13.07.2015 Views

/u~aluIrn Manuel de Macedo - rio.rj.gov.br

/u~aluIrn Manuel de Macedo - rio.rj.gov.br

/u~aluIrn Manuel de Macedo - rio.rj.gov.br

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>u~aluIrn</strong> <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong>


PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRORoberto,Saturnino BragaSECRETARIO MUNICIPAL DE CULTURAMiguel Angelo Oronoz Proen~aDIRETOR DO DEPARTAMENTO GERAL DEDOCUMENTACAO E INFORMACAO CULTURALEpitdcio Josh Brunet PaesCHEFE DO SERVICO DE EDITORACAOLuzia Regina Gomes dos Santos Alves


SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURAConsel ho EditorialEpitBcio Josh Brunet Paes - Presi<strong>de</strong>nteLuzia Regina Gomes dos Santos AlvesCarlos Henrique Santos <strong>de</strong> AlmeidaPaulo Cezar Pereira NazarethMartha Maria Mauricio VianaMoacyr FelixHelena Theodoro LopesARQUIVO GERALDA ClDADE DO RIO DE JANElROI/cBlBLlOTECA 2'3 7.fN.O ds Rsgislm ~'5565aha d 9/5/dypg.AFicha catalogrifica elaborada pela Divisiio <strong>de</strong>Documenta~Zo e Biblioteca do C/DGDI<strong>Macedo</strong>, Joaquim <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong>, 1820 - 1882M141mAs mulheres <strong>de</strong> mantilha/Joaquim <strong>Manuel</strong><strong>de</strong> <strong>Macedo</strong>. - Rio <strong>de</strong> Janeiro: SecretariaMunicipal <strong>de</strong> Cultura: Dep. Geral <strong>de</strong> Doc.e lnf. Cultural, 1988.,240 p. - (Biblioteca Ca<strong>rio</strong>ca; v. 7)1. Romance <strong>br</strong>asileiro. I. Tltulo. II. SBrie.CDD - 8869.3CDU - 869.0(81)-3. L


Joaqufm <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong>Mrulheres diPREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIROSecretaria Municipal <strong>de</strong> CulturaDepartamento Geral <strong>de</strong> Documentaqb e Informaqgo Cultural


Direitos <strong>de</strong>sta ediqio reservados ao Departamento Geral <strong>de</strong>Documentaqio e Informa~io Cultural da Secretaria Municipal<strong>de</strong> Cultura.Proibida a reproduqio, total ou parcial, e por qualquer meio, semexpressa autorizacZo.lmpresso no Brasil - Printed in BrazilISBN 85-85096-06-3Ediqzo e revis30 <strong>de</strong> texto - Se~iqo <strong>de</strong> Editoraqzo do DGDlAna Lucia Machado <strong>de</strong> OliveiraC6lia Almeida CotrimDiva Maria Dias GraciosaLuzia Regina Gomes dos S. AlvesRosa Maria <strong>de</strong> Carvalho GensRosemary <strong>de</strong> Siqueira RamosCapa: I6da BotelhoProjeto grdfico: Luzia Regina Gomes dos Santos AlvesSecretaria Municipal <strong>de</strong> CulturaDepartamento Geral <strong>de</strong> Documenta~Fio e InformaqFio CulturalRua Afonso Cavalcanti, 455 - 20andar - Rio <strong>de</strong> Janeiro


ENTRE VEUS, SOMBRAS E DESEJOS 9Prefiicio <strong>de</strong> Maria Cristina Franco Ferraz,Ana Lucia Machado<strong>de</strong> Oliveira e Rosa Maria<strong>de</strong> Carvalho Gens.AS MULHERES DE MANTILHA 17BIBLIOGRAFIA 2391 - O<strong>br</strong>as do autor2 - SugestBes <strong>de</strong> leituras so<strong>br</strong>e o autor


Entre Vhs, Som<strong>br</strong>as e DesejosMaria Cristina Franco Ferraz, Ana Lucia Machado<strong>de</strong> Oliveira e Rosa Maria <strong>de</strong> Carvalho Gens."Ao escrever As Mulheres <strong>de</strong> Mantilha, romance historico, Joaquim <strong>Manuel</strong><strong>de</strong> <strong>Macedo</strong> preten<strong>de</strong>u construir um texto com base em fatos reais quemostrasse, para os leitores do seculo XIX, a vida do Rio <strong>de</strong> Janeiro nos idos<strong>de</strong> 1769, durahte o reinado do Con<strong>de</strong> da Cunha. 0 subtitulo ji3 anuncia esteproposito que, ainda, e confirmado pela introdugo do pr6p<strong>rio</strong> autor, bastanteinformativa, criando no leitor a expectativa <strong>de</strong> um romance em que aficqk se subordine ao dado historico.No entanto, sua intenqb vai mais longe, tenta preservar na mem6ria oque na"o chegaria, provavelmente, vivo ate os dias atuais.Tenho quase certeza <strong>de</strong> que hoje havera <strong>de</strong> so<strong>br</strong>a quem me censurepor estas explicac6es <strong>de</strong> que todos sabem, visto como ainda atualmenteexiste o cancro da escravidgo, ainda ha' popu1apa"o escrava, e,portanto, ainda ha tambem nas familias - nhanhzs e sinhazinhas,ha' senhores pais <strong>de</strong> - nhonh6s e sinhasnhas, ou senhoras m5es <strong>de</strong>sinh6s sinhazinhas; mas no seculo vigesimo os romancistas historiadores,que d o os pro fessores da histdria do povo, hab <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer estese outros esclarecimentos da vida intima das familias do nossotempo (As Mulheres <strong>de</strong> Mantilha, p. 49)Evi<strong>de</strong>ncia-se, <strong>de</strong> inicio, uma lacuna <strong>de</strong>ixada pela historia oficial, e quea ficqb toma para si a funqio <strong>de</strong> suprir. Pelo romance historico, portanto,recuperar-se-ia a "historia do povo", so que povo, aqui, se restringe a "vidalntima das familias" e, ainda assim, como veremos ao longo da leiiura dao<strong>br</strong>a, se traduz pela configuraq50, em primeiro piano, <strong>de</strong> famllias abastadas\ da bpoca. Em As Mulheres <strong>de</strong> Mantilha temos, entio, a historia <strong>de</strong> apenarum Ggmento, e os participantes <strong>de</strong> outras classes - carpinteiros, escravos,trabalhadores livres, soldados - aparecem como personagens secundBrias oulim'itam-se a constituir um pano <strong>de</strong> fundo, siqples figurantes que d b cor lo-


cal is gran<strong>de</strong>s cenas populares, componentes do panorama do Rio <strong>de</strong> Janeirodo sbculo XVIII. Tanto na literatura quanto na historia oficial, trata-se sempre<strong>de</strong> elernentos que pertencern a mesma classe dominante, que frequenternentese auto<strong>de</strong>nomina povo, confirmando o circuit0 fechado em que, noBrasil, circularn produtores, consumidores e protagonistas da Historia e daLiteratura.Observarn-se, no romance, quadros superpostos. Um, ligado ao sbculoXVIII, pintado por <strong>Macedo</strong> com a 6ptica do sbculo XIX e que se po<strong>de</strong>riachamar <strong>de</strong> pequeno - realista; outro, a ser <strong>de</strong>lineado por nos, agora, em finsdo sbculo XX. Embora a inten~go expllcita do autor seja colocar o enredo areboque do documento historico, a trama urdida vai ocupando espaqo tal<strong>de</strong>ntro da o<strong>br</strong>a que o interesse pela cr6nica passa a um piano secundd<strong>rio</strong>.Confira-se corn a seguinte passagem: "Enquanto n6io chegam os compradores<strong>de</strong> lirn6es-<strong>de</strong>-cheiro que as meninas <strong>de</strong>spacharam, matarei o tempo conversandoso<strong>br</strong>e a entrudo" (Mm, p.85).Desta forrna, escrever uma cr6nica historica, que se revelou, a princlpio,como objetivo principal do livro, passa a ser elemento ornamental, conversapara "rnatar o tempo", mostrando que as inten~bes do historiador seriarnapenas urn v6u que enco<strong>br</strong>e o romancista. Na verda<strong>de</strong>, os elementosobjetivos da crbnica historica percorrem a narrativa,surgindo aqui e ali, apenasarmando urn cend<strong>rio</strong> que complemente as informa~bes necessdrias 3cornpreens50 da intriga. Quando esta se resolve, o.livro termina em forma <strong>de</strong>docurnentd<strong>rio</strong>, rnerarnente citando fatos e datas <strong>de</strong> forma resumida, nk rornanceada.E o pr6p<strong>rio</strong> narrador diz: "Mais tar<strong>de</strong> me ernpenharei em escrevera hist6ria ou romance <strong>de</strong>sses arnores". Logo, para <strong>Macedo</strong>, hist6riae romance se equivalern, e o dado real 6 apenas o piparote inicial queengendra todos os elementos fabulados. Mais uma vez, isto se sncontra<strong>de</strong>scrito na o<strong>br</strong>a, metalingiiisticamente: "(. . .) e os fatos, comentados e exagerados,tomaram proporqBes romanescas" (Mm, p. 210).0 entrecho obe<strong>de</strong>ce a uma marcago temporal que se vincula ao prop6sito<strong>de</strong> circunscrever, no espaco do romance, a cr6nica das festas popularese tradi@es f)urninenses do sbculo XVIII. Mais ainda, vai-se tecendo umatrarna on<strong>de</strong> o qalendh<strong>rio</strong> <strong>de</strong> comemora$es populares, regidas por festejosso<strong>br</strong>etudo religiosos, vai sendo invadido por um elemento perturbador,ameaqador <strong>de</strong> estruturas: o <strong>de</strong>sejo. Cabe a pergunta: tais festas organizariama forty <strong>de</strong>sejante da coletivida<strong>de</strong> ou viria o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>sconcertar o instituido,provocando urn turbilhb anhrquico dificilmente controlavel?Por incrivel que pareqa, a ficqb <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong> possibilita a discussb <strong>de</strong>ssasquest6es. Entretanto, n5o <strong>de</strong> forrna evi<strong>de</strong>nte; caberd A critica a formaiizaHo<strong>de</strong> quest6es diluidas ao longo da o<strong>br</strong>a. Eis, alihs, sua possivel vitalida<strong>de</strong>:tratar <strong>de</strong> ternas que muitas vezes so o olhar <strong>de</strong> outra dpoca po<strong>de</strong> explicitare colocar em relevo. Ou melhor: que s6 o olhar <strong>de</strong> outra Bpoca constr6i.


A ja velha historia da recriagb da o<strong>br</strong>a pela leitura critica; da sua reescritura~ elo leitor. 0 novo olhar do leitor vai, asslm, engendrando questSes que otexto jb trabalhava, <strong>de</strong> forma diluida, por sua propria formaliza~i50. Paradoxalmente:a leitura produziria indagaq6es num texto que jai as traria, na"o emlathcia, mas como elemento organizador da narrativa. No caso <strong>de</strong> As Mulheres<strong>de</strong> Mantilha, <strong>de</strong> que maneira a rnarca~a"~ temporal do entrecho ultrapassa as exigbncias convencionais da verossimilhan~a, apontando para umainvestiga~b so<strong>br</strong>e a relaqiio instituivb,vida coletiva e <strong>de</strong>sejo, esse elementovital, <strong>de</strong>sagregador e anArquico.0 romance <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong> se inicia numa "daquelas noites excepcionais""<strong>de</strong> folgan~a e alegria" - "a <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> janeiro, a noite da vespera do dia dosReis ou das cantatas dos Reis, que alias se repetem animadas na noite seguinte"(cap. I). Cabe assinalar, <strong>de</strong> inicio, o privil6gio concedido B noite comomomento que se dissemina ao longo <strong>de</strong> toda a narrativa, remetendo a umaassocia~b, alias bem a gosto romdntico, noite/<strong>de</strong>sejo/sexualida<strong>de</strong>. A narrativaa<strong>br</strong>ese, entzo, com as festas populares da noite <strong>de</strong> Reis, que arrematamas do Natal. Tem inicio um ciclo <strong>de</strong> festejos religiosos que, partindo da folia<strong>de</strong> Reis, <strong>de</strong>tem-se na origem do carnaval - o entrudo -, esten<strong>de</strong>ndo-se estedltimo do capitulo XIII, domingo, ao capitulo XXXVIII, noite <strong>de</strong> ter~a-feira,ate chegar B serra~b da velha, no vigesimo dia <strong>de</strong> quaresma, que correspon<strong>de</strong>,"em todo o mundo catolico", "B suspensa"~ <strong>de</strong> penitgncia, e como <strong>de</strong>ferias dadas pela lgreja aos jejuns e aos austeros preceitos" religiosos (cap.XLV). 0 romance ainda se fecha no dia 19 <strong>de</strong> marqo, festa ja entgo <strong>de</strong>cunho civico, que coinci<strong>de</strong>, no entanto, com o dia <strong>de</strong> SZo Jose, e em que acida<strong>de</strong> acorda "ao ribombo das salvas <strong>de</strong> artitharia das fortalezas emban<strong>de</strong>iradas"(cap. LI I I ).Embora aparentemente <strong>Macedo</strong> apenas recu<strong>br</strong>a, assim, os momentosem que a vida social fluminense do seculo XVlll estaria melhor caracterizada,cabe ressaltar <strong>de</strong> que forma o entrecho se apressa entre as festas, paradisten<strong>de</strong>r-se nesses pe<strong>rio</strong>dos <strong>de</strong> exce~b, em que acontecem as peripbciasprincipais. 0 entrudo, alihs, atravessa quase meta<strong>de</strong> da narrativa (25 dos 49capitulos), revelando, <strong>de</strong> forma niio muito evi<strong>de</strong>nte numa primeira leitura,que 60 esses momentos <strong>de</strong> "ferias" em que a lgreja suspen<strong>de</strong> as rigorosasnormas <strong>de</strong> penithncia que v b atrair o olhar cu<strong>rio</strong>so do autor. Como se a vida,que o romance <strong>de</strong>seja flagrar, acontecesse, em sua efervescencia, apenasnesses intervalos. Com efeito a sexualida<strong>de</strong> ur<strong>de</strong> suas peripkcias nos intervalosda austerida<strong>de</strong>. Como sempre, o <strong>de</strong>mbnio saltimbanco, mascarado, faz dassuas nos momentos em que a or<strong>de</strong>m - a lgreja e o Estado - suspen<strong>de</strong> temporariamentesuas interdi~8es. provando, por outro lado, que n b ha vida- mesmo a mais austera e familiar - sem <strong>de</strong>sejo, e que este <strong>br</strong>ota, qua1 ervadaninha, aqui e ali, pelo meio, nas festas, pelas frestas da or<strong>de</strong>m e das manti-Ihas.


Afirrnq-se, entgo, a positivida<strong>de</strong> da forqa <strong>de</strong>sejante. A quest% que secoloca, segundq a pr6pria organiza~b do enredo, refere-se a forma comotal forqa, em principio <strong>de</strong>sagregadora, <strong>de</strong>ve se organizar coletivamente, paraque se mantenha a or<strong>de</strong>m. Sengo, vejamos: em primeiro lugar, nzo 6 toaque o espaqo do entrudo e tgo dilatado no texto, promovendo a momentoerii que se alonga a narrativa o que seria interval0 na austerida<strong>de</strong> "clausuraldas famllias";'alem disso, gran<strong>de</strong> parte dos capitulos <strong>de</strong>dicados ao entrudodb conta dos fatos ocorridos durante os dias em que tal festa popular haviasido proibida pelo vice-rei. Encontramos, ainda, mais um cu<strong>rio</strong>so elementopara avancar nossas investiga~6es a respeito <strong>de</strong> como um autor do sbculoXIX pensou a questgo do <strong>de</strong>sejo. Com efeito, quando, no capltulo XXXV,libera-se o entrudo, o texto e tomado por meteforas <strong>de</strong> <strong>de</strong>srepressb e <strong>de</strong>safogo:o fluxo do <strong>de</strong>sejo, ate entgo contido, transborda, qua1 Bgua represada,<strong>de</strong>rrubando pare<strong>de</strong>s e diques:A tar<strong>de</strong> e a noite <strong>de</strong> terca-feira, o cjltimo dia <strong>de</strong> entrudo, foram <strong>de</strong>alegria, <strong>de</strong> <strong>de</strong>li<strong>rio</strong>, <strong>de</strong> frenesi, e <strong>de</strong> inocente loucura na cida<strong>de</strong> doRio <strong>de</strong> Janeiro.0 jog0 do entrudo proibido nos seus dois primeiros dias, e autorizadona tar<strong>de</strong> e noite do terceiro, foi como o impeto da inundaqgoque vence e <strong>de</strong>strdi o di$lue que se lhe opunha (p. 139).Liberado o entrudo, o <strong>de</strong>sejo, acumulado pela interdi~b, tern livrecurso, orientando-se em dire~b a "inocentes loucuras" - o que pareceaconselhdvel, uma vez que tais dguas que <strong>de</strong>stroem diques v8m apagar o fog0que tomara, pouco antes, na narrativa, a casa do carpinteiro Marcos Fulggncio,alastrando-se pelo corpo <strong>de</strong> Emiliana, vioientada pelo oficial-<strong>de</strong>-sala AlexandreCardoso.Parece, aqui, que <strong>de</strong>lirarnos metaforas, extrapoiando, por exernpio, arefergncia do texto acima transcrito. Acontece que, se o narrador afirma quea autoriza~b do entrudo "foi como o lrnpeto da inunda~b que vence e <strong>de</strong>str6io dique que se Ihe opunha", 6 ele que constr6i uma methfora que, refluindoso<strong>br</strong>e elementos ante<strong>rio</strong>res da narrativa, tern duplo efeito: primeiro,atraves <strong>de</strong> um contraponto <strong>de</strong> metdforas, a libera~b do entrudo passa a serhgua que purifica, livrando a socieda<strong>de</strong> da for~a <strong>de</strong>strutiva e andrquica dofogo; em squndo lugar, lan~a sentido novo, carregado <strong>de</strong> intenees i<strong>de</strong>olbgicas,so<strong>br</strong>e o fogo que, cu<strong>rio</strong>samente, incendiara a casa do carpinteiro e, metaforicamente,o corpo <strong>de</strong> Emiliana. A irnagern criada nessa abertura <strong>de</strong> capltuloretroage so<strong>br</strong>e fatos ante<strong>rio</strong>rmente narrados, como o inckndio e o estupro,construindo sentidos que, <strong>de</strong> outra forma, nb estarlamos legitimadosa mencionar. Assim urn texto se transforma em seu fazer; a apar6ncia <strong>de</strong> inocentesucessb linear, numa narrativa, mascara que al passa uma construqb


IIIiIhe rnornentanearnente (nas festas) o fluxo, para que se apague o fog0 que inevitavelmenteincen<strong>de</strong>ia os corpos, sern que as casas caiarn, <strong>de</strong>struindo-se a or<strong>de</strong>rn.So<strong>br</strong>etudo no carna'val, corno diz jB o seculo XX: "Menina, vai, cornjeito vai, sen% urn dia, a casa cai". Antes apaziguar o <strong>de</strong>sejo, canalizando-oem festas que o organizern coletivarnente, em perlodos <strong>de</strong> excego, que <strong>de</strong>ixB-loirrornper anarquicarnente. Sengo, urn dia, a casa cai. JB no s6cu16 XIX,evi<strong>de</strong>ncia-se a funqzo catBrtica, purificadora do carnaval:1. . .) os folguedos do nosso carnaval nso sgo menos perigosos doque o antigo entrudo, no que diz respeito i sab<strong>de</strong> dos que nele tomamoarte; mas em relaq50 d moral a socieda<strong>de</strong> moralizada fi-cou menos exposta. 0 nosso carnaval tambkm facilita mil abusos,mas em regra as vitimas <strong>de</strong>sses abusos ngo t&m muito que per<strong>de</strong>rcom eles fp. 77).Se o <strong>de</strong>sejo aflora principalrnente nas festas, a rebeligo irrornpe quandoo elernento agenciador se enco<strong>br</strong>e, <strong>de</strong>scaracterizando-se. Ao longo dotexto, verifica-se que seu process0 bBsico 6 o do enco<strong>br</strong>irnento - urn jog0 <strong>de</strong>dissirnulaqZo e rnascararnento que se realiza em vB<strong>rio</strong>s nlveis.Evi<strong>de</strong>nciada a partir do prop<strong>rio</strong> tltulo, a rnantilha e o elernento-chave<strong>de</strong>ste rnecanisrno <strong>de</strong> disfarce. De objeto <strong>de</strong> uso utilizado pelas rnulheres honestasdo seculo XVIII, passa na o<strong>br</strong>a a exercer a funqb <strong>de</strong> possibilitadorada verda<strong>de</strong>, pois 6 atraves <strong>de</strong>la que personagens agern, objetivamente, cornsua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> encoberta. Logo no inlcio da narrativa, estudantes do SerninB<strong>rio</strong>Sb Jose anunciarn ao povo a situaqgo <strong>de</strong> forqa irnposta pelo vice-rei, ernetarnorfoseiarn-se em rnulheres <strong>de</strong> mantilha para escapar A furia da genteoficial. Tarnbkrn Maria, amante <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, utiliza a rnantilhapara rnontar urn jog0 <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas e armar aq6es <strong>de</strong> outros personagens. Evelhas po<strong>br</strong>es, envoltas em veus, esrnolarn pelas portas 2 :ervem <strong>de</strong> conn<strong>de</strong>ntese recadistas do arnor. Assim, figuras enco<strong>br</strong>ern-se <strong>de</strong> veus e <strong>de</strong>vassarna verda<strong>de</strong>, agilizando aq8es <strong>de</strong> rebeligo.Nurn momento <strong>de</strong> repressgo, rnascarar atos e per<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nocoletivo e uma possibilida<strong>de</strong> para que a critica se afirme sem comprometerseu enunciador. Cartas e relato<strong>rio</strong>s,anbnirnos t6rn gran<strong>de</strong> importancia na trama,pois e atraves <strong>de</strong>les que o vice-rei vai, aos poucos, tomando conhecirnentodas reais atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu oficial-<strong>de</strong>-sala. Alern <strong>de</strong>sses elementos, pasquinscolocados "a noite nas portas das igrejas, nas pare<strong>de</strong>s das casas e dos muros"e lundus reforcam a oposiqZo ao <strong>gov</strong>erno. E corno o gran<strong>de</strong> signo do livro 15o da opressZo, a tecnica do narrar persegue o enco<strong>br</strong>imento at6 &smo narelacgo narradorlleitor. Este <strong>de</strong>ve recolher as pistas que stio <strong>de</strong>ixadas ao longoda intriga, buscando as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que se escon<strong>de</strong>m por tras <strong>de</strong> manti-Ihas, disfarces e docurnentos an6nimos.


Dentro <strong>de</strong>ssa linha <strong>de</strong> procedimento textual, a do camuflar, a referenciaa lsidoro 6 essencial. E como mulher <strong>de</strong> mantilha que se apresentard aosdois Jl<strong>rio</strong>s e d ird revelar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> quando a for~a - marca do masculino- se fizer necessdria. Nele, a duplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nome (Isidoro/lsidora) escon<strong>de</strong>o sex0 no discurso, assim como a roupa enco<strong>br</strong>e o sex0 no corpo. E,no nlvel do tempo na narrativa, tamb6m a noite serve como mantilha aosatos e 6 nela que acontecimentos rebel<strong>de</strong>s t6m a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ocorrer, comofoi ante<strong>rio</strong>rmente observado.Afinal, nas festas populares, a noite, ou por meio <strong>de</strong> disfarces, crlticae <strong>de</strong>sejo sempre encontram <strong>br</strong>echas pelas quais se expan<strong>de</strong>m. E assim se vairevetando o caminho ficcional <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong>. Percorrendo o Rio <strong>de</strong> Janeiro, entrev6us. som<strong>br</strong>as e <strong>de</strong>sejos.


I0s quatro anos que correram <strong>de</strong> 7763 a 7767 nzo foram porI% certo dos mais suaves e agrada'veis para os habitantes da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sgo Se-I bastigo do Rio <strong>de</strong> Janeiro, embora muito ufanos e orgulhosos <strong>de</strong>vessem elesestar em conseqiic?ncia da <strong>de</strong>finitiva mudanca da capital do Brasil que passarada primoginita <strong>de</strong> Ca<strong>br</strong>al para a bela filha <strong>de</strong> Mem <strong>de</strong> Sa', assumindo corncara'ter <strong>de</strong> perman6ncia o chefe da gran<strong>de</strong> colOnia porruguesa da Am<strong>br</strong>icaa gradua~go e hierarquia <strong>de</strong> vice-rei.Mas o pr~meiro vice-rei que D. Jose ou por ele o MarquGs <strong>de</strong>Pombal <strong>de</strong>spachou para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, e que <strong>gov</strong>ernou o Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 16<strong>de</strong> outu<strong>br</strong>o <strong>de</strong> 1763 ate' 21 <strong>de</strong> novem<strong>br</strong>o <strong>de</strong> 1767, foi 0. AntGnio A~varesda Cunha, con<strong>de</strong> do mesmo titulo, homem talvez animado <strong>de</strong> boas inteng6es,porem tiTo facilmente irrita'vel como violento e <strong>de</strong>spota.NiTo e da nossa conta o que fez o Con<strong>de</strong> da Cunha em Mazaggoe Angola que tambkm <strong>gov</strong>ernara; no Rio <strong>de</strong> Janeiro porem <strong>de</strong>ixou ingrata eturva memdria pelos <strong>de</strong>sa<strong>br</strong>imentos e escandalosos abusos da sua adminis-I traqgo.verda<strong>de</strong> que Ihe po<strong>de</strong>m dar como circunst$ncia atenuante daaspereza e <strong>de</strong>spotismo do seu <strong>gov</strong>erno as prevenq'es bem ou ma1 fundadasque trouxera contra o corpo do cornercio e talvez contra toda a populap?oda nova capital do Brasil.E precisamente eram os naturais <strong>de</strong> Portugal habitantes da cida<strong>de</strong>os mais suspeitos ao vice-rei, que qli5s estendia a todos sem exceqifb o rigore as viol&ncias que, ou provinham do seu ggnio, ou adotara por sistema.0s negociantes estabelecidos no Rio <strong>de</strong> Janeiro eram todos portugueses,e tendo sofrido gran<strong>de</strong>s prejuizos corn a tomada da col6nia do Sacramentopelos espanhois em 7762, vingaram-se no Governador Gem1 Con<strong>de</strong><strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, atando-o e flageland~i, no pelourinho da maledic&ncia, e injuriando-oe caluniando-o t50 fu<strong>rio</strong>samente em pasquins e cartas andnimas queo b<strong>rio</strong>so Gomes Freire <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> apaixonou-se a ponto <strong>de</strong> adoecer grave-


men re, vindo a morrer no dia 1 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1763.0 Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la fora muito amado pelos <strong>br</strong>asileiros e comespecialida<strong>de</strong> pelos fluminenses, a estes por6m a lem<strong>br</strong>anga <strong>de</strong>sse amor nfioserviu <strong>de</strong> escudo contra os golpes do asperrimo rigor do vice-rei, que incessantelem<strong>br</strong>ava a morte <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, e por isso agradava sempre a opresst70em que <strong>de</strong>sconfiado tinha o povo.E prova'vel que tambem urna sinistra medida tomada pelo <strong>gov</strong>erno<strong>de</strong> Lisboa e executada pelo Con<strong>de</strong> da Cunha concorresse muito para o<strong>de</strong>sgosto profundo que causou a sua administra~b.Ou porque se quisesse prevenir o muito <strong>de</strong>scaminho do ouro empd e em folhetas, ou porque, como parece mais verda<strong>de</strong>iro, se resolvesse sobaquele pretexto sacrificar os interesses legitimos dos colonos aos interessesegoistas dos ourives da metropole, a Carta Rggia <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1766mandou extinguir o o ficio <strong>de</strong> ourives nas capitanias <strong>de</strong> Minas Gerais, Rio <strong>de</strong>Janeiro, Bahia e Pernambuco, e foi o Con<strong>de</strong> da Cunha o infeliz executor<strong>de</strong>sse assassinate da ourivesaria que principalmente no Rio <strong>de</strong> Janeiro tinhachegado a um grau <strong>de</strong> perfei@o que excluia o concurso dos produtos respectivosda metropole.A Carta R6gia <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1766 era a po<strong>br</strong>eza para muitos,e a iniquida<strong>de</strong> para todos. Um castigal <strong>de</strong> prata amassado, urna colher <strong>de</strong>prata que<strong>br</strong>ada, urna jdia <strong>de</strong> ouro precisando <strong>de</strong> conserto, <strong>de</strong>viam ou per<strong>de</strong>rse,ou ir pedir conserto a Portugal.0 <strong>gov</strong>erno <strong>de</strong> Lisboa sentenciara i3 morte a ourivesaria do Brasil,e o Con<strong>de</strong> da Cunha era o algoz que en forcava a vitima no patibulo levantadopelo <strong>de</strong>spotismo.Ora, em fato <strong>de</strong> execug'o <strong>de</strong> sentenga <strong>de</strong> morte, dos juizes semaldiz, mas do carrasco tem-se horror.Ao Con<strong>de</strong> da Cunha so<strong>br</strong>eveio quase no fim do seu <strong>gov</strong>erno essain felicida<strong>de</strong>.Mas urna outra ainda maior o perseguiria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1763.Era opinigo corrente e averiguada que muitas vezes e em muitoscasos a bolsa aberta em segredo poupava vexames e ate' iludia a justiga dovice-rei.EscZndalo t30 revoltante ajuntava-se i3 experi6ncia <strong>de</strong> extors6esdo fisco sem regra, as cruelda<strong>de</strong>s do mais arbitrii<strong>rio</strong> e atroz recruramento,que <strong>de</strong>ixava mges vilivas e irmzs drfds ao <strong>de</strong>samparo, filhos sem pais e esposassem maridos, os atentados contra a proprieda<strong>de</strong>, e contra a liberda<strong>de</strong> individual,privando-se em proveito das o<strong>br</strong>as pliblicas os senhores dos servigos<strong>de</strong> seus escravos, e coagindo-se homens livres, sob pretexto <strong>de</strong> que eram vadios,a ir trabalhar nas o<strong>br</strong>as do rei.Tudo isso se mandava e tudo isso se cumpria com energia tirsnica,e sem que houvesse para as vitimas o direito <strong>de</strong> queixa; porque a queixa


era insulto e crime punidos imediatamente e com <strong>de</strong>scomedimento <strong>br</strong>utal.E, pior ainda, era ponto incontroverso a impunida<strong>de</strong> do ajudanteoficial-<strong>de</strong>-sala e dos protegidos do vice-rei que atentavam contra a honradas familias, <strong>de</strong>srespeitando a inocgncia <strong>de</strong> donzelas, a honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esposas,e o recato <strong>de</strong> vilivas.De duas <strong>de</strong>stas acusac6es o Con<strong>de</strong> da Cunha <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se, confessa@o-seenganado, e <strong>de</strong>scarregando as cul~as da corruqb por dinheiro e<strong>de</strong>pravaczo por lux~ria so<strong>br</strong>e o ajudante oficlal-<strong>de</strong>-sala, tenente-coronel doregit;7ento velho, que se chamava Alexandre Cardoso <strong>de</strong> Meneses, e a quem<strong>de</strong>spediu ma1 recomendado para Lisboa.Mas a ta"o in fames crimes nlro bastava esse simples banimen to, ea suavida<strong>de</strong> do castigo dado por quem tifb severo com todos se mostrava,nlro e'<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> proveito e <strong>de</strong> convincente <strong>de</strong>fesa para a memoria do Con<strong>de</strong>da Cunha, que aliss foi <strong>de</strong> improviso, sem que o esperasse, e menos airosamentesubstituido em novem<strong>br</strong>o <strong>de</strong> 1767 no vice-reinado do Brasil peloCon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Azambuja, o que indicia que o Marqutrs <strong>de</strong> Pombal <strong>de</strong>sagradou-seda sua administrac50.Como quer que seja, Alexandre <strong>de</strong> Meneses, o ajudante oflclal<strong>de</strong>-sala,foi a asa-negra do vice-reinado do Con<strong>de</strong> da Cunha.Como escrevemos sempre e somente para aqueles que sabemt3o pouco que ainda sabem menos do que nds, e nlro para aqueles que nospo<strong>de</strong>m ensinar, vamos, porque isso e' preciso. dizer o que era e o que podianaqueles tempos o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei.A melhor lie& e' o exemplo, e' dizer o que nos nossos dias e nosnossos costumes correspon<strong>de</strong> hoje iquele cargo da epoca colonial.0 exemplo e a explicapZo saem ingenuarnente e sern maliciaalguma.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei era enta"o o que e' hoje emdia o oficial-<strong>de</strong>gabinete do ministro <strong>de</strong> Estado ou do presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> provhcia.Ora, o oficial-<strong>de</strong>gabinete e' meio ministro e meio presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>provincia, e ;Is vezes n$o e' meio, e' todo, e sern responsabilida<strong>de</strong> perante osjuizes daqueles <strong>de</strong> quem esta' na confianqa: era tal e qua1 assim o aiudanteoficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei.0 rnais hurnil<strong>de</strong>, e espec~almente os mais hurnil<strong>de</strong>s dos preten<strong>de</strong>ntesdo nosso tempo sabern <strong>de</strong> quantos milagres e <strong>de</strong> quantos abusos e'capaz urn oficial-<strong>de</strong>gabinete, que sendo hdbil torna-se em vez <strong>de</strong> miSo direitado ministro ou presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> provincia, cabe~a e drbitro do rninistro oupresi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> provincia que for rnenos hdbil que ele.E dso-se casos em que a ilustracb e supe<strong>rio</strong>res habilitaqc4es doministro ou do presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> provincia ce<strong>de</strong>rn i firrneza e B energia dooficial-<strong>de</strong>-gabinete que ou pela simpatia e confianp que inspira, ou pela in-


Urn dia o Con<strong>de</strong> da CunhaEm dois seu nome cortou:Do primeiro se enjoou,0 segundo nada impunha;Mas o Meneses matreiroDele fez comprida unha,Furtando o u do primeiro.A parte o que <strong>de</strong> menos polido e <strong>de</strong>coroso se po<strong>de</strong> adivinhar nacantiga, ai esta' a con<strong>de</strong>nado do vice-rei e do seu o ficial-<strong>de</strong>-sala sentenciada,lavrada pelo po vo a rir.Salvo o perigo das perseguip5es, e vingan~as tomadas nos parentes,e das seduq&s impunes corn que indignamente se cele<strong>br</strong>izavam Alexandre<strong>de</strong> Meneses e seus sdcios <strong>de</strong> perverstTes, o belo sexo po<strong>de</strong>ria apenas queixar-seda indiferenp, com que o tratava o Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha que alidspor fim, e corno se ha' <strong>de</strong> ver, bem pu<strong>de</strong>ra ter sido <strong>de</strong>clarado o benemdritodas mops solteiras, mas esposo fiel, recatado e <strong>de</strong> costumes austeros emrela~iZo B fam flia, nern sequer tinha olhos para ver e dizer que havia na capitalda coldnia algumas ou muitas senhoras bonitas.En tretanto andam tambdm o belo sex0 <strong>de</strong>scontente da situaNo:primeiro, porque indiretamente as mges, as esposas e as filhas recebiam porcontrapanwda os golpes que o <strong>de</strong>spotismo <strong>de</strong>sfechava em seus pais, esposose filhos, segundo, porque o Bispo D. Fr. Antbnio do Desterro inocentementeas contrariava e semeava espinhos na vida <strong>de</strong> flores a que elas se julgavamcom direito incontest5vel.Na opinigo das senhoras o Bispo D. Fr. AntGnio do Desterrocompletava o Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha.Havia injuwa nesse jufzo; o vice-rei era dkspota; o bispo erasew, e <strong>de</strong>via st?-lo.Oueixavam-se, murmuravam do bispo por causa do Recol himentodo Parto e do Recolhimento <strong>de</strong> Itaipu, on<strong>de</strong> muitas vezes abusiva e cruelmentealguns pais <strong>de</strong>sterravam as filhas, alguns maridos encarceravam as esposas,essas injustas viol&ncias poe'm niTb estavam na intenc'a do virtuosoprelado.Murmuravam ainda do bispo porque ele sabiamente acabara camos penitentes <strong>de</strong> a~oites nas prociss8es do enterro, como os ajuntamentos <strong>de</strong>povo e conversaq6es profanas ds portas e nos adros das igrejas antes e <strong>de</strong>poisdas festas, e corn as solenida<strong>de</strong>s religiosas que se cele<strong>br</strong>avam B noite, e <strong>de</strong>que abusavam os narnorados e os libertinos em proveito <strong>de</strong> seus amores inocentesou con<strong>de</strong>na'veis.0 Fr. Antdnio do Desterro, que prestou os mais importantes serviposd sua diocese, foi um bispo mo<strong>de</strong>lo na sua 6poca e a severida<strong>de</strong> <strong>de</strong> queusou, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> socorro B moralida<strong>de</strong>, ao ensino, B santida<strong>de</strong> do culto, e aos


costumes do s6culo.N5o pensavam assim naquele tempo as senhoras arneaqadas pelascasas <strong>de</strong> seven, recolhimento e contrariadas pelas justasprovid2ncias que obstavama ficil turibulap-o A sua beleza nos at<strong>rio</strong>s e as portas das igrejas, e nempensavam assim as mops estouvadas e alguns padres que viviam vida <strong>de</strong>sregrada, que o venerando bispo corrigiu corn a rnais santa energia.0 Bispo D. Fr. AntGnio do Desterro nZo podia escapar aos go/,pes do epigrama e do ridiculo que eram as armas <strong>de</strong> oposiqzo dos <strong>de</strong>sgosto-SOS.Esse sribio e honestlssimo prelado, zeloso da rnoralida<strong>de</strong> do seurebanho, fulminara urn dia corn os raios da sua reprovaflo as cantigas <strong>de</strong>masiadarnentelivres que eram cantadas em cornpanhias pouco discretas, e ate'recebidas e ouvidas corn repreensivel tolergncia em socieda<strong>de</strong>s estirnaveis.Com efeito, o lundu, a cantiga folgazona, sarcistica, erdtica emuito popular, exagerava os seus direitos, e ia as vezes ate' a licenqa, ofen<strong>de</strong>nto,arranhando os ouvidos da <strong>de</strong>cancia, e contribuindo insensivelmentepara a corruqiio dos costumes.0 Bispo D. Fr. Antdnio do Desterro fulrninou o lundu <strong>de</strong>masiadolivre, is vezes ate' quase obsceno.A oposiqgo popular reagiu, consi<strong>de</strong>rando con<strong>de</strong>nado em absolutotodo e qualquer lundu, e <strong>de</strong>srespeitosa atacou o bispo corn a arma dolundu.Em toda parte cantou-se corn aplauso o seguinte lundu que secornpunha <strong>de</strong> muitas coplas, cada qua1 mais extravagante e zornbeteira:Ja n80 se canta o lunduQue o na"o quer o senhor bispo:Mas eu ja pedi licenqaDa Bahia ao arcebispo.E hei <strong>de</strong> cantar,E hei <strong>de</strong> dan~ar,Saracotear,Com as moqas <strong>br</strong>incar.E impunemente,Cantando o lundu,Ao bispo furenteDirei uh! uh! uh!Fr. Antdnio do DesterroQuer <strong>de</strong>sterrar a alegria;Mas eu sou patusco velho,E teimarei na folia.


E hei <strong>de</strong> cantar,E hei <strong>de</strong> dan~ar,Saracotear,Corn as moqas <strong>br</strong>incar.E impunemente,Cantando o lundu,Ao bispo furenteDirei uh! uh! uh!Era corn semelhantes cantigas ou lundus, e muitas vezes compasquins em verso e prosa que se pregavam B noite nas portas das igrejas, naspare<strong>de</strong>s das casas, e nos muros, que os <strong>de</strong>sgostosos justa ou injustarnente sepronunciavam, visto como ngo tinham tribuna parlamentar, on<strong>de</strong> se falassepor eles, nem imprensa, que fosse livre drgso da opiniiSb <strong>de</strong> cada um.Estas <strong>br</strong>eves informac'ees que acabamos <strong>de</strong> escrever dgo iddiaembora urn pouco obscura da situaflo, costumes, prevenc&s, antipatias edisposi@o dos iinimos dos habitantes da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> S5o Sebastigo do Rio <strong>de</strong>Janeiro na kpoca em que se vai passar o romance histdrico que tomarnos so<strong>br</strong>ends escrever.


Ainda mesmo durante o carrancudo vice-reinado do Con<strong>de</strong> daCunha a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> S3o Sebastitio do Rio <strong>de</strong> Janeiro tinha seus dias e suasnoites excepcionais <strong>de</strong> folganqa e <strong>de</strong> alegria.0 bast30 <strong>de</strong>spotico do vice-rei ficava suspenso, <strong>de</strong>ixando queos po<strong>br</strong>es colonos gozassem, algumas vezes por ano, horas <strong>de</strong> inocentes folguedosconsagrados por motivos que eram santos e legitimados pelos costumes,que s%o leis impe<strong>rio</strong>sas embora nb sejam <strong>de</strong>cretadas pelo po<strong>de</strong>r. Ao<strong>gov</strong>ern0 opressor ate importa muito que o povo se entregue a festas e divertimentos;enquanto o povo <strong>br</strong>inca, nZo reflete:pueri ludunt.Uma daquelas noites excepcionais era a tie 5 <strong>de</strong> janeiro, a noiteda vespera do dia dos Reis ou das cantatas dos Reis, que alias se repetiamanimadas na noite seguinte.Filha <strong>de</strong> uma recordaqzo profundamente religiosa, <strong>de</strong> uma liqzodo Evangelho, da visita e das oferendas dos Reis Magos ao berco humil<strong>de</strong> <strong>de</strong>Belem, on<strong>de</strong> acabava <strong>de</strong> nascer da Virgem lmaculada Deus feito homem,Jesus Cristo enfim, esse costume do povo portuguis passara ao <strong>br</strong>asileiro, eera como um reflex0 do jObilo da igreja no regozijo profano, mas puro pelaorigem, e cheio <strong>de</strong> enlevos para todos no seculo passado, para todos aindapor muitos anos no seculo atual, para muitos ainda agora mesmo nos municlpiose nas paroquias do inte<strong>rio</strong>r, on<strong>de</strong> se recolhem a bltirr~o, a extremo asilo,antes <strong>de</strong> aniquilarem-se completamente as usanqas e os costumes ru<strong>de</strong>s poremricos <strong>de</strong> poesia caracteristica da vida <strong>br</strong>asileira no passado.Deus nos livre <strong>de</strong> maldizer da civilizaqi70: a civilizaqXo 6 sol; maso sol tem manchas; no assunto <strong>de</strong> que muito <strong>de</strong> passagem tocamos, a civilizaq3otem europeado <strong>de</strong>masiadamente o srasil.Avivemos um pouco a lem<strong>br</strong>anqa da festa profana dos Reis queem suma era na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro como em toda parte do Brasil.A festa popular da noite dos Reis era a que rematava as festasdo Natal, que, acompanhando as sagradas comemoraq<strong>de</strong>s da igreja, comeqa-


vam na noite <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zem<strong>br</strong>o pela exposi~8o dos presepes, on<strong>de</strong> se figuravaa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Belem, o lugar humil<strong>de</strong> do berqo do Menino Deus, um campocheio <strong>de</strong> pastores e <strong>de</strong> multidiYo <strong>de</strong> animais, drvores, flores, <strong>rio</strong>s, fontes e cascatas,tudo em mais ou menos bem feita miniatura, e tudo perturbado pormais ou menos anacronismos e improprieda<strong>de</strong>s, que alias n%o preocupavamnem aos mais entendidos em hist6ria natural e na arqueologia.0s presepes conservavam-se abertos at8 a termina~zo das alegresfolias dos Reis, e todas as noites eram visitados por multidb <strong>de</strong> cu<strong>rio</strong>sos, eamadores.Hoje em dia ainda se observam na capital do imp8<strong>rio</strong> e em capitais<strong>de</strong> provlncias fracos arremedos dos antigos presepes.As cantatas dos Reis se preparavam com esmero e muita antece<strong>de</strong>ncia:organizavam-se socieda<strong>de</strong>s emulas umas das outras, como agorapara os passeios <strong>de</strong> carnaval em relacgo aos homens; combinavam-se alegresmancebos e tambbm velhos folgaz<strong>de</strong>s, jovens senhoras estimgveis, <strong>de</strong> ordind<strong>rio</strong>parentas daqueles, ensaiavam dan~as ale&ricas, quase sempre pastoris,ajustavam suas vozes, tomando <strong>de</strong> cor a mirsica das cantatas, e enfim na noite<strong>de</strong> 5 e <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> janeiro salam a obsequiar seusamigos e pessoas <strong>de</strong> distincb,cantando - os Reis - em suas casas.Quer estivesse aberta ou nao a casa obsequiada, a cantata seentoava na rua e B porta. e comecando quase sempre por um infallvel:Acordai, se estais dormindo. . .ou algum outro verso com o mesmo pensamento; o dolio da casa recebia osvisitantes que repetiam a cantata na sala, on<strong>de</strong> em seguida executavam suasdan~as; ceias lautas, meas <strong>de</strong> banquetes, ou cobertas <strong>de</strong> doces, se patenteavamaos cantadores dos Reis que assim passavam duas noites em regaladafestan~a. A ninguem se prevenia e todos se preveniam: nas noites dos Reiscada chefe <strong>de</strong> famllia tinha mesa pronta para ser oferecida 8s socieda<strong>de</strong>s sbsequiadoras,e mesas que em muitas casas se renovavam com ostentaq80;pois que os cantadores dos Reis uns aos outros se sucediam, e as pessoasmais distintas se reputavam menos consi<strong>de</strong>radas, se n%o Ihes,entoassem 8porta tr&s ou quatro cantatas.Com estas boas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cantadores dos Reis cdntrastavammuitas vezes bandas especuladoras dos Reis, que os cantavam, pedindo tributos<strong>de</strong> favor; ainda no presente seculo essa explora~b se <strong>de</strong>nunciava naqcladrinha velha, ja antes repetida cem vezes com a mais <strong>de</strong>sgra~ada mirsica:Pedir Reis e do costumeE o dar 6 bizarria;0 negar e' mo fineza,0 aceitar B cortesia.


Mas aos prop<strong>rio</strong>s pedidores dos Reis nZo se fechavam as casas, epara eles era certa a coiheita <strong>de</strong> pingues presentes que serviam <strong>de</strong>pois paramultiplicar os jantares e as folgancas dos especuladores da festa, estes por6mtinham ao menos a prud6ncia e bom juizo <strong>de</strong> se afastarem das boas socieda<strong>de</strong>sque em caso algum consentiriam em reunir-se com eles.E havia casos <strong>de</strong> reuniQ das socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cantatas dos Reis.Na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro era quase o<strong>br</strong>igada, era <strong>de</strong> costumea reuniso <strong>de</strong>ssas socieda<strong>de</strong>s no gran<strong>de</strong> patio do convento <strong>de</strong> Nossa Senhorada Ajuda. Ali se terminava a festa, a folia <strong>de</strong> cada uma das duas noites pelasraz6es mais justas e convenientes.Em primeiro lugar essa concentraq50 das socieda<strong>de</strong>s dos Reis nophtio do convento da Ajuda era moda no Jculo passado e a moda 6 lei; emsegundo o presepe do convento da Ajuda passava por ser o mais famoso oupelo menos um dos mais famosos da cida<strong>de</strong>, e portanto atraia numerosaconcorr6ncia; em terceiro as freiras da Ajuda eram, como ainda hoje o szo,habil lssimas e <strong>de</strong>licadas mestras <strong>de</strong> doces e <strong>de</strong> empadas, que entCo nb poupavamao regalo das socieda<strong>de</strong>s, que recebiam os presentes em tabuleiros eban<strong>de</strong>jas cobertas com riqulssimas toalhas perfumadas; em quarto e ~lltimolugar era <strong>de</strong> costume que o pdtio do convento da Ajuda se transformassenessas noites em outeiro po6tico; as freiras que estavam as gra<strong>de</strong>s davammotes e muitos bons e maus poetas glosavam <strong>de</strong> improviso.Por todas estas raz<strong>de</strong>s as boas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cantatas dos Reis sese reuniam <strong>de</strong> acordo no patio do convento da Ajuda, quando muito al6mda meia-noite haviam terminado as suas visitas e cantatas <strong>de</strong> obsequio, e nessepaitio cada'uma <strong>de</strong>las por sua vez entoava seus cantos, e todas em amigaefusb dan~avam alegremente.


As duas horas da madrugada do dia 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1766, apinhava-seo povo da cida<strong>de</strong>, que ji era capital do Brasil, no pitio do conventoda Ajuda. Quatro socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cantatas dos Reis tinham-se encontrado ali,e estreitado jubilosamente seus la~os <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>; todas cantaram porsua vez, e <strong>de</strong> cada vez houve tres a aplaudir a que cantara, e todosquatro sefizeram uma d na execu~So das suas danvas; as freiras batiam palmas, e amuttid50 <strong>de</strong> cu<strong>rio</strong>sos louvava as socieda<strong>de</strong>s, adrnirava o presepe, e vitoriavaas po<strong>br</strong>es freiras, que estavam das gra<strong>de</strong>s a olhar para o mundo, <strong>de</strong> que seachavam perpetua e <strong>de</strong>sumanamente banidas.0 concurso imenso ostentava no patio do convento da Ajuda oque havia <strong>de</strong> mais no<strong>br</strong>e ou <strong>de</strong> mais belo e distinto na populacZo da capital.Pouparemos aos leitores <strong>de</strong>ste romance a <strong>de</strong>scri~ab dos cal~6es e dos sapatoscom fivelas, e dos gran<strong>de</strong>s jalecos, casacas e cabeleiras com rabicho dos velhose dos mancebos elegantes da epoca; relativamente ao belo sexo limitarnos-emosa dar uma notlcia cu<strong>rio</strong>sa as nossas leitoras: as damas elegantes daqueletempo vestiam-se um pouco ou muito a moda da atualida<strong>de</strong>, calvavamsapatos <strong>de</strong> saltos <strong>de</strong> cor a fantasia, como os tern as botinas dos pes mimosos<strong>de</strong> hoje, traziam vestidos estreitos e como os nesgados <strong>de</strong> agora e arrastandocaudas mais ou menos longas como exatamente se observava ha pouco tempo;mas tambkm usavam trazer ricos pen<strong>de</strong>ntes Bs orelhas, e profusao <strong>de</strong> ouroe pedras preciosas com especialida<strong>de</strong> no colo e nos <strong>de</strong>dos cheios <strong>de</strong> an&;em muitas a protetora e romanesca mantilha escondia a pate supe<strong>rj</strong>or docorpo, a cabqa e quase totalmente o rosto; mas no mod0 <strong>de</strong> trajd-la e nagraqa dos movimentos as mows sabiam atrai~oar-se.Quanto aos dotes flsicos das senhoras dava-se o caso <strong>de</strong> todosos tempos e <strong>de</strong> todas as cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s ou pequenas, havia feias e bonitas epoucas formosas, mas 0s belos olhos, a cintura <strong>de</strong>licada e fina e os p6s mi-mosos t5o comuns nas <strong>br</strong>asileiras faziarn-se admirar, como tamb6m hoje seadmiram. N b se reparava entzo; agora porem muito se notaria naquela nu-


merosa reunido a falta <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tipos; a razz0 era simples: o Brasilcoldnia s6 se comunicava com a metropole; n30 se admitia com6rcio estrangeiroe por exce@o apenas alguma famllia espanhola se misturava com as famlliasportuguesas e <strong>br</strong>asileiras; mas ainda assim a raca era no fundo a mesma,e os caracteres f lsicos obe<strong>de</strong>ciam As leis da sua origem natural: umas senhoraseram mais engra~adas, mais esbeltas, mais bonitas do que outras somentepor aquele segredo, alias explicdvel, que faz corn que a mesma arvore,ou o mesmo arbusto, apresente flores mais ou menos <strong>de</strong>feituosas e mais oumenos perfeitas.Encantonado em urn dos Sngulosdo patio estava um grave ancibtrajando com a seria elegfrncia dos homens ricos, tendo a seu lado, mas umpouco para tras, urna senhora trazendo rica mantilha e que como ele observavazelosa duas belas meninas <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito a vinte anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, vestidascorn esmero, sem mantilhas, e unidas uma a outra e com as mdos dadas,como a medo <strong>de</strong> se separarem embora estivessem entre o ancido e a senhoraque as guardavam, sentinelas d vista, cuidando ainda mais <strong>de</strong>las do que dopresepe que ja tinham apreciado bastante, e das cantatas e dan~as que asduas donzelas aplaudiam com inocente encantamento.0 ancido era conhecido <strong>de</strong> todos e portanto sabiam muitos eadivinharam os outros que a senhora <strong>de</strong> mantilha era a esposa e as meninasas duas filhas <strong>de</strong> JerGnimo Ll<strong>rio</strong>, portugu6s e rico negociante da praCa doRio <strong>de</strong> Janeiro. Muito raramepte Jertlnimo Ll<strong>rio</strong> mostrava a famllia em phblico;mas a fama da beleza das filhas corria pela cida<strong>de</strong> ainda mais porquese ajuntava com a famada riqueza do pai, e as duas donzelas tinham recebido<strong>de</strong> um bem inspirado admirador, uma <strong>de</strong>nomina@o que foi adotada,e que niio podia chamar-se alcunha, porque em suma era o plural do so<strong>br</strong>enome<strong>de</strong> Jerbnimo, e tinha alguma coisa <strong>de</strong> po6tico; pois lem<strong>br</strong>ava duas floresirmis: chamavam As duas meninas - os dois If<strong>rio</strong>s.Muitos amigos tinham cumprimentado JerBnimo e sua famllia;os velhos gracejaram com as donzelas e lhes ofereceram doces; as mocas as saudaramrespeitosas, contentando-se com o direito geral <strong>de</strong> contempla-las a distancia,e sempre corn precau~iio para n3o ofen<strong>de</strong>r o exagerado melindre dospais.A <strong>de</strong>speito das duas <strong>de</strong>sconfiadas sentinelas, y;.pos <strong>de</strong> mancebose mancebos isolados aqui e ali, prestavam aos dois Il<strong>rio</strong>s o <strong>de</strong>vido cultoA beleza. Jerdnimo e sua esposa maldiziam em monossllabos que lhes escapavam,do que lhes parecia atrevida licenp <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>smoralizada; comopor6m suas filhas so tinharn olhos para as dancas, <strong>de</strong>ixavam-se ficar no patio.Mas <strong>de</strong> sdbito pai e m3e estremeceram: entrara no patio jB atopetado<strong>de</strong> povo um grupo <strong>de</strong> oficiais militares, B frente dos quais vinha ooficial-<strong>de</strong>-sala do Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha; JerUnimo Ll<strong>rio</strong> olhou para asduas filhas, como se um abutre se tivesse aproximado do ninho, on<strong>de</strong> se


achavarn inocentes e ainda irnplurnes avezinhas; pensou logo em retirar-se,mas o oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei avancou para ele, e foi apertar-lhe a rnbo.Nbo havia recurso possivel fora <strong>de</strong> cerirnonioso acolhirnento; ooficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei era a cabeca e o <strong>br</strong>aco do violento Con<strong>de</strong> da Cunha;a irnediata retirada <strong>de</strong> Jer6nirno po<strong>de</strong>ria parecer ofensa, e a ofensa n%o ficariairnpune; o anciao n%o teve sorrisos; mas sirnulou voluntaria tolerancia, recebendoos curnprirnentos do rnuito respeitoso oficial, que ousava jh dirigirO ~ ~ ar<strong>de</strong>ntes O S e cobicosos 8s duas rneninas, quando felizrnente para o zelosopai cornecou a ultirna parte da folganca publica.Dez vozes gritararn: - Motes! motes!. . .As freiras acudirarn ou ja estavarn 8s gra<strong>de</strong>s; urna <strong>de</strong>las disse cornvoz alta e argentina:- Deus no ber~o da hurnilda<strong>de</strong>.- Ou~arnos! exclarnou JerBnirno, puxando corn forca o <strong>br</strong>acodo oficial-<strong>de</strong>-sala; oucarnos! Eu aposto que e Mariano Antunes que vai irnprovisar.0 oficial-<strong>de</strong>-sala ce<strong>de</strong>u ao puxab e fingiu aten<strong>de</strong>r; Mariano Antunesou outro qualquer rnostrou-se na escada do tablado das dancas, e bateupalrnas.SilGncio geral. 0 poeta do outeiro irnprovisou:Enquanto os gran<strong>de</strong>s da terraOstentando vb no<strong>br</strong>eza, .Em vaida<strong>de</strong> sernpre acesaTrazern sernpre o rnundo em guerra;Enquanto as naqBes aterraDe cern reis a potesta<strong>de</strong>,A celeste majesta<strong>de</strong>Dos reis o orgulho fulrnina,Mostrando em liqb divinaDeus no ber~o da hurnilda<strong>de</strong>.A rnultidab batia palrnas ao poeta.- Que insolente, rnurrnurou o oficial-<strong>de</strong>-sala, pondo as rna"osno cop0 da espada; falar dos reis assim!. . .- Em cornpara& corn Deus. . . tolera-se, disse Jer6nirno.Subira ao tablado outro poeta, bateu palrnas, e logo disse emvoz altissonante.


Foi um poeta infeliz0 que h8 pouco improvisou;Outra explica~30 vos douDo que o Evangelho nos diz:Deus mostrar ao mundo quisQue 8s avessas da verda<strong>de</strong>,Aviltando a dignida<strong>de</strong>0 mundo vil vai e vern,E assim nasceu em BelBmDeus no ber~o da hurnilda<strong>de</strong>.0 segundo improvisador foi como o primeiro vivamente vitoriado;acudiram outros poe'tas, renovaram-se os motes das freiras e as glosas dospoetas do outeiro.Ainda uma voz <strong>de</strong> freira proclamou da gra<strong>de</strong>, don<strong>de</strong> estavaolhando e ouvindo:- Viva o bispo e o vice-rei.0 mote. era urna provocagb ao <strong>de</strong>sgosto geral do povo; nbhouve poeta que subisse os <strong>de</strong>graus do tablado; mas do meio da multidbcompacta alguem bateu palmas, e rompendo o sil&ncio que irnediatamentese fez, falou em voz alta, mas fanhosa, e como para disfarg8-la:Quando em casas e conventosPren<strong>de</strong> o bispo as raparigas,E o vice-rei por intrigaRecruta rnogos aos centos;Quando o bispo faz torrnentos,E o vice-rei nbtem lei,Quando o pastor mata a greiE B todo povo infeliz,Maldito seja quem diz- Viva o bispo e o vice-rei!Estrondosa aclamago vito<strong>rio</strong>u o poeta; mas o atrevimento ins6lito <strong>de</strong>ste provocou as fOrias da gente oficial que estava na reunigo popular.0 poeta reproduzira em seus rudlssimos versos a opinib e o sentiment~<strong>de</strong> todos, e fora por isso entusiistica e espontaneamente festejado;logo porem o oficial-<strong>de</strong>-sala <strong>de</strong>sembainhou a espada, e imitado pelos oficiaisque o seguiam, um e outros langaram-se no encalgo do revoltado e audaciosoimprovisador.


A importencia oficial do homem que d frente dos seus sequazesse atirava contra o povo em procura do orggo do povo, o susto e o terror dasfamllias, o movimento da multidzo que procurava fugir e que se esmagavano lmpeto da fuga, o choro das crianqas, os gritos e clamores das mulheres,os gemidos dh gente que se pisava, e <strong>de</strong> alguns que eram feridos pelas espadasdos agressores, os <strong>br</strong>ados <strong>de</strong> misericordial soltados pelas freiras, o furor<strong>de</strong> muitos do povo que atiravam pedradas so<strong>br</strong>e os oficiais que loucamenteperturbavam a or<strong>de</strong>m do divertimento pQblico produziram assustadora confuszo,e fizeram recear lamenthveis consequkncias.No fim <strong>de</strong> poucos minutos o patio do convent0 da Ajuda estavaquase <strong>de</strong>serto; as freiras tinham-se retirado das gra<strong>de</strong>s; todo o povo conseguirafugir e o oficial-<strong>de</strong>-sala do Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha sem ter podido encontraro poeta revoltador via apenas diante <strong>de</strong> si e <strong>de</strong> seus companheiros <strong>de</strong>prazeres e <strong>de</strong> orgia uns oito po<strong>br</strong>es feridos e esmagados que estendidos nochzo <strong>br</strong>adavam por socorro.- Que faremos <strong>de</strong>stes miserdveis? perguntou ao oficial-<strong>de</strong>-salaum dos seus sequazes.- Pois que nenhum <strong>de</strong>les parece ter sido o poeta que nos escapou,<strong>de</strong>ixemo-los, qcte ha <strong>de</strong> haver quem <strong>de</strong>les se ocupe, e vamos acabar anoite, on<strong>de</strong> nos espera melhor folia.0s oficiais retiraram-se e quando n3o se ouviu mais o tinir dasbainhas das espadas, seis homens e duas mulheres <strong>de</strong> mantilha que jaziampor terra foram-se levantando: nenhum <strong>de</strong>les tinha so,frido ferimento grave,nem contus3o que molestasse muito; o mais infeliz tinha recebido um levegolpe na fronte, os outros apenas arra.nh6es sem consequbncia, mas haviamcomo <strong>de</strong> concerto gemido e <strong>br</strong>adado, dolorosa e aflitivamente para se veremlivres do oficial-<strong>de</strong>-sala.Um a um esgueiraram-se os seis homens que nem sequer olharampara as duas mulheres <strong>de</strong> mantilha; estas porkm quando se julgaram sos, levantaram-setambhm, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> observar o pAtio, que acharam <strong>de</strong>serto, disseuma <strong>de</strong>ssas B outra:- Ah! Guido Vaz! fizeste-la bonita! De que escapamos!. . . Senos <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>em, pelo menos eramos expulsos do semind<strong>rio</strong> e tlnhamos fardasas, costas!-outra iaual!. . .- Mas que inspiraflo, <strong>Manuel</strong> Dias! Que <strong>de</strong>cima! Nunca fareiAs duas mulheres <strong>de</strong> mantilha eram dois estudantes do semina<strong>rio</strong><strong>de</strong> S8o Jose!


