R E V I S T ALATINOAMERICANADE PSICOPATOLOGIAF U N D A M E N T A LIntrodução586Este artigo resulta <strong>da</strong> interlocução entre pesquisas coordena<strong>da</strong>spelas autoras em três programas de pós-graduação em psicologia, cujofoco recai nos estudos acerca de diferentes mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de inscriçõescorporais na atuali<strong>da</strong>de. Tais práticas corporais representam formasde manifestações de conflito psíquico ou do seu silenciamento, masque, em última instância, consistem em modos de subjetivação. Tomandocomo crivo de nossas elaborações a <strong>psicanálise</strong>, enfocamos as<strong>tatuagens</strong>, os <strong>piercings</strong> e as <strong>escarificações</strong>, que embora se constituamcomo modos distintos de manifestação no corpo, apresentam--se como formas de linguagem que apontam para a subjetivi<strong>da</strong>de. Oque dizem do sujeito estas marcas que, impressas na carne, voluntáriaou involuntariamente, podem revelar algo do sujeito do desejo? Qualo estatuto do inconsciente que aí se apresenta?As manifestações corporais como <strong>tatuagens</strong> e <strong>escarificações</strong> –marcas voluntariamente impressas no corpo – são toma<strong>da</strong>s aqui comoformas de linguagem implica<strong>da</strong>s com a busca de identi<strong>da</strong>de e comoexpressão do sujeito. Popularizado em anos recentes, o hábito <strong>da</strong> tatuagempode ser utilizado com fim simplesmente estético, ou comotraço identificatório a um grupo, ou ain<strong>da</strong>, ampliando-se e repetindo--se indefini<strong>da</strong>mente até recobrir to<strong>da</strong> a superfície do corpo, como umavã tentativa de inscrição simbólica. Um adorno como a tatuagem tema característica de ser permanente. Mesmo removido por cirurgia plástica,dela sempre sobra uma marca, uma rasura, um rastro. Na proliferaçãoexcessiva <strong>da</strong> tatuagem, será possível pensar na busca de <strong>da</strong>rconsistência ao corpo, ain<strong>da</strong> que pela dor? Como abor<strong>da</strong>r essa pre-Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 4, p. 585-598, dezembro 2010
ARTIGOStensão de situar o sujeito para o Outro, marcar seu lugar a partir <strong>da</strong> escarificação?Enfim, o que significam essas mensagens que invadem as ruas e mesmo osconsultórios?Numa dimensão mais ampla, como os outros discursos – Filosofia, Psicologia,Antropologia – articulam a questão do corpo na contemporanei<strong>da</strong>de? Estassão questões que interessam ao psicanalista responder.A teoria freudiana revela os efeitos do inconsciente sobre o corpo, manifestando-sepor meio de sintomas conversivos ou de fenômenos ditos psicossomáticos(Volich, 2000). Se de um lado Freud construiu todo o seu edifício teóricotentando esclarecer o padecimento do corpo que escapava ao campo <strong>da</strong>s explicaçõesmédicas pauta<strong>da</strong>s na anátomofisiologia, de outro nos revelou a estreita articulaçãoentre a constituição do eu e do corpo. O eu é, primeiro e acima de tudo,um eu corporal (Freud, 1923), e a dor desempenha um papel importante no bordejamentodessa identi<strong>da</strong>de egóica.A partir do entrecruzamento <strong>da</strong> Antropologia, <strong>da</strong> Filosofia e <strong>da</strong> Psicanálisedestacamos o fato de que, por meio do corpo, os sujeitos podem tornar visíveissuas histórias, e ain<strong>da</strong> tentam configurar uma identi<strong>da</strong>de imaginária. Entretanto,consideramos que algumas destas inscrições corporais podem também emudeceratravés de uma lesão não inscrita no campo simbólico. Pensamos que tais temáticasiluminam o debate sobre as práticas clínicas, contribuindo para a compreensãodo pathos que nos constitui e que deman<strong>da</strong> escuta (Berlinck, 2000), já queo sofrimento, na perspectiva psicanalítica, faz parte do existir humano, não sendoalgo <strong>à</strong> parte dele, do qual se possa escapar.Parece-nos importante ressaltar algumas reflexões sobre o lugar <strong>da</strong>s <strong>tatuagens</strong>e marcas voluntárias feitas no corpo na contemporanei<strong>da</strong>de. Alguns artigospensam este tema a partir <strong>da</strong> perspectiva etnográfica e sociocultural (Perez, 2006;Ferreira, 2007). Ferreira (2007) defende a ideia de que as marcas corporais configuramformas de demarcação estilísticas e apontam para uma ética <strong>da</strong> dissidência.O corpo assumiria, nessa perspectiva, o estatuto de um operador social e asmarcas representam mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de relações com a socie<strong>da</strong>de. Mas, faz-se urgenteenfatizar que, apesar do reconhecimento <strong>da</strong> existência dessas práticas emdiferentes momentos <strong>da</strong> história e em diversas culturas, os teóricos revelam umacaracterística própria do mundo contemporâneo no que se refere <strong>à</strong> relação do sujeitocom o ato de colocar piercing e fazer tatuagem ou <strong>escarificações</strong> que, porvezes, podem estar relaciona<strong>da</strong> com embelezamento (Leitão, 2004); ou puramentecom arte, ou seja, as <strong>tatuagens</strong> como suporte para arte (Pires, 2003).Costa (2003) revela que as leituras sobre as marcas corporais produzi<strong>da</strong>spelas <strong>tatuagens</strong> e piercing não conseguem responder a in<strong>da</strong>gação: “Por que os homenscomeçaram a tatuar-se, a fazer piercing, escarificar-se ou mesmo mutilar--se?” (p. 10).587Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 13, n. 4, p. 585-598, dezembro 2010