBrasil, principalmente a partir da década de 1980, uma série de novas estratégiasque simulam proteção e segurança foram colocadas em prática. A construçãode muros, como aponta a antropóloga Teresa Caldeira (2003), foi a maisemblemática dessas reformulações do espaço urbano.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A autora elabora argumentos em torno da crescente segregação espacialque vem ocorrendo na cidade de São Paulo (e, também, em outras metrópolesdo mundo), levantando questões, sobretudo, em relação aos discursos quefalam da violência e o que esses discursos têm a explicar ou atestar sobre umareconfiguração do espaço público brasileiro. Além disso, a tese elaborada tentaanalisar o processo de redemocratização no Brasil pelo viés dos direitos civis,mostrando como a violência e a utilização da força de forma não-oficial ouprivada sempre estiveram presentes na ordem social do país. A democracia, daforma como se configurou no Brasil, é caracterizada como disjuntiva, ou seja,como uma ordem social explicitamente segregada.Segundo Caldeira, essas estratégias de proteção e reação em relação àviolência têm consequências em dois âmbitos principais:92Tanto simbólica quanto materialmente, essas estratégias operam deforma semelhante: elas estabelecem diferenças, impõem divisões edistâncias, constroem separações, multiplicam regras de evitação eexclusão e restringem os movimentos. Muitas dessas operações sãojustificadas em conversas do dia-a-dia cujo tema é o que chamo de falado crime. As narrativas cotidianas, comentários, conversas e até mesmobrincadeiras e piadas que têm o crime como tema contrapõem-se aomedo e à experiência de ser uma vitima do crime e, ao mesmo tempo,fazem o medo proliferar. (CALDEIRA, 2003, p.9).A proliferação do medo como fantasma da cidade está intimamente ligadaa esse avanço estatístico da violência nas metrópoles brasileiras, pois a violênciarelacionada com o crime tem a potencialidade de acumular uma tensãoque, por vezes, não é liberada através do sistema de compensações do Estado(Justiça), mas somente pelos relatos das vítimas. Quando as tensões são fortes,as falas se disseminam rapidamente, criando um contágio que estimula o fantasmaurbano 6 , ainda que, em grande parte, através de boatos 7 .A partir desta formulação, concluímos que o medo se dissemina, muitoem parte, pelo ato de narrar. É o relato que o faz circular pela cidade oupelo mundo, com fundamentos concretos ou não. O medo toma carona nosmeios de transporte – os relatos –, de que nos fala Certeau, atravessando e organizandolugares. Essas narrativas do cotidiano, sejam elas orais ou mesmoas disseminadas massivamente pelos meios de comunicação, são por onde ossignificados são produzidos, e por onde articulações simbólicas influem naspráticas sociais.Nesse sentido, esses relatos são como mapas, que guiam os turistas pelasruas desconhecidas, organizando os lugares e sugerindo significados tanto atravésde suas linhas, como também por seus ícones e pela escrita que, geralmente,os acompanham. Mas, se concluímos que os relatos organizam lugares, então,que tipo de organização e de práticas geram os relatos da violência urbana?Em reportagem do dia 05/11/06, intitulada “As cicatrizes da violência”o jornal O Globo, utilizando a rubrica da série “A guerra do Rio” (que seráA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010abordada mais à frente neste trabalho), mostra o resultado de uma pequenapesquisa feita com sessenta pessoas, dentre especialistas em segurança, representantesde setores da economia, vítimas e pais, que definiram trinta e cincohábitos do cotidiano que mudaram, por causa do medo da violência, em comparaçãocom o começo da década de 1980, justamente a década que se tornouo marco do avanço da violência entre alguns pesquisadores da área 8 . A reportagemcomeça com o seguinte texto:Cantado em 1962 por Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal no“Barquinho”, clássico da bossa nova, o Rio foi deixando aos poucosde ser simplesmente um lugar de paz e de dias tão azuis. A CidadeMaravilhosa se transformou no “Rio 40 graus” – o purgatório da belezae do caos, retratado por Fernanda Abreu na década de 90 – e aderiuaos “proibidões” do funk, que cultuam o tráfico de drogas. A violência,que marcou o Rio sobretudo nos últimos 25 anos, deixou profundascicatrizes físicas, na economia e no comportamento dos cariocas. 9(O Globo, 05/11/06, p. 19).93As mudanças no cotidiano da cidade foram divididas em três categorias:urbanísticas, físicas e comportamentais, além de outras dezessete mudançasvariadas 10 . A ênfase é em relação aos dispositivos de segurança que se tornaramitens imprescindíveis no dia-a-dia. Mas, há, também, pontuações em relaçãoaos modos de transitar pela cidade. As mudanças comportamentais surgem,em grande parte, pelo imaginário do medo, recriado e repetido massivamentetodos os dias. Essas narrativas afetam as próprias práticas sociais, como as listadasnessa pequena pesquisa realizada pelos jornalistas.Há marcas precisas de ruptura que são representadas através da elaboraçãode pequenos detalhes que, em conjunto, são articulados de forma a criarsentidos ordenadores das mudanças na sociedade carioca. A “escalada da violência”é tida como um processo traumático que possibilita a escrita de umahistória por duas demarcações temporais: um “antes” e um “depois”. Essa simplificaçãoé um recurso retórico utilizado em muitos dos discursos que produzema guerra de relatos 11 do cotidiano, inclusive, o próprio discurso jornalístico.Essa divisão é uma tentativa de produção de fronteiras simbólicas que delimitamum “bem” e um “mal”, estrutura muito comum nas reflexões sobre a violênciaurbana. A consequência mais imediata dessa forma de narrar os crimes éa produção, como mencionamos anteriormente, de uma fantasmagoria 12 .Esse fantasma, que não é da ordem do visível, do totalizável, é uma formacompartilhada de vivenciar a cidade, e ele é, em grande parte, criado, no mundocontemporâneo, pelos relatos massivos. Dessa maneira, a nossa perspectivafocaliza a questão da violência urbana e analisa o fantasma do medo que é socialmentevivenciado pelas percepções coletivas que temos do espaço urbano.Quando falamos de percepções, inexoravelmente mobilizamos a relação entreo imaginário e o simbólico: o imaginário é manifestado, em linhas gerais, pelosimbólico, por aquilo que expressa e ativa significados através da linguagem, dotexto, das imagens, da conversa, enfim, dos relatos de uma maneira geral.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O medo se dissemina, também, em outro âmbito, por essas práticas devigilância maquínica, em que câmeras e dispositivos variados tentam suprir a“segurança perdida”, simulando e narrando um porto seguro nos lugares privadosem que as classes abastadas circulam. O espaço público torna-se, de formaacentuada, o lugar do encontro com o medo. Os desconhecidos da multidãotornam-se criminosos em potencial 13 .Dentre os relatos que compõem a reportagem “Cicatrizes da violência”, destacamosuma inusitada narração em relação às mudanças de comportamento:Vítima várias vezes de assaltantes, a professora aposentada HelenaMoreira, de 62 anos, resolveu criar seus próprios meios de defesa. Elatem até a bolsa do ladrão, que põe no banco do carona de seu carro.Nessa bolsa coloca celular quebrado, carteira com alguns trocados,guarda-chuva, batom, papéis e um tíquete do metrô. A bolsa comdocumentos, dinheiro e cartões fica escondida sob o banco. – Saio preparadapara o ladrão – contou ela, que tem moedas no console, e notasno para-sol do carro, para entregar a pedintes que possam oferecerperigo. (O Globo, 05/11/06, p.19).94Uma declaração como essa é indício de que a forma de narrar a violênciapelos meios de massa – que é um importante contribuinte na produçãodo imaginário social – sugere que a ideia de medo é uma forma de produzirsubjetividades, ou melhor, uma forma de controle social através de instânciassimbólicas. A maneira como se narra a violência, as linguagens utilizadas, asescolhas realizadas, as maneiras como essas narrativas chegam às pessoas, sãofundamentais para entendermos a produção de uma realidade medonha.Além disso, tal declaração nos fornece a referência de mapa em relaçãoao imaginário do medo. A ideia de que a cidade é o habitat do perigo e que épreciso mapear mentalmente os “lugares perigosos” não vem somente da experiênciada violência. Essa experiência pode, de fato, produzir traumas, mas nãopodemos negar que a repetição cotidiana das narrativas da violência e do medonos meios jornalísticos de massa são grandes formatadores e incentivadores daimagem da cidade em estreita relação com a periculosidade extrema. Narraros crimes não é uma prática somente expressiva, mas, também, produtiva, poistem essa estreita relação com as práticas sociais.O medo e a fala do crime não apenas produzem certos tipos de interpretaçõese explicações, habitualmente simplistas e estereotipadas,como também organizam a paisagem urbana e o espaço público moldandoo cenário para as interações sociais que adquirem novo sentidonuma cidade que progressivamente vai se cercando de muros. A fala eo medo organizam as estratégias cotidianas de proteção e reação quetolhem os movimentos das pessoas e restringem seu universo de interações(CALDEIRA, 2000. p. 27).Assim, o medo como fantasma urbano vem sendo mobilizado incessantementepelos meios de comunicação, gerando uma disseminação quepode ser definida como contágio social. Práticas que visam a segurança privadavão se espalhando e modificando o espaço urbano tanto materialmenteA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010como no imaginário social. A consequência desse avanço, no entanto, pareceser uma intensificação do conflito e uma evidente apologia de um espaçopúblico não-democrático, pois o medo passa a ser a linguagem utilizada parajustificar ações autoritárias.Então, quando analisamos tanto os mapas quanto os relatos, estamos embusca das consequências dessas simbologias no imaginário urbano e, logo, naorganização do espaço público. Nisso, não podemos deixar de mencionar, háuma ideia política que faz do medo uma defesa e, ao mesmo tempo, uma armade ataque.A g u e r r a d o Rio95Em 2003, quando os EUA invadiram o Iraque, em busca de armas dedestruição em massa, e promoveram uma guerra, o jornal O Globo noticiavao assassinato de uma adolescente em uma estação de metrô na Tijuca, bairrocarioca. Lado a lado, ambos os títulos pareciam querer contaminar o contextode cada um: “A guerra de Bush” e “A guerra do Rio”. A expressão relacionada àviolência urbana era uma clara alusão à guerra que o presidente norte-americanodeclarou naquele mesmo ano. Dois conflitos com características diferenteseram colocados quase como equivalentes.Desde então, “A guerra do Rio” tornou-se uma rubrica que nomeiaconflitos entre traficantes de drogas e policiais em favelas do Rio de Janeiro.Curiosamente, essa série não teve uma duração planejada: um acontecimentofoi sendo ligado a outro durante anos, e a expressão deixou de ser apenas umarubrica para se tornar uma campanha política.Tendo em vista a extensão de tal série, selecionei algumas edições quecobriram conflitos em favelas cariocas em 2004, 2006 e 2007 <strong>14</strong> . As reportagensde 2004 tratam de um conflito ocorrido na favela da Rocinha entre traficantesrivais e a polícia; as de 2006 tratam do conflito entre traficantes, policiais e aschamadas milícias, em várias favelas da cidade; as reportagens de 2007 tratam deum extenso conflito entre traficantes de drogas e policiais no conjunto de favelasconhecido como Complexo do Alemão. Todas as reportagens têm como cenáriouma ou mais favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro.No dia 10/04/2004, o jornal O Globo publicou em sua primeira páginaa seguinte manchete: “Guerra do tráfico mata 5 e impõe terror na Zona Sul”.Esse episódio marcou o início de uma série de conflitos entre traficantes dedrogas das favelas da Rocinha e do Vidigal que seriam comandadas por facçõesrivais. Ao longo do ano de 2004 esses conflitos estiveram regularmente naspáginas dos jornais cariocas, proporcionando um amplo debate sobre a questãoda segurança pública e das favelas.Na análise do conjunto de reportagens, a primeira coisa que saltou aosolhos foi a demarcação de uma mesma chamada para todas as notícias queA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010tivessem algum envolvimento com o fato principal, que seria o confronto entreos traficantes de drogas. A frase utilizada para essa chamada padronizadafoi: “A guerra do Rio”. Essa expressão tentou unificar episódios de violência,ocorridos em favelas cariocas, por um fio condutor, uma narrativa contada emcapítulos, aproximando-se do formato folhetinesco. Durante 11 dias consecutivos,os leitores acompanharam uma mesma história, esperando a cada dianovos fatos e descobertas. Selecionei uma notícia de cada uma das 11 ediçõespara demonstrar o que a expressão “A guerra do Rio” abrangeu.Calvário cariocaTiros, pânico e mortes marcaram a Sexta-feira Santa na maior favelado Rio e na principal ligação entre a zona Sul e a Barra. De madrugada,uma tentativa de invasão de traficantes à Favela da Rocinha terminoucom três mortos e sete feridos. (O Globo, 10/04/04, p. 11).A violência na Rocinha96A guerra na Favela da Rocinha começou na madrugada de sexta-feira.Numa ação violenta, cerca de 60 bandidos vestidos de preto e usandocoletes à prova de balas pararam motoristas na Avenida Niemeyer porvolta de 1h da manhã. A mineira Telma Veloso Pinto, de 38 anos,tentou escapar do bloqueio, foi baleada na cabeça e morreu na hora.(O Globo, 11/04/04, p.31).Limite da violênciaPara acabar com a guerra pelo controle do tráfico na Favela daRocinha, que começou na madrugada da Sexta-feira Santa e já deixouoito mortos, o governo do Estado anunciou ontem que vai cercarparte do morro com um muro de três metros de altura. (O Globo,12/04/04, p.8).Cenas de uma guerra anunciadaSão 10 horas da manhã de domingo de Páscoa. Foi uma noite calmapara os moradores da Gávea e de São Conrado, depois de 48 horas deguerra na Favela da Rocinha. A zona nobre do Rio retoma a rotina. Osmotoristas voltam aos poucos a transitar pela Avenida Niemeyer e peloTúnel Zuzu Angel (O Globo, 13/04/04, p.13).Agora a guerra é políticaAlvo da guerra que já dura seis dias pelo controle do tráfico naRocinha, a população do Rio assiste a um confronto paralelo: otiroteio político entre as autoridades. Ontem, durante uma reunião, osecretário de Segurança, Anthony Garotinho, tentou acuar o governofederal e constrangeu o secretário nacional de Segurança, LuizFernando Corrêa, anunciando estar disposto a aceitar a oferta de enviode tropas das Forças Armadas para ajudar no combate a violência. (OGlobo, <strong>14</strong>/04/04, p.<strong>14</strong>).Policia mata chefe da RocinhaCem homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PMmataram na tarde de ontem o traficante Luciano Barbosa da Silva, oLulu, de 26 anos, e seu cúmplice Ronaldo de Araújo Silva, de 27 anos,A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010no alto da Favela da Rocinha, num lugar conhecido como Laboriaux.Foram 15 minutos de intenso tiroteio. (O Globo, 15/04/04, p.11).“Bonde” de Lulu vai ao cemitérioO tráfico da Rocinha desceu o morro ontem e desafiou a polícia noasfalto. Quinhentas pessoas – inclusive muitos bandidos, segundopoliciais – foram ao Cemitério São João Batista para o enterro dotraficante Luciano Barbosa, o Lulu, que comandava a venda de drogasna favela. (O Globo, 16/04/04, p.15).A caçada a DuduA caçada ao traficante Eduíno Eustáquio de Araújo Filho, o Dudu,de 31 anos, que chefiou a tentativa de invasão da favela da Rocinhana Sexta-feira Santa, é agora prioridade da polícia do Rio. (O Globo,17/04/04, p.15).Nove pessoas são presas na caçada a DuduNove pessoas acabaram presas ontem durante a caça ao traficanteEduíno Eustáquio de Araújo Filho, o Dudu, de 31 anos, que chefioua tentativa de invasão da Favela da Rocinha na Sexta-feira Santa (OGlobo, 18/04/04, p.22).97O caráter folhetinesco pode ser visto pela fragmentação das sequênciasnarrativas que formam uma série e pela constante repetição das mesmas informaçõesa cada dia. Palavras como guerra, violência, tiros e pânico são associadasa eventos ocorridos na favela da Rocinha.Se justapuséssemos os títulos das reportagens transcritos acima, teríamosalgo como uma pequena história contada por tópicos: calvário carioca; a violênciana Rocinha; limite da violência; cenas de uma guerra anunciada; agoraa guerra é política; policia mata chefe da Rocinha; bonde de “Lulu” vai ao cemitério;a caçada a Dudu; nove pessoas são presas na caçada a Dudu. De certaforma, o que lemos nesses títulos é uma cronologia que poderia estruturar umromance ou qualquer outra ficção: o enredo é apresentado (calvário carioca; aviolência na Rocinha), desenvolvido (limite da violência; cenas de uma guerraanunciada; agora a guerra é política; policia mata chefe da Rocinha; bonde de“Lulu” vai ao cemitério; a caçada a Dudu) e resolvido (nove pessoas são presasna caçada a Dudu), formando um arco narrativo.O desenrolar dos acontecimentos, as ações do governo e da sociedadepassam todas pelo crivo da rubrica “A guerra do Rio”. As pequenas narrativassão costuradas a esse padrão e ganham menos ou mais espaço de acordo coma proximidade do fato principal, que é o conflito na Rocinha, com a vidacotidiana do “asfalto”.Por outro lado, a expressão é uma metonímia que faz com que a Rocinhaseja o símbolo de uma guerra do Rio de Janeiro com ele mesmo. Nesse caso, OGlobo toma a parte pelo todo e define a guerra que ocorreu nas proximidadesda Rocinha como sendo a guerra do Rio de Janeiro inteiro. Ou, por outroA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201098lado, a guerra do Rio contra os perigosos traficantes de droga das favelas. Issoimplica um maior peso para as notícias, pois passa a dizer respeito a todo equalquer cidadão.Olhando para trás, na história da imprensa não há como ficar surpresoquando hoje os jornais utilizam as técnicas de folhetim em suas narrativas, comoatos que beiram a campanhas políticas para compartilhar inimigos e medos. Ofolhetim foi o formato que ajudou a consolidar os jornais como meios regularesde informação de massa. Por muito tempo esse formato foi a base da notícia, tendoainda resquícios no jornalismo atual. A imprensa absorveu técnicas literáriasde narrativa e reciclou-as, assim como recicla a si mesmo ao longo dos anos.Uma expressão parecida, decerto quase igual à “A guerra do Rio”, estevenos jornais cariocas no final da década de 1940. O então jornalista CarlosLacerda publicou uma série de artigos dramáticos defendendo a “Batalha doRio de Janeiro” ou a “Batalha das favelas”. Essas expressões circularam em jornaiscomo Correio da Manhã, O Globo, Diário da Noite, Tribuna da Imprensa,que representavam, em suas páginas, a favela como “reservatório de germes(potencialmente mais perigosos do que uma bomba atômica), trampolins damorte, devido aos desabamentos”. (ZALUAR; ALVITO, 2003, p. <strong>14</strong>).A campanha “A Batalha do Rio” foi uma das inúmeras tentativas doEstado de interferir nas favelas não com um ato integrador dessas com a cidadeurbanizada, mas com um intuito preconceituoso de querer apagar da cartografiacarioca aquele espaço estranho, que não era condizente com a normalidadee a ordem idealizada.A favela, mais do que qualquer outro espaço, representava o papel doinimigo interno. Era preciso uma batalha para extirpar o que desde o começotinha sido o “lixo” da modernização do espaço urbano. Não havia a intençãode integrar as “duas cidades”. O próprio Carlos Lacerda propunha uma expropriaçãodos grandes edifícios sem, com isso, conectar os dois lados:Aqueles que não quiserem fazer um esforço sincero e profundo paraatender o problema das favelas, assim como aqueles que preferiremencará-lo como caso de polícia, têm uma alternativa diante de si: asolução revolucionária, [pois os] comunistas (...) oferecem a expropriaçãodos grandes edifícios e a ocupação de todo o edifício comosolução imediata, redutora e fagueira a quem vive numa tampa de lataolhando o crescimento dos arranha-céus (LACERDA Apud ZALUAR& ALVITO, 2003, p.<strong>14</strong>).Cumprindo o que havia prometido, Carlos Lacerda viria a por em prática,quando eleito governador da Guanabara em 1961, uma política de remoçãode favelas da Zona Sul carioca. Isso demonstra que a questão das favelas foie é, sobretudo, uma questão política e simbólica, gerando consequências nageografia e na arquitetura do espaço urbano.A “batalha do Rio” tornou-se “a guerra do Rio”. O que muda são as personagensdo conflito, mas não a geografia, que é sempre diferenciada pela linguagem.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201099“De batalhas faz-se guerras” é uma expressão que conota uma acumulação de tempoe, mais do que isso, uma contínua situação de conflito que tende a se exacerbar.Desde as batalhas até a guerra, a ideia é sempre a mesma: o conflito caminha paraum acirramento. Essa ideia de intensificação não necessariamente corresponde auma realidade, mas, sim, a uma contínua alimentação do imaginário do medo.São imagens que estão sempre indo em direção a algo maior e mais assustador;seguem um crescente infinito de uma narrativa sem fim.Em 50 anos muita coisa mudou, e a favela acabou adquirindo outrasconotações no imaginário midiático. A partir da década de 1980 e mais intensamentena década 1990, os morros cariocas voltaram a ter espaço nos jornais.Dessa vez o problema era mais complexo e tinha relação com a violência urbanae com o crime organizado: as favelas tinham sido “eleitas” como basesde distribuição de entorpecentes. Até então isso já acontecia desde meados dosanos 1970, mas a violência que vinha da favela não era noticiada; talvez devidoà rígida censura colocada em prática pelo regime militar. Somente quando atensão entre o morro e o asfalto foi se acirrando e invadindo a cena é que aimprensa demonstrou interesse. Os traficantes de drogas estavam se armandocom artilharia sofisticada e as editorias de cidade dos principais jornais cariocaspassaram a publicar notícias relacionadas ao tráfico de drogas e à violênciasempre tendo como cenário a favela. O delineamento dessa nova condição dacriminalidade urbana ocorreu ao longo dos anos 1990:Em 1994, armamentos sofisticados vieram incluir-se no rol de mercadoriasa serem traficadas. Certos grupos de traficantes, sobretudo nasfavelas situadas nas proximidades do aeroporto e da zona portuária,começaram a especializar-se na venda de armas aos traficantes deoutras favelas que queriam proteger-se contra a invasão da polícia e deoutros grupos rivais. Assim, havendo condições favoráveis, o tráfico decocaína e outras mercadorias aumenta, e, com ele, o envolvimento dascomunidades em que se acham os traficantes. (LEEDS, 2003, p. 239).O livro de Zuenir Ventura, Cidade partida (1994), é fruto dessa conotaçãoque a favela passava a ter. Impulsionado pela chacina em Vigário Geral (1993), favelacarioca onde foram mortas 21 pessoas que não eram relacionadas ao tráficode drogas, o jornalista vivenciou durante nove meses o cotidiano dos moradoresdessa comunidade. A conclusão do livro-reportagem é a volta ao pensamentobipolar que teve destaque no início do século XX. A cidade partida de Zuenir émarcada pela divisão em dois espaços: de um lado o tráfico de drogas exercendopoder, através de ameaças, sobre as comunidades que vivem nos morros e, deoutro, a cidade sitiada, com medo das favelas e se afastando cada vez mais doconvívio com os moradores desses locais. A batalha contra as favelas voltava àcena nos anos 1990, só que agora pelo viés da política de segurança pública.Se por um lado as expressões relacionadas às batalhas na cidade estãopresentes em tempos completamente diferentes e com conotações distintas,por outro o cenário continua o mesmo. A favela acabou sendo legitimada pelaação do tempo. Em um século esse espaço já criou sua história e, hoje, asA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010100políticas de remoção têm cedido lugar às políticas de integração e urbanização.Mas a dualidade entre os dois espaços foi exacerbada. A imprensa aponta, hoje,para um poder paralelo que estaria assumindo o lugar do Estado nas favelas ena cidade, gerando assim, diariamente, um confronto armado entre dois poderes.A cidade estaria mais do que partida, estaria dividida e em guerra.Tentando superar o dualismo histórico, hoje há um pensamento que vêa cidade mais do que partida, mas em estilhaços, um caleidoscópio que nãose deixa ler. Totalmente fragmentada e desintegrada, a cidade só consegue sereconstruir nos mass-media, através do espetáculo (ARGULLOL, 1994, p. 59).É pela narrativa desses meios que ela consegue se ver representada. Eis, então,uma questão: se a cidade só consegue se reconstituir através dos meios de comunicaçãode massa, e estes exibem uma cidade em guerra, em que a violênciae o terror vêm da favela, como no caso aqui estudado, qual é a imagem desseespaço no imaginário social, senão aquela relacionada ao medo?A conotação da favela ainda é pejorativa e cunhada de violência. Somadoa isso, temos a imprensa de hoje, que é lastreada pela sociedade do espetáculo,expressão inaugurada por Guy Debord. Imprensa essa que faz das imagens edo discurso sedutor o pivô de suas práticas sociais. “O caráter ideológico doadjetivo ‘violento’ fica claro quando é utilizado sistematicamente para caracterizaro ‘outro’, o que não pertence ao mesmo estado, cidade, raça, etnia, bairro,família, grupo etc.” (ZALUAR, 2003, p. 212).É através do sistemático e cotidiano discurso que conota a violência dotráfico à favela que O Globo cumpre o papel de imaginar uma geografia domedo que sustenta uma vitimização e, também, consequentemente, uma ausênciade culpa. De forma notável, na grande maioria dos textos analisados asnotícias se referiam às consequências e não ao próprio acontecimento, construindoa vitimização da ordem. Isso pode ser constatado na medida em quetemas relacionados ao trânsito representaram uma grande parte da massa dereportagens, e os moradores da Rocinha, em pior situação que todos os outros,não receberam qualquer menção.Além disso, o conflito só ganhou grande cobertura pois transbordou dasfavelas para o asfalto. Isso demonstra que a amplitude do espaço cedido ao fatodepende do local onde o mesmo ocorre. Se for dentro da cena - a cidade - osholofotes acesos focam e transmitem o espetáculo. Caso contrário, quando namaioria das vezes a obscena (GOMES, 1994, p. 103) - a favela - é o palco, osholofotes elegem outras práticas para fornecer o espetáculo de cada dia, deixandotais acontecimentos na penumbra.Co n s i d e r a ç õ e s finaisO imaginário, em sua incessante produção, é uma esfera em que circulamvalores de uma sociedade. Por essa razão, podemos considerá-lo umainstituição, se definirmos esta como uma representação de valores que devemA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010101ser preservados. Não se trata, contudo, de “um organismo público ou privado,estabelecido por meio de leis ou estatutos que visa atender a uma necessidadede dada sociedade” (HOUAISS, 2001), mas, sim, de uma produção de significadosque circulam de forma dinâmica e que torna possível falar sobredeterminado tema. Assim, o imaginário tem como base os discursos que sãoenunciados de diversas maneiras, mas que acabam formando, não sem umembate, conjuntos que exprimem valores, costumes e estruturas sociais.Por essa tal amplitude do objeto, as formas de abordagem são diversificadase procuram, em geral, dar conta de determinado aspecto desse conflitoque permeia a produção de significados através dos relatos e narrativas que sãoproduzidos diariamente. Nesse sentido, a delimitação, nesse estudo, foi de umadas paixões humanas que mais foram focalizadas em função de formulaçõespolíticas e sociológicas.Ao procurar entender os significados da violência urbana no Brasil atual,ainda no início desta pesquisa, nos deparamos com o que definimos comoimaginário do medo. Esse imaginário consistia na produção de narrativas quearticulavam medo e crimes violentos de uma forma que não privilegiava umamobilização social para enfrentar o problema. O medo não estava relacionado àesperança. A estrutura de enunciação da imprensa colocava o medo em estreitarelação com o pânico, que é sentimento que não consegue ver os seus fundamentose, por isso, tem tendência totalizante: é um sentimento que restringe opensamento e que acaba fazendo o indivíduo agir de forma muito emotiva.O medo, que é um sentimento muito ligado ao desconhecido e aoinexplicável, surge, também, através das formas de enunciação que focalizama ineficiência das instituições de repressão, pois esta “ineficiência” está ligadaàs relações sociais no espaço público. Somos uma sociedade em que as circunstânciastendem a se sobrepor às regras, ou seja, mesmo que exista uma normaque reja determinada prática, essa prática é costumeiramente guiada por uma“lógica” que está muito ligada ao imaginário social. O problema é que há umacontradição entre o imaginário social e as leis na nossa sociedade: eles não secomplementam harmoniosamente, mas conflituosamente. Na sociedade brasileira,segundo interpretação de Marilena Chauí,as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhorinstrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos edeveres concretos e compreensíveis para todos. [...] É uma sociedadena qual as leis sempre foram consideradas inúteis, inócuas, feitas paraser violadas, jamais transformadas ou contestadas; e onde a transgressãopopular é violentamente reprimida e punida, enquanto a violaçãopelos grandes e poderosos sempre permanece impune.É uma sociedade, consequentemente, na qual a esfera pública nuncachega a constituir-se como pública, definida sempre e imediatamentepelas exigências do espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítriosão as marcas dos governos e das instituições “públicas”. (CHAUÍ,2006, p. 105).A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010102Assim, por essa perspectiva, percebemos que a chamada “ordem”, que estampaa bandeira nacional desde o período de maior afirmação do movimentopositivista no Brasil, é uma encenação que constitui apenas um ideal que é a todomomento vitimizado pelos discursos que de forma míope preservam o debate noâmbito policialesco, quando, na verdade, sabemos que historicamente essa “integraçãonacional” nunca foi pacífica. Hoje, o que nos é novo não é a “escalada daviolência”, mas, sim, o contexto internacional ao qual estamos ligados.O tráfico de drogas e de armas não é um problema nacional, mas atravessao Brasil de forma perversa, intensificando as relações socioeconômicas játão desiguais. Tratar da violência no Brasil somente através de questões penaisé uma posição reacionária que é contra qualquer iniciativa de democratizaçãosocial. De acordo com essa perspectiva, é preferível narrar o medo exibindosomente os efeitos do cotidiano, do que incentivar qualquer tipo de mudançaque vá além do aumento da repressão.Diante desse quadro, as tragédias de cada dia, quando evocadas pelostextos analisados, elaboram uma cidade imaginária, mas, ao mesmo tempo,concreta e palpável. As reportagens são sobre lugares que existem e personagensreais, que não são heróis, mas homens comuns, ordinários, assim como oleitor. Nestas perspectivas, os relatos jornalísticos que tratam do crime violentonas grandes cidades produzem uma simbologia e um vocabulário que constituemum imaginário urbano do medo, afetando profundamente as práticas dedemocratização do espaço público.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2“Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade,como alguém se perde numa floresta, requer instrução.” (BENJAMIN, 1995, p.73).3No prefácio da edição brasileira de Imaginários urbanos, Armando Silva argumenta:“Este livro narra por diferentes vias uma relação estética entre cidadãos ecidade, e que, se hoje estamos diante de um fenômeno novíssimo, que é a nãocorrespondênciaentre cidade e urbanismo, pois o urbanismo excede o arcabouçocitadino, os imaginários aparecem como uma estratégia (precisamente mais temporalque espacial), para dar conta de processos urbanizadores que não são sómanifestações de uma cidade, mas também do mundo que a urbaniza. Enquantoa cidade concentra multidões de cidadãos em limites geográficos mais ou menosprecisos e territoriais, o urbano vem de fora para romper os limites físicos, da cidadee, de certa forma, desterritorializá-la. O urbano, assim entendido, corresponderia aum efeito imaginário sobre tudo isso que nos afeta e nos concebe para fazer-noscidadãos do mundo: os meios de comunicação, a internet, os sistemas viários, asciências, a arte, e, enfim, as tecnologias” (2001, p.X).4As concepções de fronteira e de limite são, aqui, equivalentes e sugerem aquiloque Armando Silva formulou: “Quando falo em limite quero apontar um aspectonão só indicativo mas também cultural. O uso social marca as margens dentrodas quais os usuários “familiarizados” se auto-reconhecem e fora das quais selocaliza o estrangeiro ou, e outras palavras, aquele que não pertence ao território.Reconhece-se um território precisamente em virtude da “visita” do estrangeiro, queA busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010sob diversas circunstâncias deve ser-indicado fora do campo respectivo. Cumpredizer que em nosso vocabulário o território ‘territorializa-se’ na medida em queestreita os seus limites e não permite (sobretudo exclui) a presença estrangeira”(SILVA, 2001, p. 19).5Ao descrever imagens de um viajante em um trem, Michel de Certeau nos falasobre as condições para que alguma coisa circule nos diferentes espaços. A bolhada ordem panóptica atravessa os espaços heterogêneos e consegue se manterindependente das raízes locais, ou seja, as raízes de onde está sendo reterritorializado.Trata-se do próprio movimento de desterritorialização, ou seja, uma ordemque consegue atravessar características locais. Assim é definido o poder panóptico.É o poder da imobilidade e da estabilidade da ordem. “Só viaja uma célula racionalizada.Uma bolha do poder panóptico e classificador, um módulo do isolamentoque torna possível a produção de uma ordem, uma insularidade fechada e autônoma,eis o que pode atravessar o espaço e se tornar independente das raízes locais”(2005, p. 193).6“Chamo fantasma urbano àquela presença indecifrável de uma marca simbólicana cidade, vivida como experiência coletiva, por todos os seus habitantes ou umaparte significativa deles, através da qual nasce ou se vive com uma referência decaráter mais imaginário do que de comprovação empírica. Ou seja, na vida cidadãexistem fatos, ideias ou projetos que dão maior margem para a produção imagináriaque outros” (SILVA, 2001p. 55).1037“O boato, ao conectar uma lógica possível ao acontecimento, tem base para seraceito, pois dá-se quando existe uma boa disposição para crer. A base para que umboato cresça é que seja possível, porém quando o grupo social permanece alteradoemocionalmente muitas coisas impossíveis podem parecer fatalmente possíveis. Eisa chave do problema. E na busca da sua simbologia há quem proponha a analogiado boato com o comportamento deformador e de produção em cadeia dos chistes,as autobiografias, os testemunhos ou as legendas.” (SILVA, 2001, p. 51).8A antropóloga Alba Zaluar é uma das que defendem a ideia do avanço da violêncianas grandes cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro e em SãoPaulo, a partir da década de 1980. Cf. ZALUAR, 2006.9Essa visão de uma “escalada da violência” é, também, utilizada por Zuenir Venturaem seu livro Cidade partida (1994), que narra a disseminação da violência na cidadedo Rio de Janeiro, ao longo do século XX, até o episódio que ficou conhecido comoa “Chacina de Vigário Geral”, no começo da década de 1990.10As trinta e cinco mudanças listadas pelo jornal são, em ordem: (1) noites vazias;(2) uso de táxi e van para levar e buscar jovens em festas à noite; (3) maioria dosbares e restaurantes começa a fechar às 23h30; (4) a troca do carro por táxis decooperativas principalmente à noite; (5) guaritas (mais recentemente blindadas)e cancelas; (6) câmeras por todos os cantos; (7) intensificação do uso de grades;(8) blindagem de janelas, paredes e portões; (9) cercas eletrificadas; (10) criançasdeixam de brincar na porta de casa, mesmo nos subúrbios; (11) carros com alarme;(12) insulfilm nos carros; (13) blindagem de carros; (<strong>14</strong>) GPS em veículos; (15)crescimento de entregas à domicílio; (16) entregadores deixaram de subir SantaTeresa após às 18h; (17) aumento da segurança privada nas ruas e portas de lojas;(18) sensor de presença; (19) identificação eletrônica por cartão, placa de carroe até por digitais nos novos condomínios; (20) vaga de alerta de segurança emcondomínios; (21) expansão de shoppings; (22) surgimento de mais condomíniosfechados; (23) barricadas nos acessos de favelas; (24) câmeras em ônibus; (25) implantaçãode clubes em condomínios e fechamento de clubes tradicionais; (26) demadrugada, farmácias passaram a atender por uma janela blindada; (27) indústriase estabelecimentos comerciais fecharam ou deixaram o Rio; (28) proliferação deportas giratórias em bancos; (29) curso de segurança para porteiros; (30) ter celular,carteira e até bolsa para o ladrão; (31) ida à praia só de roupa de banho; (32) usodo celular para monitorar os filhos; (33) depois de 20h, táxis evitam Linha Amarela,Avenida Brasil, Túnel Zuzu Angel e Avenida Martin Luther King Jr.; (34) criação decódigos para familiares a fim de identificar falsos sequestros-relâmpagos; (35) saídasnas ruas à noite só em grupos.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 201011Expressão utilizada por Michel de Certeau: “A cidade é o teatro de uma guerra derelatos, como a cidade grega era o campo fechado de guerras entre os deuses. Entrenós, os grandes relatos da televisão ou da publicidade esmagam ou atomisam ospequenos relatos das ruas ou de bairros”.(CERTEAU, 1994, p. 203, tradução livre).12“Será fantasmagórica qualquer cena que represente uma produção social dofantasma. O cenário de fundo corresponde à cidade e sua realização, como entefantasioso que afeta uma conduta cidadã: corresponde ao efeito imaginário sobre oacontecer cotidiano da cidade.” (SILVA, 2001, p. 55).13É preciso ressaltar, contudo, que, em grande parte, o estereótipo do bandido queé produzido pelas imagens veiculadas na imprensa tem conotações de classe social.<strong>14</strong>As edições tabuladas foram as dos dias 10, 13, 15 e 16 de abril de 2004; 5 denovembro e 29 de dezembro de 2006; 5 de fevereiro e 12 de maio de 2007.104A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasARGULLOL, Rafael. Cidade turbilhão. In. Revista do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, 1994.BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: rua de mão única. São Paulo: ed.Brasiliense, 1995.CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadaniaem São Paulo. São Paulo: Ed. 34 / Edusp, 2003.CANCLINI, Néstor García. Imaginarios urbanos. Buenos Aires: Ed.Universitária de Buenos Aires, 1997.CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis:Vozes, 2005._____. L’invention du quotidien. 2. Habiter, cuisiner. Paris: Gallimard, 1994.CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos e medo. In. Simulacro e poder: uma análiseda mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.105CORRÊA, Felipe Botelho. Imaginários do medo: imprensa e violência urbana.Rio de Janeiro, 2008. 193p. Dissertação de Mestrado – Departamento deComunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa, v. 1.0, 2001.LEEDS, Elizabeth. Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira:ameaças à democratização em nível local. In ZALUAR, Alba; ALVITO,Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2003.SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2001.VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violênciano Brasil. In. SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.) História da vida privada noBrasil: contrastes da intimidade contemporânea. vol. 4. São Paulo: Companhiadas Letras, 2006._____. Crime, medo e política. In. ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.).Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2003._____. ALVITO, Marcos. Introdução. In. ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos(orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2003.A busca por segurança: imaginário do medo e geografia urbana