D. Ant6nio Alvares da Cunha, con<strong>de</strong> do mesmo tltulo, era umvargo <strong>de</strong> costumes rlgidos e <strong>de</strong> carhter severo, honesto, bem intencionado,mas dCspota no <strong>gov</strong>erno; nomeado primeiro vice-rei do Brasil na capital doRio <strong>de</strong> Janeiro trouxe, infelizmente, para o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> tb alto cargo,prevenfles contra os negociantes portugueses <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong>, e vendo por issoem todos e em tudo indlcios <strong>de</strong> oposi~go e <strong>de</strong>sobediencia exagerou o sistema<strong>de</strong> rigor at6 a opressb e o <strong>de</strong>spotismo cruel; por maior <strong>de</strong>sdita sua chamoupara oficial-<strong>de</strong>-sala o tenente-coronel do regifiento velho, AlexandreCardoso <strong>de</strong> Meneses, e <strong>de</strong>ntro em pouco vivamente impressionado pela inteliggncia,ativida<strong>de</strong> e energia <strong>de</strong>ste, aplaudiu-se na escolha que fizera e <strong>de</strong>positouno escolhido a mais plena e cega confian~a.Alexandre Cardoso reunia felizes condi~6es para agradar e tornar-seo <strong>br</strong>aco direito do vice-rei: suficientemente instruido e talentoso poupavao Con<strong>de</strong> da Cunha a muito trabalho; infatigaivel e diligente dava asas BaCgo do <strong>gov</strong>erno; sempre <strong>de</strong> acordo com o vice-rei, <strong>de</strong>spota como ele, e fazendoexecutar todas as suas or<strong>de</strong>ns e resolu~iies com a prontidb e o rigorque apren<strong>de</strong>ra na disciplina militar, nada <strong>de</strong>ixava a <strong>de</strong>sejar ao chefe do <strong>gov</strong>ernoda gran<strong>de</strong> col6nia; alem <strong>de</strong> tudo isso mow ainda, pois que apenas iatocar os quarenta anos, muito agradhvel <strong>de</strong> fei@es, tendo elegante figura,grata no falar e nas maneiras, e corno-Pe-lo-lavpz <strong>de</strong> tudo isso, <strong>br</strong>avura natural'a<strong>br</strong>ilhantandoo <strong>de</strong>ver do soldado, exercia uma espe~ie<strong>de</strong>-fascinaMoso<strong>br</strong>e o velho Con<strong>de</strong> da Cunha.homem!"Gunk.0 vice-rei tinha dito a si mesmo cem vezes: "tenho o meuPu<strong>de</strong>ra antes dizer: "tenho a meu lado um mau gB'&04Alexandre Cardoso era com efeito o mau g6nio do Con<strong>de</strong> daEm pouco tempo estudara e conhecera as fraquezas do cardterdo seu chefe, que era so<strong>br</strong>etudo orgulhoso, soberbo e dominador; pas-lhe<strong>de</strong> freio as fraquezas e dirigiu-as em seu proveito; adulou sem exageracgo nas


lisonj& admirou\'ncessantemente a sabedoria <strong>de</strong> consumado administrador,<strong>de</strong>u sempre conselh \ S- sem dizer que os dava, nunca preten<strong>de</strong>u parecer maisdo que submisso e <strong>de</strong>dhado executor das or<strong>de</strong>ns do vice-rei, e este <strong>de</strong>ixou-se\mil vezes arrastar e domina~ elo seu oficial-<strong>de</strong>-sala sem pensar que o fazia.PAlexandre Cardoso abusava enynome do Con<strong>de</strong> da Cunha e o Con<strong>de</strong> daCunha carregava com a responsab~ltda<strong>de</strong> dos abusos.A fascinaqab era tZo fortyque ningukm se animava a queixar-sedo oficial-<strong>de</strong>-sala <strong>de</strong>pois que <strong>de</strong>z ou vhte exemplos <strong>de</strong>monstraram que asqueixas al6m <strong>de</strong> <strong>de</strong>satendidas eram funda<strong>de</strong>ntos para crubis perseguiqbes.\Alexandre Cardoso ngo podia ser perfeito, e julgava-se o melhordos homens, porque os seus principais senbes,'a,que n%o chamava vlcios,eram trds amores que o o<strong>br</strong>igavam ainda a um quarto amor; amava as mulheresbonitas, amava o luxo, amava o jogo, e por causa $as mulheres, do luxo edo jogo, amava o dinheiro.0s trds amores eram exigentes e o soldo <strong>de</strong> tenente-coronel n%oos satisfazia; o oficial-<strong>de</strong>-sala do Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha pas a justiqa e aadministraqso i3 venda em seu proveito: dava empregos e empreitadas <strong>de</strong>o<strong>br</strong>as pliblicas a preqo ajustado, como negocio seu; fazia pren<strong>de</strong>r e soltar,recrutava e dispensava do servico militar, ameapva e anulava a ameaqa atroco <strong>de</strong> favores pecunih<strong>rio</strong>s, explorava enfim o <strong>gov</strong>erno <strong>de</strong> que era oficial,centuplicando os lucros legais com os lucros da prevaricaqb e da infamia.Era fhcil assid amontoar tesouros; mas a Alexandre Cardosonunca so<strong>br</strong>ava o dinheiro; porque ele tinha as mgos sempre abertas para animarseus tres amores: ao luxo, e ao jog0 ngo hh riqueza que chegue, e oamor das mulheres 13 tambkm um abismo que nunca se enche <strong>de</strong> ouro.Alexandre Cardoso abusando das suas vantagens e da sua infludncia<strong>de</strong> oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei tornou-se o perigoso inimigo das famllias,o sedutor ousado que levava a <strong>de</strong>sonre aos lares dom6sticos; para essaguerra imoral e pe~ertida tinha ele por armas seus dotes pessoais, o seu po<strong>de</strong>rno <strong>gov</strong>erno da coldnia, a ameaqa <strong>de</strong> perseguiqab aos pais, e <strong>de</strong> recrutamentoaos irmbs das donzelas, cuja beleza o encantava: as famllias po<strong>br</strong>es<strong>de</strong> ordind<strong>rio</strong> eram vltimas da violencia, quando nb cediam 8 garantia <strong>de</strong>protqgo; as ricas nem sempre escapavam a audhcia daquele amor das mulherese precisavam Bs vezes lutar contra o ressentimento e o fmor do <strong>de</strong>senfreadoe impune oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei.Pior que tudo isso ainda Alexandre Cardoso por suas paixBes dojog0 e da luxhria, tinha dcios <strong>de</strong> jog0 e <strong>de</strong> orgias e estendia so<strong>br</strong>e eles oencanto da sua impunida<strong>de</strong>; era portanto o chefe <strong>de</strong> uma banda <strong>de</strong> mancebosimorais, corrompidos e audazes, recrutados principalmente na oficialida:<strong>de</strong> dos corpos militares da guarniqb da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, e essa bandaperigosa, ousada, petulante , era o terror das famllias, e o testemunho vivoda perversgo do <strong>gov</strong>erno.


0 Con<strong>de</strong> da Chnha, retirado, quase sepulto na solid30 da casaque tinha <strong>de</strong> ser no sekulo seguinte palAcio <strong>de</strong> reis e <strong>de</strong> imperadores, ignoravacornpletamente as tropelias e os crimes do seu oficial-<strong>de</strong>-sala e dos sequazesque este comandava, e era for~aque os ignorasse, porque zl semelhan~ados pais extremosos e cegos, que se irritam quando lhes <strong>de</strong>nunciam os abusose os vlcios dos fiJhos, reputava caluniosas as censuras e acusa@es que sefaziam ao seu querido oficial-<strong>de</strong>-sala, e violento se revoltava contra os censorese acusadores <strong>de</strong>le.A obstinaqSo e a parcialida<strong>de</strong> do vice-rei a<strong>br</strong>iram fontes <strong>de</strong> suspeitase <strong>de</strong> calunias; porque rnuitos supuserarn e alguns propalaram que oCon<strong>de</strong> da Cunha ganhava como socio principal nas toleradas prevarica~iies<strong>de</strong> Alexandre Cardoso, cuja <strong>de</strong>senvoltura permitia em aten@o aos lucros queIhe dava a socieda<strong>de</strong> infarne.A probida<strong>de</strong> do Con<strong>de</strong> da Cunha triunfou dos botes <strong>de</strong>ssa caluniaatroz, mas <strong>de</strong>sculpAvel por circunstancias atenuantes; 6 porh certo queo oficial-<strong>de</strong>-sala Alexandre Cardoso foi o mau g&nio do primeiro vice-reirnandado 8 capital do Brasil.


A cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro era naqueles tempos muito diferentedo que 6 hoje: o aspect0 ainda das melhores casas era triste e indicava aeducaqiio clausural das familias: abundavam as casas t<strong>br</strong>reas e <strong>de</strong> um s6 pavimento,e essas reservavam as Portas e batentes das janelas para se trancarem Anoite, mas <strong>de</strong> dia tinham os viios das portas e janelas <strong>de</strong>fendidos aos olhoscu<strong>rio</strong>sos por peneiros ou tecidos <strong>de</strong> palha firmados em um quadrado <strong>de</strong> sarrafos,que.se penduravam, ou se podiam mover encaixilhados; as casas <strong>de</strong>dois ou mais pavirnentos, quase todas uniformemente <strong>de</strong> trbs portas eram<strong>de</strong> sacadas com gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira mais ou menos completas e som<strong>br</strong>ias:mais ou menos porque essas gra<strong>de</strong>s ou eram da altura <strong>de</strong> meio corpo dohomem, ou tinham a altura do p6-direito do pavimento que som<strong>br</strong>eavam, <strong>de</strong>modo que simu_laram triste prisiio; em regra a<strong>br</strong>iam-se pequenospostigos nesseengradamento, postigos maiores e cbmodos na altura em que <strong>de</strong>viam ser asjanelas, para que as senhoras <strong>de</strong>les se aproveitassem, olhando a rua, e pequenospostigos rentes ou quase rentes corn o assoalho para que as senhoras ouas escravas <strong>de</strong><strong>br</strong>uqando-se vissem menos expostas ao pliblico, o que se passavana rua, ou chamassem os pregoeiros ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> qbanto podiam preci-sar a mesa da familia.'No sbculo passado e ainda no principio do atual havia quitan<strong>de</strong>irosambulantes <strong>de</strong> todos os ggneros da alimenta~iio geral dos habitantesda cida<strong>de</strong>: os escravos vindos da Africa, negros e negras; corriarn as ruas dacida<strong>de</strong> que hoje se chama velha, apregoando alem do peixe e das verduras, ofeijiio, a farinha, o arroz, o guandu, o milho ver<strong>de</strong> e seco, e tudo jh medidoem tabuleiros pirlmi<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> que eram base a porqiio avultada e necessaria afamilia numerosa, e Apice o quinhgo <strong>de</strong> cinco ou <strong>de</strong>z reis que convinha aospo<strong>br</strong>es.Tudo se vendia pelas ruas e at6 os refrescos utilissimos empais<strong>de</strong> tanto calor; ninquem entgo se lem<strong>br</strong>ava do gelo, ningubm <strong>de</strong>sejava ossorvetes do nosso tempo; nb havia confeitarias; mas era certo o popular


aluh, a inocente e refrigerante cerveja do arroz, apregoado nas horas rnaiscalrnosas dos dias <strong>de</strong> verb e em todas as estaq<strong>de</strong>s.0s hurnil<strong>de</strong>s postigos infe<strong>rio</strong>res das casas <strong>de</strong> so<strong>br</strong>ado serviarnpois principalrnente Bs recatadlssirnas chefes <strong>de</strong> farnilia e I s suas escravas paracharnarern os pregoeiros ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> todos esses produtos agrlcolas edo industrial, o ru<strong>de</strong> mas util lssirno aluh, que rnuito aproveitavarn Bs famllias.Em todos esses costumes estarnpava-se o atraso e a ru<strong>de</strong>za da socieda<strong>de</strong>colonial do Rio <strong>de</strong> Janeiro; mas indisputavelrnente, se a civilizaqa"~tivesse poupado alguns <strong>de</strong>les, lirnitando-se a <strong>de</strong>struir os peneiros e as gra<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pau, e outros sernelhantes, o povo po<strong>br</strong>e pelo menos teria rnais facilida<strong>de</strong>na vida.Ponharnos por6rn <strong>de</strong> parte estas indteis rnern6rias do passado, eno passado sigamos apenas os fatos que servern a0 romance que nos propusernosa escrever.Na rua que agora se charna do Hosplcio e que no Oltirno s6culose charnava do Alecrirn, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ponto em que 6 cortada pela Rua da Valaat6 o Carnpo <strong>de</strong> Santana, levantava-se urna casa <strong>de</strong> so<strong>br</strong>ado corn sacadas <strong>de</strong>gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pau e rneia altura e que na rnadrugada <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1766 sernostrava refulgente <strong>de</strong> luz e ruidosa <strong>de</strong> alegria e <strong>de</strong> festanca.Era a casa <strong>de</strong> D. Maria <strong>de</strong>. . ., notabilida<strong>de</strong> ferninina, que porsua forrnusura, sua in<strong>de</strong>pendancia audaciosa, sua natureza ar<strong>de</strong>nte e indornhvel,suas paix<strong>de</strong>s e seus <strong>de</strong>sva<strong>rio</strong>s fhceis <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la at8 ovice-reinado do Marquds do Lavradio, influiu aigurnas vezes mais do que sepo<strong>de</strong> supor no <strong>gov</strong>ern0 da gran<strong>de</strong> cd6nia portuguesa da Arnkrica.Maria <strong>de</strong>. . ., da mais no<strong>br</strong>e estirpe luso-<strong>br</strong>asileira, no<strong>br</strong>e por seusavbs, rica pela opulancia <strong>de</strong> seus pais, tinha direito a preten<strong>de</strong>r esposo darnais alta hierarquia na colBnia portuguesa; o rnais orgulhoso dos no<strong>br</strong>esrnandados ao Brasil seria apenas igual a ela; a natureza Ihe <strong>de</strong>ra o encanto <strong>de</strong>irresistlvel forrnosura; a fortuna sublirnara esse dorn natural corn a condicbda riqueza e da fidalguia da familia.lnfelizrnente a bela rnulher, que ainda se distinguia pelos encantosdo espirito rnais cultivado do que entb era usual no seu sexo, rnentira Beducar$io e aos exernplos dos seus rnaiores, e nodoara urn norne ilustre: a vai-da<strong>de</strong>, o impeto das paixees, o <strong>de</strong>sprezo do santo <strong>de</strong>ver do recato a tornararnfarnosa, corno as Lenclos e as Ma<strong>rio</strong>n'Delorrne, zornbando da reprovacb pdblicae da repugndncia corn que a olhava a socieda<strong>de</strong>.0 prirneiro arnor <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . . foi o segredo da sua perdicb:aos quinze anos <strong>de</strong>ixou-se seduzir por urn rnancebo pouco rnais velho, oupouco rnenos crianca que ela; urn ano tinha jh <strong>de</strong> duraqa"o o seu arnor secre-to e crirninoso, quando foi <strong>de</strong>scoberto pela farnllia que aflitissirna se precipitouem irnpru<strong>de</strong>nte vinganca: o arnante n b foi julgado digno <strong>de</strong> lavar a


mancha pelo casamento; e imediatamente passou a ser preso para assentarpraca por or<strong>de</strong>m do Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, a quem o pai da seduzida dirigiraqueixa particular sob diversos fundamentos que dissimulavam a <strong>de</strong>sonra dafilha.Maria era ar<strong>de</strong>nte, colhrica, arrebatada; sabendo que <strong>de</strong>stino se.preparava ao amante, na"o verteu Idgrimas inirteis nem protestou em va"o notar dom6stico: encerrou-se em seu quarto, vestiu-se com apuro <strong>de</strong> elegdnciaque amava muito por vaidosa, e aproveitando hora oportuna, saiu da casasozinha, arrostando os costumes do tempo, e atrevidamente foi falar ao <strong>gov</strong>ernador,Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la, que a recebeu e ouviu-lhe a hist6ria da suapaixb e da sua .franqueza, e o formal pedido da sua intervenqa"~ para que etase casasse com o mancebo recrutado.0 Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la tinha todos os prejuizos da aristocraciapara nb ace<strong>de</strong>r ao empenho da jovem fidalga seduzida por mancebo <strong>de</strong> humil<strong>de</strong>e <strong>de</strong>sprezada condi~iio; mas admirado da afoiteza e da energia daquelamenina <strong>de</strong>licada, e ainda mais da sua peregrina beleza, assegurou-lhe <strong>de</strong>cididaprote~b atenuadora do ressentimento <strong>de</strong> seus pais.Dentro em pouco tempo o protetor se tornou amante: Maria,repelida pela familia honestissima, teve casa propria, vida reprovada, masluxo e riqueza que ostentava sem corar. Ou fosse que so um irnico amor, oprimeiro, tivesse ela verda<strong>de</strong>iramente sentido, e que pelo infortirnio <strong>de</strong>sseIhe houvesse ficado o coraqb endoi<strong>de</strong>cido, ou fosse que envenenado sangueIhe a<strong>br</strong>asasse a natureza com o fog0 da luxirria, Maria n b soube ser fie1 aamante algum, e a todos atrai~oava menos pela torpeza do interesse, do quepelos <strong>de</strong>li<strong>rio</strong>s do capricho, e pelas inconstincias da sensualida<strong>de</strong>.0 Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la apaixonado e cativo resistiu alguns anosaos <strong>de</strong>satinos da famosa moCa; mas por fim que<strong>br</strong>ou as ca<strong>de</strong>ias que o prendiam,<strong>de</strong>ixando-a por6m rica, e protegida sempre pelo seu favor at6 o dia emque morreu.No vice-reinado do Con<strong>de</strong> da Cunha, Maria foi amante <strong>de</strong> AlexandreCardoso: tinha tomado gosto ao amor do chefe do <strong>gov</strong>ern0 da co18-nia; em falta do vice-rei que era <strong>de</strong> austeros costumes, contentou-se com ooficial-<strong>de</strong>-sala que era quase vice-rei pelo po<strong>de</strong>r da sua influbncia.Na noite das cantatas dos Reis, Alexandre Cardoso e seus companheiros,retirando-se do patio do convent0 da Ajuda <strong>de</strong>pois da inirtil <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>mque haviam feito, tinham-se dirigido B Rua do Alecrim e entrado nacasa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . .


Havia sarau e ceia espllndida que bem se pu<strong>de</strong>ra chamar almoppela hora adiantada da noite; mas na noite dos Reis a mesa nk tinha hora,estava sempre posta e renovada at6 o amanhecer.Apesar <strong>de</strong> sua rn6 reputaqfio, e graCas A sua riqueza, ao seu esplritoe i sua influ0ncia, Maria tinha circulo numeroso e agraddvel, ernbora na"oformado por senhoras <strong>de</strong> classe elevada e <strong>de</strong> educa~a"o escrupulosa. 0s mancebosrnais distintos, rnuitos hornens ricos, e os oficiais dos regimentos daguarniqfio da cida<strong>de</strong>freqiientavam a sua casa, e na"o faltavarn As suas reunibes;por isso mesmo acudiam tarnbhm a estas muitas jovens <strong>de</strong> procedimentoequivoco, e algumas familias sem protetor zeloso, e pouco exigentes e rnelindrosas,ou por <strong>de</strong>pendhcia da bela e rica libertina, ou pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>atrair noivos para as filhas, ou enfim pelas apargncias e exte<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong> <strong>de</strong> boacompanhia, que a elegante pervertida zelava em sua casa.Alexandre Cardoso e seus companheiros entrararn na sala, quandoMaria danqava o rninuete com urn requinte <strong>de</strong> enlevadora e provocantegraCa que nenhuma outra possuia corno ela.Maria contava enta"o vinte e quatro anos e nfio parecia ter vinte;era <strong>de</strong> estatura regular, esbelta, ligeira e urn pouco lasciva, na"o afetada, naturalmentelasciva nos movimentos; seus cabelos erarn louros, seus olhosgran<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> celeste azul, o rosto oval, <strong>br</strong>anco, as faces docemente coradas, onariz pequeno e bem-feito, os l6bios admirdveis <strong>de</strong> suave rubor e nb finosnem <strong>de</strong>masiadamente grossos, bordando pequena boca, escon<strong>de</strong>ndo lindlssimos<strong>de</strong>ntes, e servindo a sorrisos cheios <strong>de</strong> magia; tinha o colo alto e elegante,corno a fronte, o peito encarnado a na"o <strong>de</strong>ixar adivinhar as claviculas,e <strong>de</strong> alvura <strong>de</strong>slum<strong>br</strong>ante, os seios pequenos, a cintura fina, os <strong>br</strong>aqos admirhrveis, as ma"os e os p6s <strong>de</strong> maravilhosa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, e em seus modos e na expressbmobil <strong>de</strong> sua fisionomia certo qu& <strong>de</strong> graqa indizivel, <strong>de</strong> inocenciaque ela nk tinha, <strong>de</strong> malicia que Ihe so<strong>br</strong>ava, <strong>de</strong> contradiqb caprichosa, <strong>de</strong>rnistura do bem que se adora e do ma1 que cativa, <strong>de</strong> anjo cujos p6s se <strong>de</strong>vem


eijar e <strong>de</strong> <strong>de</strong>m6nio a cuja tenta~zo se obe<strong>de</strong>ce B for~a <strong>de</strong> encantamento irresistivel.Maria chegara nessa 6poca ao apogeu da sua formosura e B conscihciaexperiente do po<strong>de</strong>r dos seus enfeiti~adores dotes f lsicos.Sem interromper o seu rninuete ela viu entrar Alexandre Cardosoe em vez <strong>de</strong> saudh-lo corn um sorriso, encrespou passageira e levemente ossupercllios e a fronte, como se um ressentirnento do Bnimo Ihe viesse on<strong>de</strong>arnos supercilios e na fronte; logo por6m serenou e seu rosto foi todo, comopouco antes, espelho <strong>de</strong> bonan~a, e c6u <strong>de</strong> alegria.Acabado o minuete no meio <strong>de</strong> palmas batidas em aplauso, conformeera <strong>de</strong> uso, Maria recebeu as sauda~Bes dos rec6m-chegados, e logo<strong>de</strong>pois conduziu todos os seus convidados para a mesa da ceia que foi longae ruidosamente festejada.Entre os <strong>br</strong>in<strong>de</strong>s que se faziarn, falaram todos dos divertimentosda noite, comparando as diversas socieda<strong>de</strong>s dos cantadores dos Reis disputandoso<strong>br</strong>e o merecimento <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las para o ganho da primazia.Cada qua1 referia os epiddios interessantes ou grotescos que haviaobservado; d Maria, um pouco pensativa, ouvia e na"o falava, e AlexandreCardoso e seus companheiros discorriam so<strong>br</strong>e tudo, guardando por6mreserva acerca do tumulto do pBtio do convent0 da Ajuda, porque nb lhesconvinha propalar o improviso inju<strong>rio</strong>so do poeta que atacara o bispo e ovice-rei antes <strong>de</strong> comunicarem a este o indlito caso.hospeda.- Fa~o um protesto, disse Alexandre Cardoso elevando a voz.- Um protesto?- Sim; contra o sil6ncio obstinado da encantadora fada que nos- Ah! disse Maria, interrompendo-o; s b tantos os que protes-tam contra o oficial-<strong>de</strong>-sala do senhor vice-rei, que bem se Ihe po<strong>de</strong> permitirque ele tamb6m proteste alguma vez.Alexandre Cardoso corou e prosseguiu:- Aqui cada urn <strong>de</strong> nos tern contado o que viu <strong>de</strong> melhor e <strong>de</strong>pior nesta noite <strong>de</strong> folia e <strong>de</strong> divertimentos caracteristicos: que viu, que sabee guarda consigo a bela Maria?. . . Aposto que ela dire o que ningukm disseainda, porque seus lindos olhos v&em sempre mais do que os dos outros coma lut divina que radia neles.- Eu?. . . po<strong>br</strong>e mulher que na"o saiu <strong>de</strong> sua casa, o que eu dissesseagora, vinte bocas jB o t&m repetido.- Fale! fale!- V6s outros que ta"o tar<strong>de</strong> chegastes, sois os que ten<strong>de</strong>s mais acontar; tenente-coronet Alexandre Cardoso, capitb Aires <strong>de</strong> Brito, alferesConstlncio Lessa, v6s todos, que chegastes tb tar<strong>de</strong>, dizei-nos: que aconteceupor ai?. . .


- Responda, quern pergunta.- Posso eu adivinhar?- Como fada que 6.Maria sorriu:- Pois bern, disse ela; ensaiarei urn sortilegio. . .E <strong>de</strong>itando no dice algurnas gotas <strong>de</strong> vinho, fingiu que rnurmuravapalavras cabalisticas, <strong>de</strong>pois tocou corn os IAbios no vinho, e exclarnou:- Vejo longe daqui, e B a v6s que eu vejo, senhores oficiaisrec6rn-chegados!- E entb?- Jogastes a banca at6 as <strong>de</strong>z horas da noite; o senhor tenentecoronelAlexandre Cardoso ganhou rnais <strong>de</strong> mil cruzados; rnau sinal; feliz nojogo, infeliz no arnor.- Sinistro egouro!- Saistes a correr a cida<strong>de</strong> e a visitar os presepes; tenente Gon-qalo Pereira, nb foi <strong>de</strong>cente nem digno que na la<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Santo Antbnioa<strong>br</strong>apsses forp urna rnulher <strong>de</strong> rnantilha: recebeste justo castigo nas risa-das dos teus arnigos, quando <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>indo o rosto da vitirna, encontraste emvez <strong>de</strong> urn fresco sernblante <strong>de</strong> mop, a cara enrugada <strong>de</strong> urna velha.- Ah! urn espigo nos seguiu!. . .- Poupo-vos a rnuito rnais que estou vendo e que pu<strong>de</strong>ra dizer, eagora vos observo na vossa ultima estaqb. . .- On<strong>de</strong>?- HA apenas urna hora, no pAtio do convent0 da Ajuda.0s oficiais comecavarn a perturbar-se.- Ali Alexandre Cardoso estava ernbevecido a contemplar urndos dois li<strong>rio</strong>s. . . feliz no jogo, infeliz no arnor. . . o li<strong>rio</strong> indiferente n bpendia para ele, que perdido e cego na"o viu, nb soube ver, se bern perto paraalgu6rn a furto pendia o li<strong>rio</strong>. . . eu tarnb6m nk sei se houve pendor.. .mas e tb natural. . .Alexandre Cardoso f ingiu sorrir; mas estava confundido.- E saber rnuito e at6 <strong>de</strong>mais! disse o tenente Gonwlo Pereira.- Se eu sou fada! respon<strong>de</strong>u sern olhar o interruptor a soberbarnoqa.Depois continuou:- As freiras davarn motes, e os poetas glosavarn. . .- Basta. . . basta. . .- N k; agora hei <strong>de</strong> ir at6 o firn, e hei <strong>de</strong> dizer-vos o que na"o sabeis,ernbora estivesseis IA, e eu n50 saisse daqui.- Ouqamo-la, disse Alexandre Cardoso, seriarnente.Maria cornpreen<strong>de</strong>u a serieda<strong>de</strong> do oficial-<strong>de</strong>-sala, e sern cons-


trangimento aparente, mediu suas palavras para na"o dizer mais do que Iheconvinha.Uma freira <strong>de</strong>u por fim o mote:IViva o bispo e o vice-rei.\, E um poeta que nb se quis mostrar glosou do meio da multidb,\improvisandocom voz fanhosa uma <strong>de</strong>cima insultuosa que acabou assim:Maldito seja quem dizViva o bispo e o vice-rei.- Ah!. . . exclamou com hipocrita horror a assembleia.- ~ds,no<strong>br</strong>es oficiais, vos atirastes <strong>de</strong> espada em punho contrao poeta audacioso, hduve tumulto, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, ferimentos, contus<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inocentes,e tudo em v50, porque o miste<strong>rio</strong>so improvisador escapou sem serao menos conhecido, e, o que foi ainda pior ...- Acabe. . .- Quando Alexandre Cardoso voltou ao seu posto <strong>de</strong> embevecidacontemplaqa"~, o li<strong>rio</strong> tinha fugido com o poeta. .. feliz no jogo, infelizno amor. . . paciencia!Evi<strong>de</strong>ntemente os ma1 disfarqados ciirmes <strong>de</strong> Maria salam-lhedo coraqb para cair dos ldbios transformados em epigramas pelo ressentimento.Alexandre Cardoso sentiu a natureza dos golpes que so<strong>br</strong>e ele<strong>de</strong>scarregava a terrivel e ciumenta amante; mas dominado pelo <strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> conhecer o <strong>de</strong>sconhecido, aquilo que Maria sem sair <strong>de</strong> casa sabia doque se passara no pAtio do convent0 da Ajuda, mais do que os oficiais Id tinhamestado, disse:- A historia do poeta e do nosso empenho para castigh-lo e exata,confesso-o; mas que 6 que po<strong>de</strong>mos ignorar e que a bela fada adivinha? ...- V6s n5o pu<strong>de</strong>stes saber e eu sei quem foia poeta que improvisoua <strong>de</strong>cima revoltante.. - Quem foi?. .. perguntou Alexandre Cardoso levantando-se.- Uma mulher <strong>de</strong> mantilha.- Nb.. .- Sim; eu nunca minto, nem quando erro, ou me comprometo:o poeta que improvisou a <strong>de</strong>cima foi uma mulher <strong>de</strong> mantilha.- E o seu nome?. ..Maria fez um movimento com o <strong>br</strong>a~o, e tocou no cdlice encantado,que caiu so<strong>br</strong>e a mesa e que<strong>br</strong>ou-se, entornando as gotas <strong>de</strong> vinho.


- Ah! exclamou a phrfida sereia, co<strong>br</strong>indo o rosto corn as mbsmimosas, que o nZo podiam escon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> todo.- 0 nome <strong>de</strong>ssa mulher <strong>de</strong> mantilha. . . fornou a perguntar, alterado,Alexandre Cardoso.- NZo viu que se que<strong>br</strong>ou o copo?. . . respon<strong>de</strong>u Maria; agoraacabou o encanto; n50 adivinho mais, esqueci tudo.Uma hora <strong>de</strong>pois, todos os convidados tinham-se retirado; o 131-timo, Alexandre Cardoso, teimava em <strong>de</strong>morar-se.- Tenho sono, disse-lhe Maria; quero ficar d e dormir.- Maria!- Feliz no jogo, infeliz no amor.. .- N5o jogarei mais, . ,.- NZo me importa que jogues'ou do!. . .- Mas o resto <strong>de</strong>sta noite?. . .- Disse a palavra: 6 um resto. . . e eu rejeito o resto. . .- Maria!. . .- Va sonhar corn o li<strong>rio</strong>.Alexandre Cardoso beijou a mtio gelada da amante ciumenta ecolerica, e retirou-se.


JerBnimo Li<strong>rio</strong> era negociante <strong>de</strong> grosso trhfico, <strong>de</strong> bem merecidafama <strong>de</strong> probida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> austeros costumes; portuguls <strong>de</strong> nascimento emuito po<strong>br</strong>e, viera para o Brasil procurar fortuna; sabendo apenas ler e escrevere as quatro especies <strong>de</strong> aritmhtica, comeqara por varredor do armaz6me arranjador <strong>de</strong> fardos na casa comercial <strong>de</strong> outro portuguls que o recebeu;ativo e fiel, agradou ao amo, que nunca <strong>de</strong>ixou, foi gradualmente subindoat6 primeiro caixeiro <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> oito anos <strong>de</strong> labor e <strong>de</strong> provas; no fim <strong>de</strong>doze anos, chegou a socio com direito B terca parte dos lucros da casa etrls anos <strong>de</strong>pois casou com a filha unica do seu patrb, a qua1 viu pela primeiravez no dia do casamento; ainda viveu algum tempo sob a tutela dosogro e por morte <strong>de</strong>ste, que jh era viuvo, herdou-lhe toda a riqueza e ficouClnico representante da casa.No casamento por aquele mod0 realizado haveria que notar amanifesta~go franca do interesse material, servindo <strong>de</strong> base ou razb exclusivada unitio <strong>de</strong> dois cora~ees, <strong>de</strong> um homem e <strong>de</strong> uma mulher que nb se conheciam;mas no shculo passado eram freqiientes os casamentos feitos assim,e nzo havia en60 quem se lem<strong>br</strong>asse <strong>de</strong> censurar essa pratica absurda emuitas vezes fatal; especialmente na no<strong>br</strong>eza e no comdrcio rico a autorida<strong>de</strong>dos pais nb queria em tal ponto reconhecer limites, e amesquinhava at6o extremo a condiq7o da mulher que, aliBs era educada com preciso cuidadopara nb revoltar-se contra a,inaudita prepotlncia; basta lem<strong>br</strong>ar que era<strong>de</strong> regra que as filhas nzo apren<strong>de</strong>ssem a ler e ainda menos a escrever.Se os costumes da Bpoca escusavam a JerBnimo Li<strong>rio</strong> o se ter sujeitadoao casamento com uma noiva a quem nunca tinha visto, nada maishi5 no seu proce<strong>de</strong>r que possa <strong>de</strong>smerecl-lo. E certo que ainda hoje, Bs vezesa inveja, Bs vezes a irreflexzo ou a murmura~b in<strong>de</strong>sculphvel, atiram contraa opullncia <strong>de</strong> quem 'comepra paup6rrimo a lem<strong>br</strong>an~a <strong>de</strong> seus ru<strong>de</strong>s e abatidosserviws no principio da mais afadigosa vida; eis ai o que 6 <strong>de</strong>primiraquilo mesmo que dB direito, que o<strong>br</strong>iga o elogio! Nada mais belo nem mais


no<strong>br</strong>e do que a riqueza f ilha do trabalho e da economia. 0 homem que assimenriquece, anda e <strong>de</strong>ve andar <strong>de</strong> cabeqa levantada, e e digno <strong>de</strong> servir <strong>de</strong>exemplo aos outros homens.Jer6nimo foi um esposo mo<strong>de</strong>lo para sua <strong>de</strong>dica~b e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>honestksima e d6cil senhora, com quem se casara; viveu feliz e teve <strong>de</strong> suaunik duas filhas: Irene e In&; <strong>de</strong>ra B primeira o nome <strong>de</strong> sua mze, B segundao nome <strong>de</strong> sua esposa; amou-as extremosamente, mas sem comprometercom os carinhos a sua gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pai; a ma"e educou as filhas no sacrh<strong>rio</strong>do lar domestico; ensinou-lhes quanto sabia, a rezar, a coser, e a bordar, atocar o cravo e a guitarra, a danpr o minuete, e danps do tempo, a preparar<strong>de</strong>licadissimos doces, a <strong>gov</strong>ernar a casa e nada mais; nfio sabendo ler,<strong>de</strong>ixou-as na mesma triste ignorlncia.0 pai foi contando os anos, e medindo a altura e o <strong>de</strong>senvolvimentodas meninas, e do<strong>br</strong>ando <strong>de</strong> cuidados logo que as sentiu chegadas Bida<strong>de</strong> em que a natureza revela B jovem mulher uma sirbita revoluq60 na vida,embora a inocgncia nk compreenda nem explique o miste<strong>rio</strong>so segredo,pensou no futuro das filhas, e em pru<strong>de</strong>nte sili?ncio estudou sollcito e perseveranteos costumes e o procedimento dos seus caixeiros, e dos rnais estimadosfez logo a um s6cio em pequena parte dos lucros, a outro guarda-livrosda sua casa comercial.JerBnimo tinha o seu armazbm na Rua Direita, on<strong>de</strong> passava osdias, dirigindo as transac$es; chegava j6 almopdo, Bs oito horas da manha";ao meio-dia em ponto, jantava d ou com negociantes e amigos, que Ihe aceitavama mesa; todos os caixeiros e empregados da casa comercial jantavamB parte; Bs duas horas da tar<strong>de</strong> comeqavam a arrefecer os neg6cios; das trgs emdiante, s6 os havia para os armazbns <strong>de</strong> retalho, e entb retirava-se o negociantepara o seio <strong>de</strong> sua famllia, que morava em uma gran<strong>de</strong> checara daGamboa.Por mais que eu me exponha a nb me perdoarem certas digressgles,teimarei nelas, porque s k indispensdveis para o conhecimento do estadoe dos costumes da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no sbculo passado.A retirada didria e constante <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong> para passar anoite na sua chacara da Gamboa, on<strong>de</strong> fazia morar a famllia, era uma das rarasexce~<strong>de</strong>s que em semelhante prdtica se observava na cida<strong>de</strong>.E verda<strong>de</strong> que muitos negociantes e homens ricos possulamchacaras nas vizinhanps do outeiro da Gloria, no caminho <strong>de</strong>pois chamadoRua <strong>de</strong> Mata-Cavalos, e agora RIM do Riachuelo, em mem<strong>br</strong>ia da mais glo<strong>rio</strong>savit6ria e tambbm na Gamboa e no Saco do Alferes; essas chhcaras, porbm,serviam s6 para o pzo dos domingos e.dos dias santificados, que eram muitosate perto da meta<strong>de</strong> do sbculo atual. Entb as famllias faziam os seus farneis,convidavam os amigos e na tar<strong>de</strong>'da vespera dos dias sem trabalho, 16iam para Mata-Cavalos ou para a Gamboa, como atualmente se vai para Pe-


tropolis e para Nova Friburgo. Aqueles lugares eram solidBes, retiros ma1 povoados,para on<strong>de</strong> n50 havia ruas, e apenas azinhagas dificeis, e tinham fama<strong>de</strong> perigosos pela lem<strong>br</strong>an~a dos roubos e assassinatos que algumas vezesali fhcil e impunemente se davam.Bem poucos, bem raros eram aqueles que tinham suas familiasmorando em chacaras. e entre esses contava-se JerBnimo, que provavelmente,como os outros, assim procedia pelo justo receio da insalu<strong>br</strong>ida<strong>de</strong> e dasmoltistias contagiosas que com freqiilncia eram o flagelo da cida<strong>de</strong>.Duas causas principais contribulam para empestar a capital doBrasil: a vala que <strong>de</strong>u ta"o feio nome B rua que apenas ultimamente recebeu o<strong>de</strong> Uruguaiana, em lem<strong>br</strong>anca <strong>de</strong> outra importante vitoria, era vala aberta,imunda, que servia para escoamento das Aguas e para <strong>de</strong>spejos, sendo,portanto, foco perene <strong>de</strong> infecees.0 trhfico <strong>de</strong> africanos escravos ja era entb muito importante; osmiseros filhos d'Africa, guardados em multidb, em <strong>de</strong>positos, <strong>de</strong>ntro da cida<strong>de</strong>,propagavam nela suas moltistias, e, sem o pensar, vingavam-se da escravidiio,envenenando os senhores com os germes da peste que espalhavam.0 Con<strong>de</strong> da Cunha acertara <strong>de</strong> combater aquela primeira causa<strong>de</strong> infecc<strong>de</strong>s mortiferas, mandando co<strong>br</strong>ir a vala sinistra com gran<strong>de</strong>s lajes,melhoramento incontesthvel que a ele se <strong>de</strong>ve, embora realizado a alto eviolento pagar <strong>de</strong> sacrif icios pelos particulares, cujos escravos foram tomadosB forca para servicos <strong>de</strong>ssa, como <strong>de</strong> outras o<strong>br</strong>as.Continuava, por6m, ainda a infludncia maligna, mortifera, dos<strong>de</strong>p6sitos <strong>de</strong> escravos africanos no centro da cida<strong>de</strong>, e, pois que o podia, Jer6nimoLi<strong>rio</strong> praticava pru<strong>de</strong>ntemente, conservando a famllia longe dos focos<strong>de</strong> molestias contagiosas.Por isso, sujeitava-se ele a ir todas as tar<strong>de</strong>s, e algumas vezes 3noite, para a chhcara da Gamboa, marchando a cavalo, levando boas pistolase seguido <strong>de</strong> dois pajens prontos para <strong>de</strong>fendl-lo em algum encontro arriscado,por uma azinhaga quase sempre <strong>de</strong>serta, que poucos anos <strong>de</strong>pois se alargousem corrigir sua tortuosida<strong>de</strong> para dar lugar B rua que se charnou do Valongoat6 o ano <strong>de</strong> 1849, em que tomou o nome <strong>de</strong> Rua da lmperatriz emlem<strong>br</strong>anca da passagem que fez por ela, apos o seu <strong>de</strong>sembarque na capitaldo Impb<strong>rio</strong>, a virtuosa senhora que e a augusta esposa do atual lmperadordo Brasil.A azinhaga que dava caminho para a Gamboa, Saco do Alferes eoutros pontos, muito pouco povoados, era, como dissemos, suspeita <strong>de</strong>maus encontros, e dada a hipotese <strong>de</strong> algum caso sinistro, era inlitil gritarali - ah! quem <strong>de</strong>l-rei! - pois que n50 havia socorro possivel da autorida<strong>de</strong>naqueles confins solitaries do Campo,do Rosa<strong>rio</strong>; em tais apertos, cada qua1<strong>de</strong>via contar exclusivamente com os seus prop<strong>rio</strong>s recursos.


Jer6nimo Li<strong>rio</strong> sabia bem que a sua condi~a"o <strong>de</strong> negociante ricoera um perigo <strong>de</strong>mais, e, portanto, nZo se esquecia nunca <strong>de</strong> renovar as escovasdas suas pistolas e <strong>de</strong> se fazer acompanhar sempre <strong>de</strong> dois e a noite, portres ou quatro pajens escravos que mereciam a sua plena confianca, por valentese <strong>de</strong>dicados.


lrene contava <strong>de</strong>zessete anos. lnds ia fazer <strong>de</strong>zesseis e, emboraresplen<strong>de</strong>ssem com todo o viqo da mocida<strong>de</strong>, que tiio doce se ostenta sob ainfluiincia do nosso clima, eram ambas inocentes e puras, como os amores dainfincia: duas avezinhas irma"s nascidas no mesmo ninho, criadas presas, masno meio <strong>de</strong> mil <strong>de</strong>svelos na mesma gaiola, tinham asas para voar, e n b conheciam,nem sabiam <strong>de</strong>sejar o espaqo; eram lindas com seus longos cabelospretos, suas frontes lisas e altas, sua tez moreno-clara, e com a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za ejustas proporees <strong>de</strong> seus corpos esbeltos; ambas se pareciam muito: Irene,porem, tinha os olhos pardos e <strong>de</strong> suavissimo <strong>br</strong>ilho, e a cor um pouco menosmorena que lnss, cujos olhos eram negros, maiores e mais ar<strong>de</strong>ntes, alem<strong>de</strong> que esta lastimava-se <strong>de</strong> um bucozinho mimoso que Ihe ornava o IAbio supe<strong>rio</strong>r.lrene era um pouco menos alegre <strong>de</strong> gdnio, 11-16s mais viva e cu<strong>rio</strong>sa;qualquer das duas, muito acanhadas diante <strong>de</strong> estranhos, amando com temoro pai, com expansZo a expansiva mSe e com enlevo indizlvel uma B outra:dirleis duas betas flores abertas A luz da mesma aurora em dois pedlinculosunidos no mesmo ramo.JerBnimo Ll<strong>rio</strong> e sua esposa guardavam no retiro dom6stico os doisbelos frutos <strong>de</strong> sua uniSo. S6 os amigos intimos e suas fam llias eram admitidosA companhia das duas meninas; fora <strong>de</strong>ssas relaqBes prediletas e escrupulosamenteescolhidas a muralha do zelo <strong>de</strong>fendia lrene e Inks a toda equalquer socieda<strong>de</strong>. Se algum homem velho ou moqo ia passar um domingoou dia santificado na chhcara da Gamboa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que niio era dos excetuadospela amiza<strong>de</strong>, lrene e lnds nZo se mostravam nem A mesa do jantar.Todavia, muitas vezes por santo <strong>de</strong>ver, e algumas por nothvel contradiqiioentre esses costumes <strong>de</strong> clausura domestica e os costumes <strong>de</strong> certosfolguedos tradicionais, Jer6nimo Ll<strong>rio</strong> levava a mulher e as filhas, on<strong>de</strong> amultidb concorria.Par santo <strong>de</strong>ver, em todos 0s domingos e dias santificados, a famllia


Ll<strong>rio</strong>, embarcando em suas ca<strong>de</strong>irinhas que eram levadas aos om<strong>br</strong>os <strong>de</strong> escravospossantes, trajando v6stia e cal~as <strong>br</strong>ancas, mas com os p6s <strong>de</strong>scal~os,<strong>de</strong>scia A porta da lgreja da Matriz da par6quia do Sacramento para assistir aosagrado sacriflcio da Missa, e al6m do cumprimento do preceito do <strong>de</strong>cilogo,JerBnimo concorria, com sua esposa e filhas, Bs gran<strong>de</strong>s solenida<strong>de</strong>s religiosas,e a todas as procissties, em que o culto cat6lico se ostentava nas ruas,nem sempre com proveito real da religiiio.E tambem, por obedikncia ao impb<strong>rio</strong> tradicional dos costumes, asduas meninas, sistematicamente clausuradas, eram no entanto vistas, olhadase admiradas atraves <strong>de</strong> seus v6us, que muitas vezes cediam ao lmpeto dacu<strong>rio</strong>sida<strong>de</strong>, em divertimentos profanos e pljblicos, como os presepes dafesta do Natal, a serra~zo da velha, as corridas <strong>de</strong> touros e outros, que, porheranqa do passado, se usavamno s6culo d6cimo-oitavo.Assim, pois, JerBnimo, contraditoriamente, escondia as filhas em casa,e as mostrava nas lgrejas e nos gran<strong>de</strong>s espeticulos pljblicos.0s v6us transparentes e <strong>de</strong> finissima renda, ma1 po<strong>de</strong>m eclipsar a beleza,e tanto mais que o sopro <strong>de</strong> uma aragem traiqoeira, aproveitando um <strong>de</strong>scuidofeliz, enrola ou levanta o v6u, e patenteia o rosto que se reserva eprocura ocultar-se na som<strong>br</strong>a.A lin<strong>de</strong>za e as graqas naturais das duas filhas <strong>de</strong> Jer6nimo Ll<strong>rio</strong> eram<strong>de</strong>s<strong>de</strong> algum tempo geralmente conhecidas e apregoadas no Rio <strong>de</strong> Janeiro,e, como ji dissemos, 0 POVO, ou antes primeiro os mancebos entusiastas e<strong>de</strong>pois todos adotaram a <strong>de</strong>nomina~zo dada por algum apaixonado ou sipplesadmirador do belo As duas meninas, que foram conhecidas pelo nomepo6tico - os dois Il<strong>rio</strong>s.lrene e lnbs nb eram <strong>br</strong>ancas, como o li<strong>rio</strong>; mas a <strong>de</strong>nomina~iioou amorosa alcunha fizera do nome da familia um nome <strong>de</strong> flores.No lar domestic0 eram outros impetos ou nomes familiares dadosi s meninas ou pelos pais ou pelas escravas: a lrene chamavam nhanha",diminutivo feminino que quer dizer filha do senhor, a Inks, que recebera nobatismo o nome <strong>de</strong> sua mk, a quem osescravos tratavam por sinhi, corrut$iodo nome senhora - chamavam sinhazinha, que, como se vk, 6 o diminutivo<strong>de</strong> sinhi.Tenho quase a certeza <strong>de</strong> que hoje haveri <strong>de</strong> so<strong>br</strong>a quem mecensure por estas explica~Bes do que todos sabem, visto como ainda atualmenteexiste o cancro da escravida"~, ainda hi populaq50 escrava, e portanto,ainda ha tambbm nas familias - nhanhb e sinhazinhas, hi senhores pais <strong>de</strong>- nhonh6s e sinhis, ou senhoras mzes <strong>de</strong> - sinhazinhas; mas no seculo vig6-simo os romancistas historiadores, que Go os professores da hist6ria do povo,ha"o <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer estes e outros esclarecimentos da vida intima das familiasdo nosso tempo.E uma vez que tocamos neste assunto, que parece mais que


muito insignificante e que por certo o nZo 6, <strong>de</strong>ixem-me escreverluma pAginaalheia ao romance, e toda reveladora dos costumes domesticos da antigacol6nia e ainda do nosso tempo.0 nhonhb, a nhanha" e a sinhazinha, os filhos e as filhas dos senhorese das sinhas ou senhoras s b <strong>de</strong> ordina<strong>rio</strong> elos <strong>de</strong> amor que pren<strong>de</strong>m,como eram e prendiam, alguns escravos aos senhores e fontes <strong>de</strong> reconhecimentodos senhores que aproveitava aos escravos.Aleitados As vezes por escravas, o filho e a filha do senhor, onhonh6 e a nhanha" e a sinhazinha eram e sa"o os protetores <strong>de</strong> suas amas <strong>de</strong>leite, que frequentemente por esse servico recebiam e recebem a sua emancipaqa"o,merecendo ainda <strong>de</strong>pois continuados benef icios.0 nhonhb, a nhznhz, a sinhazinha t6m nos escravos e escravas <strong>de</strong>sua ida<strong>de</strong> companheiros e s6cios nos <strong>br</strong>incog e travessuras da infbncia, esabem ama-10s entzo, e protegClos <strong>de</strong>pois, tornando-se providdncias <strong>de</strong>sses<strong>de</strong>sgra~ados pela escravidb.0 nhonhb, a nhanha", a sinhazinha sa"o 0s anjos <strong>de</strong> compaixk e<strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, que impaem o seu celeste veto <strong>de</strong> legrimas aos castigos que seuspais querem impor aos escravos; sa"o 0s agentes do bem, e os pais os <strong>de</strong>ixamser, e se aplau<strong>de</strong>m <strong>de</strong> que eles o sejam, e exageram furores fingidos e <strong>de</strong>sarmadospor aquela angelica influencia, para tambem exagerar a influbncia dosfilhos, e a po<strong>de</strong>rosa e santa intervenqb <strong>de</strong>stes a favor daqueles infelizes.0 nhonhb, a nhanha", a sinhazinha em casa <strong>de</strong> seus pais significamalegria da familia, patronagem dos escravos, perda"o <strong>de</strong> castigos, emancipaca"opara um ou outro, e esperanqa para muitos <strong>de</strong>sses miseros con<strong>de</strong>nados.0 nhonh6 e o travesso que assegura impunida<strong>de</strong> aos cumplices; a nhanha"e quem as vezes acalenta em seus <strong>br</strong>acos a filha ou o filho da escrava <strong>de</strong>sua predileca"~: o nhonh6, a nhanha", a sinhazinha sa"o quase sempre amadospelos escravos da casa.Cada escravo traz ao nhonh6 o passarinho que apanhou no laco,B nhanha" urna fruta e uma flor silvestre, um ninho <strong>de</strong> beija-flores, pombinhas-rolasa criar, o pouco, que e muito, porque e tudo quanto ele po<strong>de</strong> dar.E essa afeica"~ que alguns escravos tributavam aos senhores mocosa quem tinham visto nascer e crescer, era (como ainda se observa) talvezo unico sentimento generoso contrastador do odio que todos os escravosnaturalmente votam aos senhores.


A fama da beleza dos dois li<strong>rio</strong>s tinha chegado aos ouvidos <strong>de</strong>Alexandre Cardoso, que em <strong>br</strong>eve mais <strong>de</strong> uma vez, pelos prop<strong>rio</strong>s olhos, seconvenceu da verda<strong>de</strong> que todas as vozes proclamavam; impressionou-seprincipalmente da graw e dos encantos <strong>de</strong> Ings, e amando-a ou presumindoamh-la, o sedutor costumeiro e impune planejou essa nova e dif icil conquista.As duas meninas tinham aprendido que niio lhes era licito nasigrejas e nos espethculos publicos, olhar com atenc.50 para mancebo algume ou obe<strong>de</strong>ciam B risca a exageradamente austera liciio, ou Alexandre Cardosoapesar <strong>de</strong> seus dotes naturais e do seu bonito uniforme militar, niio conseguia<strong>de</strong>las a gloria almejada do mais furtivo reparo.Jer6nim0, ancizo venerando por suas virtu<strong>de</strong>s, e negociante <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>raciio pela sua riqueza, na"o era homem contra cuja familiase tentasse escandalosa violencia ofensiva da honra.0 leiio fez-se raposa: para as diversas o<strong>br</strong>as <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> ruas,<strong>de</strong> melhoramento da Vala, f undaca"o do arsenal junto ao monte <strong>de</strong> Sb Bento,reconstrucb e aumento <strong>de</strong> fortalezas, edificaciio <strong>de</strong> armazens para guar-da <strong>de</strong> polvora que se retirou da cida<strong>de</strong>, o vice-rei mandava pren<strong>de</strong>r homens'1.bem ou ma1 <strong>de</strong>clarados vadios, e escravos apanhados nas ruas, e os empregavanaqueles trabalhos, alem <strong>de</strong> pedir, o que era exigir e mandar, o concursodos negociantes e proprieta<strong>rio</strong>s em tributos <strong>de</strong> materiais ou <strong>de</strong> dinheiro quese recebiam como volunta<strong>rio</strong>s donativos.Provando a ma fortuna dos seus companheiros do com<strong>br</strong>cio edos proprieta<strong>rio</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1763 ate 1765, Jer6nimo notou que a comecar dasemana santa <strong>de</strong>sse ultimo ano, era ele poupado Bs costumadas exiggncias earbitrarieda<strong>de</strong>s do <strong>gov</strong>erno; n.50 lhe pediam mais donativos, e nenhum dosseus caixeiros, como nenhum dos seus escravos era agarrado para o servicodas o<strong>br</strong>as do rei; o no<strong>br</strong>e ancigo, sem explicar o motivo do seu ressentimento,sem falar e menos queixar-se em silgncio contra a exceca"o obsequiosa, e


para as o<strong>br</strong>as em andamento e a cada nova o<strong>br</strong>a do <strong>gov</strong>ern0 mandou o do<strong>br</strong>odos donativos que <strong>de</strong> ordini<strong>rio</strong> fazia, e o do<strong>br</strong>o do maior numero <strong>de</strong> escravosque B forp Ihe haviam tomado para aqueles 011 outros trabalhos nos trdsprimeiros anos.Poucos meses <strong>de</strong>pois, em um d~a pren<strong>de</strong>ram quatro escravos <strong>de</strong>JerBnimo para os trabalhos publicos; mas logo <strong>de</strong>pois, no mesmo dia, doissoldados acompanharam os escravos A casa comercial do negociante, aquemos entragaram, com o seguinte bilhete:"0 senhor Vice-Rei con<strong>de</strong>na como injusta a prisb <strong>de</strong>stes escravosdo mais <strong>de</strong>dicado vassal0 <strong>de</strong>l-Rei nosso Senhor na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sa"o Sebastia"odo Rio <strong>de</strong> Janeiro. - Alexandre Cardoso <strong>de</strong> Meneses, oficial-<strong>de</strong>-sala."Na manha" seguinte, JerBnimo enviou oito trabalhadores para aso<strong>br</strong>as do rei.Passados alguns dias, um mancebo, afilhado <strong>de</strong> batismo <strong>de</strong> Jeranimo,foi recrutado e no fim <strong>de</strong> algumas horas levou ao negociante esteoutro bilhete:"A b6nMo do padrinho benemerito poupa este excelente soldadoao tribunal da guerra. - Alexandre Cardoso."Algumas horas <strong>de</strong>pois, JerBnimo tinha, a elevado preco, conseguidocontratar para o servico do exerciro dois portugueses recem-chegadosdo reino, e os mandava diretamente a Alexandre Cardoso.0 oficial-<strong>de</strong>-sala, vencido na luta dos favores, recorreu a outromeio: obteve do vice-rei or<strong>de</strong>m para uma visita oficial <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento aJerdnimo, e na manha" <strong>de</strong> um dorningo, apresentou-se na chAcara da Gamboa,para <strong>de</strong>sempenhar a comissa"~, e foi recebido com respeito e consi<strong>de</strong>rack,cercado <strong>de</strong> obst?quios, instado, como era <strong>de</strong> regra inalterAvel, para aceitar ojantar, a que polidarnente se recusou, retirando-se sem ter visto nem amulher, nem as filhas do negociante.JerBnimo foi, na manha" seguinte, cortejar o Vice-Rei Con<strong>de</strong> daCunha, e visitar Alexandre Cardoso, a quem convidou para jantar em suachAcara em dia aprazado: <strong>de</strong>u-lhe com efeito o mais rico banquete a queconcorreram todos os homens notaveis por sua posi~b oficial, no<strong>br</strong>eza eriqueza da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro; mas faltaram A mesa a mulher e as filhasdo zeloso e austero ancib.Alexandre Cardoso voltou trds vezes A chdcara da Gamboa, e alitrds vezes aceitou o jantar <strong>de</strong> Jeranimo: nem uma si, vez, porem, mereceuser recebido na socieda<strong>de</strong> da famllia; a senhora In6s e suas filhas nunca Iheapareceram.Naquele tempo, semelhante reserva n30 era motivo <strong>de</strong> queixaou <strong>de</strong> reparo; porque a abstenc30 da presenca das senhoras no recebimento enas honras que se faziam ao hospe<strong>de</strong>, entrava nos costumes <strong>de</strong> muitas casas,mas evi<strong>de</strong>ntemente essa priitica anunciava ao hospe<strong>de</strong> que ele era um ho-


mem obsequiado, talvez bem aceito pelo dono da casa, nb era, porem aindaum amigo, cavalheiro da confianp intima da famllia.Alexandre Cardoso, inteligente e atilado, compreen<strong>de</strong>u o procedimentodo pai d/e Inds; adivinhou que JerBnimo pressentira o seu amor ou asua paix5o con<strong>de</strong>navel e que nem Ihe aprovava o amor honesto, nem tolerariaculto menos respeitoso a qualquer <strong>de</strong> suas duas filhas; simulou, porim, <strong>de</strong>s--coftheeer a contrarieda<strong>de</strong>, e, cultivando suas relaq6es com o no<strong>br</strong>e velho, tornouimpossivel urn rompimento, esmerando-se em escrupulosas <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas.A oposiqgo, os obstaculos, a r%sistdncia produziram seus naturaisresultados: Alexandre Cardoso amou ou <strong>de</strong>sejou mil vezes mais ar<strong>de</strong>ntementeI nds e por l nds sacr if icar ia tudo.Arnante feliz <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . ., Alexandre Cardoso, preso aindanos laqos <strong>de</strong>ssa encantadora sereia, vaidoso da sua posse muito invejada, massaciada <strong>de</strong> gozos impuros, nb hesitaria em esquecer a V~nus da inconstdnciae da libertinagem pela flor mimosa, clndida e rescen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> inocdncia e <strong>de</strong>pureza.Na noite dos Reis, em 1766, ainda Alexandre Cardoso contemplarainutilmente e sem merecer ao menos passageiro olhar, o lindo rosto e af igura graciosa <strong>de</strong> Inds.0 afortunado sedutor <strong>de</strong> vinte miseras vitimas comecava a irri-tar-se contra a isen~a"o e fria indiferen~a da filha <strong>de</strong> Jerbnimo.Talvez que essa irrita~k houvesse contribuido para o impeto <strong>de</strong>furor oficial que fizera Alexandre Cardoso arrancar da espada e acometer<strong>de</strong>sastradamente a multidb em cujo seio se escondia o poeta improvisadorda <strong>de</strong>cima terrivel.E para mais vivo incitamento da paixgo <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, aciumenta Maria Ihe lanqara no cora~go veneno semelhante ao que a estavaa<strong>br</strong>asando, dizendo-lhe i mesa da ceia festiva: "feliz no jogo, infeliz noamor. . ." 0 li<strong>rio</strong> indiferente na"o pendia para ele, que, perdido e cego, ntioviu, n50 soube ver, se bem perto, para algu6m a furto, pendia o li<strong>rio</strong>. . .


Alexandre Cardoso saira da casa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . . quando a auroravinha ja rompendo; parecia, pois, natural, que a bela mulher tivesse sonoe quisesse dormir, como dissera, ao <strong>de</strong>spedi-lo seca e enregeladamente.Todavia, apenas a porta da rua se fechou so<strong>br</strong>e o oficial-<strong>de</strong>-salado vice-rei, Maria, que se <strong>de</strong>ixara ficar sentada, voltou os olhos para o corredorque se estendia ate A casa <strong>de</strong> jantar, e para o qua1 a<strong>br</strong>ia uma porta cadaum dos aposentos inte<strong>rio</strong>res do so<strong>br</strong>ado, e poucos momentos <strong>de</strong>pois apareceudiante <strong>de</strong>la, e foi sentar-se em uma ca<strong>de</strong>ira fronteira da sua, um bonitomancebo que certamente ainda n b contava trinta anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.Era um homem <strong>de</strong> estatura regular e tb bem feito <strong>de</strong> formas,como <strong>de</strong>sejaria s&-lo uma mulher; tinha os cabelos pretos, finos e crespos,e os olhos tb negros e belos, como eram belos e <strong>br</strong>ancos os <strong>de</strong>ntes; o rostooval ostentava encantos e graqas <strong>de</strong>mais para o seu sexo; longe <strong>de</strong> ser um tipo<strong>de</strong> beleza varonil, dir-se-ia um err0 da natureza que Ihe <strong>de</strong>ra formosurafeminina e sexo masculino.- Maria, disse ele seriamente; n5o me sujeitarei segunda vez a situaqbta"o mesquinha e aviltante!Maria pareceu n b t6-lo ouvido, porque nZo lhe respon<strong>de</strong>u; maspergpntou-lhe:- Angelo, sabes jogar?. . .Tambem Ange~o na"o respon<strong>de</strong>u A pergunta <strong>de</strong> Maria, e continuou,insistindo no seu protesto.- Por que excluir-me da sala e da mesa dos teus convidados eimpor-me essa cruel prisb <strong>de</strong>duasou trb horas em um quarto retirado, quenem ao menos e o do teu leito!. . . Envergonhas-te da minha companhia, oupensas que me causam medo os teus amigos <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong>s e espadas?. . .Maria tornou-the:- Ange~o, sabes jogar a banca?. . .0 mancebo levantou-se colerico:


- E <strong>de</strong>mais!. . . exclamou.- Senta-te e ouve, tornou-lhe Maria com voz impe<strong>rio</strong>sa.Ange~o sentou-se.- Deixei-te naquele quarto, porque me convinha que na"o te vissemhoje em minha casa: muito me serviste hoje; mas se te encontrassemaqui, na"o po<strong>de</strong>rias servir-me amanha"; pois adivinhariam em ti o amigo, queha tempo me pds ao fato <strong>de</strong> quanto se passou no paitio do convent0 daAjuda.AngeIo curvou a cabeqa e disse:- Entendo: pensaste bem em ti mesma, zelando o teu espigo.Maria encrespou os supercilios, e falou em tom severo:- Tens vinte e sete anos, AngeIo, e aos vinte e cinco, na ida<strong>de</strong>em que o homem <strong>de</strong>ve assumir uma posi~go na socieda<strong>de</strong>, eras o filho mimoso<strong>de</strong> pais sem fortuna, um po<strong>br</strong>e moqo sem oficio, sem habito do trabalho,e portanto um con<strong>de</strong>nado As provaq6es dos <strong>de</strong>svalidos; eu te encontrei, tedistingui, e te amei porque eras e 6s belo; fiz por ti o que teus pais nb po<strong>de</strong>riamfazer.- Mas eu tambem te amei, Marial-/- E o amor e fog0 que se apaga.. .- 0 teu. . .- Pois seja assim, o meu: arrefecido o meu amor, nem por issote faltou minha proteqa"~; <strong>de</strong> amante furtiva ou ma1 encoberta, eu me torneitua amiga manifesta; <strong>de</strong>i-te um emprego que te assegwa posiqb mediocre,mas suficiente para a vida do homem mo<strong>de</strong>sto, e na"o poupei nem poupo favoresque te facilitem aparhcias <strong>de</strong> abastanqa que n b possuis.- Lanqas-me em rosto os benef icios, Maria?- Ngo; somente lem<strong>br</strong>o os fundamentos da gratidzo que tenhoexigido e exijo ainda.- E po<strong>de</strong>rias julgar-me ingrato?- Tambkm ni5o: ainda precisas muito <strong>de</strong> m im para que tzo cedome voltasses as costas. Lem<strong>br</strong>ei-te o casamento com a filha mais nova do negocianteJerdnimo, que te tornaria esposo <strong>de</strong> uma linda mop e her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> fortuna. ..- Inspiraqgo do ciume. ..- Ja o neguei? 5 certo, inspiraqa"~do ciume; mas inspiraqb quete po<strong>de</strong> aproveitar; prometi auxiliar-te neste empenho, e sabes que o tenhofeito; que mais quererias que fizesse por ti a amante <strong>de</strong> dois anos, que saciadado teu amor, hoje faz muito ainda, amparando-te, protegendo-te com asua amiza<strong>de</strong>?- Tua franqueza 6 cruel e <strong>de</strong>salmada!. . .- Que importa? Eu sou melhor do que as que fingem e mentem;eu ngo te <strong>de</strong>vo nada, Angelo; porque paguei-te o que me <strong>de</strong>ste; e tu me <strong>de</strong>-I t


ves muito, porque nZo te pedindo mais, e quando <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> mais me quereriasdar, ainda te dou e te prometo; eu, porem, preciso <strong>de</strong> ti contra AlexandreCardoso, <strong>de</strong> quem jurei vingar-me; nada mais claro e nada mais franco;entendamo-nos pois; queres continuar a servir-me?. ..Angelo respon<strong>de</strong>u submisso:- Estou pronto.- Ja te fiz rival <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, aconselhando-te o amore o casamento com In& Ll<strong>rio</strong>: neste empenho tu me serves e eu te sirvo;agora tenho outro.- Oual?- 0 jogo.- 0 jogo?- Sabes jogar?- Conhe~o as cartas do baralho, e mais ou menos compreendo0s jogos.- Jogas a banca?- Mal.- E preciso que a saibas jogar honesta e <strong>de</strong>sonestamente; porqueeu quero que ganhes o dinheiro <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.- 0 famoso jogador?!!- Serei tua dcia nas perdas e lucros e tom0 B minha conta ocapital necessh<strong>rio</strong>; entrarei com cinco mil cruzados para a socieda<strong>de</strong>, e tu coma tua simples participa~a"~ no jogo, que muitas vezes se dara em minha casa.- Aceito a proposta sem modifica~b alguma, disse Angelo.- Eu, porem, exijo mais alguma coisa, tornou Maria.- 0 qu6?. . .- Que ganhes sempre a Alexandre Cardoso.- lsso <strong>de</strong>sejo eu; mas o meio?. . .- Ange~o, tens as mfios finas, e a sutileza das organizacoes <strong>de</strong>licadas;tudo 6 facil no jogo, a quem so<strong>br</strong>am essas condi~6es: iras amanha",quero dizer, hoje mesmo, ao outeiro da Gloria, ensinar-te-b ali a casa dovelho Plac6ncio Gue<strong>de</strong>s, o mais hgbil jogador, adivinhador e empalmador <strong>de</strong>cartas, que a fama apregoa; 6 um velho que <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> jogar somente porquetodos se esquivam <strong>de</strong> o fazer com ele; entregar-lhe-as um bilhete <strong>de</strong> recomenda~bque vou escrever-lhe; durante quinze dias ou um mb praticarascom Plachcio Gue<strong>de</strong>s a ganhar sempre ao jogo, e especialmente ao jog0 dabanca, e quando o velho Placdncio te disser: - "po<strong>de</strong>s jogar" - tu, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>comigo, que fornecerei o dinheiro, jogaras sempre. contra AlexandreCardoso.Angela na"o respondia.- Explique-me claramente, disse Maria; cumpre-te agora respon<strong>de</strong>r;queres ou na"o?. . . aceitas ou na"o?. . .


- Quero e aceito, respon<strong>de</strong>u enfim, so<strong>br</strong>iamente, o mancebo.Maria levantou-se, e a<strong>br</strong>indo uma rica escrivaninha <strong>de</strong> jacarand8,escreveu algumas linhas em uma folha <strong>de</strong> papel, que do<strong>br</strong>ou e veio a entregara Ange~o.- Amanha" te apresentaris com este bilhete ao velho Placencio.Agora <strong>de</strong>ixa-me;preciso <strong>de</strong>scansar.Ange~o saiu.


Depois da retirada <strong>de</strong> Angelo, Maria <strong>de</strong>ixou-se como esquecidana sala, em som<strong>br</strong>ia medita~b.A entrevista confi<strong>de</strong>ncial que acabava <strong>de</strong>ter com o mlsero manceboque se prestava a ser instrumento cego e indigno <strong>de</strong> planos sinistros, indicavabem que um abismo <strong>de</strong> odiento ressentimento jA separava o coracb<strong>de</strong> Maria do <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, se 6 que algum dia ela amara verda<strong>de</strong>iramenteo ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala; mas a paixa"o <strong>de</strong>ste pela filha <strong>de</strong> Jer6nimoLi<strong>rio</strong>, explicando muito, n.30 explica bastante os sentimentos que agitavame moviam os dissimulados furores da bela cortesa".Al6m dos ci~jmes e das apreensijes <strong>de</strong> perda <strong>de</strong> influencia que essapaixa"o provocava, a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria tinha recebido da m.30 <strong>de</strong> AlexandreCardoso o golpe mais profundo e doloroso.indispenshvel voltar um pouco atris para se apanhar a pontado f io <strong>de</strong>sta intriga que promete <strong>de</strong>senvolver-se.No s6culo <strong>de</strong>cimo-oitavo e ainda em principios do atual, erammuito notaveis e cu<strong>rio</strong>sas as cerimbniasda festa <strong>de</strong> Nossa Senhora do RosB<strong>rio</strong>em diversas capitais do Brasil e especialmente na do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Eram os pretos livres, emancipados, e em gran<strong>de</strong> parte os escravosque tomavam a si as solenida<strong>de</strong>s da <strong>de</strong>vo~b <strong>de</strong> Nossa Senhora do ROSA<strong>rio</strong>,e os senhores <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong>votos concorriam por eles com elevadasquantias.0s principais festeiros tomavam o titulo <strong>de</strong> rei e rainha, e seapresentavam na igreja trajando vestidos magnificos e com sinais e aparato<strong>de</strong> realeza, tendo corte mais ou menos numerosa <strong>de</strong> principes e criados <strong>de</strong>ambos os sexos, trazendo tambem vestidos apropriados e As vezes ricamenteextravagantes.Acabada a missa solene da manha", e o Te-DBum ao anoitecer, orei e a rainha <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosa<strong>rio</strong>, com toda a sua corte, danwvampelas ruas ou em tablados, horas inteiras, as suas danps d1Africa, algumas


das quais jB modificadas pela influgncia dos costumes da coldnia portirguesada America e sempre ao som dos seus ru<strong>de</strong>s instrumentos especiais.A parte o ridiculo da c6mica realeza que se misturava assim corno divino culto, era pelo menos divertido, aquele espetdculo que os pretos davamnas ruas, e tornava-se notavel a <strong>de</strong>spesa que faziam os senhores paravestir com riqueza e luxo os seus escravos que <strong>de</strong>viam ser prlncipes ou criadose principalmente rei e rainha da festa <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosh<strong>rio</strong>.Em 1765 a festa foi <strong>br</strong>ilhante e ostentosa na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sb Sebastikdo Rio <strong>de</strong> Janeiro, cujos habitantes, teFminadas na lgreja do Rosa<strong>rio</strong>as sagradas solenida<strong>de</strong>s, acudiram em massa ao campo do mesmo nome, aindapouco povoado, para assistir is dancas e gozar a iluminaca"~.Foi na noite <strong>de</strong>sse dia que Alexandre Cardoso viu pela primeiravez a farnilia Jerhnimo Li<strong>rio</strong>, sentindo-se arrebatado na conternplaciio dabeleza <strong>de</strong> I rigs.Ou porque houvesse notado esse arrebatamento ou por outroqualquer motivo, Maria retirara-se cedo do campo do Rod<strong>rio</strong>, on<strong>de</strong> ostentaraformosura e esplgndido luxo.As onze horas da noite, as danps tinham terminado; ia, porem,comepr o fog0 <strong>de</strong> artif icio e a muldidb se aumentava ainda.Em algumas barracas improvisadas, muitas famllias ceavam alegrementee em uma casa <strong>de</strong> um so pavimento, porem espapsa e transformadanesse dia em casa <strong>de</strong> pasto, Alexandre Cardoso e uns vinte of iciais dos regimentosvelho e novo dominavam absolutamente; raros paisanos, e esses,amigos dos oficiais, ali se achavam; mas em compensa~b, abundavam na salaimensa, alegres mocas, que faziam tolerar uma duzia <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> mantilha,sem duvida velhas mzes ou parentes que as acompanhavam.Des<strong>de</strong> que se respeitava a mantilha, a mulher que a trazia, guardavacorn facilida<strong>de</strong> o indgnito; ora, os oficiais, tendo em conta<strong>de</strong> velhasasamant il hadas, as <strong>de</strong>ixavam em tranqiiilo abandono.A ceia era abundante, embora muito trivial, e mais <strong>de</strong> cem garrafasjd tinham sido <strong>de</strong>spejadas.De subito, viram entrar na sala e logo recuar, um oficial do regiment~nova,- 0 tenemGonplo Pereira! gritaram uns.- 0 tenente anacoretal <strong>br</strong>adaram outros.- VZo busd-lo preso B or<strong>de</strong>m & Baco e Vlnus! exclamo.crAlexandreCardoso.Alguns oficiais salram e pouco <strong>de</strong>pois voltaram com o tenenteGonplo Pereira, que nb quisera negar-se ao convite <strong>de</strong> camaradas, mas que,sentando-se i mesa, ceou e bebeu com so<strong>br</strong>ieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>cgncia.As cabecas comecavam a tontear.Alexandre Cardoso bebia, e requestava uma bela e travessa mo-


ena que fizera sentar a seu lado.A morena, que bebera jti trds ctilices <strong>de</strong> vinho, principiava a tor,nar-se eloqijente.Alexandre Cardoso acabava <strong>de</strong> jurar-lhe amor eterno sob a condiqgo<strong>de</strong> merecer-lhe um beijo diante da assembleia.- Um beijo a preqo <strong>de</strong> amor eterno, valia a pena; mas, quantosamores eternos B capaz <strong>de</strong> sentir o senhor Tenente-Coronel em uma noite?A morena falava em voz aha.- Por que o perguntas, meu anjo?- Porque ainda hti duas horas, era um dos dois li<strong>rio</strong>s que otransportava; agora sou eu que o cativo; e <strong>de</strong>ntro em pouco. . .- Dentro em pouco?. . .- E uma coisa que todos sabem. . . <strong>de</strong>ntro em pouco a famosaMaria Ihe tomari contas <strong>de</strong>sta noite.E a morena, empunhando o copo, exclamou:- Viva o sulta"o!0s oficiais e as moqas beberam, e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sataram a rir.Alexandre Cardoso tinha afogado a dignida<strong>de</strong> em vinho.- Meu anjo, disse ele: o li<strong>rio</strong> mais novo 13 a mais formosa; tu, po-rem, 6s a mais linda e voluptuosa. . . a vit6ria B tua.hgbito."- E Maria?. . .- 5. um livro <strong>de</strong> historia antiga, que i s vezes releio pela for- do- E! bela. . .- E toda ela nb vale os olhos que tens. . . palavra <strong>de</strong> honra!- Sei que ngo posso comparar-me com ela! Sou bonita; por6mMaria 6 formosa. . .- Toma-lhe o luxo e a riqueza, e veris que a aniquilas, eclipsando-lheas graqas! es um querubim! NZo 6, senhores?. . .- Pois hem; dou-lhe um beijo, se, a seu convite, todos aqui meproclamarem mais bela que Maria.- Como te chamas?. . . perguntou Alexandre Cardoso, enchendopela vigesima vez o cop0- Eduvirges.- Viva Eduvirges, mil vezes mais bela que Maria! exclamouAlexandre Cardoso.- Viva Eduvirges, mais bela que Maria! respon<strong>de</strong>ram quase tofos,bebendo.- Ouviste!- Mas aquele senhor nZo bebeu, e, portanto, nb dou-lhe o beijo,disse Eduvirges, mostrando Gon~alo Pereira.


- Tenente Goncalo Pereira! Quer estorvar-me o gozo <strong>de</strong> umbeijo?. ..- N~o, Sr. Tenente-Coronel, respon<strong>de</strong>u Goncalo; beije mil vezesEduvirges; mas eu nzo direi que Eduvirges 6 mais bela que Maria.- EstB vendo?. .. disse Eduvirges um nnuco ressentida, mas fin-gindo-se calma; - per<strong>de</strong>u o beijo.E voltando-se para Gon~alo Pereira, acrescentou:- O<strong>br</strong>igada, Sr. Tenente; pois que salvou-me da seduc;iio.- Que lan,bida 6 aquela Eduvirges! murmurou outra moCa <strong>de</strong>iguais costumes, ao ouvido do oficial que ficava ao lado.- Mas eu protesto contra a injusti~a <strong>de</strong> que sou vltima, tornouAlexandre Cardoso com palavra ja dif icil pelo excesso das libac8es; protestoduas vezes: primeiro, contra o Tenente, que se improvisa cavaleiro <strong>de</strong> damaque niio d sua; e contra Eduvirges, que me sacrifica B impertinsncia e il abelhudice<strong>de</strong> um cavaleiro que n b e seu.- 0 Sr. Tenente-Coronel esta sem dirvida gracejando, quandofala em impertinencia e abelhudice, respon<strong>de</strong>u Gon~alo, corando.Alexandre Cardoso, muito ocupado <strong>de</strong> Eduvirges, nk ouviu aresposta do Tenente, a quem outros oficiais trataram <strong>de</strong> serenar.- Estou no meu direito, negando-the o beijo, disse Eduvirges,falando sempre em alta voz, e a rir sem saber <strong>de</strong> qu6 ou somente para me-lhor mostrar seus <strong>de</strong>ntes lindlssimos; estou no meu direito, pois quese <strong>de</strong>clarouuma opinib contra mim, e eu exigia por condi~ao todas a meu favor.Alexandre Cardoso insistia ridiculamente.- Agora, Sr. Tenente-Coronel, d Ihe daria um beijo, se diante<strong>de</strong> Maria, o senhor fosse capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar-me mais famosa que eta ...- Sou capaz. . .- Na sua presenca.. . n b creio.0 vinho tinha jB embotado todos os sentimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zae <strong>de</strong> genero6da<strong>de</strong> no inimo <strong>de</strong> Alexandre Cardoso; pois que ele ousourespon<strong>de</strong>r:- JB estou muito aborrecido <strong>de</strong> Maria. . . tomei-a por vaida<strong>de</strong>, econservo-a por. . . eu sei? por costume.- E fhcil diz8lo aqui;pas diante <strong>de</strong>la. . .- Pois man<strong>de</strong>m-na chamar! exclamou Alexandre Cardoso.Uma das inct5gnitas e supostas velhas ergueu-se, atirou com forqaa mantilha para trbs, e disse:- Eduvirges teve a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> abater Maria sem compreen<strong>de</strong>r asupe<strong>rio</strong>rida<strong>de</strong> da cortesa" formosa, instruida e espirituosa, so<strong>br</strong>e a bonita; mas,ignorante e ru<strong>de</strong> rapariga <strong>de</strong> vida alegre, teve porem essa idhia, e notando ahesitacb <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, pisou-lhe com for~a o pe para que ele aolhasse, sorriu-se provocadoramente, e <strong>de</strong>pois fechou os olhos, alongou um


pouco o pescoco para o oficial, e com um leve movimento extensor dos 18-bios n50 lhe ofereceu, pediu-lhe um beijo.Alexandre Cardoso balbuciou sem conscidncia e com um tomrouquenho:- Eduvirges 6 mais bela que Maria.E beijou tr6s vezes os libios <strong>de</strong> Eduvirges.Quando Alexandre Cardoso, Eduvirges e os dcios <strong>de</strong> orgia procuraramcom os olhos a formosa cortesa", acharam somente a mantilha negra,que ela <strong>de</strong>ixara esquecida, ou <strong>de</strong>sprezada no chzo.- Sabe que 6 aquela mantilha preta? perguntou um oficial aGonwlo Pereira.- Que 9?- E a mortalha em que se enterrou o amor <strong>de</strong> Alexandre Cardosoe Maria.0 oficial que vira na mantilha <strong>de</strong>ixada por Maria a mortalha doamor da cortesl e do ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei, enganara-se com-pletamente.A liga~a"o <strong>de</strong> Alexandre Cardoso e Eduvirges acabara no fim <strong>de</strong>uma semana, e tb friamente, como se tivesse durado B for~a um seculo.Alexandre Cardoso, envergonhado da cena <strong>de</strong> em<strong>br</strong>iaguez emque se <strong>de</strong>ra em espetAculo, nb procurara dar <strong>de</strong>sculpas a Maria do seu escandalosoprocedimento. Em verda<strong>de</strong> ele nzo sentia mais a paix50 em que sea<strong>br</strong>asara pela espl6ndida cortesa"; esta porem o prendia pelo seu esplrito epelas aparbncias <strong>de</strong> comedimento, ostenta~b <strong>de</strong> luxo e <strong>de</strong> elegdncia, e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas<strong>de</strong> fino trato com que co<strong>br</strong>ia <strong>de</strong> lavor as miserias do vicio.Saudoso <strong>de</strong> Maria, Alexandre Cardoso na"o p6<strong>de</strong> resistir B lem<strong>br</strong>an~ados seus encantos por mais <strong>de</strong> oito dias e receoso <strong>de</strong> justificdvel re-pulsa, nb ousou ir logo A casa da sua amante; escreveu-lhe, pois, um bilhetepouco mais ou menos assim concebido :"Maria - oito dias t6m me parecido oitenta anos: nb possomais. Um homem que se em<strong>br</strong>iaga uma vez na"o e bbbado; mas basta umahora <strong>de</strong> em<strong>br</strong>iaguez para enlouquecb-lo; preciso ajoelhar-me a teus mimososp6s e limpar neles os IBbios, que o sacril6gio nodoou. Maria! seris Mo santa quepossa perdoar-me?. . . - Alexandre."Uma hora <strong>de</strong>pois o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei recebeua seguinte resposta:"Alexandre - Vgnus perdoa a Baco. Vem - Maria."A mb <strong>de</strong> Maria tinha intencionalmente errado, escrevendo; emvez <strong>de</strong> Vdnus, a <strong>de</strong>usa dos compassivos amores, <strong>de</strong>veria ter escrito - Juno -a <strong>de</strong>usa das implacaveis vingan~as.


A famosa cortesa" tb caprichosa em seus amores, como violentaem seu odio, conservanclo viva e sempre profundamente dolorosa a mem6riada orgia da noite da festa <strong>de</strong> Nossa Senhora do Rosb<strong>rio</strong>, ne,m uma s6 vez, nemsequer por um s6 instante lem<strong>br</strong>ou-se <strong>de</strong> vingar-se em Edvirges; muito vaidosae soberba esqueceu em sua vida miserbvel a bonita maspo<strong>br</strong>e e <strong>de</strong>sgraqadavitima da <strong>de</strong>vassidb; em seu orgulho <strong>de</strong> rica e no<strong>br</strong>e, em sua presun~iio <strong>de</strong>formosissima e fascinadora, a cortesa" altiva <strong>de</strong>sprezava aquela irma" pelo vicio,e <strong>de</strong>la si, se ocuparia um minuto, se julgasse preciso mandar-lhe esmola.Hb pretensaes e tons aristocrbticos em todas as classes, e ate naclasse da corrupqa"~ hedionda.Maria esquecera pois Eduvirges; niio esquecera porem o esc<strong>br</strong>nio,os insultos, e a afronta que recebera <strong>de</strong> Alexandre Cardoso na orgia escandalosa.0 amor, ou a paixzo do ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei pelamenina Ink, filha <strong>de</strong> Jer6nimo Li<strong>rio</strong>, era pois somente um incentivo concorrenteque acendia as furias da terrivel Me<strong>de</strong>ia.Era por isso que Maria <strong>de</strong>ixara-se como esquecida na sala emsom<strong>br</strong>ia meditaqgo <strong>de</strong>pois da retirada <strong>de</strong> Angelo.Ela tinha mentido a Alexandre Cardoso quando fizera suspeitarque no pbtio do convent0 da Ajuda um namorado feliz gozara as vistas furtivasda menina Ink, e tinha mentido a Angelo, quando o animara com a esperanca<strong>de</strong> casamento com a filha mais moqa <strong>de</strong> Jer6nimo Li<strong>rio</strong>; nem sabiase houvera namorado <strong>de</strong> In&, nem ela ate entiio pensara em casar Angelo.Maria tinha um unico pensamento, uma unica ambi~Zo, um unicoempenho; era vingar-se <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.


Erarn seis horas da rnanhii, quando Maria procurou no leito o<strong>de</strong>scanso e o sono; na noite que acabava <strong>de</strong> passar, sofrera rnuito em sua vaida<strong>de</strong>e nos seus c~lculos: n5o arnava Alexandre Car,doso, nunca se <strong>de</strong>ra a elenem por paixb, nern por capricho; mas essa rnulher inconstante e louca quese reservava o direito <strong>de</strong> atrai~oar seus arnantes e <strong>de</strong> rnudar <strong>de</strong> arnantes, sernpree logo que isso Ihe aprazia, n b tolerava o ser <strong>de</strong>ixada, e menos que poroutra algurn amante que<strong>br</strong>asse suas ca<strong>de</strong>ias; enta"o a ciurnenta elevava-se ainirniga terrivel que n b poupava, nem escolhia generosa os meios e a naturezada vinganqa.Alexandre Cardoso na"o d cornecava a rnostrar-se rnenos cativodos encantos <strong>de</strong> Maria, corno na"o fazia rniste<strong>rio</strong> da sua paixk por Inds, chegandoa <strong>de</strong>clarar-se no &rculo <strong>de</strong> seus amigos disposto a torn&-la por esposa.Maria estava habituada a perdoar a Alexandre seus <strong>de</strong>boches,suas seduq8es irnorais, seus crimes <strong>de</strong> concupiscdncia malvada; mas o <strong>de</strong>sprezoque a arneaqava, e a hipotese do casarnento corn lnis eram o primeirourn ultraje 8 sua vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formosa, e tamMrn e ainda mais corn o segundo arulna da sua infludncia que ela sabia fazer valer.A arnante do Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la provara por vezes a irnportsnciado patronato exercido pelo dornfnio do coraqb daquele que <strong>gov</strong>erna:Gomes Freire nunca escravizara corn esclndalo o <strong>gov</strong>ernador 8 arnante, sempreporern que o pb<strong>de</strong> fazer sem <strong>de</strong>sar publico, servira-lhe aos ernpenhos.0 oficial-<strong>de</strong>-sala do Con<strong>de</strong> da Cunha, perdido <strong>de</strong> paixzo duranternuito tempo e ate 1765 pela encantadora e voluptuosa rnoca, obe<strong>de</strong>cia cegoaos seus <strong>de</strong>sejos e preceitos, e Maria dispunha <strong>de</strong> ernpregos e <strong>de</strong> favores, <strong>gov</strong>ernandoo <strong>gov</strong>ern0 pelo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sua beleza e pela magia das suas gracasque fascinavarn Alexandre Cardoso.0 arnor que a inocente lnds sern pensar e sern querer inspiravaao oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei, viera dar a Maria a certeza do que ela ja pressentirano arrefecimento da paixzo <strong>de</strong> Alexandre, isto 6, o proximo termo do


seu reinado no coraqiio do po<strong>de</strong>roso secreti<strong>rio</strong> do <strong>gov</strong>ern0 da col6nia.Esta convicqb encheu <strong>de</strong> c6lera e <strong>de</strong> 6dio a alma da soberba eambiciosa Maria, que jurando a si vingar-se <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, <strong>de</strong>struindoos fundamentos da sua inf lu6ncia oficial que em <strong>br</strong>eve nb mais a ela po<strong>de</strong>riaaproveitar, abafou seus furores, e f ingindo-se ora ciumenta, ora terna eapaixonada, e retendo ainda com prodfgios <strong>de</strong> lascivos la~os o amante arrefecidoe infiel, cercou-o <strong>de</strong> espionagem segura e vigilante que ela sabia alimentar,pagando-a a preqo <strong>de</strong> our0 e <strong>de</strong> favores <strong>de</strong> natureza diversa.AS onze horas da manha" Maria saltou do leito, como arrependida<strong>de</strong> haver dormido tanto; ap6s <strong>de</strong>morado e perfumado banho, entregou-seainda mais aos pr6p<strong>rio</strong>s cuidados, do que aos <strong>de</strong> duas habilissimas escravas,que por acordo com o espelho lisonjeavamporfia a formosa moqa, que Auma hora da tar<strong>de</strong> achando-se primorosamente vestida, toucada e fresca, ebela como a aurora, que ela tinha saudado antes <strong>de</strong> dormir, foi sentar-se nasala, tendo a i mesmo tomado por almwo meia chavena <strong>de</strong> chocolate.- 0 jantar?. . . perguntou ela.- Esti pronto.- As duas horas precisas <strong>de</strong>ve estar na mesa.AS escravas retiraram-se.Maria esperava sem duvida alguem. Meia hora <strong>de</strong>pois entrou nasala o tenente Gonwlo Pereira, aquele mesmo que na ceia da prece<strong>de</strong>nte madrugadafora objeto das zombarias e do ridfculo dar<strong>de</strong>jado pela formosamoGa pelos a<strong>br</strong>acos dados B velha <strong>de</strong> mantilha na la<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Santo Antenio.Gonqalo Pereira era um elegante oficial portugu6s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>zanos mandado para o Brasil com o posto <strong>de</strong> alferes e incorporado ao regimentonovo, entre este e o regimento velho havia ciOmes e pontos <strong>de</strong> vaido-so antagonismo, que cada vez mais acesos e irritados, contudo se concentraramtemerosos pela elevaqa"~ <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, tenente-coronel doregimento velho, a oficial-<strong>de</strong>-sala do Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha.0s oficiais do regimento novo queixavam-se <strong>de</strong> que os do outropor mais protegidos os preteriam na escala dos postos, o que foi sempre e 6motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto no exercito; Gonqalo Pereira, apesar <strong>de</strong> exatoe ativo no cumprimento <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>veres militares, e <strong>de</strong> ser muito mais instruidodo que o eram entb em geral os oficiais das tropas portuguesas, conseguiraem <strong>de</strong>z anos apenas passar <strong>de</strong> alferes a tenente; no regimento novotodos o apresentavam como exemplo <strong>de</strong> injustas preteri~<strong>de</strong>s; entretantoo tenente niio se queixava, e o que mais 8, alegre e folgazb, <strong>de</strong>voto do belosexo, e dos prazeres da mesa, do amor e do jogo, era o rnais infallvel companheiro,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> alguns meses ao menos do ctiefe das orgias famosas, <strong>de</strong> AlexandreCardoso, a quem antes o supunham justificavelrnente adverso.No regimento novo todos lamentavam a indigna e aduladora li-


gavb <strong>de</strong> Gon~alo Pereira com o comandante do regimento velho, e nenhumtinha adivinhado que ele era o misero escravo do amor mais ar<strong>de</strong>nte a queate entb ren<strong>de</strong>ra cultos, ajoelhando aos p6s da falsa amante <strong>de</strong> AlexandreCardoso.Em 1765 as primeiras relaq8es <strong>de</strong> ficil intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gon~aloPereira com Alexandre Cardoso marcaram a Bpoca das primeiras e miste<strong>rio</strong>sasrela~aes do tenente do regimento novo com a amante do chefe do regimentovel ho.Maria, vendo entrar o elegante oficial, correu para ele, exclamando:- Tardavas-me!Gonqalo,Pereira recebeu-a nos <strong>br</strong>avos e com fervor que alids nfioencontrou resistencia, beijou-a duas vezes nos labios.Sentaram-se ao lado um do outro com as mZos dadas, e corn osolhos a gozarem-se.- Tardavas-me, repetiu Maria.- Cheguei meia hora antes do prazo marcado. . .- Eu te esperava hi uma hora.- O<strong>br</strong>igado! disse ~on~alo, beijando-a outra vez.- Conversemos. . . tornou Maria, procurando esquivar-se 3s cariciasdo amante amado.- So<strong>br</strong>a-nos tempo, respon<strong>de</strong>u o oficial, insistindo.A bela mova recuou, ameacou Gon~alo com o leque, e fugiu arir-se pela sala, enquanto ele a perseguia, rindo-se tamb6m.Como duas crian~as, uma corria, outro cercava, correndo tambem:Maria ligeira e viva escapava ro<strong>de</strong>ando o cravo e as ca<strong>de</strong>iras; mas porfim, <strong>de</strong>ixando-se enganar ou enganada pelo falso ataque simuiado por um lado,foi pelo outro cair nos <strong>br</strong>avos <strong>de</strong> Gonqalo Pereira, soltando um fraco gritoevi<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> alegria menos pudica.


Maria e Gonqalo Pereira levantaram-se da mesa do jantar 3s trdshoras da tar<strong>de</strong>, e voltando A sala, acharam-se livres da presenp dos escravos.- Que h8? perguntou Maria.- 0 vice-rei ficou fu<strong>rio</strong>so, recebendo a noticia da fatal d6cimaimprovisada; numerosos agertes do <strong>gov</strong>ern0 se espalharam disfar~ados pelacida<strong>de</strong>, e ao meio-dia o oficial-<strong>de</strong>-sala <strong>de</strong>u conta ao Con<strong>de</strong> da Cunha das suas<strong>de</strong>scobertas.- E quais foram?- Nem mais nem menos do que aquilo que a tua admirsvel policiatinha te informado imediatamente <strong>de</strong>pois do fato: o poeta improvisadorfora uma mulher <strong>de</strong> mantilha.- Quem e? Como se chama?- 0 Con<strong>de</strong> da Cunha oferece mil cruzados a quem Iho disser, eo seu oficial-<strong>de</strong>-sala bem <strong>de</strong>sejara achar o revelador; porque sem dirvida Ihedaria meta<strong>de</strong> daquela quantia, tomando a outra meta<strong>de</strong> para si.Maria p6s-se a rir.- Tens-me feito trds perguntas; agora 6 a minha vez: quem tecontou o que se passara no p8tio do convent0 da Ajuda?- Um homem que esteve 18, e que correu a informar-me <strong>de</strong> tudoantes que chegasses a minha casa..- Ah! tens outrq espib alkm <strong>de</strong> mim?. . .- Tenho <strong>de</strong>z e mais.- Maria!. . . Porque me a<strong>br</strong>aso <strong>de</strong> paixk por ti, sujeito-me a


aviltamento que me repugna; impuseste-me, como condiq50 essential doteu amor, a companhia e a socieda<strong>de</strong> do homem que mais <strong>de</strong>testo; resistilongas semanas; mas enfim, <strong>de</strong>sonrei-me para que me a<strong>br</strong>isses os <strong>br</strong>avos; duasmanchas enegrecem-me a vida: 6 uma a tolerancia, corn que suporto a entrada<strong>de</strong> Alexandre Cardoso nesta casa, que <strong>de</strong>verh ser somente minha peloamor, e on<strong>de</strong> eu penetro como ladrb <strong>de</strong> tesouro alheio; 6 outra essa <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong>icdigna, com que espio para te contar asaqbes e os passos do meu inimigo.- Do <strong>rio</strong>sso inimigo, murmurou surdamente Maria.- Pois bem: dois oprtjb<strong>rio</strong>s jB s50 <strong>de</strong>mais e na"o me submeto aterceiro; sei e sabes a moeda que me paga a infgmia da <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e da espionagem;acabas <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar-me que tens um outro e mais <strong>de</strong>z espi6es: cornque moeda lhos pagas, Maria?. . .A feiticeira moqa sorriu-se docemente, e inclinou a cabeqa, procurandocorn os lhbios a face <strong>de</strong> Goncalo Pereira; este, porem, susteve-a,pondo-lhe as m5os nos om<strong>br</strong>os formosos e nus, e renovou a pergunta:- Corn que moeda lhos pagas? ...Maria respon<strong>de</strong>u seriamente:- Na minha vida con<strong>de</strong>nada, tenho ao menos o born costume <strong>de</strong>iludir as perguntas, quando ngo me conv6m confessar a verda<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> nuncamentir, quando falo ou respond0 positivamente.- Tanto melhor!- 0 meu outro espi50 e Ange~o, a quem amei at6 que te encon-trei no caminho da minha vida, e que <strong>de</strong>ste entb 6 apenas interesseiro instrumento<strong>de</strong> meus projetos <strong>de</strong> vinganqa; os outros s b as mulheres que tudo -dizem, velhas a quem protejo, moqos e velhos que <strong>de</strong> meus auxilios precisam,e que muitas vezes me servem sem saber que o fazem.- Maria!- Eu te juro, Gonqalo; nb tens rival no meu coraqb e nem seimais ter caprichos loucos: amo d a ti e quero-te por meu senhor; se urn diamudar <strong>de</strong> sentimentos, quem primeiro to ha <strong>de</strong> dizer, sou eu.E a sereia que cantara, inclinou <strong>de</strong> novo a cabep, as mzos dooficial ce<strong>de</strong>ram e ropndo pelo tronco, foram apertar a cintura mais <strong>de</strong>licada,enquanto os lhbios da amante beijavam a face do amado.Maria pagava a <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e a espionagem, alucinando o oficialperdidamente escravo da sua beleza e dos seus invites fascinadores.Vencido o impeto <strong>de</strong> ciirme e embotados os santos escrupulos eprotestos <strong>de</strong> honra sacrificados paixgo mais violenta, Maria, voluptuosa-mente reclinada na ca<strong>de</strong>ira em que se sentara, corn urn lindo anel <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ixa,que fugira ao penteado j6 meio confuso, a <strong>br</strong>incar-lhe na face levementecorada, disse a Gonqalo:- Contigo eu me perco, porque esqueqo o mundo. . .- E para que lem<strong>br</strong>a-lo?


- Para vingar-me.- Muito amaste, ou ainda muito amas Alexandre Cardoso!- Nunca o amei, e hoje o <strong>de</strong>testo; mas cada qua1 tem suas rniseriasna vida. . .- Cui<strong>de</strong>mos antes dos prazeres da vida.- Alexandre Cardoso e o meu amante, passa por meu amante edono; se queres poupa-lo, como e que me amas?. . . se queres ser so, como eque o poupas?. . .Goncalo soltou um gemido profundo, que pareceu um rugidoferoz.Maria todara na corda sensivel <strong>de</strong> Goncalo Pereira.0 po<strong>de</strong>r e o orgulho <strong>de</strong>sse hornem irnoral e perverso <strong>de</strong>vem serabatidos, continuou Maria.- Devem, disse Goncalo.- Como proce<strong>de</strong> ele agora?- Como dantes: bebe, joga e seduz.- E o vice-rei?- Surdo e cego; surdo Bs queixas, cego pela confianca.- Pois que Alexandre Cardoso beba e jogue, e seduza em do<strong>br</strong>o.- Fa-10-8 sem esforco nosso.- Joga feliz?- Nem sempre.- So<strong>br</strong>a-lhe dinheiro?. . .- Emprestei-lhe anteontem dois mil cruzados.- Ainda bem. Que premedita ele agora?. . .- Novo e numeroso recrutamento para duas ou trbs companhias<strong>de</strong> cavalaria ligeira, que sirvam B guarda especial dos vice-reis e novas o<strong>br</strong>as<strong>de</strong> aquartelamento <strong>de</strong> tropas na ponta da Miseric6rdia.- E no recrutamento e nas o<strong>br</strong>as novas, novo meio <strong>de</strong> batermoeda na fo<strong>rj</strong>a do patronato.- da sua regra.- Quanto pior, melhor: tambem e <strong>de</strong> regra.- Talvez.- Que diz a esses projetos o Con<strong>de</strong> da Cunha?. . .- Hesita ainda, preten<strong>de</strong>ndo que a populacb tem sido por <strong>de</strong>rnaisonerada.- E Alexandre Cardoso?. . .- Sustenta que o povo vive feliz e satisfeito; mas que o nlimeroexcessivo dos vadios torna o servi~o militar uma providbncia salutar para asocieda<strong>de</strong> amea~ada por eles, e que o comercio altanado e revoltoso tem so<strong>br</strong>as<strong>de</strong> lucros que s b exageradas, e que po<strong>de</strong>m aproveitar is o<strong>br</strong>as do rei,entrando para elas como donativos voluntii<strong>rio</strong>s.'


a namora.of icial.- Perfeitamente, e o melhor possivel; uma ultima pergunta. . .- Qual?. . .- E In&?. . . a filha <strong>de</strong> Jerbnimo Li<strong>rio</strong>?- Sabe ela que Alexandre a ama?. . . Eu duvido.Maria sorriu-se.- De que ris?. . .- De tua duvida; a mulher, ainda que na"o olhe, sempre v6 quem- Em tal caso, Alexandre Cardoso namora em vb.E, tornando-se um pouco triste, Goncalo Pereira perguntou:- Era isto o que querias ouvir, Maria?. . .A resposta da famosa cortesa" foi lanqar-se nos <strong>br</strong>aqos do belc


No princlpio do rn& <strong>de</strong> fevereiro, urna 'serie <strong>de</strong> resoluqaes tornadaspelo Con<strong>de</strong> da Cunha, algumas das quais inspiradas pelo oficial-<strong>de</strong>sala,que corn a sua energica ativida<strong>de</strong> ia pb-las em execuqb, encheu <strong>de</strong> cuidadosa capitania e especialmente a cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Foi or<strong>de</strong>nado o alistarnento dos habitantes da capitania para organizaqgo<strong>de</strong> quatro novos terqos <strong>de</strong> infantaria auxiliar, rnilicia ainda maisopressora dp que o 6 a propria guarda nacional dos nossos dias.Deterrninou-se e a<strong>br</strong>iu-se recrutarnento geral para cornpanhias <strong>de</strong>cavalaria ligeira da guarda do vice-rei.Deu-se comeqo as o<strong>br</strong>as <strong>de</strong> urna gran<strong>de</strong> casa para recolher o parqueda artilharia, e estabelecer a( fa<strong>br</strong>icas e oficinas respectivas, e <strong>de</strong> urnquartel para a cavalaria na Ponta da Misericordia.E enfirn, retiraram-se da comunicaqb da cida<strong>de</strong> os rniseros afetados<strong>de</strong> morfbia, que foram reunidos na antiga casa dos Jesuitas, em St70Cristovk, mandando-se preparar ali urn hospital suficiente, sendo em favor<strong>de</strong>ste caridoso estabelecimento lanqado so<strong>br</strong>e a cida<strong>de</strong> urn impost0 anual <strong>de</strong>480 r6is por casa <strong>de</strong> so<strong>br</strong>ado e 240 r6is por casa t<strong>br</strong>rea.Apesar do tributo, a providgncia relativa aos rnorf6ticos agradoupopulapZ3 mas as o<strong>br</strong>as do hospital, e ainda as militates da Ponta da Miseric6rdia.anunciaram novos vexames e violgncias, corno o alistamento e orecrutamento levararn o susto e o terror aos moqos <strong>de</strong> todas as parbquias dacapitania, on<strong>de</strong> os capitzes-mores e seus <strong>de</strong>legados erarn dbspotas impiedo- ,SOS.0 oficial-<strong>de</strong>-sala sabia, por experigncia, os lucros que Ihe trariamo recrutamento corn as dispensas, os novos terpos <strong>de</strong> infantaria auxiliar, comas nomea~6es <strong>de</strong> mestres <strong>de</strong> carnpo, <strong>de</strong> sargentos-mores e <strong>de</strong> outros postos, eas o<strong>br</strong>as corn a rnodificaqzo e a exirnicb <strong>de</strong> custosas irnposiqties.Toda a cida<strong>de</strong> se preocupava, alterada e ternerosa, dos vexamesque acampanhavarn sernelhantes medidas.


Nos <strong>gov</strong>ernos absolutos e opressores o <strong>de</strong>sgosto pirblico, a quemfalta a vdlvula da imprensa, antes do chegar a revolta, manifesta-se nas zombariase nos insultos do pasquim, e rws versos e cantigas, <strong>de</strong> que na"o se conheceo autor, e se espalham e se <strong>de</strong>cyam, e se repetem, a <strong>de</strong>speito da auto-?.rida<strong>de</strong>.No doming0 do entrudo, amanheceram nas portas da casa da CdmaraMunicipal, da Miseric<strong>br</strong>dia, do convent0 do Carmo, e em vinte outros,pasquins inju<strong>rio</strong>sos, que antes <strong>de</strong> arrancados e <strong>de</strong>spedacados, foram lidos etornados <strong>de</strong> cor, passando a correr em copias confi<strong>de</strong>nciais pela cida<strong>de</strong>.Um <strong>de</strong>les dizia assim:0 vice-rei os leprososDa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sterrou;Mas a lepra mais horrlvelNa cida<strong>de</strong> conservou!Se a morfkia o apavora,E quer <strong>de</strong> n6s afasth-la,VA o vice-rei emboraCom o oficial-<strong>de</strong>-sala.Outro era o seguinte:A nau SebastiiSb estd no estaleiro ( *I,Hh o<strong>br</strong>as novas e recrutamento,Para terqos geral alistamento,Povo a servir <strong>gov</strong>ern0 caloteiro;A explica~b quereis?. ..V6s todos o sabeis:Alexandre Cardoso quer dinheiro.Eis ainda outro:Senhor Con<strong>de</strong> da Cunha,De v6s muito se fala;Tem b<strong>rio</strong>?. . . corte a unhaDo of icial-<strong>de</strong>-sala.Como estes, muitos outros pasquins que n50 chegaram ate n6s.0 furor <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, que espalhou soldados e espiaespela cida<strong>de</strong> toda, a c6lera do vice-rei, que mandou proibir o entrudo, as pri-(* ) AlusBo ao navio <strong>de</strong>sse nome, que entZo se estava construindo


s<strong>de</strong>s dos rapazes que andavam com seringas e tintas, molhando-se e pintando-seuns aos outros, os gritos das negras, que em tabuleiros vendiam os famososlimiies-<strong>de</strong>-cheiro, isto 6, pequenos globos com pare<strong>de</strong>s finas <strong>de</strong> cerae cheios <strong>de</strong> agua cheirosa, os quais foram esmagados nos tabuleiros pelas patrulhasrondante, a privaqgo <strong>de</strong> um divertimento, ru<strong>de</strong> e perigoso semdbvida, mas arraigado aos costumes do povo, o pesar das moqas e dos macebos,que adoravam o entrudo por mil razBes injustificadissimas, <strong>de</strong>rramaram atristeza e quase a consternaqa"~ na cida<strong>de</strong>.As casas se fecharam e em cada familia falava-se em voz baixa etemerosa da ousadia dos pasquineiros e da reaqzo excessiva do <strong>gov</strong>erno.


XIVNa chicara <strong>de</strong> Jerbnimo Li<strong>rio</strong> tambkm se conversava so<strong>br</strong>e asnovida<strong>de</strong>s do dia.0 velho negociante portuguds Antbnio Pires, amigo <strong>de</strong> Jerbnimo<strong>de</strong>s<strong>de</strong> quarenta anos e padrinho <strong>de</strong> batismo <strong>de</strong> InGs, tinha ido passar o dia nachacara da Gamboa, e <strong>de</strong>ra conta do que se passara na cida<strong>de</strong>.Estavam na sala a Sra. lnds e suas duas filhas, que alegrementefestejavam os presentes <strong>de</strong> doces e frutas que lhes trouxera o velho amigo <strong>de</strong>seu pai, e especialmente a bela afilhada, que recebera, alkm do mais, umalinda boneca, nzo cabia em si <strong>de</strong> contente.- ImprudGncias loucas, Antbnio! NZo nos <strong>gov</strong>ernam bem, mas afalta <strong>de</strong> respeito ao <strong>gov</strong>erno e pior, dissera JerBnimo.Antbnio Pires olhou em torno da sala, e nzo vendo sen30 o amigo,a comadre e as meninas, respon<strong>de</strong>u, fazendo com o <strong>br</strong>aqo um movimento:- Leve o <strong>de</strong>mo o <strong>gov</strong>erno que <strong>de</strong>s<strong>gov</strong>erna, JerBnimo.- Compadre! disse a Sra. In&.- Arrancam-nos dinheiro e proprieda<strong>de</strong>s, pren<strong>de</strong>m nossos caixeirose nossos escravos, <strong>de</strong>senfreiam e protegem a <strong>de</strong>vassidzo. . . pois em talcaso venha ao menos a vinganqa do pasquim!- AntBnio, tu es urn velho crianqa; vamos jogar o garnzo.- Cala-te a(, que pensas como eu penso, e como todos os homens<strong>de</strong> siso e <strong>de</strong> honra.- Anda jogar o gamzo ou eu mando as meninas molharem-te acabeleira e os babados da camisa.- Elas nzo ousariam fazClo, compadre, observou InGs.- E que o fizessem! 0 dia 6 <strong>de</strong> folguedo e eu nzo sou carrancarabugento, como seu marido, comadre.E voltaddo-se para as duas meninas, perguntou:- Sinhazinha, tens limbes-<strong>de</strong>-cheiro?


- N b, meu padrinho, respon<strong>de</strong>u In&.- E tu, nhanha"?- Tambem nzo.0 velho tirou da bolsa duas moedas <strong>de</strong> ouro, e dando uma a cadamenina, disse-lhes:- Hoje <strong>gov</strong>erno eu aqui, e muito melhor do que se <strong>gov</strong>erna lafora; enquanto vou ensinar o gam5o a vosso pai man<strong>de</strong>m voces comprarlimbes-<strong>de</strong>-cheiro nas casas em que os ven<strong>de</strong>m, fazendo trazClos em caixasfechadas, para na"o serem que<strong>br</strong>ados pelos rondantes do vice-rei, e molhemseuma a outra, e molhem pai e mSe, e a mim tambem, com a condicfio <strong>de</strong>serem e <strong>de</strong> se mostrarem bem contentes e bem felizes; nzo?!As meninas, coitadinhas, hesitavam, olhando para o severo pai.- Este velho crianca tem direitos <strong>de</strong> padrinho, que e quase pai;i<strong>de</strong> <strong>br</strong>incar, e obe<strong>de</strong>cei-lhe; pois que ele manda; nada, porem, <strong>de</strong> doidices. . .i<strong>de</strong> <strong>br</strong>incar.As meninas sairam correndo.- Olhem como elas vSo! exclamou Antbnio.- In&, disse JerBnimo, manda-nos vir o gamSo.A Sra. Ines saiu da sala e em <strong>br</strong>eve chegou o tabuleiro,do gama"o,que os dois velhos amigos <strong>de</strong>scansaram so<strong>br</strong>e os joelhos; armadas, porkm, aspedras, e tendo AntBnio lan~ado o seu dado, Jerhnimo, em vez <strong>de</strong> imita-lo,falou tristemente:- Dizias bem: o <strong>gov</strong>erno da col8nia esth confiado a um cego,que nZo quer ver e que tomou por condutor o vicio <strong>de</strong>senfreado.- Cada dia, novas extar<strong>de</strong>s. . .- I! o menos: o mais e o exemplo da corru~Zo que parte dosque <strong>gov</strong>ernam, e que empesta a socieda<strong>de</strong>; o mais 6 a impunida<strong>de</strong> do sedutorindigno que ameaca as familias!. . .0 rosto <strong>de</strong> JerBnimo tornara-se ru<strong>br</strong>o <strong>de</strong> colera.- E assim; mas. . .- AntBnio, eu a ninguem o disse ainda, nem mesmo 3 tua comadre;direi, porem, a ti, e a ti somente; pois que tens direito <strong>de</strong> sabQlo, e eshomem capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r-me.. .- Que hti entb?. . .- 0 oficial-<strong>de</strong>-sala ousou levantar seus olhos corrutores at6 8tua inocente afilhada!. . .- Estas certo disso?JerBnimo continuou com voz tremula e abalada:- Quando quisesse duvidar, nSo podia. . .- Por que?. . .- Porque cartas anBnimas me <strong>de</strong>nunciam todos os passos e todasss maquinacbes <strong>de</strong> Alexandre Cardoso para aproximar-se <strong>de</strong> minha filha,


elacionando-se comigo, e tudo se verifica <strong>de</strong> quanto me previnem; portanto,j8 anda por ai o nome <strong>de</strong> I nes exposto as linguas venenosas <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>vassosda companhia do oficial-<strong>de</strong>-sala!- JerBnimo, talvez estejas exagerando: es rico e po<strong>de</strong> bem serque Alexandre Cardoso calcule com um casamento. . .- Casamento! Darias a mZo <strong>de</strong> tua afilhada a esse'homem?- Nunca; mas, semelhante ambiqZo est8 longe <strong>de</strong> ser uma ofensa,como seria a infame tentativa <strong>de</strong> sedu~Zo.- E quem assegura que o n5o e?. . .- Eu por certo que nZo.- Tambbm minha resoluqZo esta tomada, e eu precisava comunic8-laa ti.- Qual 6?- Minha familia continuarh a negar-se a Alexandre Cardoso.- Muito bem.- E se o homem fatal por qualquer mod0 tentar seduzir I rigs, ou<strong>de</strong>r motivo a que seu nome e a sua reputaqZo sofram ainda a mais levee a mais injusta suspeita. . .\ - Que faras?. . .JerBnimo levantou-se e indo a<strong>br</strong>ir as pesadas portas <strong>de</strong> um pequenoarhh<strong>rio</strong> cavado na pare<strong>de</strong> da sala, tirou <strong>de</strong>le um papel do<strong>br</strong>ado e lacradotriplicadamente e duas ricas pistolas. ,- Estes objetos explicam o que hei <strong>de</strong> fazer: ficas sabendo on<strong>de</strong>se hh <strong>de</strong> achar o meu testamento e esths vendo as pistolas, com que hei <strong>de</strong> narua, <strong>de</strong> dia, e B face <strong>de</strong> todos matar Alexandre Cardoso.AntBnio fez um movimento <strong>de</strong> aprova~b; mas logo <strong>de</strong>pois disse:- Po<strong>br</strong>e velho JerBnimo! se errasses o primeiro tiro, nZo te dariamtempo <strong>de</strong> usar da segunda pistola.- AntBnio!- Eu tenho melhor i<strong>de</strong>ia.' - Qual?. . .- Que magnificas pistolas! Aqui na colBnia nfio se encontramiguais! JerBnimo, d8-me uma <strong>de</strong>las. . . sera aquela <strong>de</strong> que nZo terias tempo<strong>de</strong> servir-te.JerBnimo, banhado o rosto em lagrimas, a<strong>br</strong>a~ou-se com o amigo,exclamando:- NZo! Seria <strong>de</strong>mais!- Que <strong>de</strong>mais?. .. tornou AntBnio com gravida<strong>de</strong>; tu es pai, epor isso tens o direito <strong>de</strong> ir adiante; mas eu sou amigo e padrinho e tenho odireito <strong>de</strong> ir <strong>de</strong>pois. Em dois velhos que atiram <strong>de</strong> pistola, quando um erra,o outro po<strong>de</strong> acertar.JerBnimo esten<strong>de</strong>u o <strong>br</strong>a~o para dar uma das pistolas a AntBnio,


que n5o a quis receber, dizendo a sorrir:- Tenho 18 em casa tamb6m duas da mesma fa<strong>br</strong>ica: o que euqueria, era assegurar-te que na hip6tese que imaginaste, se errares o tiro, eutratarei <strong>de</strong> apontar mais certeiro. Vamos jogar o gamab.Hoje em dia dois velhos que assim falassem, fariam rir pelas <strong>br</strong>avatasridiculas, a que ningubm daria gran<strong>de</strong> importdncia; naqueles temposhavia um ditado que <strong>de</strong>finia certos homens; o ditado ru<strong>de</strong>, como ru<strong>de</strong> era opovo, era este: "p6 <strong>de</strong> boi portugugs velho" e em Jerbnimo e Antbnio se encontravamdois p6s <strong>de</strong> boi portugueses velhos que fariam o que diziam, dois homens<strong>de</strong> bem As direitas, mas teimosos, emperrados, indomdveis, que tinhamno cumprimento da palavra o fanatismo da religib.0s Bltimos representantes <strong>de</strong>ssa gera~a"o <strong>de</strong> herois <strong>de</strong> firmezaobstinada, antiteses da egoista inconst5ncia e interesseiro aviltamento <strong>de</strong> notabilida<strong>de</strong>spassivas, foram aqueles paulistas que tomavam por divisa vaidosa,ao menos porbm nk suspeita <strong>de</strong> indignida<strong>de</strong>, o famoso principio: "antesque<strong>br</strong>ar, que torcer".


JerBnimo foi trancar o testamento e as pistolas no arma<strong>rio</strong> coma mesma fria simplicida<strong>de</strong> com que os tirara <strong>de</strong>le e os mostrara pouco antes.0s dois amigos voltaram ao gamb, or<strong>de</strong>naram <strong>de</strong> novo as pedras,outra vez AntBnio lanpu no tabuleiro o seu dado e outra vez JerBnimoIhe disse:- 0 vice-rei nos oprime; alBm do mais o recrutamento nbtardaa caCar o povo. . .- JB estB caqando: recebi dos meus fregueses notlcias<strong>de</strong> MagB, <strong>de</strong>ltapacorg e <strong>de</strong> Cabo F<strong>rio</strong>, on<strong>de</strong> o recrutamento B horrivel; queriam poupl-loB cida<strong>de</strong> durante os dias da folganp do entrudo; mas os pasquins <strong>de</strong> hojeexacerbaram o vice-rei que mandou recrutar sem pieda<strong>de</strong>.- Como <strong>de</strong>vemos proce<strong>de</strong>r?- A resistiincia B impossivel.- Ant6nio.e~ penso que hB duas resistiincias, e que uma dasduas B sempre possivel.- Qual?- A resistiincia passiva, a resistiincia que pela inercia cria embaraqos,e pela nega~b dos meios fatiga a violiincia. Doravante eu nzo dareimais um s6 real, o mais insignificante auxllio ao <strong>gov</strong>erno: o que o <strong>gov</strong>ernoquiser <strong>de</strong> mim hb <strong>de</strong> tirar-mo B for~a; contra o <strong>gov</strong>erno do vice-rei nem umapalavra, hei <strong>de</strong> observar completa submissk passiva; mas a fdvor do <strong>gov</strong>ernodo vice-rei nem um passo, nem o mais leve concurso.- A idBia d boa; muitos te seguirzo o exemplo.- Nada mais <strong>de</strong> donativos, nem <strong>de</strong> oferecimento <strong>de</strong> trabalhadorespara as o<strong>br</strong>as do rei; que nos arranquem 6 nosso dinheiro, e que nostomem B forp nossos escravos; o arblt<strong>rio</strong> e o <strong>de</strong>spotismo tambem wnsam,ou se tornam imposslveis pelo 6dio <strong>de</strong> todos; fapmo-10s cansar pelo excessodas violancias, e morrer pela sentenp da con<strong>de</strong>na~b geral.- Tens mil vezes razzo, JerBnimo, disse AntBnio; mas eu enten-


do que nZo basta a inercia, e que B indispendvel tambem a aca"o negativa:on<strong>de</strong> o <strong>gov</strong>erno do vice-rei perseguir haja proteGo, caridoso amparo e coutoaos perseguidos; um, dois h6spe<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mais nb exigem aumento <strong>de</strong> pratosem nossas mesas; em regra nossas refeiq6es chegam para o triplo da famllia;a hospedagem 6 lam <strong>de</strong>ver, hospe<strong>de</strong>mos os que fugirem B persegui~b.Jerbnimo sacudiu a cabeca, indicando <strong>de</strong>saprovat$o.- Discordo e discordarei <strong>de</strong> tudo quanto pu<strong>de</strong>r dar ao <strong>gov</strong>ernoo direito <strong>de</strong> repressiio; na minha i<strong>de</strong>ia nb ha ofensa das leis <strong>de</strong>l-Rei nossosenhor, e na tua ha: ninguem, sem <strong>de</strong>linqiiir, acouta ou protege contra aa~Zo da autorida<strong>de</strong> o hornem criminoso ou niio que a autorida<strong>de</strong> se empenhaem pren<strong>de</strong>r.- Eu nZo falei em proteqb a criminosos.- Embora: falaste em vitimas injustamente perseguidas, em infelizesrnarcados pela vingan~a e pelos bdios pessoais dos recrutadores; masnem para salvar essas vitimas nos e licito ultrajar as leis, maquinando contraa aqb da autorida<strong>de</strong>.- Ora esta!. . . entZo se urn <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>sgrapdos te batesse B portaesta noite, fugindo a uma patrulha <strong>de</strong> soldados, tu Ihe negarias entrada e asilo?.. .- Ainda mesmo a reus <strong>de</strong> certos crimes eu nb o negaria; masao romper do dia <strong>de</strong> amanhii, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fazer almo~aregaladamente o h6spe<strong>de</strong>,dar-lhe-ia uma bolsa cheia <strong>de</strong> ouro, e dir-lhe-ia: o <strong>de</strong>ver da hospedagemesta cumprido por mim; agora salve-se, como pu<strong>de</strong>r.- Para um homem generoso 6 pouco.- Eu sou ainda mais respeitador do <strong>gov</strong>erno do que homem generoso.- Jer6nimo!- Que 6?- E as pistolas que guardas naquele arma<strong>rio</strong>?. . .- Vinganqa <strong>de</strong> honra ultrajada; mas crime na propria conscienciado crirninoso, se eu precisar vingar-me.- ES urn parlapatiio.- Por qu6?. . .- Porque acoutarias durante um mss, um ano, <strong>de</strong>z anos o infelizinjustamente perseguido pela autorida<strong>de</strong> que <strong>br</strong>adasse B tua porta: "protegeime!"- Faria o que disse ha pouco.- Farias o que acabaste <strong>de</strong> ouvir-me.- NZO!- Sim!- NZo!- Aposto.