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Cartografia do acaso:percursos à deriva noimaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ 1Mapping of chance: pathways adrift in theCandelária imaginary, the Mangueira favela, RJHeloiza Beatriz Cruz dos Reis | heloizareis@hotmail.comMestre em Comunicação Social pela <strong>UERJ</strong>. Atualmente é professorado curso de Comunicação Social da Universidade Veiga de Almeidae integrante do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade doCNPq/PPGCom/FCS/<strong>UERJ</strong>ResumoA pesquisa revela uma parte inusitada e pouco visitada da cidade: a favela. Entraremos pelosbecos, pelas vielas, pelas casas, pelas avenidas e subiremos o grande viaduto rosa que existe naCandelária, Mangueira, para falar com o morador do morro que irá nos revelar o significadoda sociabilidade comunitária. Vamos a campo com o intuito de compreender o imaginário presenteneste lugar no ato de compartilhar o espaço da cidade. Essas singularidades podem revelarlógicas peculiares de apropriação do espaço, no “agir urbano”, que se re-constroem na esfera docotidiano e permitem “ver-a-cidade” e pensar a favela. A “rua” comprova ser uma categoria comunicacionalfundamental desse conjunto da urbe e que estabelece uma “lugaridade”, onde sepodem apreender usos, sentidos e significados como formas de estetizar o espaço. A partir disso épossível identificar os fluxos modeladores de seu traçado urbano e que imprimem uma particularcartografia do acaso inspirados pela dinâmica rede da sociabilidade. Michel Maffesoli em diversasobras nos lembra que a rede serve de suporte. Ela é maleável, mas nem por isso sugere fragilidade.Ela pode sustentar e ser matéria de coesão social.Palavras-chave: Cidade. Comunicação. Imaginário. Sociabilidade. Cultura.AbstractThis research reveals an unusual and little visited part of the city: the favela. We will getthrough the alleys, houses, avenues and go up the big pink viaduct that exists in Candelaria,Mangueira, to talk to hill’s residents which will reveal the meaning of community sociability.We go on a field survey in order to understand the imaginary present to this place and in theact of sharing the space in the city. These singularities can reveal peculiar logics of space appropriationin the “urban acting,” which are re-builded in the sphere of everyday life and let us“see-the-city” and think the favela. The “street” proves to be an urban vital communicationalcategory that establishes a “placeness” where uses, senses and meanings can be apprehended as away of aestheticizing space. From this it is possible to identify the urban layout modeler flowsthat print a particular mapping of chance inspired by the dynamic network of sociability. MichelMaffesoli in several works reminds us that the network serves as a support. It is soft, butdoes not suggest fragility. It can sustain and be the matter of social cohesion.Keywords: City. Communication. Imaginary. Sociability. Culture.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010107Na d e r i v a d a “f a ve l a-Ba b e l”Mergulhar no ritmo das formas e dos sons, perder-se nas cores, nos corpos,sair desenhando com a imaginação a infinidade de semblantes...(HENRIQUES NETO, , p. ).Babel 2 : num vale da Mesopotâmia, o sonho do homem era fazê-la tãoalta que alcançasse o céu. É narrada pelo Gênesis como a primeira cidade,edificada a partir do barro e que teve sua imagem difundida através dostempos de forma paradigmática. A dissociação entre o homem e a naturezaadvém do aparecimento da cidade, surgida por volta de . a.C. Já não são oshumanos que se adéquam à natureza. A relação se inverte. Os homens criampara si um espaço separado do rural, o urbano. E deixam de ser meros mantenedoresdos ciclos reprodutivos da natureza, para se tornarem produtores,inventores, artífices do seu próprio lugar. Rompe-se o equilíbrio ecológico,se emancipam submetendo a natureza às suas exigências e projetos. O corteé muito bem simbolizado no episódio da Torre de Babel, jóia literária emmenos de dez versículos. Assim, o nascimento da cidade nos chega de formamítica, com apoio num discurso e numa imagem de representação de umacriação do homem. Como aconteceu com “Babel”, o erguimento das favelasna cidade do Rio de Janeiro foi obra coletiva. Entre as muitas possibilidadesde pensar a produção do conhecimento histórico do urbano no mundo contemporâneo,optamos pelo caminho do imaginário daqueles que ao longo desua história construíram a favela.A idéia da deriva 3 em muito se adéqua à nossa intenção de, inicialmente,sentirmos, nos deixarmos impregnar, estarmos incorporados aos lugares,às pessoas e às ações que se passam no interior dessa “favela-Babel”e penetram a mente e o corpo que, por sua vez, atuam em uníssono com omeio. A idéia da deriva também deve ser relacionada com a atitude de observadorda experiência, ou seja, da “observação incorporada”, para caracterizaro ambiente construído em sua experiência de viver (habitar, trabalhar,consumir, lazer, etc.), com vistas a enriquecer e conferir novo significado aoentendimento do lugar 4 .A deriva – este modo de comportamento experimental proposto pelossituacionistas 5 – pressupõe re-conhecer (ou redescobrir) a favela desconstruindoas formas culturais tradicionais e impregnadas de pré-concepções,a partir de um caminhar pelo ambiente sem uma direção ou rumo prédefinido.Como um ser errante, se percebe o percurso e, à medida que avançamosno ato de vagar, este se abre e atrai o olhar, os sentidos e o caminhar,criando impressões de uma situação que são definidas e emanam do espaço.Assim, o percurso e o mapa se delineiam a partir desta mesma lógica, numcompartilhamento sistêmico e integrado da comunicação e da informação– compreendida como significação em rede. Estes não se confundem, obrigatoriamente,com a geografia física.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010108É necessário esclarecer que se entende a comunicação, no contextodas sociedades urbanas contemporâneas, como um fenômeno e este comoum processo, que se desenvolve em várias dimensões individuais e coletivas.O nosso foco na cidade é a favela que nos remete aos moradores quetransitam em universos simbólicos de maior amplitude, “antenados” ou“conectados” em experiências que conformam ou formatam esse espaço apartir de suas “práticas cotidianas”.A nossa pesquisa revela uma parte da cidade pouco visitada. Convidamosao leitor a uma reflexão inusitada sobre a favela, pois o recorte que fazemosé no campo da cultura. Usamos a “virada cultural” como sustentação paraapresentar o cotidiano da nossa cidade. Entraremos pelos becos, pelas vielas,pelas casas, pelas avenidas e subiremos o grande viaduto rosa que existe naCandelária, Mangueira, para falar com o morador do morro que irá nos revelaro significado da sociabilidade comunitária. Vamos a campo com o intuitode compreender o ato de compartilhar o espaço da cidade. Inspirados peloimaginário de seus moradores, buscamos identificar em sua experiência docotidiano, os possíveis fluxos modeladores de seu traçado urbano que imprimemuma particular cartografia do acaso, do imaginário de lugar da favela.Essa imersão não é nova, pois esse trabalho está inserido numa pesquisa maior.Participamos do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade (CAC) doPPGCOM da <strong>UERJ</strong>/CNPq que desenvolve um trabalho de pesquisa na comunidadeda Candelária desde 2004 .u m l u g a r d e c o n t r a d i ç õ e sEntulhos, cacos de vidros, pedaços de madeiras, vergalhões, latões detinta. O lugar está sempre em obras. As ações dos homens da favela e os objetosque circulam pelos becos reproduzem um complexo de variáveis feito de espaçosdentro de espaços, sentidos dentro de sentidos, cidades dentro de cidadese becos dentro de vielas. As casas se reproduzem de maneira inesperada. Asruelas estão sempre anunciando uma obra. Espaço de obras em permanentemudança. Ao mesmo tempo em que assistimos a ancoragem em forma dehistórias de moradores antigos e de escola de samba que se traduz em tradição,por outro lado, assistimos as mudanças espaciais acontecerem de maneira acelerada.O lugar é de contradições mesmo, repleto de becos de esperanças nofuturo de uma obra bem sucedida, com algumas avenidas que servem de palcopara festas de luzes e de sons.Na nossa vivência com o cotidiano da favela, além de observar marcosde época, de um determinado momento que ficou gravado de diversas formasem sua relação com a cidade, buscamos trazer à tona as formas de sociabilidadee os registros de espacialização que acontecem na Candelária. Nossosesforços se farão no sentido de compreender as interações entre os homens quecirculam pelo morro, os processos de sociabilidade e as diversidades culturais.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010109Testemunhamos fixos e fluxos que nos envolvem em uma dinâmica de antagonismose negociações das redes de sociabilidade que formam a malha dafavela. Entender como determinados espaços vão se constituindo em “lugaresdo diálogo” a partir de práticas comunicativas em rede comunicacional. O queseria uma rede comunicacional da favela? Aqui falamos da rede que se tece nocotidiano da afetividade das relações da vizinhança e também das redes que seformam através dos computadores e que constroem comunidades de interesses.Michel Maffesoli em diversas obras nos lembra que a rede serve de suporte.Ela é maleável, mas nem por isso sugere fragilidade. Ela pode sustentar e sermatéria de coesão social.A rua é para circulação e é também para ancoragem. É ali que encontramosos amigos, abrimos a cadeira de praia e ficamos de papo com o vizinho.Assistimos as crianças brincando. No Beco do Juarez fazemos amor em pédurante horas e escutamos os sussurros e suspiros dos casais cúmplices. Existea possibilidade de transformação destes espaços de fluxos em espaços apropriadospelos seus moradores e desta maneira os espaços de circulação da favela setornam espaços públicos de sociabilidade. Vivemos as contradições entre osfixos e fluxos, sem maiores problemas na Candelária.O espaço da favela além de ser constituído por vias e edificações, isso éóbvio, nos permite ver do asfalto a beleza de suas construções. À noite com suasluzes acesas a imagem chega a ser lúdica e durante o dia a nossa imaginação éatravessada pela pergunta: como essas casas se sustentam sem projetos de umarquiteto? Porém, vamos ressaltar a importância das “redes de sociabilidade”que não estão ali o tempo todo, de maneira explícita, mas que servem de ossaturapara a constituição do social. Elas se materializam no espaço cotidianoda favela quando são sentidas pelos moradores. As diversas formas de ir e virque compõem a dinâmica do local aonde o ir à “padaria da Dona Penha” estácarregada de significados que ultrapassam a razão prática do cotidiano. DonaPenha não é apenas a “padeira”, pois sua força está além do pão que vende diariamente.Essa mulher transformou o lugar com as histórias que ouve diariamenteno seu balcão. Ela estendeu seu atendimento e colocou mesas e cadeirase hoje não sabemos se ainda podemos chamar tal estabelecimento de padaria.A análise a partir da noção de rede de sociabilidade implica direcionar oolhar para os moradores da favela, para as atividades e ações que empreendem,para os objetos a eles associados e que cumprem determinado papel nas associaçõesque estabelecem entre si. A organização dos moradores da favela emuma rede de sociabilidade possibilita nas relações horizontais e colaborativas,produzir narrativas, territórios de negociação e se conectar a outras redes afetivas,que os inserem como interlocutores do mundo globalizado. Na relaçãoentre o universal e o particular, entre unidade e totalidade se constrói a rededas relações interpessoais, e dentro dessa “rede” é que o sujeito pode recriarsignificados e conferir sentidos ao seu espaço cotidiano.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010110Milton Santos (apud FERRARA, ) nos permite inferir a emergênciade outra categoria de análise que apresenta grande plasticidade: trata-se da“lugaridade” que emerge entre interesses e trocas ou entre crenças e sentidos epermite perceber que, entre fixos e fluxos, mobiliza-se a corrente de informaçãoque impregna objetos e ações e, em constante metamorfose, converte os fixosdo mundo, produzido nos fluxos da cidade vivida. Entre fixos e fluxos, entreprodução e sentidos, entre técnicas e ações, a “lugaridade” apresenta-se comopossibilidade de “ver-a-cidade” que, por sua vez, permite distinguir o local e olugar: o primeiro atua como referência da paisagem, o segundo é o pólo cognitivoonde se podem apreender usos e sentidos e através dos quais é possível,podemos dizer, construir uma cartografia da favela e migrar da constataçãosociológica para a dimensão comunicativa que assinala sua história.Assim a favela, como o “lugar do homem” (PESAVENTO, ) é objetode múltiplas narrativas e olhares, que não se hierarquizam, mas se justapõem,compõem ou se contradizem sem, por isso, uns serem mais verdadeiros ouimportantes que os outros. Acredita-se no compartilhamento sistêmico e integradoda comunicação e da informação – compreendida como significação em“rede”. É comum alimentar curiosidades e especulações acerca do cotidianodos que habitam a favela, capaz de conferir sentidos e resgatar sensibilidadesem suas ruas, becos e formas arquitetônicas, aos seus personagens e às socialidadesque nesse espaço se fazem presentes. Uma mesma formação social comonos parece, por exemplo, a favela, pode abrigar diversidades e similaridades.Desse modo os fixos e fluxos, que conformam uma rede de sociabilidade,e que caracteriza uma “lugaridade” se aglutinam para permitir entender afavela como “espaço da comunicação” responsável pela caracterização de umcotidiano que se transforma em uma das maiores experiências da cidade.A d i m e n s ã o d a sociabilidadeA marca da Candelária é a diversidade e a heterogeneidade nas formasde se viver na favela, formas que contrapõem ou se completam nas práticas cotidianasde sociabilidade de seus moradores, numa dinâmica original. De forada favela, “do olho da rua”, da avenida que liga o centro do Rio aos bairros deBenfica e São Cristóvão, impressiona a fragilidade da sustentação das várias casinhasque, juntas, muito juntas umas das outras, conformam a sua paisagem.Nesse contexto é inegável a presença avassaladora de imagens, em aparente desorganização,gerando enorme impacto e consequente, “poluição visual”, poisdevem ser apreendidos de maneira muito rápida, simultânea e instantânea. Afavela contemporânea é um quadro em que, ao se olhar, não se contempla sóem detalhes e em que a informação passa a ter cor e textura no emaranhado desuas casas que se amontoam pela encosta do morro.A proximidade entre casa e rua causa certa cumplicidade e intimidade.A casa é a rua. A rua é a casa (DA MATTA, ). Tudo faz parte de um mesmoCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010111espaço, os limites não determinam onde termina a casa e começa a rua, e moldamas formas de viver em comunidade e que tem suas fronteiras desenhadasno imaginário de seus moradores. É a socialidade no cotidiano presente nasruas da Candelária que definem os traçados de uma mapa imaginário. Nasandanças por suas ruas e becos são construídas as especificidades que a diferenciamdas outras localidades da favela. É a “arte de moldar percursos”, “maneirasde fazer” que marcam o traçado simbólico do lugar de pertencimento(CERTEAU, ). É procurar entender o seu espaço como lugar do encontro eda comunicação, lugar da cena pública onde se desenrolam a diversidade, osconflitos, as práticas e os imaginários sociais compartilhados, as possibilidadesde diálogos. A rua é estabelecida a partir de uma interação comunicativa, desocialidade, de união, de confraternização, de solidariedade, de festa. É umacomunicação que busca arrancar uma expressividade do espaço estabelecendoa possibilidade e a exigência do diálogo e dos relacionamentos, para compreenderos processos de ocupação, apropriação e significação dos espaços, conferemuma cartografia particular ao seu traçado urbano.É na dinâmica da socialidade que as ruas da favela adquirem um significadopleno de sentidos e elementos simbólicos construídos por seus moradores apartir da articulação de seus repertórios culturais à percepção do ambiente quefundamenta possíveis fluxos modeladores de seu traçado urbano, inspiradospela comunicação e pelo imaginário do lugar. Tais práticas sociais, aparentementecotidianos e banais, criam à consistência do lugar, ou sua “lugaridade”, eformam uma cartografia simbólica (MAIA; KRAPP, ) com características própriasde experiências, ideias, crenças e opiniões. Nas ruas da Candelária esseselementos criam formas de estetizar o espaço da favela em ambientes – visuaise sonoros – “não-contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos em suatotalidade apenas [...]” pelos seus moradores (MAGNANI, , p. ), e que podemestar contribuindo para ampliar e ancorar identidades; memórias e imaginárioscontidos nos referenciais e narrativas dos moradores que expressam no seutraçado urbano os laços emocionais da constituição, da pertença, da união, dacrise e da ressignificação da favela.Esse próprio ato de caminhar pode ser motivo de estranhamento e admiração,afinal é a partir da observação que construímos as paisagens urbanasno seu ato de “habitar” a cidade, das formas de apropriação deste espaço porquem circula e frequenta as ruas, as calçadas, as esquinas, as praças, enfim,os lugares públicos da metrópole. Segundo Michel de Certeau (), toda cidadeé escrita pelos trajetos dos seus habitantes, cujas formas de vida deixam suasmarcas nas ruas do centro urbano e assim conformam ou formatam este espaçoa partir de suas “práticas cotidianas” ou dos “usos do espaço público” quetais práticas engedram.É uma abordagem que conduz a um encontro de especial subjetividadecom a favela: olhá-la como espaço vivido, interiorizada e projetada por gruposde pessoas que a habitam e com suas relações de uso que não só a percorremCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010como também interferem nas formas de circulação e nos sentidos determinadosde fluxos criando outros e redirecionando-os (MAIA; KRAPP, ). A favelapercorrida como um mapa pode ser um acúmulo de objetos, monumentos,ruas, painéis de escrita, textos oficiais, passagens, sons, imagens que se transformame ensinam através da experiência cotidiana.A rua como escrita e como toda escrita tem sua sintaxe? Mas o que nos fazpensar que a rua seja uma escrita? Nesta perspectiva, Márcio-André em seu ensaio“A poética das casas” () , nos fala de uma rua como a linguagem das casas:Uma rua não é propriamente um lugar material. Uma rua só tem sentidocomo possibilidade de caminhada e possibilidade de um destino.Não há estrada que não leve a parte alguma — mesmo uma rua semsaída e sem prédios leva a algum lugar no qual muitos já precisaram ir.Logo, a rua só é rua porque necessitamos caminhá-la, porque as casas,enquanto moradas singulares, precisam ser lidas em seu conjunto naescrita do improviso dos pés, consumação ortográfica da poética dascasas. É no caminho que as casas tomam sequência e sentido, escrevemum nome que vem antes de nós. (MÁRCIO-ANDRÉ, )112Assim, caminhar é a única possibilidade de significar as ruas da favela,apesar das motos que insistem em nos atropelar, pois o caminhar é partefundamental do habitar o morro. “A casa nos oferta abrigo, a rua nos impelea ir”. Na favela essa idéia também se mistura constantemente. A janela da salaestá aberta para o beco. Se na casa nos demoramos, com a via nos ancoramos.“Em nenhuma imagem, a relação com o destino, presente na matéria celestedas casas, está tão evidente. A rua é aquela pela qual os caminhos se cruzam ese refazem em suas diversas possibilidades, o estado pelo qual as casas não secansam de nós”, diz o poeta Márcio-André.Aprendemos com Michel de Certeau, em sua obra A invenção do cotidiano, que o interessante do cotidiano aos olhos dos homens é o seu lado“invisível”, pois:o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabeem partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existeuma opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nosprende intimamente, a partir do interior. [...] É uma históriaa caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada”(CERTEAU, , p. ).Ainda que cercado por múltiplas perspectivas de análise, considerandoseus interlocutores, a originalidade da obra de Certeau está justamenteno como ele inverte a forma de interpretar as práticas culturais contemporâneas,recuperando as astúcias anônimas das artes de fazer. Na perspectivada racionalidade técnica, o melhor modo possível de se organizar pessoase coisas é atribuir-lhes um lugar, um papel. Certeau, ao contrário, nosmostra que “o homem ordinário” inventa o cotidiano com mil maneirasde “caça não autorizada”, escapando silenciosamente a essa conformação.Essa invenção do cotidiano se dá graças ao que Certeau chama de “artes deCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os objetose os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso aojeito de cada um.“A Mangueira é mãe”: As narrativas sobre a construção do imagináriode lugar113Em nítida oposição à cidade onde predominam relações interpessoais,a favela é marcada por relações personalizadas, onde todos se conhecem e seajudam. Os laços de parentesco também são comuns, é frequente ocorrer namorose casamentos entre moradores da mesma área que procuram continuarresidindo nas proximidades.Essa solidariedade vivenciada cotidianamente cria vínculos e sistemaspróprios que garantem, mesmo que minimamente, os padrões de reproduçãosocial. É neste processo que nascem alternativas coletivas para suprir necessidadescomuns. Segundo João Baptista Mello (), tais envolvimentos, que despontamcom a experiência, a confiança e a afeição, denotam intimidade. Énessa abrangência que o imaginário de lugar da Candelária, é compartilhado eforjado pelo símbolo edificante da união entre os seus moradores, pois “tratasede um mundo vivido e filosófico, existencial e coletivo, de enraizamento,lutas e glórias, uma ‘morada familiar’.” (MELLO, ) Através de conversas comos moradores para a realização da pesquisa, pudemos perceber que, em suamaioria, não reconhecem outros lugares fora da comunidade que vivenciemtal experiência. Candelária e Mangueira são apontadas nas entrevistas como omais significativo da história de suas vidas. Eles falam com muito orgulho dolugar onde vivem “Aí, eu tenho, eu tenho muito orgulho deste lugar... Eu falocom os meus filhos sempre, se eu morrer dentro de um hospital vocês me ‘traz’o meu corpo ‘praqui’, vai embora daqui”.Falar do imaginário de lugar, o resultado histórico de um encontroentre o sonho individual e uma atitude coletiva sintetiza a importância das históriasde vida para entender o conjunto das experiências humanas no processohistórico, ou a articulação existente entre os indivíduos e as transformaçõessociais que influenciaram o espaço urbano local.Quando eu vim pra cá aos seis anos de idade, me lembro que tinhamuitos moradores, mas só que assim...tinha muito espaço...as casastinham quintal, né, tinha espaço. Conforme foi crescendo, os “filho”casando, ia aumentando aonde tinha quintal, ia aumentando mais outrocômodo (os “puxadinhos”), até que ficou todas as casas sem espaçonenhum “pras” crianças brincar.O começo de vida na Candelária, para muitos moradores, envolveugrandes sacrifícios, embora muitas vezes a rede social atuasse como amparo nosprimeiros tempos. Um exemplo disso, em meio a tantos outros, é o da DonaMaria da Penha Moreira, que há anos veio para a Candelária com marido efilhos realizar um sonho: ter uma padaria. D. Penha, como é conhecida nacomunidade, realizou seu desejo e na Rua Graciete Matarazzo, apelidada pelosCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010moradores por “Rua de Baixo” e principal logradouro da Candelária, construiusua padaria:Eu gosto de todos, de todo mundo... me ajudaram muito. Euvim “praqui”... sou muito grata e agradeço... não tem comoagradecer o pessoal do morro o que fez por mim, entendeu? Euvim “praqui” eu e o meu marido, só nós dois morando numquarto de três por três, com quatro “filho pequeno”... e eu tôaqui até hoje. E não tenho nada o que dizer contra do lugar...nada!1<strong>14</strong>É com a ajuda e união da comunidade que D. Penha se destaca comouma mulher empreendedora, criativa e com uma enorme capacidade de trabalho.Que, aliás, continua firme e forte. Com um produto de qualidade euma localização privilegiada, D. Penha chama a atenção pela maneira comose relaciona com seus fregueses. E diz com orgulho que seu estabelecimentoé um “bom encontro e referência” na localidade. E se, como dizia o poetaVinícius, a vida é a arte do encontro, D. Penha soube e sabe valorizar o quantoum bom lugar, uma boa média (café-com-leite e pão francês na chapa) e umaboa conversa podem tornar as coisas mais simples, mais simpáticas e mais interessantes.D. Penha e sua família tornaram a padaria seu lugar perfeitopara se conhecer os hábitos e gostos de seus fregueses. Aliás, é comum chegare ser chamado pelo nome e ter a certeza de que o café-com-leite e o pãozinhogostoso que se aprecia serão servidos sempre naquela temperatura (nem muitoquente e nem muito frio...), “Todo dia... de manhã seis ‘hora’, e agora, ‘hora’,estou aqui pra fazer o meu lanche”, fala seu Aírton Crispim Côrtes, anos, quereligiosamente ou “mês todo”, come seu sanduíche de pão francês (com queijoe presunto) e um copo de café-com-leite.A padaria faz parte da produção imaginária que a dinâmica social localconstruiu cujo conteúdo simbólico é possível de ser datado e classificado. Nestesentido, como parte de uma história, a padaria está vinculada a determinadascondições materiais e sociais, marcando distinções que estão presentes nas relaçõessociais do passado da Candelária mas, como também, no seu presente.Lugares e símbolos, através de laços emocionais conquistados ao longo de anos,adquirem um profundo significado. Portanto, a Candelária pode ser consideradauma “comunidade imaginada” (BAUMAN, , p. ) porque proporciona umsentido quase religioso de pertença e camaradagem entre aqueles que julgamcompartilharem um determinado lugar simbólico. O lugar é simbólico na medidaem que pode ser um espaço geograficamente unido, sedimentado pormeio de sentimentos simbólicos; a configuração da paisagem, das construçõese das pessoas tem sido investida com memórias coletivas que possuem suficientepoder emocional para gerar um senso comunal (FEATHERSTONE, ).Certos lugares podem ser revestidos de um determinado status emblemático,como a padaria da D. Penha, e usados para representar uma forma de laçosimbólico que se sobrepõe e encarna as várias afiliações locais que as pessoasCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010115assumem (Ibid.). Assim, a criação de uma comunidade é inventada, mas não apartir do nada. Enfatiza-se a necessidade de um repositório comum de acontecimentos,paisagens e recordações, organizados e feitos para assumir umaqualidade primordial.É no contexto do imaginário construído pela cidade que poderemos localizarmemórias territorializadas na Candelária. Território cuja organizaçãoé marcada de características e especificidades, tanto pelos objetos, moradias,comércios e pessoas que aí se encontra, quanto pela maneira de apropriar-se,utilizar-se e considerar esse conjunto de elementos. O espaço não é somenteuma área geográfica, mas também uma forma de relação com os objetos estruturadosnuma cultura e, sobretudo, uma rede relacional de representaçõesem que os membros de uma mesma coletividade concedem significados, geralmentereconhecidos, a elementos e características de seu espaço. Nessa abrangência“um indivíduo não é distinto de seu lugar, ele é esse lugar” (RELPH, ).Trata-se do existencial e coletivo, de enraizamento, lutas e glórias e, segundoMello (), do sonho e da realização de abrir uma padaria, D. Penha decorre delembranças notáveis de orgulho e do bem comum, uma significação especial“Não tem como agradecer o pessoal do morro o que fez por mim”.