- S6 se Bs tu que vens pedir-me asilo.- lsso 6 medo <strong>de</strong> apostar.- Aposto o que quiseres.- A Bpoca 15 tal, que bem po<strong>de</strong> dar-se a hip6tese em qualquerdia: rnarco o prazo <strong>de</strong> vinte dias, porque exatamente acaba na noite da serra-~b da velha.- Como te parecer.- Se ate 19 ninguBm te vier pedir guarida, pacisncia, nZo me dareipor convencido; mas perco a aposta, e virei jantar contigo em quatro domingosconsecutivos; mas se eu ganhar a aposta em qualquer dia <strong>de</strong>sse prazo,tu irhs com a comadre e as meninas assistir da minha casa B passagem da serra~a"oda velha e em seguida cear comigo; hein?. . .- Entendo: juraste comer o meu peixe da quaresma em quatrodomingos. Est6 feita a aposta.- Vamos f inalmente ao gamzo.- E verda<strong>de</strong>. .. e agora que sinto o tabuleiro nas pernas.0s dois amigos sorveram suas pitadas <strong>de</strong> tabaco amostrinha, elantpram os dados: coube jogar primeiro a Antbnio, que sacudindo os dadosno copo, ia atir6-10s no tabuleiro, quando se suspen<strong>de</strong>u, ouvindo bater palmase uma voz argentina e trdmula dizer:- Deus esteja nesta casa.- Amem, respon<strong>de</strong>u Jerbnimo, levantando-se.- Quer me parecer que hoje nZo jogamos o gamgo, observouAntbnio..


XVIJerBnimo foi at6 A porta da entrada que se a<strong>br</strong>ia para urn pequenoterraqo com duas escadas laterais.- Po<strong>de</strong> subir e entrar.Saiu <strong>de</strong> urna ca<strong>de</strong>irinha <strong>de</strong> aluguel urna mulher <strong>de</strong> mantilha, quesubiu a escada do terraco e entrou na sala. Era urna mulher alta que pelo vultoindicava ser magra e sem dhvida tinha alvo rosto, pois que <strong>br</strong>anca e finafoi a ma"o que mostrou fora da mantilha, entregando urna carta a JerBnimo.- Queira sentar-se, tornou este, oferecendo-lhe urna ca<strong>de</strong>ira.A mulher sentou-se, Jer6nimo a<strong>br</strong>iu a carta e 3 medida que a foilendo, seu rosto corou fortemente, as mabs tremeram-lhe e o fog0 da ira <strong>br</strong>ilhouem seus olhos.Acabando <strong>de</strong> ler a carta. do<strong>br</strong>ou-a e p6-la no bolso, e enquantoa mulher <strong>de</strong> mantilha, tendo a cabeca ta"o caida que a ponta do queixo tocava-lheno peito, parecia esperar importante <strong>de</strong>cisgo, o no<strong>br</strong>e velho levantousee agitado passeou ao longo da sala durante alguns minutos; enfim, comose tomasse urna resoluc50, mandou chamar sua esposa.A senhora In& entrou, e fez <strong>de</strong> longe um leve cumprimentomulher <strong>de</strong> mantilha que se levantou para saudh-la.- Ings, precis0 ler-te esta carta, vem c&.,E levou a mulher para a janela mais afastada em cujo v b <strong>de</strong>sapareceramambos <strong>de</strong>fendidos pelas grossas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pedra da antiga edificaqa"odas casas gran<strong>de</strong>s.JerBnimo leu em voz baixa a carta que recebera 8 sua esposa elogo em seguida perguntou:- Que pensas?. . .- Eu n k sei: o melhor <strong>de</strong> todos os conselhos 6 aquele que quiseresseguir.- Eu, porem, quero ouvir-te: acho-me em luta comigo mesmo;hesito. . .$2 a:%. 9 .,


pe<strong>de</strong>m.- Por que?- 0 meu <strong>de</strong>sejo era servir, e o meu <strong>de</strong>ver 6 n b servir ao que me- Nunca <strong>de</strong>sejaste o mat, e o <strong>de</strong>ver nunca 6 ofendido pelo verda<strong>de</strong>irobem; Deus me perdoe, se erro.- Explicar-me-ei melhor: eu <strong>de</strong>sejo e n b <strong>de</strong>vo asilar em minhacasa esta vitima <strong>de</strong> infame perseguick.- Se hh vltima <strong>de</strong> infame perseguicb, <strong>de</strong>ves dar-the asilo e<strong>de</strong>fendl-la.- contra as leis <strong>de</strong>l-Rei nosso senhor.- E conforme as leis <strong>de</strong> Deus senhor dos reis, da terra.Jer6nimo estava no caso daqueles que, almejando, ser convencidospara <strong>de</strong>sculpar-se ante a prbpria consciencia, ce<strong>de</strong>m As prim'kiras raz<strong>de</strong>sque Ihe apresentam; felizmente para ele a primeira. raza"o que a senhora In&Ihe apresentou, vinha cheia <strong>de</strong> uncb religiosa.- Inb, disse ele, tu refletes bem.- Eu na"o reflito, Jer6nimo;digo o que aprendi, gracas a Deus.- Mas alem <strong>de</strong>ste embaraco hh outro muito mais s6<strong>rio</strong>.- Qual?- Ouviste, aten<strong>de</strong>ste bem B carta que ti?- Sim.- As relac<strong>de</strong>s dihrias, constantes, <strong>de</strong> nossas filhas com a tat mulher<strong>de</strong> mantilha assustam-me. . .- Desejas <strong>de</strong>veras prestar-the asilo?. . .- Confesso que <strong>de</strong>sejava. . . tenho meus motivos.- Deus abencoari a o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>.- Mas as meninas?. . .- 0 gabinete contlguo ao do oratb<strong>rio</strong> nb tem comunica@ocom o resto da casa.- E <strong>de</strong> dia?- Sabes que acordo sempre mais cedo e me <strong>de</strong>ito sempre maistar<strong>de</strong> do que nossas filhas.- Qualquer <strong>de</strong>scuido facilitarh liberda<strong>de</strong>s que n b admito.- Jerbnimo, queres saber? Creio que Deus nosso senhor quis p<strong>br</strong>em provas os nossos cora~es: em nome <strong>de</strong> Deus fapmos esta o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> miseric6rdia.Eu respond0 pelas meninas.- Tu respon<strong>de</strong>s por elas, In&?. . .' A virtuosa senhora, ouvindo a pergunta do marido feita A m0<strong>de</strong> Irene e InQs, sorriu-se e disse:- Sou mze, meu amigo; as mses viiem mais e adivinham antesdos pais tudo quanto se refere aos filhos; sou mge que vB mais e que adivinhaantes <strong>de</strong> ti o que mais tar<strong>de</strong> me escon<strong>de</strong>s para poupar-me cuidados.


JerBnimo ficou um pouco confuso.- Respondo pelas meninas, repetiu a piedosa e digna senhora; evou mandar preparar o gabinete.A senhora Ink retirou-se, e JerBnimo, levantando a cabqa e cravandoos olhos no du, disse em voz alta sumida, mas lanpada no corapb.- Santlssima Virgern Ma"e <strong>de</strong> Deus! Esta o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> miseric6rdiaque vou fazer recaia toda por vossa po<strong>de</strong>rosa intercessa"~ em proveito daminha inocente Ink, em favor e <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> cuja virtu<strong>de</strong> e canida<strong>de</strong> peqo ereclamo a protecb divina.E tendo-se persignado, JerBnimo <strong>de</strong>ixou a janela, foi a sua secrethria,escreveu <strong>br</strong>evlssima carta que fechou e selou, dirigindo-se i mulher<strong>de</strong> mantilha:- A senhora fica conosco, disse-the; <strong>de</strong>spache a ca<strong>de</strong>irinha, e d6esta carta ao escravo que a acompanhou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o lugar don<strong>de</strong> veio para acida<strong>de</strong>.A mulher <strong>de</strong> mantilha levantou-se, avanvou um passo para ovelho, beijou-lhe com ardor a mgo, que Ihe dava a carta e foi <strong>de</strong>spachar aca<strong>de</strong>irinha e o criado.JerBnimo ficou por momentos a d s com AntBnio, e olhandopara ele corou, e sorriu-se.Des<strong>de</strong> a leitura da carta trazida pela mulher <strong>de</strong> mantilha, JerBnimotinha esquecido completamente a presenp <strong>de</strong> AntBnio e a singularaposta que fizera; mas ao ofha-lo, <strong>de</strong> sirbito lem<strong>br</strong>ou-se da conversacfioqua tivera, dos princlpios <strong>de</strong> obedisncia severa que sustentara e do imediato<strong>de</strong>smentido que dava contradit6<strong>rio</strong> Aqueles mesmos principios: corou pororgulho, sorriu-se por amiza<strong>de</strong>.A mulher <strong>de</strong> mantilha voltou antes que os dois velhos amigos tivessemtrocado palavras; logo <strong>de</strong>pois a senhora Inls tornou sala, e veio tomarconta da asilada a quem convidou para segui-la ao aposento que Ihe <strong>de</strong>stinava.Quando ambas iam sair, JerBnimo disse B mulher <strong>de</strong> mantilha,mostrando-lhe AntBnio:- Minha lealda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-lhe uma prevenpa"~: este velho 6 o meuprimeiro amigo; com ele nb tenho reservas posslveis; o nosso seQredo seratambbm <strong>de</strong>le, que em minha falta Ihe servira <strong>de</strong> protetor ainda melhor.A mulher <strong>de</strong> mantilha aproximou-se <strong>de</strong> AntBnio, e tomando-lhea mk, beijou-a, como tinha beijado a ma"o <strong>de</strong> JerBnimo.A senhora In&s levou consigo a mulher <strong>de</strong> mantilha.Jeranimo voltou-se entfio para AntBnio, e <strong>de</strong>u-lhe a carta quehavia recebido. e qlle este sem hesita~so tomou e leu para si<strong>de</strong> princlpio afim..


- Bem te dizia eu! disse AntBnio, restituindo a carta.- Sim; mas, tu o vbs, era imposslvel que eu resistisse! Quem meescreve B um amigo, um dos meus melhores fregueses, estabetecido na vilao~ulenta <strong>de</strong> Santo AntBnio <strong>de</strong> Sh;tudo isso 6 o menos; nota porem: umpo<strong>br</strong>e casal tem uma bela e honestissima filha, e um filho rico <strong>de</strong> inteligbncia,que ali nas aulas dos fra<strong>de</strong>s franciscanos, que o estimam e <strong>de</strong>le se apo<strong>de</strong>ram,faz prodlgios e tem o infortlinio <strong>de</strong> superar, <strong>de</strong> tornar invisivel o ru<strong>de</strong> e<strong>br</strong>onco filho mais novo do capitgo-mor do distrito, que por isso o aborrece;ainda pior: o filho mais velho do capitgo-mor tenta seduzir a bela filha dopo<strong>br</strong>e casal e repelido por ela chega a ameaqar os pais; essa menina, AntBnio,chama-se Inb, tem o mesmo nome <strong>de</strong> minha filha, quase a mesma <strong>de</strong>sdita datua afilhada, a diferenq linica B que eu sou rico, e que a outra lnbs 6 filha<strong>de</strong> pais po<strong>br</strong>es; perseguiqb infame! Ao menino mais talentoso do que o estlipidofilho do capitb-mor, ao filho linico e esperancoso <strong>de</strong> mlsera famlliamarca-se e procura-se para soldado recrutado, e a linda donzela <strong>de</strong>svalida esem fortuna atropela-se, armam-se ciladas, e maquinam-se viol6ncias para osgozos impuros do filho mais velho do senhor capitgo-mor!. . . Esta donzelatambbm se chama Inbs, AntBnio! Que coinciddncia nos tormentos quesofro!. . .- Ainda bem que veio ao caso a coinciddncia.- Dize, pois, que podia, que me cumpria fazer?. . . Das duasvltimas <strong>de</strong> atroz perseguick, uma me chega recomendada por bom amigo,por homem honrado e incapaz <strong>de</strong> mentir; que <strong>de</strong>veria eu fazer? dize-o peloamor <strong>de</strong> Deus!- Devias fazer o que fizeste, JerBnimo.- Portanto eu errava ainda ha pouco, quando conversava contigo;nb hh principios absolutos na vida humana. A minha vaida<strong>de</strong> foi castigada:no mesmo dia, na mesma hora fiz o contra<strong>rio</strong> do que assegurava ejurava fazer!. . .AntBnio comqou a rir.- Guloso, exclamou JerBnimo; n50 me comeras o peixe <strong>de</strong> quaresmaem quatro domingos, sou eu, minha mulher, as meninas e esta miste<strong>rio</strong>sasenhora <strong>de</strong> mantilha que havemos <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar a tua ceia na noite da serrackda velha.- Confessas que per<strong>de</strong>ste a aposta?- E claro: apronta-nos boa ceia.- Fica a meu cuidado; agora experimentemos, se e possivel quehoje nos <strong>de</strong>ixem jogar o gamgo.0s dois velhos amigos tomaram <strong>de</strong> novo o tabuleiro do gamgo eor<strong>de</strong>naram as pedras que se tinham <strong>de</strong>sarranjado.


Irene e Inks, ou, como o povo as chamava, os dots li<strong>rio</strong>s, tomaramao pk da letra a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> AntBnio Pires, e a tolerante concessZo <strong>de</strong>JerBnimo, e rnandaram comprar com as cautelas que o padrinho <strong>de</strong> lndsaconselhara algumas duzias <strong>de</strong> lim6es-<strong>de</strong>-cheiro.Enquanto na"o chegarn os compradores <strong>de</strong> lirn6es-<strong>de</strong>-cheiro queas meninas <strong>de</strong>spacharam, matarei o tempo, conversando so<strong>br</strong>e o entrudo.Hh cerca <strong>de</strong> vinte anos que a mascara rnatou a seringa, que opasseio e o baile carnavalesco da nova civiliza~Zo aniquilaram o entrudo doscostumes ru<strong>de</strong>s trazidos dos seculos passados. A gera~a"o mo<strong>de</strong>rna ainda hojeouve <strong>de</strong>scri~6es completas <strong>de</strong>sse folguedo, loucura festiva <strong>de</strong> trb dias; daquimais a vinte anos ninguhm se lem<strong>br</strong>ara do entrudo, e poucos cornpreen<strong>de</strong>~a"~o que era entrudo.0 entrudo era durante os trQ dias que se chamarn do carnavalo jogo <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o menino ate o velho, <strong>de</strong> ambosos sexos, e <strong>de</strong> todas as classes da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> todas, porque tambem os escravosjogavam entre si.0 jogo consistia essencialmente em molharern-se uns aos outros;o exaltamento e o frenesi dos jogadores, uma vez travado o cornbate, nZo selirnitavarn a agua e com outros meios enxovalhavarn, como podiam, naturalmentehavia no jogo praticas <strong>de</strong>licadas, prhticas ru<strong>de</strong>s e praticas selvagens.A prhtica <strong>de</strong>licada adotava o lirnzo <strong>de</strong> cera cheio <strong>de</strong> aguas perfumadas,e tolerava a seringa esguichando hguas da rnesma natureza; a prhticaru<strong>de</strong> ostentava-se no banho <strong>de</strong> corpo inteiro dado 9 for~a em gran<strong>de</strong>s garnelBesou banheiras <strong>de</strong> pau, e na aplica~b do polvilho ao rosto; a prhticaselvagem apelava para todas as tintas, e ate nos jantares para o arrojo <strong>de</strong> caldosgordurosos e com especialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> - arroz-<strong>de</strong>-leite - ao rosto e ao corpodos jogadores.Molhar sem ser molhado era para alguns ponto <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, queem geral se reputa\a <strong>de</strong> rnau gosto, quando se jogava o entrudo comsen horas.


Quem na"o queria jogar o entrudo. trancava as portas e janelas <strong>de</strong>sua casa, e nZo saia a rua durante trls dias.As laranjinhas ou lim6es-<strong>de</strong>-cheiro jogavam-se <strong>de</strong> perto e <strong>de</strong> longe:<strong>de</strong> perto nas ruas entre os que se encontravam, e no inte<strong>rio</strong>r das habita-~Ges, on<strong>de</strong> se reuniam familias para <strong>br</strong>incar, o que era muito comum; <strong>de</strong>longe das ruas para as janelas dos so<strong>br</strong>ados, como combate entre a forp que'atacava a prap e esta que se <strong>de</strong>fendia, ou <strong>de</strong> so<strong>br</strong>ado contra so<strong>br</strong>ado, casaterrea contra casa terrea, como fortalezas a bombar<strong>de</strong>ar-se. Muitas vezes grupos<strong>de</strong> jogadores invadiam as casas, como assaltantes que escalavam muralhas<strong>de</strong> fortes, e entgo a alegre e ruidosa peleja comepva na escada, estendia-sepelos corredores, e inundava as salas.Nas ruas e pracas a multidzo estrepitosa tresloucava sem medida;os gritos e as gargalhadas, As vezes injurias e violbncias, outras vezes passageiras<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns tumultuavam sem perigo a cida<strong>de</strong>; homens e mulheres <strong>de</strong>educacb <strong>de</strong>smazelada, ou <strong>de</strong> costumes livres, com os vestidos alagados grudando-seao corpo, e <strong>de</strong>senhando perfeitamente as formas, com as caras pintadas<strong>de</strong> vermelho e negro, com as roupas rotas, os pes nus, corriam, fugindoou perseguindo, molhando, enxovalhando, pintando, e besuntando conhecidose <strong>de</strong>sconhecidos, e <strong>de</strong> hora em hora procurando as tavernas, porgosto muitos, por necessida<strong>de</strong> todos para beber aguar<strong>de</strong>nte e molhar com elaos corpos resfriados.No inte<strong>rio</strong>r das casas po<strong>br</strong>es e ricas, on<strong>de</strong> se ajuntavam familiasamigas, o entrudo nb era <strong>br</strong>utal; era porem igualmente arrebatado e <strong>de</strong>lirante:jurava-se trls vezes, quatro e mais no fim <strong>de</strong> cada acesso do jog0fe<strong>br</strong>icitante, adih-lo por algumas horas aprazadas; senhoras e homens mudavam<strong>de</strong> vestjdos, tinham-se trancado 8 chave os tabuleiros das laranjinhascheirosas; mas <strong>de</strong> subito um lima"o-<strong>de</strong>-cheiro voava no espaco e ia que<strong>br</strong>ar-secontra alguem, 18 se ia o juramento, e recomepva a batalha, que s6 8 noite etar<strong>de</strong> terminava.Como nos atuais festejos carnavalescos, o entrudo era animadono domingo, fraco na segunda-feira, <strong>de</strong>senfreado e frenetic0 na terqa-feira.0 entrudo era mil vezes mais contagioso que a mascara, porqueera ilimitadamente provocador; so<strong>br</strong>avam os casos em que os velhos maisausteros e severos, as donzelas mais mimosas e as mais acanhadas, aborrecendoo entrudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suas pragas e <strong>de</strong> seus protestos,se viam molhados, perdiam as cabecas, e se tornavam fu<strong>rio</strong>sos jogadores dojog0 d'dgua.Sem contesta~b havia muitos que abusavam da gran<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>autorizada pelos costumes do entrudo; e positivo que nesse jog0 <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado,nessa reunizo <strong>de</strong> tantos homens e senhoras que se apertavam em lutas,o pudor <strong>de</strong>stas nem sempre escapava a atrevimentos que se perdoavam ou


nao. 0 menor <strong>de</strong>sses abusos ainda era um abuso pela inten~b; o aneloar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um namorado, anelo que com frequdncia se realizava, sendo compreendidoe tolerado B custa do rubor do pejo que assomava Bs faces da mulheramada, era que<strong>br</strong>ar Com a ma"o um limb-<strong>de</strong>-cheiro suaviqsimo so<strong>br</strong>e aparte supe<strong>rio</strong>r e n50 velada do peito querido, <strong>de</strong> mod0 que a dgua odoriferaIhe fosse banhar os csndidos seios.Nb B possi'vel negd-lo: os folguedos do nosso carnaval na"o s bmenos perigosos do que o antigo entrudo, no que diz respeito B sau<strong>de</strong> dosque neles tomam parte; mas em relacgo A moral a socieda<strong>de</strong> moralizada ficoumenos exposta. 0 nosso carnaval tambem facilita mil abusos, mas em regraas vitimas <strong>de</strong>sses abusos n b tdm muito que per<strong>de</strong>r com eles, e, o que emais, teve a fortuna <strong>de</strong> menos dspero, muito mais aparatoso, e do<strong>br</strong>adamenteaprazlvel substituir um jogo ru<strong>de</strong>, material e d~senvolto.Havia muitos ou pelo menos alguns que nb jogavam, nem permitiamque em suas casas se jogasse o entrudo, e isso por princlpios <strong>de</strong> morale <strong>de</strong> higiene.Jer6nimo Li<strong>rio</strong> era um <strong>de</strong>sses: suas filhas tinham visto o entrudosempre <strong>de</strong> longe, e a fingida cegueira dos pais tolerava apenas que elas fizessemuma dhzia <strong>de</strong> laranjinhas para molhar uma a outra. Em 1766 a intervencb protetora do padrinho <strong>de</strong> In& autorizara a compra <strong>de</strong> duas caixas <strong>de</strong>lim6es-<strong>de</strong>-cheiro, o mais ostensivo <strong>br</strong>inquedo.0s portadores das duas meninas chegaram enfim.


0s dois Il<strong>rio</strong>s pen<strong>de</strong>ram suavemente para as caixas <strong>de</strong> laranjinhasque acabavam <strong>de</strong> a<strong>br</strong>ir.Brilhavam nos olhos a flama, e nos IBbios o sorriso da alegria <strong>de</strong>l rene e lnl;Eram limbes-<strong>de</strong>-cheiro <strong>br</strong>ancos, ver<strong>de</strong>s, ru<strong>br</strong>os, amarelos, <strong>de</strong> todasas cores e nuanps posslveis.. .- Ta"o bonitos, diz Irene; que faremos <strong>de</strong>les?. . .Inls fez um mom0 e respon<strong>de</strong>u:- Tu me molharhs e eu te molharei. . . eis a( tudo.A no<strong>br</strong>e mZe das duas meninas tinha parado junto <strong>de</strong>las e ascontemplava e ouvia risonha.l rene tornou :- Se pu<strong>de</strong>ssemos molhar mais alguem. .- Nhanha", disse Inb, meu padrinho me <strong>de</strong>u licenqa para molhara todos.. . e, se nbfosse meu pai, eu era capaz. . .- De qui?. . . .- De molhar, <strong>de</strong> que<strong>br</strong>ar lim6es em meu padrinho que <strong>de</strong>ulicenp para isso.. .A senhora lnds na"o se p6<strong>de</strong> vencer, riu-se da i<strong>de</strong>ia da filha e <strong>de</strong>mod0 que as meninas se voltaram para ela.- MamZe ouviu?- Ouvi, sim.- E que diz?- VZo molhar o compadre: cada uma leve dois limees, cheguemsea ele sem mostrar os lim6es, e na"o tenham medo.- E meu pail.. . perguntou Irene, enquanto In& se armava,nb corn dois, mas com quatro IimBes em suas mbs pequeninas.- Eu me acharei perto <strong>de</strong> vosso pai para dizer que vos <strong>de</strong>i licenwpara o que i<strong>de</strong>s fazer.


As duas meninas animadas pela mse, palpitantes <strong>de</strong> emoqa"o,dirigiram-se B sala, escon<strong>de</strong>ndo, como pu<strong>de</strong>ram, os li~<strong>de</strong>s-<strong>de</strong>-cheiro que levavam,e se aproximaram <strong>de</strong> AntBnio.Era exatamente no momento em que, armadas as pedras, os doisamigos lancavam os dados.- Vou dar-te um gamzo cantado! exclamara o padrinho <strong>de</strong> Inks.Mas <strong>de</strong> s~jbito soltou um grito: as meninas tinham-lhe que<strong>br</strong>adoos lim<strong>de</strong>s-<strong>de</strong>-cheiro no peito.Em vez <strong>de</strong> ralhar JerBnimo <strong>de</strong>satou a rir.- Ah, <strong>br</strong>ejeirinhas! exclamou AntBnio, levantando-se e largandoo tabuleiro do gamb nos joelhos do parceiro.E correndo a um moringue d'hgua, que vira so<strong>br</strong>e a mesa, tomou-o,mas em vez <strong>de</strong> vingar-se das meninas, foi <strong>de</strong>spejh-lo na cabe~a <strong>de</strong>JerBnimo que ainda se ria.Jer6nimo <strong>de</strong>ixou cair o tabuleiro do gamgo, e levantando-se parao inte<strong>rio</strong>r da casa, voltou com um prato dfBgua que atirou so<strong>br</strong>e AntBnio.As meninas tornaram com outros IimBes e tambem a senhoraInk que os que<strong>br</strong>ou no marido e no compadre; ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> lim6es-<strong>de</strong>cheiroda casa on<strong>de</strong> os portadores <strong>de</strong> Irene e Inb os tinham ido comprar,prevendo o costumado fervor que sucedia semDre ao comeco do jogo, apareceramno terreiro, trazendo tabuleiros disfar~ados em caixas fnchadas;AntBnio e JerBnimo compraram todos estes, e a luta se tornou mais vigorosae animada com a abundsncia e igualda<strong>de</strong> das armas, embora houvesse <strong>de</strong>sproporqbentre os combatentes; porque toda a familia Li<strong>rio</strong> acabava <strong>de</strong> fazercolisb contra AntBnio.De repente e ao gran<strong>de</strong> ruido que se fazia, apareceu correndoagitada e temerosa a mulher <strong>de</strong> mantilha, jB por6m sem mantilha, e <strong>de</strong>ixandover em si uma bela moqa vestida com simplicida<strong>de</strong>.A chenada imprevista da jovem fez hesitar por instantes os combatentes;as duas meninas ficaram sur~reendidas; JerBnimo contrariado; masa senhora lnts pronunciava-lhe <strong>br</strong>eves palavras ao ouvido, quando tambemAntBnio exclamava a bela moqa:- Sb quatro contra um! Venha em meu socorro, menina!. . .A moqa confusa e trdmula n80 ousava avanCar um passo; JerBnimoporem que ouvira o bom conselho, provocou-a, arrojando-lhe limces, noque foi imitado pela mulher e pelas filhas; ent30 ela, risonha e com vivacida<strong>de</strong>pronta, voou para o lado <strong>de</strong> AntBnio, e tomou parte na aqzo, exce<strong>de</strong>ndoa todos na viveza do ataque e na certeza das pontarias.No fim <strong>de</strong> uma hora <strong>de</strong> amigas provocaqbes, risadas, gritos e alegria,que novos tabuleiros <strong>de</strong> limces, acudindo i mina explorada, alimentaram,o combate cessou por falta <strong>de</strong> municBes e pela fadiga dos combatentes.


que todos se acharam molhados da cabep aos pbs, assim como estava asala toda inundada.JerBnimo atirou-se em uma ca<strong>de</strong>ira, dizendo:- Eis ai o que fizeram aquelas duas doidinhas impelidas por umvelho crianca!- Cala-te ai, rabugento! Comadre, man<strong>de</strong>-nos vir aguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>Parati, disse AntBnio.- E basta <strong>de</strong> entrudo, ouviram? tornou o outro, falando a Irenee Inks; va"o mudar <strong>de</strong> roupa. Quanto a senhora. . . a senhora. . . esqueceu-meo seu nome.. .A moca respon<strong>de</strong>u, abaixando os olhos:- Isidora.- Peqo-lhe perdso, rnenina Isidora; pois fui o primeiro a <strong>de</strong>safialaa este jog0 maldito; an<strong>de</strong>, vB mudar <strong>de</strong> vestidos e tranquilizese que ningubmmais se lem<strong>br</strong>ara <strong>de</strong> entrudo nesta casa.A senhora Inks e suas filhas entraram para o inte<strong>rio</strong>r da casa, el sidora recolheu-se ao gabinete que Ihe haviam <strong>de</strong>stinado.Cada um dos dois velhos bebeu um chlix <strong>de</strong> aguar<strong>de</strong>nte e foramambos tomar outras roupas, ao mesmo tempo que alguns escravos varriam eenxugavam a sala.Meia hora <strong>de</strong>pois aqueles bons amigos achavam-se <strong>de</strong> novo emfrente um do outro, rindo-se das inocentes proezas que acabavam <strong>de</strong> fazerta"o contra os seus habitos e disposiqbes, e como um pouco envergonhadosambos, n50 disseram palavra so<strong>br</strong>e o entrudo.- JerBnimo, disse AntBnio: estou com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensaiar umaexperiencia. . .- Qual?- Quisera ver, se ainda haveria hoje pessoa ou fato que nos impedisse<strong>de</strong> jogar o gamb. . .- Pois experlmentemos.E, tomando o tabuleiro, sentaram-se e armaram as pedras; masimediatamente a senhora In& entrou na sala, e disse:- Compadre, o nosso feij50 esta na mesa.E foi a porta do gabinete chamar Isidora.- AntBnio, observou JerBnimo, sopa fria n b presta.- Has <strong>de</strong> ver que nem a tar<strong>de</strong> conseguiremos jogar o gamtio, respon<strong>de</strong>uAntBnio, <strong>de</strong>ixando o tabuleiro so<strong>br</strong>e as duas ca<strong>de</strong>iras.


XIXEram seis pessoas 8 mesa <strong>de</strong> um excelente e variado jantar <strong>de</strong>familia rica em dia <strong>de</strong> festa; dlido jantar da cozinha portuguesa <strong>de</strong> misturacorn os guisados especiais da cozinha <strong>br</strong>asileira: suculenta sopa, o monumentalcozido <strong>de</strong> vaca com seus numerosos acesso<strong>rio</strong>s, o Peru recheado, o leitbassado, o magnifico presunto, o arroz <strong>de</strong> forno, as galinhas assadas e <strong>de</strong>molho pardo, e, alem do mais, o lombo fresco e as costeletas <strong>de</strong> porco, ocarneiro assado, o peixe <strong>de</strong> forno, o negro feijb, e <strong>de</strong>z pratos ar<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>pimenta, enfeitiqadores do paladar e do olfato, e <strong>de</strong> ordina<strong>rio</strong> mais ou menosnocivos a sair<strong>de</strong>.Para so<strong>br</strong>emesa, doces secos e <strong>de</strong> calda, variadissimos, e supe<strong>rio</strong>resem numero e perfei~b a quanto nesse g6nero ostentavam e ostentam osbanquetes europeus; nos vinhos exclusivismo nacional, os do reino e nenhumoutro.Eram seis pessoas em um jantar que chegaria para sessenta: aindahoje nos dias solenes, em que se recebem algum, ou alguns amigos <strong>de</strong> familia,se observa essa prdtica, especialmente nas casas ricas do inte<strong>rio</strong>r doBrasil, on<strong>de</strong> o banquete apenas tocado pelos convivas, passa aos escravos doservi~o domestic0 e aos pajens dos hospe<strong>de</strong>s.Eram seis pessoas a jantar, Jerbnimo 8 cabeceira da mesa, a seulado direito lsidora e <strong>de</strong>pois AntBnio e a Senhora Inbs; ao seu lado esquerdoIrene, e em seguida Inbs, ou a sinhazinha, <strong>de</strong>fronte do padrinho. Esta disposi~bindicava a exclusb sistemdtica <strong>de</strong> toda e qualquer contigiiida<strong>de</strong> dasfilhas com os hospe<strong>de</strong>s. A regra nb se esten<strong>de</strong>ria com Antbnio que se sentariaon<strong>de</strong> Ihe aprouvesse, e mesmo entre as duas meninas, a quem tratava comopai; mas foi observada com rigor explicdvel pela presenp <strong>de</strong> Isidora, que<strong>de</strong>via apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo as leis, os costumes da casa, que alias eram geraisna colbnia.Irene e Inbs, os dois li<strong>rio</strong>s, comiam pouco, tocavam nos pratos,como passarinhos em frutas, ao contra<strong>rio</strong> <strong>de</strong> lsidora que mostrava o melhor


apetite, e mais <strong>de</strong>socupadas que os outros B mesa, observavam a bela hospedaa quem niio conheciam, nem sabiam quem era; se fora um mancebo, nbousariam levantar para ele os olhos, sendo por6m do seu sexo, e moca comoelas, ousavam do inocente direito <strong>de</strong> estudar-lhe as feiq6es, os modos eos vestidos.lsidora era uma moqa alta, esbelta, porem nb bem feita <strong>de</strong> corpo;tinha o peito <strong>de</strong>masiadamente largo, e a cintura pouco <strong>de</strong>licada; mas emcompensa~a"~ sua cabeqa era magnlfica: seus cabelos castanho-claros, finos ecrespos, perdiam-se escondidos em uma touca <strong>de</strong> mau gosto; tinha a fronte<strong>br</strong>anca, alta e espaqosa, os supercllios bastos sem exageraqgo e separados, osolhos gran<strong>de</strong>s, claros e-<strong>br</strong>ilhantes; o nariz <strong>de</strong> proporcional feiqb, as faces coradas,os lhbios quase grossos, levemente curvos, o supe<strong>rio</strong>r com finissimo efranco buqo mr <strong>de</strong> cinza clara, e ambos formando pequena e graciosa bocaornada <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes iguais e lindissimos; a ponta <strong>de</strong> seu queixo terminava comsuavida<strong>de</strong> o belo oval do rosto; seu pescoqo era mais grosso que fino, e suasmks <strong>br</strong>ancas, pequenas e bonitas, como <strong>de</strong>viam ser seus pds.Em seu proce<strong>de</strong>r e em seus modos lsidora dava testemunho <strong>de</strong>educaqk domdstica <strong>de</strong>svelada, mas comprometida pelo mais confuso acanhamento<strong>de</strong> moCa, apenas chegada da roqa; em seu trajar mais infeliz ainda,aldm da touca severa e funestlssima para sua natural beleza, vestia-se comaquela exagerada e sinistra simplicida<strong>de</strong> que amesquinha as gracas, e torna ocorpo como um cabi<strong>de</strong> do vestido.Em uma palavra, lsidora era bela, mas <strong>de</strong>sajeitada; <strong>br</strong>ilhante <strong>br</strong>utoapanhado no leito da corrente do <strong>de</strong>serto, precisava que a moda, lapidando-o,fizesse ostentar o seu elevado e natural valor.lsidora era uma linda roceira com todas as confuso"es, acanhamentoe ru<strong>de</strong>zas das solidBes em que vivera, e que na vida da cida<strong>de</strong> receberiao lavor, que havia <strong>de</strong> tornh-la espldndida beleza.Foi este pelo menos o julzo que sem inveja e com espontaneida<strong>de</strong>inocente e conscienciosa fizeram so<strong>br</strong>e ela Irene e Inbs.provhvel que lsidora <strong>de</strong>sejasse tambem e muito apreciar os encantosfisicos e n50 menos os enfeites das duas meninas da cida<strong>de</strong>; mas apo<strong>br</strong>e roceira sem duvida por vexame apenas <strong>de</strong> relance e a furto olhara algumasvezes para elas: era em verda<strong>de</strong> moqa excessivamente acanhada; tinhaos olhos quase sempre fitos, pregados, ou no colo ou no prato, e se Ihefaziam alguma pergunta, respondia com discricb, mas com voz trlmula esem olhar para o interlocutor; d em um ponto ngo sabia acanhar-se; comiacomo Antbnio Pires ou Jerbnimo Ll<strong>rio</strong>, que eram bons gastrbnomos; niiobebia porem vinho, e unicamente pelo <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> saudar a companhia, fazendosucessivamente a sau<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um dos convivas, como era <strong>de</strong> uso, tocaracom os ldbios em um cdlice <strong>de</strong> vinho.Jer6nimo e a senhora Inbs ocupavam-se particularmente da sua


hospeda, porern corn certo constrangirnento rnal dissirnulado, ou corn inexplicaveisreservas, que todavia nfio incornodavarn Isidora.AntBnio <strong>rio</strong> interval0 <strong>de</strong> cada prato entendia corn as rneninas eatirava ora a urna, ora a outra pequenas bolas <strong>de</strong> rniolo <strong>de</strong> pZo.0 jantar prolongou-se urn pouco; porque os dois velhos arnigosque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algurn tempo tinharn por companheira unica a gulosa Isidora, acabararnpor <strong>de</strong>ixa-la fora <strong>de</strong> cornbate, e continuaram rnuito plhcida e pausadarnentea atacar todos os pratos, arnenizando o gozo gastron8rnico corn historiase recordaq<strong>de</strong>s da sua mocida<strong>de</strong>.Enf in? resolveram-se os dois velhos a passar 3 so<strong>br</strong>ernesa, e JerBnirno,vendo retirarern-se os pratos do jantar, voltou-se para a rnulher, edisse:- Ah, In&! eu ja nZo sei comer, como dantes!- a velhice que ate do a~etite nos vai privando, observouAntdnio.E carregaram arnbos so<strong>br</strong>e as duas colunas <strong>de</strong> cornpoteiras e pratos<strong>de</strong> doces que se enfileiravarn na mesa; rnas nesse ataque lsidora fez-lhesboa companhia ate n firn.JerBnimo <strong>de</strong>u o sinal <strong>de</strong> terrno do jantar: levantararn-se todos eem pe ren<strong>de</strong>rarn graqas a Deus e persignararn-se.irnediatarnente <strong>de</strong>pois JerBnirno e Antdnio foram dorrnir a sesta,e lsidora retirou-se para o seu gabinete.Dormir a sesta era costume portugu6s rnuito rnais generalizado noclirna ar<strong>de</strong>nte do Brasil; mas JerBnirno e AntBnio nZo abusavam da sesta, e alirnitavam a uma hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso.O prirneiro que se levantou do leito foi Jeronirno, que indo aporta do quarto on<strong>de</strong> dorrnia o amigo, gritou-lhe:-- Acorda, velho pregui~oso! Vern jogar o garnzo.Antbnio acudiu ao charnado.- Deixar-nos-b jogar? yerguntou.- Estas rnanfaco, Antbnio? . . .- a quarta ou quinta vez que hoje inutilrnente tornarnos otabuleiro.E <strong>de</strong>ssa vez nern chegararn a tornh-lo; porque ouvirarn o tinir daespada <strong>de</strong> urn soldado <strong>de</strong> cavalaria que subia a escada <strong>de</strong> pedra do terraco.- EntZo? disse AntBnio.Jerdnirno nZo respon<strong>de</strong>u e chegou a porta, on<strong>de</strong> recebeu da rnzodo soldado urna carta corn carater oficial.A carta estava assinada por Alexandre Cardoso <strong>de</strong> Meneses corna <strong>de</strong>signaqZo <strong>de</strong> - ajudante-<strong>de</strong>-sala do senhor Vice-Rei e dizia assim:"Senhor JerBnirno Lf<strong>rio</strong>. Hole <strong>de</strong>pois do conhecirnento dosinsolentes, crirninosos e publicos <strong>de</strong>sa~atos e injurias a pessoa e autorida<strong>de</strong>


do senhor Vice-Rei, fixaram-se editais, proibindo absolutamente o jogo doentrudo sob penas que se marcaram; mas agora mesmo o senhor Vice-Reiacaba <strong>de</strong> saber com dolorosa surpresa e vivo e justo ressentimento que emvossa casa da Gamboa se ostentou escandaloso jogo <strong>de</strong> entrudo com ofensa<strong>de</strong> suas terminantes or<strong>de</strong>ns, e audaciosa provocaqb aos castigos impostos asemelhante crime <strong>de</strong> formal e manifesta <strong>de</strong>sobedibncia; or<strong>de</strong>nava a justiqasevera que fBsseis imediatamente preso e sujeito a duro castigo, como todosquantos em vossa casa concorreram coniventemente naquele crime; lem<strong>br</strong>ando-seporem dos servips que haveis prestado, or<strong>de</strong>na-vos o senhor Vice-Reique amanha" ao meio-dia compareqais na minha %la para dar-me explicaqBesdo vosso procedimento revoltado e <strong>de</strong> p6ssimo exemplo, a fim <strong>de</strong> que, ouvidasvossas <strong>de</strong>sculpas, se as ten<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>libere <strong>de</strong>pois o senhor Vice-Rei so<strong>br</strong>e avossa muito grave responsabilida<strong>de</strong> do crime <strong>de</strong> semelhante <strong>de</strong>sobeditncianas circunstdncias melindrosas em que se acha a capital da colbnia."Seguia-se a data e a assinatura.Mas <strong>de</strong>ntro da carta e em uma tira <strong>de</strong> papel <strong>de</strong> marca diferenteliam-se em letra disfar~ada as seguintes palavras:"0 oficial-<strong>de</strong>dsala obe<strong>de</strong>ceu; porem o amigo que hoje n b pb<strong>de</strong>conseguir mais, assevera que amanha" conseguira tudo; venha sem falta falar-Ihe amanha" ao meio-dia; pois que e isso formalida<strong>de</strong> indispensavel; o amigoIhe garante plena seguranca e a todos os seus."Ru<strong>br</strong>o e trbmulo <strong>de</strong> colera, Jerbnimo, contendo-se pordignida<strong>de</strong>propria, disse ao soldado:- Esta entregue: beba um cop0 <strong>de</strong> vinho e retire-se.A or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> seu senhor um escravo trouxe um gran<strong>de</strong> cop0 <strong>de</strong>vinho do Porto ao soldado que o bebeu todo, e voltou para a cida<strong>de</strong> a galopedo seu cavalo.- Que 6 isso, Jerdnimo? perguntou Antbnio.- Toma e 16.Enquanto Antbnio lia, Jerbnimo refletia.- Jer6nim0, disse Antbnio, entregando ao amigo a carta e o bi-Ihete; isto 6 um atentado incrivel! 0s sacrh<strong>rio</strong>s <strong>de</strong> nossas casas ngo siio tascassujeitas B fiscaliza~b imoral <strong>de</strong> sacrllegos; as tuas e as minhas pistolas na"obastam: quando a autorida<strong>de</strong> ataca as casas, e direito e <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> todos <strong>de</strong>fen-d8las com trabucos.'JerBnimo riu-se com um rir horrlvel.- Que rir e esse?- Olha, AntBnio; eu nunca fui citado em minha vida, e isto ecitaca"0, a que so faltou a vergonha do meirinho B porta!. . .- E assim!- Eu nunca fui injuriado por algubm, e nesta carta ha insultos,hi injdrias que eu n5o hei <strong>de</strong> perdoar.


e a ti!. . .- Nem eu.- H i at6 ameaca <strong>de</strong> perseguiqZo a minha mulher, a minhas filhas,Antbnio quis falar, e rugiu, gaguejando uma praga.- E ainda hi insult0 maior do que todos os que contkm estacarta infernal. .. ha este bilhete, e neste bilhete a extrema afronta. .. ha:nela a intengo <strong>de</strong> seduzir o pai para em seguida e por conta da gratidsoseduzir a filha!. ..- Da-me outra vez o bilhete.Jer6nimo entregou-o a Ant6ni0, que o leu <strong>de</strong> novo; e disse cornvoz rouca: Tens razzo; hA.Pois bem: quero vingar-me.- Conta comigo.- Sim; mas por ora te conservaras <strong>de</strong> parte.Nb.Eu o exijo.Conforme, que vais fazer?. ..Obe<strong>de</strong>cer.- Jerbnimo!- Farei o que <strong>de</strong>vo: o vice-rei me or<strong>de</strong>na que me apresente adar-lhe contas <strong>de</strong> mim, irei; mas dormir com a suspeita <strong>de</strong> um crime me eimpossivel; amanha" ao meio-dia 6 muito tar<strong>de</strong> para a minha honra: hei <strong>de</strong> irhoje, hei <strong>de</strong> ir ja; n60 quero <strong>de</strong>sculpar-me ao oficial-<strong>de</strong>-sala, quero queixarmedo vice-rei ao vice-rei.E eu?- Ficaris aqui, velando por minha familia; se eu nk voltar, 6que me mandaram p6r a ferros; porque vou falar portugub claro, portuguQsdo bom tempo dos nossos avos, portugubs leal, no<strong>br</strong>e e sem medo.E se niio voltares?- Proce<strong>de</strong>ras como te aconselhar a honra e a amiza<strong>de</strong> combinadascom a prudbncia.Vai, Jerbnimo.Antbnio, tu na"o <strong>de</strong>ixaras minha mulher e minhas filhas!. ..- Vai; eu ficarei aqui; mas se te puserem a ferros, o que 6 possivel,tamb6m tenho o meu piano.Qual B?- Custe o dinheiro que custar, tua mulher e tua filhas terk asiloseguro no convent0 d'Ajuda.- E tu?. ..- Depois <strong>de</strong> havb-las posto em seguranca, farei corn que me ponhamtamb6m a ferros.


- Antbnio!- Vai, Jerbnimo.Esses dois homens se conheciam: cada qua1 mais honrado e maisteimoso, sabiam ambos que era inhtil toda disputa para mudar a resolucZotomada por um <strong>de</strong>les; entendiam-se bern: eram amigos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo da po<strong>br</strong>eza:tinham-se relacionado so<strong>br</strong>e o mar, vindo ambos para o Brasil no mes-mo barco, em cuja tolda haviam dormido juntosao relento; tinham juradoamiza<strong>de</strong> e prot~iio um ao outro, e com o trabalho e a economia enriquecidoquase ao mesmo tempo, e em firme e constante estima reciproca. Eramamigos como dois irmiios amigos; as filhas <strong>de</strong> JerBnimo podiam contar comum segundo pai em Antbnio, e tanto mais que este sempre <strong>de</strong>cidido e pertinazcelibata<strong>rio</strong> por exagerado esplrito <strong>de</strong> perfeita in<strong>de</strong>pendhncia individual,nktinha familia que Ihe ocupasse o coraciio.Jeranimo tinha chamado um escravo e mandado selar um cavalopara si e aprontar dois pajens, e tendo combinado com Antbnio uma explicwkque servisse para poupar cuidados B mulher e 6s filhas que bem po<strong>de</strong>riamalvorwar-se, sabendo o verda<strong>de</strong>iro motivo da sua ida i cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spediu-seda fam~lia, e partiu 6s sete horas da noite,A senhora In& nk se iludiu; mas conteve-se por amor das filhas;niio dirigiu pergunta alguma a Antbnio; tomando porem por pretext0 a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> encontros sinistros 6 noite no caminho da Gamboa, a<strong>br</strong>iu o oratb<strong>rio</strong>,fez acen<strong>de</strong>r as velas e 6s nove horas da noite foi rezar com Irene eInes, sendo nesse piedoso ato acompanhada pelo velho compadre.As duas meninas repetiam as oracaes ditadas por sua mZe, e emborao fizessem corn a maior atenciio e f6, sentiam-se como que receosas <strong>de</strong>algum ma1 iminente; porque para elas era extraordinaria aquela ora~iio a horas, em que <strong>de</strong> costume ji se achavam recolhidas.Ficou dito que o gabinete, on<strong>de</strong> estava o oratb<strong>rio</strong>, era contiguoao que fora <strong>de</strong>stinado a Isidora, a qual, ouvindo a oraqa"o da familia hospitaleira,foi <strong>de</strong> manso e sem que a percebessem, ajoelhar-se tam&m, mas umpouco afastada das tr6s senhoras e <strong>de</strong> Antbnio, e rezou em voz baixa esumida.No meio da ladainha <strong>de</strong> Nossa Senhora a fadiga e a como~iio tolherama voz 6 senhora Inb que-a entoava; houve uma pausa <strong>de</strong> cruel ansieda<strong>de</strong>para esta que se empenhava em ocultar sua aflicb; logo porem umavoz <strong>de</strong> suavissimo e firme contralto se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u, continuando a entoar aladainha, e terminada esta, prosseguiu, dirigindo as orac6es.- Rezemos um credo, disse enfim Isidora, pela vida, seguranca efelicida<strong>de</strong> do chefe <strong>de</strong>sta familia!E rezou o credo em latim, pronunciando-o, como se fora umpadre.Quando acabava o credo, chegou Jer6nimo <strong>de</strong> volta dacida<strong>de</strong>, e


<strong>de</strong> joelhos como a mulher, as filhas e os hospe<strong>de</strong>s, ren<strong>de</strong>u gracas a Deus.Apagadas as luzes e fechado o orato<strong>rio</strong>, a senhora Inb foi apertara ma"O do marido, e logo <strong>de</strong>pois, procurando com os olhos Isidora, na"o aencontrou mais; dirigiu-se enta"o B porta do gabinete contiguo, e sem entrardisse em voz bastante alta para ser ouvida:- Deus te abencoe!- Que 6? perguntou Jerhnimo.- Um socorro oportuno e um credo que me ficaram no coraca"~.Irene e lnds receberam a b6nca"o do pai e <strong>de</strong> Ant6nio e se reti-raram seguidas pela zelosa ma"e e no<strong>br</strong>e esposa que se tranqiiilizara, observandoa serenida<strong>de</strong> e quase a satisfa~a"~ no rosto do marido.0s dois velhos amigos ficaram sos, e velaram, conversando, ate<strong>de</strong>pois da meia-noite.


Alexandre Cardoso tinha errado em seus c8lculos: mandando a terrlvelcarta e o trai~oeiro bilhete hora vizinha da noite a JerBnimo Ll<strong>rio</strong>, contavaque s6 no dia seguinte, e no prazo oficialmente rnarcado, se apresentaria estepara dar as explica~aes exigidas, e tanto mais que redigia a carta <strong>de</strong> modo aencher <strong>de</strong> terror o mais corajoso.Na segunda -feira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as oito horas da manhl, o ajudante oficial-<strong>de</strong>salaestaria no seu posto, e sornente com ele Jer6nirno Ll<strong>rio</strong> po<strong>de</strong>ria enten<strong>de</strong>r-se,pois que para chegar ao vice-rei era precis0 passar por ele, que quandoIhe convinha, sabia ser in<strong>de</strong>strutlvel barreira, tendo em todos os empregadosda sala e da alta administra~go criaturas suas.Refletindo assim, Alexandre Cardoso foi procurar esquecer-se da belaInbs, mergulhando a lem<strong>br</strong>an~a do seu amor ainda infeliz no Letes do jogo eda orgia.Al6m do jog0 e da orgia Alexandre Cardoso apetecera para um dosdias <strong>de</strong> entrudo o passatempo da seduqZo ou do rapto violento <strong>de</strong> urnabonita rapariga <strong>de</strong> cor, que tinha preten~6es a viver muito honestarnenteapesar <strong>de</strong> ser filha <strong>de</strong> um simples carpinteiro.Jeranimo Li<strong>rio</strong> tivera a mais feliz das inspira~ces.AS oito horas da noite, apresentou-se a p6 e s6 na antiga casa dos<strong>gov</strong>ernadores,on<strong>de</strong> estava o vice-rei; a guarda disputou-lhe a entrada e ele insistiu,<strong>de</strong>clarando que viera a chamado do pr6p<strong>rio</strong> vice-rei.Um soldado subiu a dar parte ao Con<strong>de</strong> da Cunha do que se passava, evoltou em <strong>br</strong>eve, dizendo que o vice-rei nb recebia pessoa alguma a taishoras.JerBnimo Li<strong>rio</strong> teimou; rasgando uma tira <strong>de</strong> papel da carteira, escreveuseu nome, e disse que havia questgo <strong>de</strong> honra, e caso <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> crimepirblico, o<strong>br</strong>igando-o a incomodar o chefe supremo da colBnia.0 soldado,, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longo hesitar, e convencido pela eloqiiencia <strong>de</strong>uma peca <strong>de</strong> ouro, tornou a subir, embora tremendo <strong>de</strong> medo.


Ouviu-se dai a pouco uma praga do vice-rei, e em seguida prolongadosilbncio.0 Con<strong>de</strong> da Cunha ouvira o andncio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> crime pdblico e sopitarasua ira, lera o nome <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong>, e se lem<strong>br</strong>ara <strong>de</strong> que esse homemera reputado um dos negociantes mais respeitaveis da praqa e um dos homensmais honrados e venerandos da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro: esse nome, aquem se a<strong>br</strong>iram todas as portas, n b achou fechada a do vice-rei.JerBnimo Li<strong>rio</strong> foi introduzido em uma sala particular do Con<strong>de</strong> daCunha, que o recebeu e o ouviu <strong>de</strong> p6.A sala estava ma1 esclarecida por uma dnica luz. 0 Con<strong>de</strong> da Cunhanos fracos raios <strong>de</strong>ssa flama se mostrou a JerBnimo Li<strong>rio</strong> que avanqou compasso firme, em p6, com a mZo esquerda apoiada na ilharga, alto, phlido, ecom a fronte severamente enrugada.- Por que me incomoda a esta hora? perguntou.- Porque a minha honra foi incomodada, senhor, respon<strong>de</strong>u com firmezaJerBnimo.- A sua honra. . .- Afrontada hoje por or<strong>de</strong>m do vice-rei, nZo po<strong>de</strong> esperar at6- NZo o entendo. . . anunciava-se um crime pdblico. . .- E o meu: o vice-rei me <strong>de</strong>clarou atroz criminoso; vim pedir o meucastigo. . .- 0 vice-rei sou eu; quaesta dizendo?- Joguei hoje o entrudo com minha mulher, minhas filhas e dois h6spe<strong>de</strong>sno inte<strong>rio</strong>r da minha casa na chacara que possuo na Gamboa.- Que tenho eu com isso? Man<strong>de</strong>i proibir o entrudo: 6 claro que oproibi nas ruas; que me importam as loucuras ou os folguedos do inte<strong>rio</strong>r dasua casa?JerBnimo Ll<strong>rio</strong> entregou a carta que havia recebido ao Con<strong>de</strong> da Cunhaque, chegando-se a luz, leu com enregelada aparbncia <strong>de</strong> serenida<strong>de</strong> as or<strong>de</strong>nse as ameaqas passadas em seu nome.- Exageraqzo <strong>de</strong> zelo muito IouvAvel, disse ele, restituindo a carta.- Vinha <strong>de</strong>ntro este bilhete, tornou JerBnimo, entregando a pequenatira <strong>de</strong> papel.0 vice-rei leu <strong>de</strong>z vezes o bilhete, examinou o papel do bilhete com oda carta, passeou ao longo da sala, meditando, e vindo parar <strong>de</strong> shbito diante<strong>de</strong> JerBnimo, disse-lhe:- Explique o fato ou a intriga, como os enten<strong>de</strong>.JerBnimo estremeceu <strong>de</strong> raiva.-. Fale, or<strong>de</strong>no-lhe que fale, tornou o vice-rei.- Senhor Vice-Rei, eu fui intimado para vir explicar um fato passadoem minha casa e <strong>de</strong>clarado crime revoltoso; corria a confessar o fato que B


0 Con<strong>de</strong> da Cunha encrespou as so<strong>br</strong>ancelhas.- Estava seguro que eu a ignorava?. . . Pesa bem, enten<strong>de</strong> bem o quepo<strong>de</strong> significar o que acaba <strong>de</strong> dizer?- Sim, senhor Vice-Rei.- Diga pois, diga franco e sem reservas don<strong>de</strong> Ihe vinha semelhanteseguranca, diga. . .- E que tenho a certeza <strong>de</strong> que o senhor Vice-Rei ignora muitas or<strong>de</strong>nsque seexecutam, e muitos atos que se praticam em seu nome!- Mas. . . entzo. . . essa minha ignorlncia 6 um <strong>de</strong>smazelo criminoso,indigno. . . uma prova <strong>de</strong> incapacida<strong>de</strong>. . .- Nb, senhor Vice-Rei; mas 6 uma cegueira fatal. . .0 Con<strong>de</strong> da Cunha <strong>de</strong>u um murro so<strong>br</strong>e a mesa, e exclamou:- Sei tudo quanto se faz!- NZo sabe, senhor Vice-Rei! N5o sabe, e ainda bem que o n3o sabe!0 Con<strong>de</strong> da Cunha agarrou com ambas as m3os o <strong>br</strong>aco direito <strong>de</strong>JerBnimo, e apertando-lho, disse:- Velho terrlvel! Quero dar-te o direito do insulto, fala! dize tudo! ...- N b sabe, senhor Vice-Rei, tornou Jerbnimo impavidamente; n3osabe; porque eu recebi <strong>de</strong> Portugal informa~ae so<strong>br</strong>e o carhter do senhorCon<strong>de</strong> da Cunha, e foram todas acor<strong>de</strong>s em lamentar a rispi<strong>de</strong>z do seu g6nio.' e em louvar o seu esplrito <strong>de</strong> justi~a severa, e a honestida<strong>de</strong> dos seus costumese do seu cariter.- E entzo?. . .JerBnimo hesitou pela primeira vez.- Fale! <strong>br</strong>adou-lhe o vice-rei.- E que, se o senhor Vice-Rei soubesse tudo quanto se faz em seu nomee os verda<strong>de</strong>iros motivos <strong>de</strong> atos que manda praticar, o senhor Con<strong>de</strong> daCunha nzo seria um homem honrado.0 velho, orgulhoso fidalgo e potente vice-rei, recuou alguns passosaturdido e como cambaleando pela violdncia do golpe que recebera; guardousilencio ameacador durante alguns minutos; <strong>de</strong>pois avancou para Jerbnimo edisse-lhe com voz cavernosa e trbmula:- Entendo: 6 inimigo <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.Jerbnimo respon<strong>de</strong>u:- Sou, senhor Vice-Rei.- Deseja perdb-lo. . .-- Desejo.0 Con<strong>de</strong> da Cunha esperava negativas, e a franca <strong>de</strong>claraqiio <strong>de</strong> JerBnimoainda mais o impressionou.- A razb <strong>de</strong>ssa inimiza<strong>de</strong>?- 6 segredo meu que, se tiver conseqiibncias, correrzo todas porminha conta e risco.


0 vice-rei refletiu ainda alguns momentos, e enfim perguntou:- Quais sa"o os fatos mais escandalosos, os abusos mais violentos oucon<strong>de</strong>nheis, com que o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala tem comprometido o rneunome?Jer6nimo respon<strong>de</strong>u logo.- Eu tinha o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> avisar o senhor Con<strong>de</strong> da Cunha do perigo quecorre a sua reputaqa"~ jB rnuito caluniada pelas vitimas <strong>de</strong> mil abusos; masnb quero tomar o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciante <strong>de</strong> criminoso algum, <strong>de</strong>clinando oseu nome, e rnarcando os crimes.- 0 nome 6 Alexandre Cardoso. . .- o povo que o <strong>de</strong>nuncia.0 vice-rei tornou a refletir por algum tempo; respirava ansioso, e a c6-lera, a dhvida, o orgulho, o ressentimento, a dor atormentavam-lhe o cora-~a"o e o esplrito: voltava amiu<strong>de</strong> olhos ar<strong>de</strong>ntes para JerBnimo.Depois que muito pensou, disse pausada e gravemente:- JerBnimo Li<strong>rio</strong> tem fama <strong>de</strong> negociante consciencioso e <strong>de</strong> homempuro, cuja palavra 6 sagrada.JerBnimo curvou-se.0 Con<strong>de</strong> da Cunha continuou:- Tenho at6 hoje <strong>de</strong>sprezado quantas queixas e <strong>de</strong>nbncias contra AlexandreCardoso seus inimigos fo<strong>rj</strong>aram; <strong>de</strong>positei at6 hoje plena, e, se quise- .rem, cega confian~a no meu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala; sei bem como 6 f6rtilem calbnias o 6di0, e como aqueles que mais fielmente, e em rnais alta posi-~a"o servem ao <strong>gov</strong>erno, esta"o sujei'tos is setas do aleive e aos ernbustes daperfldia; mas JerBnimo Ll<strong>rio</strong>, o homem austero, sem refolhos nern mentira,o velho negociante portugu6s que nesta cida<strong>de</strong> 6 mais consi<strong>de</strong>rado e venerado,ou me ultrajou corn injdria <strong>de</strong>scornedida, ou me a<strong>br</strong>iu os olhos so<strong>br</strong>eum err0 que nodoa a minha vida: 6 isso ou na"o?. . .- I! isso, senhor Vice-Rei, respon<strong>de</strong>u JerBnimo.- Pois bem: juro que hei <strong>de</strong> castigar a inj<strong>br</strong>ia ao lavar a n6doa.E o Con<strong>de</strong> da Cunha fez a JerBnirno sinal para retirar-se.- E arnanha" ao rneio-dia?. . . perguntou este.-. Apresente-se ao oficial-<strong>de</strong>-sala.- Ele sabera que estive aqui hoje.0 vice-rei sorriu-se terrivelmente.- Nb 6 claro que o remeti para ele?. . . Se JerBnimo Li<strong>rio</strong> n k mente,o vice-rei B o oficial<strong>de</strong>-sala.E corn um novo aceno <strong>de</strong>spediu JerBnimo, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> profunda reverenciaapenas correspondida por leve rnovirnento da cabeca do Con<strong>de</strong> daCunha, se retirou.0 vice-rei foi encerrar-se em seu gabinete; mas passados <strong>de</strong>z minutos,tocou corn forca a carnpanhia, a que acudiu. . . um criado:


- Gerrniano? perguntou ele.- Estd no seu quarto.- Que venha jB aqui.Gerrniano era urn portugu6s soldado, or<strong>de</strong>nan~a, criado, agente <strong>de</strong>cornpras, o hornern fie1 e <strong>de</strong>dicado, o czo arnigo do Con<strong>de</strong> da Cunha queo encontrara em Maraggo, o levara para Angola, o trouxera para o Brasil, enZo rnais se separara <strong>de</strong>le. .Gerrniano nZo sabia ler e sornente por isso ngo pu<strong>de</strong>ra adiantar-sena carreira militar; mas era a ativida<strong>de</strong> que nunca dormia, a <strong>de</strong>dica~zo quenunca fraqueara, a asthcia que nunca falhara no servi~o do arno; adorava oCon<strong>de</strong> da Cunha corn <strong>de</strong>dicaqzo sublime, nern havia ofensa, havia verda<strong>de</strong>na aprecia~fo dos seus sentirnentos, quando o cornparavarn ao animal tipoda fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>.Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> SZo Sebastilo do Rio <strong>de</strong> Janeiro a gente que servia nopal6cio charnava a Germiano - o cZo do vice-rei.


XXISempre ocupado <strong>de</strong> In&, Alexandre Cardoso, tendo sabido doentrudo que se jogara na casa <strong>de</strong> Jerbnirno Ll<strong>rio</strong>, aproveitara o ensejo paraexplorar duas rninas, a da intimidack e a gratidb <strong>de</strong> Jerbnirno Ll<strong>rio</strong>, e 'enquanto esperava o resultado da darta e do bilhete, saiu quase ao anoitecerda sala do vice-rei, corn quem havia jantado, e seguido <strong>de</strong> urn dos seusarnigos dirigiu-se pela praia <strong>de</strong> Santa Luzia para tornar o Largo d'Ajuda e ir acasa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . . on<strong>de</strong> se ajustara jogar a banca nessa noite.Porque Alexandre Cardoso se irnpunha tb 'extensa volta, erarnuito simples: no ponto em que corneca hoje a pequena rua, on<strong>de</strong> naquelernesrno s6culo foi estabelecido o rnatadouro que ali ficou at6 os nossos dias,ponto que enta"o comunicava a praia <strong>de</strong> Santa Luzia corn o Largo d'Ajuda,havia urna pequena casa t6rrea isolada, quase solithria, mas corn o seuterreiro limpo e rneia dirzia <strong>de</strong> laranjeiras ao lado; rnorava a( Marcos Fulgiinciocorn sua rnulher e urna filha <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.Marcos Fulgencio era labo<strong>rio</strong>so e zelava sua farnllia. duascondic6es por6rn o arnesquinhavarn aos olhos <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, <strong>de</strong> seusarnigos e <strong>de</strong> muitos outros: era po<strong>br</strong>e e sua cor menos <strong>br</strong>anca, e seus caracteresf lsicos atestavarn o cruzarnento <strong>de</strong> duas racas.Erniliana, a filha <strong>de</strong> Marcos Fulgiincio, quase <strong>de</strong>mentia a origern<strong>de</strong> seu pai e era verda<strong>de</strong>iramente bonita: tinha recebido boa educaeb moral;e honesta e esperta sabia bern fugir aos curnprimentos e aos rnanejos <strong>de</strong>seduca"o que ernpregavarn contra eta velhos e rnancebos ricos e <strong>de</strong> posickrnuito supe<strong>rio</strong>r B sua.Alexandre Cardoso andava B pista <strong>de</strong> Erniliana, na"o porque aamasse, mas porque <strong>de</strong>s<strong>de</strong> alguns dias a <strong>de</strong>sejava, ernbora tivesse-lhe rnandado<strong>de</strong>bal<strong>de</strong> recados lisonjeiros e oferecirnentos <strong>de</strong>slurn<strong>br</strong>adores.Passando diante da pequena casa, o ajudante oficial-<strong>de</strong>-salaparou, e no empenho <strong>de</strong> ver Erniliana, charnou em voz alta por MarcosFulgiincio, que apareceu i porta.


muitos.- Corno vamos <strong>de</strong> trabalho? perguntou Alexandre Cardoso.- NZo me faltam o<strong>br</strong>as, louvado Deus!- Mas nem por isso aumenta a fortuna, creio eu.- NZo lastimo a minha sorte, senhor: sou mais feliz do que- Por que nZo se emprega nas o<strong>br</strong>as <strong>de</strong>l-rei? Asseguro-lhe quesera bem pago; temos necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bons carpinteiros; se Ihe fizer conta, euo protegerei.- El-rei 6 meu senhor e se em nome <strong>de</strong>le me intimarem paratrabalhar nas o<strong>br</strong>as, hei <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer, mas prefiro andar ocupado nas o<strong>br</strong>as<strong>de</strong> meus antigos fregueses.- Por qub?. . .- I! por costume, senhor; a gente trabalha em mais liberda<strong>de</strong> cBpor fora.- Pois bem: nZo sera incomodado; se por6m precisar <strong>de</strong> trabalhoou <strong>de</strong> proteqZo, procure-me.- Deus Ihe pague, senhor!Alexandre Cardoso, vendo que Emiliana nb aparecia, continuouseu caminho, e algumas <strong>br</strong>a~as adiante viu sentada no terreiro <strong>de</strong> urncase<strong>br</strong>e humil<strong>de</strong> e em comeco <strong>de</strong> rulna uma velha que com respeito selevantou, e esten<strong>de</strong>u a mi70 direita, pedCndo esmola.0 elegante oficial <strong>de</strong>ixou por instantes o amigo, e foi dar aesmola a velha, que ao recebe-la passou fingidamente a mi70 caridosa urnanel, e murmurou:- Ela na"o quis.Alexandre Cardoso, retirou-se contrariado: Emiliana rejeitaraum rico anel, que Ihe rnandara.- Vamos, Capitgo, disse ele ao companheiro; vamos e tome omeu conselho: ni70 jogue hoje contra mim; tenho certeza <strong>de</strong> ganhar.- Corno?- lnfeliz no arnor, feliz no jogo.- Nem sernpre; e conselho por conselho, seja pru<strong>de</strong>nte e cauteloso,senhor Tenente-Coronel; hB oito dias que temos jogado trCs vezes, etres vezes as suas perdas forarn excessivas.- Apenas chegararn a dois mil cruzados.- Temos um antagonista que adivinha as cartas. . .- E feliz; mas joga com franqueza e lisura.- Con hece-o?- Pouco; sei que Ange~o por algum tempo mereceu que Mariame atrai~oasse; na"o Ihe perdoaria essa dita hB cinco rneses; hoje que C<strong>de</strong>sprezado e que Maria nb me domina mais, pouco ou nada me irnporta isso;fui eu que o convid~i para o sarau <strong>de</strong>sta noite.


- Desconfio <strong>de</strong>sse mancebo. .. juraria que ele furta ao jogo.De que modo?- N k sei: se as cartas obe<strong>de</strong>cem As suas paradas 6 que ele semddvida as terh marcado.- N k 6 Ange~o que dB as cartas para o jogo, e n6s mudamos <strong>de</strong>baralho por vezes.- Mas a sua teimosia e infallvel fortuna?fortuna.- Angelo niio d rico. ..- Ao contrh<strong>rio</strong>, nbtem on<strong>de</strong> caia morto.- Todavia. . . o seu our0 co<strong>br</strong>e a mesa do jogo, e ele p8ra com aafouteza <strong>de</strong> um miliond<strong>rio</strong>.- 5 claro: se fosse milionh<strong>rio</strong> n80 parava assim; mas o seu our06 our0 verda<strong>de</strong>iro, eis o essential.- Don<strong>de</strong> Iho vem?- Que importa? Facamos por ganhar-the o ouro.- Eu nbjogarei esta noite.- Tanto melhor: jogador que n50 joga e observa o jogo, vi3 emdo<strong>br</strong>o; preste-nos urn servico; n b arre<strong>de</strong> os olhos e a atengo <strong>de</strong>sse en<strong>de</strong>moninhadoAngeIo, para quem n50 sei don<strong>de</strong> tire mais dinheiro.Quando isso dizia, Alexandre Cardoso chegava com o amigo Bporta da casa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . .


Eram nove horas da noite.Na casa da formosa cortesa" havia sarau e jogo; na sala principala danca e o-canto eram os pretextos; na sala <strong>de</strong> jantar a mesa <strong>de</strong> jogo era overda<strong>de</strong>iro motivo da reunia"~.Maria animava e encantava a companhia <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> duvidosaou negativa na primeira sala; na outra uma roda <strong>de</strong> jogadores, mancebosricos, velhos aferrados ao vlcio, B paixa"o fatal do jogo, oficiais e paisanos,dispunham-se a parar 5 banca.A mesa enchia-se <strong>de</strong> ouro.Alexandre Cardoso, ou por cortesia ou por <strong>de</strong>safio diante dosmontes <strong>de</strong> ouro, ofereceu as cartas a Ange~o, que recusou-as mo<strong>de</strong>stamente,aceitando-as por6m 5s primeiras insistbncias.0 jog0 comecou.Na primeira cartada Ange~o per<strong>de</strong>u quase sempre, e meta<strong>de</strong> dassuas pilhas <strong>de</strong> our0 passou para os outros jogadores; na segunda ficaramapenas cerca <strong>de</strong> vinte moedas ao banqueiro que havia perdido jA muito mais<strong>de</strong> trds mil cruzados.Ange~o perguntou com imperturbavel serenida<strong>de</strong> se alguemqueria tomar-lhe o lugar <strong>de</strong> banqueiro.Alexandre Cardoso, que fora quem mais ganhara, e que, apesardo que havia dito ao amigo corn quem viera, tinha ojeriza a Angelo, dissecom inten~zo <strong>de</strong> confundi-lo:- Abdica talvez por falta <strong>de</strong> recursos; mas so<strong>br</strong>a-lhe o cr6dito:disponha da minha bolsa.- O<strong>br</strong>igado, respon<strong>de</strong>u Ange~o sem formalizar-se.E tirando do bolso um pequeno saco <strong>de</strong> veludo ver<strong>de</strong>, <strong>de</strong>spejouna mesa nova enchente <strong>de</strong> ouro.- Vamos, senhores.E espalhando, confundindo e baralhando as cartas com exage-


ado escrirpulo, ia d8-la a partir, quando hesitou, e sorrindo-se disse:- Evi<strong>de</strong>ntemente baralho hoje contra mim!. . . Se alguembaralhasse melhor as cartas . . . Capitb! o senhor que nbjoga, quer fazermeeste favor?0 capitb recusou-se.- Pacigncia, tornou Angelo.E <strong>de</strong>u as cartas para serem partidas.A terceira cartada vingou o banqueiro, que ganhou nessa quantoper<strong>de</strong>ra nas duas primeiras.- Quem quer as cartas?. .. tornou Ange~o a perguntar.- Continue, respon<strong>de</strong>u Alexandre Cardoso.Angela carteou e ganhou ainda mais.- Quem quer as cartas? repetiu.- Continue, insistiu Alexandre Cardoso, mas se nb o leva amal, mudaremos o baralho.- Como quiserem.Urn criado trouxe cartas novas, e o capitgo, a pedido <strong>de</strong> Angeloe a instsncias dos outros jogadores, tomou, a<strong>br</strong>iu e misturou o baralho.0 interesse do jogo aumentava.Alexandre Cardoso apontou elevada soma na dama.- E um erro, observou Angela, sorrindo; as damas nb s bfavoraiveis aos jogadores.E carteou. A terceira carta foi dama e caiu A direita. 0 banqueiroganhara.Alexandre Cardmo do<strong>br</strong>ou a parada na mesma carta; urn outroponto imitou-o.N5o apontem na dama, tornou Angelo; sou ainda muito moCopara que as damas me <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhem.E ganhou segunda vez.Alexandre Cardoso teimou e com ele pararam outros ainda nadama, que oferecia enta"o mais probabilida<strong>de</strong>s contra o banqueiro, que impBvidocarteava recolhendo sempre mais do que pagava.A dama que se <strong>de</strong>morara apareceu, saindo pela terceira vezdireita.Alexandre Cardoso acabava <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a sua irltima pilha <strong>de</strong> moedas,e no meio do ruldo que excitara a fortuna do banqueiro, levantou-sedizendo:- Esgotou-me a bolsa; por hoje basta.- Sua palavra vale mais que mil bolsas recheadas, respon<strong>de</strong>uAnge~o; e <strong>de</strong>vo lem<strong>br</strong>ar-the que ainda estai no baralho a quarta dama.- Mil cruzados pois! exclamou o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala.


Olharam todos para o banqueiro.- Aceito, disse ele.E perguntou aos outros pontos:- Alguem mais quer honrar a dama?. . .0 <strong>de</strong>safio chegava a ser irnpru<strong>de</strong>nte.Dois mil cruzados esperaram a carta que tr6s vezes jA tinha sidofavorhvel ao banqueiro.Alexandre Cardoso tinha os olhos fitos nas mZos <strong>de</strong> Ange~o; ocapitgo em pB o observava com igual cuidado.A dama na"o se fez esperar muito e ainda pela quarta e irltimavez nessa cartada foi fie1 3 fortuna do banqueiro.- E <strong>de</strong>rnais!. . . exclamou urn dos jogadores.- Com efeito, disse Ange~o; convenho em que elas me perseguerndocemente. . . mas s6 no jogo. . . s6 no jogo. . .4lexandre Cardoso olhou-o corn raiva.0 tenente Gon~alo Pereira, que pouco antes havia chegado e na"ojogava, fez um movimento <strong>de</strong> repugndncia, ouvindo Angelo, e saiu imediatamenteda sala.


Enquanto na sala do inte<strong>rio</strong>r fervia o jog0 corn todas as suas ansieda<strong>de</strong>se torrnentosas ernoq6es, Maria entretinha na outra a cornpanhia quereunira, fazendo cantar e danqar as rnoqas e dando ela rnesrna o exernplo paraanirnar a socieda<strong>de</strong> que alids na"o podia per<strong>de</strong>r por acanhada.Ao terrninar urna contradanqa A espanhola, Maria viu Gon~aloPereira entrar na sala, e fazendo-lhe urn sinal com os olhos, convidou urnadas rnocas a cantar urn lundu, g6nero <strong>de</strong> rnirsica ligeiro e <strong>br</strong>ejeiro que emmuitas cornposic6es na"o teria cabirnento em boa cornpanhia pela licenqaquase obcena das letras, mas, que nessa reunia"~ se ouvia sern constrangirnento.Nern todos os lundus eram assirn e pelo contrd<strong>rio</strong> alguns ostentavama graqa especial <strong>de</strong>sse ggnero <strong>de</strong> rnirsica sern <strong>de</strong> leve ofen<strong>de</strong>r o pudor<strong>de</strong> urna donzela, e tinharn o gran<strong>de</strong> rnerecirnento <strong>de</strong> possuir certo caraternacional, embora os quisessern e queiram fazer passar bem ou ma1 fundadarnentepor irnitacgo da zarzuela espanhola.Gonplo Pereira fora <strong>de</strong><strong>br</strong>uwr-se A janela, e enquanto a rnqacantava o seu lundu corn voz travessa e reque<strong>br</strong>ados olhos, Maria dirigiu-sesem-cerirnbnia para on<strong>de</strong> estava o seu querido tenente.- Jogaste?. . . perguntou ela.- NZo, e o teu conselho aproveitou-me.- Ele ganha?- Quern?- Angelo?- Prodigiosarnente.-. E Alexandre Cardoso?- Per<strong>de</strong>u jd quanto dinheiro trazia e jogava sob palavra.- Ainda bem!- Mas por que, Maria?- Arnanha" e <strong>de</strong>pois Alexandre Cardoso ven<strong>de</strong>r4 em rnaior escalaa justiqa para trazer rnais our0 a Angelo.


to, tinham os olhos presos as cartas, e teimosos provocavam ainda a fortuna.Maria tornou entre as suas uma das mzos <strong>de</strong> Alexandre Cardoso,e com estudada cruelda<strong>de</strong>, largou-a logo, dizendo:- Que gelo! Que m50 <strong>de</strong> finado!Alexandre Cardoso fingiu que se sorria.- Corno <strong>de</strong>ve ser sublime o jogo! Senhores, eu tambbm querojogar! - Escolhe mh noite; o banqueiro tem o diabo nas mZos!- Dizem alguns que a mulher as vezes po<strong>de</strong> mais que o diabo:quero jogar; mas com uma condii$o. . .- Qual?. . .- Jogarei emparceirada com algum dos senhores que se prestarae ensine-me o jogo, <strong>de</strong>ixando-me livres as inspua~8es.Todos aplaudiram a id6ia e por cort~sia e por certos prejufzoscomuns nos jogadores cada qua1 pediu e reclamou a dita da parceria com abela cortesa", que tendo calculado com isso, tornou, dizendo.- NZo farei excecaes: dos que tern perdido ao jogo cada um porsua vez sera meu parceiro; e ainda mais. . .- Que mais?- Se eu ganhar corno espero, aquele que por mim tiver recuperadoo dinheiro perdido, <strong>de</strong>ixarh logo a parceria a favor <strong>de</strong> outro. . .0s jogadores comecavam a rir.- E conta ganhar?. . . <strong>de</strong>veras?. . .- At6 hoje a fortuna sempre me sorriu. Eia! joguernos!. . .tingelo, tendo recolhido mais <strong>de</strong> oito mil cruzados, refletira friamenteso<strong>br</strong>e o bilhete <strong>de</strong> Maria, e acabava por dar pouca importincia Bsua ameaca.- Bela senhora, disse ele; nZo posso vencer a felicida<strong>de</strong> e a pesarmeu, terei <strong>de</strong> vencer o seu encanto.Maria sorriu-se para tingelo tendo por segura a sua obedibncia.Logo <strong>de</strong>pois, recebendo <strong>br</strong>eves explicacaes do jog0 talvez <strong>de</strong>snecessarias,lanqou sern contar um punhado <strong>de</strong> moedas <strong>de</strong> our0 na carta queesco l heu.0 parceiro que ela <strong>de</strong>signara, seguiu-lhe a inspiraCao.Angel0 carteou e ganhou.Maria tornou a sorrir, aplaudindo a dissimulaG"a do banqueiro,a quem ainda supunha obediente; mas, continuando o jogo, reconheceu-seludi<strong>br</strong>iada.No fim da cartada ela tinha jh perdido perto <strong>de</strong> dois milcruzados.Mais ressentida da <strong>de</strong>sobedibncia do que da perda do dinheiro, elem<strong>br</strong>ando-se <strong>de</strong> Goncalo Pereira, cuja reprovaqZo a magoava, a altiva cortesa"disse:


- Asseguram-me que sou bonita e sei que sou moca: ora asmoGas que sa"o bonitas tbm o direito do capricho e at6 do abuso: na"o 6 insultoque irrogo; 6 experisncia que proponho ao banqueiro: a sua fortbna na"oIhe vem dos <strong>de</strong>dos, oh, na"o! Vem-lhe do simples acaso. Pois bem! Continuea ser banqueiro; mas entregue o baralho a algubm, que carteie por ele.- Um homem na"o me faria tal proposica"~! observou Ange~o,perturbando-se.- Mas, respon<strong>de</strong>u Maria com acento col6ric0, sendo uma mulherque a faz, a negativa do banqueiro autorizaria as suspeitas <strong>de</strong> qualquerhomem.E acrescentou logo <strong>de</strong>pois:- Senhor Wngelo, a sua felicida<strong>de</strong> e extraordinariamente prodigiosa:conv6m-nos experiments-la ainda nesse mesmo baralho fora <strong>de</strong> suasma"os.0s jogadores e entre eles alguns oficiais militares apoiaram vivamentea inju<strong>rio</strong>sa proposiqa"~ da bela e audaz cortesa" que com olhos radiantes<strong>de</strong> fog0 sinistro <strong>de</strong>vorava o rosto do banqueiro <strong>de</strong>sobediente.Angela teve medo, baralhou as cartas, <strong>de</strong>u-as a partir, e entregouasao capitgo que se sentara a seu lado, o que nb quisera jogar.- Volte-as o senhor, disse com raiva abafada.- Baralhe-as <strong>de</strong> novo, e db doutra vez a partir, disse tambbmMaria ao capita"^.Baralhadas e partidas novamente, o capitgo comeqou a cartear<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> feitas as paradas.Angela pela falta do baralho tinha perdido o dominio das cartas,e pelo insult0 que Ihe fizera Maria, a placi<strong>de</strong>z que apadrinha o tino; per<strong>de</strong>usucessivamente cinco paradas, ganhou a sexta e setima, e tornou a per<strong>de</strong>rseguidamente seis vezes antes <strong>de</strong> ganhar uma vez. A cartada custou aobanqueiro a terp parte dos seus lucros.- Duas cartadas ainda, e ele per<strong>de</strong>ri5 a sua dltima moeda <strong>de</strong>ouro, exclamou Maria a rir.- Eia pois! <strong>br</strong>adou Angela fora <strong>de</strong> si, e sujeitando-se ainda Baviltadora experibncia.A profecia da bela cortesa" realizou-se: Wngelo viu todo o seu dinheiropassar 8s msos dos jogadores, <strong>de</strong> cuja confianp e lealda<strong>de</strong> havia indignamenteabusado. A fortuna <strong>de</strong> Maria, e a sua pr6pria perturbaqa"~tinham sido os instrumentos <strong>de</strong> um castigo provi<strong>de</strong>ncial.Angelo ~evantou-se confuso:- Conto em <strong>br</strong>eve com a minha <strong>de</strong>sforra, disse ele.Maria tinha jB <strong>de</strong>ixado a sala do jogo, que alias continuou sempreanimado.


Angela saiu; mas ao chegar B escada encontrou Maria que Ihe entregouum lenco cheio <strong>de</strong> moedas <strong>de</strong> our0 e Ihe disse:- Toma o que te ganhei; 6 o meu dinheiro que te volta as mgos:nb jogaras mais em minha casa, e, pois que me <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ceste, nb tornes aela.Ange~o recebeu o dinheiro atado no len~o, e <strong>de</strong>sceu a escadaprecipitadamente.Maria, voltando-lhe as costas, encontrou diante <strong>de</strong> si o tenenteGon~alo Pereira que a seguira.- Muito bem, Maria! Eu te adoro hoje mil vezes mais do queontem!Maria, sorrindo feliz, esten<strong>de</strong>u para Gonqalo o pescoqo e recebeunos IAbios urn beijo do amante amado.- Ouero jogar prendas! gritou ela, entrandu na sala.- E eu tambbm! disse Gonqalo Pereira perdido <strong>de</strong> amor.


0 jogo <strong>de</strong> prendas terminou, e Maria, levando outra vez GonqaloPereira para a janela, disse-lhe:- Afortunado e doce entretenimento! A<strong>br</strong>aqamo-nos <strong>de</strong>z vezese nos beijamos outras tantas!- E era isso o que eu <strong>de</strong>via agra<strong>de</strong>cer-te esta noite? perguntouGonqalo.- Achas pouco?- Muito, e pouco.Maria sorriu-se ternamente e apertando a mZo do jovem e apaixonadooficial, tornou dizendb-lhe:- Na'o era is^, o que eu pensava que me agra<strong>de</strong>cerias, o que aindapenso que me agra<strong>de</strong>cerk- EntZo o qub?. . .- 0 que nZo contavas e nem sequer me pediste! Adivinha! Gonqaloadivinhou imediatamente.- Passarmos juntos o resto da noite, Maria?- Sim; mas sob urna condiqa"~. . .Qual?- Dir-me-hs o que me escon<strong>de</strong>s; quais s b os projetos <strong>de</strong> Alexan-dre Cardoso relativamente 3 filha do carpinteiro. . .- Sempre vil espiZo!- Gonqalo!. . .- Esta imposiqZo me <strong>de</strong>satina, e eu <strong>de</strong>claro que na"o 6 possivelcontinuar a obe<strong>de</strong>cer-te.- T5o pouco mereqo eu!- Ah Maria! tu n b me dhs, ven<strong>de</strong>s-me o teu amor a preqo <strong>de</strong><strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sonra minha!A bela cortesa", inclinando a cabeqa para rnurrnurar um segredoao ouvido do amante, tocou com os lhbios na face <strong>de</strong>le, e <strong>de</strong>pois continuan-


do a conversar, torcia levemente com os <strong>de</strong>dos a ponta do negro bigo<strong>de</strong> doelegante militar.Dejanira cativava a H6rcules.Goncalo, a<strong>br</strong>asado em apaixonadas flamas, jurou dizer-lhe quantosabia, quando estivessem sos.- Por que nZo agora? perguntou Maria.0 tenente corou e disse tremendo e com os <strong>de</strong>ntes cerrados:- Porque tu 6s escrava, e eu nZo sei se teu senhor te querera<strong>de</strong>ixar livre.Maria corou por sua vez, teve um impeto <strong>de</strong> colera; mas dominou-see tornou a falar.- E se eu o fizer sair ja?.- Ji?. . .- Em cinco minutos.- Dir-te-ei tudo imediatamente.Maria saiu da janela, dirigiu-se B sala do jogo, sentou-se junto <strong>de</strong>Alexandre Cardoso e disse-lhe ao ouvido:- HA meia hora que um soldado da guarda do vice-rei veio trazeruma carta dirigida a ti.- On<strong>de</strong> est5 a carta?Maria mostrou; mas nZo entregou a carta.- DB-ma, disse Alexandre Cardoso; 6 talvez alguma or<strong>de</strong>m dovice-rei. . .- NZo 6 do Con<strong>de</strong> da Cunha.. .entrou.- Qu'importa? Seja <strong>de</strong> quem for; d8-ma.- Aqui ngo, respon<strong>de</strong>u Maria, retirando-se.Alexandre Cardoso seguiu a cortesa" at6 urn gabinete, on<strong>de</strong> elaMaria voltou-se e com voz alterada e os olhos em fogo, disse,mostrando a carta em sua rna"o:- Esta letra 6 <strong>de</strong> mulher!. . .Alexandre Cardoso riu-se do acesso <strong>de</strong> ci6me da amante.- Semelhante carta rnandada a minha casa 6 uma zombaria, umainj6ria a que na"o me resigno!- Maria, n b ha mulher que me escreva; tranqiiilira-te.- Oh!. . . tranqiiilizar-me!. . . exclamou a cortesa", misturando ofuror com as legrimas que dos olhos Ihe romperam.Alexandre Cardoso comoveu-se, ou quis p8r termo A questgo edisse:- Convence-te <strong>de</strong> que 6s louca: a<strong>br</strong>e a carta, e I& o nome <strong>de</strong>quem me escreve.Maria, trhmula <strong>de</strong> irado ciirme, rasgou o so<strong>br</strong>escrito, do<strong>br</strong>ou o


papel, e vendo a assinatura, sorriu-se e balbuciou um pouco confundida,entregando a carta, que na"o quis ler:- PerdZo, Alexandre.0 ajudan<strong>de</strong> oficial-<strong>de</strong>-sala empali<strong>de</strong>ceu, lendo o que Ihe cornunicavam,e visivelmente contrariado falou a Maria.- t forqoso que eu te <strong>de</strong>ixe: um caso imprevisto reclama a minhapresenqa fora daqui; at6 amanha".E, beijando a ma"o da cortesa", foi a sala do jogo recolher o seudinheiro, e saiu apressado.Maria tinha aberto e lido a carta, em que urn dos pretegidos <strong>de</strong>Alexandre Cardoso, e encarregado <strong>de</strong> dar-lhe conta <strong>de</strong> quanto se passassecom o vice-rei, <strong>de</strong> quem era criado, the anunciava que Jer6nimo Li<strong>rio</strong> forarecebido em audidncia particular pelo Con<strong>de</strong> da Cunha, e estava corn esteem conversa~a"~ muito animada.0 ciOme da cortesa" fora um embuste para enco<strong>br</strong>ir o repreensivelabuso do rompimento do selo da carta.Quando Maria voltou a sala, Alexandre Cardoso ja se tinha retirado;ela correu 3 janela, on<strong>de</strong> Gonqalo a esperava, e perguntou-lhe:- Que hB em relaqiio filha do carpinteiro?- f!uma bonita menina que no<strong>br</strong>emente resiste a toda especie<strong>de</strong> seduqa"~.- E ele? o sedutor?- A ele pr6p<strong>rio</strong> nada ouvi; porque confess0 que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algumassemanas me furto as confid6ncias e B intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.Maria fgz um movimento <strong>de</strong> contrarieda<strong>de</strong>.- Um dos seus amigos porem hB pouco me revelou urn planoatroz, a id6ia <strong>de</strong> um duplo crime. . .- Qual?- Aproveitando o isolamento da casa do carpinteiro, AlexandreCardoso a far6 incendiar, e a pretext0 <strong>de</strong> acudir ao incbndio, sera presente, econta po<strong>de</strong>r violentar ou raptar a po<strong>br</strong>e donzela.- Quando se efetuara este projeto criminoso?- Amanhii ou qualquer dia.-A menina chama-se Emiliana. . . o pai Marcos Fulgbncio.- Niio sei; como o sabes tu, Maria?- I! que tu dormes, e eu velo, Gonqalo; nada sabes, e eu sei muitopor isso.- Oh! mas eu tambem sei muito, sei <strong>de</strong>mais!. . .- 0 que, mentiroso?. . .- Adorar-te, feiticeira!. . .Maria beijou a fronte <strong>de</strong> Gon~alo, e fugia-lhe; ele, porkm, <strong>de</strong>teve-a,segurando-a pelo vestido e perguntou:


- Na"o basta <strong>de</strong> canto, <strong>de</strong> danca e <strong>de</strong> jogo, Maria?A cortesa" lanqou so<strong>br</strong>e Gonqalo um olhar voluptuoso e<strong>de</strong>lirante.- Tens raza"o, respon<strong>de</strong>u ela; 6 tar<strong>de</strong>; as velas estk gastas, asluzes quase a apagar-se: que outras luzes, pois, se acendam.E meia hora <strong>de</strong>pois, estavam sos Goncalo e Maria.


xxvDes<strong>de</strong> alguns meses o Con<strong>de</strong> da Cunha comeqara a meditar so<strong>br</strong>ea possibilida<strong>de</strong> do comprometimento do seu nome e da sua reputa~b emabusivo e criminoso proveito do seu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, e nZo menosso<strong>br</strong>e alguns indicios, que no murmurar do povo eram provas dos costumes<strong>de</strong>sregrados e da vida <strong>de</strong>smoralizada <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.Encantado pela ativida<strong>de</strong> e inteligencia do tenente-coronel doregimento velho, a quem chamara para o gabinete do <strong>gov</strong>ern0 da Colbnia, oVice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha, durante os primeiros anos <strong>de</strong>sprezara e at6 castigaratodas as queixas e <strong>de</strong>ndncias dadas contra Alexandre Cardoso, nZo sopela habilida<strong>de</strong> com que este se <strong>de</strong>fendia, como pela recente lem<strong>br</strong>an~a domuito que sofrera o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la em insultuosas cartas an6nimas, quetamb6m entZo chegavam as mzos do vice-rei, cheias <strong>de</strong> acusa~6es contra oseu querido ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala.Ultimamente, porbm, um inirnigo muito mais terrivel operavaincbgnito, atacando Alexandre Cardoso.NZo se passava semana em que o Con<strong>de</strong> da Cunha nZo recebesseuma esp6cie <strong>de</strong> relatori0 da vida <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada do seu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala,sendo para notar que is vezes o sinistro semanh<strong>rio</strong> preanunciava casos queefetivamente se realizavam.As censurhveis rela~6es <strong>de</strong> Alexandre Cardoso corn Maria <strong>de</strong>. ..,a influencia <strong>de</strong>sta, fazendo-se sentir na adrninistraqZo, o patronato produtivoexercido por aquele, sua paixb em jogo, seus <strong>de</strong>sregramentos e atentadoscontra o pudor e a moral, a venda <strong>de</strong> alguns empregos, a isen~Zo do recrutamentoa preqo ajustado, as violincias e imposiq8es excessivas que se atenuavamou <strong>de</strong>sapareciam, conforme a importincia <strong>de</strong> ajustes particulares, tudoenfim o vice-rei recebia comunicado no infallvel semanh<strong>rio</strong> escrito <strong>de</strong> mod0a disfarpr completarnente a letra.0 Con<strong>de</strong> da Cunha fora por esse meio informado da paixk emque Alexandre Cardoso se a<strong>br</strong>asava pela filha mais moqa <strong>de</strong> Jer6nimo Ll<strong>rio</strong>,


e dos esforqos que ele ernpregava para cativar a gratidb do pai da bela rnenina,e introduzir-se no seio da farnilia Li<strong>rio</strong> corno arnigo e protetor.At6 fevereiro <strong>de</strong> 1766 os relatb<strong>rio</strong>s anbnirnos e sernanais influirampouco no espirito do Con<strong>de</strong> da Cunha; recebidos corn a <strong>de</strong>sconfianqaque rnerecern <strong>de</strong>nunciantes inirnigos que ferern B traiqio, esses escritos conseguirarnao rnenos abalar urn pouco a cega confianqa que o vice-rei <strong>de</strong>positavano seu oficial-<strong>de</strong>-sala, mas no doming0 do carnaval a carta e o bilhete que JerbnirnoLi<strong>rio</strong> foi apresentar, produzirarn irnpressa"~ profunda no 2nirno do Con<strong>de</strong>da Cunha, porque <strong>de</strong>rnonstrararn que o secreta<strong>rio</strong> do <strong>gov</strong>ern0 abusava dasua posiqiio e do norne do chefe da adrninistraqa"~ do Brasil servindo-se <strong>de</strong> urnae <strong>de</strong> outro para seus ernpenhos particulares e reprovados.0 Con<strong>de</strong> da Cunha sabia que Alexandre Cardoso era jogador eapaixonado do be10 sexo; na"o acreditando, porern, que ele se entregasse doidarnentea essas duas paixties, aorno seus inirnigos propalavarn, perdoava-Ihe esses <strong>de</strong>feitos em atenca"~ a essas qualida<strong>de</strong>s; mas os fatos corneqavam aprovar que o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala cornprornetia o vice-rei.Suspeitoso enfim, e disposto a dissirnular, o con<strong>de</strong> recebeu namanha" da segunda-feira, a Alexandre Cardoso corn a mesrna bonda<strong>de</strong> comque sernpre o fazia e perguntou-lhe se rnais algurna novida<strong>de</strong> ocorrera no diaantece<strong>de</strong>nte.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala estava prevenido.- Nada mais, sr. Vice-Rei, respon<strong>de</strong>u ele; a proibiqiio do entrudofoi geralrnente observada; <strong>de</strong>u-se, porkrn, urna irnica exceqa"~ muitoescusavel: o honrado negociante JerBnirno Li<strong>rio</strong>, jogando o entrudo na suachacara da Garnboa, tolerou infelizrnente que, contra o preceito dos editaisfixados, rnercadores <strong>de</strong> lirn6es <strong>de</strong> cheiro fossern vend6-10s no terreiro <strong>de</strong> suacasa; recebendo <strong>de</strong>nuncias do fato e observac6es so<strong>br</strong>e minha parcialida<strong>de</strong> afavor <strong>de</strong>sse negociante, feitas por arnigos que gracejararn cornigo, aludindoa uma nova calcnia, <strong>de</strong> que sou vitirna, escrevi urna carta oficial rnuito severaa JerBnirno Li<strong>rio</strong>, intirnando-o para vir hoje, ao rneio-dia, explicar-me oseu procedimento; preparada assirn esta satisfacb para o pirblico, man<strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntro da carta urn bilhete, tranquilizando o bom velho negociante.0 Con<strong>de</strong> da Cunha fingiu que <strong>de</strong> leve se sorria.- Tranquilizando-o. . . corno?. . .- Em <strong>br</strong>eves palavras <strong>de</strong>ixei enten<strong>de</strong>r que fora indispenshvel dirigir-lhea severa carta; mas que hoje eu conseguiria tudo quanto ngo pu<strong>de</strong>raconseguir ontem. . .- Entendo: 0 vice-rei Con<strong>de</strong> da Cunha e o <strong>de</strong>spota, e 0 Seuajudan<strong>de</strong> oficial-<strong>de</strong>-sala a ban<strong>de</strong>ira da rniser~cordia; B isso?. . .- Mudado o norne dkspota em rnagistrado severo e reto, 6 issornesrno, senhor.


- Explique-se entlo melhor.- Tar<strong>de</strong> e quando V. Ex.a jh se havia recolhido, escrevi eu acarta e o bilhete em questlo; resolvi por mim mesmo, porque o fato n5o temconseqiibncias, e n5o <strong>de</strong>via por tlo pouco incomodar a V. Ex?; mas, escrevendo,curnpria-me fazer partir a or<strong>de</strong>m em nome do Vice-Rei, e indicar queeu interviria hoje e conseguiria o completo esquecimento da <strong>de</strong>sobedikncia<strong>de</strong> JerBnimo; porque <strong>de</strong> outro modo, e pondo <strong>de</strong> lado o Sr. Vice-Rei, que 6quem <strong>gov</strong>erna e manda, diria o negociante que eu tambbm <strong>gov</strong>ern0 e mandona ColBnia.Alexandre Cardoso tocara no fraco do Con<strong>de</strong> da Cunha.- Assinou o bilhete? perguntou ele.- N5o. senhor, e <strong>de</strong>sfigurei a letra.- Por quk?- Po<strong>de</strong>ria dar-se o caso <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong> per<strong>de</strong>-lo.- Fez bem.- Deixei copia da carta e do bilhete, que o Sr. Vice-Rei ler8,quando quiser.- Jh os li, disse o Con<strong>de</strong> da Cunha.- Como? On<strong>de</strong>, senhor?. . . perguntou o ajudante oficial-<strong>de</strong>-salacom admiravzo perfeitamente fingida.- JerBnimo Ll<strong>rio</strong> mos apresentou ontem, i noite.- Ah! segue-se que ele <strong>de</strong>sconfiou <strong>de</strong> mim.- Eu o creio tambkrn.- D6i-me isso: e um homem <strong>de</strong> bem, que me <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra e me<strong>de</strong>sestima.- Sem motivo?. . .- A pergunta <strong>de</strong> V.Ex.a me confun<strong>de</strong>.- Ele nlo, mas algukm me disse que o meu ajudante oficial-<strong>de</strong>salaama uma das filhas <strong>de</strong> JerBnimo Li<strong>rio</strong>.- E 6 verda<strong>de</strong>, Sr. Vice-Rei.- E que procura por todos os rneios relacionar-se com a familiada menina amada. . .- Por todos os meios licitos, tambem e verda<strong>de</strong>.- E com que fim?- Com o irnico fim honesto. . .- Quereria casar-se?- Po<strong>de</strong>ria eu ter outro pensamento?. . .- Hi5 quem o suponha, Sr. Alexandre Cardoso.- 0 pai, Sr. Vice-Rei?. . .- Muito orgulhoso, nb Ihe ouvi uma palavra a esse respeito; 6,porbm, certo que ele na"o faz honra aos seus sentimentos.- Sr. Vice-Rei, tenho um rneio seguro, infalivel <strong>de</strong> rnanifestar


e provar a pureza <strong>de</strong> minhas intenqtjes, e as torpes callinias dos inimigos <strong>de</strong>V. EX.^, que sa"o os icnicos que conto.- Qua1 6 esse meio?- Sou no<strong>br</strong>e, e tenho jd no exercito elevada patente; mais doque isso, o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei, que 6 o Sr. Con<strong>de</strong> da Cunha,nlo po<strong>de</strong> ser homem absolutamente obscuro.- Certamente.- Pois bem: V. Ex.a que tem sido o meu protetor, o meu segundopai, patrocine esse amor <strong>de</strong> que me fazem um crime, e faca com que serealize o meu casamento com a filha mais moqa <strong>de</strong> Jeranimo Li<strong>rio</strong>.0 rosto do Con<strong>de</strong> da Cunha expandiu-se.- Senhor Alexandre Cardoso, disse ele, <strong>de</strong>scansando a m b di-reita no om<strong>br</strong>o do seu secretti<strong>rio</strong>; acaba <strong>de</strong> tirar-me um peso horrivel que meesmagava o coraqa"~; vti trabalhar; hoje mesmo farei o que me pe<strong>de</strong>, e queroser uma das testemunhas do seu casamento.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala beijou a m b do vice-rei.- Ao rneio dia Jerbnimo Ll<strong>rio</strong> se apresentarh.- Depois <strong>de</strong> ter falado ao Sr. Vice-Rei?- Eu sei manter a forqa moral dos meus subalternos.Alexandre Cardoso curvou-se, agra<strong>de</strong>cendo.- Diga o que iulgar melhor ao pai da sua noiva, na certeza dobilhete, e diga-lhe enfim, <strong>de</strong> minha parte, que esta tar<strong>de</strong> hei <strong>de</strong> ir visitti-lo Bsua chdcara da Gamboa. VB trabalhar.Alexandre Cardoso saiu.- Como se julga ma1 e injustamente dos homens!. . . Como secaluniam aqueles que carregam com o peso e com a responsabilida<strong>de</strong> do <strong>gov</strong>ern~!.. . disse consigo o Con<strong>de</strong> da Cunha.Alexandre Cardoso acabava <strong>de</strong> reconquistar toda a confian~a dovice-rei.


Uma visita do vice-rei era um acontecimento extraordins<strong>rio</strong> quese marcava, como titulo <strong>de</strong> honra, no livro da familia visitada. JerBnimoLl<strong>rio</strong>, sem dhvida ufano, mas um pouco <strong>de</strong>sconfiado da inesperada distin-~ZO, preveniu logo a sra. lnbs do que <strong>de</strong>veria esperar, e <strong>de</strong>morou-se apenasduas horas na cida<strong>de</strong>, fazendo compras e <strong>de</strong>spachando portadores.As cinco horas da tar<strong>de</strong>, o caminho da Gamboa estava em seuspiores lugares consertado por mais <strong>de</strong> trinta escravos que se ocupavam <strong>de</strong>sseserviqo, e a casa do rico negociante pronta a receber o h6spe<strong>de</strong> quase real.A sala principal ostentava sua mobilia rica, severa e pesada; asmesas e bufetes eram <strong>de</strong> jacaranda e ornados <strong>de</strong> custoso trabalho <strong>de</strong> talha;as ca<strong>de</strong>iras, tamb6m <strong>de</strong> jacarandd e corn o mesmo trabalho, eram <strong>de</strong> espaldare <strong>de</strong> assento <strong>de</strong> couro lavrado e <strong>br</strong>unido; as pare<strong>de</strong>s e o teto pintados a frescoe com mais luxo e riqueza do que hoje se observa, tinham sido facil e cuidadosamenteescovados. A sala <strong>de</strong> jantar, ornada no mesmo gosto, apresentavaimensa mesa ocupada por inemeros pratos <strong>de</strong> riqulssimo banquete; a loucaera a mais fina da India, e o resto do serviqo <strong>de</strong> prata e <strong>de</strong> ouro; as toalhas,do mais fino tecido custosamente bordadas e com as melhores rendas nascercaduras. A profusa"~ e varieda<strong>de</strong> dos doces excedia o mais exagerado CAI-culo em repentino banquete.Melhor que tudo, ainda <strong>de</strong> mais apurado gosto - sempre a idbiareligiosa na vida da famllia - o orat6<strong>rio</strong> gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong> elevado valor material,tambbm <strong>de</strong> jacaranda e <strong>de</strong> perfeitissima o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> talha, estava, como em aqso<strong>de</strong> gracas pela honroslssima visita, armado e <strong>br</strong>ilhantemente iluminado comvelas novas e <strong>br</strong>andaes.A Sra. Inbs, vestida ricamente, e com <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> contos <strong>de</strong> r6is.ou <strong>de</strong> mil cruzados, como enta"o se contava, em <strong>br</strong>ilhantes nas orelhas e nocolo, as duas meninas trajando finissimos vestidos <strong>br</strong>ancos <strong>de</strong> subido preqo,e enfim, JerBnimo Ll<strong>rio</strong>, <strong>de</strong> casaca, jaleco e calqaes <strong>de</strong> veludo, e calqandosapatos com fivela <strong>de</strong> our0 encastoadas <strong>de</strong> <strong>br</strong>ilhantes, enfeitado com primo-


osa cabeleira apolvilhada, e com babados <strong>de</strong> <strong>de</strong>licadissimo trabalho 90 peitoe punhos da camisa, esperavam ansiosos o vice-rei Con<strong>de</strong> da Cunha.Nos atropelados e urgent issimos servicos e cuidados <strong>de</strong>ssa meta<strong>de</strong><strong>de</strong> urn dia, o concurso <strong>de</strong> lsidora foi do mais litil auxilio: enquanto a Sra.lnds e as duas rneninas cuidavam do banquete e especialmente dos doces, Jerbnimodo conserto do caminho e do asseio da sala, ela tomara so<strong>br</strong>e si a armaca"o,ornament0 e ilurninaca"~ do orato<strong>rio</strong> e do respectivo gabinete, muitomenos ansiosa e precipitadamente; porque nZo <strong>de</strong>vendo aparecer ao vice-rei,na"o se preocupou com a lem<strong>br</strong>an~a do toucador.Jerbnirno entrou no gabinete do orath<strong>rio</strong>, quando jd se achavavestido e pronto para receber o vice-rei, e ta"o satisfeito ficou do que viu, quefoi a<strong>br</strong>acar Isidora, a quern encontrou sentada e lendo placidamente.Depois <strong>de</strong> a<strong>br</strong>acar a bela h6speda com liberda<strong>de</strong> s6 escusdvel emum velho, perguntou-lhe:- Por que na"o mudou <strong>de</strong> vestido?. . .- Prirneirarnente, porque suponho que nb <strong>de</strong>vo aparecer, e emsegundo lugar, porque realrnente na"o tenho rnelhor.Jer6nimo saiu e dali a pouco trouxe a lsidora o melhor vestido<strong>br</strong>anco da Sra. Inds.- 0s das meninas na"o po<strong>de</strong>m chegar-lhe, disse ele; o <strong>de</strong> minhamulher talvez Ihe sirva; experimente.- Mas, <strong>de</strong>vo eu mostrar-me?. . .- Sem dirvida: o vice-rei nZo 6 espia"~, e <strong>de</strong> quem mais se arrisca,menos se <strong>de</strong>sconfia.0 vestido da Sra. lnds serviu As mil maravilhas a Isidora, e apenas,embora rastejante, quando no corpo <strong>de</strong> sua verda<strong>de</strong>ira dona, podlaofen<strong>de</strong>r urn pouco o rigor da moda, por <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong>masiado 3 mostra os p6~<strong>de</strong>licados da bela moCa asilada.Jerbnirno Ll<strong>rio</strong>, que apesar <strong>de</strong> toda a sua gravida<strong>de</strong>, andava aforismado,e fora do seu natural corn a id6ia ufanosa da visita do vice-rei, exclamou,vendo lsidora trajando o vestido da Sra. Inbs:- AdmirBvel!. . . Estd bonita e elegante, como as meninas! Queroencantar o Con<strong>de</strong> da Cunha: nhanha" e sinhazinha ha"o <strong>de</strong> dancar e. . . asenhora danqa?. . .- Muito <strong>de</strong>sajeitadamente; canto, porem, menos ma1 do quedanco.- Pois as meninas dancara"~, e. . . a senhora cantar6, sim?. . .- Farei tudo que me or<strong>de</strong>nar.Um escravo correu a anunciar que o Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunhase aproximava.Jerbnirno e as quatro senhoras precipitaram-se ao encontro dogran<strong>de</strong> hospe<strong>de</strong>.


0 Con<strong>de</strong> da Cunha chegava a cavalo seguido <strong>de</strong> uma guarda <strong>de</strong>doze soldados <strong>de</strong> cavalaria, e enquanto as quatro senhoras ficaram im6veisno terreiro e-perto da escada do terraco, Jer6nimo Li<strong>rio</strong> avanqou alguns passospara segurar no estribo do vice-rei, como <strong>de</strong> fato assim proce<strong>de</strong>u.0 ilustre fidalgo e chefe do <strong>gov</strong>ern0 do Brasil-ColBnia dignou-se<strong>de</strong> apertar a mZo do rico e honrado negociante e foi logo cumprimentar assenhoras, subindo imediatamente a escada e entrando na sala antes <strong>de</strong> todos,e a( recebeu os prirneiros agra<strong>de</strong>cirnentos <strong>de</strong> JerBnimo, que Ihe apresentou<strong>de</strong>signadarnente sua mulher, suas filhas, e lsidora como sua h6speda.0 Con<strong>de</strong>, tornando-se amavel, dispensou palavras agradaveis acada urna das senhoras, <strong>de</strong>rnorando-se alguns mornentos mais do que com asoutras, quando dirigiu-se i rnenina Inb, e voltando-se para Jerbnimo,disse-)he:- JB ouvi gabar a beleza <strong>de</strong> suas filhas, e contaram-me que opovo da cida<strong>de</strong> as alcunhou, chamando-as os dois li<strong>rio</strong>s. <strong>de</strong>sta vez o povo doRio <strong>de</strong> Janeiro tem raza"o.As meninas, que se atreviam a levantar os olhos, coraram <strong>de</strong> modbstiae abismaram-se em confusa"~.0 Con<strong>de</strong> da Cunha, lan~ando entzo 0s olhos em torno <strong>de</strong> si, v.iutodas as portas escancaradas, todas as salas patentes, e em frente o gabineteornado e iluminado, on<strong>de</strong> o oratb<strong>rio</strong> estava aberto e compreen<strong>de</strong>ndo a lisonjeirasignificaqa"~ do religioso obsbquio, dirigiu-se ao gabinete e fez (ntima ecuqa oraqb ajoelhando-se so<strong>br</strong>e uma almofada <strong>de</strong> veludo ver<strong>de</strong>: ajoelhadostadbbm rezaram Jer6nimo e as senhoras e quando o con<strong>de</strong> persignava-separ levantar-se, lsidora cantou suavemente urn simples hino religioso ema~a" d <strong>de</strong> graps a Deus pela honra da visita do vice-rei, que, levantando-seenfirn, examinou o orat6<strong>rio</strong> e gs irnagens, e retirou-se, permitiu a JerBnirnoque cerrasse as portas do gabin'ete em respeito is imagens que expostas ficavarnainda.


Depois <strong>de</strong> conversar algurn tempo corn a farnllia <strong>de</strong> JerBnirno, ocon<strong>de</strong> foi ao terraqo e encareceu a feliz posiqlio da casa, e a esrnerada disposiclioe o cultivo da chicara, e tornando a sala, recebeu da senhora lnds opedido <strong>de</strong> aceitar uma colher <strong>de</strong> doce.Urn rnomento <strong>de</strong>pois o vice-rei entrou na sala <strong>de</strong> jantar e viudiante <strong>de</strong> si o rnais espldndido e <strong>de</strong>licado banquete, e fazendo corn que assenhoras e JerBnirno se sentassern corn ele B mesa, disse sorrindo:- Eu nlio tinha conhecirnento da existdncia <strong>de</strong> urn palicio encantadona capital da colBnia!E honrou o banquete <strong>de</strong> rnodo a satisfazer os h6spe<strong>de</strong>s que tbgalhardamente o recebiarn.Urn escravo'calqado e trajando li<strong>br</strong>e nova e <strong>de</strong> luxo servia exclusivernenteo Con<strong>de</strong> da Cunha, rnudando-lhe os pratos e talheres.No fim <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> rneia hora o vice-rei levantou-se da mesa efez rnudarnente a oraqb <strong>de</strong> graqas.Urn outro escravo t5o ricarnente trajado, corno o outro, apresentou-se,finda a oraqiio, ao con<strong>de</strong> corn urn jarro e prato <strong>de</strong> our0 e finlssirnatoalha.Enquanto o vice-rei lavava os <strong>de</strong>dos, Jer6nirno tirou do bolso e<strong>de</strong>u ao prirneiro escravo uma folha <strong>de</strong> papel do<strong>br</strong>ada em quatro, e quandoo vice-rei acabou <strong>de</strong> enxugar os <strong>de</strong>dos, Jer6nirno tirou do bolso outra folha<strong>de</strong> papel sernelhante e a entregou ao segundo escravo.0 Con<strong>de</strong> da Cunha n5o cornpreen<strong>de</strong>u e teve cu<strong>rio</strong>sida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sabero que significava aquela entrega <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> papel.- Que papbis slio esses? perguntou.- Senhor Vice-Rei, os escravos que tiverarn a honra <strong>de</strong> servirhoje irnediatarnente a V. EX.^, nunca rnais servirb corno escravos a outrapessoa.Erarn pois dois escravos que ficavarn libertos.0 vice-rei saiu cornovido da mesa do banquete.A guarda do vice-rei foi corn permiss50 <strong>de</strong>ste introduzida na saladb jantar <strong>de</strong>ixada pelo no<strong>br</strong>e senhor, que ao ver entrar os soldados, dissegracejando, o que rararnente fazia:- lnvejo aqueles est<strong>br</strong>nagos <strong>de</strong> tarirnba! Mas eu tenho melhorlivro do que eles para perpetuar a nota <strong>de</strong>sta visita: eles h5o <strong>de</strong> lern<strong>br</strong>i-la pelasdoze sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu est6mag0, e eu pela rnernbia grata do coraq5o.A urn sinal <strong>de</strong> Jer6nirno a senhora In& foi sentar-se ao cravo, eas duas rneninas levantararn-se, e ao som da rnljsica danprarn corn explicavelacanharnento, mas corn graqa natural, rnerecendo ser a<strong>br</strong>acadas <strong>de</strong> leve pelovice-rei.lsidora tornou em seguida urna guitarra, e cantou urna balada, eurn lundu que era gracioso sern ter a rnenor inconvenidncia.


A voz <strong>de</strong> lsidora era um contralto admiravel, e ou fosse o encanto<strong>de</strong>ssa voz, ou talvez a novida<strong>de</strong> daquele g&nero <strong>de</strong> mirsica para o semprerecolhido e melanc6lico Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha, certo 6 que este fezlsidora repetir o seu lundu ja cantado, e cantar ainda outros.ASnove horas da noite marcadas no re16gio do con<strong>de</strong>, disse este:'- Cheguei antes das seis horas, contava estar <strong>de</strong> volta i s sete, eeis-me ainda aqui is nove, em que <strong>de</strong> costume recolho-me aos mausaposentosl. . .JerBnimo curvou-se profundamente.- 0 senhor e sua familia improvisaram para obserquiar-me umarecepqa"~ real, <strong>de</strong> que jamais me esquecerei. Se alguma <strong>de</strong>stas tr&s meninas,ou se, como <strong>de</strong>sejo, todas se casarem corn aprova~a"~ <strong>de</strong> seus pais antes daminha retirada da colBnia, quero ser testemunha <strong>de</strong> seus casamentos, e dareia cada uma <strong>de</strong>las o seu vestido <strong>de</strong> noivado: 6 um favor que peGo.J'erBnimo tornou a curvar-se.0 vice-rei estava distribuindo as suas gracas.- Ouvi, continuou ele, a menina lsidora tratar a chefe da famlliapor senhora Ink, esquecendo um titulo. . .- Eu sou humil<strong>de</strong> plebeu, observou JerBnimo; minha mulherna"o tem dona..- Pois tera esse titulo que vou mandd-lo impetrar, como hd <strong>de</strong> odigno esposo da senhora dona In&s ser cavaleiro da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo, se aindamerego, como suponho, a confianpa <strong>de</strong>l-Rei nosso senhor.JerBnimo respon<strong>de</strong>u:- 0 senhor Vice-Rei nos confun<strong>de</strong> com tanta bonda<strong>de</strong> e protegzo:nos bendiremos <strong>de</strong> todas as graGas que nos vierem por interven~b tbhonrosa; mas a maior honra jB a tivemos nesta singular e glo<strong>rio</strong>sa visita.- Agora, disse o con<strong>de</strong>, que as senhoras v b <strong>de</strong>scansar do inc6-modo que lhes <strong>de</strong>i; antes <strong>de</strong> retirar-me precis0 conversar a s6s com o senhorJerBnimo Li<strong>rio</strong>.As senhoras levantaram-se e <strong>de</strong>spediram-se do vice-rei, que comelas repartiu obsequiosas amabilida<strong>de</strong>s.0 Con<strong>de</strong> da Cunha f icou na sala corn JerBnimo.