“A r u a s h o w d e b o l a d a Ma n g u e i r a e s t á c o m o Br a s i l n o Pa n”Quando se tem em mente discutir as dinâmicas de socialidade que nelatêm lugar, um primeiro aspecto a se considerar é a sua complexidade no “agirurbano”. No cotidiano da favela – e interessa-nos buscar a pluralidade de sentidosproduzidos e em produção – sua diversidade de sons, escritos, sinais,conversas que se processam em suas ruas e são expressões da diversidade quemantém a dinâmica deste espaço.Os processos de significação do espaço que acontecem a partir da socialidadesão fundamentais, pois é através deles que podemos ver como, porexemplo, a rua, uma parte vital da favela, é construída e compartilhada nocotidiano. Possibilita acompanhar os movimentos, perceber sons, imagens etextos e as maneiras pelas quais se criam novas interpretações das mesmaspaisagens. A favela passa a ser abordada como um espaço de comunicação, deprodução de “mensagens” que marcam suas ruas, muros, como espaço polifônicode autorias variadas e conflitantes. O objetivo não é decifrar este texto,mas compreender o processo da sua constituição. Do ponto de vista do olharda comunicação, podemos dizer que o texto polifônico da favela é produzido apartir das narrativas que resultam de relações de sociabilidade.No ano de os Jogos Pan-americanos chegavam à cidade e, também, àCandelária. A rua denominada Avenida Neves estava sendo ornamentada paraconcorrer no concurso “Nossa rua, nosso Pan” que a Prefeitura do Rio realizavapara premiar a decoração mais criativa com o tema do Pan . O concursovisava estimular a tradição do carioca de se mobilizar em torno de grandesCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010116eventos e fortalecer os vínculos comunitários dos moradores das diversas regiõesda cidade. E isso me parece, cada vez mais, a vocação da Candelária. Nãopodíamos deixar de registrar a representação de um grande evento na cidadepela comunidade da Candelária, no seu lugar. A Candelária é participativa. Elaquer trazer para a favela o espírito do Pan.Observamos as conversas, as tomadas de decisão, as tensões, ou seja,toda a dinâmica da construção de um imaginário do lugar que representasseum evento que mexeu com o cotidiano da cidade. Eufórico “Partidinho daMangueira” , nos fala: “Aqui na comunidade a gente faz eventos. Há anos agente realiza a tradicional festa junina. E agora estamos no concurso da Rua doPan... ‘A rua show de bola da Mangueira está com o Brasil no Pan’ é o nossolema desse ano”.Mas como a Avenida Neves se tornou a “Rua show de bola”? Partidinhodiz que a rua, no caso avenida, era muito apagada, sem vida. E vislumbrouque participando de um concurso de decoração de ruas poderia trazer oportunidadespara melhorá-la. Assim, no ano de , inscreveu a Avenida Neves noconcurso “Rua show de bola”, promovido pela Rede Globo de Televisão paraa Copa do Mundo de futebol. “Já é uma tradição enfeitar nossa rua. Já quaseganhamos o concurso da copa do mundo de . Ficamos em segundo lugar” .Um grande evento, como o Pan-americano, a exemplo da Copa doMundo, é capaz de unir as pessoas. E isso não foi diferente com os moradoresda Candelária que expressaram toda a paixão pelo esporte. O mutirãoé para enfeitar a rua onde eles moram. Uma tarefa feita com prazere quem sabe até inspirada pela proximidade com o Estádio do Maracanã,palco da abertura e do encerramento da festa e lugar de competição dealgumas modalidades.A “galera” trabalha compenetrada, “no gás”, afinal tudo tem que ficarpronto, pois “a prefeitura vem aqui ver os desenhos, ver nosso trabalho”, paraselecionar as ruas que estarão na etapa final do concurso. Então, imaginem,os ânimos estavam agitados e concentrados na missão de deixar tudo conformeo regulamento, perfeito, bem bonito e caprichado. E para dessa vez nãodeixar margem a dúvidas de que a “rua Show de Bola da Candelária” mereceo primeiro lugar.Mas, graças à participação no concurso em , a rua melhorou bastante,pois trouxe animação pra comunidade. Quando se aproxima o iníciode um evento desses, como uma Copa do Mundo e agora com o Pan,eles mesmos perguntam “Vai ter a rua? Vai ter a pintura?” A gentepega as crianças para pintar os desenhos que a rapaziada faz. Williamvai desenhando, armando os desenhos e depois as crianças vêm parapintar. Então, o barato é esse! As crianças pintam com noção do queeles têm que fazer. Então, as crianças se “amarra” nisso!Uma comunidade em contagem regressiva. Faltavam menos de ummês para o início dos Jogos e as cores do Pan já coloriam a cidade. EmCartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010época de Pan, era hora de mostrar o orgulho em vestir a cor do Brasil. Ea Candelária não ficou de fora dessa torcida. Como todas as atenções naépoca eram para o Pan, a festa junina deste ano ficou para agosto, “Asmelhores festas juninas que nós fizemos aqui são em agosto. E o nome danossa festa é até “Festa de agosto que dá gosto”. É um mês de festa, todasexta, sábado e domingo”.O que mais incentiva Partidinho com a organização desses eventos é apossibilidade de divertir e alegrar a comunidade. Ele lembra emocionado deuma atração que, há alguns anos atrás, com apoio dos projetos especiais daPrefeitura do Rio, conseguiu trazer: um show de circo.Esse show ficou marcado para mim na Candelária. O palhaço (dáuma parada e sorri lembrando do fato)... ele fez uma graça na minhafrente. Quando eu me toquei que, pela primeira vez, eu “tava” vendoum palhaço de perto... e eu “grandão”, já “cascudão”, nunca tinhavisto um palhaço legal. Quando eu olhei para cara das crianças,“tava” todo mundo de boca aberta... aí eu me toquei que ninguémnunca viu também!117Esse clima de festa representa para comunidade um estímulo de melhorias.Num certo sentido ela nos aproxima daquilo que Certeau () abordaem Invenção do cotidiano. O autor fala de um sentido (senso) comum quereuniria uma liberdade (moral), uma criação (estética) e um ato (prática). Osenso comum não divide a teoria e a prática, como se pensa normalmente,mas estaria presente numa arte de pensar necessária tanto às teorias e quantoàs práticas cotidianas. Este juízo permite pensar as diversas formas deviver a simultaneidade temporal e espacial em jogo no espaço da favela.Essa tradição de reunir os moradores da rua também serve paraformar novos amigos. Eu gosto de festa, eu gosto de participar! Eincentivar as pessoas a participar também. Comunidade é isso que agente tá vendo mesmo. É um ajudar ao outro, cada um tentar fazerpelo próximo, que o próximo vai fazer por ele. Eu acho que é por aíque se constrói a comunidade.Tornar a rua uma festa a partir do trabalho de um grupo de moradoresque não se importa em perder noites e madrugadas de sono, para queseja a mais bonita do bairro e até da cidade. “Quem não queria colaborar,quando viu o resultado, resolveu ajudar”, Tanta dedicação é para ver aCandelária ser campeã sempre na participação, na sociabilidade, na solidariedade,na esperança e de que viver com alegria pode ajudar e muito apassar pelas dificuldades da vida.A Candelária é minha moradia, é o meu lazer, diversão, meu trabalho,aqui é tudo! E pode ficar melhor, mas precisa de mais ajuda governamental.Na nossa comunidade tem muitas coisas que podem sermelhoradas e criadas. Enquanto não chegamos lá, Beto-sem-Braçotinha um lema “o que espanta miséria é festa”. Pelo menos a festa unea todos, pelo menos naquele momento ali alegre, vai curtir, vai atéesquecer que tem algum problema, pelo menos naquele momento. Afesta traz alegria e a alegria o prazer de viver.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O time da Candelária também está de olho no campeonato: quem vailevar o título desta vez? Como sempre empolgado e contagiante Partidinhovislumbra que “esse ano vai ser a Rua show de bola na cabeça”.No t a s1Trabalho apresentado no XV Ciclos de Estudos sobre o imaginário – Fórum IX - Terrenoe arquitetura, uma simbiose entre o ser e o mundo, Recife (PE), outubro de 2008.2Segundo o Antigo Testamento (Gênesis 11,1-9), torre construída na Babilôniapelos descendentes de Noé, com a intenção de eternizar seus nomes. A decisãoera fazê-la tão alta que alcançasse o céu. Esta soberba provocou a ira de Deus que,para castigá-los, confundiu-lhes as línguas e os espalhou por toda a Terra.3“Modo de comportamento experimental, ligado às condições da sociedade urbana;técnica que consiste em passar apressado, por ambientes diversos. Designa,também e mais particularmente, a duração de um exercício contínuo dessa experiência”.JACQUES, Paola B. Apologia da deriva. Casa da Palavra, 2003.1184Os conceitos de lugar são fundamentados em Yi-fu TUAN (1980), como o lugarsignificativo, o lugar da experiência, da história e da memória; em ChristianNORBERG-SCHULZ (1979): caráter do lugar: orientação e identificação do homemcom o ambiente e sua conotação simbólica como base existencial; e em KevinLYNCH (1960 e 1981), pelo sentido do lugar: relação entre a forma do ambiente eos processos perceptivos e cognitivos humanos.5Internacional Situacionista, sociedade de ultra-esquerda fundada em 1958 porGuy Debord e, entre outros intelectuais, artistas alternativos e estudiosos de todoo mundo (JACQUES, 2003). Os situacionistas, descontentes com o modo de vida ede consumo do espetáculo imposta pelo capitalismo moderno, consideravam queo urbanismo havia se transformado em espetáculo e que as relações sociais e aparticipação haviam sido destruídas pelo capital.6Ver trabalhos do pesquisador coordenador do CAC João Maia no INTERCOM-Comunicação para a Cidadania em 2005 e 2006 e COMPÓS- Comunicação eCultura em 2006 e 2007.7Há 30 anos, um dos principais pontos de referência e encontro na Candelária.8Estudo das relações que as palavras estabelecem entre si nas orações e das relaçõesque se estabelecem entre as orações nos períodos.9O poeta Márcio-André inspirou-se em Emmanuel Carneiro Leão: a Viagem é alinguagem da paisagem; Uma paisagem é a linguagem das vias.10Em parceria com a organização não-governamental Meninas e Mulheres doMorro, formada por lideranças comunitárias da Candelária-Mangueira.11Depoimento no dia 11/05/2007 da D. Adineva da Cruz, 72 anos, nascida e criadana Candelária.12Depoimento no dia 18/05/2007 da D. Maria das Graças da Costa LouzadaQueiroz, 58 anos, nascida em Tombos de Carangola, Minas Gerais e criada naCandelária.13Homenagem dos moradores “a uma grande mulher”, que trouxe várias melhoriasno lugar, como: calçamento, escada, água nas casas, entre outras. É um importantesímbolo do imaginário do lugar.<strong>14</strong>Depoimento no dia 25/05/2007 de D. Maria da Penha Moreira, 67 anos, nascidae criada em Descoberto, Minas Gerais, e proprietária da padaria Eliete Gama, nomedado em homenagem à filha caçula.15Apelido de William de Jesus Melo, nascido e criado na Candelária há 39 anos.Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Além trabalhar como Guarda Municipal da Prefeitura do Rio de Janeiro, é compositorda Mangueira, dono do trailler do “campinho” e organizador da festa juninaque acontece na comunidade.16Eles atribuem a culpa à Sandra de Sá, que não deu o ponto que faltava paraganhar o primeiro lugar no concurso. O 1º lugar foi para a Rua Jorge Yúdice, emVila Isabel.17Depoimento no dia 22/06/2007 de William de Jesus Melo.18Depoimento no dia 22/06/2007 de William de Jesus Melo.19Depoimento no dia 22/06/2007 de William de Jesus Melo.20Depoimento no dia 22/06/2007 de William de Jesus Melo.21Depoimento no dia 22/06/2007 de William de Jesus Melo.22No concurso “Nossa rua, nosso Pan” que a Prefeitura do Rio realizou para premiara decoração mais criativa da cidade, com o tema do Pan 2007, a Rua Show deBola da Mangueira ficou em 4º lugar.119Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficaBAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, .CANEVACCI, M. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicaçãourbana. São Paulo: Studio Nobel, .CASTELLS, M. O Poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, .CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano : artes de fazer. Petrópolis: Vozes,.______.A invenção do cotidiano : morar e cozinhar. Petrópolis: Vozes, .______. A cultura do plural. Campinas: Papirus, .DA MATTA, R. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.Rio de Janeiro: Rocco, .FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismoe identidade. São Paulo: Studio Nobel/SESC, .120FERRARA, L. D’A.. Cidade: fixos e fluxos. In: SIMPÓSIO INTERFACES DASREPRESENTAÇÕES URBANAS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO,São Paulo, . Anais...São Paulo: Senac, .GIDDENS, A.. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed.UNESP.HENRIQUES NETO, Afonso. Cidade vertigem. Rio de Janeiro: AzougueEditorial, .JACQUES, Paola B. Apologia da deriva. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,.LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio deJaneiro: Ed.,.LYNCH, Kevin. A imagem da cidade.. São Paulo: Martins Fontes, .MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do indivíduo nas sociedadesde massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, .______. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, .______. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro:Atlântica Editora.MAGNANI, J.G.C. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole.In: MAGNANI, J.G.C.; TORRES, L. (Org). Na metrópole. textos deantropologia urbana. São Paulo: Edusp/Fapesp, .MAIA, J.; KRAPP, J. Comunicação e comunidade: novas perspectivas dassociabilidades urbanas In: FREITAS, R. F. e NACIF, R. (Org.). Destinos dacidade: comunicação, arte e cultura. Rio de Janeiro: Ed<strong>UERJ</strong>, .Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010MARCIO-ANDRÉ. A sintaxe das ruas. In: Revista Confraria Literatura e Arte.Rio de Janeiro: Editora Confraria dos Ventos, edição de número . Disponívelem: .MELLO, J. B. F. Símbolos dos lugares, dos espaços e dos “deslugares”. RevistaEspaço e Cultura. Rio de Janeiro: Nepec, <strong>UERJ</strong>, n. , jul-dez. , p. -.MORIN, Edgar. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, .NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology ofarchitecture. New York: Rizzoli, .PESAVENTO, S. J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. Paris,Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Universidade, UFRGS, .SALGUEIRO, T. B.. Espacialidades e temporalidades urbanas. In. CARLOS,A. F. A; LEMOS, A. (Org.). Dilemas Urbanos: novas abordagens sobre a cidade.São Paulo: Contexto, .RELPH, Edward. Place and placelessness. London: Pion, .121SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científicoinformacional.São Paulo: Hucitec,.______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:Hucitec.______. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, .SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início doséculo XXI. Rio de Janeiro: Record, .SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A. (Org.) A aceleração contemporânea: tempo mundoe espaço mundo em fim de século e globalização. São Paulo: Hucitec-Anpur, .SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Riode Janeiro: Record, .______. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:Companhia das Letras, .SILVA , R.H.A. Espaço urbano, espaço da comunicação. In: CONGRESSOBRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, Belo Horizonte, .Anais...São Paulo: Intercom, .SILVA,R.H.A.; GONZAGA,M.M.. Redes culturais em territórios urbanos.In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO,Rio de Janeiro, . Anais...São Paulo: Intercom, .TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, .Cartografia do acaso: percursos à deriva no imaginário da Candelária,favela da Mangueira, RJ


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A arquitetura do medo: umestudo sobre Barra da Tijuca e aprática do não encontro 1The architecture of fear: a study of Barra daTijuca and the practice of not meetingMônica C. P. Sousa | sousamonica@hotmail.comMestre em Comunicação (<strong>UERJ</strong>). Professora daFaculdade do Sul Fluminense (FASF).ResumoEste trabalho busca discutir o imaginário das grandes cidades a partir da violênciaurbana. Dessa perspectiva analisamos a reconfiguração dos espaços da metrópole cariocae de que maneira o medo da violência altera as relações humanas. Novos bairrossurgem e antigos se reestruturam, criando uma nova arquitetura para a cidade. Comoobjeto de estudo, pesquisamos o bairro da Barra da Tijuca, área nobre da Zona Oestecarioca e seus condomínios fechados.Palavras-chave: Espaço urbano. Violência. Comunidade. Comunicação.AbstractThis article discusses the imaginary of big cities about urban violence. From this perspectivewe examine the reconfiguration of spaces in Rio metropolis and how the fear of violence altershuman relations. Old neighborhoods emerge while old ones are restructured, creating a newarchitecture for the city. As the object of study, we surveyed the neighborhood of Barra daTijuca, a noble area of the western zone of Rio de Janeiro and its closed condominiums.Keywords: Urban space. Violence. Community. Communication.A arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã oA cidade, grande cemitério do reino animal,fechou-se asséptica sobre as últimas carniças enterradascom as últimas pulgas e os últimos micróbios.O homem finalmente havia restabelecido a ordemdo mundo que ele próprio transtornara: não existianenhuma outra espécie viva para recolocá-lo emdúvida. Como recordação do que era fauna, a bibliotecade Teodora conservaria em suas estantes ostomos de Buffon e de Lineu.(CALVINO, 2003)123Estar entre o bem e o mal da sociedade são concepções que, além desubjetivas, invocam escolhas de posicionamento. O grande mérito, e daí a dificuldadede polarizar a sociedade, seria saber com precisão o que pressupõeestar em um ou noutro. E é esse um dos grandes questionamentos da contemporaneidade.A cidade é pulsante, um emaranhado de misturas, de cores,de formas e de saberes. Restringir seu conceito a termos como bom ou ruim,lado do bem e lado do mal é limitar sua característica primordial de abarcaro múltiplo e ser concebida como tal justamente pela incompatibilidade. Nacontemporaneidade, sem nos atermos aos conceitos divergentes de moderno epós-moderno, temos um outro jeito de experimentar a cidade e o diferente queesbarram em nós nas calçadas, nos transportes coletivos ou no trânsito, mesmoque com a janela como limite. É feita e concebida pela mistura, pelo diferentee, muitas vezes, por aquilo que se quer excluir e que fica relegado à exclusão.São esses “detritos” das grandes cidades que os novos espaços urbanos afugentampara além dos muros.Para Ítalo Calvino (2003) todas as cidades são parte de uma mesmacidade. Caracterizá-las e defini-las depende das lembranças de cada viajantee dos detalhes que a diferenciam. Os monumentos, as construções eos emblemas estão presentes em todas elas. Sejam as estátuas, que réplicas,invocam o espírito de outras metrópoles sejam as modas das mulheres quese repetem pelas estações do ano. Pensar a cidade do Rio de Janeiro é encontrá-laem diferentes aspectos em muitas outras metrópoles do mundo,o que Bauman (apud CANCLINI, 2003, p. 153) definiu como “habitatsde significados” – ofertas de diferentes espécies provenientes das mais diferentesculturas além da sua própria.O m e d o a l é m d a s p o r t a s e m u r o sA falta de conhecimento prévio! Mesmo lacônica, a frase nos fazcompreender o conceito de medo definido por Baumam (2008). Para ele,o medo é a falta de motivos claros, algo sem endereço nem explicaçãoA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010124visível. É o escuro da idade das trevas – que se prolonga na contemporaneidadecom novas características. É a dúvida do que se vai encontrar,daquilo que está à espreita (ou apenas é a sensação de que há algo latente);“medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaçae do que dever ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-laparar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance” (Id., p.8).Utilizando o conceito de contemporaneidade – como o que ainda guardaresquícios do tradicional – podemos pensar o medo na sociedade contemporânea,a partir das idéias de Giddens (1997). Segundo ele, o “fim” das estruturasfundamentadas na tradição resulta em uma infinidade de possibilidades quegera insegurança, ao mesmo tempo em que produz o sentimento de vulnerabilidadedescrito por Bauman. As probabilidades nos colocam em posição de suporo futuro, entretanto, ao tentarmos colonizar o futuro, o que conseguimosé uma maior frustração na incerteza daquilo que vamos encontrar.O autor compara sua própria concepção de estranho com a de Simmel(1983). Enquanto para este o estranho é aquele que, além de pertencer ao mundodesconhecido, permanece e obriga a uma tomada de decisão quanto à suaaceitação ou não como alguém do grupo; Giddens acredita que o estranho éaquele que não é familiar, que não é “estruturado pelas tradições com que acoletividade se identifica” (p. 101).Na nossa contemporaneidade, estilos de vida são criados como uma tentativade ordenar o mundo, apenas uma tentativa – de deixar claro quem é queme a maneira como escolhem viver é uma forma de representar a reflexividade(GIDDENS, 1997) da nossa sociedade, de deixar em evidência uma legitimaçãode poder. Reestruturar a tradição de criar categorias é uma maneira de se manterseguro. Uma das categorias dessa divisão pode ser encontrada no Rio de Janeiro apartir da criação de novos bairros, como a Barra da Tijuca (BT). Morar na Barrapressupõe valores de segurança, conforto, lazer e meio ambiente, em um mesmoespaço. Uma tentativa de viver em meio ao caos da violência urbana.Dados da primeira década do século XV – período das primeiras estatísticasde Paris – apontam o elevado número de crimes contra a pessoa. “Em<strong>14</strong>05-<strong>14</strong>06 [...], 54% dos casos que chegavam às cortes criminais relacionavam-sea ‘crimes passionais’; apenas 6% decorriam de roubos; de <strong>14</strong>11 a <strong>14</strong>20,76% das ocorrências foram contra pessoa; 7% ligadas a roubos”. (SENNETT,2001). Em Genebra (MICHOUD, 1989), na segunda metade do século XVI,em 1562, 31% das ocorrências eram referentes a brigas e roubos; ou em Parisem <strong>14</strong>88, das cem pessoas presas em uma semana, metade foi pelo uso de violênciafísica. Outros exemplos são os condados britânicos de Norfolk, Warwickou Oxford que tinham em 1202-1276, respectivamente, 719, 276 e 309 vítimaspara cada 100 mil habitantes.Em Paris, por exemplo, no século XVI, as ruas começam a ser estruturadas(SENNETT, 2001) para o aprimoramento comercial. Uma novaA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010125arquitetura possibilitou que os mercadores expusessem melhor o estoque.Aos poucos a nova realidade transforma as transações comerciais e alterao tempo da rua, que passou não mais a depender tanto da luz do dia,o que aumenta seu potencial de utilização. Concomitantemente, as ruaseram reconhecidamente violentas. O século das luzes e toda promessa detransformações dos ideais, a partir de então, calcados mais fortemente narazão, não impediram que novos temores surgissem.Pela metade do século XVIII, as ruas, seja de Paris ou Londres, eramsujas, pequenas e escuras. Andar por elas era uma atividade corriqueira deencontro, de reconhecimento dos lugares e de lazer (SENNETT, 1998). Aomesmo tempo, o prazer do passeio pela cidade, que explorava os monumentos,as igrejas e as praças (menos uma questão de se ver panoramas e sim ver gente)se confrontava com os crimes violentos cometidos mesmo durante o dia. Eraum convívio permanente de tensão, entre o encontro nos primórdios do espaçopúblico urbano e a convivência pouco pacífica entre os indivíduos.É importante analisar esses números e com eles desmistificar que talvezestejamos em uma época mais perigosa que as anteriores. O que presenciamos,podemos pensar, é uma maior capacidade de destruição pelos armamentosbélicos que em segundos destroem o equivalente a anos das guerras medievais.Para exemplificar os sentimentos de estarrecimento quanto à violência das cidadesno século XVIII, Michoud (1989) cita A. Farge, que declara o espanto dasensibilidade moderna com a violência das ruas e traça um retrato da gravidadedos ataques a partir dos relatórios médicos, que informam sobre o uso tantode quaisquer utensílios cortantes quanto caçarolas, caldeirões, barquinhos demadeira, como forma de ataque. Para Farge, “a agressão é simplesmente umaresposta à outra violência, a dos tempos. [...] É uma violência dos pobres entresi” (apud MICHOUD, 1989, p. 34).É claro que não pretendemos, aqui, traçar um paralelo entre a violênciadas cidades européias dos séculos passados com a violência das cidades brasileirasno século XXI. Mas os exemplos podem representar a violência comoalgo latente nas urbes das idades Média e Moderna, com suas aglomerações,escuridão e diferenças sócio-econômicas, distintas dos critérios e dos problemasatuais. Ao contrário das épocas anteriores, vivemos a criminalidade concomitantementecom os últimos lançamentos de sistemas de segurança físicae, ao mesmo tempo, com os seguros sociais. O que propomos, pois, é pensara violência numa cidade como a do Rio de Janeiro como um amálgama defatores que ultrapassam as dicotomias superficiais de pobres/ricos, brancos/negros, centrais/periféricos.Muniz Sodré (1992) avalia a violência como uma ruptura da força de formadesordenada e explosiva, que motiva a delinquência e outras ilegitimidadesnomeadas pelo Estado. Essas agressões, que ele chama de violência anômica,podem ser entendidas como: assaltos, crimes de morte, massacres e variantes.A arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010126Nas suas análises, o autor confronta esse modelo de violência (ato de violência)ao modelo de violência institucional (estado de violência), determinada pelainércia dos indivíduos frente à brutalidade dos órgãos burocráticos do Estado.De tal maneira, os indivíduos, pela coação, se vêem destituídos de força pelosaparelhos e estruturas sociais. Por essa percepção, Muniz Sodré pensa a violênciacomo um processo de encadeamento, que gera um efeito de circulaçãosequencial na coletividade. É importante pensar para esse trabalho a maneiracomo o autor coloca não somente a comunicação de massa como definidorados modelos de encadeamento, mas também como o urbanismo e a arquitetura– nesse trabalho específico, ambos são imprescindíveis – acompanham asmudanças culturais que transformam as atitudes humanas.É pelos contatos encadeantes, e por isso contagiantes, que a operação deepidemia se faz possível na disseminação da violência urbana, porque expõe unsaos outros, à circulação, a um espaço que se torna geograficamente habitadoestruturalmente de maneira marginal pelo sistema moderno de urbanização eprodutividade. O paradoxo brasileiro é percebido quando a balança comercialestá em superávit; o “risco Brasil” atinge índices cada vez menores; armamentose meios de transporte e de comunicação sofisticados; ao mesmo tempo emque convivemos com pobreza, miséria, narcotráfico, favelas. O paradoxo contemporâneoconvive entre a proximidade da ostentação e da miséria.En t r e Cl o é e No v a Io r q u eEm Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não sereconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umasdas outras, os encontros que pode riam ocorrer entre elas, as conversas,as surpresas, as ca rícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta,os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuramoutros olhares, não se fixam. (CALVINO, 2003, p. 53)Chamada de a Miami brasileira por Carlos Lessa (2000), o bairroda Barra da Tijuca, área nobre do Rio de Janeiro, está localizado na ZonaOeste da cidade e faz parte da Região da Barra da Tijuca, que abrangealém do bairro com o mesmo nome, os bairros Camorim, Grumari,Itanhangá, Joá, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e VargemPequena. O bairro da BT está dividido em condomínios fechados (horizontais,verticais e mistos), shoppings e avenidas.Apesar de ser a menor região em população da cidade, os dados demográficosindicam que a região foi a que mais cresceu no Município nadécada de 1990, cerca de 44%. Com um alto Índice de DesenvolvimentoHumano (IDH), de acordo com o Censo do IBGE de 2000 2 , sua densidadebruta de 10,5 habitantes por hectare é a menor entre as 12 regiõesdo Plano Estratégico que compõem o Município 3 – uma área de 16.559hectares, na qual residem 174.353 habitantes, segundo o mesmo Censo. Omaior aumento populacional ocorreu na segunda metade da década, comA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 20100127uma taxa relativa de crescimento de 26%.No mesmo documento do Plano Estratégico são definidas diretrizes voltadaspara os potenciais da região, como lazer, turismo, negócios, plano urbanísticomoderno, e preservação ambiental. A região que compõe a Barra daTijuca já surge com a proposta de transformar-se em um lugar dos sonhos, queconjurasse, no mesmo espaço, elementos determinantes e falíveis na cidade doRio de Janeiro, como a questão do meio ambiente e de segurança; e, concomitantemente,se tornasse uma “catedral do consumo”, com shoppings, salas deteatro, complexos de cinemas e parques aquáticos.Usando o mesmo lema de Guimarães Rosa de que “viver é muito perigoso”os novos bairros/cidades exacerbam nossas percepções preconceituosas dooutro, de criar estigmas pejorativos da vida fora dos muros dos enclaves fortificadosdescritos por Teresa Caldeira (2003, p. 211) como “espaços privatizados,fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho”. Estar forados condomínios é estar à mercê do imprevisível, de uma realidade que nãoobedece a normas e está sempre na categoria do concretamente possível. Se omedo gera reclusão, o resultado deste não pode ser outro que não mais medo.Criamos uma busca constante por uma cidade exemplar, o que Rafael Argullolchamou de cidade turbilhão: “modelo de uma cidade cujo principal desígnio édefender-se dela mesma” (ARGULLOL, 1994, p. 67).No livro Carne e pedra (2001), Sennett descreve os artifícios criadospara que a convivência com os judeus fosse possível. Utilizando do conceitocunhado por Brian Pullan, o autor descreve a “segregação sem expulsão” impostaaos judeus em Veneza. Por tal concepção, a segregação era não de umatotal exclusão, mas pautada por regras que diferenciavam os grupos e que,através de uma solução espacial, delimitava as zonas de convivência. Podemoscontextualizar o conceito de Pullan, criando um paralelo contemporâneo narealidade brasileira, na qual tal “segregação sem expulsão” possa ser adaptadaàs condições contraditórias das divisões sociais das cidades brasileiras, emborao conceito se refira a um contexto e época totalmente distintos.A relação da cidade com o homem é pautada por barreiras impostas pelareurbanização, o que para Camilo Sitte (apud, SENNETT, 1998, p. 359) extraemo seu valor principal – o favorecimento do contato. Por essa concepção,o enfrentamento deve ser estimulado para que os seres humanos se habituem acorrer riscos e aprimorem suas percepções e experiências. No entanto, percebemosque nas grandes cidades – principalmente naquelas com altos índices decriminalidade, como é o caso do Rio de Janeiro – a urbanização de espaços tãoracionais é resultado do medo da violência urbana.Bauman (2003), com um pensamento pessimista, entende as comunidadesexistentes como “fortalezas sitiadas” que se vêem ameaçadas por inimigosinternos e externos e, por isso, “trincheiras e baluartes são os lugares onde os queprocuram o aconchego, a simplicidade e a tranquilidade comunitárias, terãoA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010128que passar a maior parte de seu tempo” (Ibid. p. 19). No entanto, Maffesoli(1998) com sua postura de reencantamento do mundo crê ser possível quecomunidades ainda existam numa pluralidade de elementos. Seu conceito de“comunidade de destino” é baseado na possibilidade de se exprimir solidariedadepor meio de projetos racionais ou políticos. E a idéia de comunitáriosurge exatamente porque há a proximidade, a partilha de um mesmo território,de interesses análogos. Não é somente a concepção de cidade que se modificacom o tempo e a partir de novas configurações, mas principalmente a maneirae o porquê de estar neste espaço. Os novos bairros das grandes cidadesmundiais – ou, no caso específico deste trabalho, a Barra da Tijuca no Rio deJaneiro – são evidências de que novas concepções de comunidade surgem pelanecessidade de se adaptarem à realidade das relações humanas.Para Bauman tais comunidades são mostras da frivolidade e superficialidadedos grupamentos humanos, o que ele denomina “comunidades cabides”,“os laços são descartáveis e pouco duradouros. Como está entendido e foi acertadode antemão que esses laços podem ser desmanchados, eles provocam poucasinconveniências e não são temidos.” (2003, p. 67) Segundo ele, nada do quefor sentido como útil até que seja satisfatório e que corresponda ao homogêneocorresponde ao conceito de comunidade. “Uma multidão de Don Giovannisnão constituiria uma comunidade”. (Ibid., p. 52).No mundo de neotribalismos, em que o que é vivido junto se tornacimento para a proximidade, talvez, em nossa época tão desordenada, sejaexatamente o que determina a aura do nosso relacionamento com o outro.Um caos urbano de um relacionamento de não-relacionamento. Nossos conceitosde encontro e de proximidade se vêem totalmente distorcidos e precisamosreinventá-los. Isso é o que Maffesoli chama de relação táctil, na qual asinterações existem como união em pontilhados – o que não pressupõe umapresença plena do outro.Talvez seja exatamente esse o conceito de comunidade em bairros comoa Barra da Tijuca, na qual há uma prática de comunidade, mas que se apresentacom uma experiência diferente. Desta maneira, o neotribalismo certificaos novos reagrupamentos, mesmo que seja um reagrupamento burguês emdefesa de interesses sociais e privados, no qual as pessoas se unem em tornode um bem comum, mas não necessariamente deixam de ser individualizadosem certos aspectos e em certos limites impostos. O condomínio fechado ou osbairros fechados são as provas cabais de novos modelos de comunidades, muitodistantes dos ideais de fraternidade de Toonies e Bauman.A concepção de tais refúgios é uma tentativa de hierarquizar socioeconômicae espacialmente a cidade, o bairro, a rua. Com procedimentosque dificultam ainda mais as relações humanas, já tão deterioradas, osenclaves produzem uma concepção de relação uniforme e impede o exercíciode nossas percepções para as trocas simbólicas e as traduções dosA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010129significados culturais ou sociais.A imensa capacidade da cidade em suscitar criatividade – gerar mudançase novas combinações, possíveis pelo amálgama de diferentes vozes – dá avez a um apartheid que exacerba o individualismo. Por tal percepção, cria umasociedade em ritmo de progressão geométrica cada vez mais maniqueísta, quetenta a todo custo deixar de lado “a parte do diabo” (MAFFESOLI, 2004), tãoessencial para a base da sociedade e da estrutura urbana.Em A metrópole e a vida mental (1983), Simmel nos apresenta os adeptosda atitude blasé. As transformações que assolaram a modernidade no séculoXIX exacerbaram as diferenças entre o ritmo das áreas rurais e metropolitanas.Os indivíduos, para Simmel, gradativamente se adaptam à nova realidade dascidades e alteram a forma como se relacionam e percebem as ruas, o outro e aprópria realidade em que se encontram. São muitos os estímulos a que estãoexpostos, e a solução que a psique encontra para “acomodar-se ao conteúdo e aforma da vida metropolitana” é selecionar os estímulos a que vão reagir.Transportando-nos para a realidade brasileira do século XXI, enquantoo indivíduo blasé do autor está exposto a tantos novos estímulos que o atrapalhama capacidade de distinção, a atitude de indiferença em relação ao outronas metrópoles brasileiras, nesse caso do Rio de Janeiro, pode nos levar a considerarnovos ensejos. Cotidianamente, mendigos, catadores de papel, pedintese malabaristas de sinais de trânsito apresentam-se nas ruas das grandes cidades.Entretanto, suas presenças nos são praticamente invisíveis. Exceção apenasquando atravessam os espaços delimitados, espaços esses não necessariamentefísicos, mas perceptivos. Ter uma atitude blasé contemporânea não é apenas ignoraros de fora, mas principalmente proteger-se dos perigos próprios da atualmetrópole. Os muros e as grades eletrificadas personificam que nossa indiferençanão está centrada somente em não ver, mas também em não participar.Embora pouco reconhecida, as problemáticas urbanas são produtorasde subjetividade (GUATARI, 1992), e interferem diretamente no destino dahumanidade. A diferença entre estar no Rio de Janeiro de carro fechado e comar condicionado e o estar caminhando, sentindo o verdadeiro cheiro da cidadeseja o aroma do mar ou o odor do esgoto, é um dos caminhos possíveis paraentender de que maneira construímos a subjetividade individual e coletiva dapólis. Mesmo afastada da outra parte da cidade, a Barra cria sua própria subjetividadeno contato com o semelhante porque propõe viver a cidade pelasferramentas de comunicação. Ao mesmo tempo, facilita a formação de tribosque proporcionam o contato, diferente do que se espera de uma cidade, masque ainda assim encontra um meio de estar próximo. A circulação é presente,não tanto de pessoas, mas de informação.Podemos nos utilizar e contextualizar o conceito de “arquipélago de cidades”,de Guattari (1992), pelo qual subconjuntos de cidades estão conectadospela diversidade dos meios de comunicação. Para o autor, as desigualdades entreA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010130centro e periferia são minimizadas frente às desigualdades das malhas urbanasque se interconectam entre áreas de classe média e áreas subdesenvolvidas. Omesmo que ocorre com a Barra da Tijuca, com suas torres e shoppings equipadostecnologicamente e informatizados, que convive com áreas subdesenvolvidasa poucos quilômetros, como a da Cidade de Deus ou a favela Castelodas Pedras. Pela concepção de Guattari, os meios telemáticos são, então, osresponsáveis pelo “arquipélago de cidades”, zonas desterritorializadas nas quaisos substratos das cidades-mundos se disseminaram pelo mundo no que o autordenomina de “rizoma multipolar urbano”. Por esse conceito, cidades muito pobresonde se aglomeram milhões de pessoas em favelas se vinculariam a “focosurbanos altamente desenvolvidos, espécies de campos fortificados das formaçõesdominantes de poder, ligados por mil laços ao que se poderia denominara intelligentsia capitalista internacional” (GUATTARI, 1992, p. 171).Em Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro (1988), BeatrizJaguaribe entende a BT com um planejamento urbano na qual a ordem socialtraduz-se no acesso ao consumo, o qual se vê instituído do que ela denomina“encenação kitsch” (p. <strong>14</strong>3), devido a seus edifícios redondos com janelas quese assemelham à Torre de Pisa, os prédios com vidros multicoloridos e cromatizados,e as réplicas, como a da Estátua da Liberdade no New York City Center(shopping center). Ao mesmo tempo, a autora ressalta os valores burgueses dafamília e da propriedade que são parte do arcabouço da Barra, e que se articulamnas modalidades de consumo e na proliferação de shoppings como aalternativa para os momentos em que se sai dos condomínios.Co n s i d e r a ç õ e s FinaisA busca por moradias fortificadas – uma das características da Barra daTijuca – leva-nos a considerar que o medo da violência urbana numa cidadecomo o Rio de Janeiro passa pela concepção de vulnerabilidade que fundamentaa criação de instrumentos de defesa, de proteção. Os condomínios fechadosrepletos de segurança, câmeras 24 horas, alarmes, grades, cercas eletrificadas,janelas blindadas, entre outros, são reflexos de que o medo nas grandes cidadesinstitui dispositivos que tornam a vida com medo em algo suportável.No t a s1Trabalho apresentado no fórum Terreno e Arquitetura, uma simbiose entre o sere o mundo – evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre o Imaginário –Congresso internacional.2Esses são os dados mais recentes do Censo, que será refeito em 2010.3Utilizei para complementar os dados do Plano Estratégico Regional, do municípiodo Rio de JaneiroA arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s bibliográficasBAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Zahar. Rio de Janeiro, 2008.