0 Con<strong>de</strong> da Cunha estava na verda<strong>de</strong> penhorado pela recep~bque tivera na visita a Jer~nimo, o conserto do caminho, o recebimento pelassenhoras no terreiro, a 0raqa"o religiosa no oratb<strong>rio</strong> <strong>br</strong>ilhantemente ornado eiluminado, a riqueza do banquete, a alforria dos dois escravos que o serviramB mesa, a danqa e o canto das meninas, e tudo isso combinado e realizadoem cinco horas, tinham sido trabalhos e festas <strong>de</strong> improviso, e <strong>de</strong> cortesia<strong>de</strong>licada, que o<strong>br</strong>igam 4Igratidzo.Mas fazend promessas <strong>de</strong> obsequies e <strong>de</strong> graqas na mesma ocasibe com evi<strong>de</strong>nte fa1 a <strong>de</strong> bom e melindroso gosto, o vice-rei talvez tivessea i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> dominar pel vaida<strong>de</strong> e pela ambi~go <strong>de</strong> distin~6es os sentimentose a vonta<strong>de</strong> do austero teimoso velho portugub.- Senhor J~rBnimo, disse ele; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que me fiz seu hbspe<strong>de</strong>, reconheci-meseu amigo.- Eis a( am nha ufania, e o meu maior galardb, senhor Vice-Rei.- Pois bem falemos, conversemos, como amigos que somos e<strong>de</strong>vemos ser, e vamos di eto B questgo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sejo ocup8-lo.Jer6nimo es erou silencioso que o vice-rei anunciasse a questb.IQue juizo faz do meu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala?0 pior possivel, respon<strong>de</strong>u com seguranca o velho negociante.Por qu&?- Eu j6 tive a honra <strong>de</strong> dizer ao senhor Vice-Rei, que em casoalgum me farai <strong>de</strong>nunciante.-:Aqui na"o est6 o vice-rei, est6 o amigo que interroga o amigopara oferecer-lhe ou nio oferecer-lhe uma proposicgo importante.JerBnimo adivinhou o pensamento e o empenho do Con<strong>de</strong> daCunha, e disse com ampla franqueza:- 0 dia mais glo<strong>rio</strong>so da minha vida vai acabar <strong>de</strong>sconsolado etriste; porque o senhor Vice-Rei veio distinguir-me altamente com a honra


da sua visita para dar-me uma or<strong>de</strong>m a que nlo pp<strong>de</strong>rei obe<strong>de</strong>cer.- Entlo. . .- Senhor, eu sou como pai responsevel a Deus pelo futuro e pelafelicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> minhas filhas, e em nome <strong>de</strong> Deus jamais convirei em que alguma<strong>de</strong>las seja esposa do tenente-coronel Alexandre Cardoso.- Entretanto ele B cavaleiro no<strong>br</strong>e.- N5o k.por6m no<strong>br</strong>e cavaleiro.- Ainda!. . .- E sempre, senhor Vice-Rei: pelo chefe supremo da sala respeitoquanto <strong>de</strong>vo e posso ao seu ajudante oficial; mas a conscibncia e o amorpaternal nlo me permitem fazer <strong>de</strong> Alexandre Cardoso marido <strong>de</strong> minhafilha.- E se eu respqn<strong>de</strong>sse por ele?. . .- Oh! Corn todo o respeito digo que o senhor Vice-Rei ja respon<strong>de</strong><strong>de</strong>masiado por ele no <strong>gov</strong>ern0 da colhnia: B um vassalo fie1 <strong>de</strong> El-Reinosso senhor que fala assim; agora o que como pai sei e posso dizer, 6 queesse homem jogador frenktico, libertino sem freio, sedutor que tem feito avergonha e o infortirnio <strong>de</strong> nlo poucas famllias, nb estd no caso <strong>de</strong> rnerecera minha confianqa.- entb inexorivel com um jovem fidalgo, que apenas ternexagerado mais do que <strong>de</strong>via os <strong>de</strong>feitos pr6p<strong>rio</strong>s da sua ida<strong>de</strong>?. . .JerBnimo Li<strong>rio</strong> respon<strong>de</strong>u sem mudar <strong>de</strong> tom.- Sei bem que n5o passo <strong>de</strong> humil<strong>de</strong> pel0 <strong>de</strong> baixa classe; pelaminha honra porem <strong>de</strong>claro que me senti ultrajado, quando senti que essefidalgo ousava levantar os olhos para minha famllia.0 vice-rei tinha feito voto <strong>de</strong> paciencia, e via bem que tratavacom um portugugs velho e cabe~udo; insistiu pois, dizendo:- Mas, levantando os olhos para sua familia, Alexandre Cardosoo fez com as mais puras intenqses, e a prova 6 que o fim <strong>de</strong>sta conversa~bconfi<strong>de</strong>ncial foi ainda h6 pouco adivinhado. Vim pedir-lhe, e peqo-lhe a m50<strong>de</strong> sua filha Inb para o meu. ..- Ah, senhor Vice-Rei!. .. perdb!. .. exclamou Jer6nimo.- Suas preven~ses contra Alexandre Cardoso o tornam injusto:ele joga, mas <strong>de</strong>ixare <strong>de</strong> jogar; tem freqiientado <strong>de</strong>mais a casa <strong>de</strong> uma cortesllamentavelmente cele<strong>br</strong>e: nlo continuare porem a faz6-lo. Eis al os gravessenses, as tristes <strong>de</strong>sculpas que com verda<strong>de</strong> se atribuem ao meu ajudanteoficial<strong>de</strong>-sala; eu as con<strong>de</strong>no; mas vb 16 achar um santo entre mancebose principalmente entre os dos regimentos velho e-novo! Sb erros repreenslveis;todavia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que slo corrigidos, esses erros nlo <strong>de</strong>sonram o futuro,porque na"o perpetuam a <strong>de</strong>sonra, ou antes as ncjdoas do passado.JerBnimo nlo respon<strong>de</strong>u, e o con<strong>de</strong> prosseguiu:- Fora disso, bem sei, amontoam-se ainda treinendas acusa~6es,


a dscima parte das quais bastaria para levar Alexandre Cardoso B forca: aseducb <strong>de</strong> donzelas, as extorsaes e as violbncias em nome do <strong>gov</strong>erno, opeculato, formariam a lista dos seus crimes; don<strong>de</strong> por6m as provas?- As provas, senhor Vice-Rei. .. as provas?- Acabe. .. sei que nZo tem inten~Zo <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r-me. ..- As provas . . . o senhor Vice-Rei <strong>de</strong>ve procurd-las.- 0 Vice-Rei tern recebido cem.cartas an6nimas, como as que seescrevem contra o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boba<strong>de</strong>la; o povo <strong>de</strong>sta capitania foi sernpremais ou menos altaneiro, e sofre <strong>de</strong> rnh vonta<strong>de</strong> e mor<strong>de</strong> o freio do <strong>gov</strong>erno;dai mil calbnias arrojadas para torniento e <strong>de</strong>scr6dito daqueles que <strong>gov</strong>erham,e a pior 6 que os prbp<strong>rio</strong>s hornens <strong>de</strong> bem, como o negociante Jer6nimoLl<strong>rio</strong>, acabam por acreditar nos aleives multiplicados e repetidos.- E porque o senhor Vice-Rei duvida sempre, o povo 6 vitirnado ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala."- Um fato com a prova. ..- Senhor, eu cuido s6 da rninha vida, e nunca pensei em recolherprovas dos atentados e dos abusos do tenente-coronel AlexandreCardo&.-- Eis ai!. ..JerBnimo Li<strong>rio</strong> cruzou os <strong>br</strong>a~os e disse:. .- 0 senhor Vice-Rei me fez a honra <strong>de</strong> dizer hd pouco: "conversemoscomo dois arnigos que sornos"; se pois rnereco o norne <strong>de</strong> arnigo, as;siste-me o direito <strong>de</strong> falar franco.-. .- Sem dbvida.- 0 senhor Vice-Rei <strong>de</strong>ve vigiar melhor o seu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala.,.. .0 Con<strong>de</strong> da Cunha turbou-se.- Vossa Excelencia tern confiado nele al6m dos limites daprudbncia. ..- .. I , 0 vice-rei encrespou as so<strong>br</strong>ancelhas.. ,- Perdzo, senhor; B o amigo que fala;- Tern razb, disse o con<strong>de</strong>, serenando: continue.- Se o senhor Vice-Rei, sern <strong>de</strong>sconfiar do seu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala,mas tarnb6m nlo confiando <strong>de</strong>rnasiado nele, ouvir com paciencia osqueixosos, e por si aprofundar o estudo dos fatos <strong>de</strong> que se fazem pontos <strong>de</strong>acusaca"~, nb precisarh pedir provas dos crimes <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, apessoa alguma, e reconhecerd que ele tern sido fatal ao seu <strong>gov</strong>erno.- Senhor Jer6nirno Li<strong>rio</strong>, pela segunda vez e agora ainda maisclara e positivamente acaba <strong>de</strong> dirigir-me grave censura.JerBnimo curvou-se e na"o se <strong>de</strong>sculpou.- lnsiste no que disse? perguntou o con<strong>de</strong>.- Insisto, senhor Vice-Rei, e dig0 mais; ousei e ouso <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>-


cer a V. EX.^, nZo conce<strong>de</strong>ndo a mb <strong>de</strong> minha filha lnls ao ajudante oficial<strong>de</strong>-sala<strong>de</strong> V. EX.^.0 con<strong>de</strong> fez um movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito.Jer6nimo continuou:- Mas se o senhor Vice-Rei quiser vigiar mais cautelosa e atentamenteo seu secreti<strong>rio</strong>, e no fim <strong>de</strong> dois meses n30 se achar convencidodas minhas rlpeitosas preven~Bes <strong>de</strong> amigo, comprometo-me a aprovar e arealizar o casamento <strong>de</strong> minha filha com o tenente-coronel AlexandreCardoso.0 rosto do con<strong>de</strong> expandiu-se.- Senhor Jer6nimo Li<strong>rio</strong>, disse ele; aceito o compromisso efarei o que me aconselha; tenho nisso maior interesse; pois que'na condiqbque me oferece, compreendo a profun<strong>de</strong>za das suas convicqBes contririas aomeu secrete<strong>rio</strong> do <strong>gov</strong>erno, e a gran<strong>de</strong>za da sua amiza<strong>de</strong> a minha pessoa.E dando a mZo a Jerhnimo, acrescentou:- Retiro-me, levando a seguranca da sua palavra.- Eu, senhor Vice-Rei, fico tranqiiilo com a certeza <strong>de</strong> que ocasamento na"o se realizari.0 con<strong>de</strong> da Cunha que havia ji dado alguns passos, voltou-see ainda ajuntou:- NZo precis0 recomendar-lhe segredo so<strong>br</strong>e o seu compromissocondicional: quero que todos absolutamente o ignorem; 6 materia <strong>de</strong> quenem n6s mesmos teremos <strong>de</strong> falar at6 o prazo <strong>de</strong> dois meses; direi a AlexandreCardoso que nZo pu<strong>de</strong> vencer a sua oposi~Zo ao casamento <strong>de</strong> sua filhacom ele.Jer6nimo acompanhou o vice-rei, e no terrelro recebeu a ultima<strong>de</strong>spedida, e nZo se esqueceu <strong>de</strong> segurar no estribo, quando o con<strong>de</strong> montoua cavalo.0 vice-rei partiu; quatro pajens <strong>de</strong> Jerhnimo, levando lanternas,galopavam adiante, esclarecendo o caminho.Eram <strong>de</strong>z horas da noite, quando o Con<strong>de</strong> da Cunha apeou-se ?Iporta principal da casa dos vice-reis, que aliis ainda nZo se chamava e s6 paraclareza chamamos palicio.


Satisfeito dos obs6quios que recebera, o vice-rei voltara contudoda sua visita preocupado e entregue a pesadas reflex<strong>de</strong>s: o homem da suaconfianca era objeto <strong>de</strong> reprovacZo geral e Jerbnimo Li<strong>rio</strong>, um tipo <strong>de</strong> austerida<strong>de</strong>e honra<strong>de</strong>z, o apontara como criminoso e fatal ao vice-reinado, e,muito mais ainda, assinalara com respeito, mas tZo claramente, o <strong>de</strong>smazelodo chefe do <strong>gov</strong>ern0 da col6nia que chegara a prometer o casamento <strong>de</strong> suafilha, se ele, o vice-rei, vigiando melhor o seu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, nZo reconhecesseem dois meses a indignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste, e a propria e repreensivelcegueira.0 con<strong>de</strong> duvidava: os velhos s b teimosos por vaida<strong>de</strong>, e aferradosa suas afei~<strong>de</strong>s por fraqueza; mas a franqueza no<strong>br</strong>e <strong>de</strong> Jerbnimo, e ocompromisso por este tomado, o o<strong>br</strong>igava tamb6m a vencer, a domar osseus sentimentos <strong>de</strong> simpatia, favor e confian~a que tanto aproveitavam aAlexandre Cardoso no dizer <strong>de</strong> todos. Disposto, <strong>de</strong>cidido a p8r em a& amais apurada vigilincia e esmerilhado estudo dos negocios, subia as escadasdo palicio, quando ouviu o do<strong>br</strong>e dos sinos, anunciando incbndio, e logoor<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong> novo Ihe trouxessem o mesmo cavalo, em que chegara, ouque imediatamente selassem outro.Cinco minutos eram apenas passados e o vice-rei ia montar acavalo apesar da ida<strong>de</strong> e da fadiga; mas um soldado <strong>de</strong> cavalaria chegou acorrer, trazendo uma comunicaqZo verbal <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, segunl to aqua1 o inc&ndio era <strong>de</strong> pouca importincia, <strong>de</strong>vorava uma pequena casa iso~adano fim da praia <strong>de</strong> Santa Luzia, e todas as providdncias estavam j5tomadas.0 Con<strong>de</strong> da Cunha, aben~ando ainda uma vez a ativida<strong>de</strong> doseu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala que o poupava a tantos incbmodos, tornou a subiras escadas, e <strong>de</strong>spedindo os criados e dispensando a ceia, retirou-se para oseu quarto, sendo apenas acompanhado pelo seu criado particular, o velhosoldado que servira em MazagZo, o seguira para Angola, e em seu servi~oviera tamb6m para o Brasil.


Era, ja ficou dito, um homem ru<strong>de</strong>, analfabeto, mas fie1 e <strong>de</strong>dicado,e que apesar dos seus sessenta anos valia <strong>de</strong>z moqos em <strong>br</strong>avura, e umlea"o em forza. Em Angola escapara milagrosamente a uma fe<strong>br</strong>e perniciosacom <strong>de</strong>rramamento cere<strong>br</strong>al; ficara por6m mudo em consequdncia <strong>de</strong> paralisiada Ilngua.Germiano, que assim se charnava o criado mudo, apenas chegouao gabinete do amo, entregou-lhe uma carta.Conhecido corno exclusiva e, por assim dizer, religiosamente <strong>de</strong>dicadoao Con<strong>de</strong> da Cunha, Germiano era <strong>de</strong> ordina<strong>rio</strong> o portador escolhidopara certas cartas an6nimas, que por diversos e variados ardis the chegavamis mlos sem que se atrai~oasse ou <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>isse quem as escrevia.0 vice-rei a<strong>br</strong>iu e leu a que acabava <strong>de</strong> receber, e que dizia o seguinte:"Cego e surdo Vice-Rei; B forqa que se antecipe o nieu retatb<strong>rio</strong> dasemana que apenas comeva, para dar-te duas notlcias e uma preven~tio; eisas notlcias: Alexandre Cardoso ontem noite jogou doidamente a banca emmB companhia na casa da cortesa" audaciosa que por ele <strong>gov</strong>erna corno vice-rei <strong>de</strong> toucado e leque. - ASnove horas da noite foi entregue a AlexandreCardoso na casa imoral uma carta <strong>de</strong> um dos criados do vice-rei <strong>de</strong> calqaes,anunciando-lhe que este recebera em suspeitosa audidncia o velho negocianteJer6nimo Li<strong>rio</strong>, e o oficial-<strong>de</strong>-sala <strong>de</strong>ixou precipitadamente o jogo, e saiupara inforrnar-se miudamente do que se passara. - Limitam-se a estas asminhas notlcias do passado que foi ontem: agora receba o cego e surdovice-rei <strong>de</strong> calqiies a preven@o <strong>de</strong> um crime que se projeta. Na noite <strong>de</strong> hojeou em alguma das mais proximas sera incendiada a pequena casa do carpinteiroMarcos Fulgdncio na praia <strong>de</strong> Santa Luzia, e aproveitando a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>me a confustio que sempre se observam nos incdndios, Alexandre Cardosoou raptare ou violentare a honesta filha do po<strong>br</strong>e carpinteiro. - Parabens aocego e surdo vice-rei <strong>de</strong> calqiies por estas flores do seu vice-reinado. -PostScripturn: a cortesa", vice-rei <strong>de</strong> toucado e leque, comeqa a ressentir-se doarrefecimento da paixb <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, e solfcita aproveita a luz doseu ocaso para arranjar os Gltimos afilhados (que prometem pagar bem) emempregos e em postos dos novos terqos criados. - A<strong>de</strong>us e at6 <strong>br</strong>eve, cego esurdo Vice-Rei. -Alma do outro mundo".0 Con<strong>de</strong> da Cunha amarrotou com raiva a carta insolente,apertando-a na ma"o; impressionado, por6m, pela pr6via notlcia do incdndio,perguntou ao criado:- A que horas te <strong>de</strong>ram esta carta?Germiano levantou a ma"o direita, eJten<strong>de</strong>ndo os cinco <strong>de</strong>dos, elogo a esquerda, esten<strong>de</strong>ndo somente rrL.- AS oito horas?0 mudo fez corn a cabeca sinal afirmtivo.


- F oi prkvia a noticia, murmurou o vice-rei.E tendo refletido alguns momentos, disse a Germiano:- Faze com que se tranquem todas as portas, e que todos se recolhama seus quartos para dormir, e volta.Um quarto <strong>de</strong> hora <strong>de</strong>pois Germiano <strong>de</strong> novo se apresentou.- Tudo estii fechado? perguntou o con<strong>de</strong>.0 mudo respon<strong>de</strong>u que sim corn o movimento da cabe~a.0 vice-rei atirou a Germiano uma capa que podia envolvb-lotodo, co<strong>br</strong>iu-se com outra igual em dimensces, tomou o chapeu mo<strong>de</strong>sto ecomum, e disse ao criado:- Segue-me.Esquecendo que falava a urn mudo, acrescentou:- Nem uma palavra. . . silbncio.Germians sorriu-se melancolicamente.0 Con<strong>de</strong> da Cunh marchou adiante, atravessou p6 por pB umasala, <strong>de</strong>sceu a uma area inte<strong>rio</strong>r do palAcio, e indo direto a uma porta quese achava trancada, tirou do bolso urna chave, a<strong>br</strong>iu urna porta e saiu seguidopor Germiano, tomando a direcb da praia <strong>de</strong> Santa Luzia.Germiano movia corn a cabetja, como se consigo falasse, e pareciadizer:- Jii era tempo.


XXXMarcos Fulgdncio voltava do trabalho para o seio da familiainvariavelmente ao anoitecer; is oito horas ceava, is nove dormia.Na segunda-feira do carnaval proce<strong>de</strong>u como em todos os outrosdias; mas logo <strong>de</strong>pois das <strong>de</strong>z horas da noite <strong>de</strong>spertou aos pavorosos <strong>br</strong>ados<strong>de</strong> Fernanda, que assim se chamava sua mulher, e saltando fora da cama, viusua po<strong>br</strong>e casa ar<strong>de</strong>ndo em fogo; ainda tonto <strong>de</strong> sono Marcos Fulg&ncio hesitoupor alguns momentos; mas a fumaqa comeqava a invadir o quarto, e umclarZo horrivel inundara a sala.0 carpinteiro tentou sair para a sala e recuou ante o fog0 que<strong>de</strong>vorava o teto, semeando <strong>de</strong> continuo pedaqos <strong>de</strong> ripas e cai<strong>br</strong>os a<strong>br</strong>asadose telhas que caiam por falta <strong>de</strong> apoio; calculando entzo as proporq8es do perigotornou a trancar a porta do quarto, correu a uma janela que se a<strong>br</strong>iaparao lado direito da casa, escancarou-a, tomou em seus <strong>br</strong>aqos Fernanda.lan~ou-a fora da casa, atirou-se tamb6m pela janela, tendo primeiro arrojadopor ela o seu caixzo <strong>de</strong> instrumentos.- Minha filha!. . . minha filha!. . . gritava Fernanda.Mas o carpinteiro niio parara um instante: do caixb <strong>de</strong> ferros tirouum formso e o martelo, e precipitou-se para os fundos da cam, on<strong>de</strong> haviauma porta em frente do mar.Marcos Fulgdncio nb falava: chegou diante da borta que pro-curava, avanqando com o formso e o martelo; mas como se julgasse morosoo meio, largou no chb os instrumentos, aplicou um dos om<strong>br</strong>os porta edurante um minuto talvez empregou tZo ferrenho esforqo, que conseguiurebentar a fechadura.0 carpinteiro cambaleou e a<strong>br</strong>indo a boca lancou uma golfada<strong>de</strong> sangue; mas penetrou logo acelerado na casa, e em <strong>br</strong>eve, soltando umgrito <strong>de</strong> dor imensa, voltou, trazendo nos <strong>br</strong>aqos Emiliana morta ou <strong>de</strong>smaiada,e a <strong>de</strong>positou, chorando, no colo <strong>de</strong> Fernanda, que em <strong>de</strong>sespero sea<strong>br</strong>aqou com ela.


% entk Marcos Fulggncio ouviu os sinos, dando sinal <strong>de</strong>incgndio. 1Come~ava a acudir gente e nZo tardou a velha vizinha que habitavaa casa arruinada, e que, ao ver Emiliana estendida no chiio e exposta emcamisa como o pai a trouxera da cama, tirou a sua mantilha e co<strong>br</strong>iu-a comela,Emiliana na"o estava morta, e bastaram alguns minutos do arlivre, fresco e puro da noite para que eta reco<strong>br</strong>asse os sentidos que per<strong>de</strong>ra.Marcos Fulgbncio e Fernanda respon<strong>de</strong>ram com duas exclama-~6es <strong>de</strong> alegria ao primeiro suspiro <strong>de</strong> Emiliana, que logo <strong>de</strong>pois a<strong>br</strong>iu osolhos e sentou-se apoiando-se em sua rnZe.Ouviu o trope1 <strong>de</strong> cavaleiros.- a tropa que chega, disse a velha; esta menina n b po<strong>de</strong> ficaraqui; comadre Fernanda, levemo-la para minha palhoqa. . .- Sim, disse Marcos Fulgbncio; vai com ela para a casa da comadrePBncia. ,E tranqiiilo so<strong>br</strong>e o estado da filha, o carpinteiro pensou <strong>de</strong> no-vo no incdndio.A antiga e pesada constru~b das casas, o emprego <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras<strong>de</strong> lei e <strong>de</strong> grossura exagerada, a fortaleza das pare<strong>de</strong>s explicam a razb dolongo trabalho do fog0 a <strong>de</strong>vorar ainda mesmo um pequeno pr6dio bemedif icado.A casa do carpinteiro Marcos Fulgdncio fora construlda poucoa pouco por ele mesmo e sob sua zelosa direqgo e era toda <strong>de</strong>ssas ma<strong>de</strong>irasdo Brasil que arremedam o peso, a dureza e a resistdncia do ferro.0s socorros tinham chegado e o homem combatia o incbndio.0 tenente-coronel Alexandre Cardoso dirigia corn serenida<strong>de</strong>, inteligbncia eenergia todos os trabalhos.- Coragern, Marcos Fulgbncio! gritava ele, quando via o carpinteiropassar correndo.0 fog0 conquistara todo o teto da casa.Marcos Fulgbncio na"o falava; mas tinha com sublime frieza medidoa fdria do incbndio, e compreendido o que mais Ihe convinha fazer paraque fosse menor o seu prejuizo.Despren<strong>de</strong>ndo um machado, o manejara ativamente, <strong>de</strong>spedacandoas portas e janelas para dar livre saida ao fumo e com audacioso Impetoarrojava-se ao inte<strong>rio</strong>r da casa, ou entrando pelas portas, ou saltando pelasjanelas, e logo enegrecido pela fuma~a, chamuscado pela flama, safa trazen-.do & cabeqa ou nos <strong>br</strong>aqos alguns objetos, algum po<strong>br</strong>e fardo ou traste quesalvara.As caixas <strong>de</strong> roupa <strong>de</strong> sua mulher e <strong>de</strong> sua filha, o bastidor e a


oca <strong>de</strong> Fernanda, e outros objetos foram assim arrancados por ele a cornpletadpstruiqa"~.Mas sem dljvida o tesouro do carpinteiro <strong>de</strong>via estar na sala dafrente, pois que ele jd vinte vezes tentara invadi-la e vinte vezes recuara, rugindo,por na"o po<strong>de</strong>r assoberbar as llnguas <strong>de</strong> flama e os vbmitos <strong>de</strong> furno.E jd duas vezes novas golfadas <strong>de</strong> sangue haviarn marcado o ressentimentodo corpo pelo excess0 do esforqo <strong>de</strong> Marcos Fulgbncio.Enfim o indBmito carpinteiro fez o sinal-da-cruz, e aos gritos -"o teto vai <strong>de</strong>sabar!" que, ouvindo um medonho estalo, solrava a rnultidZo,ele, fu<strong>rio</strong>so, investiu pela porta da frente atraves da furna~a ar<strong>de</strong>nte, e<strong>de</strong>sapareceu.- Miseric<strong>br</strong>dia!. . . <strong>br</strong>adaram mil vozes.Urn vulto imenso, como um fantasma rnostrou-se A porta emmeio da nuvern espessa <strong>de</strong> fumo. . .0 teto estalou outra vez e <strong>de</strong>sabou todo.E Marcos Fulgdncio, negro, com as mbs queimadas, com os vestidosem trapos, avanqou, trazendo a cabe~a o seu orato<strong>rio</strong> que <strong>de</strong>pBs nocha"o.- Gra~as a Deus! exclamou ele.E ajoelhou-se, esten<strong>de</strong>u os <strong>br</strong>aqos para o oratb<strong>rio</strong>, e caiu porterra sem sentidos.


Fernanda e comadre Pdncia tinham levado quase carregada paraa pu<strong>br</strong>e casa arruinada a menina Emiliana e 18 a haviam feito <strong>de</strong>itar na humil<strong>de</strong>cama do estrado da velha.Enquanto Emiliana <strong>de</strong>scansava, pois que em <strong>br</strong>eve dormiu sonoembora agitado por contraq6es nervosas, a velha e Fernanda conversaramem voz baixa:- Mas. . . este incendio. . . como foi? perguntou Pdncia.- Tomara eu que mo digam, comadre Pdncia, respon<strong>de</strong>u Fernanda:As nove horas da noite apaguei eu a can<strong>de</strong>ia, e n b havia no fogbnem uma <strong>br</strong>asa: o fogo foi maliifico. . .- De quem?- Eu sei Id!- Depois que puseram para fora da terra os santos padres jesuitas,tsm-se visto <strong>de</strong>stas e <strong>de</strong> outras. . .E o meu Marcos! exclamou Fernanda.- o homem 60 e pru<strong>de</strong>nte que sabe o que faz; n b se ponhaem afliqzo por ele.Fernanda chojava.- As vezes o nb-sei-que-diga tenta os tementes a Deus comestes e outros infortdnios para excitar o pecado do <strong>de</strong>sespero; eu sei casos!Quer que Ihe conte um que presenciei e vi com estes olhos que a terra hd<strong>de</strong> comer?. . .- Conte, comadre Pdncia, disse Fernanda, que alids n b atendia.A velha Pbncia contou <strong>de</strong> enfiada meia ddzia <strong>de</strong> hist6rias <strong>de</strong>ridiculas proezas do diabo.Fernanda continuava a inquietar-se pela sorte <strong>de</strong> Marcos Fulgbncio,quando principiaram a chegar os objetos por ele salvos do incOndio e asnotkias repetidas <strong>de</strong> que o carpinteiro estava ousando fazer com risco dapropria vida.


0s temores e lnsias <strong>de</strong> Fernanda agravaram-se; eta por6m que amilido <strong>de</strong>ixava o quarto, on<strong>de</strong> Emiliana dormia, para falar As pessoas quechegavam, e que Ihe davam novas do marido, nb se atrevia a <strong>de</strong>ixar s6 afilha na casa <strong>de</strong> PBncia, em quem Marcos nZo confiava.Mas por liltimo um soldado que viera, correndo, anunciou o<strong>de</strong>smaioe o estado melindroso do carpinteiro.Fernanda esqueceu a filha, e saiu precipitada em socorro do marido,que fora conduzido para a Santa Casa da Miseric6rdia, on<strong>de</strong> ela foi encontrd-lo<strong>de</strong>vorado <strong>de</strong> fe<strong>br</strong>e e em furente <strong>de</strong>ll<strong>rio</strong>.A esposa amante e fie1 ficou junto do esposo amea~ado <strong>de</strong>morte prcixima.~ntretant'o, na casa da velha PBncia, Emiliana <strong>de</strong>spertara em so<strong>br</strong>essaltoaos lamentos <strong>de</strong> sua mZe. que correndo. partira, e a trai~oeira h6spedaniio hesitara em dar-the a notlcia do que acontecera a MarcosFulgbncio.Emiliana soltou um gemido profundo e outra vez <strong>de</strong>smaiou.Alexandre Cardoso entrou entb no quarto, e a velha infamesaiu, cerrando a porta.AStras horas da madrugada o ajudante oticial-<strong>de</strong>-sala do vice-reiesgueirou-se furtivo da casa arruinada da tia PBncia, on<strong>de</strong> alids muito se<strong>de</strong>morara.E <strong>de</strong>pois que ele passou, dois embu~ado salram <strong>de</strong>ntre os arbustosque pr6ximos havia, e caminharam pela praia <strong>de</strong> Santa Luzia e Rua daMisericordia at6 o palacio, diante do qua1 pararam junto <strong>de</strong> uma portalateral.Um sentinela vigilante correu, e tomou-lhes o passo, intimandoosa dizer quem eram.Um dos vultos embu~ados atirou para trds a capa que o outroapanhou, e mostrando o rosto a sentinela, perguntou-the:- Conheces-me?0 soldado recuou tremendo espantado, e disse a gaguejar:- 0 senhor Vice-Rei!. . .- Que te mandari enforcar, se disseres a algu6m o que acabas<strong>de</strong> <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir.A sentinela ficou muda e estdtica.0 vice-rei e Germiano entraram no palacio.


0 Con<strong>de</strong> da Cunha velou o resto da noite: irasclvel e violento,atormentou-o a necessida<strong>de</strong> da dissimulaqb com Alexandre Cardoso, <strong>de</strong>cujo procedimento criminoso e indigno nb podia mais duvidar como dantes.Testemunhando inchnito o incencio e os trabalhos para doming-io, ovice-rei a principio se ufanou do zelo da intrepi<strong>de</strong>z, e da aqio e direczo inteligentesque mostrara o seu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala; mas iogo que abateu oteto da casa incendiada, Alexandre Cardoso na"o foi mais visto, e outrooficial comandou em seu lugar.Contrariado pelo sbbito <strong>de</strong>saparecimento daquele a quem vieraobservar e que assim Ihe escapara as vistas, o con<strong>de</strong> afastou-se urn pouco damultida"~ reunida e perguntou ao ouvido <strong>de</strong> Germiano.- 0 tenente-coronel Alexandre Cardoso?0 mudo esten<strong>de</strong>u o <strong>br</strong>a~o e corn a m50 apontou para a mata <strong>de</strong>arbustos fronteira casa incendiada.- Segue-me, disse o vice-rei.E entrou na mata que por aquele lado co<strong>br</strong>ia a fralda do montedo Castelo.As Oltimas flamas do incbndio esclareciam a mata, on<strong>de</strong> Germia:no tomou a dianteira ao vice-rei, gastando ambos algum tempo a procurar<strong>de</strong>bal<strong>de</strong> o ajudante oficial<strong>de</strong>-sala.Por fim o vice-rei ouviu larnentos e logo <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>iu uma pequenacasa, perto da qua1 acabava, ou antes, era interrompida a mata.0 Con<strong>de</strong> da Cunha parou, observou por alguns minutos e viusair da casa, em pranto e <strong>de</strong>sespero, uma mulher que <strong>de</strong>itou a correr, e viumais um oficial surgir da som<strong>br</strong>a espessa, passar perto <strong>de</strong>le e entrar na casa,cuja porta fechou.0 vice-rei estremeceu, tomou uma das m5os <strong>de</strong> Germiano, edisse-lhe:


- Quando me apertares a mso, diriis - sim; se n50 ma apertares,quereriis dizer - nSo.Era um recurso para se enten<strong>de</strong>r com o mudo Bs escuras.- Conheceste o homem que acaba <strong>de</strong> passar perto <strong>de</strong> n6s, e <strong>de</strong>entrar naquela casa?. . .0 mudo apertou a ma"o do vice-rei.- Era Alexandre Cardoso?0 mudo tornou a fazer o mesmo sinal.- Estiis certo <strong>de</strong> que era ele?. . .Germiano apertou corn mais forca a mZo do Con<strong>de</strong> da Cunha.- Sabes quem mora nessa casa?. . .A mtio do mudo ficou inerte.0 vice-rei esqueceu-se da noite em longo refletir, e querendoconvencer-se por seus pr6p<strong>rio</strong>s olhos <strong>de</strong> que era Alexandre Cardoso e nZooutro que entrara na casa arruinada, aproximou-se do caminho, e sempreoculto na mata, mas com os olhos na porta da casa, esperou.Passado algum tempo ouviu um grito pungente, fez um movimentopara lanqar-se casa arruinada; mas Germiano o susteve.Reinou profundo sil6ncio.0 Con<strong>de</strong> da Cunha arquejava <strong>de</strong> impaci6ncia e <strong>de</strong> fadiga; masfinalmente a porta da casa se a<strong>br</strong>iu, uma velha apareceu, levando na mbuma can<strong>de</strong>ia, a cuja luz mostrou-se o rosto e o vulto <strong>de</strong> Alexandre Cardoso,que apressado se retirou.0 vice-rei ficou sabendo meta<strong>de</strong> do que Ihe cumpria saber eadivinhou o resto.Na manha" da terp-feira do carnaval o ajudante oficial-<strong>de</strong>-salaapresentou-se ao vice-rei.- 0 inchndio?. . . perguntou este apenas o viu entrar.- Devorou a casa, <strong>de</strong> que apenas ficaram as pare<strong>de</strong>s.- Foi casual?- SupBe-se que nb, senhor Vice-Rei.- Como o explicam?- Por mim nada sei ao certo; dizern por6m alguns que o inc6ndioa<strong>br</strong>iu a porta a uma filha contrariada em seus amores por pais severos.- E o chmplice da perversa?- Falam <strong>de</strong> urna farda, <strong>de</strong> um soldado, ou <strong>de</strong> algum oficial.- On<strong>de</strong> estB essa mulher incendiiria?- Esteve na casa <strong>de</strong> uma velha sua vizinha que a recolheu;agora n b sei, pois que ao amanhecer fugiu <strong>de</strong>sse po<strong>br</strong>e asilo. . .- E os pais da <strong>de</strong>sgra~ada?- 0 pai estB na Santa Casa da Miseric6rdia e corre perigo <strong>de</strong>vida, a ma"e ao p6 do marido vela por ele, e n b sabe <strong>de</strong> si, nem da filha.


0 vice-rei ma1 contendo a sua cdlera, disfarqou-a, exclamando:- Tenente-Coronel! ontem B noite o vice-rei e o ajudante oficial<strong>de</strong>sala contralram duas dlvidas, que B precis0 pagar.- Como, senhor?- Devemos I moralida<strong>de</strong> pliblica o nome e a posiqk do climpliceou perverso violentador <strong>de</strong>ssa moqa, filha <strong>de</strong> pais po<strong>br</strong>es, mas honestos.- Empenho-me em <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir o crime e os criminosos, repon<strong>de</strong>uAlexandre Cardoso.- Mas o cr~me produziu os seus efeitos: h6 uma casa incendiadae uma donzela <strong>de</strong>sonrada; <strong>de</strong>vemos, pois, aos po<strong>br</strong>es que tanto per<strong>de</strong>ram,uma compensaqZo; <strong>de</strong>vemo-la; porque <strong>de</strong>sta vez fomos ambos autorida<strong>de</strong>spelo menos <strong>de</strong>smazeladas; o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala o foi por na"o acudir atempo <strong>de</strong> salvar a casa, e sohretudo por nb ter sabido salvar a honra da familiado misero carpinteiro; e o vice-rei tambem o foi, pois o seu lugarontem I noite era diante do incendio e <strong>de</strong>ixou-se ficar dormindo pelas seguranqasque recebeu em um recado oficial. Multemo-nos portanto, Tenente-Coronel: o vice-rei mandar6 B custa do seu bolsinho reconstruir a casa incendiada,e o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, se nio <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir o sedutor, raptor ouclimplice da donzela dot&-la-A e cad-la-6 com algum oficial <strong>de</strong> oficio acontendo dos pais da menina. Que diz?- Que respeito e admiro sempre o esplrito <strong>de</strong> justi~a do senhorVice-Rei.- Bem. . . bem. . . recomendo-lhe este assunto do incendio e <strong>de</strong>todas as circunstlncias que o acompanharam; quero providsncias urgentes, enotlcias do infeliz carpinteiro.Alexandre Cardoso, vendo-se livre <strong>de</strong>ssa questb para ele esca<strong>br</strong>osa,apresentou ao vice-rei uma folha <strong>de</strong> papel com algumas linhas escritas.Que 6 isso? perguntou o con<strong>de</strong>.- S b os nomes <strong>de</strong> alguns bons vassalos <strong>de</strong> El-Rei nosso senhorlem<strong>br</strong>ados para os postos principais <strong>de</strong> novo terco <strong>de</strong> infantaria criado navila <strong>de</strong>. .. - Ainda comandantes sem comandados!. .. exclamou o vice-rei,interrompendo Alexandre Cardoso.- o meio <strong>de</strong> organizar mais prontamente esses corpos e, obe<strong>de</strong>cendoIs or<strong>de</strong>ns do senhor Vice-Rei, ajuntarei a cada nome propostomilidas informaqaes da no<strong>br</strong>eza, fortuna e serviqos respectivos.Sim. .. veremos isso <strong>de</strong>pois.- Com o mais profundo respeito cumpre-me informar tambemao senhor Vice-Rei que as necessida<strong>de</strong>s do serviqo continuam a reclamar aimediata organizaqio <strong>de</strong>sses tercos <strong>de</strong> infantaria auxiliar.0 Con<strong>de</strong> da Cunha pensou por <strong>br</strong>eve tempo e disse:


- Quer saber?. .. Acho-me hoje incapaz <strong>de</strong> resolver pru<strong>de</strong>ntementenegocios do <strong>gov</strong>erno; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ontem sinto-me irritado e <strong>de</strong> mauhumor. ..Alexandre Cardoso obse~ava respeitoso o vice-rei.- Passei por cruel <strong>de</strong>sengano: o meu nome, a importlncia doalto cargo que <strong>de</strong>sempenho, o valor da honra imensa que fiz, foram<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rados!- Como, senhor Vice-Rei?!!!- Jerbnimo Ll<strong>rio</strong>, um vil embora rico traficante, um mercador<strong>de</strong> vinhos e azeite, ousou ontem recusar-me sem rebuqo e com teima insolentea mb <strong>de</strong> sua filha lnes que abaixei-me a ir pedir-the para o meu ajudanteoficial-<strong>de</strong>-sala!. ..Alexandre Cardoso empali<strong>de</strong>ceu.- 0 Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha recebeu trBs vezes na face o -nb -do traficante que <strong>de</strong>veria respon<strong>de</strong>r-lhe - sim - ajoelhando-se!E o con<strong>de</strong> media a passos largos a sala, como costumava fazerquando se achava em c6lera.Alexandre Cardoso na"o falava; mas nervoso tremor agitava seuslabios que is vezes mostravam urn rir, que nb era riso, ou era o riso do <strong>de</strong>mbniodas vingancas.0 vice-rei parou enfim diante <strong>de</strong> Alexandre Cardqso e disse-lhe:- Sofra no seu amor e na sua vaida<strong>de</strong> o que eu sofri na minha altadignida<strong>de</strong>.E com movimento <strong>de</strong> ira acrescentou:- Prolbo-lhe que outra vez me fale nesse. .. negociante que me<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rou.E voltando as costas, <strong>de</strong>ixou a sala.


Alexandre Cardoso retirou-se para o gabinete, on<strong>de</strong> trabalhava,<strong>de</strong>soprimido <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> peso, mas aturdido por duas contrarieda<strong>de</strong>s quemuito agitavam-lhe o Bnimo.0 vice-rei tinha freqiientemente dias <strong>de</strong> impacigncia e <strong>de</strong> irrita-$50 diffceis <strong>de</strong> se suportar; nessa manha" porbm mengs <strong>de</strong>sa<strong>br</strong>ido que emoutras, falara so<strong>br</strong>e o indndio, negara-se a <strong>de</strong>spachar as nomeaees para ocomando do terqo, <strong>de</strong> mod0 que excitou suspeitas e temores no esplrito naturalmente<strong>de</strong>sconfiado <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, que s6 respirou <strong>de</strong>safrontado<strong>de</strong> mais graves apreensees, ouvindo logo <strong>de</strong>pois a explica@o do mau humore da c6lera do po<strong>de</strong>roso senhor.Mas dicaram a Alexandre Cardoso duas contrarieda<strong>de</strong>s.0 ajudante oficialcie-sala do vice-rei negociara particularmentee por bom preco as nomeaees para os diversos postos do novo terco; <strong>de</strong> algumasrecebera adiantado pagamento, e calculava com elevadas quantias queas outras haviam <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r-lhe; o jogo, em que andava infeliz, e a <strong>de</strong>vassidzoque Ihe custava <strong>rio</strong>s <strong>de</strong> ouro, o apertavam em crltiws apuros, e o vice-rei,adiando aquelas nomeaq6es viera agravar seus embaracos financeiros, o queera questiio <strong>de</strong> mexima importdncia para ele que em cada noite precisava tera bolsa recheada <strong>de</strong> louras moedas.A negativa <strong>de</strong> JerBnimo Lf<strong>rio</strong> A sua proposica"~ <strong>de</strong> casamentocom a bela In& era para Alexandre Cardoso albm <strong>de</strong> uma repulsa insultssa,um <strong>de</strong>smancho <strong>de</strong> cAlculos <strong>de</strong> futura riqueza, e um incentivo provocador <strong>de</strong>sua paixb pela forrnosa menina. Ultrajado em sua vaida<strong>de</strong>, ~rejudicado emseus planos <strong>de</strong> fortuna, esporeado, ferido em seu amor, se realmente amava, emseu ardor libidinoso, se outro na"o era o seu sentimento, o ajudanteoficial-<strong>de</strong>salado vice-rei jurou vingar-se em lnds do orgulhoso pai <strong>de</strong> ln2s e animou-semais nessa id6ia. contando com o ressentimento do Con<strong>de</strong> da Cunha que tbcol6rico se pronunciara contra Jer6nirno Li<strong>rio</strong>.Entretanto o cuidado instante <strong>de</strong> Alexandre Cardoso era arran-


jar dinheiro, para o iogo e para seus <strong>de</strong>senvoltos prazeres; trabalhou rnal comoaiudante oficial<strong>de</strong>-sala nesse dia; porque, trabalhando, rneditava, imaginandoexpedientes; Bs onze horas da manha" <strong>de</strong>spachou urn soldado cornuma carta para Clb<strong>rio</strong> hias, velho usurl<strong>rio</strong> riqulssimo que morava na rnaisbaixa e po<strong>br</strong>e casinha da Rua do Parto e apenas viu sair o soldado, pbs-se aescrever corn rnaior cuidado em uma folha <strong>de</strong> papel, e consecutivamente emmais duas, imitando diversos caracteres <strong>de</strong> letra, no que era habil e consurnado,do<strong>br</strong>ou <strong>de</strong>pois as folhas <strong>de</strong> papel, e guardou-as na sua pasta.No fim <strong>de</strong> uma hora pouco rnais ou menos Cl6<strong>rio</strong> hias, hirsutoe com vestidos remendados, com a cabe~a sern cabeleira, e os sapatos sernfivela, imundo e <strong>de</strong>sprezlvel, foi introduzido no gabinete do ajudanteof icial<strong>de</strong>-sala.- Senta-te e espera, Cl6lio hia, disse este, e continuou a escrever.0 velho esperou rneia hora e vendo Alexandre Cardoso corno<strong>de</strong>le esquecido, disse:- Tempo 6 ouro: que fa~o eu aqui?0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei largou a pena, e respon<strong>de</strong>u:- Tens razz0 rneu velho: quanto te <strong>de</strong>vo at6 hoje?. . .- Cinco mil cruzados corn os juros do irltirno trirnestre, que na"orecebi.- Dou-te a melhor das notlcias, hias!- A do pagamento?- 0 contrh<strong>rio</strong> disso: a boa-nova <strong>de</strong> que esta noite te <strong>de</strong>verei <strong>de</strong>zmil cruzados.- E corno? se n5o tenho hoje nern um pataca"^ para emprestar?exclarnou o velho a tremer.- Fala baixo, ou nb te po<strong>de</strong>rei valer, observou AlexandreCardoso.0 velho ficou olhando em silencio.- Cl6lio hias, na"o me esqueci <strong>de</strong> que em um dia me a<strong>br</strong>iste asua bolsa usurlria e me emprestaste dois mil cruzados, que hoje por tuascontas <strong>de</strong> juros sobern a cinco; nb discuto so<strong>br</strong>e a usura: precisei, achei-ten<strong>de</strong>vo-te gratidb.0 velho continuava a olhar.- Ll esta <strong>de</strong>nfincia, disse Alexandre Cardoso, passando aCl6lio hias uma das trls folhas <strong>de</strong> papel.0 velho leu urna <strong>de</strong>nuncia que contra ele dava urn inc6gnitoinirnigo, acusando-o, corno ju<strong>de</strong>u, ao Santo Of Icio.Clblio hias nlo era ju<strong>de</strong>u, mas filho <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u.- L6 agora estes of lcios, continuou Alexandre Cardoso, passandoao velho as outras duas folhas <strong>de</strong> papel.Cl6lio hias leu um oflcio do cornissa<strong>rio</strong> do Santo Oflcio ao bis-


po, e outro do bispo ao vice-rei.A prisb e remessa <strong>de</strong> Cl6lio fiias para Lisboa eram exigidas.0 velho tornou a ler e a reler os documentos, e <strong>de</strong>pois caindo <strong>de</strong>joelhos disse corn voz sumida:- Salve-me pelo amor <strong>de</strong> Jesus Cristo!Alexandre Cardoso pbs-se a rir; o velho quase chorava.- Man<strong>de</strong>i-te eu chamar para te pren<strong>de</strong>r, po<strong>br</strong>e milionh<strong>rio</strong> hias?- Salva-me! repetiu o velho.- Quanto te <strong>de</strong>vo eu hoje?- Ah, senhor! creio que coisa nenhuma. . .- NZo, usurB<strong>rio</strong>; o que eu <strong>de</strong>vo, <strong>de</strong>vo, hei <strong>de</strong> pagar-te.E Alexandre Cardoso renovou a pergunta.- Quanto te <strong>de</strong>vo eu at6 hoje?- Cinco mil cruzados.- quase nada.Cl6lio hias arregalou os olhos.- Um homem da minha hierarquia ou n k <strong>de</strong>ve, ou <strong>de</strong>ve maisdo que isso, disse Alexandre Cardoso.0 velho tremia e esperava.- Quero esta noite <strong>de</strong>ver-te o do<strong>br</strong>o <strong>de</strong>ssa quantia; jB o disse.- 0 do<strong>br</strong>o?!!!- Achas pouco? Talvez tenhas razgo; espera: <strong>de</strong>ixa-me examinaroutra vez esses paphis.Clelio hias teve medo <strong>de</strong> que o novo exame <strong>de</strong>terminasse aumentoda exinbncia, e perauntou:- On<strong>de</strong> levarei os cinco mil cruzados?- A minha casa Is seis horas da tar<strong>de</strong>.- E estes pap&?- Queima-10s-ei B tua vista.0 velho usur6<strong>rio</strong> refletiu por aloum tempo: tornou a ler e a exa-minar a <strong>de</strong>ndncia e os oficios, foi pouco a pouco reco<strong>br</strong>ando o lnimo perdidoe por fim disse com uma certa acentua~b <strong>de</strong> malicia na voz:- Eu preferia que me passasse a clareza da dlvida em um <strong>de</strong>sses~ap6is.Alexandre Cardoso corou.- MiserBvel!- Quest30 <strong>de</strong> seguranqa: quem me respon<strong>de</strong> pela futura complacenciado meu <strong>de</strong>nunciante?- Eu.- Nb me basta.- E <strong>de</strong> que te serve a clareza passada em um <strong>de</strong>sses documentos?- Ah! <strong>de</strong> muito! Se eu for outra vez <strong>de</strong>nunciado, o senhor aju-


dante o oficial-<strong>de</strong>-sala me salvari ou eu o per<strong>de</strong>rei com o papel da clareza.Alexandre Cardoso conteve uma imprecaq20 e disse:- Retira-te.- Quer que vB As seis horas?- N2o: mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> parecer.Cl6lio hias, que per<strong>de</strong>ra o medo, tornou:- Tenho outra id6ia. . .- Retira-te, ju<strong>de</strong>u!- PerdZo, senhor: olhe que estB elevando a voz.Alexandre Cardoso encarou corn raiva o teimoso velho, queprosseguiu:- Levarei as seis horas a clareza da dlvida antiga e mais cincomil cruzados em boa moeda, e em troca da clareza e do dinheiro recebereia <strong>de</strong>nirncia e os dois offcios; mas doravante o senhor Tenente-Coronelarranjari as coisas <strong>de</strong> modo que eu nZo seja outra vez <strong>de</strong>nunciado, e que alemdisso eu com o meu prbp<strong>rio</strong> nome ou corn o <strong>de</strong> outro ou <strong>de</strong> outros, venha ater por administra~zo as melhores o<strong>br</strong>as pdblicas, e por contrato os melhoresfornecimentos para as tropas <strong>de</strong>l-rei, e pela minha parte eu tamb6marranjareias coisas <strong>de</strong> modo que os lucros sejam irml e honradamente-repartidosentre mim e o meu dcio encoberto.'Alexandre Cardoso respon<strong>de</strong>u a tremer por sua vez:- Bruto! N b sentes que me insultas?. .0 usuri<strong>rio</strong>, rindo-se corn urn rir ir6nico e repugnante, <strong>de</strong><strong>br</strong>u~ousena mesa do ajudante oficial<strong>de</strong>-sala, firmou o queixo so<strong>br</strong>e os punhos,fitou Alexandre Cardoso e continuou, dizendo:- Que insulto? 0 que eu sei 6 que esses pap& s b falsos masque o senhor Tenente-Coronel e bem capaz <strong>de</strong> os arranjar verda<strong>de</strong>iros e <strong>de</strong>per<strong>de</strong>r-me para sempre, e tamb6m ainda sei que o senhor precisa muitas vezes<strong>de</strong> dinheiro; ora mesmo falsos como s50, esses pap& me servem muito:dou por eles o que disse, sob a condi~zo da socieda<strong>de</strong>, em que lucraremosbastante, e sem receio urn do outro; porque ficaremos ambos em mdtua <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia.lsso e que e ser franco: serve-lhe?Alexandre Cardoso viu aberta a seus olhos uma mina <strong>de</strong> ouro,e respon<strong>de</strong>u:- As seis horas em minha casa.Cl6lio hias saiu.


A proposi~a"~ do velho usura<strong>rio</strong> agradaria plenamente a AlexandreCardosq se nio fora a perigosa condi~a"o da entrega dos documentos que<strong>de</strong>ixava-o para mpre a merc6 das exiggncias e imposiqBes que <strong>de</strong>viam tornar-seilimitadas, pois Clklio bias, tendo conhecido a falsida<strong>de</strong> dos tr6sescritos, dava ainda por eles<strong>de</strong>z mil cruzados, uma riqueza naquela Bpoca eisso apesar da sua escandalosa ava-.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala na"o se escravizaria em caso algum a semelhantehomem; mas para ver se <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ia algum outro recurso que substitulssea entrega dos documentos, mandou'que ClBlio bias fosse a sua casa Asseis horas da tar<strong>de</strong>, e ficou <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> pensando, dando tratos A imaginacb noempenho <strong>de</strong> achar ou <strong>de</strong> inventar o expediente almejado, ou outcos meiosprontos para prover-se <strong>de</strong> dinheiro.Um empregado da sala veio perturbar suas cogitacBes trazendo-Ihe um requerimento, que <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> imediato <strong>de</strong>spacho, ou para cujo in<strong>de</strong>ferimentobastava a <strong>de</strong>mora da providdncia perdida: era uma respeitosa representacbdos mercadores <strong>de</strong> limzes-<strong>de</strong>-cheiro, que lamentavam os seusprejulzos, mostravam como eram os inocentes castigados pelo crime dos perversospasquineiros, e conclulam pedindo que o senhor vice-rei, dignandoserevogar suas ante<strong>rio</strong>res or<strong>de</strong>ns, permitisse o jogo do entrudo na tar<strong>de</strong> enoite da terca-feira.Alexandre Cardoso, contrariado, <strong>de</strong>sgostoso, aflito por diversosmotivos naquele dia, atirou corn o requerimento para baixo da mesa,dizendo:- Eis o Onico <strong>de</strong>spacho que esse canalha merece.0 empregado retirou-se, mas o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala imediatamente <strong>de</strong>pois lem<strong>br</strong>ou-se do mau humor, e do g6nio irritdvel do Con<strong>de</strong> daCunha nessa manha" muito suscetivel, e apanhando o requerimento, foiapresentd-lo ao vice-rei, a quem encontrou carrancudo e passeando aceleradopela sala.


-. Por que me incomoda? perguntou o Con<strong>de</strong>, gritando.- Senhor Vice-Rei, 6 a pesar meu: este requerimento que aliasreputo <strong>de</strong>sprezlvel e talvez <strong>de</strong>srespeitoso que pe<strong>de</strong> a revogaqSo. <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<strong>de</strong> V.Exa, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> imediato <strong>de</strong>spacho, e se eu o nSo apresentasse,era o mesmo que se o tivesse por mim prop<strong>rio</strong> in<strong>de</strong>ferido, o que na"o ousofazer. . .0 vice-rei tomou com arrebatamento e leu para si o requerimento;logo <strong>de</strong>pois sentou-se 4 mesa do <strong>de</strong>spach0.e escreveu. "sim: publiquemspeditais, revogando a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> anteontem, e permitindo'o jog0 do entrudoat6 as nove horas da noite nas ruas, at6 4 meia-noite precisa no inte<strong>rio</strong>r dascasas", e assinou.- 0 requerimento na"o 6 <strong>de</strong>sprezlvel: o que nele se pe<strong>de</strong> 15 justodisse o vice-rei, entregando a folha <strong>de</strong> papel ao ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala.Alexandre Cardoso voltou apressado e tSo ativamente dirigiu ostrabalhos que no fim <strong>de</strong> uma hora estavam fixados mais <strong>de</strong> vinte editais autorizandoo jog0 do entrudo.0 Con<strong>de</strong> da Cunha era quase intrathvel em seus dias <strong>de</strong> irascibilida<strong>de</strong>molesta; o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala o sabia por experibncia, e em taiscasos silencioso e obediente, esperava em novo sol reassumir o.po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> suainflulncia, o que sempre conseguia.Tendo dado porkm, <strong>de</strong> mB vonta<strong>de</strong> embora, as provid6ncias <strong>de</strong>terminadaspelo <strong>de</strong>spacho do vice-rei, Alexandre Cardoso tornou a pensaemClblio Gias, e <strong>de</strong> repente <strong>de</strong>satou a rir.Acabava <strong>de</strong> imaginar ou <strong>de</strong> achar o <strong>de</strong>sejado, o afortunads reswsopara a sua negociaqgo com o velho usurB<strong>rio</strong> sem <strong>de</strong>ixar em seu po<strong>de</strong>ros perigosos ~ocme~os.--Contente, feliz, Alexandre Cardoso conversou, provocou todosos empregados da sala ao jogo do entrudo na tar<strong>de</strong> e noite <strong>de</strong>sse dia e acabandoo expediente, <strong>de</strong>u-se pressa em <strong>de</strong>spedi-10s e tamMm em retirar-se,tendo antes e por <strong>de</strong>ver suportado em <strong>de</strong>spedida a terrlvel carranca do Con<strong>de</strong>da Cunha que outra vez Ihe disse:- Fui <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rado por sua causa: na"o o responsabilizo porisso: mas prolbo-lhe que outra vez me fale nesse negociante, que se chamaJerBnimo Ll<strong>rio</strong>.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala aplaudiu-se do motivo da colera dovice-rel.Naquela c6lera fulgiam a estima do Con<strong>de</strong> da Cunha pela pessoa<strong>de</strong> Alexandre Cardoso e o ressentimento do mesmo alto senhor' pela negativa<strong>de</strong> Jerbnimo Ll<strong>rio</strong> na questso do casamento.Para o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala tudo corria bem em relaqZo aovice-rei que era a base do seu po<strong>de</strong>r.


xxxvA tar<strong>de</strong> e noite da terqa-feira! o irltirno dia do entrudo, forarn <strong>de</strong>alegria, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ll<strong>rio</strong>, <strong>de</strong> frenesi, e <strong>de</strong> inocente loucura na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong>Janeiro.0 jogo do entrudo proibido nos seus dois prirneiros dias, e autorizadona tar<strong>de</strong> e noite do terceiro, foi corno o lrnpeto da inunda~a"~ quevence e <strong>de</strong>str6i o dique que se Ihe opunha.0 fervoroso exaltarnento da popula~b na costurnada festa <strong>de</strong>tr6s dias reduzida A rneta<strong>de</strong> do terceiro e ultimo dia, vingou-se da proibi~b,ostentando <strong>de</strong>senfreado furor do entrudo, e gozo paclfico, entusi6stic0, dojogo tantas vezes provocador <strong>de</strong> rixas e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns, e enta"o sornente excitador<strong>de</strong> ruldo festivo e <strong>de</strong> risadas expansivas e arnigas.A indhtria anual e efgrnera dos lirn6es-<strong>de</strong>-cheiro era exclusivarnenteexplorada por senhoras <strong>de</strong> farnllias po<strong>br</strong>es e corno em prova <strong>de</strong> gratida"oao <strong>de</strong>spacho que o vice-rei <strong>de</strong>ra ao requerirnento, <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> rnulheres<strong>de</strong> rnantilha seguidas <strong>de</strong> rnultida"~ <strong>de</strong> arnbos os sexos, ro<strong>de</strong>ararn B tar<strong>de</strong> dater~a-feira o paliicio, dando vivas ao Vice-Rei Con<strong>de</strong> da Cunha que pela prirneiravez os recebia espontfineos.Feito esse passeio <strong>de</strong> ostensivo reconhecirnento, os aclarnadoresdo Con<strong>de</strong> da Cunha espalhararn-se pela cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> em quase todas ascasas, as farnllias, e em todas as ruas paisanos <strong>de</strong> rnistura corn soldados,estudantes, operh<strong>rio</strong>s, rnulheres e meninos, se entrudavam freneticarnente.0 velho Clklio fiias foi talvez o unico habitante da cida<strong>de</strong> quernaldisse 'da contra-or<strong>de</strong>rn do vice-rei, porque rnenos cornodarnente, e sernduvida expondo-se a algurn banho, tinha <strong>de</strong> ir a casa <strong>de</strong> Alexandre Cardoso;rnandou porkrn pedir <strong>de</strong> ernprestirno a ca<strong>de</strong>irinha <strong>de</strong> urn seu cornpadre, ernetendo-se nela, fez-se conduzir, levando as cortinas fechadas, e a carninharadiante urn escravo, que <strong>br</strong>adava aos grupos <strong>de</strong> jogadores <strong>de</strong> entrudo: "6doente que vai para a Santa Casa!" e corn efeito a ca<strong>de</strong>irinha levava a dire-~a"o da Rua da Misericbdia, on<strong>de</strong> rnorava o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala.


A multidgo respeit~u a ca<strong>de</strong>irinha que enfim parou !, porta dacasa <strong>de</strong> Alexandre cardosd.Cl6lio Gias subiu a escada e foi recebido pelo futuro dcio quese achava s6.Sentaram-se os dois em frente um do outro.--- Trazes o dinheiro? perguntou Alexandre Cardoso.- Certamente e tambem a clareza da dlvida antiga.- Bem: eu te garanto ampla e constante prote~b em materia<strong>de</strong> administraqa"~ <strong>de</strong> o<strong>br</strong>as do rei, e <strong>de</strong> fornecimentos que forem necessh<strong>rio</strong>spara as tropas; prescindo da parte que me ofereceste nos lucros e. . .-- Mas eu na"o prescindo: quero-o por dcio, senhor ajudanteoficial-<strong>de</strong>-sala; 6 essa uma honra <strong>de</strong> que faqo questgo.- Socieda<strong>de</strong> sob palavra.- La isso como Ihe parecer.- Sujeito-me, Clelio hias: 6 neg6cio concluldo.- E as trds folhas <strong>de</strong> papel?. . .- Dar-te-ei trezentas.- Bastam-me as tres que .contern a <strong>de</strong>nirncia e os dois of lcios.Alexandre Cardoso resistiu e durante uma hora empregou <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>todos os argumentos e todo o empenho para fazer com que o velho usur6<strong>rio</strong>na"o insistisse nessa condiqgo cruel; este por6m ria-se e dizia:- Cada um sabe as linhas com que se cose.Por fim o ajudantt oficial-<strong>de</strong>-sala sacou do bolso as trds folhas<strong>de</strong> papel exigidas, e atirou-as a Cl6lio hias, dizendo:- Toma-as pois, velho do diabo!Cl6lio hias examinava com o maior cuidado o papel e a letra, elinha por linha, e palavra por palavra os trb escritos, e rindo-se outra vezcom o seu riso repugnante, observou: .- Nb hh que notar. .. s b os mesmos. . .- Ousavas p6-lo em dhvida, malvado usurh<strong>rio</strong>?. . .- Cada um sabe as linhas com que se cose.Alexandre Cardoso em outro qualquer dia houvera castigado ainsoltncia <strong>de</strong> Clblio hias;.nesse, porbm, tanto o aviltava a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>dinheiro, ou nele podia alguma consi<strong>de</strong>ra~b, que em vez <strong>de</strong> repelir o insulto,disse:- Dei-te os pap& que por mim e por ti <strong>de</strong>ves encerrar para sempreno fundo da tua burra <strong>de</strong> ferro: d8-me agora a clareza e os cinco milcruzados.Cl6lio hias <strong>de</strong>sabotoou o jaleco, e logo em seguida um blso <strong>de</strong>couro preso 3 face interna do mesmo jaleco, e fechado com botiies <strong>de</strong> metalna parte supe<strong>rio</strong>r: tirou um pequeno saco, e <strong>de</strong>le a clareza passada e assinada<strong>de</strong>s<strong>de</strong> dois anos por Alexandre Cardoso <strong>de</strong> Meneses, e peCas <strong>de</strong> our0 no


valor <strong>de</strong> cinco mil cruzados.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala recebeu e guardou a clareza e o dinheiro,e Cl6lio hias fechou no bolso <strong>de</strong> couro as trds folhas <strong>de</strong> papel e disse:- Agora sim, esta o negocio concluido.- Retira-te pois, velho maldito: por hoje basta <strong>de</strong> aturar-te.- Mas prepara-te para aturar-me <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanha".- TSo <strong>de</strong>pressa!- Trar-lhe-ei o piano das primeiras operac6es da nossa socieda<strong>de</strong>.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala sorriu-se e Cl6lio Gias tomou o chap6u.e fez sua reverbncia <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida.Alexandre Cardoso acompanhou o velho at6 a porta que trancouso<strong>br</strong>e ele, e dirigiu-se com precipitacgo para o inte<strong>rio</strong>r da casa.Cl6lio fiias acomodou-se na ca<strong>de</strong>irinha, cerrou as cortinas, e-mandando que o levassem <strong>de</strong> volta por outras ruas, incumbiu o escravo quecaminhava na frente <strong>de</strong> anunciar aos jogadores <strong>de</strong> entrudo: "I5 uma senhoraque caiu na rua com um ataque <strong>de</strong> cabe~a!".A ca<strong>de</strong>irinha seguiu pela Rua da Miserichdia, Praqa do Carmo(hoje Praqa <strong>de</strong> D. Pedro Ill, Rua Direita, Rua do Ouvidor, aproveitando-It=quatro vezes o triste andncio da senhora com ataque <strong>de</strong> cabeqa; tomou <strong>de</strong>poispela Rua dos Ourives; mas no ponto em que esta rua corta em lngulosretos a da Ca<strong>de</strong>ia (atualmente da Assemblhia), um grupo numeroso <strong>de</strong> entrudadorescom lim6es-<strong>de</strong>-cheiro, seringas e bal<strong>de</strong>s d'hgua avanqou, galhofando,para a ca<strong>de</strong>irinha.- uma senhora que caiu na rua com ataque <strong>de</strong> cabeqa! <strong>br</strong>adouo escravo.0s <strong>br</strong>incadores hesitavam.- Que graqa! exclamou um homem alto, corpulento, e que pelotrajar indicava ser oficial ou mestre <strong>de</strong> oficio; que graqa este mesmo pregoeiroanunciou, hB duas horas, nesta mesma ca<strong>de</strong>irinha, um doente levadoDara a Santa Casa!. . .- E pulha! pulha! gritavam muitas vozes.-- Vejamos a doente!. . .,Vejamos a senhora!. . .E o homem alto e corpulento, lanqando-se adiante <strong>de</strong> todos,a<strong>br</strong>iu a forqa as cortinas da ca<strong>de</strong>irinha, e arrancou <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e mostrou suspensoem seus <strong>br</strong>aqos <strong>de</strong> ferro o velho ClI5lio hias, cuja voz se per<strong>de</strong>u nomeio das gargalhadas e da algazarra da gente que formava o grupo e da quecorria para aplaudir o caso que tanta alegria excitava.Preso pelas pernas e <strong>br</strong>acos, empurrado para todos os lados, jBtodo molhado dos p6s 5 cabe~a, cego pelos esguichos das seringas, surdopela tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritos, o velho usurg<strong>rio</strong> lutava e se estorcia em vZy- U m banho! um banho! um banho!Um enorme gamelb cheio d'8gua estava perto no meio da rua


para o servico do entrudo: o homem alto e corpulento disputava a vinte outrosa gl<strong>br</strong>ia <strong>de</strong> levar o velho ao banho, e na luta e no esforco rompiam-seos vestidos da vltima que pelo hkrcules que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princlpio o agarrara, foiconduzido e mergulhado no game la"^.Com a forca prodigiosa, suprema, que em <strong>de</strong>sespero ostentam osameacados <strong>de</strong> asfixia por submerszo, Clelio frias p6s a cabeca fora d'6gua e<strong>br</strong>amiu fu<strong>rio</strong>so:- N b me afoguem!- Ninguem o quer afogar; mas aprecie ai o seu banho! respon<strong>de</strong>uo hercules, comprimindo com as mbs o peito do velho que a reagir contraa forca que o esmagava, estorcia-se nas mbs do homem terrlvel, que escorregavampara um e outro lado, e cujos <strong>de</strong>dos no fervor da luta ainda maisIhe <strong>de</strong>spedacavam os vestidos.- Basta! Basta! exclamarem finalmente muitas vozes.- Pois basta, respon<strong>de</strong>u o h<strong>br</strong>cules, e <strong>de</strong>ixando livre das garraso velho, afastou-se e <strong>de</strong>sapareceu no meio da multidb.Clklio hias saiu do gamelzo do banho no meio <strong>de</strong> estrondosas risadas,e sem mais Ihe importar a ca<strong>de</strong>irinha, dirigiu-se col<strong>br</strong>ico e precipitadopara a sua casa que bem perto ficava, pois era, como dissemos, na Rua doParto, e nela entrando, ia mudar <strong>de</strong> roupa, quando viu que o bolso <strong>de</strong> couro<strong>de</strong> seu jaleco estava <strong>de</strong>spedacado, e que havia perdido ou Ihe tinham roubadoos trb documentos.0 velho soltou um rugido, e correu, como estava, para o lugar,on<strong>de</strong> recebera o violento banho; ali chegando exclamou:- Perdi ou roubaram-me pap& preciosos! Eu os quero, eu 0speco! Eu exijo os meus papkis!. . .Algumas pessoas condoeram-se da afliczo do velho, e empenharam-seimproficuamente em <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir os objetos perdidos.Clelio hias, fora <strong>de</strong> si, em frenetic0 ardor, marchou apressadamentepara casa <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, a cuja porta enccntrou-se comum soldado:- 0 senhor ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala? perguhtou o velho usurl<strong>rio</strong>.cavalo?- Procure-o amanha".- Como? N b estl em casa?- A estas horas nunca.-Sou exceqb; para mim ele est6 sempre em casa.- Fa~a pois o senhor um milagre: na"o ouve o galopar <strong>de</strong> umClklio hias aten<strong>de</strong>u ao ouvido, e respon<strong>de</strong>u logo:- OUCO.- E o senhor tenente-coronel, que apressa o seu cavalo.- Aon<strong>de</strong> vai ele?