______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:Zahar, 2003.CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. Rio de Janeiro: Globo, 2003CANCLINI, Nestor Garcia, A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras,2003.GUIDDENS, Antony. Modernização pós-tradicionalista. In: GUIDDENS,A. et al. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem socialmoderna. São Paulo: Ed. USP, 1997.GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34, Riode Janeiro, 1992.JAGUARIBE, Beatriz. Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro. Riode Janeiro: Ed. Rocco, 1988;131LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca de auto-estima.Rio de Janeiro: Record, 2000.MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna.Rio de Janeiro: Record, 2004.______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades demassa. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2001.SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme(Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.A arquitetura do medo: um estudo sobre Barra da Tijuca e a prática do não encontro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Para além do Rio de Janeiro:a comunicação da arquiteturaestrangeira da Barra da Tijuca 1Beyond Rio de Janeiro: the communication offoreign architecture in Barra da TijucaRicardo Ferreira Freitas | rfreitas@mls.com.brProfessor adjunto da Faculdade de Comunicação Social da Uerj. É Doutor emSociologia pela Universidade Paris V/Sorbonne. Entre 2006 e 2007 desenvolveuestágio pós-doutoral em Comunicação no CEAQ/Sorbonne, com bolsa da Capes.ResumoOs bairros do Rio de Janeiro formam uma cartografia simbólica, simultaneamente, confusa eprodutiva. Neste trabalho, concentramo-nos sobre a Barra da Tijuca, por ser o bairro que maiscresce no Rio. Ao mesmo tempo, a arquitetura da Barra da Tijuca parece negar o imagináriocarioca com construções que remetem a países europeus ou norte-americanos. As réplicas daTorre Eiffel e da Estátua da Liberdade expostas em shopping centers do bairro reforçam a ideiade que o morador ou visitante está em outro lugar, para além do Rio de Janeiro. Os condomíniosfechados, com seus nomes em inglês, francês ou italiano, tampouco traduzem os valores dacidade, a não ser no que se refere à segurança – argumento principal usado pelas imobiliáriasna publicidade e propaganda dos empreendimentos do bairro. Na Barra, proliferam fortalezasurbanas como shopping centers, condomínios fechados e centros empresariais. Neste trabalho,objetivamos levantar que apelos publicitários, em relação aos argumentos de lazer, de consumo ede segurança, favorecem a permanência dos moradores nos condomínios fechados, assim comodos consumidores nos shopping centers, e que contradições são sugeridas pelas apurações jornalísticas.Interessa-nos mostrar que nos mesmos veículos de comunicação a publicidade promovea Barra da Tijuca como um lugar ideal, completo e seguro para se morar, enquanto que asapurações jornalísticas apontam para algumas das mesmas mazelas do restante da cidade.Palavras-chave: arquitetura; Barra da Tijuca; imaginário ; violência; consumo.AbstractThe neighborhoods of Rio de Janeiro form a symbolic cartography simultaneously confusing and productive.In this paper, we focus on the Barra da Tijuca, for it is the fastest growing neighborhood in Rio. Atthe same time, the architecture of Barra da Tijuca seems to deny the city’s imaginary with constructionsthat refer to European or North American countries. The replicas of the Eiffel Tower and of the Statue ofLiberty on display in the neighborhood shopping centers reinforce the idea that the resident or visitor is inanother place, beyond Rio de Janeiro. Closed condominiuns, with their names in English, French or Italian,do not reflect the values of the city either, except with regard to security – the main argument used byreal estate agents in advertising and propaganda of the enterprises of the district. In Barra, urban fortressessuch as shopping centers, closed condominiums and business centers proliferate. In this work we objectifyto raise that advertising appeals in relation to the arguments of leisure, consumption and security, promotethe continuity of the residents in closed condominiums, as well as consumers in shopping malls, and thatcontradictions are suggested by journalistic investigations. We are interested in showing that in the sameadvertising media publicity promotes Barra da Tijuca as an ideal place, complete and safe to live, whilethe journalistic investigations point to some of the same illnesses of the rest of the city.Keywords: architecture; Barra da Tijuca; imaginary, violence; consumption.Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã oEscamotear os problemas enfrentados pelos cidadãos de uma cidademulticultural revela um empecilho moral de inspirar sentimentoscalorosos e espontâneos ao Outro. A simpatia corresponde ao entendimentode que as aflições exigem um lugar em que possam ser reconhecidase onde suas origens transcendentes sejam visíveis. O sofrimentofísico possui uma trajetória na experiência humana. Ele desorienta etorna o ser incompleto, derrota o desejo de arraigamento; aceitando-o,estamos prontos a assumir um corpo cívico, sensível às dores alheias,presentes, junto às nossas, na rua, finalmente suportáveis – mesmoque a diversidade do mundo dificulte explicações mútuas sobre quemsomos e o que sentimos (SENNETT, 1997, p. 305)133As grandes cidades contemporâneas têm se pautado por uma espécie decultura de risco que evidencia a suspeita e o perigo como vilões do cotidiano.A mídia, por sua vez, reforça essa tendência ocupando boa parte do tempo deseus usuários com denúncias e matérias jornalísticas centradas na escalada daviolência. Nesse panorama, o homem urbano contemporâneo se sente acuado,impotente, para enfrentar os desafios da metrópole. Assim, cria espaços de fugae constrói sua história de vida entre grades e muros. Nos últimos anos, a exemplodo que acontece em outras partes do mundo, as metrópoles brasileiras assistemao crescimento do número de shopping centers, condomínios fechados,centros empresariais, empresas de vigilância e companhias de seguros. O Riode janeiro é uma cidade-tipo para o estudo dessas fortalezas contemporâneas jáque elas se multiplicam de forma exponencial em alguns de seus bairros.Desconfiança, horror, brutalidade. Temas constantes no cotidiano doscidadãos em várias partes do planeta. No Brasil, a violência é uma dos assuntosmais recorrentes na vida diária das cidades com importante destaquena grande mídia. De diversas formas, o perigo é narrado ou anunciado. Ador, sempre presente na história dos corpos humanos, parece ter se tornadoingrediente fundamental à construção das notícias que abordam a violência.Neste artigo, optamos em trabalhar esse quadro utilizando a mídia impressacomo recurso analítico. O jornalismo impresso tem cedido cada vez maisespaço aos fatos relacionados à violência urbana, com volumosa ênfase, nocaso brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a propagandaveiculada nos jornais oferece uma intensa lista de produtos que propõemdeixar as pessoas a salvo do perigo. Publicidades de alarmes para carro erastreadores avizinham anúncios de empresas de vigilância e seguradoras naspáginas dos grandes veículos de comunicação.As patologias ligadas ao terror também aumentam, exigindo de profissionaisda saúde, do direito e de outras importantes áreas novas especializaçõespara poderem lidar com os desafios do cotidiano urbano. O númerode pessoas atingidas por armas de fogo e armas brancas demanda dosmédicos, dos grandes hospitais públicos, habilidades cirúrgicas atualmenteconsideradas como básicas. Ao mesmo tempo, cada vez conhecemos maisPara além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010134casos de pessoas com síndrome de pânico, doença provocada por falhas emneurotransmissores, mas que pode ser estimulada pelo estresse e pelo medo.Cresce, com isso, o número de seminários e cursos que tentam preparar psicanalistase psiquiatras para a realidade dos nossos tempos. A área criminal,por sua vez, exige ações cada vez mais impressionantes dos advogados. Ostécnicos de comunicação social também são obrigados a incorporar a reflexãocrítica sobre a temática da violência no dia-a-dia de trabalho. Com o auxíliode sociólogos e outros estudiosos, os jornalistas constroem suas matérias natentativa de evitarem erros teóricos ou históricos, os profissionais de relaçõespúblicas reveem as afinidades de suas empresas com as comunidades e ospublicitários assimilam o medo como argumento narrativo.Apostando em uma conversa entre a comunicação e a cidade, é nossaintenção apresentar algumas características da cultura de risco que se consolidano imaginário metropolitano globalizado, especialmente no Rio de Janeiro.Dos carros blindados às câmeras de vigilância, a cidade e o corpo continuamestabelecendo uma dialética fundamental à formação dos valores morais contemporâneos.Em “Carne e pedra”, Richard Sennett, ao analisar a relação entreo corpo humano e o espaço urbano na civilização ocidental, defende a hipótesede que os projetos arquitetônicos dos mais modernos edifícios colaboram comuma certa privação sensorial à qual o homem parece estar inexoravelmentecondenado. A dor e o prazer são, nesse panorama, elementos fundamentais dasnarrativas urbanas. Na contemporaneidade, os empreendimentos imobiliáriosde moradia e de consumo anunciam que podem resolver o problema da dor,guardando os corpos em espaços fechados e protegidos, e ainda oferecem oprazer nas inúmeras possibilidades de lazer entre muros presentes nesses espaços.Não é à toa que a publicidade da mídia impressa no Rio e em São Pauloé quase toda dominada por anúncios de vendas de apartamentos em grandescondomínios fechados e de objetos que podem ser comprados por telefone oupela internet. Para aqueles que ainda querem viver o consumo em um ambienteurbano, há os shopping centers. Entre cercas e telas, o consumidor dosnossos tempos tenta estar a salvo dos perigos veiculados pela mídia.Como pano de fundo teórico para a metodologia aqui proposta, buscamosinspiração em Edgar Morin quando sugere que, para se manter o prazerpela pesquisa, deve-se misturar dosadamente os impulsos da paixão com oslimites da razão (MORIN, 2004)2. O assunto violência é arriscado para opesquisador por ser um tema que faz parte da sua vida. É necessário, portanto,manter aquela famosa distância pessoal do objeto de estudo sem, no entanto,deixar de ser apaixonado por ele. Assim, apoiamo-nos em leituras dos camposda sociologia urbana, da antropologia, das teorias da comunicação e dapublicidade, acompanhadas de observação das notícias e das propagandas namídia impressa. Para tanto, trabalhamos com as matérias jornalísticas e comos anúncios publicitários sobre a Barra da Tijuca no jornal O Globo de agostode 2003 a junho de 2005.Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Al é m d o s m u r o s : n a r r a t i v a s d o m e d o n o cotidiano u r b a n oO medo e a fala do crime não apenas produzem certos tipos deinterpretações e explicações, habitualmente simplistas e estereotipadas,como também organizam a paisagem urbana e o espaço público,moldando o cenário para as interações sociais que adquirem novosentido numa cidade que progressivamente vai se cercando de muros.A fala e o medo organizam as estratégias cotidianas de proteção e reaçãoque tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu universode interações. Além disso, a fala do crime também ajuda a violênciaa proliferar ao legitimar reações privadas ou ilegais – como contratarguardas particulares ou apoiar esquadrões da morte ou justiceiros-, num contexto em que as instituições da ordem parecem falhar.(CALDEIRA, 2000, p. 27).135A violência faz parte da história da humanidade, não sendo, como sabemos,característica exclusiva da contemporaneidade. Ao longo dos milênios,os homens se agrediram uns aos outros alegando razões de diferentes ordens:instinto de sobrevivência, guerras religiosas, disputa pelo território, conflitosétnicos, entre muitas outras. Nos dias atuais, é chocante perceber que todo oavanço tecnológico e científico dos últimos séculos não livrou as pessoas dasdiversas violências alimentadas pelas sociedades. Na contemporaneidade, essequadro se expressa pelo horror, tendo a mídia como um de seus principaisarticuladores. As agressões vêm dos lados mais díspares atingindo nossas vidasou nossos objetos: assaltos, homicídios, vírus de computador, acidentes detrânsito. A cidade contemporânea é um permanente desafio, onde as inúmerasespirais de violência são implacavelmente representadas pelos meios de comunicação.Não há como não estar em contato com o medo. Ele é vivido na rua,no espaço público, ou na mídia; neste último caso, os requintes dos detalhessão jornalisticamente cobertos de maneira objetiva para que o cidadão possaacompanhar (lendo, vendo ou ouvindo) a próxima tragédia rapidamente.Escolhemos, neste trabalho, a Barra da Tijuca como campo de estudospor ser o bairro que mais cresce no Rio de Janeiro e também por ser umbairro com o qual a mídia ocupa expressivo espaço tanto no jornalismo comona publicidade. Segundo o Instituto Pereira Passos (IPP), em 2020, a RegiãoAdministrativa da Barra da Tijuca (Recreio, Vargem Grande, Vargem Pequena,Camorim, Joá, Itanhangá, Grumari e Barra da Tijuca) terá 507.520 habitantes.Hoje, são mais de 200 mil habitantes de acordo com o último censo do IBGE(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).As manifestações da violência no cotidiano urbano acontecem de diversasmaneiras. Assaltos, acidentes de carro, furtos, tráfico de drogas, arrombamentose fraudes são alguns dos assuntos recorrentes na leitura diáriados jornais. Esse repertório de agressões incrementa o medo das pessoas pelosespaços públicos da cidade e, ao mesmo tempo, constrói um imaginário debanalização da violência, no qual armas e quadrilhas são fortes elementos.Nem mesmo, as antigas brincadeiras de crianças que simulavam guerras entrebandidos e mocinhos mantêm os personagens de antes. Hoje, os jogos de ruaPara além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010136são preferencialmente entre bandidos e bandidos e, quando há a presença domocinho, ele não é mais o herói e, sim, o otário. A edição do Globo de 28 dejunho de 2005 exemplifica bem essa questão com a matéria “Meninos brincamde ser bandidos em acesso à Avenida Ayrton Senna”, na qual é narrada ahistória de crianças de cerca de oito anos que fingem atirar nos carros e fecharuma das pistas da famosa Avenida do bairro da Barra da Tijuca com armas deplástico e de madeira. A brincadeira reproduz os assaltos que acontecem comfrequência naquele ponto. O herói, nesse caso, é o transgressor, o fora-da-lei,personagem que exerce fascínio entre as crianças de algumas comunidadesdevido ao poder que desfrutam.Na mesma edição, na página 15, encontramos a reportagem “Confrontona Rocinha fecha a Lagoa-Barra”. A Lagoa-Barra é uma das principais vias deligação entre a Barra da Tijuca e a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Nodia 27 de junho, devido ao conflito entre traficantes da Rocinha e do Morrodo Vidigal, a Auto-Estrada ficou fechada à circulação nos dois sentidos durantedez minutos, causando transtornos de horas no trânsito da cidade. Umestudante de quinze anos morreu e três pessoas ficaram feridas em uma guerraque recomeçou, há mais de um ano, na Sexta-Feira Santa de 2004. O confrontoteve a participação da polícia. Este episódio, comum a algumas grandescidades da América do Sul, obteve página quase inteira no Globo, com fotos,mostrando o desespero daqueles que se mudaram para a Barra da Tijuca poracreditarem que estariam longe dos malefícios da cidade.Em um outro viés comunicacional, no caderno de classificados da mesmaedição, é anunciado um condomínio fechado de casas em um dos lugares quecompõem a Região Administrativa da Barra, a Vargem Grande. “Um novo estilode viver” propõe o anúncio de 40 residências, com piscinas exclusivas, com“muito ar puro, muita natureza, muito verde, muita saúde e segurança total”.Ao longo da nossa pesquisa, temos encontrado quase diariamente anúncioscom essa mesma argumentação (em geral as novas tecnologias de informação ede vigilância também fazem parte da proposta) no primeiro caderno do jornal,muitas vezes ao lado de matérias que apontam os problemas de segurança públicado bairro. Apontamos, a seguir, alguns outros exemplos.Na edição de 13/04/2003 lemos a publicidade do condomínio Fontanadi Trevi. “Três quartos na Barra com qualidade de vida e segurança”, na de22/11/2003 lê-se “Americas Park, o melhor ponto da Barra. Oportunidade demorar com qualidade de vida e investir com segurança”, em 30/11/2003 “LeParc Residential Resort. Total segurança” e em 20/03/2004 lê-se “Garanta seulugar no paraíso. Barra Golden Green. Segurança total”. Paralelamente, naseção de notícias locais, estão presentes matérias que refutam essa ideia de “segurançatotal”, mostrando que apesar dos condomínios fechados, a Barra nãoestá livre das situações de perigo da cidade do Rio de Janeiro. Violência entremoradores, prostituição e tráfico de drogas podem ser encontrados dentro dosmuros dos condomínios do bairro: “Mais pancadaria em condomínio da BarraPara além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010137– ‘Penetra’ sai de festa com clavícula deslocada”, noticiava uma manchete em05/04/2004, “Confusão em festa na Barra termina com cinco feridos a faca”dizia a edição de 30/03/2004 e em 21/09/2003 vemos publicada matéria comestatísticas sobre assaltos no Rio, cuja manchete foi “Barra agora apela para asegurança eletrônica – Bairro é o primeiro lugar em assaltos a residência”. Jáem 16/07/2003, lê-se “Prédio da Barra tinha dois bordéis – Polícia prende trêssupostos agenciadores em apartamento com 12 prostitutas”, em 25/07/2003“Prostitutas detidas em condomínios na Barra – Três pessoas autuadas porexploração”, na edição de 26/10/2003 vemos “Jovens de classe média transformamseus apartamentos em ‘bocas-de-fumo’ – A polícia acredita que o tráficono asfalto, especialmente na Barra, já atenda a 40% da demanda dos condomíniosdo bairro” e em 12/04/2003 “PF prende universitário por tráfico –Estudante distribuía drogas em faculdades e shoppings da Barra”.Simultaneamente, as promessas imobiliárias continuam, como vemosna edição do Globo de 08/11/2003, “Bem-vindo à Península. A Barra estáganhando seu primeiro bairro ecológico. Um espaço privilegiado onde anatureza, na sua forma mais bela, foi totalmente preservada”. Isso ocorreenquanto o mesmo jornal noticia a situação precária das lagoas e das praiasdo bairro, em 30/09/2003 “A Barra das duas mil palafitas – Ocupação irregularaumenta lixo na Lagoa da Tijuca a ponto de prejudicar dragagem”e em 23/11/2003, “Em defesa da Barra - Moradores cobram soluções parasaneamento, segurança e transporte no bairro”. Na edição de 28 de junho de2005, a mesma que abordou as crianças na Ayrton Senna e a interrupção daAuto-Estrada Lagoa Barra, constatamos, mais uma vez, uma outra questãoque se transforma em problema exponencial no “paraíso”: o meio ambiente.“Programa de saneamento chega ao Bosque da Barra”. Apesar de ser um bairrojovem na história do Rio, a Barra é um dos lugares com mais problemasambientais devido, sobretudo, ao não tratamento de esgoto na maioria deseus condomínios e com o pouco caso dos poderes públicos para resolver oproblema que, a cada ano, fica, obviamente, mais grave.Com esses exemplos tentamos mostrar que a violência tão cultivada pelamídia brasileira, encontra no Rio de Janeiro, cidade sul-americana com enormevisibilidade internacional, um ambiente de grande produção de narrativas jornalísticassobre o medo e o pânico. Daí, o desenvolvimento de bairros como a Barrada Tijuca que tentam negar os problemas da cidade. Mas, os transtornos urbanosvão além do território de cada metrópole por serem questões do país e do continentesul-americano. Na verdade, muitas dessas questões são globalizadas. ORio, por ser uma cidade-referência, acaba sendo a vítima nesse panorama. Comovemos, as agressões sofridas não são características exclusivas do Rio de Janeiro,mas frutos de um modelo político falido, no qual a violência não se manifestasomente por roubos e assassinatos, mas também pelas agressões ao meio ambiente,pela falta de educação escolar para as crianças, pelos assustadores índices dedesemprego e pela corrupção degradante dos políticos eleitos pelo povo.Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Ou t r a s c o n s i d e r a ç õ e sSe acompanharmos a informação jornalística sobre as grandes cidadeslatino-americanas, observaremos o crescimento das notícias sobreinsegurança e violência, decomposição do tecido social e privatizaçãodo espaço público para proteger o privado e o individual. Estudoscomo os de Miguel Angel Aguilar, no México, e Teresa Caldeira, emSão Paulo, mostram como os imaginários dessas megalópoles vêmsendo modificados pelas novas formas de segregação e violência.(CANCLINI, 2003, p. 163).138A violência urbana é um assunto que requer diversos tratamentos investigativose científicos. Optamos pela mídia impressa para realizar estudos nessatemática, por acreditarmos que podemos contribuir com reflexões importantesàs diferentes áreas da comunicação social. A escolha do bairro se baseia namesma proposta. Na Barra da Tijuca, percebemos que os moradores vivem,no seu cotidiano, uma grande confusão simultânea de tempos e espaços, misturandoas atividades de labor, estudo, recreação e ócio, entre outras, sempre àluz da proteção ao perigo. O bairro é concebido como um imenso arquipélago,no qual suas ilhas – os condomínios fechados, os shopping centers e os centrosempresariais – são interligados por grandes avenidas projetadas para se passarem alta velocidade. Assim, a forma dos espaços deriva, como diria Sennett(1997, p.300), das vivências corporais específicas do povo ali instalado. O crescimentodo número de clubes e academias de ginástica, inclusive dentro deuniversidades privadas, demonstra como o habitante procura o lazer associadoa ordens transnacionais de consumo da segurança. A promoção do entretenimentoe da moradia combinados à proteção do corpo, neste caso, acaba sendoum dos mais fortes argumentos publicitários da contemporaneidade.Globalizada e envenenada pela estética “Miami”, a Barra da Tijuca é elencadapor atividades diretamente ligadas ao consumo que ajudam a construir umanova espécie de sujeito, mais do que nunca contaminado pelas supostas benessesdo capital. Apesar da praia arrebatadora e das montanhas ainda existentes aoredor do bairro, seus moradores preferem a reclusão em grupos, exemplificandoa noção de tribos urbanas que Michel Maffesoli sustenta há anos em suas obras.Em boates, academias, malls, pedaços quase privados de areia na praia ou nasáreas dos condomínios fechados, cidadãos pensam afirmar-se como seres autônomosque transitam entre as tribos que bem escolhem. A análise dos anúncios estudadoscorrobora essa ideia já que em todos encontramos as mesmas promessasde lazer protetor do corpo humano em relação aos males urbanos. Mas, como jádissemos, a realidade é cruelmente outra. A mídia tem exemplificado e influenciadoesse panorama com inúmeros fatos nas páginas policiais, escancarando,nas duas últimas décadas, a falência do projeto de oferecer um bom nível de vidaisolada e protegida dos horrores da violência na cidade do Rio de Janeiro. Dolado de fora dos muros, esses sintomas também são brutalmente evidenciadosnas estatísticas de acidentes de trânsito, nos índices de roubos e furtos a carros enos quilômetros de praia já assassinados pela poluição na Barra da Tijuca.Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010139Com a globalização, algumas cidades são assaltadas por códigostransnacionais, da ordem do consumo, que neutralizam suas variáveisculturais mais profundas, misturando-os ao imaginário local. O Rio deJaneiro é importante partícipe desse processo e tem na Barra da Tijuca umbairro emblemático. Neste sentido, a academia deve estabelecer discussõesmais frequentes sobre as novas propostas de lazer e de consumo enquantofenômenos econômico e cultural das metrópoles, especialmente quandoeles são articulados ao excesso de violência. Por esse motivo, neste artigo,a dor, o prazer, a liberdade e a arbitrariedade são temas constantes, apesarde parecerem contraditórias em um primeiro olhar.A partir da relação entre a comunicação e a cidade, analisamos ascontradições entre as propostas publicitárias e as matérias jornalísticas paratentarmos compreender os mecanismos de defesa que o cidadão do Rio deJaneiro desenvolve ao tentar fugir da violência urbana em busca de liberdadee livre arbítrio no seu cotidiano. Paradoxalmente, esta liberdade se dá entregrades e muros, configurando-se, assim, uma nova espécie de adaptação docorpo humano em relação à cidade. É o caso do bairro da Barra da Tijuca,que, tentando reinventar o conceito de comunidade, oprime os moradores aolazer territorializado. A dor é pública, devido à violência; já o prazer é privado,posto que só pode ser plenamente exercido se for longe do perigo, ou seja,da cidade aberta e pública.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife – PE.2Segundo Morin, “assumir a relação dialógica entre razão e paixão significa guardarsempre a razão como luz, o quer dizer manter a pequena chama da consciênciaracional até a exaltação da paixão. É viver, sem jamais deixá-lo degradar, um jogode yin e yang entre razão e paixão, que não somente as mantém uma à outra, masonde a excrecência de uma estimula o crescimento da outra.” (2004, p. 153).Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasBAUDRILLARD, Jean. Tela total:. Mito-ironias da era do virtual e da imagem.Porto Alegre: Ed. Sulina, 1997.CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadaniaem São Paulo. São Paulo: EDUSP/Editora 34, 2000.CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturaisda globalização. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995._____. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia dacomunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1993.DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura popular. São Paulo, EditoraPerspectiva. 1976.<strong>14</strong>0_____. Vers une civilisation du loisir?. Paris: Editions du Seuil, 1962.FREITAS, Ricardo F. Centres commerciaux: îles urbaines de la postmodernité.Paris: L’Harmattan, 1996._____. (org.) Desafios contemporâneos em comunicação: perspectivas de relaçõespúblicas. São Paulo: Summus Editorial, 2002.JAGUARIBE, Beatriz. Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro. Riode Janeiro, Ed. Rocco, 1998.CONTRERA, Malena S. Mídia e pânico: saturação da informação, violênciae crise cultural na mídia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências:. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996.______. La transfiguration du politique: – la tribalisation du monde. Paris:Grasset, 1992.______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades demassa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.MORIN, Edgar. La méthode 6 – Éthique. Paris: Seuil, 2004.SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental.Rio de Janeiro: Record, 1997.Para além do Rio de Janeiro: a comunicação da arquitetura estrangeira da Barra da Tijuca


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Continuidade, pausa emovimento no tecido urbano: aCidade da Música na Barra daTijuca – Rio de Janeiro 1Continuity, pause and move in the urban fabric:the City of Music in Barra da Tijuca - Rio de JaneiroTania da Rocha Pitta | tania.pitta@ceaq-sorbonne.orgPesquisadora do CeaQ/Sorbonne, onde coordena o Groupe de Recherche sur Espace et Société(GRES), e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário (UFPE). Doutora em CiênciasSociais pela Universidade Paris V/Sorbonne e arquiteta pela Escola de Arquitetura de Grenoble(EAG). Trabalha no Atelier Christian de Portzamparc.ResumoOntem homogêneas, hoje híbridas, plurais, as cidades estruturam nossa percepção do mundo.A energia transmitida pela matéria, resultado da ação e da reação entre as formas, estruturaa cidade e seus lugares de convívio. Da mesma maneira que toda construção intervémna paisagem, toda cidade também precisa ser legível, ter pontos de referência, para não setornar um caos. Um ambiente posto em ordem se torna uma vasta trama de referência. Emseu plano piloto, Lúcio Costa previa para a Barra da Tijuca uma ocupação do solo compostade edifícios e de grandes jardins públicos que seriam espaços de socialidade. Porém, diferentementede Brasília, onde o fundiário pertencia ao Estado, as previsões de Lúcio Costavão ser alteradas. Condomínios, escritórios, jardins privatizados e centros comerciais vão virse instalar nestas últimas décadas. Hoje, a Cidade da Música, projetada por Christian dePortzamparc, vem se instalar na Avenida das Américas ultrapassando seu estatuto de simplesprojeto de arquitetura e dando aos habitantes a ocasião de se reapropriarem de um pedaço decidade perceptível ao longe e “significante”.Palavras-chave: tecido urbano; arquitetura; Cidade da Música.AbstractYesterday homogeneous, today hybrid, plural, cities structure our perception of the world. Theenergy transmitted by matter, the result of action and reaction between forms structures the cityand its places of living together. Just as all construction intervenes in the landscape, every city mustalso be legible, have reference points, not to become a chaos. Put in order an environment becomesa vast plot of references. In his pilot plan, Lúcio Costa predicted to Barra da Tijuca an occupationof land consisting of buildings and public gardens that would be great spaces of sociality. But, unlikeBrasilia, where the land belonged to the state, the predictions of Lúcio Costa will be changed.Condominiums, offices, privatized gardens and malls will come to settle in recent decades. Today,the City of Music, designed by Christian de Portzamparc, has been installed on the Avenida dasAméricas, surpassing its status of a simple architectural project and giving people the opportunity tore-take ownership of a piece of the city visible in the distance and “significant”.Keywords: urban fabric; architecture; City of MusicContinuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010<strong>14</strong>2Quando nos questionamos sobre o efeito da arquitetura sobre o ser humano,percebemos que durante seu percurso na cidade, ele é sensível às emoçõesque são consequência direta da sua relação com as formas do espaço.Ele nunca é indiferente ao lugar porque cada espaço, pela sua forma, propagadiferentes sentimentos. A imaginação daquele que visita passaria então tantopela razão emocional como pela racional. O passeio na cidade ou no interiorde um lugar, como veremos, é constituído de surpresas, ou de um sentimentode proteção, de angústia, ou de intimidade...Pois no percurso, a multiplicidade das formas introduz nuances noque poderia ser monótono. Quando passeamos, é o contraste das formas, suapluralidade na unidade da cidade que nos dá prazer, que nos dá vontade deir mais longe, que nos emociona. São as diferentes alturas e as formas dasconstruções, as mudanças de luzes, as subidas e descidas das ladeiras queenriquecem o passeio. Vivemos uma “época em que à ótica (a visão do distante)própria do progressismo, se opõem o tátil (o tocar, o próximo) próprioao localismo” (Maffesoli, 2003, p. 63). Vivemos num ambiente que valorizaa matéria. É uma das preocupações do arquiteto Christian de Portzamparcquando ele desenvolve uma arquitetura fragmentada, plural. Todas estas diferençasde forma, de vazio e de cheio, de luz e de sombra criam uma imagemúnica própria a cada cidade.É este retorno do tocar, do próximo que faz com que o lugar se torneainda mais importante. Esta modificação epistemológica, do progressismo emlocalismo, também privilegia o universo simbólico. Estamos face ao ato criadordo ser humano: quando um arquiteto cria um espaço, ele transmite esteuniverso aos outros que por sua vez vão se apropriar ou não dele, dando umsentido, interpretando-o. Fora sua matéria, toda arquitetura tem também suaparte de imaterial, e juntos formam uma paisagem cultural. E, os lugares depassagem são então, mais que uma simples mudança de espaço, pois todo trajetotem seus momentos imprevisíveis.Alguns trajetos têm mais surpresas que outros. Para Wölfflin, por exemplo,a emoção transmitida por um edifício clássico é de ordem linear e a transmitidapor um edifício barroco seria pictural. E Gilles Deleuze, vai falar dametáfora das dobras do barroco, que são dobras que nos transportam há umtempo espiralesco, há um tempo que se enrola nele mesmo, que é aquele que sealia a espaços compostos de nuances de luz e de inflexão da matéria.Mesmo um edifício que transmite uma emoção linear pode ter umadimensão pictural, barroca, porque o visitante escolhe seu próprio caminho.Ele pode escolher vistas que saem da linearidade prevista pelo arquiteto. Istose sente principalmente em lugares que não evocam uma finalidade em si, fechada,completa, mas em lugares que deixam uma abertura em sua concepçãoarquitetônica e, por consequência, uma abertura à imaginação. Numerososarquitetos compreenderam isto. As plantas das cidades perderam seu aspectoContinuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010<strong>14</strong>3utópico voltado para o futuro para procurar soluções para o presente, olhandoquais são os problemas que aparecem a cada dia. A planta da cidade podeser comparada à rede do pescador, um elemento que devemos nos ocupar nocotidiano. Recosturamos os buracos da rede num mesmo espaço-tempo emque recosturamos o tecido urbano. Os dois devem ser conservados para queamanhã possamos pescar, para que amanhã possamos viver.E é nesta lógica que o tecido urbano é redesenhado, na penumbra de umtempo que se tornou fluido. Fluido porque sem fundações certas, empíricas.Assim, a concepção espacial religa seu aspecto aéreo, o da sua geometria, odo desenvolvimento da técnica, da luz, da razão ao seu aspecto terrestre, próximoao destino, do envolvimento com o ser e o ambiente que lhe acolhem.Veremos aqui, o projeto da Cidade da Musica, na Barra da Tijuca, projetadopelo arquiteto Christian de Portzamparc como exemplo de costura (terrestre) ede ponto de referência (aéreo) em bairro que tem um tecido urbano compostoprincipalmente de condomínios.Quando ainda jovem, Christian de Portzamparc participou de uma pesquisa,realizada por uma equipe de sociopsicólogos, arquitetos e urbanistas,dirigida por Jaqueline Palmade2. Este estudo exploratório procurava compreendera relação que existe entre os moradores e o espaço que eles habitam, váriasquestões sobre o espaço foram então abordadas. Os entrevistados deveriampensar em um lugar que eles gostavam e em seguida descrevê-lo nos mínimosdetalhes: como é na frente, atrás, em volta, um pouco mais longe, por onde éque entra... Assim, pela interpretação dada pelos habitantes procurava-se compreendera subjetividade do lugar, o sentido que a forma transmitia.Este estudo realizado em cidades novas permitiu perceber, entre outrascoisas, que para aqueles que moram em novos conjuntos residenciais (comotambém é o caso da Barra da Tijuca), o espaço reforça ou cria a alienaçãoatravés da perda de identidade pessoal, do isolamento social e do sentimentode falta de sentido. Pois o morador, para compreender sua própria existência,para aproveitar seu espaço, se enraizar, deve poder interpretá-lo, dar-lhesentido. O tecido urbano, quando bem estruturado, tem então o poder dedesalienação. Pois, a cidade é como um labirinto que pode ora ser vivido nasua face escura, ora na iluminada.A Cidade da Música é um bom exemplo de projeto que se envolve como meioambiente e com a sociedade. Atualmente, ela está em construção emum terreno que é fruto de um projeto moderno, o plano piloto de Lúcio Costa(1969). Com princípios da época, que valorizavam, sobretudo, a razão, temosem seu projeto a ausência de quadras, o espaço é aberto, os edifícios, que deveriamser altos para liberarem espaço público no solo, foram hoje substituídospor moradias fechadas, privadas. Ao longo da Avenida das Américas, temoscondomínios, escritórios e centros comerciais, somente a paisagem natural foirespeitada. A sociedade brasileira transformou o que deveria ser público emContinuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010privado. E é no grande eixo, deste sistema viário cruciforme, formado pelo cruzamentoda Avenida das Américas com a Avenida Ayrton Senna, que a Cidadeda Música está sendo construída.Figura 1<strong>14</strong>4Figura 2Na época clássica compreendíamos a cidade quando percorríamos suasruas, bordadas de casas ou de edifícios, delimitando ruas e formando quadras.Hoje, os condomínios privados da Barra dão origem a loteamentos que sãocomo ilhas isoladas entre elas. Sem ruas no esquema tradicional, estes loteamentosde moradia e “lazer” que propõem segurança, não criam ruas nempontos de referência. E sem eles, nos perdemos, neste caso a cidade arrisca setornar um labirinto sombrio.Como diz Lima de Freitas, “na sua face escura o labirinto é, pois, infernal,confuso, desintegrador, caótico e sem número: sabiam-no os Maias queno seu calendário, onde deuses e números são uma e a mesma coisa, só às potênciasinfernais não atribuíam número, ou data, relegando-as para os ‘cincodias sem nome’ do fim do ano. Mas na sua face luminosa (que é a mesma, masiluminada), o labirinto aparece como um transformador, que revela ao iniciadoa figura escondida do mundo, a matriz divina dos números, os ângulos – ouanjos – da sua geometria sagrada” (FREITAS, 1985, , p 69-81).Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010<strong>14</strong>5Como sabemos, a construção do espaço está estreitamente ligada à culturade quem o idealiza. No posfácio do livro Arquitetura gótica e escolástica,de Erwin Panofsky, por exemplo, Pierre Bourdieu menciona o fato de quePanofsky mostra em seu discurso sobre as catedrais góticas e o individuo teológico,o fato de estabelecerem “a unidade da civilização do XIII século” (InPANOFSKY, 1967). Panofsky mostra que a educação dos construtores de catedraisfeita pelos monges gerou a forma e a estrutura da arquitetura gótica.Marcado profundamente pelo estudo citado sobre a relação entre o homeme o espaço em cidades novas, Christian de Portzamparc procurou naBarra, através da arquitetura, transmitir uma emoção que tivesse sentido e queentrasse em diálogo com os moradores. Ele criou um edifício com expressividadeprópria, com uma história para contar. Ao contrario de muitos arquitetosda época moderna, ele deu uma grande importância ao terreno, pois cada lugarda cidade tem uma imagem própria, e se envolve com o meio ambiente criandouma unidade espacial. Isso também fez com que a estética da arquiteturaultrapassasse teorias já prontas.Porém, para criar uma intervenção no tecido urbano, é preciso conhecervarias noções espaciais, pois é a forma que vai estruturar a percepção do mundo.Ela transmite emoção, ela qualifica o lugar. Hoje, quando caminhamos, nosdeparamos com uma unidade (que é a cidade) formada por uma pluralidade(que são as diferentes arquiteturas). Sabemos que durante séculos, no Ocidente,o percurso urbano foi criado a partir de uma estética única. Na cidade clássica,a unidade espacial era transmitida por “modelos tipos” da arquitetura. Com amodernidade, a unidade estética se manteve através de uma forma espacial querespondia aos interesses da indústria. Tudo era unidade, tudo era baseado emuma estética homogênea. Um só deus, um só espaço. Hoje, a irregularidade éinevitável. Híbrido, o tecido urbano é composto pela variação de alturas entreas construções, pela diversidade das formas, pela alteração da luminosidade...Tudo se tornou plural e irregular, vários deuses inspiram diferentes espaços.Mais do que nunca, para intervir no tecido urbano, é preciso conhecer o papeldas diferentes formas que formam as cidades. Segundo Kevin Lynch (1976),as formas físicas da cidade podem ser classificadas seguindo cinco tipos deelementos principais que juntos vão compor a cidade.Figura 3O primeiro seria as vias, que são espaços por onde o morador se locomovee observa a cidade. Estas vias podem ser ruas, passagens, becos, e até mesmorios. Elas são importantes na cidade, pois mantendo uma continuidade e umadireção, é através delas que olhamos os outros elementos da cidade que estãodispostos ao longo delas.Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Figura 4O segundo elemento seria os limites, que são fronteiras, eles tambémpodem ser rios, ou estradas de ferro, isto depende da nossa relação com eles,podem também ser edifícios, muros... Os limites, diferentemente das vias sãoreferências laterais. Podem ora ser uma barreira que isola uma zona da outra,ora um elemento de costura, linhas contínuas que se unem e que ligam umaregião à outra. Os limites ajudam a organizar, a unir zonas, como no caso dascidades cercadas de água ou por um muro.Figura 5<strong>14</strong>6Depois vêm os bairros, onde podemos penetrar também pelo pensamento,imaginando seu caráter particular. Quando estamos num bairro, o identificamospela sua imagem, pelas suas ruas, e quando estamos fora, podemosutilizá-lo como referência. As vias e os limites que acabamos de descrever, e,como veremos em breve, os nós e os pontos de referência, não existem isoladamente,juntos, eles constituem o bairro.Figura 6Os nós que são pontos focais, são os lugares estratégicos da cidade, é apartir deles que o observador passeia. Podem ser pontos de junção entre pessoas,praças, pontos de ônibus, cruzamentos. Os nós são pontos de encontropelo fato de terem uma concentração de funções ou de certos caracteres físicos,como por exemplo, um abrigo na rua, um vendedor de sanduíches ou umapraça fechada. Alguns destes nós resumem um bairro, neste caso eles são umsímbolo, podemos chamá-los de centros. Como diz Lynch, os pontos de junçãoe de concentração são mais percebidos quando suas fronteiras são nítidas. E, seeles possuem uma forma, eles se tornam inesquecíveis.E para terminar, como quinto elemento, ele fala dos pontos de referênciaque são diferentes dos nós, pois o observador não penetra obrigatoriamenteneles, são prédios, estátuas, monumentos, montanhas...Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Figura 7Consciente de que “as imagens que têm mais valor são aquelas queestão mais próximas de um campo forte e total; que são densas, rígidas eestouradas; que utilizam todos os tipos de elementos e todas as característicasda forma”(LYNCH, 1976, p.105), Christian de Portzamparc procuroucriar um ponto forte na Barra. Para isto, ele utilizou as qualidades da forma,procurando equilibrar o percurso, as surpresas, ligando as experiências depercepção durante o caminhar.<strong>14</strong>7Figura 8Isto fez com que ele criasse no interior da Cidade da Música trajetos atravésdo que ele chama “tijolo perfurado”. “Cavando”, ele criou um diálogo entreo interior e o exterior. Os espaços cavados formaram as vias e os cruzamentosque se tornarão, quando serão habitados, lugares de encontro. Os muros doedificio são como folhas que se enrolam e que nos envolvem. Nas folhas, umalinha ativa. Dentro delas, a curva. A inflexão é capital, ela cria dinamismo.“Moramos envolta da curva, dentro ou fora, onde o dentro se torna fora e ofora dentro”.3 O espaço habitado entre as formas curvas forma a rua musical.Ele procurou com as folhas, criar fachadas leves. No terreno elas parecem velasde um barco ao vento. As formas da Cidade da Música se envolvem com oambiente que a rodeia e cria um símbolo público para o bairro.Christian de Portzamparc diz que “o Rio tradicional é excepcionalmentemimado pela natureza em todos seus atraentes bairros, mas que neste novoContinuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010<strong>14</strong>8Rio-Oeste da Barra da Tijuca a paisagem se afasta, as montanhas se distanciame o longo planalto não oferece eventos nem surpresas. Perdemos esta linhaúnica desenhada pela dança tão particular, que é ao mesmo tempo sincopada elangorosa, que duvida e que depois aceita que a estrutura geológica se imprimanas montanhas, com elas a potência e a graça parecem proteger a cidade.”4.A Cidade da Música é então uma habitação aberta ao público. A diversidadedos lugares que fazem parte do programa é perceptível e o terraço adez metros de altura, que permite o visitante de aceder a todos os espaços, faza união entre todos eles. Os limites das ruelas desta enorme varanda cobertasão formados pelas paredes côncavas das salas. Como explica Christian dePortzamparc, “as linhas das montanhas foram interiorizadas, postas em abismo.Trata-se do arquétipo brasileiro da varanda que aqui é gigante. Sob o teto,os volumes dos lugares da música, da dança, do cinema se dividem e se abrementre eles, para darem passagem à luz e ao movimento. [...] Somente um eventobastante físico, sobre o qual teríamos vontade de subir poderia responder àgrandeza desta Baixada.”5. Temos ao mesmo tempo o aspecto aéreo e terrestre,que tocam o consciente e o inconsciente do visitante.Bertrand Beau, chefe do projeto que também escreveu o programa, explicaque quando descemos a Avenida Ayrton Senna, nos deparamos com a fachadaNorte, que é estática, que mostra que chegamos, ela não é somente um ponto dereferência, mas também um limite para quem chega por esta via. Com maioresaberturas do que na fachada Sul, a fachada Norte mostra seu interior convidandoaquele que passeia a visitá-la. Enquanto que, quando passamos pela Avenida dasAméricas, a fachada Sul é dinâmica. Como velas de um barco ao vento, o movimentoda fachada está em osmose com o dos veículos que passam pela avenida.Neste nó, a Cidade da Música não somente se envolve com os moradores e como seu meioambiente, caracterizando o bairro, como também o estrutura.Figura 9Figura 10Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife – PE.2Cf. Palmade, J., Lugassy, F. et Couchard, F., La Dialectique du logement etde son environnement.3PORTZAMPARC, C., Chaire de création artistique, Collège de France. Oitavoseminário, 2006.4PORTZAMPARC, C., Entrevista sobre a Cidade da Música.5PORTZAMPARC, C., Entrevista sobre a Cidade da Música.<strong>14</strong>9Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s d a s i l u s t r a ç õ e sFigura 1: Plano Piloto para a urbanização da Barra da Tijuca, arquitetoLúcio Costa. Fonte: Lúcio Costa, registro de uma vivência. São Paulo,Empresa das Artes, 1995.Figura 2: Vista aérea do eixo da Avenida das Américas com a Avenida AyrtonSenna entre condomínios e centros comerciais. Fonte: Google Earth.Figura 3: Via. Fonte: LYNCH, K., L’Image de la Cité.Figura 4: Limite. Fonte: LYNCH, K., L’Image de la Cité.Figura 5: Bairro. Fonte: LYNCH, K., L’Image de la Cité.Figura 6: Nó. Fonte: LYNCH, K., L’Image de la Cité.Figura 7: Ponto de referência. Fonte: LYNCH, K., L’Image de la Cité.Figura 8: Cidade da Música. Projeto de estrutura de Bruno Contarini, CarlosFragelli e Beton Engenharia.150Figura 9: Cidade da Música. Fachada Norte. Fonte: Atelier Christian de Portzamparc.Figura 10: Cidade da Música. Fachada Sul. Fonte: Atelier Christian dePortzamparc.Re f e rê n c i a s BibliográficasFREITAS, L., Das Geometrias Labirínticas. Revista ICALP, vol. 2/3, p. 69-81, 1985.LYNCH, Kevin, L’Image de la Cité, Paris: Dunod, 1976.MAFFESOLI, Michel, Notes sur la postmodernité: le lieu fait lien, Paris : éd.Du Félin / Institut du Monde Arabe, 2003.PALMADE, J., Lugassy, F., Couchard, F., La Dialectique du logement et deson environnement, étude exploratoire, Publication de Recherches Urbaines:Ministère de l’Equipement et du Logement, 1970.PANOFSKY, Erwin, Architecture gotique et pensée scolastique, posfacioBOURDIEU, P., Paris : Les Editions de Minuit, 1967.PORTZAMPARC, C., Chaire de création artistique, Collège de France, 2006.Continuidade, pausa e movimento no tecido urbano: a Cidade da Música na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Das Exposições Universais aosJogos Pan-Americanos de2007: os envolventes legadosarquitetônicos dos megaeventos 1From Universal Expositions to 2007 Pan-American Games:the involving architectonics legacy of mega- eventsVania Oliveira Fortuna | vaniafortuna@gmail.comMestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação emComunicação da Uerj. Professora de Comunicação Social da UniversidadeVeiga de Almeida.ResumoEste trabalho estuda os legados arquitetônicos produzidos por eventos de grandeporte. Fenômeno de comunicação, os megaeventos habitam o imaginário urbano,marcam a memória do lugar, alteram o status quo da cidade e atuam sobremaneirana vida cotidiana. Para ilustrar esta dinâmica, revisitaremos as Exposições Universais,especialmente as realizadas em Londres (1851) e Paris (1855), consideradas por WalterBenjamin como espetáculo signo da modernidade; e os Jogos Pan-Americanos de2007, realizados no Rio de Janeiro. Percebemos que tanto na Modernidade como naContemporaneidade os grandes eventos fazem parte da história da humanidade, movimentandoas metrópoles e impondo equipamentos arquitetônicos que envolvemfavoravelmente o terreno, a população e o visitante.Palavras-chave: megaeventos; cidade; arquitetura; comunicação.AbstractThis work studies the architectural legacies produced by large events. A communicationphenomenon, the mega-events inhabit the urban imaginary, mark the memory of places,change the status quo of the city and act greatly in everyday life. To illustrate this dynamic,we revisit the Universal Expositions, especially those held in London (1851) and Paris(1855), considered by Walter Benjamin as a sign spectacle of modernity, and the PanAmerican Games (2007), held in Rio de Janeiro. We realize that both in modernity incontemporaneity the great events are part of human history, moving metropolises and imposingarchitectural equipments favorably involving the terrain, population and visitors.Keywords: mega-events; city; architecture; communication.Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o152Os eventos fazem parte da história da humanidade. Quando revisitamosos mais remotos ajuntamentos sociais percebemos a importância do espetáculona vida das pessoas. Em Atenas, séculos antes da Era Cristã, a grandepraça central da cidade surgia como palco dos principais eventos artísticos,políticos, religiosos e esportivos. Nasciam os jogos públicos (como disputa dedisco, pugilismo, corridas, entre outros). Os espaços urbanos começavam aser delineados. Com a construção de teatros e de outros equipamentos arquitetônicosque passaram a abrigar tais espetáculos, notadamente percebemos,já na Grécia Antiga, a arquitetura e a cidade se movimentando em funçãodos eventos. Em Roma, os jogos também tinham papel importante e faziamparte das celebrações que aconteciam em praça pública, teatros e circos. NaIdade Média, os olhos da sociedade se voltam para Paris. Gradativamenteos espaços abertos foram tomados pelos festivais, rituais cívicos e cerimôniasreligiosas. As celebrações populares usavam a liberdade como arma paravencer as dominações. Nessas festividades o povo se reconhecia numa novavida. No corpo coletivo, o corpo individual se libertava. No Renascimentoe na Modernidade, a religião ainda era a tônica dos grandes eventos, mas noséculo XIX as exposições que reuniam as novas técnicas da indústria capitalistacomeçaram a atrair multidões.No início do século XX, as pessoas se reuniam em volta do rádio paraouvir os acontecimentos. <strong>Ano</strong>s mais tarde a televisão entra em nossas vidaspara ficar. Esses meios de comunicação estimularam o interesse do públicopelos grandes eventos. A visibilidade foi determinante para o constanteaperfeiçoamento de suas produções. Novas tecnologias surgem a cada diae toda essa dinâmica se traduz em inúmeras possibilidades de midiatizaçãodos megaeventos.Fenômeno de comunicação, os megaeventos habitam o imaginário urbano,marcam a memória do lugar, alteram o status quo da cidade e atuam sobremaneirana vida cotidiana criando e alimentando uma importante rede decomunicação urbana. A cidade, a população, o trânsito, a arquitetura, a saúde,a segurança pública, todos os aspectos da vida urbana podem se modificar e semovimentar em função de um megaevento. Empregos temporários são gerados,novos focos turísticos são explorados, novas estratégias de organização dosserviços públicos são oferecidas. Toda essa transformação tem, muitas vezes,uma vida curta, mas em alguns casos as mudanças são incorporadas à estruturacotidiana da cidade e da população, como verificamos nas ExposiçõesUniversais, evento que marcou a Modernidade, e os Jogos Pan-Americanos de2007, o megaevento que se inscreveu na história do Rio de Janeiro, especialmentepor seus legados arquitetônicos.Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Ex p o s i ç õ e s Universais: e s p e t á c u l o s i g n o d a Mo d e r n i d a d ePenso nas raças convivendo nos outdoors da Benetton; nas melodiasflamencas, italianas, inglesas e de sociedades não-europeias que “superam”suas diferenças locais nas turnês dos três tenores; nas exposiçõesuniversais, nos espetáculos olímpicos e nas festas esportivas que “irmanamos povos” e oferecem ao mundo versões simplificadas do diverso edo múltipo (CANCLINI, 2003, p. 184).As narrativas de Walter Benjamin (1892 - 1940) sobre a Paris do século XIX,as transformações na indústria cultural, a observação da banalidade do cotidiano,enfim, a tentativa de atribuir significado a cada fragmento cultural urbano, é importantepara os estudos de qualquer metrópole contemporânea e da comunicaçãoproduzida nos seus espaços. Canevacci considera o filósofo alemão:O narrador de cidades, o primeiro antropólogo “espontâneo” da condiçãourbana ou, como mais eficazmente poderíamos dizer em inglês,construindo um neologismo ligado à palavra original (storyteller =narrador) - o cityteller. Por isso o debate sobre antropologia contemporânearecomeça tão frequentemente com ele. (2004, p. 106)153Nascida do desejo de divertir as classes operárias, a primeira ExposiçãoNacional da Indústria, precursora das Exposições Universais, aconteceu em1798, em Paris. A ideia inicial era organizar uma festa popular em comemoraçãoà Proclamação da República Francesa. Como entretenimento, algumaspessoas da organização do evento sugeriram pau de sebo e outros jogos, até quealguém sugeriu acrescentar uma exposição de quadros. Era a inspiração paraesta festa popular promover o encontro do público com as artes plásticas. Oproletariado conheceu uma exposição que privilegiou os hábitos populares. Aseda, o cetim e a renda foram substituídos por tecidos de uso doméstico.Esse evento deu origem às exposições públicas dos produtos da indústriafrancesa em 1801 e 1802, no Louvre; em 1806, nos Invalides; em 1834, 1839,1844 na Place de la Concorde e nos Champs-Elysées. Segundo Benjamin, aexposição de 1801 também queria reunir os produtos industriais e as artesplásticas, mas os artistas se negaram a expor suas obras juntamente com osprodutos industriais.A primeira exposição internacional da indústria, do comércio e das artes– a primeira Exposição Universal - realizou-se em Londres, em 1851, reunindoas novidades do sistema de produção resultantes das novas técnicas, sejam elasmaquinários ou produtos de consumo de massa.Em 1850, o príncipe Albert, marido da rainha Vitória, coordenou a organizaçãoda exposição, começando pela construção do local do evento. Emcurto prazo, milhões de dólares foram disponibilizados para o projeto queimprimiria novos rumos à arquitetura. Projetado por Joseph Paxton, um arquitetoe paisagista bastante conhecido à época, o Palácio de Cristal foi construídono parque mais importante de Londres, o Hyde Park. Utilizando elementosde ferro, madeira e vidro pré-fabricados, esta inovação da construçãoDas Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010154civil permitiu que a montagem fosse feita no local, podendo, mais tarde, serremontada em local diferente. Surge um novo conceito de pré-fabricação quese tornaria mais tarde uma tendência mundial. Após a exposição, o Palácio deCristal foi remontado no Sydenham Hill, onde permaneceu até ser destruídopor um incêndio, em 1936.O luxuoso espaço, composto por gigantescos pavilhões, abrigava quadros,esculturas, monumentos de bronze, estátuas de mármore e chafarizesjuntamente com as máquinas de fiar, de fazer renda, de fabricar envelopes,teares a vapor, bombas centrífugas e locomotivas em miniatura.O olhar melancólico de Benjamin era fruto de um momento delicado desua vida: judeu, militante intelectual progressista, vítima do nazifascismo, percebeuos meandros culturais e comunicacionais das exposições, mas criticousua idealização em função do interesse capitalista. O filósofo entendeu essesgrandes eventos como “centros de peregrinação ao fetiche mercadoria” (2006,p. 57) onde as pessoas se alienavam ao contemplar o espetáculo da indústriacapitalista, mas seu olhar provocante admitia que as Exposições Universaispromovessem o encontro da multidão com a arte.Benjamin percebeu que o novo cenário estava montado para o homem modernoocupar o seu lugar. Esse homem movido pelo frenesi de uma nova épocacirculava acelerado esperando a festa cujo espetáculo era as técnicas industriais.Paris realizou sua primeira Exposição Universal em 1855, no Champ deMars. A Europa se encontrava novamente para compartilhar as inovações datécnica industrial e das artes plásticas. Para Benjamin, o sucesso dessas exposiçõesfoi confirmado, entre outras coisas, pelo número de expositores nesseevento: 80.000; na de Londres, em 1851, foram <strong>14</strong>.837. Mais uma vez o espetáculocomeçou pela arquitetura ao projetar o Palácio da Indústria. A construçãoutilizou novos materiais como pedra, ferro e zinco. Os custos atingiram 11milhões de francos. Seis pavilhões tinham os seus espaços internos iluminadospor enormes tetos de vidro. As pinturas em vidro que ornamentavam o palácioretratavam pessoas em tamanho natural.Os corpos se integravam ao espetáculo que aguçava os sentidos. Os olhosse ofuscavam diante das locomotivas expostas nos salões, os ouvidos ficavamsurdos pelo barulho das máquinas que fiavam a lã, batiam o grão, extraíamcarvão e fabricavam chocolate. Cores, luzes, sons e aromas, tudo foi pensadoe montado para seduzir o visitante e despertar o desejo por um novo mundo.Essa exposição confirmou o desenvolvimento dos meios de produção e como ade Londres, em 1851, também produziu novas sensibilidades que permitiramaos homens novos olhares sobre o mundo.Percebemos uma fusão do espetáculo com os espaços e com os corpos,cujos sentidos se excitavam pelo audiovisual e pelo gigantismo dos pavilhões.Este cenário nos remete aos estudos de Maffesoli sobre o orgiasmo, um olharaudacioso das relações festivas e da teatralidade cotidiana.Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Ao fazer a mímica da desordem e do caos por meio da confusão doscorpos, o mistério dionisíaco funda periodicamente uma nova ordeme, assim, sublinha também a preeminência do coletivo em relação aoindividualismo, bem como em relação ao seu correlato racional, que éo social. (1985, p. 21)155Uma nova ordem surge da desordem característica da efervescência quepulsa nos momentos orgiásticos. Esses fenômenos representados por Dionísio,Deus do vinho e do sexo, são analisados por Maffesoli, que toma como baseos excessos, verdadeiras aberrações, desenvolvidos nas festas populares e noCarnaval da Idade Média. É o que Bakhtin chama de realismo grotesco, umaconcepção estética de vida marcada pela cultura cômica popular. O grotescoera representado nos rituais pelas ações banais cotidianas como beber, comer,falar palavrões e fazer sexo, por exemplo, parodiadas pela marca do exagero.Era a oportunidade que o povo tinha para vivenciar intensamente prazeres quefora dos momentos festivos deviam ser moderados.A desordem promovida pelas celebrações populares nos aproxima da circularidadesugerida por Morin, envolvendo ordem – desordem – interações –organização. Para o autor, “grandes tipos de interação permitem, no centro dadesordem da agitação, o surgimento de uma ordem física na e pela formaçãode organizações” (2007, p. 31). As interações e sua multiplicidade de sentidospodem confundir e até dispersar uma determinada ordem, mas rapidamente seunem e se reorganizam. Faz parte da dinâmica do conflito.Maffesoli analisa sociologicamente o orgiasmo social como uma práticaessencial à socialidade, termo que ele defende como experiências vividasem coletividades libertas das algemas do social, representado por uma vidaoprimida pelo controle social. Para o autor, o orgiasmo “é uma ‘forma’ quepermite compreender uma multiplicidade de situações que, por estarem menosdelimitadas, escapam em grande parte à injunção moral” (1985, p. 24). Eledissolve as diferenças, integra o corpo a um todo, seja pelo amor, seja pela dor.Isso nos sugere o homem moderno se integrando ao espetáculo das ExposiçõesUniversais. Inserido no cotidiano, o orgiasmo relativiza a ordem que se impõee permite que as paixões circulem e que a vida seja recriada a cada dia. É ateatralidade cotidiana, uma forma de resistência cultural que transcende aosinteresses político, econômico e social.Apesar de Maffesoli acreditar que a euforia produtiva do século XIXtentou domesticar os costumes e pacificar os corpos, Dionísio, adormecidotemporariamente, estava prestes a despertar – é o que o autor chama de centralidadesubterrânea. O orgiasmo social, quando menos se espera, floresce e criapossibilidades. Para o autor, esse século encerraUma multiplicidade de atitudes dionisíacas (romantismo, intimismo),que podem ser consideradas ‘pedras fundamentais’ de fenômenos queesboçam ou se desenvolvem em nossos dias [...] foi analisado comosendo o século da domesticação das paixões, do higienismo realizado.Isto é inegável; entretanto não seria possível, ao mesmo tempo, negarDas Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010a existência de importantes fenômenos de resistência que, emboradiscretos, não deixaram de ser eficazes. (1985, p. 166)156O orgiasmo nos ajuda a perceber as brechas que a vida cotidiana encontrapara resistir às coerções político-econômicas. Valorizar os atos mais triviaisdo dia-a-dia é o que Maffesoli, citando Benjamin, chama de “interesse do presente”(Ibid., p. 129), consciência de que ações efêmeras como namorar, comer,beber, conversar com um estranho na rua devem ser praticadas com intensidadeno aqui e agora porque não sabemos se teremos outra oportunidade daqui apouco. Nesse cenário de resistência também se enquadram as festas populares,o Carnaval ou até mesmo pequenos rituais diários como uma festa familiar,momentos de inversão social que reafirmam as relações em sociedade.As narrativas de Benjamin sobre a Paris do século XIX, seu olhar sobrea modernidade, ora melancólico, ora entusiasmado, foram a nossa inspiraçãopara a análise das Exposições Universais, que continuaram a deixar seus legadosarquitetônicos pela cidade. Em 1889, esse grande evento foi realizadopara comemorar o centenário da Revolução Francesa. Inscreve-se no cenáriourbano francês a Torre Eiffel, um dos principais ícones turísticos de Paris erecentemente candidata às sete novas maravilhas do mundo moderno.O Rio de Janeiro também tem marcas no seu espaço urbano deixadaspor um grande evento. No início do século XX, o orgulho de sentir-seinserido no mundo moderno incentivou a cidade a produzir a primeiraExposição Universal do Brasil, em 1922, para comemorar o Centenário daIndependência. O evento deixou legados arquitetônicos importantes como oprédio da Academia Brasileira de Letras, o Hotel Glória e o Hotel CopacabanaPalace, que se firmaria no imaginário urbano e se tornaria uma das construçõesmais representativas do Rio.Ao longo dos anos, as cidades perceberam que sediar um evento de grandeporte pode significar uma reestruturação urbana, pois sua realização alavancainvestimentos e cria oportunidades que solidificam a imagem da cidadeno competitivo cenário mundial. As disputas entre as metrópoles estão cadavez mais acirradas. O Rio de Janeiro, por sua vez, é um dos principais palcos demegaeventos de todo o mundo. E ao sediar os Jogos Pan-Americanos de 2007,se inscreveu definitivamente nesse cenário.Jo g o s Pa n-Am e r i c a n o s d e 2007: u m a m e t a m o r f o s e n o Rio d e Ja n e i r oAs megalópoles são povoadas por mensagens em todos os seus recantos[...] É o mundo da autoridade da comunicação e da transfiguração dopolítico - dois campos que se entrecruzam tanto nos espaços físicosquanto nos virtuais. No entanto, a ambivalência das comunhõescomunitárias pós-modernas, em que o lugar faz o elo, pode abrigarmanifestações das mais diversas ordens em nome do prazer ou da dor,como nos grandes eventos artísticos, esportivos, político-partidários emesmo religiosos. (FREITAS; NACIF, 2005, p.7)Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010157Réveillon, Carnaval, campeonatos esportivos, shows musicais, feiras,congressos. A lista seria grande para ilustrar os diferentes tamanhos, temas eformas de eventos que o Rio de Janeiro recebe todos os anos. A cidade é consideradaum dos mais importantes palcos de eventos de grande porte de todo omundo – a segunda do país e a quinta das Américas que mais recebe eventosinternacionais 2 .Atualmente, a violência urbana é uma das primeiras características lembradaspor turistas. Entretanto, a cidade lidera amplamente a lista das principaiscidades brasileiras visitadas por turistas estrangeiros, com uma médiade 40% de preferência nos últimos anos. Em 2007, aproximadamente doismilhões de pessoas participaram do Réveillon no Rio de Janeiro, cuja maiorconcentração (como em todos os anos) foi na praia de Copacabana. A cidaderecebeu 600 mil turistas que geraram receita de US$ 435 milhões. A taxa deocupação hoteleira foi de 93% 3 . Anualmente o evento oferece em suas praiasum espetáculo de queima de fogos que encanta a todos que renovam suas esperançasno ano que se inicia.O Carnaval carioca, em 2008, recebeu cerca de 700 mil turistas que deixaramna cidade perto de US$ 500 milhões. A rede hoteleira comemorou a ocupaçãode 82,89%. Esse evento foi responsável pela geração de aproximadamente850 mil postos de trabalho direto e indireto 4 . Independente do Réveillon e doCarnaval, os eventos de negócios também estão atraindo turistas durante todoo ano. As viagens corporativas representam 54,68% das visitas, um aumento de13,45%. 