0 soldado riu-se, e tornou dizendo:- Ele tem tanto aon<strong>de</strong> ir!. . .0 velho usurh<strong>rio</strong> caiu sentado na soleira da porta, so<strong>br</strong>e os joelhos<strong>de</strong>scansou os <strong>br</strong>aqos, so<strong>br</strong>e estes a cabeqa, refletiu por alguns minutos,levantou-se <strong>de</strong> dbito:- Maria <strong>de</strong>. . . 6 a sua arnante; ele <strong>de</strong>ve estar iA. . . disse aoso ldado.E sern esperar pela resposta, caminhou corn acelerados passos.


Em sua afli~Zo pela perda dos importantes documentos Cleliohias contava com o auxiiio energico e com as provid6ncias do ajudanteoficial-<strong>de</strong>-sala, por certo muito interessado em reaver papeis que podiamcompromet6-lo gravemente.Afrontando pois certas convenibncias o velho usurarid foi bater Aporta da casa da bela cortesa", e <strong>de</strong>u o seu nome ao escravo que Iha a<strong>br</strong>iu, <strong>de</strong>clarandoque procurava o senhor Tenente-Coronel Alexandre Cardoso paraneg6cio urgentissirno, e da maior <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za.Dai a <strong>br</strong>eves instantes recebeu or<strong>de</strong>m para subir e esperar na sala;mas pouco esperou; porque Maria apareceu-lhe com todo o esplendor <strong>de</strong> suavoluptuosa formosura, trazendo soltos os longos e anelados cabelos e umsimples vestido <strong>br</strong>anco, apertado ao pescoqo, mas amplo e sem pris<strong>de</strong>s, COmofraca e dnue nuvem a co<strong>br</strong>ir corn urn v6u provocador os encantos <strong>de</strong>uma fada.Cl6lio hias apesar <strong>de</strong> velho estremeceu 5 apariqlo daquele prod@io<strong>de</strong> beleza.A voz <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . . era suave e encantadora, como era belo oseu rosto e se adivinhava admirhvel <strong>de</strong> perfeiqa"~ o seu corpo.Sorrindo-lhe meigaflente, ela disse a Clelio bias:- Alexandre Cardoso esqueceu-se hoje <strong>de</strong> mim; eu porbm nbo esqueqo nunca, e velo sempre pelos seus interesses; chegari daqui a pouco,ou viri amanha" <strong>de</strong>spertar-me para almoqar comigo. . .Clelio frias mostrou-se contrariado, e levantava-se para sair.- Por que se incomoda? perguntou-lhe a cortesl.- Eu precisava falar-lhe jd.- Jh 6 impossivel; se Ihe apraz espero-o aqui, que ele hB <strong>de</strong> virainda esta noite, ou amanha" pela manha", pois nunca me falta; se isso o constrange,incumba-me do seu recado: eu sei dos neg6cios <strong>de</strong> Alexandre. . . faltou-lhehoje, e a mim tambbm, algum dinheiro. . . na'o ignoro o que se pas-


sou entre ele e o senhor ClBlio hias, a quern nb 15 a prirneira vez querecorre. . .0 velho usure<strong>rio</strong> olhou espantado para a encantadora cortesa".- Nb me crb? perguntou eta corn urn daqueles feiticeiros sorrisos,que convenciarn <strong>de</strong> tudo a todos.- N b me atrevo a duvidar, rninha bela senhora. . ., disse ClBliokias:- Entb. . . mas. . . eu pensava que os senhores. . . jh. . . se haviamentendido hoje. . .- Sirn. . . perfeitarnente entendidos. . .- E. . . realizado o neg6cio. . .- Por isso B que se torna indispensevel que fale hoje rnesrno...ja ... ao senhor Alexandre Cardoso.- 0 senhor corneqa a aterrar-me. . . Eu estrerneco Ror Alexandre.. . Que aconteceu, senhor ClBlio,fiias?Maria era urna atriz consurnada: conhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong>.rnuito tempo ovelho usuri4<strong>rio</strong>; mas ignorava cornpletarnente o assunto <strong>de</strong> que ele e AlexandreCardoso se tinharn ocupado naquele dia; adivinhava corno qualquer outroadivinharia que era neg6cio <strong>de</strong> empr6stirno'<strong>de</strong> dinheiro e fingiu ter conhecirnento<strong>de</strong> outras circunstlncias, pois que evi<strong>de</strong>nternente as havia e graves,pronunciando rneias palavras que podiarn significar tudo e nada; finalmente,ar<strong>de</strong>ndo na rnais viva cu<strong>rio</strong>sida<strong>de</strong>, sirnulou-se possulda <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>rnedo, e tr<strong>br</strong>nula e cornovida, tornou entre as suas urna das rnbs <strong>de</strong> ClBliohias, e repetiu a pergunta que fizera:- Que aconteceu? Que aconteceu? Diga-me. . . pois que estA arranjadoo neg6cio. . . Que rnais quer <strong>de</strong> Alexandre ainda hoje?. . .- On<strong>de</strong> posso eu encontrg-lo?. . . perguntou o velho, levantando-seaf lito.- Oh! exclamou Maria; niio me <strong>de</strong>ixara assirn nos torrnentos daddvida mais <strong>de</strong>sesperadora. . . ah! eu adivinhava algurn infortdnio e preveniAlexandre. . .- Corno, senhora?- Opus-me a sernelhante neg6cio.- Sabe entzo. . . tudo?- E por isso que trerno. . .- Pois B precis0 que o senhor tenente-coronel db prontas eirnediatas provid3ncias. . .- Mas o que aconteceu?- Perdi ou roubaram-me os docurnentos! disse o velho corn vozlirgu<strong>br</strong>e.- Oh! e o louco jurou-me que eles nb tinham a importinciaque. . .ClBlio hias teve urn lrnpeto <strong>de</strong> furor:


- Porque eram falsos, eu sei, e Iho disse! 0 senhor AlexandreCardoso pordm esqueceu-se <strong>de</strong> que hd na <strong>de</strong>ndncia dada contra mim umanota <strong>de</strong> sua letra escrita a Idpis, e que os falsificados oflcios do comissd<strong>rio</strong>do Santo Of lcio e do bispo sa"o provas <strong>de</strong> um crime que h b <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a elee a rnirn, que al6m disso fico ainda com o prejulzo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil cruzados! ...- Exatamente como eu dizia, murmurou convulsa a cortesa"; eeu que na"o sei on<strong>de</strong> achar Alexandre!. . . Mas 6 indispenshvel que ele saibada perda dos papbis. . .E ansiosa e quase chorando, chamou e <strong>de</strong>spachou sucessivamentetrds escravos em procura <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, tendo acompanhado oorimeiro at6 i escada como a instrul-lo so<strong>br</strong>e diversas casas a que <strong>de</strong> prefersnciaIhe curnpria ir.- Tamb<strong>br</strong>n eu saio. . . disse o velho, tomando o chap&.- De mod0 nenhum, senhor Clelio fiias: espere aqui Alexandre,e aproveitemos o tempo, estudando a sangue f<strong>rio</strong> o caso, como ele se passou,para com alguma luz imaninarmos, calcularmos as medidas que conv6mtomar.- N5o tenho cabeqa, respon<strong>de</strong>u o velho.- Tenho-a eu e em <strong>br</strong>eve Iho provarei: refira-me sem <strong>de</strong>sprezar omais leve inci<strong>de</strong>nte, a mais insignificante circunstbncia, este <strong>de</strong>sastroso sucesso;faqa por6m <strong>de</strong> conta que ignoro tudo.Cl6lio hias olhou atentamente para Maria.- Ah! exclamou esta, como se Ihe houvesse acudido uma idbia.E levantando-se, chamou uma escrava, e mandou-a procurar AlexandreCardoso em casa que Ihe <strong>de</strong>terminou.Sentando-se <strong>de</strong> novo, disse:- Vamos, senhor Clblio hias.- Quer que comece pela entrevista <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong> manha"? pergun-tou o velho com os olhos fitos em Maria.- N~o;at6 a( sei eu; respon<strong>de</strong>u a fingida moqa; mas. . . suspeitaque algubm pu<strong>de</strong>sse estar ouvindo i s ocultas o que os senhorgs conversararn?- Falamos em voz <strong>de</strong> segredo e corn a porta fechada.- E <strong>de</strong>pois?. . .Clblio hias que <strong>de</strong>mais jd havia dito, contou wii4amente tudoquanto se passara com ele, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que salra <strong>de</strong> casa em ca<strong>de</strong>irinha at6 a suavolta da casa <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, o ataque dirigido contra a ca<strong>de</strong>irinha,a teimosa fdria dos hdrcules que na"o o <strong>de</strong>ixara, sengo no fim do banho, econcluiu, dizendo:- Juro que foi aquele <strong>de</strong>salmado que me roubou os papeis, pensandoque roubava dinheiro.Maria, que ouvira em sildncio, disse-lhe sorrindo:- Perdb! S6 agora reparei que tern os vestidos completamentemolhados.


E mandou vir licores e aguar<strong>de</strong>nte.Enquanto o velho usuri<strong>rio</strong> se banhava interna e externamenteem aguar<strong>de</strong>nte, Maria meditava, <strong>br</strong>incando corn os <strong>de</strong>dos a enrolar e a <strong>de</strong>senralaros an6is <strong>de</strong> seus cabelos soltos.Quando acabou <strong>de</strong> beber e <strong>de</strong> embeber-se em aguar<strong>de</strong>nte, Cl6liohias, sempre agitado, disse:- E o senhor tenente-coronet que nb chega!Maria <strong>de</strong>satou uma risada.0 velho encarou-a, raivoso.- Hi uma hora que representamos uma cena <strong>de</strong> cornbdia, meuvelho: eu nZo sabia nem um ceitil do seu neg6cio corn Alexandre Cardoso.Grotesca estupefaczo <strong>de</strong> Cl6lio hias.- Mas eu prometi provar-lhe que tenho cabeqa.- E os escravos e escravas que salram? perguntou estupidamenteo usuri<strong>rio</strong>.- N b sairam, respon<strong>de</strong>u Maria, rindo-se.- Traiqb! <strong>br</strong>adou o velho.- Em nosso proveito: eu sei e posso dizer-the, on<strong>de</strong> esta"o os documentosque Ihe roubaram.- On<strong>de</strong> estzo?- Sente-se al e responda-me: 6 capaz <strong>de</strong> esperar um dia, urn m&s,um ano pela vinganqa?C16lio hias sentou-se e respon<strong>de</strong>u:- Sou.- E se nzo a esperar, que me importa? Ngo hi nada <strong>de</strong> comumentre nos; 6 porbm <strong>de</strong> seu interesse servir B minha vonta<strong>de</strong> e obe<strong>de</strong>cer-me.0 velho sentia-se cada vez mais espantado.- Senhor Cl6lio hias, os seus <strong>de</strong>z mil cruzados foram-se. . .- NZo ppreciso que mo diga.- 0 <strong>de</strong>salmado que o arrancou da ca<strong>de</strong>irinha, e que o conteveem suas garras at6 o fim do banho era urn soldado que se disfar~ava empaisano. . .- E para qub?. . .- Para roubar-lhe os docurnentos. . .- E que diabo tinha ele corn os documentos? . . .- Desgraqado homem! 0 senhor 60 sabe sengo emprestar dinheirocom usura abusiva e assoladora.- lsso n b vem B questgo.- Mas 6 urn castigo do c6u, que o em<strong>br</strong>uteceu tanto que o senhornem soube ver no homem <strong>de</strong>salmado e fu<strong>rio</strong>so um instrumento do maisinteressado em privh-lo, em <strong>de</strong>spoji-lo daqueles docurnentos. . .0 velho tentou pronunciar urn nome, e gaguejou, e a convulsar


<strong>de</strong> raiva nada disse.- Esses paphis estb em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, ou ele jhos <strong>de</strong>struiu, queimando-0s.Cl6lio hias espumava.- Per<strong>de</strong>u a partida, meu velho; agora por6m continue o jogo, eespere um dia, um mbs ou um ano pela vinganga.0 usurh<strong>rio</strong> acenou com a cabega afirmativamente.- Amanha", dissimulando toda suspeita, vh prevenir a AlexandreCardoso da perda dos documentos, e finja-se temeroso das conseqMnciasposslveis por ele e por si.0 usurh<strong>rio</strong> escutava sem respon<strong>de</strong>r.- Oportunamente insista pelo cumprimento das promessas queIhe foram garantidas: ~ega-lhe administraqzo <strong>de</strong> o<strong>br</strong>as do rei, e fornecimen-tos <strong>de</strong> tropas, e para consquir uma e outros, a<strong>br</strong>a-lhe a bolsa, se B que temalma capaz <strong>de</strong> vingan~a.0 usurh<strong>rio</strong> teimava em niio falar.- A<strong>br</strong>a-lhe a bolsa; mas B forga <strong>de</strong> pacikncia e <strong>de</strong> sacrif lcios consigada ma"o <strong>de</strong>sse homem uma assinatura, uma or<strong>de</strong>m, um escrito que ocomprometa ou que sirva <strong>de</strong> prova <strong>de</strong> sua indignida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> suas prevaricaq6es.0 velho queria falar e hesitava.- E em qualquer caso duvidoso, no ajuste <strong>de</strong> qualquer transa~50venha previamente falar-me, e conte comiqo para a sua vinganqa, se 6 quetern alma capaz <strong>de</strong> vingar-se.Cl6lio Gias pb<strong>de</strong> enfim usar da palavra e perguntou com espanto:- E a senhora quem 6, . . ou o que 6 do senhor AlexandreCardoso?. . .- Fui sua amante, e sou sua inimiga, respon<strong>de</strong>u a cortesa".


A mesma hora em que o velho usurs<strong>rio</strong> sala da casa <strong>de</strong> Maria,Marcos Fulgencio <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longo pa<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong>vorado por ar<strong>de</strong>nte fe<strong>br</strong>e etormentoso <strong>de</strong>ll<strong>rio</strong>, adormeceu enfim no leito da carida<strong>de</strong> aue Ihe <strong>de</strong>ra aSanta Casa <strong>de</strong> Misericbdia.Fernanda, aue nern um s6 instante se afastara <strong>de</strong> seu marido, eaue <strong>de</strong>pois do fatal incendio nb se alimentara, nem dormira, preocupadacorn o perigo que corria a vida do seu Marcos, respirolr esperancosa ao ve-losossegadarnente adorrnecido, e enxuaando as ldgrirnas, charnou o enferrneiroe pediu-lhe que examinasse o doente.0 enfermeiro, feito o exame pedido, sorriu-se e disse a Fernanda:- Boa mulher, a fe<strong>br</strong>e ce<strong>de</strong>u; agora sirn, creio que o hornern sesalvard; 6 tempo <strong>de</strong> tratar <strong>de</strong> si: vd comer alguma coisa, e dorrnir sem receio.- O<strong>br</strong>iqada, respon<strong>de</strong>u Fernanda; eu voltarei ao romper do dia:se ele acordar e ~rocurar-me, diga-lhe que, vendo-o sosseaado, corri a cuidartamb6m <strong>de</strong> Emiliana. . . Emiliana 6 nossa filha, meu bom senhor.E, atando um lenco B cabe~a, Fernanda saiu apressadamente.A no<strong>br</strong>e esposa do carpinteiro tinha recebido na manha" <strong>de</strong>ssedia urn recado que a enchera <strong>de</strong> tristes receios pela sorte <strong>de</strong> Emiliana; masem vez <strong>de</strong> ir procurd-la na casa da velha comadre, corn quem a <strong>de</strong>ixara, foibater B Dorta <strong>de</strong> uma pequena casa t6rrea do Beco (hoje Rua) do Cotovelo.Uma mulher velha fez entrar Fernanda.- Como vai o homem?- Melhor, rninha tia; e Emiliana?- Levou a chorar todo o dia e toda a noite; mas bendito sejaDeus, pegou no sono ainda agorinha.- Por aue nZo foi ela ver o pai?- Trds e mais vezes, coitadinha, correu at6 B porta; mas voltavasempre gritando: "na"o! nb! jamais, nunca! ".- Minha tia, disse-lhe o estado em que se achava iviarcos?


- Eu nb, e pel0 contrl<strong>rio</strong> fui sempre assequrando que ele passava cada vez melhor; Deus me perdoe estas rnentiras.- Enta"o por que tanto chora Erniliana?- Eu sei Id! Perguntei e ralhei, e ela nada quis dizer-me.Fernanda trernia.- A que horas chegou Erniliana?- Acordou-me, batendo B porta pouco antes <strong>de</strong> romper o dia eveio s6, a po<strong>br</strong>ezinha, por essas ruas.- On<strong>de</strong> estd ela?- No s6ta"o.- Minha tia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ontem i noite que niio corno, nern durrno;acor<strong>de</strong> a negra, e rnan<strong>de</strong> preparar-me alguma coisa para cear, enquanto vouver Erniliana.- Ah, menina! por que n b disseste logo?Fernanda niio tinha forne, mas queria subir s6 ao s6tg0, po<strong>br</strong>es6tb que constava <strong>de</strong> uma irnica sala, baixa, e <strong>de</strong> telha-va".Erniliana estava estendida em um antigo catre, e dorrnia sono Bsvezes agitado por contra~bes nervosas; <strong>de</strong>fronte do catre estava acesa urnacan<strong>de</strong>ia so<strong>br</strong>e uma caixa <strong>de</strong> pau.Fernanda sentou-se aos DBs <strong>de</strong> sua filha e contemplou-a com enternecirnentoe dor ao notar-lhe os olhos inflarnados, os cabelos em <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, orosto contraldo, e os <strong>br</strong>acos corn rnanchas <strong>de</strong> contusbes.De sirbito Erniliana esten<strong>de</strong>u os <strong>br</strong>acos, pareceu querer corn asmks tr6rnulas repelir algu6m, e assorn<strong>br</strong>ada sentou-se no catre; vendo por6ma mge, tornou a <strong>de</strong>itar-se, <strong>de</strong>satando a chorar.Fernanda sufocou um gemido <strong>de</strong> angirstia; <strong>de</strong>ixou que a filhachorasse livremente por algum tempo e <strong>de</strong>~ois disse-lhe corn voz grave.- Fugiste da casa, on<strong>de</strong> te <strong>de</strong>ixei; vieste s6 e a horas rnortas danoite acolher-te a esta; nb correste, para rneu lado junto ao leito <strong>de</strong> teu paiquase rnoribundo; tens vinte anos, e recebeste educa$o <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s; uma <strong>de</strong>duas: ou explicards o teu procedimento, ou 6s uma filha maldita.E elevando a voz, acrescentou:- Basta <strong>de</strong> Ilgrimas!. . .Erniliana <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> chorar; mas B luz da can<strong>de</strong>ia o seu rosto semostrava <strong>de</strong> fog0 e carrnim.- Fala!A jovem saltou fora do catre, caiu <strong>de</strong> ioelhos, e corn a cabeca in-clinada para o chiio, balbuciou tremendo.- Juro por Deus Nosso Senhor. .. nbtive culpa. ..Fernanda torceu as mzos com <strong>de</strong>sespero; levantou-se, e em pBdiante da filha ajoelhada, disse corn voz repassada <strong>de</strong> c6lera ou <strong>de</strong> dor:- Miserlvel!. . <strong>de</strong>sonraste-nos?


Emiliana ergueu a cabeqa e ao mesmo tempo ressentida e confusa,orgulhosa e envergonhada, respon<strong>de</strong>u sem solupr, mas caindo-lhe embagas as lagrimas:- Levaram-me io casa da traiqzo e al me abandonaram!. . .Ao andncio do <strong>de</strong>smaio e do perigo <strong>de</strong> meu pai, minha mZe esqueceua filha aue ficava s6, pelo marido que longe era levado, e nem reparou.queme <strong>de</strong>ixava sern sentidos.. . na"o me queixo disso. . . o abandon0 emque me achei foi exisido por outro <strong>de</strong>ver. . .E elevando tamb<strong>br</strong>n a voz, por sua vez:- Mas porque agora me con<strong>de</strong>nam?Fernanda a<strong>br</strong>iu o coraggo ios queixas e increpaq6es que fazia afilha; ainda por6m em tom severo, perguntou:- E <strong>de</strong>pois?. . .Emiliana respon<strong>de</strong>u, falando com os <strong>de</strong>ntes cerrados:- Abandonaram-me inanimada nas aarras da traicgo e tornei amim nos <strong>br</strong>a~os do crime, e no abismo da vergonha!- Desgraqada!. . .- De quem 6 a culpa?. . . perguntou <strong>de</strong>sesperada a infeliz moca.Fernanda esten<strong>de</strong>u o <strong>br</strong>aqo so<strong>br</strong>e a cabeqa <strong>de</strong> Emiliana, e com ama"o abenqoou a filha.- Debal<strong>de</strong> gritei. . . abafaram-me os gritos, cerrando-me comforqa a boca; fui maltratada, e esmaqada em luta <strong>de</strong>sproporcional. . . e outravez <strong>de</strong>smaiando, nem sei aue fizeram da filha abandonada!. . . Quando reco<strong>br</strong>eios sentidos, achei-me s6, levantei-me, e a<strong>br</strong>i a ianela, saltei por eia, e vimbater io porta da casa <strong>de</strong> minha tia. .... E ainda mais orofundarnente ressentida, perguntou lugu<strong>br</strong>emente:a! +Quem tem a culpa <strong>de</strong> minha <strong>de</strong>sonra?- Tu 6s oura diante <strong>de</strong> Deus, minha filha; e, al6m <strong>de</strong> pura, 6s' .,martir!L - E o mundo?. .. E eu agora no mundo?. . .Fernanda nZo sabendo que dizer, perguntou:Conheceste o infame?. ..- Des<strong>de</strong> muitos dias eu tinha reclamado a vigilhcia e a proteqao<strong>de</strong> meus pais contra ele. ..Alexandre Cardoso!!! exclamou Fernanda.- Eu tinha dito a meus pais que a velha perversa estava vendidaa esse homem!- Emiliana!. ..A po<strong>br</strong>e moca em angirstias <strong>de</strong>spedaqava o coraCZo materno:- Eu disse tudo. . . Avisei <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>! Debal<strong>de</strong>, porque meuspais me entregaram sem <strong>de</strong>fesa, me abandonaram fraca e <strong>de</strong>smaiada B trai~ioe ao crime!


Fernanda caiu <strong>de</strong> joelhos em face da sua filha ajoelhada, e dissechorando:- PerdZo, Emiliana!. . .MZe e filha a<strong>br</strong>a~aram-se, misturando as legrimas.A velha tia, falando da escada, anunciou que a ceia estava A mesa.Fernanda e Emiliana levantaram-se.- Vamos cear, disse a mZe.- NZo posso. . .- precis0 po<strong>de</strong>r fazb-lo: tua <strong>de</strong>sgraea <strong>de</strong>ve ser um segredo paratodos, e principalmente para teu pai; ao algoz aproveita o silbncio; a velhaperversa terh medo do conhecimento do crime, pois que o senhor vice-reimandou garantir-nos a sua prote~b, e reconstruir a sua custa a nossa casaincendiada; eu sou mk e tu foste a vftima: ningukm falarh: 6 necesse<strong>rio</strong> escon<strong>de</strong>rao mundo, a todos, a tua, a nossa vergonha. Vamos cear.- Vamos, murmurou Emiliana.E fez um movimento rhpido para caminhar adiante.Fernanda segurou-a pelo vestido.- Emiliana! disse-lhe; minha po<strong>br</strong>e filha, tu levas no cora~ao oamargor que hi <strong>de</strong> durar muito, e um ressentimento, que me confrange eque me mata!. . .- 0 que, minha miie?. . .- Meu marido, teu pai, estava em perigo <strong>de</strong> morte. . .Emiliana hesitou. . .- Oh, minha filha! Perdoa pelo amor <strong>de</strong> Deus o abandon0 emque tua m5e te <strong>de</strong>ixou!Emiliana lan~ou-se chorando nos <strong>br</strong>a~os <strong>de</strong> Fernanda.


0 velho usura<strong>rio</strong> niio se recolheu a sua casa, quando saiu da <strong>de</strong>Maria. A cortesa" na"o Ihe merecia confianca e em todo caso convinha-lhefalar a Alexandre Cardoso; a boa aguar<strong>de</strong>nte com que se banhara interna eexternamente Ihe <strong>de</strong>ra calor e Ihe aumentara a forca; disp6s-se pois a per<strong>de</strong>ro resto da noite e foi esperar o ajudante oficial<strong>de</strong>-sala a porta <strong>de</strong> sua casa naRua da Miseric6rdia, e achando a porta fechada, sentou-se na soleira.Dentro em pouco a ida<strong>de</strong>, a fadiga e o isolamento pu<strong>de</strong>ram maisdo que o cuidado dos papdis perdidos, e Cldlio hias insensivelmente foi-se<strong>de</strong>itando na soleira e tendo os p6s firmados em um dos portais, as pernas encolhidas,e um <strong>br</strong>a~o a servir-lhe <strong>de</strong> travesseiro, adormeceu.A cida<strong>de</strong> ja dormia tambem, e nZo houve quem, passando, perturbasseo sono do velho usura<strong>rio</strong>, que alias podia nZo' ser percebido, poisque entb as ruas ainda n50 tinham iampiBes <strong>de</strong> iluminacZo.0s sinos j6 haviam anunciado duas horas da madrugada, e em<strong>br</strong>eve marcariam trbs, auando Alexandre Cardoso seguido <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>nan-Ca aproximou-se trazendo o seu cavalo a meio galope e somente por ser muitoa<strong>de</strong>strado cavaleiro .<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> medir a terra, pois o soberbo animal emque vinha montado <strong>de</strong>u violento e inesperado salto, assustando-se com aroncaria e o vulto <strong>de</strong> Cl6lio hias.Alexandre Cardoso, firme na sela, esporeou, dominou o cavalo,o<strong>br</strong>igou-o a reconhecer o objeto que o assustara, e <strong>de</strong>pois gritou A or<strong>de</strong>nanca:- Desperta esse mendigo e leva-o B ca<strong>de</strong>ia.0 velho ja tinha <strong>de</strong>spertado, e reconhecendo aquela voz, sentouse,gemendo, e disse:- Sou eu, senhor Tenente-Coronel!. . .- Clelio kias!. . . exclamou Alexandre Cardoso.E, apeando-se, atirou com as re<strong>de</strong>as a or<strong>de</strong>nanca, dizendo:- Vai recolher os animais.- E bateu a porta, enquanto o velho, agarrando-se a um dos um-


ais e soltando gemidos, levantou-se a custo.- Que fazias aqui? perguntou Alexandre Cardoso.- Esperava-o.- Por qub? Para qub?. . .0 velho repetiu a historia da perda ou do roubo dos pap6is eAlexandre Cardoso na"o o <strong>de</strong>ixou acabar, entrando em explosBes <strong>de</strong> furor, einjuriando Cldlio hias.- Sinto-me muito doente, disse este; jB nem posso apreciar a naturezae as feiq6es da sua c6lera; roubaram-me pap& que po<strong>de</strong>m lem<strong>br</strong>aridkias e meios capazes <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r-me; mas o homem, a quem esses papiismais interessam, e cuja posse mais convinha 6 o senhor Tenente-Coronel.- Que preten<strong>de</strong>s sianificar, <strong>br</strong>uto?. . .- Que a honra exige e manda que o senhor Ajudante Oficial-<strong>de</strong>-Sala <strong>de</strong>scu<strong>br</strong>a on<strong>de</strong> esta"o aqueles documentos e mos restitua.0 velho caiu outra vez sentado, <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>ndo pungente gemido.Alexandre Cardoso pareceu compa<strong>de</strong>cer-se <strong>de</strong>le.- Tens razk, meu velho; empregarei toda a minha ativida<strong>de</strong> emreaver os documentos, cuja perda ou roubo po<strong>de</strong> ser ainda mais fatal a mimdo que a ti. Se pu<strong>de</strong>rmos colhb-los, sera"o teus, voltara"~ ao teu po<strong>de</strong>r, juro-opela minha honra; se tanto na"o conseguirmos, nem por isso respeitarei menosas condi~6es do nosso contrato verbal.Cl6lio irias quis levantar-se e na"o pb<strong>de</strong>.Alexandre Cardoso <strong>de</strong>u-lhe as mgos e o pbs em pd.- Tu sofres. . . vem; eu te recebo e te tratarei em minha casa.0 velho arredou-se dois passos com tanta viveza, e respon<strong>de</strong>ucom tal acento <strong>de</strong> voz: - Oh! nb! - que Alexandre Cardoso sentiu a espon-tdnea rnanifestaqa"~ da mais inju<strong>rio</strong>sa <strong>de</strong>sconfianqa e, ressentido, lan~o urninsulto ao usurh<strong>rio</strong> e entrou batendo e fechando a Dorta.Cldlio hias apoiando-se a pare<strong>de</strong> quis andar; faitaram-lhe por6mas forqas e caiu.Sairam enta"o da som<strong>br</strong>a dois vultos, duas mulheres, uma <strong>de</strong>mantilha e outra sem mantilha; ambas se curvaram e ergueram em seus <strong>br</strong>a-~os o velho doente:- Senhor Cl6lio hias, nos o levaremos sua casa, disse a mulherque na"o trazia mantilha.Eram Fernanda e Emiliana que se dirigiam B Santa Casa da Misericordia,e que, por acaso, tinham ouvido a conversaqb ou o diilogo <strong>de</strong>Cldlio kias e Alexandre Cardoso.A m b dissera a filha:- Socorramos o velho kias: Deus tomari em conta e a favor <strong>de</strong>teu pai o bem que Ihe fizermos.


A filha respon<strong>de</strong>ra com voz tremula:- Socorramo-lo; ele B meu irmb.A fraternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que Emiliana se lem<strong>br</strong>ara, na'o era a do Evangelho:era a <strong>de</strong> duas vitirnas <strong>de</strong> um s6 e do mesmo algoz. Na'o ficava longe acasa <strong>de</strong> Cl6lio has; este porBm se achava ta'o tornado <strong>de</strong> dores, que as duassenhoras quase <strong>de</strong>sanimaram em meio da empresa caridosa, tendo <strong>de</strong> carregB-loem seus <strong>br</strong>a~os.Arquejando <strong>de</strong> fadiga chegaram finalmente, e aberta a porta dacasa por um escravo ta'o velho como seu senhor, e o ljnico e a ljnica pessoaque cam ele habitava, <strong>de</strong>positararn na mais po<strong>br</strong>e cama o rico usur8<strong>rio</strong>. queardia j6 em fe<strong>br</strong>e, e soltava profundos gemidos.0 escravo foi chamar um licenciado que morava na mesma Ruado Parto e que, acudindo diligente, examinou ClBlio hias e <strong>de</strong>clarou-o emperigo <strong>de</strong> vida'e precisando dos mais asslduos cuidados.0 velho tinha reconhecido Fernanda e Ihe beijara as ma'os.Fernanda chamou <strong>de</strong> parte a filha e disse-lhe:- Emiliana, este hornem emprestou dinheiro a teu pai, quandoconstrulmos a casinha que ontem se incendio~, e, usurB<strong>rio</strong> cruel para todos,lem<strong>br</strong>ou-se que um dia Marcos o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ra contra um <strong>de</strong>vedor que <strong>de</strong>satinadopor bBrbara penhora, o atacara na rua; e na'o quis receber juros da quantiaque Ihe <strong>de</strong>vlamos e Ihe pagarnos.- Eu sabia tudo isso, minha m5e.- 0 velho hias estB is portas da morte e na"o tem quem o trate:eu na"o posso, e tu po<strong>de</strong>s faze-lo. Teu pai aprovarB o nosso procedimento.No correr do dia achards uma hora menos atarefada para ir ver teu pai. Ficavelando por este homem sem amigos e sem parentes: B uma o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> miseric<strong>br</strong>dia,minha filha; e eu voltarei aqui muitas vezes.Fernanda afastou-se, e Emiliana murmurou lugu<strong>br</strong>emente:- JB na"o corro perigo.E ainda teve duas grossas lagrimas para acompanhamento daironia terrivel com que se ferira.


Alexandre Cardoso nb pensou nas providdncias que sem dOvidatomaria para <strong>de</strong>sco<strong>br</strong>ir os documentos perdidos ou roubados, se ele os na"otivesse queirnado antes <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa naquela para ele proplcia noite.0 ajudante oficial<strong>de</strong>-sala do vice-rei preparara habilmente acomkdia <strong>de</strong> que fora vitima Clklio hias: o hercules que agarrara o velho eque s6 o largara no fim do banho era soldado do seu regimento e da sua confian~a,a quem vestira B paisana, a quem no inte<strong>rio</strong>r da casa correra a instruirso<strong>br</strong>e o bolso forrado <strong>de</strong> couro, on<strong>de</strong> estavam os papbis, e que os roubara naluta violenta do banho.Alexandre Cardoso perpetrava pois um crime vergonhoso, omais infame dos crimes pela mk do soldado. seu instrumento obediente ecego; mas sof ismava com a pr6pria conscigncia, preten<strong>de</strong>ndo que apenas arrancaraa um usurd<strong>rio</strong> os meios <strong>de</strong> o dominar como senhor, e que cumpririaplenamente seus <strong>de</strong>veres contraldos verbalmente, satisfazendo as-condi~iies<strong>de</strong> uma negocia~a"~ que alids era tambbm um crime.A corru@o tem <strong>de</strong>graus fdceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer, '<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>sce oprimeiro, e Alexandre jB havia <strong>de</strong>scido tantos que no fundo do abismo nbtinha mais luz <strong>de</strong> simples dignida<strong>de</strong>, e se perdia nas trevas, e se chafurdavano lodo das a~ijes mais torpes.Esquecera facilmente Clelio hias; voltara contente das horas quepassara, jogando, e <strong>de</strong> volta a casa saboreava ainda a sua primeira vit6ria.so<strong>br</strong>eo famoso jogador que nessa noite per<strong>de</strong>ra avultada soma, e nem sequerlem<strong>br</strong>ava, que Ange~o, <strong>de</strong>pois do que Ihe acontecera, fazendo a banca nacasa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . ., bem podia por sagacida<strong>de</strong> e para <strong>de</strong>sfazer suspeitas, per<strong>de</strong>rao jog0 em uma noite para mais seguro ganhar seguidamente em <strong>de</strong>z.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala do vice-rei dormiria pois muito tranqiiilamenteo resto da noite, se a imagem <strong>de</strong> Inb e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vjngar-se <strong>de</strong>Jer6nimo Ll<strong>rio</strong>, que Iha negara em casamento, nb viessem freqGentementeenegrecer-lhe o cora~iSo e inflamar o seu apaixonado sentimento que ele


chamava arnor, e a sua c6lera abafada.Alexandre Cardoso resolvers <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que soubera da recusa feitaao vice-rei, vingar-se <strong>de</strong> JerBnimo Li<strong>rio</strong>, sacrificando Inks aos seus instintosmalvados: ele, um no<strong>br</strong>e, oficial <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> aspiraqBes no ex<strong>br</strong>cito, <strong>de</strong>sempenhandoalto cargo na administra~Zo, fora pelo negociante, plebeu obscuro esem nome <strong>de</strong> familia, julgado indigno <strong>de</strong> ser esposo <strong>de</strong> Inbs; era pois indispensave1B satisfa~iTo do seu orgulho e a sua paixb manchar. a pureza daquelamimosa flor da solidZo; animava-o ainda mais a isso o revsentimento profundodo Con<strong>de</strong> da Cunha contra o velho negociante; mas um pouco suspeitosoe apreensivo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a noite <strong>de</strong> domingo, nb canfiou suas intenc6es eseus projetos a nenhum dos amigos e s6 consigo planejaya a o<strong>br</strong>a do crime.Per<strong>de</strong>ra a esperanca <strong>de</strong> seduzir a bela menina; porque empregaraem vgo todos os meios para aproximar-se <strong>de</strong>la e f&r-lhe; escrever-lhe eraloucura, porque In& nZo sabia ler; mandar-lhe reciglos, flores, e <strong>de</strong>claracZo<strong>de</strong> amor, tambkm tentara <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>, recorrendo a esc;ravos <strong>de</strong> JerBnimo, queconhecendo bastante a severida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu senhor nb ousavam expor-se aocometimento <strong>de</strong> atos que seriam terrivelmente punid~i.As velhas po<strong>br</strong>es que envolvidas em mantilhas esmolavam pelascasas eram naquele tempo as useiras do of icio <strong>de</strong> confi<strong>de</strong>ntes e recadistas <strong>de</strong>amor: <strong>de</strong>las nb se esquecera Alexandre Cardoso; se alguma porem conseguiufalar ao ouvido <strong>de</strong> Inbs, nenhuma Ihe merecera aten~b.Contra a f ilha do negociante rico e venerado, do homem austeroe forte que nem ao vice-rei se do<strong>br</strong>ara, o plano <strong>de</strong> ataque e <strong>de</strong> conquista violentaprecisava ser fria e cautelosamente combinado, e disso o orgulhoso eaudaz ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala se ocupava.0s dias foram passando: o jogo nZo sorria mais a Alexandre Cardoso,que em <strong>br</strong>eve se achou sem dinheiro e privado dos recursos com queent5o mais contava; porque <strong>de</strong> um lado o vice-rei negava-se a nomear comandantespara o ljltimo dos novos terqos, e do outro, Clklio has, o seu contratad0s6ci0, <strong>de</strong> quem muito esperava, batia as portas da morte, atacado <strong>de</strong>uma fe<strong>br</strong>e maligna.Entretanto, o Con<strong>de</strong> da Cunha continuava a tratar com a maiorbenignida<strong>de</strong> o sew ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, e apenas o incomodava, exigindonoticias da filha do carpinteiro, e a <strong>de</strong>scoberra do c~jmplice ou sedutor <strong>de</strong>ssamoca.Alexandre Cardoso sofria. . .


Quatro ou cinco dias <strong>de</strong>pois do carnaval, o Con<strong>de</strong> da Cunha,tendo recebido e lido o rniste<strong>rio</strong>so e anbnirno relat6<strong>rio</strong> da sernana, passoualgurnas horas em fe<strong>br</strong>il irritaqzo, fazendo gerner as salas do palhcio sob seuspassos pesados e acelerados.0s servos, as or<strong>de</strong>nanqas, os pr6p<strong>rio</strong>s ernpregados que trabalhavarnna Secretaria, trerniarn.- A ternpesta<strong>de</strong> ronca; so<strong>br</strong>e quern caird o raio? dizia urn.- 0 Sr. Vice-Rei em idas e voltas, tern passeado hoje duas 16-guas, observava outro.- E a rnedida <strong>de</strong> sua c6lera, acrescentava urn terceiro.Mas a ternpesta<strong>de</strong> serenava sern que caisse raio so<strong>br</strong>e algu6rn.0 vice-rei <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> passear; a tar<strong>de</strong> correu tranqiiila, e ao anoitecer,Gerrniano foi charnado ao gabinete do Con<strong>de</strong> da Cunha.0s dois se achararn a s6s.- Escuta, disse o vice-rei.E tomando a carta ou relato<strong>rio</strong> que recebera das rnzos do pr6-p<strong>rio</strong> Gemiano, leu-lhe urna pdgina, que continha a hist6ria <strong>de</strong> quanto se.passaraentre Alexandre Cardoso e Cl6lio hias, e do rnodo por que a este haviarnsido roubados os tr&s documentos falsos.Acabando <strong>de</strong> ler, o Con<strong>de</strong> da Cunha tornou, dizendo:- Quero saber se isso 6 verda<strong>de</strong> e precis0 sirnular ignordncia <strong>de</strong>stesfatos, 6 indispensdvel interrogar o velho Cl6lio hias; eu me atraiqoaria, seo fosse procurar, e s6 tenho confianqa em ti; mas tu 6s mudo, e Cl6lio hiasest6 a rnorrer: que fards?. . .Gerrniano ficou irn6vel e refletindo; no firn <strong>de</strong> alguns rninutossorriu-se: tinha resolvido o problerna.0 rnudo dividiu urna folha <strong>de</strong> papel em oito peda~os, correucorn o <strong>de</strong>do duas linhas do relat6<strong>rio</strong> e corn o rnesrno <strong>de</strong>do fingiu escrever noprirneiro dos oito pedaqos <strong>de</strong> papel, e assirn foi igualrnente trazendo corn ossutros.


0 vice-rei compreen<strong>de</strong>u Germiano, tanto mais facilmente, quetinha tido a mesma id6ia.- Entendo: copiarei a <strong>de</strong>nlincia que me db, fazendo perguntas,cada urna das quais escreverei em papel separado.0 mudo fez sinal afirmativo.0 vice-rei escreveu muitas perguntas, e cada urna em um oitavo<strong>de</strong> papel.Germiano quando viu terminado este trabalho, e que o vice-reiIhe entregava os papGis, apontou com o <strong>de</strong>do indicador para este, <strong>de</strong>pois parasi, e <strong>de</strong>pois para a rua, na direqb da casa do velho ClBlio fiias.0 Con<strong>de</strong> da Cunha escreveu em urna folha <strong>de</strong> papel, que Germianoia por or<strong>de</strong>m do vice-rei, interrogar daquele mod0 a Cl6lio fiias, comoo inteligente mudo acabava <strong>de</strong> indicar-lhe, e ajuntou a isso garantia <strong>de</strong>perdzo ao velho usurh<strong>rio</strong>, urna vez que ele n b procurasse ocultar a verda<strong>de</strong>,e impondo-lhe, enfim, or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> absoluto segredo.Acabando <strong>de</strong> assinar o que escrevera, o vice-rei leu tudo a Germiano,e perguntou-lhe:- Queres mais alguma coisa?0 mudo fez sinal que nZo.- Sabes on<strong>de</strong> mora ClBlio fiias?0 mudo sorriu-se.-. At6 amanha" A noite. dar-me-& conta <strong>de</strong>sta comissZo.Germiano curvou-se.respeitosamente e retirou-se, levando todosos pap6is escondidos no peito, por baixo da farda.Passadas duas horas, bateram a porta do gabinete do vice-rei.. - Quem B? Perguntou este.Nenhuma voz respon<strong>de</strong>u; mas os <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> alguBm arranhavam aporta.- Germiano, disse o Con<strong>de</strong> da Cunha.E foi a<strong>br</strong>ir a porta.0 mudo fez sua vdnia ao vice-rei, entregou-lhe os papeis que Ihetinham sido confiados e ficou imbvel.0 Con<strong>de</strong> da Cunha examinou os pap& e no fim da maior partedas perguntas, encontrou, feita a IApis, urna cruz, em duas um risco passadoso<strong>br</strong>e a pergunta, em urna absoluta falta <strong>de</strong> sinal.- Que quer dizer a cruz?0 mudo fez corn a cabeqa movimento afirmativo.- Portanto, a estas perguntas, Clelio Gias respon<strong>de</strong>u que eraverda<strong>de</strong>?0 mudo repetiu com a cabe~a o movimento afirmativo.- E o risco passado so<strong>br</strong>e as palavras <strong>de</strong>stas duas perguntas?0 mudo moveu a cabew em sinal negativo.


- Quer dizer que nb; muito bem; mas esta pergunta, que nbtraz sinal <strong>de</strong> resposta?. ..0 mudo moveu ambos os <strong>br</strong>aqos em abandono, e tendo as mbsabertas, levou-as um pouco para trds.- Nb entendo, disse o vice-rei.0 mudo fechou os olhos e com as mZos tapou os ouvidos.- Queres dizer que o homem nb viu, nem ouviu, e respon<strong>de</strong>uque na"o sabe?Germiano sorriu-se, indicando sim.0 Con<strong>de</strong> da Cunha bateu com a mZo no om<strong>br</strong>o do mudo edisse-lhe:- Aqui, como em toda parte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que.te conheqo, b fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>inteligente que Deus conce<strong>de</strong>u para o meu servi~o e <strong>de</strong>fesa. Vai dormir,meu velho amigo!Duas grossas ldgrimas correram pelas faces rugosas <strong>de</strong> Germbno,que beijou a mb do Con<strong>de</strong> da Cunha e foi dormir, como ele Ihe or<strong>de</strong>nara.Germiano, orgulhoso e ufano, lem<strong>br</strong>ou-se acordado e em sonhosdormindo, o tltulo <strong>de</strong> meu velho amigo, que Ihe dispensara o alto senhorCon<strong>de</strong> da Cunha, Vice-Rei do Brasil.


Emiliana estava cumprindo zelosamente o seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>e, primeiro prbmio <strong>de</strong> Deus, os cuidados incessantes que exigia o velho usura<strong>rio</strong>a faziam esquecer por vezes o seu inforthnio.Marcos Fulgbncio, que ia sempre melhor, nZo s6 aprovara a no<strong>br</strong>etarefa incumbida por Fernanda a sua filha, como or<strong>de</strong>nara que esta n3o<strong>de</strong>samparasse um s6 instante a Clklio fiias, e apenas, cauteloso e pru<strong>de</strong>nte,quisera que a velha tia <strong>de</strong> sua mulher fosse acompanhar Emiliana, que n3o<strong>de</strong>via ficar s6 em uma casa estranha.Cl6lio fiias se achava no estado mais perigoso: o <strong>de</strong>scuido cornaue se <strong>de</strong>ixara molhado at6 secarem-lhe as roupas no corpo, o sono dormidoao relento, a excita@o nervosa e o <strong>de</strong>sespero que Ihe tinham causado asviol6ncias sofridas no entrudo e o roubo dos seus paphis, prepararam-lhe molhstiagravlssima.0 facultativo chamado era pritico, hibil, e <strong>de</strong>senvolvia cornenergia todos os recursos que os seus conhecimentos m6dicos e o livro magistralda experiencia <strong>de</strong> longos anos <strong>de</strong> cllnica punham B sua disposi~b;mas <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> lutava corn a morte, que parecia ter marcado a sua vltima.Clelio fiias, ar<strong>de</strong>nda em fe<strong>br</strong>e e caldo em sono comatoso, pas-Sara quarenta e oito horas neae estado, que indicava pr6xima agonia; mas, Bluz do terceiro sol, a fe<strong>br</strong>e diminuiu, o sono horrlvel cessou, e dores atrozeso atormentaram; o facultativo concebeu algumas esperanCas <strong>de</strong> salvar odoente e continuou a luta corn a morte.Gemendo pelas/dores que sofria, a<strong>br</strong>asando-se na fe<strong>br</strong>e que seabatia sem cessar qk todo, durante <strong>br</strong>eves horas, para agravar-se logo <strong>de</strong>pois,banhando-se em riscoso suor, agitando-se no leito, e algumas vezes cldrando,Clklio hitts tinha sempre ao p6 <strong>de</strong> si Emiliana, que, paciente, <strong>de</strong>licada,compassiva, animadora, velava noite e dia cuidando <strong>de</strong>le como a filha maisextreposa.Muitos improvisados amigos ao saberem que o vdho usurg<strong>rio</strong> es-


capara ao sono precursor da morte e voltara B consci6ncia da vida e da suasituaq!o, correram a oferecer-se para trat8-lo; este, porkm, apontava paraEmiliana e dizia com voz tr&nula:- Basta ela.Uma vez, tendo respondido do mesmo modo a um novo oferecimento,Clklio fiias chamou Emiliana, e tomando-lhe uma das mgos, beijou-acorn enternecimento.0 facultativo proibiu ao doente receber visitas e fez parar assima procisszo dos fingidos amigos do usurh<strong>rio</strong>, que somente estabeleceu umaexce~zo da regra para o seu vizinho compadre, aquele que Ihe emprestara aca<strong>de</strong>irinha.Emiliana era quem recebia e <strong>de</strong>spedia as visitas na po<strong>br</strong>e sala <strong>de</strong>jantar do rico usur8ri0, cujo leito passara <strong>de</strong> um quartinho escuro e dmidopara a sala principal, que Ihe servia <strong>de</strong> escrit6<strong>rio</strong>.Uma noite, pouco <strong>de</strong>pois do toque <strong>de</strong> Ave-Maria, uma senhoratrazendo mantilha apresentou-se na casa <strong>de</strong> ClBlio hias e foi levada para asala <strong>de</strong> jantar.Emiliana recebeu-a e a fez sentar.- Venho visitar o Sr. ClBlio hias, disse a mulher <strong>de</strong> mantilha.- Eu darei parte da visita da senhora, e peCo o favor <strong>de</strong> dizer oseu nome.- Enta"o ele nZo po<strong>de</strong> receber-me?- N~o, minha senhora; o Sr. licenciado proibiu absolutamenteas visitas ao doente.A mulher fez um movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagrado.- Perdzo, minha senhora; eu cumpro or<strong>de</strong>ns que h e <strong>de</strong>ram.- A menina B a enfermeira?. . .- Sim, minha senhora.- E parenta <strong>de</strong> Cl6lio hias?- Nb, minha senhora.- Sua afilhada talvez?. . .- TambBm nb, minha senhora.Uma velha que trabalhava a urn canto da sala , na sua almofada<strong>de</strong> rendas, disse: .- Emiliana, filha do mestre carpinteiro Marcos Fulg6ncio. queB um homem muito honrado e amigo do Sr. ClBlio hias.A mulher <strong>de</strong> mantilha levantou-se, estremecendo:-- Ah! exclamou; o mestre Marcos? a vltima do incgndio? . . .- verda<strong>de</strong>, minha senhora, respon<strong>de</strong>ti Emiliama; mas na"o s'eipor que minha tia <strong>de</strong>u agora em apregoar o meu nome.- Cala-te a(, enfezadinha! tornou a velha; n6s n50 Jmcs motivopara andar escon<strong>de</strong>ndo quem somos, graqas a Deus!


- Menina, disse a mulher <strong>de</strong> mantilha, sua tia tem razZo; o seumister nesta casa 6 uma tarefa <strong>de</strong> anjo <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>.- Oh! nzo, minha senhora, 6 apenas o pagarnento <strong>de</strong> uma dlvida<strong>de</strong> gratidZo, e o cumprimento da santa lei do arnor do pr6xirno.A mulher lanqou a mantilha no banco <strong>de</strong> pau, on<strong>de</strong> estivera sentadae mostrou seu rosto <strong>de</strong> peregrina beleza e seu corpo <strong>de</strong> suaves e rnaravilhososcontornos.Erniliana conternplou-a adrnirada;- corn ingenuida<strong>de</strong> que valeurnais que todas as lisonjas dos salBes elegantes, foi atiqar a can<strong>de</strong>ia, e voltoua conternplar <strong>de</strong> novo a senhora.- Como 6 formosa, rninha senhora!. . . disse ela.Maria <strong>de</strong>. . . a<strong>br</strong>aqou Emiliana, beijou-a em ambas as faces erespon<strong>de</strong>u:- A menina po<strong>de</strong>, sem inveja, como o faz, reconhecer a beleza<strong>de</strong> qualquer mulher; porque a nenhurna ce<strong>de</strong> em Iin<strong>de</strong>za.Emiliana confundiu-se, e abaixou o rosto.- Mas eu precisava rnuito falar a Cl6lio hias!- I! impossivel, minha senhora. . .-Oh!. . . se a menina soubesse. . .- Dbi-me rnuito repeti-lo; mas o licenciado nZo quer, e eu Sourespons4vel. . .Maria interrompeu Erniliana, tornando-lhe a mZo e levando-a pa:ra o corredor, on<strong>de</strong>, falando-lhe ao ouvido, rnurrnurou:- Silbncio!. . . nern urna exclamaqb, nem urn grito, ou <strong>de</strong>spertarssuspeitas. . .Erniliana tremeu e prestou atenqk.Maria continuou, segredando:- Nps somos irm9, e sob este teto hB trbs vltimas, e trb inirni-.gos do mesmo hornem; 16 o velho, que vai talvez rnorrer, aqui urna arnanteultrajada e urna donzela ofendida em sua honra.Maria susteve Emiliana, que titubeava. . .- Silbncio e prudbncia. . . jB Iho disse; n6s ambas temos o mesmbbdio, e eu preparo a vinganca: precis0 falar a Cl6lio fiias antes que elemorra.Emiliana envergonhada, trbmula, quase sem voz, sentiu horror<strong>de</strong>sse frenesi <strong>de</strong> vinganka que ousava ir perturbar, tempestuar a alrna <strong>de</strong> umvelho, talvez prbxirno a rnorrer.- N b, balbuciou ela; por isso rnesmo nb, minha senhora.Maria recuou urn passo e perguntou corn ironia:- A vitima perdoou ao algoz?. . .Emiliana respon<strong>de</strong>u corn vexarne profundo e justo <strong>de</strong>speito:- NZo entendo o que me dizes; mas sei o que me curnpre fazer.


0 facultativo, licenciado, ou cirurgib, como ent50 indistintamentese dizia, chegou nesse momento; antes <strong>de</strong> tudo, foi examinar o velhodoente, e no fim <strong>de</strong> alguns minutos dirigiu-se B sala <strong>de</strong> jantar, on<strong>de</strong> cumprimentoua velha e as duas moqas.- A fe<strong>br</strong>e <strong>de</strong>clina, mas n50 me engana; 15 evi<strong>de</strong>ntemente traiqoeirae anda a fazer-me negaqas; esta resistlncia <strong>de</strong> certos.sintomas nervosospo<strong>de</strong> dar <strong>de</strong> si. . . o velho Gias conserva na llngua uma crosta com cheiro <strong>de</strong>morte; notem que ele jB mudou <strong>de</strong> cabeceira duas vezes. . .- Mas eu precisava falar a ClI5lio Gias, disse Maria.- Nada, <strong>de</strong> modo nenhum, respon<strong>de</strong>u o licenciado, rindo-se; aSr? D. Maria 6 bonita <strong>de</strong>mais, e era capaz <strong>de</strong> fazer pecar por pensamentds ovelho, que amanha" <strong>de</strong>ve receber os socorros da Igreja. .Maria quis teimar; bateram, porem, a porta da casa.Emiliana mandou entrar, e entrou Germiano.


- Que preten<strong>de</strong>?. . . perguntaram a Gerrniano.0 rnudo, pondo em a& a sua mlmica expressiva, indicou quequeria enten<strong>de</strong>r-se corn Clblio hias.Respon<strong>de</strong>rarn-the que isso nb era posslvel.Germiano conhecia o facultativo e dirigindo-se a ele, p6s urn<strong>de</strong>do na boca, recornendando silhcio e rnostrou-lhe urna folha <strong>de</strong> papel.Apenas leu as prirneiras palavras, o licenciado curvou-se cornrespeito, e disse ao rnudo:- Venha.E introduzindo Gerrniano na sala, on<strong>de</strong> estava Clblio hias, retirou-se,cerrou a porta, e saiu, prometendo voltar em <strong>br</strong>eve.- Aquele soldado 6 urn enviado do vice-rei; e sou capaz <strong>de</strong> jurarque vern pedir a CltSlio fiias inforrnac6es ss<strong>br</strong>e a sua enferrneira.Erniliana nZo respon<strong>de</strong>u a Maria e ficou irn6vel.Baterarn <strong>de</strong> novo A porta, e enquanto Emiliana foi ver quem che-gava, Maria, conhecedora, corno qualquer outro, das diyisees e cornunica-~6eS adotadas em quase todas as casas da cida<strong>de</strong>, atravessou a sala <strong>de</strong> jantar,entrou em urn quarto, passou <strong>de</strong>sse para outro que era contfguo B sala queservia <strong>de</strong> escrit6<strong>rio</strong>. on<strong>de</strong> estava CltSlio hias, e a<strong>br</strong>indo urn pouco e levernentea porta, aplicou o ouvido e escutou.Gerrniano levava a can<strong>de</strong>ia que estava acesa na sala do doentepara perto <strong>de</strong>ste, e oferecera-lhe aos olhos a folha <strong>de</strong> papel que rnostrara aofacultativo.- Da parte do Sr. Vice-Rei! disse CltSlio has, lendo; e fazendovb esforco para sentar-se.0 rnudo conteve o doente e corn a sua rnlrnica recornendou-lhetranqijilida<strong>de</strong> e comecou o seu interrogat6ri0, apresentando a primeira perguntaescrita.Clblio fiias leu em meia voz e respon<strong>de</strong>u sirn.