5 Essa atmosfera favorável à recepção de grandes eventos foi consolidadacom os Jogos Pan-Americanos de 2007, considerado o maior evento realizado noBrasil desde 1963, quando houve o Pan em São Paulo.Além da reforma no Maracanã e em outros complexos esportivos, asconstruções mais expressivas foram o Estádio Olímpico João Havelange(Engenhão), com capacidade para 45 mil espectadores e possibilidade deexpansão para 80 mil, a Arena Olímpica do Rio, o Parque Aquático MariaLenk e o Velódromo da Barra, a maior pista de ciclismo da América Latina.A população e os turistas lotaram esses locais e as ruas, desfrutando de umasociabilidade desenvolvida especialmente em momentos festivos cujo “caráteré determinado por qualidades pessoais tais como amabilidade, refinamento,cordialidade e muitas outras fontes de atração” (SIMMEL, 1983, p. 170).Podemos afirmar que seu alvo é a confraternização – é o sucesso do momentosociável. Sob o mesmo viés, Maffesoli chama esse momento sociável de lógicada fusão. O autor afirma que se de um lado está o social, que tem estratégia efinalidade próprias, do outro está a fusão da comunidade, “a massa em que secristalizam as agregações de toda ordem, tênues, efêmeras, de contornos indefinidos”(2006, p. 127).O ambiente pacífico manifestado pelo clima de festa conjugado às estratégiasde segurança pública reduziram em 60% o índice de criminalidade noDas Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010158mês de julho de 2007. O megaevento deixou para a cidade do Rio de JaneiroR$ 400 milhões em equipamentos, aproximadamente, como 1.768 veículosnovos, um investimento de R$ 100 milhões e 800 câmeras que custaram R$161 milhões. A organização dos Jogos Pan-Americanos foi considerada, deuma maneira geral, bem-sucedida, alavancando para o Brasil a confirmação depaís-sede da Copa do Mundo de Futebol de 20<strong>14</strong>. A notícia foi comemoradapor brasileiros e governantes, mas o presidente Lula reconheceu que grandesdesafios estão por vir, sobretudo no transporte. Ainda sob o efeito Pan, o Riode Janeiro está entre as quatro finalistas para sediar os Jogos Olímpicos de2016 6 . A cidade deverá apresentar um projeto para a redução substancial daviolência urbana, dos problemas com transporte e meio ambiente, além demelhorias na infraestrutura hoteleira.Investigar megaeventos nos leva a pensar a cidade e a sociabilidade quepulsa nesses momentos festivos. Percebemos que apesar da rápida e fácil comunicaçãoatravés das máquinas, as pessoas continuam querendo se encontrarpara rir, dançar, torcer, chorar. Essas emoções têm mais sabor se experimentadascom o outro face a face, ainda mais se estimuladas pelo espetáculo e peloambiente que as une. Nesse sentido, observar as transformações urbanas queos grandes eventos provocam na cidade é fundamental para o seu estudo, poisé ela o cenário mutante desse fenômeno de comunicação.Co n s i d e r a ç õ e s finaisEstudar megaeventos contemporâneos realizados em metrópoles é umdesafio que nos seduz. Acreditamos na relevância das pesquisas sobre esse tipode intervenção que altera sobremaneira o cotidiano da população e da cidadeonde são realizados, estabelecendo uma rede de comunicação urbana criadaespecialmente para esse momento.Através das narrativas de Benjamin, que atribui significado a cada fragmentocultural urbano, tão importante para os estudos de qualquer metrópolecontemporânea, revisitamos as duas primeiras Exposições Universais, realizadasno século XIX. Percebemos que esses eventos de grande porte, idealizadospara contemplar as novas técnicas industriais e reafirmar o poder do capitalismo,transformaram-se numa grande celebração popular que possibilitou, entretantas outras coisas, o encontro da multidão com as artes plásticas. Os espaçosurbanos de Londres e Paris receberam construções especialmente encomendadaspara abrigar esses eventos. O espetáculo das exposições começava pelaarquitetura. Os Palácios de Cristal (1851) e da Indústria (1855), construídoscom novos materiais, como pedra, ferro e zinco, tinham os seus espaços internosiluminados por enormes tetos de vidro. O cenário estava montado paraenvolver um novo homem: o homem moderno, que freneticamente circulavaem meio às máquinas e às artes com uma nova visão de mundo. Toda essaatmosfera que integrava o homem e o espaço ao espetáculo da modernidade,Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010promovia uma sociabilidade muita própria de momentos festivos, oportunidadeem que as diferenças são superadas. O objetivo individual cede lugar aoobjetivo da coletividade, que é a confraternização.Ao longo dos anos, as metrópoles perceberam que sediar megaeventossignifica uma boa oportunidade para concretizar reestruturações urbanas,intervenções que ajudam a solidificar a imagem da cidade no cenário mundial.O Rio de Janeiro já se inscreve nesse contexto como a quinta cidade dasAméricas a sediar eventos internacionais. Em 2007, o Rio sediou os Jogos Pan-Americanos. Mais uma vez o espetáculo começava pela arquitetura. Antigosequipamentos esportivos foram reformados, como o Maracanã, um dos íconesturísticos do Rio de Janeiro, assim como outros foram construídos. Por quaseum mês uma nova cidade se apresentava. Entre tantas estratégias criadas especialmentepara o evento, a segurança pública chama a atenção. A cidade ficoumais segura. O índice de criminalidade foi reduzido em 60%. A população eos visitantes lotaram os locais de competição e as ruas, produzindo um espetáculoà parte: o da união entre os povos de diferentes países. O imagináriourbano trabalha com o desejo de que todo dia fosse dia de um megaevento.159No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Informação fornecida por Jeanine Pires, presidente da Embratur, em artigo veiculadono jornal “O Globo”, em 25 de julho de 2008.3Fonte: e . Acesso em05 jun.2008.4Fonte: e . Acesso em05 jun.2008.5Pesquisa da Fecomércio-RJ veiculada no jornal “O Globo”, em 31 de agosto de2008.6Depois de inscrito este trabalho no Ciclo de Estudos sobre Imaginário, o Rio deJaneiro venceu a disputa, em outubro de 2009, para sediar os Jogos Olímpicos de2016.Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s bibliográficasBENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura ehistória da cultura (Obras escolhidas, vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1985.______. Rua de mão única (Obras escolhidas, vol. II). São Paulo:Brasiliense, 1995.______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. (Obras escolhidas,vol. III. São Paulo: Brasiliense, 1991.______. Passagens. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturaisda globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.______. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia dacomunicação urbana. São Paulo: Estúdio Nobel, 1993160FREITAS, Ricardo (Org.); NACIF, Rafael (Org.). Destinos da cidade: comunicação,arte e cultura. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: sociologia. São Paulo: Ática, 1991.LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca de auto-estima.Rio de Janeiro: Record, 2000.MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 2005.______. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades demassa. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.______. A sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia. Rio deJaneiro: Graal, 1985.MORIN, Edgar. O método 6: ética. Porto Alegre: Sulinas, 2007.SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.SIMMEL, Georg; Moraes Filho, Evaristo de (Org.). Sociologia. São Paulo:Ática, 1983.______. A Metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.).O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.Das Exposições Universais aos Jogos Pan-Americanos de 2007: os envolventes legados arquitetônicos dos megaeventos


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Cavernas Pós-Modernas: Grafitismoe Desejo de Espiritualização nosMuros de João Pessoa 1Post-moderns Caves: Graphitism and desire ofespiritualization in the walls of João PessoaEline de Oliveira Campos | camposeline@gmail.comMestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba(UFPB). Especialista em Ciências das Religiões UFPB. Licenciada em Artes UFPB.ResumoO grafitismo é uma prática de arte típica da idade pós-moderna executada pormembros das denominadas “tribos” por Michel Maffesoli. Os “modern primitives”frequentadores dessas tribos apresentam comportamentos semelhantes aos das populaçõesprimais como impressão de tatuagens no corpo, escoriações, colocação deobjetos perfurantes como piercings, alargadores, dentre outros. Nessa perspectiva,o grafitismo por eles executado reedita uma possibilidade de expressão artística executadana pré-história: a pintura rupestre, reformada e adequada ao tempo atual.Enquanto a pintura rupestre muitas vezes traduzia aspirações de realização de desejosmateriais como garantia de boa caça, no caso do grafitismo traduz também aspiraçõesde desejos com a modificação do foco para a espiritualização. Serão analisadas,portanto, a recorrência das imagens que traduzam idéia de espiritualidade com foconas representações míticas, considerando o impacto que esse tipo de intervenção trazao espaço, dando uma nova caracterização à geografia do imaginário.Palavras-Chave: grafitismo; tribos urbanas; representações míticas.AbstractGraphite is a practice of art typical of postmodern age performed by members of “tribes”;concept of Michel Maffesoli. The “modern primitives” who attend these tribes have similarbehavior to the primitive population as body tattoos, bruises, and use of piercing, reamers,among others. In this perspective, their graphitism replays an artistic expression performedin prehistory: the rock painting, restored and adequate to the present time. While cavepaintings often reflected aspirations of wish fulfillment materials such as ensuring goodhunting, in the case of graphite also reflects aspirations of wills with the change of focus forthe spiritualization. This article analyzed, the repetition of images that reflect the idea ofspirituality with a focus on mythical, considering the impact that this type of interventionbrings to the space, giving a new characterization of the imaginary geography.Keywords: graphitism; urban tribes; mysthical representation.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o162Esse estudo bibliográfico-documental-campo, não se propõe a discutirqual a teoria mais adequada à explicação de pinturas rupestres. Levando-se emconta que a diferenciação dos saberes técnicos, artísticos, científicos e religiosos,dentre outros, está atrelado à cultura ocidental cristianizada, partilha-seda ideia de que esse tipo de pintura/inscrição é tanto arte como veículo detransmissão cultural. Transmite valores da sociedade em que se inseriu por tersido produzida como todas as outras formas artísticas dentro de um contextohistórico/temporal e espacial que influencia diretamente sua produção; registrou“padrões estéticos de determinada cultura voltado a uma atividade de representaçãode um determinado saber, que deveria ser, totalmente ou em parte,compartilhado pelo grupo” (AZEVEDO NETTO, 1998, p.56). E, é tambémé uma forma de arte por estar presa a um impulso estético, não sendo possívelsua dissociação de emoções e sentimentos no momento de sua elaboração, mesmoque eles estejam traduzindo um espírito de tempo.O que se pretende é fazer um estudo comparativo da motivação que levaindivíduos a pintar as paredes desde as épocas mais remotas até o momentoatual. O leit movit que está na base dessa ação social.A Arte desde os seus primórdios revelou ser, além de meio de comunicaçãoe expressão de sentimentos e de perpetuação da cultura, um meiode expressar a necessidade de transcendência, que está sempre em busca daespiritualização. Por ser subjetiva, torna-se uma forma alternativa de confrontoe discussão de ideários pré-estabelecidos e cristalizados. Interfere também noespaço urbano, complementa-o ou modifica-o. Juntamente com a arquiteturareflete a sociedade que lhe deu origem. Ambas estão inseridas num espaçotempoque inspiram seu estilo.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O historiador italiano Giulio Carlo Argan dava fundamental importânciaà identificação entre cidade e arte. Alegava que a importância da interrelaçãoentre arte e cidade era tanta que afirmou que a história da arte eraa própria história da cidade, indo contra as proposições anteriores de que aprodução artística era dependente dos fatos históricos. Investiga-se, portanto, ainterferência que esse novo tipo de pintura, o grafitismo, provoca na urbis e suainfluência ou intercessão na vida da coletividade sua contemporânea.163Os produtores do grafitismo são as “tribos urbanas” 2 . De início, o conservadorismoengendrado pelos padrões da cultura e arte em que ele surgiu rejeitou-a,marginalizou-a. Enquanto o fenômeno encontra-se em curso, já se notaoutro movimento que aponta para o sentido contrário: a apropriação “comercial”desse modo de pintar. Os comerciantes passaram a contratar writers ou grafiteirospara confeccionar placas de lojas, letreiros, propagandas, dentre outras.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Na cidade de João Pessoa – campo da pesquisa – foram detectados, alémdesses espaços de produção, até mesmo comitês políticos grafitados. Nesse caso,a pretensão do candidato ao aliar-se à essa forma de expressão diretamente ligadaao seguimento mais jovem da população, aparentemente era conquistá-los.Não se pesquisou qual a influência do ato e sua contribuição para o resultadoda campanha, pois o candidato em questão teve grande expressividade no pleitoeleitoral. Mas, antes mesmo de iniciar a discussão propriamente dita, seriainteressante fazer a diferenciação dos conceitos de “grafitismo” e “pixação” daforma que serão usados nesse trabalho.Ur b i e t Or b i164A palavra grafitismo é derivada do italiano graffiti e foi utilizada desdeo Império Romano para designar as marcas ou inscrições feitas em um muro.Embora seja considerado como sendo grafitagem desde as inscrições caligrafadasaté os desenhos pintados em espaços públicos, nesse trabalho faz-sea diferenciação entre grafitismo e pixação. Essa distinção, mesmo que nãoregistrada oficialmente, é feita por grande parte dos próprios grafiteiros maisexperientes, produtores das pinturas, no intuito de não serem vistos comomeros produtores de poluição visual.A pixação seria então, o que é definido como inscrições caligrafadas ouusando um termo mais atual, bombing 3 : frases feitas com spray geralmentepreto que não têm intenções artísticas. São direcionadas para a demarcaçãode territórios. Usando o wild-stile 4 ao roof-top 5 , as tribos urbanas envolvem-seem disputas de poder pelo comando dos territórios. O que não é um fenômenotão estranho, pois, a delimitação do espaço habitado pelos homens éuma ação antiga que “assegura à socialidade uma securização necessária”Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010(MAFFESOLI, 2006, p.2<strong>14</strong>). Desse modo, tornar-se um writer de roof-topé tornar-se respeitado entre eles. Quanto mais ousado, mais considerado éo writer, e mais poder de liderança adquire. Interfere na paisagem da urbisdando uma impressão de “sujeira visual”. É bem típica a aparição de muitosdeles, de diferentes indivíduos, logo após a pintura ou restauração de umaescola, um prédio público ou privado.165Já o grafitismo, como categoria artística, surgiu da necessidade dospróprios grafiteiros de demonstrar que não eram apenas vândalos, produtoresde poluição visual, mas que tinham capacidade de realizar pinturasartísticas mesmo que em locais públicos. É, por conseguinte, uma formaalternativa de arte que se utiliza de suportes os mais variados, que vão desdeas paredes até vagões de trem para realizar suas pinturas. O estilo boxutiliza-se inclusive de técnicas semelhantes às das pinturas tradicionaisque lhe concede tridimencionalidade e jogo de luz e sombra, chamadopelos grafiteiros de estilo 3D. Assemelham-se muito aos desenhos produzidospor computador no Corel Draw 6 .Essa categoria realiza modificações visuais geralmente em ruas eavenidas, embelezando-as. São feitas em sua maioria na legalidade, comCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010autorização dos donos dos prédios. Até porque, por serem bem mais elaborados,demandam tempo para a sua execução. O que não impede dealguns serem feitos sem a devida autorização, durante as noites, à luz delanternas ou pelas madrugadas.A diferenciação feita nesta pesquisa se dá simplesmente à necessidadede distinguir a parte do grafite que serve como instrumento de poder para ademarcação de territórios e definição de lideranças do grafite como forma deexpressão artística e comunicacional.O grafite, como é feito na contemporaneidade, teve origem norte-americana.Apareceu nos anos 70 como roof-top, e evoluiu para as pinturas. Paraa concretização dessas últimas, utiliza-se além do tradicional spray em lata,o aerógrafo, a tinta látex misturada a pigmentos, à tinta para parede e atépolidores de sapato. Chegou a São Paulo ao final da mesma década, sendo aprodução brasileira reputada atualmente como uma das melhores e mais criativasdo mundo. Assim, Roma, o eterno modelo de urbi, forjou o conceito. Osmodernos romanos sobre o signo da águia ressuscitaram-no, e, o Brasil, recriouo estilo dando-lhe novas formas e cores.166Ho m e m Ar c a i c o e Mo d e r n PrimitivesSegundo Pierre Lévêque, o Neandertal, que já havia desenvolvidolargamente a caça voluntária, integrou-se e fixou-se cada vez mais no interiorda comunidade em que vivia. A esse tempo, ele já reconhecia-se comodescendente de antepassados. É nesse período que acontece o “desabrochardo pensamento selvagem”, pois o desenvolvimento de seu cérebro jápermite recombinação de elementos memorizados, “podendo criar entãoestruturas novas, as estruturas imaginárias”, começando a conjecturar arespeito das situações que se deparará no cotidiano como “os grandes animaisa que faz frente na batida” (LEVEQUE, 1996, p.17).Como o meio exerce influência capital no indivíduo/coletividade, aspinturas rupestres, a exemplo as encontradas na África, no Vale do Nilo e noSaara, retratam o dia-a-dia desses homens, que os poderes animais assustam edominam a imaginação. Pinturas e gravuras “ostentam a presença obsessiva deanimais selvagens que surgem como objeto de um verdadeiro culto, assinaladofrequentemente por toda uma simbólica” (LEVEQUE, 1996, p.18).Outro elemento que tem presença constante nessas paredes é o elementofeminino, que se sobrepõe em quantidade ao masculino. Analisando-o,observa-se que ao representá-lo, o artista primitivo não fazia dele um retratode uma mulher de sua raça. Ele simbolizava com aquela figura, um fato natural:a fertilidade. Trata-se por isso de uma abstração ligada diretamente auma questão central de sua vivência: a fertilidade e como sua consequência,a reprodução – seja ela de sua espécie, da caça ou dos vegetais – como fatorindispensável para a sua sobrevivência.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010167Já quando retratou os animais, empenhou-se “por apresentar a aparênciaessencial e a natureza de cada espécie, conseguindo traçá-las com um realismoimpressionante” (LEVEQUE, 1996, p.19). As representações em resumo, buscamentender e explicar o mundo cotidiano.Passados milhões de anos, os homens continuam usando seu imagináriopara encontrar soluções que seu cérebro, já bem mais especializado, não consegueperceber através do raciocínio lógico. O grafitismo parece ser mais umadessas práticas resignificadas através dos tempos. Como forma de arte que seutiliza da imagem como meio de expressão, “carrega a força empática da imagemque, regularmente, ressurge para atenuar os efeitos mortíferos da uniformizaçãoe da comutatividade que ela induz” (MAFFESOLI, 2006, p. 222).Embora sua origem histórica seja atribuída aos romanos, como visto anteriormente,originou-se muito provavelmente de uma expressão bem mais antigaque remonta a arte rupestre, sendo reformada através dos milênios. Comoela, o grafitismo continua sendo uma fonte de informação, comunicação eagregação para aqueles que o praticam.Os membros das tribos produtoras não por acaso são denominadas deModern Pimitives ou ModPrims. De identidade fluida, apresentam semelhançascomportamentais com os homens arcaicos, a exemplo do ato de imprimirtatuagens no corpo, marcar-se com escoriações, colocar objetos perfurantescomo piercings, alargadores, dentre outros. Em relação às cores das tintas utilizadasnas pinturas elas são, em muitos casos, conseguidas pelo adicionamentode pigmentos à uma base de tinta neutra, uma forma moderna para a antigamistura de pigmentos com secreções.Essa revivência de padrões comportamentais é possível levando-seem conta os eixos comportamentais que podem gerar ações que se modificamao longo do tempo, mas que conservam as suas estruturas principaisintactas através das eras:“O que nos incita a operar verdadeiro mergulho no inconscientecoletivo. Quero dizer com isso: levar a sério as fantasias comuns, asexperiências oníricas, as manifestações lúdicas pelas quais nossas sociedadesredizem o que as liga ao substrato arquetípico de toda humananatureza” (MAFFESOLI, 2006, p.7).Ao pintar as paredes de suas cavernas, os homens que habitavam aqueleespaço, marcavam com suas pinturas a presença de sua tribo. Modificavam oambiente e reuniam em torno de um eixo comum a comunidade concedendolheuma identidade e registrando sua cultura. As tribos urbanas o fazem atualmentecom seus grafites que foram usados a princípio como forma de demarcaçãode territórios e evoluiu para uma forma de expressão artística. O espaçoe o símbolo – traduzido pela imagem – são excelentes fatores de agregação. Éo que Michel Maffesoli chama de “regrediência”, ou seja, o retorno em espiralde valores arcaicos unidos ao desenvolvimento tecnológico”. Chama ainda aCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010atenção para o fato de que se poderia “caracterizar a pós-modernidade peloretorno exacerbado do arcaísmo”. (2006, p.7).Ar t e Co n t e m p o r â n e a, Es p a ç o s d e Pr o d u ç ã o e Grafitismo168A modernidade e em sua decorrência, a pós-modernidade, não podemse definir apenas como a mudança rápida de paradigmas, mas, comodiria Anthony Giddens, como “uma forma altamente reflexiva de vida” (apudHALL, 2006, p.15), onde “as práticas sociais são constantemente examinadase reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas,alterando assim, constitutivamente, seu caráter” (Ibid., p.15).A arte contemporânea não poderia estar alheia aos movimentos sociaise, muito menos ao tempo. Cada movimento artístico surgiu baseado nos anteriores:seja por oposição, transformação ou mixagem de estilos.Em relação à arte contemporânea, Catherine Millet fala sobre o ecletismopós-moderno onde “estilos arcaístas ou acadêmicos despontam e encontramuma ressonância” (1997, p.82). Essa forma de expressão, segundoHans Belting, sugere uma nova proposta para a arte que a partir de então“procura eliminar a fronteira entre a arte e a vida” (apud MILLET, 1997,p.84). Para tanto, no campo das artes plásticas, buscam-se novos suportespara a realização de suas pinturas, prescindindo das telas. Pesquisam -senovos materiais e suportes para imprimí-la.A noção de sublime, mesmo em meio a movimentos contrários, nãodesaparece de todo, a exemplo da pintura de Barnett Newman, um dos nomesmais expressivos do século XX. Embora Newman pensasse estar vivendo um“tempo sem legendas e mitos”, pensava o sublime como algo que se encontravano tempo vivido agora. Dessa forma, a arte reflexiona sobre “nossa condiçãona Terra” que ambiciona “um renascimento ou uma superação de si mesmo”(apud MILLET, 1997, p.96). É inegável a relação dialética da arte contemporâneacom o infinito e o tempo.Na esteira das transformações, aparece a body art 7 , onde o suporte para aexecução da obra não é mais a matéria inerte, mas sim, o corpo vivo. Seus pioneirostambém eram movidos “por uma vontade de superação de si mesmos”(apud MILLET, 1997, p.100). Uma particularidade profundamente significativadesse movimento é que “o real já não fornece modelos à representação, sãoas representações, as obras do imaginário que se imprimem no real” (MILLET,1997, p.101). A imaginação passa com isso a comandar mais do que nunca oprocesso de criação, passando a ser, inclusive, criador da realidade: “o real doNovo Realismo é o da nova “natureza” urbana e industrial” (Ibid., p.20).Mas, a distinção da arte contemporânea – ou mesmo como querem alguns,da “época da arte contemporânea” – dos períodos anteriores se dá aparentementee principalmente por dois fatores. O primeiro porque, ao contrárioCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010169do período anterior (Arte Moderna), ela propõe uma soldadura entre artista epúblico/sociedade. Seu discurso fala de uma vida diária, promove a estetizaçãoda vida cotidiana transmitindo uma sensação de familiaridade. Segundo peloque se denomina “contaminação”, que se dá principalmente através da combinaçãodas inovações tecnológicas com as formas de arte. Como diria AnneCauquelin, “o mundo da arte, como outras atividades, foi sacudido pelas ‘novascomunicações’” (2005, p. 56).Diz-se que a distinção se dá aparentemente por se tornar difícil percebercom clareza as razões impulsionadoras de um fenômeno em curso. Ao contráriodos artistas dos períodos anteriores que não podiam exercer sua arte “sempassar por uma formação prévia” sendo fiéis aos padrões perceptivos das escolasonde eram formados (PEDROSA, 1975, p. 23), os artistas contemporâneostransgridem a forma tradicional de fazer a arte: “são pragmáticos, insubmissosà aprendizagem do ofício de pintor ou de escultor, mas extremamente hábeispara forjar os seus próprios instrumentos e métodos ou para se apossar dosoutros.” (MILLET, 1997, p. 31) Ele já não possui a condição de ser excepcionalapartado do comum, é um indivíduo igual a todos os outros.A arte da pós-modernidade, estando sob a influência de sua época procedeà releitura de “práticas tradicionais, rituais e consideradas como primitivas”(MILLET, 1997, p. 70). A onda de religiosidade, bem típica do período,não poderia deixar de causar influência. O espaço de produção da arte, comoo de culto religioso, é “um espaço elástico, onde microcosmo se torna macrocosmoe inversamente” (Ibdid., p. 64). Como também o espaço urbanoda metrópole repete “em sua própria organização, o gigantismo sem meta dotodo” (MUMFORD, 2004, p.573).Nesse contexto, desenhos e pinturas feitas por computador adquiremigualmente o status de arte. O grafitismo, surgido nesse período, absorvesuas tendências e assemelha-se nas cores e formas aos desenhos produzidosno programa para computador Corel Draw, como que transpostos para asparedes das ruas de bairros e avenidas, materializando o virtual como quea tornar visível a imaginação.Aparece junto com as novas formas de expressão artística um conceitopara defini-la: o de arte pública. Esta, embora possa se materializar dentro deambientes privados como aeroportos, é nos espaços públicos que se desenvolvee multiplica, saindo dos recintos outrora a ela reservados como as galerias emuseus. Suas principais características são ser fisicamente acessível e trazer modificaçõestemporárias ou permanentes à paisagem que a circunda. Essas característicasfazem com que o grafitisimo possa ser considerado dessa categoria.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010170A arte pública tem a propriedade de oferecer “aos passantes a oportunidadede aguçar as suas faculdades perceptivas: “de ver o mundo de outra forma atravésde um caleidoscópio gigante” (MILLET, 1997, p. 41), é um convite à reflexão.Tal acontece com o grafitismo: dirige-se diretamente ao observador dispensandoos intermediários. Induz uma união entre o público e a obra e, por ser expostoem espaços abertos, apresenta uma qualidade sui generis: não é comercializável.Segundo Mário Pedrosa, “a posição do artista de hoje tende a equipararseà do artista das cavernas do paleolítico, espicaçado dia e noite, sensoriale magicamente pelas formidáveis excitações do seu meio-ambiente (1975, p.219). A semelhança se dá na medida em que“no mundo aberto de hoje, trata-se ainda, e no fundo, de absorver, deabarcar campos cada vez mais vastos, na apreensão sensorial, e tambémsubstantiva, do mundo ou do universo, o que afinal, desde a arte dascavernas, foi sempre a grande missão civilizadora da Arte”(PEDROSA,1975, p. 219).A globalização, que atualmente também se constitui uma condicionantesocial, exerce poder sobre o modo de organização das cidades. O que temcomo um dos resultados, o esmaecimento dos traços característicos da estéticavisual da arquitetura, principalmente das metrópoles e megalópoles.O crescimento acelerado dos agrupamentos urbanos imprimiu um novoritmo de vida e originou novos tipos de comportamentos, relacionamentos eorganização de espaços. O encontro com o vizinho, a conversa na calçada e outrosmodos de convivência praticamente desapareceram do cenário das grandescidades. É o império do urbanismo racionalista que se baseou na Carta de Atenaspara formular sua proposta de suprir as necessidades básicas “contra a confusão,a mistura e a falta de racionalidade seria preciso garantir espaços cuidadosamenteseparados para morar, circular, divertir-se, trabalhar” (MAGNANI, 2003,).Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Levada ao extremo, a padronização de valores e hábitos de viver, ondeo excesso de presença faz desaparecer lugares e objetos por sua constância nocotidiano da cidade, teve como reação um retorno ao “encontro do outro”, aprocura de novas afetividades: “O problema decisivo é definir os ambientes;para quem para onde, e para que ou por quê? Já não é permissível continuara falar... de qualquer outra arte no espaço e no tempo (isoladamente). Nemmesmo a Arquitetura” (PEDROSA, 1975, p. 216).Segundo a mesma Carta, “a manutenção ou a criação de espaços livres são [...]uma necessidade e constituem uma questão de saúde pública para a espécie” (CIAM,1933, p. 9). O que significa que não só de espaços reservados vivem os homens. Nesseintuito, multiplicam-se espaços que favoreçam a convivência, como associações, masprincipalmente igrejas, terreiros, templos e diversos espaços destinados à cultos religiososos mais diversos. Espaços que tragam a sensação de familiaridade tão própriados ambientes tribais, onde seus membros “sem ter talvez consciência clara dele, usavamde todos os sentidos, em plenitude, de manhã à noite, como condição sine quanon de intercomunicação e sobrevivência” (Ibid., p. 218).171Desenhar nos muros é uma forma encontrada de “compartilhar ideários”e sentimentos que exprimem o espírito de tempo. E, a cidade de João Pessoa,enquanto capital do Estado da Paraíba, segue os padrões apresentados para osgrandes agrupamentos urbanos globalizados. A pintura encontrada em seusmuros se dissemina pelos bairros das classes mais baixas às mais altas. Seusprodutores são membros de tribos urbanas como em todos os outros locais doglobo onde o fenômeno se apresenta.Segundo observações preliminares, como também depoimento de algunsgrafiteiros, a grande maioria deles é proveniente das classes menos abastadas,embora se registre a presença de membros das classes mais favorecidas.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Nessa capital alguns artistas se destacam na produção dos grafite-artecomo Shiko, Múmia, Gigabrow e D’True. Eles são considerados toys 8 e suasáreas de atuação são algumas vezes delimitadas a alguns bairros em particular,como é o caso de Múmia que tem preferência pelo bairro do Centro, ou espalhadospelo perímetro urbano como o fazem os demais citados.Detectou-se, numa primeira pesquisa, pinturas distribuídas em bairrosde todas as zonas da cidade. Dos mais afastados como Costa e Silva, jápróximo à saída oeste da cidade, até um dos considerados mais nobres comoTambaú, na orla marítima e Tambauzinho (bairro vizinho), passando porbairros tradicionais como Jaguaribe e Centro e os de construção mais recentecomo Mangabeira e Valentina.O que Catherine Millet fala da arte contemporânea também é adequadaà sua vertente mais atual: “[...] essas práticas generalizaram-se, gozando de umaárea de liberdade” (1997, p. 16) bastante ampla. Não seria a mesma busca quepermeia as duas realidades – a do homem arcaico e a do primitivo moderno– assegurar, através de suas idealidades sua inserção num universo que nãocompreendem? (LEVEQUE, 1996, p. 97).172Es p a ç o s Ur b a n o s, e De s e j o d e Es p i r i t u a l i z a ç ã o d o Pa s s a d o Re m o t oà Pó s-Mo d e r n i d a d eA vida de uma cidade é um acontecimento contínuo,que se manifesta ao longo dos séculos por obras materiais, traçados ou construções que lheconferem sua personalidade própriae dos quais emana pouco a pouco a sua alma. (CIAM, 1933, p. 15).A vivência aleatória levada na pré-história, submetida inteiramente àsforças da natureza, juntamente com a observação das constantes modificaçõesda mesma – que é capaz de morrer no inverno e reviver na primavera em umcontínuo ressurgir – supõe a criação dos primeiros mitos de origem. Eles dariamestabilidade e segurança, garantindo a continuidade da vida: “ao longodas sucessivas etapas da neolitização elaboram-se elementos do imaginário sagradodevido a condições concretas de vida e a difíceis relações com o meio”(LEVEQUE, 1996, p. 36). Para ele, tudo era mágico, religioso.A arte mural produzida nessa contextura relacionada aos animais foi porisso, “um ato de magia simpática, assente na convicção de que a representaçãopermite o aprisionamento do ser representado” (LEVEQUE, 1996, P. 25).A transição do nomadismo para o sedentarismo modifica a percepção demundo levando a novos questionamentos e à criação dos deuses que doravanteserão intermediários entre os homens e as forças da natureza. Novamente é seuimaginário que “fornece-lhe uma resolução, pelo menos parcial das suas contradições,integrando-o no cosmos e no grupo social” (Ibid,, p. 97).Historicamente foram registradas, nas mais importantes civilizações,Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010técnicas várias de pinturas e escrituras em paredes, desde o ocre das cavernasàs tintas especialmente preparadas por Michelangelo para a confecção dosafrescos da Capela Sistina. Mas o fato é que: os indivíduos escreveram, desenharame pintaram suas paredes desde que se tem notícia da presença dosseres humanos sobre a Terra. Só bem recentemente registrou-se o declíniodessa atividade, em parte proveniente da mercantilização da arte exacerbadanos últimos séculos. O comércio das obras criou a necessidade de suportesque pudessem ser deslocadas de uma parede para a outra, de um dono paraoutro. As telas e molduras, facilmente removíveis, popularizaram-se por seremideais a esse fim.173Mas o que se tem visto, é que à medida que se dá o esgotamento deuma ou mais possibilidades, procura-se outras formas de expressão. Muitasvezes essa inspiração é encontrada no passado remoto, – mesmo que de formainconsciente através do acesso aos arquétipos – em elementos familiares, comomaneira de trazer de volta a familiaridade, a segurança perdida. Até porque,esse constante mudar de valores ou volubilidade dos modismos na época atualretira a sensação de estabilidade e segurança que a tradição fornecia.No campo da arte, o grafitismo executado por membros de tribos urbanasreedita uma possibilidade de uma forma de arte executada desde remotasCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010eras, carregando consigo o simbolismo do espírito de tempo. Ajuda a reviver a“missão ideal da cidade” que é a de incentivar o “processo de difusão cultural”(MUMFORD, 2004, p. 607). Mas não somente isso, pois “desde a noite dostempos, a arte é o meio que o homem criou para transcender a sua condiçãode mortal” (MILLET, 1997, p. 96). Mas há de se perguntar: “Se as primeirasrepresentações ideológicas ainda continuam funcionais, favorecendo a reproduçãoda sociedade” não é através da transformação que “elas podem desempenharplenamente o seu papel”? (LEVEQUE, 1996, p. 100).É o que ocorre no reaparecimento do modo tribal de viver. Ele faz ressurgirformas de comportamento e formas artísticas nativas, bárbaras “diz erediz a origem e, com isso, restitui a vida ao que tinha tendência a esclerosar,se aburguesar, se institucionalizar. Nesse sentido, o retorno ao arcaico emmuitos fenômenos contemporâneos expressa, na maior parte do tempo, fortecarga de vitalidade”. (MAFFESOLI, 2006, p. 8). A pintura rupestre, tambémcarregada de vitalidade, traduziu muitas vezes aspirações de realizaçãode desejos materiais como a garantia de boa caça.174O tipo de pintura executada pelos grafiteiros e objeto de estudo dessapesquisa, revela da mesma forma aspirações de desejos, com a modificaçãodo direcionamento do foco da materialidade à espiritualização: realização deCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010anseios relacionados ao abstrato como “felicidade”, paz e mensagens religiosascolocadas de forma explícita.A respeito do grupo que foi detectado como produtor dessa arte, afirmaMaffesoli que “[...] antes de ser político, econômico ou social, o tribalismoé um fenômeno cultural. Verdadeira revolução espiritual. Revoluçãodos sentimentos que ressalta a alegria da vida primitiva, da vida nativa”(MAFFESOLI, 2006, p.6).Retornando-se à caverna, foi ela que “deu ao homem antigo a sua primeiraconcepção de espaço arquitetônico, seu primeiro vislumbre da faculdadeque tem um espaço emparedado de intensificar a receptividade espiritual e aexaltação emocional” (MUMFORD, 2004, p. 15). Foi também nela – dentreoutros espaços – que desenhou, pintou e fez gravações.A fixação do homem à terra no Paleolítico, com a criação das primeiras aldeias“foi uma parte integrante da configuração da (futura) cidade e a precedeu”(Ibid., p.24). Quanto à elas, desde a lacustre 9 à megalópole foram edificadas, emprimeiro lugar no plano da imaginação, como toda produção humana, sendoinfluenciada pelos hábitos, costumes, regras e todo um espírito de época.175Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010176As imagens próprias do lat urbanu formam mapas imaginários, representaçõesimaginárias que se compõem de ruas, muros, calçadas, dentre outros,incluindo-se construções antigas e, às vezes em ruínas, que dão acesso àmesma cidade em outra época compartilhando o mesmo no espaço.Para se habitar um lugar antes se faz necessário criá-lo. Mumford dizque sua criação inicia-se “começando por ser uma representação do cosmo,um meio de trazer o céu à terra, a cidade passou a ser um símbolo do possível”(2006, p. 39). Essa necessidade de segurança e delimitação de espaços físicosque seriam habitados, como também a conservação da conjuntura, gerou osmitos de fundação. Ao executar os rituais de fundação, recria-se constantementeo mundo e garante-se a sobrevivência dos indivíduos que partilham aqueleespaço físico. Protegida por uma divindade que era evocada no ritual e passavaa habitá-la, era divinizada. O “seu mundo” passa a ser o centro do mundo.Até os dias atuais, é tão forte o simbolismo do centro do mundo em relaçãoàs cidades que, quanto mais se afasta do centro, nota-se a descontinuidadee desordenamento do crescimento urbano. Ele se torna difuso e perde o foco,sendo observada a mesma dinâmica em todas as urbes ao redor do planeta edurante o transcurso da história.No entanto, mesmo nos bairros das periferias seus habitantes cultivamo mesmo sentimento de ser aquele o centro de seu mundo. O lugar de ondesaem e para onde podem se sentir aparentemente seguros de voltar. Tambémo bairro, como microcosmo inserido no macrocosmo da metrópole, é detentorde forte carga simbólica. O mito de fundação sobrevive pela própria necessidadeapresentada de criar e recriar constantemente os espaços de morada, deconvívio, em última instância de pertencer a um grupo social.Na verdade, o princípio organizador da sociedade é o par “territóriomito”que faz surgir além dela, grupos étnicos, corporações, tribos diversas queCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010vão se organizar em trono de territórios reais ou simbólicos e de mitos comuns(MAFFESOLI, 2006, p. 200).Observa-se que embora alguns mitos se tornem temáticos em algumassociedades ou períodos históricos, ao falar sobre funções e a sobrevivência damitologia, Lévi-Strauss afirma que“mitos e ritos” têm outra função muito mais importante e fecundaque consiste em “preservar até nossa época”, embora “sob uma formaresidual, modos de observação e reflexões exatamente adaptados edescobertas autorizadas pela natureza”. E esses modos permanecem. Eexatamente porque fundados naquela inapelável “autoridade” é que,“a partir de uma organização de exploração especulativas do mundosensível em termos do sensível”, seus resultados “perduram a dez milanos e continuam a ser o substrato da civilização”. O processo sensívele intuitivo da observação, que é o seu, dá ao pensamento mítico e aosritos que lhe definem as coordenadas mágico-estéticas sua incoercívelcoexistência espaço-temporal com as sucessivas civilizações históricas”(apud PEDROSA, 1975, p. 228).177A presença dos mitos enquanto estruturas arquetípicas são inerentes aohumano, acompanhando-o em sua trajetória histórica, gerando formas as maisvariadas de cultos religiosos e diversificação de religiosidades.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010178A ligação dos homens enquanto espécie e sua fascinação pelos fenômenossobrenaturais não é algo recente e, tão presente que segundo Lewis Mumford, “parainterpretar o que aconteceu, é preciso tratar igualmente da técnica, da política e dareligião, sobretudo do aspecto religioso da transformação” (2004, p .41).Antes disso, aspectos que pareciam ter desaparecido através das brumasda secularização, irrompe na atualidade com grande força. O Homo Religiosusde Mircea Eliade – habitante da pré-história – parece estar revivendo junto comtodas essas reminiscências que perpassam os fenômenos da pós-modernidade.Mas, segundo Michel Maffesoli, o grande mito que permeia a civilizaçãoatual é o do “puer aeternus”: “criança eterna, velha criancinha presente emalgumas culturas” (2006, p. 8), que contamina sua forma de agir para todo ocorpus social. Junto com isso, há uma reformulação na estrutura vertical, patriarcal,que está sendo sucedida por outra horizontal, mais fraternal.A presença da criança eterna que novamente emerge no contexto atual,já se verificou em outras épocas e sociedades. O arquétipo da criança eternacaracteriza-se por uma tendência ao descompromisso, como as já mencionadasligações fluidas e migrações constantes entre os grupos de convívio peloconstante mudar de ideias e/ou objetivos. O que passa a valer é o carpemdiem, do poema de Horácio. A expressão indica uma forma de viver que sepresencia no mundo da globalização onde a ênfase é dada ao eterno presente.Ao aproveitamento do prazer fornecido pela satisfação que as oportunidadesda vida oferecem sem a preocupação com o futuro. Esse arquétipo está intrinsecamenteligado ao da grande mãe. E, é aí que se fecha mais um ciclo aoconstatar-se que a grande mãe era presença constante nas sociedades arcaicascomo criadora e mantenedora da vida.Tr i b o s e Ta g s: individualismo o u e m p a t i a?No passado a fixação dos homens por um ambiente favoreceu a aproximaçãodos clãs, levando à criação de regras que possibilitem o convívio. Mas ao mesmotempo em que por um lado o grupo fornece segurança, pelo outro todo corpus socialimpõe regras de “dever ser”. O que provoca no sujeito um dilema – entre obedecer-lase ser aceito, e satisfazer suas punções – que se transforma em conflitos.O extremo que o individualismo alcançou na era da modernidade (anteriorao contexto estudado) levou o sujeito à indiferença em relação ao outroe ao meio, originando um sentimento de apartamento e solidão. Deu-se umadesagregação dos grupos sociais tradicionais o que trouxe de volta, na pósmodernidadeo “nomadismo” que é mais uma das características do tempo dastribos (MAFFESOLI, 2006, p.3). Nomadismo este, muito mais de relações emutações de costumes de que de lugares.A mudança constante de referenciais contribuiu para a sensação de instabilidade.Além disso, aqueles que fogem aos padrões são ao menos no início,Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010179postos à parte. Foi o que aconteceu aos grafiteiros. Mas são justamente essesoutsiders que são capazes de questionar e modificar essas regras. Generalizandosua arte têm, além de outros objetivos, a intenção de mudar o ponto de vistadas pessoas a respeito de sua arte. Inseridos numa sociedade onde existe uma“anemia existencial suscitada por um social racionalizado demais”, as tribosurbanas salientam a urgência de uma “sociedade empática” que partilhe “emoções”e “afetos” (MAFFESOLI, 2006, p. 11).A tribo dos writers ao se agruparem, estabelecem ligações afetivas quefavorecem o sentimento de pertencimento “a um lugar, a um grupo, comofundamento essencial de toda vida social” (Ibid. p.11). Essa inclusão não deixade gerar situações conflituosas. O que os difere da sociedade arcaica – e quevale também para outras tribos – é a solução encontrada para os conflitos: elaconduz ao retorno ao nomadismo: as migrações entre grupos são constantes enaturais, dependendo da mudança de objetivos.Após a era do individualismo, inicia-se o surgimento da era da empatia.Nela, o convívio social, embora visto de formas tão distintas quanto os gruposque o compõem, é indispensável. Para os modprims “pouco lhes importa oobjetivo a ser atingido... elas preferem ‘entrar no’ prazer de estar junto ‘entrarna’ intensidade do momento, ‘entrar no’ gozo deste mundo tal qual ele é”.(MAFFESOLI, 2006, p. 7). O sentimento de pertencimento aparece comouma necessidade premente, embora se dê “conforme os interesses do momento,conforme gostos e ocorrências” (Ibid., p.205).Outra presença constante é a ambivalência individualidade/coletividade.Nas produções tribais os indivíduos diluem suas personalidades aderindo aosconceitos e modos de agir do grupo. Pintam extensões de muros produzindoum mural chamado de Hall of Fame 10 , onde mais de um artista, cada um comseu estilo e técnica dividem o mesmo espaço.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010180Não deixam com isso, de ansiar pela afirmação de sua individualidadequando, por exemplo, assinam os grafites com seus tags 11 . Essas tags estão ficandocada vez mais especializadas evoluindo para os sticks, que são adesivos coma marca do grafite que são colados sozinhos ou junto com as pinturas. Paraaqueles que trabalham juntos, forma uma “equipa” além de assinarem seu tag,colocam adjacente o crew 12 que identifica o grupo.Da mesma forma, uma das suposições a cerca da impressão das mãos aolado ou próximo às pinturas rupestres indicam se tratar de assinaturas do artistaarcaico que vivia e se expressava na e para a coletividade, mas que já sentiaa necessidade de se afirmar enquanto individualidade.Logo “dois grandes eixos essenciais” aparecem na raiz do tribalismopós-moderno, segundo Maffesoli: “de um lado, o que salienta os aspectos aomesmo tempo “arcaicos” e juvenis do tribalismo. De outro, o que salienta suadimensão comunitária e a saturação do conceito de indivíduo.” (2006, p. 5).Na verdade para ele pouco importa os nomes dados ao conjunto da fenomenologia,mas o que se tem por certo é que “não é mais a partir de umindivíduo, poderoso e solitário, fundamento do contrato social, da cidadaniadesejada... que se faz a vida social” (MAFFESOLI, 2006, p.<strong>14</strong>), mas, sim parauma comunidade emocional. O foco direciona-se para o mecanismo da “participaçãomágica: com os outros (tribalismo), com o mundo (magia), com anatureza (ecologia)” (MAFFESOLI, 2006, p.16), como que realizando umasacralização das relações sociais.Também a rua, onde são realizados e expostos os grafites, restitui o experimentodo convívio com a diversidade,possibilitando a presença do forasteiro, o encontro entre desconhecidos,a troca entre diferentes, o reconhecimento dos semelhantes, amultiplicidade de usos e olhares – tudo num espaço público e reguladopor normas também públicas. Este é o espaço que se opõe, em termosde estrutura, àquele outro, o do domínio privado, da casa, das relaçõesconsangüíneas. (MAGNANI, 2003).Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A obra produzida pela categoria dos primitivos populares, onde se podemincluir os grafiteiros vale “pelo valor expressivo sensitivo que sai de todosos seus poros” (PEDROSA, 1975, p. 18). E que, por isso, atrai e sensibiliza.Essa categoria da arte contemporânea nascida no período pós-moderno, segundoMário Pedrosa, se empenha profundamente em “acabar com a terríveldicotomia da inteligência e da sensibilidade; em fundi-las de novo como quandoo homem tomou pela primeira vez consciência de seu destino e de seu serà parte” (1975, p. 20). Ele nos diz de um esforço “profundo e fecundo” parasensibilizar a inteligência: suas imagens, suas formas, seus objetos são deexpressão tímidas ainda, articulações, articulações primárias de uma estruturasimbólica nova, em formação (Ibid., p. 22).A sensibilidade é um conceito que ganha força na época presente saindodo campo da arte, deixando pertencer somente aos artistas. Ela passa a ser“motriz em tudo o que o homem faz, em tudo sobre o que age em tudo o quedescobre pela imaginação criadora (PEDROSA, 1975, p. 13).181Co n s i d e r a ç õ e s FinaisPelo que foi discutido, pode-se chegar à algumas conclusões. A primeiradelas se trata de que todo movimento artístico – como também outrosfatos sociais – não pode ser examinado separadamente de seu contexto. E,analisando-se as tendências da arte de determinado período pode-se fazerdeduções a respeito de sua sociedade. A arte está profundamente ligada àhistória das cidades, dos bairros, enfim, do estabelecimento de territórios,sejam eles reais ou imaginários.Na atualidade a instabilidade de conceitos em permanente mutação ésentida no campo das artes tanto quanto na estruturação dos espaços urbanos,que não têm ao menos tempo de se imporem porque, tal como os modismos,se sucedem de forma vertiginosa.A regrediência, a formação de tribos urbanas cujos clãs são formadospor modern primitives, é um fenômeno próprio da pós-modernidade. Essastribos são as produtoras dos grafites que muito se assemelham às pinturasrupestres na maneira de produção enquanto forma de compartilhamento deelementos culturais e afetividades de uma tribo. Seus métodos de produçãotambém são parecidos, inclusive na fabricação das cores das tintas utilizadase no compartilhamento de espaços que, transmutaram-se de paredes rochosaspara os muros da cidade.Muitos paralelos podem ser estabelecidos entre os comportamentos dohomem arcaico e dos habitantes do tempo das tribos. O fio que liga passado epresente num contínuo reviver do espaço-tempo é o da absorção de campos deapreensão sensorial. Ele se amplia continuamente, seja ele no campo da arte ouda arquitetura. Outra linha que costura antigas e novas vivências é compostaCavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010182pelos mitos que atravessam eras modificando-se pela inserção de elementosculturais que conservam sua estrutura arquetípica.A arte como um todo é um meio que o indivíduo criou no intuito detranscender sua condição de mortal. A arte pública é também fator de agregaçãosocial que transparece na sua própria produção revelando um espírito detempo. O grafitismo produzido nos muros da cidade de João Pessoa, não fogeà regra e está dentro dos padrões de execução encontrados em outros agrupamentosurbanos, mais precisamente nas metrópoles e megalópoles.A produção da pintura e da arquitetura tanto são influenciados pelavida social, quanto influenciam-na através das imagens projetadas. Esses espaçosse tornam cada vez mais elásticos e provocam um movimento de vai evem onde microcosmo se torna macrocosmo e inversamente. Sendo reflexodo todo, repetem-no e o ressignificam.A tendência do retorno ao sagrado se faz cada vez mais presente, inclusivena sacralização das relações sociais. O sentimento de pertencimento éestimulado pela convivência dentro dos grupos que se unem por um objetivocomum, havendo a possibilidade de, a qualquer momento, migrarem para outratribo, estabelecendo-se assim, ligações que podem se tornar duradouras,mas em geral são fluidas, momentâneas.Quanto aos grafiteiros, para que se afirme que eles têm consciênciaampla de que suas obras estejam impregnadas de conteúdos que remetemà religiosidade, se faria necessária uma investigação mais ampla. O fatoé que, com ou sem consciência, eles refletem o espírito de tempo onde abusca pela espiritualização se faz cada vez mais presente e que acompanhaa ampliação do campo sensorial humano.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Termo cunhado por Michle Maffesoli.3Letras simples que garantem a rapidez de execução, são associados à ilegalidade.4Um dos primeiros estilos utilizados caracterizando-se por letras quase ilegíveis.5Realizado em locais de difícil acesso como outdoors, telhados e parte mais alta dasfachadas de prédios.6Programa de desenho vetorial bidimensional utilizado para design gráfico quetorna possível a concepção de desenhos artísticos, publicitários, dentre outros.7Body art é literalmente arte do corpo, que usa o corpo do artista como suporteassociando-se à violência contra o próprio físico através de perfurações, escoriações,tatuagens até deformações.8Grafiteiros com muita experiência a talento.9Tipo de habitação pré-histórica edificada sobre palafitas nos lagos.10Diferentemente do bombing, o Hall of Fame é um trabalho geralmente legal,onde os grafiteiros pedem autorização ao proprietário do lugar antes de pintá-lo.18311Expressão que pode se referir tanto ao nome como ao pseudônimo do artista.12Normalmente o crew segue uma regra geral que manda que ela seja comportadade uma sigla com três ou quatro letras.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasAZEVEDO NETTO, Carlos Xavier de. A Natureza da Informação daArte Rupestre: a proximidade de dois campos. Informare - Cadernos doPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Informação. Rio de Janeiro, v.4,nº2, p.55-62, jul./dez. 1998.CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo:Martins Fontes, 2005.HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio deJaneiro: DP&A, 2006.LÉVÊQUE, Pierre. Animais, Deuses e Homens: o imaginário das primeirasreligiões. Lisboa: Edições 70, 1996.Magnani, José Guilherme. A Rua e a Evolução da Sociabilidade. Os Urbanitas- Revista Digital de Antropologia Urbana, vol.1, out., 2003. Disponível em:.Acesso em 25 ago, de 2008.184MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nassociedades pós-modernas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.MILLET, Catherine. A Arte Contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.MUMFORD, Lewis. A Cidade e a História. São Paulo: Martins Fontes, 1998.PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em Crise. SP: Perspectiva, 1975.Acesso o n l i n eASSEMBLÉIA DO CONGRESSO INTERNACIONAL DEARQUITETURA MODERNA. 1933. Disponível em: . Acesso em 02 out. 2008.Cavernas Pós-Modernas: Grafitismo e Desejo de Espiritualização nos Muros de João Pessoa


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010A arte de construir noNordeste: um resgate 1The art of constructing in Northeast: a retrievalMadalena de F. P Zaccara | madazaccara@gmail.comProfessora Adjunta do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artísticada Universidade Federal de Pernambuco e líder do Grupo de Pesquisa Arte,Cultura e Memória.Doutora em História da Arte pela Université Toulouse IIResumoO espaço arquitetônico no Brasil, após a ruptura com a tradição luso-brasileira, desligou-sede preocupações relacionadas à sua realidade ambiental. Soluções arquitetônicasbaseadas em um pensamento de características internacionais, não foram filtradas eadequadas ao seu ambiente tropical. Entre as poucas propostas que se contrapuseramà essa padronização encontra-se a obra, teórica e prática, do arquiteto pernambucanoArmando de Holanda. Nos anos 70, quando a concepção modernista da arquitetura edo uso do solo no Brasil e na região refletia principalmente o racionalismo formal deCorbusier, ele já se preocupava com o abandono das tradições construtivas nordestinas.Sua publicação Roteiro para construir no Nordeste é uma antecipação da preocupaçãocontemporânea com conceitos que priorizam a harmonia do espaço arquitetônico como meio ambiente. Nosso trabalho tem como objetivo resgatar suas ideias e inseri-las nodiálogo espaço arquitetônico/meio ambiente que acontece na contemporaneidade. Elefaz parte da ação do Grupo de Pesquisa Arte Cultura e Memória. Palavras-chave: arquitetura;nordeste; meio-ambiente Armando de HolandaAbstractThe architectonic space in Brazil, after the break with the Portuguese-Brasilian tradition,went away of worries related to it´s environment reality. Architectonic solutions based on athought of international characteristics, were not filtered and appropriated to it´s tropicalenvironment. Between the few proposals that opposed this patternship in the work, practicaland theoretical, of the architect from Pernambuco Armando de Holanda. In the 70´s, whenthe modernist conception of the architecture and the use of the soil in Brazil and in the regionwas a reflection especially of the formal rationalism of Corbusier, he was already concernedwith the abandon of the constructive traditions of the Northeast.His publication Roteiropara construir no Nordeste is an anticipation of the contemporary concern with concepts thatpriorize the harmony of the architectonic space with the environment. Our work has a goal toretrieve his ideas and insert them on the dialog architectonic space/environment that happensnowadays. It is part of the action of the research group Arte Cultura e Memória.Keywords: architecture; Northeast; environment Armando de Holanda.A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010186Re f l e xõ e s s o b r e a m o d e r n i d a d e e s u a s re l a ç õ e s c o m o s p r o c e s s o s d eCu l t u r a d e Massa“Il faut être absolument moderne”Arthur RimbaudO pensamento e os movimentos de vanguarda surgidos entre 1910 e 1930mantiveram uma relação radical com a sociedade de então objetivando umaleitura completamente nova do mundo circundante, leitura essa que prescindiade qualquer imitação naturalística ou apropriação estilística e que deveria sefundamentar nas novas relações com a tecnologia emergente. Essa tentativa depropor uma linguagem única para uma sociedade sem classes explorava, basicamente,a utopia e a imaginação tentando inserir os artistas em uma dimensãode luta quer no plano individual, quer no social, para a conquista estéticahomogênea dessa nova sociedade (GREGOTTI, 1994, p. 47).Essa proposta utópica pretendia resolver os problemas habitacionais epolíticos de sua época. Sob a bandeira do absolutamente novo, o movimentocomportou-se em relação à história, ao passado, com uma atitude de recusa enegação que se refletiu em todas as suas manifestações artísticas. A arquitetura,inserida nesse sistema de pensar e de operar, assumiu o conceito de autoexpressãoe o inventário de funções como princípio base de sua própria filosofia numcontexto onde a linguagem da modernidade artística radicalizou de tal forma abusca pelo novo que passou a demarcar fronteiras operativas entre “os que falamas línguas atuais e os ruminantes das línguas mortas” (ZEVI, 1974, p. 17).Filha de um processo crescente de industrialização, a arquitetura moderna,após a idealização utópica que a embasou em seus primórdios, embarcouem um universo mercantilista que foi absorvendo, gradativamente, as atividadesartesanais e as referências culturais de forma cada vez mais globalizada.O colapso da cultura tradicional e a necessidade de uma proposta nova, combase no recente, no atual, no espírito de seu tempo passaram a responder pelaprodução dessa nova sociedade industrial e urbana.Depois do declínio da tradição idealista, da utopia social presente notrabalho de Le Corbusier e de Grópius, o “Estilo Internacional” triunfou emtodo o mundo por volta dos anos 50. A nomenclatura arquitetônica que sepopularizou nessa década do século passado, e que era conhecida pelo públicocomo “Arquitetura Moderna”, não correspondia mais aos anseios dos pioneirosdo idealismo moderno em sua primeira fase. Tratava-se agora de uma novarealidade: em lugar do conceito se destinar a um indivíduo ou a um grupo elepassou a ser dirigido a milhares de pessoas de forma rápida e comunicando-secada vez mais diretamente com as massas através de um processo de internacionalizaçãode valores e propostas (JENCKS, 1985, p, 43).Esses meios visavam alcançar, servir ou reduzir a um nível comumo pensamento e o desejo de um maior número possível de usuários: semA arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010fronteiras de ordem cultural, climática ou existencial. Desse processo nosdiz Renato de Fusco:Na arquitetura, urbanismo e desenho a unificação e estandardizaçãodos produtos pode alcançar de uma maneira indiscriminadaa usuários de qualquer classe ou número. Parece suceder omesmo; inclusive, à escala dos centros urbanos e das edificações.(...) A quantificação, que alguns consideram como um critériode valor tem sido possível graças aos mesmos métodos tecnológicosque condicionam os meios de comunicação sonora: aindustrialização, a pré-fabricação, a montagem dos elementos,são aspectos comuns tanto na arquitetura e desenho como atodos os demais canais de comunicação. (1970, p. 70).187No que se refere ao caráter internacional desta arquitetura que tratamos,um denominador comum foi encontrado e utilizado para “converter” as culturasde diversos países: o resultado foi a concepção e divulgação de um produtofinal de acordo com as normas de fabricação industrial.Absorvido pelo mercado, o usuário da produção arquitetônica do períododeixa de ser importante enquanto indivíduo. Vira número. Seu habitatjá não é o seu espelho, sua imagem. Ele é parte da vontade coletiva interpretadaà luz dos novos conhecimentos científicos, tecnológicos e, principalmente,mercadológicos. As particularidades desaparecem em função dedeterminações globais. A construção tradicional e a memória coletiva sãocompletamente ignoradas bem como a preocupação com o ambiente específico.Enfim: a tekne vence a poiesis.Ar q u i t e t u r a m o d e r n a e r e a l i d a d e c o l o n i z a d a b r a s i l e i r a“A consciência de ser colonizado dos brasileiros étitubeante, confusa e mal explicada”Ana Mae BarbosaOs movimentos das vanguardas históricas ocorridos na Europa foramcompletamente ignorados no contexto brasileiro até os fins da PrimeiraGuerra Mundial. A manifestação de 1922 (ano escolhido para o evento emhomenagem à independência do Brasil), apesar de se constituir em mais umaatualização com a arte europeia, tinha preocupações paralelas com uma artenacional inspirada na natureza e na cultura brasileira. De acordo com YvesBruand (2003, p. 61), Oswald de Andrade empenhava-se por uma poesia epintura nacionais inspiradas na “paisagem, na luz, na cor, na vida trágica eopulenta do interior do Brasil.” Queria a revolução da modernidade acopladaa um pensamento nacionalista.A “Semana de Arte Moderna de 1922”, entretanto, não impactou o cenárioartístico nacional e no que diz respeito à arquitetura ela não teve maiorsignificado. Em meio aos intelectuais e artistas que a organizaram e delaA arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010188participaram, o arquiteto Antonio Garcia Moya destoava por sua própria produçãode tradição eclética. Nascido e graduado na Espanha, ele foi um dosparticipantes da modesta seção de arquitetura da famosa Semana e apresentou,então, desenhos que apesar de romperem com a proposta acadêmica contestadapelos organizadores não apresentava qualquer projeto estético definido.Portanto, no Brasil, até 1927, nada aconteceu em relação ao movimento modernoem arquitetura afora a atuação isolada (ou precursora) do arquiteto, nascidoem Odessa, Gregori Warchavichik, que no eixo cultural Rio-São Paulofoi responsável pelo projeto e construção da primeira casa estabelecida comomoderna pela historiografia da arquitetura no Brasil.Lúcio Costa, entre os anos de 1931 a 1935, juntamente com um grupo dejovens arquitetos recém saídos da Escola Nacional de Belas Artes, debruça-sesobre o movimento racionalista europeu examinando a doutrina de Gropius,Mies Van der Rohe e principalmente Le Corbusier. Um grupo ativo, partidárioda nova arquitetura, se forma e, inicialmente, a mesma preocupação que norteiao nacionalismo de Oswald de Andrade parece estar presente na pesquisadesses pioneiros. A ausência inicial do culto ao propósito de impor-se indiferenteao meio circundante pode ter atraído Lúcio Costa que, mesmo com suaeducação europeia, havia se voltado para o estudo do patrimônio arquitetônicobrasileiro e aderido, em seus primeiros trabalhos, ao “estilo neocolonial” quedominava a cena arquitetônica de então e que acreditava promover o redescobrimentoda herança colonial brasileira (BRUAND, 2003 p. 74).É necessário assinalar que, em paralelo ao racionalismo formal de LeCorbusier, os brasileiros já haviam tomado contato com os princípios orgânicosdo arquiteto americano Frank Lloyd Wright, apesar de sua passagem peloBrasil só ter acontecido em 1931. Segundo Nina Nedelykov (NEDELYKOV;MOREIRA, 2001), , a obra de Wright já era conhecida no Brasil nos anos 20através de suas publicações.Também segundo a arquiteta, Alcides da RochaMiranda, arquiteto atuante na época, organizou no Rio de Janeiro, já em1933, o I Salão de Arquitetura Tropical, que se repete até os anos 50 e queteve como homenageado em sua primeira versão o arquiteto americano e nãoCorbusier. Portanto, em paralelo ao racionalismo formal francês, a obra organicistade Wright, embora menos acessível, já encontrava ecos na formaçãoda arquitetura moderna brasileira.É particularmente notável, segundo Bruand, que em Recife, (que enquantoprovíncia, deveria estar destinada a seguir a orientação dada ou transmitidapelas metrópoles), tenha acontecido uma renovação modernista mesmoantes da implantação definitiva do novo ideário no Rio ou em São Paulo.Luís Nunes, nascido em Minas Gerais, convidado a trabalhar na capital pernambucana,montou uma equipe da qual fizeram parte o engenheiro JoaquimCardoso e o arquiteto-paisagista Burle Marx – o segundo notável pelo pioneirismono uso das plantas tropicais em seus trabalhos paisagísticos.A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010189Em curto período de tempo, Nunes conseguiu realizar uma obra audaciosa,numericamente significativa e que levava em conta as condições climáticasda região. Suas construções teriam sido o início de uma “linguagembrasileira”, ambicionada pelos paulistas da Semana de Arte Moderna de 1922:uma síntese entre o caráter universal dos princípios modernistas e a expressãoregional. Sua curta vida limitou sua atuação profissional. Não podemos,portanto, estabelecer uma projeção de seu significado em relação a um possívelnovo direcionamento da produção arquitetônica brasileira – que poderiater se libertado da ditadura dogmática do “Estilo Internacional” enveredandopor uma ótica menos colonizada. Quem sabe ela poderia ter contribuído maisexpressivamente para um redimensionamento da nossa condição de importadoresde conceitos que nunca levam em conta nossa realidade? Uma herançacolonial que Ana Mae Barbosa explicita: “os anos anteriores de dominaçãotinham sido muito degradadores, como em geral o foi a colonização europeia.Proibidos de termos imprensa, escolas superiores e mesmo um ensino primárioe secundário organizados, fomos domados pelos jesuítas [...]” (1998, p. 30).Continuamos, em pleno século XXI, ainda nesse processo de importaçãode valores e domados por outros jesuítas. Tudo como na Colônia. Entretanto,se o tempo possibilitou que o imaginário barroco importado por aquela ordemdiretamente de Portugal se transformasse no “Barroco Tropicalista” subsequenteque teve em Aleijadinho seu maior expoente, e se sobrevivemos à suasubstituição pela linguagem neoclássica oficial trazida pela Missão Artísticade 1816, podemos ter esperanças quando analisamos algumas tentativas queaconteceram (e acontecem) gerando uma visão menos colonizada na arquiteturacontemporânea brasileira. É essa visão e ação que abordamos nesse artigotomando por base o trabalho de um arquiteto pernambucano: Armando deHolanda. Sua obra e sua influência posterior através de seu processo didáticoe de um pequeno livro publicado pela Universidade Federal de Pernambuco,Roteiro para se construir no Nordeste, parecem ter sido fundamentais para atransmissão (e resultados práticos) de um conceito de “construir frondoso” baseadonos trópicos, suas árvores, seus ventos, sua cultura, sua realidade enfim.Um a “Es c o l a Pe r n a m b u c a n a d e Ar q u i t e t u r a” o u a p e n a s vo z e s?...“Através de uma penosa experiência,aprendemos que o pensamento racional não é suficiente para resolvermos osproblemas de nossa vida social”Albert EinsteinNo fim do século passado, a humanidade inicia a longa jornada derepensar mais intensamente sua postura em relação ao seu habitat natural.A sobrevivência do planeta passa a ser discutida de forma mais democráticaabandonando os espaços acadêmicos e investindo, inclusive, na própria comunicaçãode massas mesmo que esse diálogo se restrinja a uma determinadaA arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010190parcela da sociedade. Sem negarem as pressões do consumismo e da massificaçãocultural, processos relevantes na realidade contemporânea, algumas vozesse ergueram para resistir às manipulações de ordem mercadológica gerandoquestionamentos que vão, pouco a pouco, despertar a ação de pessoas interessadasem um futuro viável.No que diz respeito à arquitetura, ela encontra seu grande desafio naconcepção de um habitat que priorize o humano em um mundo onde a massificaçãoespecifica o sustentável. Dessa forma, as características ambientais, asconsiderações para com a cultura, o clima, a paisagem ou o relevo passam aintegrar o imaginário de uma humanidade possível ao mesmo tempo que o usoracional da energia, baseado no controle das reservas planetárias, passa para orol dos temas de debates que estão na ordem do dia.No Brasil, essa adequação ao meio ambiente já havia acontecido no períodocolonial em termos arquitetônicos. A habitação portuguesa adaptou-se aostrópicos e às suas características criando soluções que priorizavam um diálogocom a arquitetura nativa perfeitamente adequada às características ambientaislocais. A modernidade, centrando-se no “Estilo Internacional” exportado indiscriminadamentepara todas as situações, repudiou não só esse estilo lusobrasileiro,mas toda uma memória histórica e tecnológica arquitetônica. Algunsarquitetos e pensadores, preocupados com essa padronização/pasteurização esuas consequências, interessados em um produto arquitetônico coerente como ambiente físico e cultural, iniciaram uma forma de resistência, na maioriadas vezes solitária, visando chamar a atenção para o abandono de um olharindividualizador na produção de arquitetura.No início dos anos 60, no Nordeste, Gilberto Freire, Ariano Suassuna eJoaquim Cardoso são algumas dessas vozes que protestam contra a arquiteturaentão produzida no Brasil. Essas vozes, que às vezes são ironicamente classificadascomo sendo “pura poesia”, fizeram, por vezes, de fato, poesia. Elas, porvezes, tentam resgatar o olhar do espectador de uma forma sedutora, barroca,buscando aliciá-lo para uma revisão do ideário modernista. É com essa posturaneobarroca que nos fala Suassuna, em uma conferência proferida na Faculdadede Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, em 1974.[...] na cor dessa arquitetura que sonho ora vejo o azul e o verde marinhosda Zona da Mata, ora o vermelho, o ocre, o castanho e o amarelodo sertão, com a presença de frutas e animais, em quadros e cerâmicase esculturas em pedra ou madeira, não “apostas” artificialmenteao resto, mas sim integradas harmoniosamente no conjunto. (apudCARMO FILHO, 2005, p.<strong>14</strong> ).Elas contestam a crescente uniformização espacial sem qualquer preocupaçãode ordem cultural ou ecológica. Gilberto Freire se pronuncia dizendoque “na arquitetura pensemos regionalmente e não apenas modernisticamente”(FREYRE, 1971). Delfim Moreira, arquiteto de origem portuguesa radicalizadoem Recife, por sua vez afirma que:A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O arquiteto como indivíduo e como ser social, não pode encarar arealidade sem a consciência nítida da sua posição, quer como indivíduo(complexo psico-biológico) quer como elemento do organismosocial de que faz parte. A cultura é o somatório do conhecimentoe conquistas de ordem física, intelectual, espiritual e moral que oautoriza a conhecer-se a si próprio e a conhecer a sociedade em quese integra. (1981, p. 41).Joaquim Cardoso, engenheiro e poeta, à frente da modernidade pernambucanajuntamente com o arquiteto Luís Nunes com quem compõeequipe combate:[...] representam, na sua força e capacidade de execução, umalinguagem brasileira, essa um pouco áspera, dicção nacional dospreceitos arquitetônicos de origem européia vertidos para as nossaspossibilidades técnicas e industriais, que viria surpreender e confundiralguns críticos estrangeiros mal avisados e, de certo modo,pouco espertos na análise de uma manifestação artística em paístão distante e diverso (2006, p. 83).191Não são só vozes isoladas em Pernambuco, produtos de suburbanos coraçõese mentes. Elas compactuam com uma visão de mundo mais ampla queembasa um pensamento de características universais voltado para uma arquiteturafeita pensando no homem e seu habitat. Vitorio Gregotti, por exemplo,analisa essa arquitetura que harmoniza o moderno e o tradicional em sintoniacom a natureza; Tadao Ando postula no sentido de que as técnicas modernistassejam usadas de modo a atender às exigências locais; Luis Barraganbusca uma forma arquitetônica ligada à uma terra composta por fontes, cursosd’água e saturação de cor; Alvar Aalto, considera a topografia para concebere estruturar suas edificações e Gino Valle reinterpreta a tradição lombarda naItália. (CARMO FILHO, 2005).Discípulo de Delfim Amorim e Acacio Gil Borsoi, contemporâneode alguns arquitetos que adaptaram os princípios modernistas da escolacarioca, inspirada em Corbusier, às condições climáticas e sociais da regiãoNordeste; bem informado das discussões internacionais, nacionais eregionais por uma arquitetura adequada às características locais, Armandode Holanda foi um dos membros da informalmente chamada de EscolaPernambucana de Arquitetura.Escola sim. Assim chamada por partilhar historicamente princípios eensinamentos semelhantes e por ter gerado discípulos. Em sua dissertação demestrado para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, defendidaem 2005, o arquiteto Jairson Jairo do Carmo Filho levantou 45 residênciasna Região Metropolitana de Recife, projetadas por arquitetos entre 1976 e2004, cujos autores afirmam terem sido influenciados pelos ensinamentos deHolanda e os terem aplicado na sua prática arquitetural.A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Ar m a n d o d e Ho l a n d a: a a r t e d e c o n s t r u i r n o No r d e s t e“Arquitetura como um lugar ameno nos trópicos ensolarados”Armando de HolandaArmando de Holanda inicia sua pequena publicação ligada ao programade Pós- Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE, editada em 1976,com um poema de outro pernambucano, João Cabral de Melo Neto, que traduzsuas preocupações em relação à produção arquitetônica contemporânea:A arquitetura como construir portas de abrir; ou como construir oaberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir comofechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamenteportas e tectos. O arquiteto; o que abre para o homem (tudose sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra;por onde, livres: ar luz razão certa (apud HOLANDA, 1976).192Uma vida breve: faleceu em 1979, apenas três anos depois da publicaçãode seu único livro, Armando de Holanda terminou o curso de arquitetura em1963 na Universidade Federal de Pernambuco. Logo em seguida, partiu paraBrasília onde foi aluno de mestrado da UNB, coordenado então por OscarNiemeyer e, após uma especialização na Holanda, retorna a Recife onde passaa lecionar no Curso de Arquitetura da universidade onde se graduou.Sua produção arquitetônica, apesar de reduzida, estabelece uma relaçãoestreita com o planejamento de necessidades e formulação de alternativas emque o homem-usuário é o centro do ambiente, ou seja, o foco principal do problemaa ser resolvido enquanto necessidades e níveis de satisfação a serem atendidas.A problematização, análise,diagnósticos e definições de soluções queenfocam o homem e seu habitat fazem parte da teoria por ele aplicada em salade aula – que depois é resumida no pequeno roteiro que se torna uma espéciede manual a consultar para as gerações de arquitetos que o sucedem.Na visão de Holanda, o resultado pretendido se fundamenta na pesquisahistórica, na utilização correta dos materiais locais e no aproveitamento dascondições ambientais físicas e sociais.Após a ruptura da tradição luso-brasileira de construir, ocorridano século passado e que trouxe prejuízos ao edifício, enquanto instrumentode amenização dos trópicos,de correção de seus extremosclimáticos, não foi desenvolvido, até hoje,um conjunto de técnicasque permitam projetar e construir tendo em vista tal desempenhoda edificação (1976, p. 9)Toda uma geração de arquitetos brasileiros ignorou os processos históricosda arquitetura feita no Brasil antes dos meados do século XX. Já a partir de1808, começam as medidas da classe dominante para tirar o caráter tradicionalda arquitetura brasileira e assumir um caráter europeu. Negação das raízes.Negação que o “Estilo Internacional” e uma arquitetura enquanto veículo voltadopara as massas vai consolidar.A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010193A classe dominante brasileira (não a resumindo ao aspecto plutocrático,mas às várias formas do poder autoritário inclusive o intelectual) sempre pensaque é europeia, ou representante da civilização europeia nos trópicos. Elesdestruíram as velhas construções de forma física e memorial. Essas edificaçõesde uma tipologia construtiva pobre (paredes de taipa que só mais tarde vai sersubstituída pelo tijolo), mas voltada para a realidade brasileira e hibridizadacom a arquitetura nativa. Arquitetura aniquilada e esquecida. No lugar delasurgiu como pastiche, o neocolonial que nunca existiu no Brasil: uma arquiteturaportuguesa. Eles destruíram um símbolo do passado de pobreza e austeridadee construíram o símbolo de uma história de riqueza e esplendor que nãotem nada a ver com nosso passado.Aqueles que destruíram a arquitetura colonial e sua memória criaram oneocolonial como uma falsificação. Foi o mesmo pensamento que derrubouigrejas barrocas substituindo-as, total ou parcialmente, por construções no estiloneoclássico então em voga no país. A padronização do “Estilo Internacional”foi só uma questão de tempo e mídia.Armando de Holanda tenta o resgate dos princípios dessa antiga arquitetura.Feita nos trópicos e para os trópicos. Inspirada nas ocas nativas, nas casasde engenho de seu Pernambuco natal imortalizadas por Frans Post. Não umaimitação. Uma recuperação. Pretendia uma arquitetura sombreada, aberta eacolhedora. Uma arquitetura que ele compara, metaforicamente, à uma grandeárvore frondosa servindo de abrigo para o ambiente tropical.A regra vem sendo a adoção de materiais e de sistemas construtivos– quando não de soluções arquitetônicas completas – desenvolvidospara outras situações; mais do que isso, a incorporaçãodo pensamento arquitetônico estrangeiro, sobretudo europeu efrancês, sem a indispensável filtragem à vista do ambiente tropical.(HOLANDA, 1976, p. 9).Não existe um material universal para todos os tipos de construção.Essa é a premissa defendida por Holanda. Ele sabia que, em certa escalade produção, podemos mudar os detalhes, produzir componentes novos.O industrial tende à redução das alternativas para aumentar o seu lucro.O pesquisador, o homem da tecnologia, o homem do projeto, tende a explorarcada vez mais as possibilidades. O caminho da industrialização éa diversificação, não a padronização total. Holanda propõe, por exemplo,um material específico das construções modestas do Nordeste: o combogó,“leve, resistente, econômico, sem exigências de manutenção e com altograu de padronização dimensional” (Ibid. p. 19).À essa arquitetura desenvolvida “para outras situações” Armandopropõe não um aproveitamento mimético da construção colonial, masuma utilização da substância dos precedentes históricos. Propõe o nãoabrir mão das raízes, como uma “filtragem indispensável à vista do ambientetropical”(HOLANDA, 1976, p. 9).A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Alguns princípios de sua filosofia e práxis são explicitados em seu Roteiropara construir no Nordeste. Deles deriva a ideia de construir (e como construir)frondoso relacionado à uma arquitetura que tira partido de varandas, sombreamentos,adoção de artifícios de adaptação climática, circulação de ar e luz epreocupação com arremates e detalhes construtivos que uma geração de arquitetoslançou mão como princípios de uma arte de construir para um grupo,um indivíduo, uma região. A arte de construir para o Nordeste.Criar uma sombra: para que a brisa circule é necessário, além dadesobstrução do espaço interno, que as aberturas de exaustão sejammaiores, ou pelo menos iguais, às de admissão.Recuar as paredes: areas sombreadas e abertas desempenham a funçãode filtros e coadores de luz [...]. As casas dos antigos engenhos e fazendasbrasileiras possuíam esses locais sombreados.Vazar os muros: mesmo depois de perder sua função estrutural as paredescontinuam compactas, como se precisassem guardar o calor dos ambientes.Proteger as janelas: os muxarabis que outrora protegiam as sacadas deOlinda tinham essa função protetora.194Abrir as portas: tentemos aprender a fluência entre a paisagem e ahabitação, entre o exterior e o interior. (...) Portas protegidas e sombreadasque possam permanecer abertasContinuar os espaços: as paredes a meia-altura, além de contribuírempara a continuidade do espaço, permitem que o ar circule livremente eatravesse a edificação.Construir com pouco: sejamos sensatos e façamos uma redução noedifício; redução no sentido de evitarmos a demasiada variedade demateriais que empregamos numa mesma edificação.Conviver com a natureza: estabeleçamos com a natureza tropical um entendimentosensível de forma a podermos nela intervir com equilíbrio.Construir frondoso: livremo-nos dessa dependência culturalem relação aos países mais desenvolvidos, que já retardou emdemasia afirmação de uma arquitetura decididamente à vontadenos trópicos brasileiros 2 .No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Princípios fundamentais para construir no Nordeste enumerados no Roteiro paraconstruir no Nordeste, de Armando de Holanda.A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s bibliográficasBARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação pós-colonialista no Brasil: aprendizagemtriangular in Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte,1998.BRUAND Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2003.CAMARGO JR., Geraldo; OSELLO, A. Marcos. O arquiteto, o Desenvolvimentoe a Qualidade de Vida. São Paulo: Instituto Roberto Simonsen, 1978.CARMO FILHO, Jairson Jairo. Construir Frondoso: Uma herança esquecida?Avaliação Pós-Ocupação em habitações unifamiliares projetadas de 1976a 2004 na Região Metropolitana do Recife, com base nas recomendações do“Roteiro para construir no Nordeste” de Armando de Holanda. Dissertação(Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo,Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2005.FUSCO, Renato de. Arquitectura como “mass médium”: Notas para uma semiologiaarquitectónica. Barcelona: Editorial Anagrama, 1970GREGOTTI, Vittorio. Território da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1994.195HERKENHOFF, Paulo. Pernambuco Moderno Instituto Cultural Bandepe, 2000HOLANDA, Armando de. Roteiro para construir no Nordeste. Recife:Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Faculdade deArquitetura, UFPE, 1976.INSTITUTO DOS ARQUITETOS DO BRASIL. Recife: Recife GráficaEditora, Delfim Amorim. Arquiteto, 1981.JENCKS, Charles. Movimentos Modernos em Arquitetura. Lisboa: Edições 70, 1985MACHADO, Denise B. Pinheiro; VASCONCELLOS, Eduado Mendes de.Cidade e Imaginação. Rio de Janeiro: PROURB, 1996.MOTALuís Menezes, O Moderno e o Modernismo em Pernambuco: Arquitetura eUrbanismo In Pernambuco Moderno, Recife: Instituto Cultural Bandepe, 2006.NEDELYKOV, Nina; MOREIRA, Pedro . Caminhos da Arquitetura Modernano Brasil: a presença de Frank Lloyd Wright. Arquitextos, São Paulo, 02.018,Vitruvius, nov 2001. Disponível em: .ZEVI, Bruno. Saber ver a Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1978.______.A linguagem moderna da Arquitetura. Lisboa: Publicações DomQuixote, 1984A arte de construir no Nordeste: um resgate


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010O imaginário na reproduçãoda natureza no espaço urbano:Parques Vaca Brava e Flamboyant 1The imaginary in the reproduction of nature in urbanspace: Vaca Brava and Flamboyant parks.Maria de Lourdes Corsino Peres | lourdinhaperes@yahoo.com.brMestranda em Desenvolvimento e Planejamento Territorial da PUC-Goiás.Ycarim Melgaço BarbosaProfessor adjunto I da PUC-Goiás e orientador da pesquisa. Doutor emGeografia (Geografia Humana) pela Universidade de São PauloResumoEsta pesquisa busca compreender as relações entre imaginário, paisagem e urbanização,tendo como objeto de estudo dois parques municipais de Goiânia: o Vaca Bravae o Flamboyant. Os parques urbanos são fenômenos que vêm aumentando no mundo,em Goiânia foram criadas mais de 20 unidades nos últimos dez anos e hoje a criaçãodos mesmos já aparece como parâmetro urbanístico. A escolha dos dois parquestem como fundamento a reprodução da natureza no espaço urbano ao serem transformadosem mercadoria no intuito de contemplação; a busca do bucólico, do verde,da água, para agregar valor a imóveis de luxo erguidos nas suas margens por grandesempreiteiras. A pesquisa tem como base teórica Bachelard, Durant e Baudrillard.Palavras-chave: parques urbanos; imaginário; paisagem; urbanização.AbstractThis research seeks to understand the relationship between imaginary, landscapeand urbanization, having as the object of study two city parks in Goiânia: the VacaBrava and Flamboyant. Urban parks are phenomena that are increasing worldwide,in Goiania were created more than 20 units in the last ten years and todaytheir creation already appears as an urban parameter. The choice of the two parks isbased on the reproduction of nature in urban space when transformed into a commodityfor the purpose of contemplation, the search for the bucolic, green, water, toadd value to luxury estates built on its banks by large contractors. The research hasBachelard, Durant and Baudrillard as its theoretical basis.Keywords: urban parks; imaginary; landscape; urbanization.O imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010In t r o d u ç ã o197A escolha dos parques em estudo motiva-se pela semelhança não só emseus processos de institucionalização, como também de ocupação e valorizaçãoimobiliária. Para se ter uma ideia dessa valorização, segundo informaçõesdo Sinduscon (Sindicato da Construção Civil), o metro quadrado em tornodo parque Flamboyant, em cinco anos, sofreu um aumento de 6.666% (seismil seiscentos e sessenta e seis por cento). Há pessoas que dizem que coma institucionalização dos parques, o mercado imobiliário tem percebido nosmesmos um acréscimo, na forma de valor agregado, aos seus empreendimentos.Pela velocidade de verticalização em seus entornos, pode-se dizer que estãoreproduzindo esses espaços em série por todas as áreas nobres da cidade comnascentes, tendo como hipótese a instituição desse modelo de ocupação dessesespaços como uma tendência em Goiânia, pois anteriormente temos o Bosquesdos Buritis e o Parque Zoológico e posteriormente temos a transformação doParque Areião, já com vários projetos de verticalização em andamento. Ouseja, o mercado imobiliário tem se utilizado dessa tendência de valorizaçãopara promover a densidade demográfica em torno destes espaços.Seria um novo modelo de urbanização em pequenas escalas, que podemoschamar de icônica ou é a ecologização social, associada às ideias de lazere esportes, ou é o sentimento de apropriação desses espaços públicos como extensãodos arranha-céus em seus entornos, ou ainda têm nesses espaços comopaisagens a serem contempladas? É o que tentaremos responder em seguida.Entende-se que o nosso trabalho está associado concomitantemente àcriação de imaginários que determinam interesses sobre uma ideologia, comoforma de apropriar e reapropriar a natureza no que tem representado os parquesora em estudo. Ainda através do trajeto antropológico de Durant na compreensãodas dinâmicas de construção de espaços urbanos, e tendo como panode fundo a modificação da paisagem, e buscando perceber com isso que osvalores, o discurso narrativo, as representações e as imagens vinculadas ao imagináriopodem constituir verdades nem sempre fundamentadas no real físico ehistórico, esse modelo aparece como legitimadoras de determinados interessesideológicos. O desenvolvimento do modo de produção capitalista e os fetichessão incorporados com o intuito de agregar valor ao produto, sendo que os parquesVaca Brava e Flamboyant constituem bons exemplos, uma vez que a ideiaincorporada de natureza faz parte do imaginário. A natureza é reproduzidaaonde o capital instala-se, nesse caso nos parques citados.Essa forma de apropriar-se da natureza como valor agregado em espaçourbano vem da concepção urbanística de “cidade jardim” e do “modelo racionalistafrancês”, na própria concepção da nova capital Goiânia, segundo seuprimeiro plano urbanístico de desenvolvimento - as áreas verdes que AtílioCorrêa Lima 2 (1937, p. 8) destinou à cidade correspondiam a <strong>14</strong>% de toda aárea urbanizada, estabelecendo uma relação entre área verde por habitante;O imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010ainda para Atílio Corrêa Lima (Op. cit.) Goiânia, a nova capital de Goiás,desenvolveu o tema das áreas livres e do sistema de parques dentro do critériomoderno que manda prover as cidades de áreas livres plantadas a fim de permitirque o ambiente seja beneficiado por essas reservas de oxigênio, “procuramosproporcionar à cidade o máximo que nos foi possível de espaços livres”.(LIMA, 1937, p. <strong>14</strong>6).Assim esse simbolismo estará presente também no traçado que previa 50metros de preservação de cada lado dos cursos d’água e 100 metros de preservaçãopara as nascentes, que posteriormente seriam transformados em parquesde recreação e parques lineares. No entanto, os fundos de vales e matas ciliaresnão foram preservados como eram garantidos no plano original, que foramocupados ao longo dos cursos d’água por moradores considerados com bonsrendimentos, mas os parques urbanos que se formaram em cima das nascentesvêm cumprindo o papel imaginário de cidade sustentável.O n a t u r a l e o s o c i a l n o e s p a ç o u r b a n o198Para Maffesoli (2005 p. 258), “a conjunção do natural e do social correo risco de ser um dos sinais distintivos da pós-modernidade”. Para ele, está havendouma ecologização do mundo social, pois a natureza não é mais consideradacomo um objeto a explorar, mas inscreve-se, cada vez mais, num processode parceria em que pela nova cultura há um processo em curso de religação ànatureza. Contudo, basta observar as imagens e as paisagens vinculadas à mídiapor um lado e, por outro, a importância que vêm assumindo temas comoo espaço, o território, a urbanidade, o localismo nos debates contemporâneosque formam assim um tipo de imaginário coletivo da natureza.A natureza nos ensina a trabalhar com elementos diversos que adaptamsede acordo com cada lugar e suas respectivas características geográficas (clima,hidrografia, geomorfologia, ecossistemas, meio ambiente). Dessa maneira,percebemos que as modificações da paisagem estão diretamente relacionadascom sua localização, caracterizando-se assim uma impressionante adequaçãoda natureza ao longo de milhões de anos e que, devido às condições de cadaregião, reagem de maneiras diferentes às ações antrópicas.Desde os Jardins Suspensos da Babilônia, que foram construídos no reinadode Nabucodonosor II, considerados uma das sete maravilhas do mundoantigo, marca no inconsciente coletivo uma ligação imaginária da naturezadesde a antiguidade. Para Pires (2008, p.<strong>14</strong>1), Goiânia foi concebida comotipo urbano de Cidade Jardim de Howard 3 ; para ele, Goiânia caminha parao mesmo fim dos Jardins Suspensos da Babilônia pelo próprio modelo urbanísticoe a escolha do sitio original onde estabeleceu a cidade dos goianienses.Os recursos naturais - água limpa, ar puro, ilhas de frescor, estética e plásticaesverdinhadas da paisagem, espelhos d’água dos mananciais, tranquilidade,sossego, e outros proporcionam benefícios que melhoram a qualidade de vidaO imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010199urbana, no entanto por varias razões, estes benefícios são apropriados por umaelite privilegiada. É neste sentido que está explicito uma certa privatização danatureza no meio urbano, ou seja, a apropriação da natureza em espaço urbano,especificamente nos grandes centros urbanos, é algo muito dispendioso,pois envolve disponibilidade de espaço - terreno, infraestrutura, serviços especializadosetc, restando para a maioria desprivilegiada apenas a socializaçãodos aspectos negativos da urbanização:– poluição, paisagem impactante doconcreto e do asfalto, ilhas de calor, intranquilidade, insegurança e agitação.Para Daher (2003 p. 118), Goiânia foi concebida pelo modelo francês,também chamado de racionalista, o qual pressupunha que a cidade deveria serracional, um espaço capaz de, por um lado, satisfazer as necessidades de umasociedade industrial de distribuição e consumo e por outro, promover a higiene,a beleza e o conforto. A cidade tinha o traçado urbano radiocêntrico comgrandes bulevares e vias de comunicações orientadas para norte-sul e lesteoeste,como garantia destas necessidades.Para Choay (1979 p. 324), “desde a origem do mundo até o século XV daera cristã inclusive, a arquitetura é o grande livro da humanidade, a expressãoprincipal do homem em seus diversos estados de desenvolvimento, seja comoforça, seja como inteligência.”. Os principais representantes do modelo racionalistasão: Georges Benoit-Lévy, Walter Gopius e Charles-Édouard Jeanneret(Chamado Lê Corbusier). Para este último, a densidade urbana era inevitável evia nos parques urbanos e áreas verdes a saída para a obtenção de ar e luz paraas habitações verticais que deveriam contemplar janelas voltadas para estasáreas cobertas de relvas, áreas reservadas a jogos e a plantações, “[...] a naturezaé de novo levada em consideração. A cidade, ao invés de tornar-se um pedregalimpiedoso é concebida como um grande parque. A aglomeração urbana é tratadacomo cidade verde, os imóveis surgem na cidade por traz do rendado dasárvores. Está assinado o pacto com a natureza.”.A natureza ao impor-se como um referencial comum de uma sociedade,cuja relação é de aproximação e afastamento, necessariamente mítica, nosfaz entrar em mundos imaginários que se transformam numa espécie de fundocomum do imaginário coletivo. Assim, podemos dizer que a valorização dosparques urbanos através de estratégias de planejamento e marketing incorporaessas novas realidades à reprodução do capital, regidas pelas leis de propriedadeprivada, além de apropriar-se de espaços públicos à sua lógica, produtora e indutorade necessidades, e disseminadora de imaginários como a concepção de lazerno espaço urbano, do tempo livre atrelada às áreas verdes e à qualidade de vida.O produto deste processo seria a junção da ideia de consumo do lugarcom a mascarada consciência ecológica em que podem usufruir principalmenteaqueles que dispõem de uma elevada renda, como se pode constatarna hipervalorização imobiliária nas imediações dos parques urbanoscomo nos casos dos parques Flamboyant e Vaca Brava: introduzindo formasO imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010200modernas de dominação e técnicas de manipulação cultural e paisagísticas,por parte do poder publico e dos agentes imobiliários, na tentativa de vendera imagem de uma cidade bem administrada e detentora de belezas naturais.Nesta concepção, a natureza enquanto mercadoria torna -se um diferencialde promoção de valor agregado, e segundo os discursos mais recorrentes,confere uma melhor qualidade de vida.Assim como ao longo da própria história da arte, a evolução da paisagemmarca as várias fases da nossa concepção da natureza: as imagens da paisagem,de seus homens e de sua cultura, sobrecarregadas pelos investimentos figurativosde capas imaginárias. Exemplo disso pode ser constatado pela campanhade um empreendimento em torno do Parque Flamboyant lançado pelo próprioempreendedor do bairro onde está localizado o parque: a empresa FlamboyantUrbanismo – lança o “Residencial Imperador do Parque”, onde todos os espaçossão para o imperador inclusive o ´parque que é “publico”.Figura 1 – outdoor do empreendimento Imperador do ParqueUm outro empreendimento - Edificio Magnific com slogan “magníficoé ter vista permanente para o mais bonito e aconchegante parque da cidade.Figura 02 – retirada do folder da Gafisa incorporadora e construtoraA paisagem é um modo de representação da natureza, construída notempo e no espaço como resultante de relações sociais - é uma imagem culturaldo espaço geográfico. Como símbolo espacial de um imaginário, a paisagemaponta para um sentido, mais que ao entorno. A paisagem é muito mais queo simples espaço exterior ao homem. Desde o Renascimento, foi entendidacomo criação racionalmente ordenada, ligada a uma maneira de harmonizaro mundo. Mais que um território que a natureza apresenta ao observador, éproduto de uma maneira de ver o espaço externo - um cenário que supõe umespectador, um olhar particular sobre o mundo externo.O morar passa pela busca das raízes da função morar, neste sentidoBachelard (1978, p.217) em sua analise do devaneio de primitividade domorar em uma cabana e os devaneios de intimidade, revela as relações denosso interior e a materialização exterior, deixando percebermos que aimaginação aumenta os valores da realidade. Em suma, a paisagem é umrelato, um desenho, uma representação, é o território recortado por uma“janela”, apreciado desde um ponto de vista singular - frequentementeesse ponto de vista é artístico, envolvendo uma série de técnicas particularesdesenvolvidas para representá-lo e transformá-lo em imagem culturalpela atribuição de um significado. (FIGOLI, 2004, p.45).A paisagem é um objeto vivo, um espaço dinâmico, que integra o corposocial e que faz parte da sua cultura, por isso, não pode ser descontextualizada,dependendo sempre do seu poder de sobrevivência. A paisagem, enquantoobjeto conscientizado, não pode ser considerada e muito menos interpretadaO imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010201como um processo à parte e distinto da apropriação útil e da relação vivencialque sustenta a vida do sujeito.Um parque urbano proporciona a apropriação mais completa de umapaisagem que se oferece alcançar pela fruição direta e plena, que inspira a ideiapara além da simples visão. Aquilo que na obra é autenticidade, na paisagem énaturalidade alcançada pela ideia arquitetônica. Como toda a obra de arte, aspaisagens e, em particular, os parques urbanos preservam o sentido do Eu.Até o século XVIII, os parques eram obras emblemáticas da aristocracia.No século XIX, surgem os parques urbanos como elemento de excelência dacidade burguesa, contudo, o príncipe Pückler concebia os seus parques particularescomo espaços de liberdade abertos a todas as pessoas independentementedo seu estatuto social. A essência dos parques e, porventura, da própriapaisagem como ideia do mundo é ser um espaço de acolhimento do Homemna sua condição singular e individual.Não há contradição entre o parque e a cidade, são partes que se complementam,e não tem sentido justificar o parque como fator de compensaçãodos defeitos e abusos urbanísticos. Cada elemento do sistema urbano carece deuma avaliação própria.Pa r q u e Va c a Br a v aFigura 3 Imagem em ortofoto do Parque Vaca Brava – Seplam 2006Seu processo de formação teve início em 1985, quando foram lançadas,pelo Iplam (Instituto de Planejamento Municipal), as diretrizes para a canalizaçãoe urbanização do córrego Vaca Brava com a justificativa de que essasmedidas trariam melhorias para a vida da população ribeirinha, o controle dasinundações e a ocupação desordenada da área lindeira.O córrego Vaca Brava é um afluente do córrego Cascavel, situado emregião nobre da cidade, suas nascentes já estavam comprometidas pela rede deesgoto e erosão, nessa época já estava totalmente desmatada. Na Avenida T-09,o córrego já havia sido canalizado e desviado para a esquerda e só retornandoao leito natural próximo à Avenida T52 formando nesse ponto uma grande erosão.O processo de implantação e gerenciamento do Parque passa por quatroetapas distintas – criação, implantação, manutenção, usos e promoções; suadestinação justifica-se pelo fato de tratar de uma área com inúmeras nascentes“olhos d’água” que constituem as nascentes do córrego Vaca Brava.1ª fase – Na sua concepção o termo de referência foi elaborado em1994 pela arquiteta. Maria Amélia P. De Amorim que optou por algo simplesque consistia em alguns caminhos internos, o lago e ampliação do calçamentoexterno combinado com as técnicas paisagísticas e reflorestamento. Essafase foi concluída em 1996, ficando para uma próxima etapa os quiosques,lanchonetes e playground.O imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 20102ª fase – Essa fase foi marcada pela implantação dos seguintes equipamentos:estação de ginástica, pista de cooper, caminhos, reflorestamento,paisagismo e conclusão do lago.3ª fase – Foram implantadas as obras de infraestrutura compostas pelosseguintes espaços: administração e segurança, sanitários, paisagismo da áreavoltada para Rua T15, instalação da tela de escoamento do lago.4ª fase – Implantação das obras essenciais de apoio operacionais: ampliaçãodos números de bancos, bebedouros, lixeiras internas e externas, placas desinalização, de identificação do parque e da vegetação, telefone publico.Pa r q u e Fl a m b oy a n t Lo u r i v a l Lo u z a202Figura 4 Imagem em mapa urbano de Goiânia (versão 21) do ParqueFlamboyant – Seplam 2006O Parque Flamboyant Lourival Louza localiza-se na parte central doJardim Goiás que após os anos de 1970, tendo sido esse loteamento aprovadoem 1950, tornou-se mais urbanizado com a implantação de infraestrutura básicae a construção de grandes equipamentos de comércio e serviços.Apesar de contar com grandes equipamentos públicos que exercem grandeatração de pessoas, ainda é um bairro com baixa densidade. A partir dosanos de 1990, iniciaram-se a construção dos edifícios habitacionais, mas só nosúltimos anos neste milênio podemos observar que o ritmo da verticalizaçãoestá se acelerando. O entorno, contudo, ainda possui grandes espaços vazios.Por enquanto, o bairro vizinho Alto da Glória parece ser um grande canteirode obras e deve ser adensado mais rapidamente que o Jardim Goiás, como podemosobservar nas imagens abaixoFigura 05 – Imagem da verticalização intensa do entorno do parque.O Jardim Goiás é limitado pelo lado leste pela Rodovia BR-153, que ligaao sul Goiânia a São Paulo e ao norte a Anápolis e dessa cidade até Brasília pelaRodovia BR-060. Os bairros vizinhos do Jardim Goiás são em sentido horáriocomeçando: ao norte - Setor Leste Universitário e a leste - Jardim Novo Mundo,(Park Lozandes - Prefeitura de Goiânia), Chácaras Alto da Glória, Vila Alto daGlória, e ao sul: Bairro Alto da Glória; a oeste: Setor Pedro Ludovico e SetorSul. Os bairros além da Rodovia BR-153 são caracterizados pela ocupação demoradores de classe baixa à média, enquanto, ao norte, sul e oeste há predominânciasocial de classes média à alta.Figura 06 – imagem de equipamentos esportivos no parqueCo n c l u s ã oA urbanização, o imaginário e a paisagem como instrumentos de análisetêm nos possibilitado uma compreensão ampliada do processo de apropriaçãoO imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010e reprodução da natureza através dos parques urbanos, e tal forma de ocupaçãoe urbanização das nascentes vem se configurado em modelo de urbanização,formando ilhas de desenvolvimento imobiliário em seus entornos.Associados aos parques urbanos estão presentes a ideia de ar puro,preservação da natureza que por consequência leva a ideia de qualidadede vida, esses elementos na modernidade são fetichizados pela inseminaçãode imagens e imaginários, formando paisagens a serem contempladas,buscadas e desejadas.No t a s1Trabalho apresentado no Fórum Temático IX Terreno e Arquitetura, uma simbioseentre o ser e o mundo, evento componente do XV Ciclo de Estudos sobre oImaginário - Congresso Internacional, outubro de 2008, Recife - PE.2Arquiteto contratado (1933) pelo interventor Pedro Loudivico Teixeira, para elaboraçãodo plano urbanístico da nova capital do Estado de Goiás – Goiânia.2033Para Ebenezer Howard, a cidade e o campo poderiam estar combinados juntosnum mesmo espaço, dado a benefícios de ambos. Para ele a cidade é o símboloda sociedade e o campo o símbolo do amor e da união do homem com a naturezae com Deus. Sua concepção estava direcionada à felicidade do homem e não asatisfação do capital, ao contrário, a Cidade Jardim está ligada à ideia de socialismoe comunismo, a uma vida menos racional e mais orgânica, natural.O imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant


Ed.<strong>14</strong> | Vol.8 | N1 | 2010Re f e rê n c i a s BibliográficasBACHELARD, Gaston. A filosofia do não: O novo espírito cientifico; A poéticado espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1968.DINIZ, A. Maria. Goiânia de Atílio Correia Lima (1932-1935): ideal estéticoe realidade política. 2007. 239f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura eUrbanismo)-Universidade de Brasília, Brasília, 2007.DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica: Perspectivas do Homem. Lisboa:Edições 70, 1993.______. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.______. O imaginário: ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem.Rio de Janeiro: Difel, 1998.FIGOLI, Leonardo H. A paisagem como dimensão simbólica do espaço. In:Ciclo de Estudos sobre o Imaginário,12, 2004.204LIMA A.C. Goiânia, a nova capital de Goiás. Arquitetura e Urbanismo, Rio deJaneiro, 1937, p. 32-34, jan./fev. 1937.MAFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.______. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio deJaneiro: Record, 2007.______. No fundo das aparências. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996.PIRES M. JUNIOR, Osmar. A Verdadeira Historia do Vaca Brava e outrasnão menos verídicas. Goiânia: Kelpes/UCG, 2008.PIRES M. JUNIOR, Osmar. Arborização urbana e qualidade de vida: classificaçãodos espaços livres e áreas verdes. Goiânia: Kelps/UCG, 2007O imaginário na reprodução da natureza no espaço urbano: Parques Vaca Brava e Flamboyant

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