Germiano tracou com um l8pis que trazia, uma cruz no papelon<strong>de</strong> estava escrita a pergunta.No entanto Emiliana tinha vindo procurar Maria e encontrando-aa escutar B porta entreaberta do quarto, puxou-a com for~a pelo <strong>br</strong>acopara afast8-la daquele lugar, on<strong>de</strong> surpreendia um segredo; achando, porbm,teimosa resistlncia, hesitou, na"o sabendo o que <strong>de</strong>via fazer; porque, tolerandoaquele abuso, era cirmplice em uma traiqzo, e <strong>de</strong>nunciando-o, expunhatalvez a tremendo castigo a mulher audaciosa, e ia provocar perigoso abaloprovavelmente fatal ao velho doente.Ansiosa e tremula, Emiliana ouviu o nome <strong>de</strong> Alexandre Cardosomurmurado por Cl6lio has na pergunta que lera, e nb po<strong>de</strong>ndo arredardali a senhora <strong>de</strong> mantilha, <strong>de</strong>ixou-se tamb6m ficar, puxando sempre pelo<strong>br</strong>ae0 <strong>de</strong>sta,' mas talvez j8 niio menos cu<strong>rio</strong>sa que ela.0 mudo foi sucessivamente passando a Cl6lio os papbis <strong>de</strong> perguntas,e tracou uma cruz, quando a resposta foi - sim -, urn risco so<strong>br</strong>e asletras da pergunta, quando o velho respon<strong>de</strong>u - na"o -, e nSo fez sinal al-gum em uma pergunta, B qua1 o doente respon<strong>de</strong>u - nbsei.Cl6lio hias lia sempre em meia voz a pergunta que o mudo Iheapresentava e a que respondia imediatamente.Terminado esse interrogatb<strong>rio</strong> singular e impru<strong>de</strong>nte nas circunstlnciasem que se achava Cl6lio hias, Germiano apertou a m b do doente evoltou a dar conta da sua comissb ao vice-rei.Ao mesmo tempo Maria tornou B sala <strong>de</strong> jantar e, voltando-separa Emiliana disse:- Perdi o meu tempo; nada ouvi que fosse novo para mim.Emiliana n b podia dizer outro tanto, e estava espantada da perversbe dos crimes do homem que j4 era bastante criminoso para ela.' - Em que pensa, menina? perguntou Maria, pensa em. . .A moqa interrompeu-a corn viveza e respon<strong>de</strong>u:- Pensava naquele mudo. . .Maria sorriu-se fnaliciosamente; vendo, por6m, que Emilianacorava, disse-lhe:- A provi<strong>de</strong>ncia divina tamMm 6 muda: nb fala, mas n%odorme.0 facultative chegou, como prometeu; e Maria, per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> todoa esperanp <strong>de</strong> falar a Cl6lio fiias, envolveu-se em sua mantilha, e, emboralevasse a promessa <strong>de</strong> que Ihe participariam, .quado o doente pu<strong>de</strong>sse recebbla,dada a hip6tese <strong>de</strong> escapar B morte, retirou-se contrariada.Dois egolsmos tinham, urn, tentado corn empenho sacrificar, eoutro, efetivamente sacrificado sua vonta<strong>de</strong> todas as consi<strong>de</strong>ra@es <strong>de</strong> respeitoe <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, a que tinha direito um velho doente e em perigo <strong>de</strong> vida;o egolsmo da vingan~a e o egolsmo do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sp6tico. Emiliana soubera


esistir a Maria; o licenciado nZo ousara resistir ao vice-rei.Mas, receoso das conseqiisncias do interrogato<strong>rio</strong> miste<strong>rio</strong>sofeito pelo mudo, o licenciado foi ver outra vez o doente: a fe<strong>br</strong>e aumentaraum pouco e com ela as dores e a agitacgo.- A tal conversa Ihe foi nociva, disse o prhtico; espero, porbm,que ha <strong>de</strong> amanhecer melhor; vou receitar-lhe um calmante po<strong>de</strong>roso. . .ClBlio hias sacudiu a cabeca em sinal <strong>de</strong> incredulida<strong>de</strong>.- lsso 6 medo <strong>de</strong> velho. . .- AmanhZ receberei os sagrados socorros e a extrema-un~b,murmurou o doente.- I! o seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> catblico.- E suave consolacgo e conforto <strong>de</strong> rninha alma <strong>de</strong> usura<strong>rio</strong> epecador arrependido. . .- Esth bem; <strong>de</strong>scanse.- NSo; B precis0 que eu Ihe fale: Sr. Licenciado, tenho mais <strong>de</strong>setenta anos; o mundo e a vida jh me cansam.- Conversaremos amanhg. . .- Amanha" po<strong>de</strong> ser tar<strong>de</strong>. Sr. Licenciado, seja franco: tenho negbciosa arranjar, disposifles a tomar; se ainda espera salvar-me e esses cuidadospo<strong>de</strong>m contraria-lo, estou pronto a adia-10s; se, pelo contrh<strong>rio</strong>. . .0 licenciado cortou a palavra-ao doente e respon<strong>de</strong>u-lhe:- 0 seu estado 6 grave; ainda tenho esperanps <strong>de</strong> vencer estafe<strong>br</strong>e maldita que o <strong>de</strong>vora; mas quer me parecer que a preocupacgo dosarranjos dos seus neg6cios B ainda pior do que sera a fadiga e a excita~b dotrabalho que vai ter; <strong>de</strong>scanse, pois, duas horas, tome <strong>de</strong>pois as suas disposi-~Bes, e <strong>de</strong>ixe o resto por minha conta.Cl6lio hias compreen<strong>de</strong>u perfeitamente a verda<strong>de</strong>ira significa~bdas palavras do licenciado, e sem corno@o e sem tremer, disse:- Agra<strong>de</strong>co-lhe a verda<strong>de</strong>.E fechou os olhos como para dormir.0 licenciado receitou e <strong>de</strong>spediu-se <strong>de</strong> Emiliana e da velha.Meia hora <strong>de</strong>pois, Cl6lio hias a<strong>br</strong>iu os olhos e viu sentada a seusp8s a <strong>de</strong>dicada enfermeira.- Venha sentar-se aqui, disse-lhe, mostrando uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> pauque estava junto da cabeceira.A m q obe<strong>de</strong>cgu e ele tomou-lhe uma das m3os. e falou cornansieda<strong>de</strong> que en8rgicodominava.- Erniliana! Devo-lhe muito nestes dias, e vou morrer, apesardos seuscuidados <strong>de</strong> filha <strong>de</strong>dicada. Veja em mim seu pai, e creia que vaiconfessar-se a um moribundo; mas confesse-se. . .Emiliana estremeceu.- Faltam-me as forps. . . pa<strong>de</strong>go muito. . . n b me fatigue: fale,


que precis0 ouvi-la.- Que quer que eu diga?- Que confesse ao moribund0 que vai dar contas <strong>de</strong> si a Deus, oque com inteira verda<strong>de</strong> se passou na noite do incsndio da casa <strong>de</strong> seu pai.Einiliana <strong>de</strong>satou a chorar.- E pois verda<strong>de</strong> o que disseram? perguntou Cl6lio hias.- I! verda<strong>de</strong>, balbuciou a moGa.- Alexandre Cardoso B pois seu amante?- Oh! nlo!. .. exclamou ela levantando-se.- Sente-se.Emiliana sentou-se.- Mas Alexandre Cardoso, o infame por mil inflmias, manchoua sua reputa$a"o. . .A rnwa contou solupndo, a <strong>br</strong>eve hist6ria da sua <strong>de</strong>sgrap.Clklio hias fatigado e em fe<strong>br</strong>il agitaqzo teve pressa <strong>de</strong> acabar essalntima conversaeo.- Embora inocente, o seu nome estd exposto Bs irriges domundo: tome outro nome. . .- Como, senhor?. . .- Seja noiva amanh: para ser viirva <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanhLEmiliana n k soube que dizer.- Man<strong>de</strong> chamar sua mse, e prevenir a seu pai; amanhii a senhorasera esposa do velho usurdriq que morrerd logo <strong>de</strong>pois corn a cabeqa encostadano seu seio.E Cl6lio hias tornou a fechar os olhos; mas, passados poucosmomentos, murmurou:- As ora~6es do anjo serb as asas que ha"o <strong>de</strong> levar a alma dovelho pecador arrependido aos p6s do Senhor Deus misericordioso.E ClBlio hias dormiu.Na manha" do dia seguinte Clklio hias aparentemente muito melhordos seus crukis sofrimentos, calmoecontrito, confessou-se e recebeu asagrada comunhb.Em seguida foi cele<strong>br</strong>ado e abentpado o seu casamento cornEmiliana, a filha do carpinteiro Marcos Fulgkncio.Acabado o ato religiose do casamento, o padre saiu da sala, on<strong>de</strong>entrou o tabelib.No fim <strong>de</strong> uma hora duas testemunhas assinaram o testamentodo marido <strong>de</strong> Emiliana.Ao meio-dia o velho que era noivo estava sem fe<strong>br</strong>e, tranqiiilo, ecomo sorrindo aos horizontes da vida.As duas horas da tar<strong>de</strong> voltou a fe<strong>br</strong>e com extraordindriaviolkncia.


AS cinco horas Clelio hias <strong>de</strong>lirava.AS seis per<strong>de</strong>ra a fala e seu corpo co<strong>br</strong>iu-se <strong>de</strong> f<strong>rio</strong> suor.A meia-noite o velho usurd<strong>rio</strong>, pecador arrependido, agonizava,tendo a cabe~a encostada no seio <strong>de</strong> sua jovem esposa.A uma hora da madrugada, Emiliana hias estava viliva e era adnica her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma fortuna <strong>de</strong> seiscentos mil cruzados.


Na chlcara da Gamboa, continuara sem a mais leve perturbaqba vida suave e tranquila da famllia <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong>; tip0 das famllias <strong>de</strong>costumes severos do tempo colonial, principalmente do irltimo skculo observavaas regras adotadas com precisb, mas sem constrangimento, porque aeducaqb passada <strong>de</strong> pais a filhos as tornara flceis e como que naturais.Assim, JerBnimo Ll<strong>rio</strong>, o chefe, dirigia exclusivamente os neg6-cios e neles resolvia tudo sem consulta ante<strong>rio</strong>r e sem conhecimento poste<strong>rio</strong>rda Sr? In&; esta <strong>gov</strong>ernava absolutamente na economia dombstica, noque o marido s6 intervinha, quando a mulher precisava do seu concurso;cada uma das duas filhas por sua vez fazia semana sub<strong>gov</strong>ernando e dirigindotodos os serviqos dom6sticos <strong>de</strong>baixo das vistas <strong>de</strong> sua mZe, cada umatinha sua escrava particular que costurava e engomava seus vestidos e a serviano quarto; os costumes <strong>de</strong>ssas escravas eram especialmente zelados. As duasmeninas nZo falavam a pessoa estranha, senb em presenqa <strong>de</strong> seus pais, enunca passeavam nem se mostravam s6s.0 cuidado do futuro da familia pertencia a JerBnimo, que diriaoito dias antes do casamento os nomes dos noivos <strong>de</strong> suas filhas a sua mu-Iher: mais ainda em segredo; porque bastava que as noivas os soubessem nav6spera do enlace nupcial.Entretanto JerBnimo teve <strong>de</strong> fazer uma exceqk a esta Qltimaregra do absolutismo logo <strong>de</strong>pois da retirada na noite da segunda-feira <strong>de</strong>entrudo. Ele se lem<strong>br</strong>ara <strong>de</strong> que na tar<strong>de</strong> antece<strong>de</strong>nte In& o confundira, dizendo-lhe:"Sou m& que v3 mais e que adivinha antes <strong>de</strong> ti o que mais tar<strong>de</strong>Ihe escon<strong>de</strong>s para poupar-lhe cuidados".Sem contestaq6es lnds tinha-se referido i s pretensces <strong>de</strong> AlexandreCardoso i m k <strong>de</strong> sua filha mais moqa, e pois era justo que soubesse oque sem que<strong>br</strong>a do sigilo convencionado, podia JerBnimo comunicar-lhe dasua conversa@o particular com o Con<strong>de</strong> da Cunha.Chegando ao seu quarto, o negociante disse B Sr? In& que oesperava:


<strong>de</strong> sala.- Sabes a que veio o vice-rei?- A qub?- Pedir-me a Sinha em casamento para o seu ajudante oficial-Miseric6rdia!. .. antes nZo viesse cB o senhor vice-rei!. ..- Por qub?. ..-Sere uma <strong>de</strong>sgra~asemelhante casamento. . .- Pensamos do mesmo modo.- E entb?- Respondi com urn n b redondo.- Mas e o senhor vice-rei?- Ele <strong>gov</strong>erna a coldnia; eu, por6m, <strong>gov</strong>ern0 rninha famllia.- E as persegui~aes e os perigos a que ficamos expostos com urntal inimigo?- Sossega: o Con<strong>de</strong> da Cunha retirou-se is boas cornigo.- Mas esta gente alta nbfinge?- Oh! e muito: mas eu tenho razz0 para estar tranquilo, nern <strong>de</strong>outro rnodo te comunicaria isto.- Deus Nosso Senhor nos ampare.- Ontem apanhei em algurnas palavras tuas a <strong>de</strong>clara~b <strong>de</strong> queantes <strong>de</strong> rnim tiveste conhecimento das atrevidas e importunas inten@es ecortesias do tal Alexandre Cardoso.- 6 verda<strong>de</strong>; eu as tinha percebido.- E a Sinha?. . .- Coitadinha! ainda n b pensa em semelhantes coisas.- Olha que ela 6 rnuito esperta. . .- I! um anjinho <strong>de</strong> inocbncia, corno a Nhanha".- Bem: o que acabo <strong>de</strong> dizer-te, 6 urn aviso para que redo<strong>br</strong>es <strong>de</strong>vigilincia.- Sem dirvida;.mas o vice-rei?- Que tern o vice-rei?- Corno acharia ele a recep~b que Ihe fizernos?- On<strong>de</strong> a terias melhor no Brasil? N b ves que fomos <strong>de</strong>spachados,e que vais ser a senhora dona In&?- Sirn, e corn rnarido cavaleiro do hdbito. . .- Esths vendo que a no<strong>br</strong>eza nos entra em casa. . .Arnbos se puseram a rir, mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si rnuito ufanosos dasgraGas prometidas.E <strong>de</strong>les n b se riarn hoje os cornendadores e barBes adrnirados<strong>de</strong> ufania por tgo pouco; poiso tltulo <strong>de</strong> dona a uma senhora e um habit0 daOr<strong>de</strong>rn <strong>de</strong> Cristo a urn homern custavam e dininguiam entgo muito rnais doque as cornendas e os baronatos do nosso tempo.


Ainda antes <strong>de</strong> dormir os dois velhos e amigos esposos conversaramso<strong>br</strong>e Isidora; mas em voz ta"o baixa que s6 eles mesmos se podiamenten<strong>de</strong>r.0 dia seguinte era feriado e o compadre AntBnio Pires chegouinesperadamente e foi recebido com expansb <strong>de</strong> alegria pela famllia.0 dia tornou-se <strong>de</strong> festa.0s dois velhos amigos conversaram a s6s uma hora: JerBnimo Ll<strong>rio</strong>confiou a Antbnio Pires tudo quanto se passara na visita do vice-rei; eeste referiu Bquele a notlcia do incdndio da casa do carpinteiro Marcos Fulgbncioe os rumores que corriam do novo atentado que perpetrara AlexandreCardoso; discorreram so<strong>br</strong>e os dois acontecimentos e <strong>de</strong>pois voltaram Bsala on<strong>de</strong> se achavam as senhoras.As meninas falavam muito no vice-rei, a quem faziam encantadoselogios; lsidora sentada junto da senhora Inbs se conservava em silbncio.0s dois compadres jogaram o gamb e JerBnimo Ll<strong>rio</strong> que estavaem mar6 <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> punha em torturas a impacibncia <strong>de</strong> AntBnio Pires,contido e coato pela presenqa das senhoras.Uma vez <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco gamSes consecutivos perdidos porAntBnio, a fortuna pareceu mudar, Jerbnimo, falhando trbs vezes, estavaexposto a levar gamgo; era quase imposslvel a este salvar a partida, ou conseguirper<strong>de</strong>r apenas jog0 simples.- Toma agora a lit$io <strong>de</strong> mestre, velho presumido! exclamouAntBnio.- E se eu te <strong>de</strong>r na pedra?. . .- Era precis0 que tivesses o diabo no corpo para que me <strong>de</strong>ssesna pedra, salsses corn os trbs, que estb quase presos, e que te caseasses, enquantoeu fosse falhando por um s6culo!E foi o que aconteceu!. . .JerBnimo teve dos dados o quase imposslvel, fechou-se todo, egritou'a AntBnio que fu<strong>rio</strong>so apertava a pedra na mb:- Tragam doce para AntBnio, enquanto eu niio lhe a<strong>br</strong>o casa!AntBnio teve medo <strong>de</strong> esquecer-se da presenp das senhoras, evoltando-se para elas, disse:- Cornadre, man<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedaqar este tabuleiro <strong>de</strong> gamb!- Nb jogue mais, compadre!- Al tern casa aberta, disse JerBnimo; entra <strong>de</strong>pressa se quereslivrar o gamb. . .- Com uma pedra s6 a entrar e recolher?- Tem-se visto tantas vezes!AntBnio falhou trbs vezes, entrou <strong>de</strong>pois; mas em seguida lanqouduas vezes dois e ds, e levou o gamb cantado.- JerBnimo quase rebentava <strong>de</strong> rir, provocando com zombariaso velho amigo, que arrebatado, <strong>de</strong>ixou-lhe o tabuleiro nos joelhos, e para


disfarqar a sua irritaqgo perguntou a Isidora:- 0 vice-rei assustou-a muito? Escon<strong>de</strong>u-se <strong>de</strong>le?- Ao contr6ri0, compadre; ela encantou o senhor Con<strong>de</strong> daCunha corn os lundus que Ihe cantou.- Ah! canta lundus?- E muito bem.- Pois faqa <strong>de</strong> conta que eu sou o vice-rei, e vamos aos lundus.lsidora nlo se fez rogar; foi para o cravo, e entzo menos acanhada,cantou muito melhor do que na presenqa do Con<strong>de</strong> da Cunha.- Mas. . . isto d muito bonito! exclamou Ant6nio.E voltando-se para os dois liios.- E voc& cantaram tambem?- N6s dan~amos, meu padrinho, disse Inls.- Pois <strong>de</strong>viam ter tambt5m cantado: a mirsica vale mil vezes maisque a danqa.- Mas. . . nzo sabemos. . .- Era fdcil sabl-lo agora, visto que voc&s t6m boa mestra emcasa, disse AntBnio.E voltando-se para Jerbnimo, continuou:- Jer6nim0, por que as meninas nZo apren<strong>de</strong>ram a cantar algumacoisa com a senhora Isidora?. . .0 velho negociante urn dia antes se revoltaria contra a proposiqb;mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a ora~a"0 da noite do doming0 comeqara a afei~oar-se a Isido-ra, e o muito que esta agradara ao vice-rei pelos seus lundus, acabou por<strong>de</strong>cidi-lo:- lsso 6 16 corn In&, que 15 quem se ocupa das rneninas,respon<strong>de</strong>u.A senhora In& que observara a expressiva fisionomia do marido,acudiu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>br</strong>eve reflexb:- Se a menina lsidora quiser prestar-se a dar algurnas liq6es. . .lsidora respon<strong>de</strong>u, corando:- Sei muito pouco, rninha senhora, mas estou pronta a servir emtudo quanto possa 8 farnilia respeittivel e bendfica a quern <strong>de</strong>vo hospitalida<strong>de</strong>e proteqa"~.- Ouanto tempo perdido! exclamou Ant6nio.- Como?- A primeira lick ja <strong>de</strong>via ter principiado. . .Jerbnirno levantou-se e saiu da sala, dizendo:- Temos doidices: ainda hei <strong>de</strong> ver-me o<strong>br</strong>igado a fechar a portaa este velho. . .Antbnio era o unico homern que influia corn po<strong>de</strong>r quase irresistlvelso<strong>br</strong>e Jer6nirno; e cada uma <strong>de</strong> suas visitas era sinal <strong>de</strong> festa e <strong>de</strong>


alegria na chhcara da Gamboa, on<strong>de</strong> ele com dissimulado aprazimento doamigo, punha as duas meninas em folguedo na"o coagidas pela austerida<strong>de</strong>do pai.- Fazes bem em te ir, carrancudo, ralhador, dissera AntBnio aJer6nimo.E falando A Sr? In&, prosseguiu:- Comadre, hh <strong>de</strong> ver o que sai daqui: eu aposto que a Nhanha",que 6 menos alegrona, cantarh bem modinhas, e que a Sinhh hh <strong>de</strong> <strong>br</strong>ilharnos lundus. Vamos a um ensaio? A Nhanha" que experimente uma modinha.A Sr? Ink sorriu-se e animou as filhas; lsidora foi sentar-se aocravo; mas Irene, vergonhosa e confundida, n b se atreveu a ensaiar sua voz.- Sinhh, disse o padrinho b afilhada, dB o exemplo a tua irma".A rnenina In&$ levantou-se risonha, corada e entre o vexarne-naturale o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> agradar ao padrinho, foi colocar-se ao lado <strong>de</strong> Isidora.- Que <strong>de</strong>seja cantar? perguntou esta, docemente.- Ora! Nb sou eu, 6 meu padrinho que <strong>de</strong>seja que eu cante umlundu.-Qua1 6 o que vai cantar?. . .- 0 primeiro que ouvi ontem B senhora.- Ah! o da velha que quer casar?- Esse mesmo.- Acha bom que Iho repita?- Meu padrinho nZo po<strong>de</strong>ria ouvir-me <strong>de</strong>pois.lsidora comeqou o acompanhamento e a inteligente e engraqadaSinhh, vencendo o medo, <strong>de</strong>satou a voz e cantou <strong>de</strong> cor o lundu que ouviraduas vezes, conseguindo imitar as inflex6es da voz, o metodo e a graqa docanto <strong>de</strong> Isidora.A menina In&s acabava <strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r o que porventura <strong>de</strong>la esperavao padrinho, que batia palmas.lsidora contemplou admirada a sua imitadora.- Que Ihe pareceu? perguntou a Sr? Inds.lsidora afastou logo os olhos que fixara na menina e respon<strong>de</strong>u:- Estou maravilhada, minha senhora.- Se pensa que vale a pena, principiaremos amanh3 as nossasliq6es <strong>de</strong> mlisica.


Havia quinze dias que as liq<strong>de</strong>s <strong>de</strong> canto tinham comeqado; <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que satisfazia os trabalhos dil<strong>rio</strong>s do <strong>gov</strong>ern0 da casa, regularmente, as<strong>de</strong>z horas da manha" a Sr? lnCs levava as filhas para a sala-e sem se ausentarpor um d momento, e com os olhos e a atenqzo mais ativa e o mais escrupulosozelo empregados nelas, assistia is IiqBes <strong>de</strong> solfejo e canto, que lsidoradava as duas meninas.lrene e In&, que achavam nessas IiqBes distragb suave em suavida monbtona, aplicavam-se muito e faziam rhpidos progressos; aldm do estudoda mirsica, lrene tinha aprendido <strong>de</strong> cor duas modinhas e InCs outrastantas e um lundu, para cantl-10s em casa <strong>de</strong> AntBnio Pires, na noite daserraqzo da velha.Jer6nimo Li<strong>rio</strong> estava satisfeitissimo do aproveitamento dasfilhas, jh as fazia cantar em sua presenqa e calculava com essa nova prendadas meninas para a festa que daria ao vice-rei em urna segunda visita, comque contava.0 recato, o proce<strong>de</strong>r honestlssimo, os modos sempre respeitosos<strong>de</strong> Isidora, tranqiiilizavam cada vez mais o austero velho, que nem maisdisfargava a estima que Ihe merecia a hospeda; entretanto, na"o se modificarapor isso o sistema da vida intima da familia Li<strong>rio</strong>: lsidora era sempre umaestranha; nem uma so vez se achava a s6s com as duas disclpulas, e unicamenteem horas <strong>de</strong>terminadas era admitida no inte<strong>rio</strong>r da casa, a conversarcom a Sr? Ink.Ainda naqueles tempos quase recentes, os portugueses e seus<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes conservavam no sangue os germes do turvo ciirme mourisco querouba a mulher admiraqa"~ e aos cultos dos homens e a con<strong>de</strong>na B escravida"odo zelo <strong>br</strong>utal.lrene e Inb tinham vivivo sempre sob vigilsncia como suspeitosa,e cada, uma s6 na outra encontrava a confi<strong>de</strong>nte irnica <strong>de</strong> seus inexplichveisenleios.


Jeranimo Lhio e sua esposa <strong>de</strong>fendiam a inocbncia <strong>de</strong> suas filhascontra todas as lisonjas e contra todas as luzes do mundo; mas n30pu<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>fendb-las contra a voz da natureza, que <strong>de</strong>via anunciar-lhes, emboraconfusamente, um mistk<strong>rio</strong> na vida da mulher, um quer que seja que anatureza manda <strong>de</strong>sejar e que em sua inocbncia <strong>de</strong>seja sem saber o que.lrene e Inbs estavam j8 nesse caso, lrene menos ar<strong>de</strong>nte, a pensarsem falar; Inbs mais suscetlvel e mais exaltada, a pensar, a sonhar, a confiar Birma" o que nem ela nem a irma" entendiam.Sabiam ambas que havia um laqo que unia uma mulher a um homem,o casamento; mas do casamento s6 compreendiam, alkm do fato miste<strong>rio</strong>soda unib, a beleza ou o encanto do vestido <strong>br</strong>anco e do vku, e da coroada noiva, e o subsequente <strong>gov</strong>ern0 da casa do noivo.Ainda assim, e sem saber por que, ambas <strong>de</strong>sejavam ser noivas;mas noivas <strong>de</strong> bonitos e elegantes mancebos.Tanto lrene como Inbs, por mais <strong>de</strong> uma vez tinham recebido <strong>de</strong>velhas po<strong>br</strong>es pedintes a quem davam o pa"o da carida<strong>de</strong>, recados lisonjeadorese amorosos <strong>de</strong> homens a quem conheciarn ou n3o; nunca haviam dadoresposta alguma; mas os recados as faziam rir e as divertiam muito, e ambasinstintivamente os escondiam dos pais.Assim Inds sabia e acreditava que Alexandre Cardoso a adoravaperdidamente e com a sua inata e sutil habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mulher, tinha, mais <strong>de</strong>uma vez, olhado e observado imperceptivelmente o soberbo ajudante oficial<strong>de</strong>-salaque Ihe causara profunda repugnlncia, talvez em parte <strong>de</strong>vida 3 reputach<strong>de</strong> homem mau e <strong>de</strong>smoralizado, que ele gozava.As duas irma"s <strong>br</strong>incavam, riam-se, e zombavam em confidbnciados protestos <strong>de</strong> amor que recebiam muito raramente, mas que em todocaso, as faziam pensar em amor, e em casamento sem sentir um e sem compreen<strong>de</strong>ro outro.Em um dos Oltimos dias a menina Inbs, correndo a dar esmola auma velha <strong>de</strong> mantilha que mendigava, ouvira <strong>de</strong>la, no meio <strong>de</strong> um dilhvio<strong>de</strong> bdn@os, as seguintes palavras, proferidas em tons diversos:- Minha bela menina - seja pelo amor <strong>de</strong> Deus - o senhortenente-coronet Alexandre Cardoso, oficial<strong>de</strong>-sala do senhor vice-rei - NossaSenhora do Amparo a proteja - ama-a e quer casar com a senhora - etodos os anjos e arcanjos a acornpanhem sernpre - o senhor vice-rei <strong>de</strong>seja oseu casamento com o Sr. Alexandre Cardoso e a protegera contra seu pai - eSb Pedro, e S b Paulo, e Santo AntBnio <strong>de</strong> Lisboa a faqam feliz - porqueseu pai a <strong>de</strong>stina para freira - mas o seu belo apaixonado esta pronto a salv8-lae a casar com a.senhora, tomando por padrinho o senhor vice-rei - etodos os santos e santas do c6u a faqam feliz - dd-me a resposta que <strong>de</strong>volevar - para sempre am6m.lnds voltara as costas B mendicante, que se retirara confusa e


apressada, tremendo justo castigo, se a menina <strong>de</strong>nunciasse o seu ousado elmpio recado.Mas Inks nada disse a sua mze e somente, esperando a noite, equando se achava longe da famllia e a s6s com Irene, em seu quarto <strong>de</strong> dormire quando ambas, feita a oraca"o da noite, se acolheram a seus leitospuros, e pr6ximos um do outro, perguntou a irmz:- Nhanha", como vais <strong>de</strong> recados?- Que recados?- De amor, <strong>de</strong> paixb, <strong>de</strong> casamento, <strong>de</strong> tudo?- Ora . . . Sinhazinha, tu pensas nisso?- Creio que n6s pensamos; mas, em todo caso, eu penso.- Por qub?- Porque ainda hoje recebi urn.- De quem?- Do oficial-<strong>de</strong>-sala; foi a velha mendicante <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong> manha"que me trouxe o recado.- E que mandou ele dizer-te?- 0 mesmo que das outras vezes, e uma notlcia cu<strong>rio</strong>sa.- Qual?- Que meu pai me <strong>de</strong>stina para freira.- E repetes isso a rir?- NZo tenho medo; se fosse verda<strong>de</strong>, eu pediria proteczo e socorroa meu padrinho.- E respon<strong>de</strong>ste ao recado?- Eu?. . . que me importa o oficial-<strong>de</strong>-sala, com aqueles bigo<strong>de</strong>stb feios!-Ah!. . . se ele fosse bonito. . .- E bom, e engra~ado. .- Respon<strong>de</strong>r-lhes-ia, Sinhazinha?. . .- NZo julgas que se po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a um <strong>de</strong>sses recados, sem seofen<strong>de</strong>r a Deus, e ao nosso <strong>de</strong>ver?. . .- Eu nZo sei. . . talvez. . . conforme a pergunta e a resposta.- Tu 6s sonsa, Nhanha".- E que respon<strong>de</strong>rias, Sinhazinha?. . .- Mandaria dizer que falasse a meu padrinho.- So<strong>br</strong>e o qub?- I! claro, so<strong>br</strong>e o casamento.A inocbncia <strong>de</strong> lnbs transpirava da propria ingenuida<strong>de</strong> com quese pronunciava.- Sinhazinha, perguntou Irene, qua1 6 o moco com quem <strong>de</strong>sejariascasar-te?- Nenhum.. .


- Ora. . . estas mentindo. . .- NZo; jB achei alguns bonitos, agora acho todos feios.- Por quii?. . .- Ouase que tenho vergonha <strong>de</strong> dizer.- Dize-me sempre. . .- Quisera casar-me com um moqo que tivesse o rosto, a voz, abonda<strong>de</strong> e a graqa <strong>de</strong> Isidora. . .- Na verda<strong>de</strong> ela 6 bonita, e 6 pena que seja um pouco malfeita<strong>de</strong> corpo. . .- Mas. . . que olhar o seu!. . .- Muito suave. . . sem dbvida. . .- Quando na"o e <strong>br</strong>ilhante <strong>de</strong> fogo; porque, entb, 6 a<strong>br</strong>asador.- Ela nunca me olhou assim. . .- Parece que se arreceia da mamze.- Como, pois, sabes que ela tem olhar <strong>de</strong> fogo?. . .- JA por tr6s ou quatro vezes, quando dAs liqb e mama"e seocupa mais contigo, apanhei-a a olhar-me assim <strong>de</strong> relance.- De relance?- como um relimpago, Nhanha". . .- Ah!- Tambem nk sei por que mamse nunca nos <strong>de</strong>ixa em liberda<strong>de</strong>com uma senhora que B moqa como n6s, e ainda melhor educada quenos.- E verda<strong>de</strong>; n6s nos divertirlamos tanto!- E eu entzo? Olha, NhanhZ, na"o tenhas ciumes; suponho queela gosta muito <strong>de</strong> mim.- Por quii?- Urn dia esqueci so<strong>br</strong>e o cravo um raminho <strong>de</strong> alecrim, e 5 noite,quando fomos rezar ao orato<strong>rio</strong>, vi o meu raminho, servindo <strong>de</strong> marca nolivro <strong>de</strong> oraqb <strong>de</strong> Isidora.- Talvez ela o apanhasse por acaso e sem pensar em ti.- Julgas que sou tola? Deixei passar dois dias, e, enquanto cantavas,fui esquecer um.. bota"o1 <strong>de</strong> rosa na janela. . .- E mamL na"o <strong>de</strong>u por falta do bota"o <strong>de</strong> rosa? . . .- Ora, esta Nhanha" me consi<strong>de</strong>ra idiota! Pois eu havia <strong>de</strong> levaro bota"o <strong>de</strong> mod0 que a mamb o visse?- On<strong>de</strong> o levaste?--Bern escondido no seio.- E que foi feito <strong>de</strong>le?- Vi-o, a mesa do jantar, no cabelo <strong>de</strong> Isidora.- E <strong>de</strong>pois. . . que mais?- Acabou-se a historia.


- Sinhazinha, agora b que eu dig0 que 6s tola.- Sim?. ..- De que te serve gostar <strong>de</strong> uma moca como n6s?. .- Eu sei! o que dizes b muito acertado; mas lsidora me encanta.. . nb B por minha vonta<strong>de</strong>, nb entendo o que sinto; mas jB duas vezestenho visto em sonhos um moco com o rosto <strong>de</strong> Isidora.- Ela diz que tem um irmb que b o seu retrato perfeito. ..- Pois era com o irmiio <strong>de</strong> lsidora que eu queria casar-me.- Casar-te?. . . Falas tanto em casar-te! Eu tambbm <strong>de</strong>sejava casar-me.. . tenho cu<strong>rio</strong>sida<strong>de</strong>. . . hB no casamento um segredo que nos enco<strong>br</strong>em.. . por que o escon<strong>de</strong>m? Ja o adivinhaste, Sinhazinha? Para que <strong>de</strong>sejascasar-te?In& respon<strong>de</strong>u logo sem o mais <strong>br</strong>eve vexame, e com indizlvelnaturalida<strong>de</strong>:- E para ter filhos, Nhanha", como os tdm quase todas as mocasque se casam, e tamb6m para ter casa minha, e em meu marido um homemque trabalhe para mim.*- Ainda falta a( o segredo. .., murmurou lrene.Ink, que tambbm ignorava o segredo, e que se viu abatida pelaevi<strong>de</strong>ncia da falha consi<strong>de</strong>ravel no seu saber pretensioso, disse um poucoamuada:- 0 mais, niio sei.As duas irma"s guardaram sildncio por alguns minutos.lrene tornou a falar.- Dormes, Sinhazinha?- Nb.- Eu estava pensando em Isidora.Tambbm eu.- Causou-me surpresa e dirvida o que me disseste: talvez tenhasinterpretado ma1 o fato .<strong>de</strong> recolher esta moqa o ram0 <strong>de</strong> alecrim e o botiio<strong>de</strong> rosa. ..- lnterpretei muito bem.- Quisera fazer uma experigncia. . .- Qual. . .- Amanha" serei eu quem esqueqa uma flor so<strong>br</strong>e o cravo. .- E eu esquecerei outra na janela.- Pois sim.- Mas com a condiqb <strong>de</strong> nZo teres ciirmes.- Juro que tenho s6 cu<strong>rio</strong>sida<strong>de</strong>. Vamos cjormir.E lrene e In% dormiram facil, suave e tranqijilamente, como<strong>de</strong>vem dormir os anjos, se os anjos dormem.No dia seguinte, A hora da liqiio <strong>de</strong> mlisica, Irene, que levava na


mb uma violeta, <strong>de</strong>ixou-a cair so<strong>br</strong>e o cravo, quando solfejava, ao mesmotempo que Inb esquecia na janela um amor-perfeito que levara escondido.Terminada a liqb e ao retirarem-se as meninas, lsidora chamouas,e apresentou-lhes a violeta, perguntando a quem pertencia.lrene recebeu a flor, corando, e agra<strong>de</strong>ceu a Isidora, e ainda maiscu<strong>rio</strong>sa e atenta, viu, a noite, durante as rezas no oratb<strong>rio</strong>, o amor-perfeito<strong>de</strong> lnbs servindo <strong>de</strong> marca no livro <strong>de</strong> oraq6es <strong>de</strong> sua mestra <strong>de</strong> canto.Quando, abenqoadas por seus pais, as duas meninas se recolherampara dormir, e se achavam a sbs, lrene disse a Inbs:- Tens razb, Sinhazinha, lsidora te ama.- E eu a ela, muito, cada dia mais!- Eu, porkm, nb entendo isto. . . que amor 6 este, entre pessoasque na"o se po<strong>de</strong>m casar?. . .- E verda<strong>de</strong>, Nhanha"; n30 me <strong>gov</strong>erno, porem, mais. . . amo Isi-dora. . . e nem compreendo a natureza do sentimento que a ela me cativa. . .- Sinhazinha, quem sabe se hd nisto o<strong>br</strong>a <strong>de</strong> tenta~a"~ do inimi-go? Eu te dou um conselho. . .- Qual?. . .- Antes da semana santa, havemos <strong>de</strong> confessar-nos: n b te esqueqas<strong>de</strong> consultar o padre so<strong>br</strong>e este caso <strong>de</strong> conscibncia.- Ah, Nhanha"! 0 padre 6 ta"o rabugento!- i! porque pecamos muito, Sinhazinha; e porque talvez rezamospouco.E instintivamente as duas meninas co<strong>br</strong>indo os seios corn os lenq6isem voltas, ajoelharam-se so<strong>br</strong>e as camas, e rezaram o credo, a ladainha<strong>de</strong> Nossa Senhora, e outras oraq6es que as ocuparam durante uma hora.E <strong>de</strong>pois adormeceram sorrindo, como se agra<strong>de</strong>cidas, sorrissema bbnqzo <strong>de</strong> Deus.


0 vigesimo dia da quaresma 6 em todo o rnundo catblico <strong>de</strong>suspensa"~ <strong>de</strong> penitgncia, e como <strong>de</strong> f<strong>br</strong>ias dadas pela lgreja aos jejuns e aosausteros preceitos <strong>de</strong> religib santa e irnica verda<strong>de</strong>ira, impostos aos fi6isnesse perlodo anual que recorda os quarenta dias <strong>de</strong> jejurn e da supremameditaflo <strong>de</strong> Jesus Cristo antes da sua sagrada paixb e morte, que <strong>de</strong>ixouno sangue do Deus rnhrtir o Jordzo que lava todas as culpas, e na cruz santlssirnaa Arvore da liberda<strong>de</strong> que regenerou e nobilitou, que regenera e nobilita,que hh <strong>de</strong> regenerar e nobilitar para todo sempre a humanida<strong>de</strong>.Esse dia exceptional, que a lgreja conce<strong>de</strong> aos fieis para <strong>de</strong>scansodas penitgncias e dispensa das abstinencias dos jejuns e das prdticasausteras, dava no Brasil ocasia"~ a uma folganqa popular n b pouco burlesca.A folganqa tomava o norne <strong>de</strong> serraqiio da velha.Descreveremos em poucas palavras essa especie <strong>de</strong> mascarada dosantigos costumes, que s6 no presente s6culo foi proscrita pela novacivilizaflo.Nas cida<strong>de</strong>s e at6 nos pequenos povoados ajuntavam-se mancebosfolgaz* para a festanp; dizia-se que pelo correr da noite se havia <strong>de</strong>serrar a rnulher mais velha da cida<strong>de</strong> ou povoac;a"o, e era tZo simples e cr6dulaa gente daqueles tempos, que havia velhas que, tremendo <strong>de</strong> medo, se escondiamdurante o dia fatal para n b serem apanhadas pelos serradores.A noite, sala a socieda<strong>de</strong> B rua: homens possantes, vestidos acarAter, Bs vezes representando lndios, ou negros africanos, ou mouros, puxaVamurn carro com imenso estrado, so<strong>br</strong>e o qua1 viam-se meia dirzia <strong>de</strong> figurantestrajando B fantasia e uma gran<strong>de</strong> serra armada e pronta para serraruma pipa, <strong>de</strong>ntro da qua1 se dizia ir encerrada a velha con<strong>de</strong>nada ao sacrif fcio.On<strong>de</strong> era possfvel obter-se mirsica, uma dirzia <strong>de</strong> tocadores <strong>de</strong>instrurnentos bArbaros, ou capazes <strong>de</strong> produzir gran<strong>de</strong> ruldo, nso exclula abanda <strong>de</strong> musica <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros professores que, durante a marcha da burlescaprocissb, alternavam com a orquestra infernal, tocando marchas alegres;


on<strong>de</strong> tanto nfio se podia conseguir, contentavam-se os folgaz<strong>de</strong>s com a orquestrainfernal.AS vezes cessava a mbsica, e os puxadores do carro marchavam,entoando cantigas alusivas ao trabalho que executavam, alternando tamb6mcom os serradores que cantavam, ora fazendo alus<strong>de</strong>s 3 velha que levavam napipa, ora outros cantos mais ou menos engraqados, ou em moda entre opovo.Quando os carregadores paravam para <strong>de</strong>scansar, ou <strong>de</strong> prop6-sit0 <strong>de</strong>fronte <strong>de</strong> alguma casa, a cujos moradores queriam obsequiar, os serradoresdancavam grotescamente, e um <strong>de</strong>les, principal, fazia em voz alta aleitura <strong>de</strong> uma composica"~ poetics, em que era cantada a vida da velha queia ser serrada.Passavam assim pelas ruas, at6 que na praca principal, se completavaa funq50, serrando-se a pipa, que em vez <strong>de</strong> mostrar serrada, no seu inte<strong>rio</strong>r,a velha, apresentava boa e variada ceia, e abundlncia <strong>de</strong> garrafas <strong>de</strong>vinho.As vezes fingiam serrrar a pipa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princ(pio e em todo ocorrer da procissa"~; ainda <strong>de</strong> muitos e diversos modos variavam o diverti-.mento, que por fim, acabava sempre com a ceia na praca ou em casa para issodisposta.Como se vi3, a serraqso da velha era uma folganqa inocente, masru<strong>de</strong>, e talvez um pretext0 para as ceias fartas e alegres no dia da suspenskdos preceitos da quaresma.Esse texto era perfeitamente compreendido pelas famllias, quetamb6m ceavam em festa.Dos antigos cantos que entoavam os serradores da velha, um.apenas ouvimos com segurancas dadas por quem no-lo repetiu, <strong>de</strong> que pertenciaele ao s6culo passado. Ei-lo:Serra, serra, serra a velha,Puxa a serra, serrador;Clue esta velha <strong>de</strong>u na netaPor Ihe ouvir falas <strong>de</strong> amor.Serra-ai! - serra-ai! - serra-ai! - puxa,Puxa-ai! - puxa, serrador!Serra a velha - ai! - viva a netaQue falou falas <strong>de</strong> amor.Serra! - a pipa 6 rija;Serra! - a velha 6 m6;Serra! - a neta B bela;Serra! - e serra j6.


Eis al mais ou menos como era a serra~iio da velha no sdculopassado.Tinha chegado o dia <strong>de</strong>ssa folgan~a, no ano <strong>de</strong> 1767, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que <strong>de</strong>spertaram ao canto dos passarinhos, que saudavarn a aurora, Irene eIn& n5o pensaram sen20 na alegre noite que haviam <strong>de</strong> passar, na casa dobom velho AntBnio Pires, a quern ia pagar JerBnimo Ll<strong>rio</strong> a aposta perdida,levando a farnllia a cear com o amigo e compadre.As duas rneninas, t50 sobejamente enfeitadas pela natureza, empregaramo dia todo em imaginar enfeites para seus forrnosos cabelos e finosvestidos <strong>br</strong>ancos.Enfim, as seis horas da tar<strong>de</strong>, a famllia <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong> pas-seem marcha da Gamboa para a cida<strong>de</strong>. A Sr? In&, lsidora e os dois ll<strong>rio</strong>seram levadas cada uma em sua ca<strong>de</strong>irinha; o velho carninhava atrhs, cavalgandosoberbo cavalo, e seguido <strong>de</strong> dois criados.As sete horas e pouco mais, da noite, AntBnio Pires <strong>de</strong>sceu doso<strong>br</strong>ado para receber ti porta da rua a famllia do seu amigo.


A casa <strong>de</strong> AntBnio Pires era na Rua Direita, a principal da cida<strong>de</strong>;no pavimento terreo, tinha ele o seu armaz6m comercial, com amplasproporcaes que se estendiam at6 em frente ao mar; no so<strong>br</strong>ado, preparadocom o maior luxo, morava ele, como em <strong>de</strong>smesurada solidb.Mais rico do que Jerbnimo, pois que na"o tinha mulher nemfilhos, expansivo, alegre e obsequiador. Ant8nio Pires cultivava nurnerosas eexcelentes rela$es na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, e naquela noite reuniraescolhida socieda<strong>de</strong> corn prop6sito tb evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> festejar JerBnimo Ll<strong>rio</strong>,que nb havia urn s6 convidadoj que nb fosse tamb6m negociante ou cava-Iheiro, que o seu amigo conhecesse, estimasse ou apreciasse.AntBnio Pires estava como adoidado pela alegria que Ihe causavaa presenca da famllia <strong>de</strong> Jer6nimo; a este dissera:- Tu 6s velho caloteiro arrependido, que comeCas hoje a pagarmeo que me <strong>de</strong>ves.A Sr? Inks disse, com os olhos irmidos <strong>de</strong> lagrimas <strong>de</strong> inexprimlvelcontentamento:- Comadre, tome o <strong>gov</strong>ern0 da casa; todos aqui e eu na coma,somos seus h6spe<strong>de</strong>s. . .E voltando-se para Irene e In6s, exclamou a rir, mostrandoJerBnimo:-- Meninas, aquele velho carrancudo e feio n b manda nada nestacasa; vocds hoje sa"o minhas filhas, toca a <strong>br</strong>incar!E, dirigindo-se a Isidora:- Devolvo-lhe a dita que estou gozando.. .- A mim? perguntou Isidora, admirada. . .- Na"o o sabe, nb o pensa; mas 6 assim; sou o <strong>de</strong>vedor; porbm,em vez <strong>de</strong> pagar-lhe a minha dfvida, pedir-lhe-ei novos favores. . . ha <strong>de</strong> cantar-nosos seus lundus. . .E voltando-se ainda para Irene e Ink, gritou-lhes:


- Meninas! Corram por ai, v b correr-me a casa. . . se forem capazes,adivinhem on<strong>de</strong> 15 o meu quarto <strong>de</strong> dormir, e se o adivinharem, entrem,e achargo dois irmzos muito parecidos, que guar<strong>de</strong>i para vocbs. . .As meninas, tendo consultado os olhos <strong>de</strong> sua mse, levantaram-se, correram para <strong>de</strong>ntro, e em <strong>br</strong>eve t~rncram A sala, trazendo cada uma nos<strong>br</strong>a~os um pequenino, <strong>br</strong>anco, felpudo e lindo cachorrinho.Antbnio andava as tontas pela sala.- Tu <strong>de</strong>itas-me a per<strong>de</strong>r as meninas, disse-lhe Jer6nim0, comovidopelo jubilo do amigo.- Vais ralhar em tua casa, velho enfezado.- Queres ver e apreciar o que tens feito?. .- Quero; vamos a isso.Jerbnimo chamou as filhas e or<strong>de</strong>nou que fossem cantar.Irene cantou, tremendo, e talvez por isso com maior efeito, umamodinha <strong>de</strong> musica suave e melancblica.!n&s cantou dois lundus com arrebatadora graca.Uma e outra mereceram gerais e sinceros aplausos.- Se foi assim que eu <strong>de</strong>itei-as a per<strong>de</strong>r, his <strong>de</strong> pagar-me o maleficio corn juros acumulados, disse Antbnio a Jerbnimo.Comecaram as dan~as, <strong>de</strong>pois outras senhoras cantaram, renovou-sea danca, os dois li<strong>rio</strong>s cantaram outra vez, instavam com lsidora paratamMm cantar, quando se anunciou prbximo o prkstito da serraciio dawe1 ha.Todas as senhoras correram para as janelas.Por acaso - quem sabe, se por acaso? - In& achou-se junto <strong>de</strong>lsidora, e afastada <strong>de</strong> sua miie.- Por que n5o quer cantar? perguntou lnbs a Isidora.- Porque prefiro ouvi-la.- Mas po<strong>de</strong> ouvir-me, e <strong>de</strong>ixar-se ouvir.- Depois que a vi e a ouco, jd nzo sei cantar: preparo-me somentepara chorar. . .- Por qu&?- Porque a amo. . .- Mas eu tamb6m a amo, e muito!. . .- Inks. . . Sinhazinha!. . .- Somos duas moCas e quase da rnesma ida<strong>de</strong>: que amor rnaisinocente e puro?. . . o irnico, que nZo po<strong>de</strong> fazer chorar. . .lsidora curvou a cabeca e rocou com os lsbios a m b <strong>de</strong> In&s queestava so<strong>br</strong>e o parapeito da janela.Ink estremeceu e corou sem saber por que, recebendo aquelefugitivo beijo.lsidora como que se arreceou da comocab da inocente menina, e


travou conversa~b com a senhora que Ihe ficava do outro lado.0 pr6stito da serra~go da velha se aproximava cada vez mais; algunscavaleiros, porBm, tomaram-lhe a dianteira levando os cavalos a trote;todos esses cavaleiros eram militares, e um <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>morando ainda mais otrote do seu ginete, fitou a menina tnds com olhos ti% audaciosos, que, passandoalBm da casa <strong>de</strong> Ant6ni0, nb se Ihe <strong>de</strong>u <strong>de</strong> que o vissem voltar paratras a cabe~a, continuando a olhar a bela filha <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong>.Esse cavaleiro era Alexandre Cardoso.Cinquenta rapazes trazendo archotes adiante do prBstito iluminavambastante a rua para que todos pu<strong>de</strong>ssem ter notado a contempla~binconveniente, com que o ajudan<strong>de</strong> oficial-<strong>de</strong>-sala parecera adorar o lindorosto <strong>de</strong> In&.Jer6nimo Ll<strong>rio</strong> ma1 disfar~ou a sua c6lera.S6 a menina lnds com pasmosa isen~b nem sequer <strong>de</strong>ixou per-ceber que vira o apaixonado cavaleiro.Na rua murmurava-se entre o povo: - Sb os dois Il<strong>rio</strong>s! - Queformosos que eles sb! - N5o serh o maldito oficial-<strong>de</strong>-sala quem mereca algumadaquelas flores! - Ainda bem que o velho JerBnimo 6 casmurro.Enfim o prBstito passava, e, ainda melhor, o carro parou <strong>de</strong>frontedas janelas <strong>de</strong> Antbnio e as dan~a se executaram no meio dos aplausos dopovo.Aproveitando o movimento e o ruldo, lsidora perguntou comvoz trdmula a Inds:- Quem B aquele cavaleiro, que tanto a olhou ainda h4 pouco?- Que cavaleiro?. . .- Por que dissimula? Vi bem que ele a ama. . .- Viu mais do que eu.- Mas quem B ele?. . .- Que me importa isso?. . .- Diga-me o seu nome. . .Inds admirou-se da altera~a"~ da fisionomia <strong>de</strong> Isidora, para quemlevantara os olhos, e sem mais hesitar disse em voz baixa:- Chama-se Alexandre Cardoso.0 oficial<strong>de</strong>-sala do vice-rei?- Ele mesmo.lsidora exalou um gemido ma1 abafado, e ficou silenciosa etriste.Inds na"o sabia o que pensar <strong>de</strong>sse abalo da sua bela mestra <strong>de</strong>mosica.0 prestito da serra~b da velha seguiu seu caminho.Logo <strong>de</strong>pois Antbnio Pires levou seus convidados para a mesa daceia que foi profusa e rica.


AS onze horas da noite Jerbnimo voltou com sua famllia para achAcara da Gamboa, e, atravessando as ruas da cida<strong>de</strong>, ainda viu mo<strong>de</strong>stassocieda<strong>de</strong>s ceando em esteiras estendidas As portas <strong>de</strong> casas terreas.A noite ia adiantada e o caminho para a Gamboa era, como ficoudito, solitA<strong>rio</strong> e arriscado, mas JerBnimo estava tranqiiilo, porque alemdos oito escravos carregadores das ca<strong>de</strong>irinhas, levava dois pajens escolhidos.0 velho negociante nb contava corn Alexandre Cardoso.0 vingativo, soberbo e <strong>de</strong>smoralizado oficial-<strong>de</strong>-sala jd <strong>de</strong>s<strong>de</strong>alguns dias tinha concebido o plano da sua vinganp e s6 esperava ensejooportuno para execut6-lo.Tendo visto a famllia <strong>de</strong> Jerbnimo as janelas da casa <strong>de</strong> AntBnioPires, apenas chegou 2 Praqa do Carmo, <strong>de</strong>spediu-se dos oficiais corn quepasseava, tendo antes dito em voz baixa algumas palavras a dois que eramseus lntimos, e que mais tar<strong>de</strong> a ele foram reunir-se em lugar aprazado.Em uma hora Alexandre Cardoso tomou todas as medidas queIhe faltavam, e as <strong>de</strong>z da noite, oito possantes soldados do regimento velhodisfarqados em maltrapilhos e escondidos no bosque, esperavam a famllia<strong>de</strong> JerBnimo.0 plano era simples, ousado, e t5o impru<strong>de</strong>nte que s6 se podiaexplicar pelos hdbitos <strong>de</strong> impunida<strong>de</strong> e pela cega e frenbtica paix50 <strong>de</strong> AlexandreCardoso: simular-se-ia um ataque <strong>de</strong> IadrGes, comecando por algunstiros dados ao acaso para espantar os cavalos, imediatamente seriam atacadasas ca<strong>de</strong>irinhas, as senhoras <strong>de</strong>spojadas <strong>de</strong> j6ias, e no meio da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, In&<strong>de</strong>via ser arrastada para o bosque que estava completamente fora <strong>de</strong> seu conhecimentoe <strong>de</strong> suas previs6es.0 algoz se reservava papel sublime: acudiria intrepid0 aos tiros,e chegaria ainda a tempo <strong>de</strong> salvar as vltimas, e <strong>de</strong>.. . encontrar In& nobosque.Pouco fattot! para que completamente se realizasse a malvadatrama <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, que entretanto nZo pu<strong>de</strong>ra calcular corn umaintervencb, ou corn um potente auxllio.As quatro ca<strong>de</strong>irinhas seguidas por Jerbnimo chegavam ao pontomais solit6<strong>rio</strong> e esca<strong>br</strong>oso do caminho, quando <strong>de</strong> sdbito estrondaram algunstiros <strong>de</strong> espingarda; os cavalos espantaram-se, urn dos pajens caiu e per<strong>de</strong>u ossentidos, o outro foi arrebatado para o lado contrd<strong>rio</strong> do bosque pelo animalque cavalgava, o velho negociante ocupado a domar o cavalo achou-se <strong>de</strong> improvisolancado por terra e preso nos <strong>br</strong>aqos <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido, sem dQvidasalteador.As senhoras foram arrancadas das ca<strong>de</strong>irinhas, e os escravos carregadores<strong>de</strong>stas, obe<strong>de</strong>cendo a generoso impulsa, comecaram uma luta <strong>de</strong>sigual,pois que estavam <strong>de</strong>sarmados.


nancebo?N b pensas que <strong>de</strong>vemos gran<strong>de</strong> servi~o a esse vaiente-. Salvou-nos mais que as vidas, salvou a honra <strong>de</strong> nossas filhas.- ln6s, vou mandar colher informac6es so<strong>br</strong>e o carster e procedimento<strong>de</strong> Isidoro.- Para qu6?- Se ele for como parece. . .- Entio?. . .-- Oual <strong>de</strong> nossas filhas julgas que <strong>de</strong>vemos dar-lhe emcasamento?- A Nhanha" B a rnais velha. . .- Mas foi a Sinhazinha que ele precisamente salvou, atacando eferindo o seu rnalvado raptor.


Por rnais ativos que fossern os trabalhos da reconstruck da casa<strong>de</strong> Marcos Fulgiincio or<strong>de</strong>nada pelo Con<strong>de</strong> da Cunha e a custa do seu bolsinho,em cerca <strong>de</strong> vinte dias estava apenas adiantada, mas ainda urn poucolonge <strong>de</strong> terrninacb das o<strong>br</strong>as.Marcos Ful@ncio e Fernanda estavarn rnorando corn sua filha napequena casa que fora <strong>de</strong> seu rnarido, e que ela na"o quisera <strong>de</strong>ixar, ernborarnuito rica se achasse.Erniliana lirnitara-se a rnandar lirnpar a casa e a orn8-la corn extrernasirnplicida<strong>de</strong>; rnuito recente era a afronta <strong>de</strong> que fora vltirna, e aindana"o podia pensar nos gozos <strong>de</strong> urna vida <strong>br</strong>ilhante que Ihe proporcionava afortuna.A filha do carpinteiro tinha o coraca"o cheio <strong>de</strong> bdio, aspiravavingar-se do seu algoz; mas <strong>de</strong>vorava em sil6ncio as lern<strong>br</strong>ancas da afronta;porque seu pai ignorava a sua <strong>de</strong>sonra, e ela sabia <strong>de</strong> quanto era capaz MarcosFulgiincio, t% po<strong>br</strong>e corno honesto, e ta"~ respeitador dos preceitos damoral e da religib, corno zeloso at6 o extremo da reputacb <strong>de</strong> sua farnllia.Erniliana, apesar <strong>de</strong> vi4va e portanto emancipada, tinha rnedodo furor <strong>de</strong> Marcos Fulgiincio.Na noite da serracb da velha, as oito horas pouco rnais ou rne-nos urna rnulher, trajando corn eleggncia, veio baterporta da casa da Ruado Parto, procurando Marcos Fulgiincio e foi recebida na sala, on<strong>de</strong> estavarno carpinteiro, Fernanda e a filha viQva.Erniliana estremeceu, reconhecendo Maria, que oferecendo arnb a Marcos FulgtZncio, disse-lhe:- Sua rnulher 15 urna santa, sua filha urna vltirna que se resigna, es6 o senhor 6 forte, e capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se cornigo.-- Virgern Nossa Senhora! exclarnou Fernanda.Erniliana ficou muda e a trerner.0 carpinteiro disse:


Fale, minha no<strong>br</strong>e senhora.- Vou ferir-lhe o coraqa"~; tenha por6m pacibncia para ouvir-meat6 o fim e estou certa <strong>de</strong> que se enten<strong>de</strong>r6 comigo.0 carpinteiro cruzou os <strong>br</strong>aqos so<strong>br</strong>e o peito.- 0 senhor tem sido piedosamente enganado por sua mulher esua filha. . .- Perdb, minha no<strong>br</strong>e senhora! mas. . .Marcos Fulg6ncio queria dizer, por6m ngo disse - ngo creio;porque viu a perturbacgo e o susto <strong>de</strong> Fernanda e <strong>de</strong> Emiliana.Maria continuou impavida:- Quando na noite do incgndio da sua casa, o senhor foi levadoquase moribund0 para a Santa Casa <strong>de</strong> Miseric<strong>br</strong>dia, sua virtuosa mulher correuem <strong>de</strong>sespero, on<strong>de</strong> Ihe levavam o esposo. . .- E Emiliana?- Ficou na casa a: ruinada da velha perversa, que <strong>de</strong> surpresa <strong>de</strong>ua notlcia da sua morte B filha infeliz, que soltou um grito e <strong>de</strong>smaiou. . .- E <strong>de</strong>pois?. . .- A velha introduziu no quarto on<strong>de</strong> estava sua filha um oficialmilitar, e fechou a porta,- Alexandre Cardoso! <strong>br</strong>adou Marcos Fulgbncio, levantando-se.- Ele mesmo, que abusou da inocente que estava <strong>de</strong>smaiada.Marcos Fulg6ncio agarrou com forca nos punhos <strong>de</strong> Emiliana,o<strong>br</strong>igando-a a encarh-lo e perguntou-lhe com os <strong>de</strong>ntes cerrados:- E verda<strong>de</strong>?A filha respon<strong>de</strong>u, gemendo.- E verda<strong>de</strong>.0 carpinteiro largou a filha, e fu<strong>rio</strong>so, disse B mulher:- Abandonaste Emiliana!. . .- E tu que morrias?!!! exclamou Fernanda.- Sabias que o malvado tentava seduzir nossa filha!- E tu que morrias?!!! repetiu a esposa com veemhcia.- Devias <strong>de</strong>ixar-me morrer! disse Marcos FuIgGncio com raiva.- E tu me <strong>de</strong>ixarias morrer?0 carpinteiro voltou-se para Maria e perguntou-lhe:- Que mais?. . .- Tenha a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentar-se, disse sossegadamente Maria.Marcos Fulgbncio levou as mzos calejadas B fronte, e soltandoum gemido <strong>de</strong> leg0 ferido, sentou-se:Maria prosseguiu com horrivel frieza:- Contei-lhe em resumo, a verda<strong>de</strong>ira hist<strong>br</strong>ia da sua maior<strong>de</strong>sgra~a: aquela menina foi vitima inocente, e sua mulher, tgo culpada porabandon6-la, como o senhor foi culpado por cair, lanqando golfadas <strong>de</strong> san-


gue. Agora, redigamos: a n6doa que manchou a reputa~b <strong>de</strong> sua filha ou foilavada pelo casamento com Cltllio hias, <strong>de</strong> quem a Sr? Emiliana 6 hoje vibva,ou se ainda subsiste. . .- Subsiste! disse sinistramente Marcos FulgGncio.- Ou se ainda subsiste, somente po<strong>de</strong> lavar-se <strong>de</strong> todo por meiodo casamento com Alexandre Cardoso. ..- E tu queres? perguntou ru<strong>de</strong> e asperamente o carpinteiro Bfiiha.Emiliana fez urn movimento <strong>de</strong> horror.- Em tat caso, disse Maria, sempre inalterdvel e refletidamentefria; em tal caso, hA s6 urn caminho a seguir: 6 o caminho da vingan~a.- Minha no<strong>br</strong>e senhora, murmurou terrlvel Marcos Fulg&ncio:bem-vinda seja! N6s nos enten<strong>de</strong>remas.- A senhora tl uma tenta~iio que quer <strong>de</strong>itar a per<strong>de</strong>r meu mari-do! exclarnou Fernanda.- Sil6ncio! <strong>br</strong>adou Marcos.- Que preten<strong>de</strong> fazer? perguntou Maria.--b-o se pergunta.- Ao contrA<strong>rio</strong>, pergunta-se; entregue a si mesmo, amanha" MarcosFulg6ncio seria r6u <strong>de</strong> assassinato, ou ainda pior, <strong>de</strong> tentativa <strong>de</strong> assassinato,e altlm <strong>de</strong> dar pbblico testemunho da <strong>de</strong>sonra da filha, iria pagar naforca o crime perpetrado.- Que me importa a forca? Deixarei um exemplo <strong>de</strong> justlssimavinganqa. . .- Que a lei <strong>de</strong> Deus con<strong>de</strong>na.0 carpinteiro rugiu surdamente.- HA mais fAcil, mais seyura, mais dolorosa e na"o pecAvel vinganqa,disse Maria.- Qual?Amanh5 v8 falar ao vice-rei. . .O protetor do monstro?. . .- Procure no palAcio Germiano, o criado do Con<strong>de</strong> da Cunha,d6-lhe o seu nome, peqa uma audi6ncia particular do vice-rei, e apresente aeste a sua queixa. VB, ou <strong>de</strong> manhz, Bs sete horas, ou ?I tar<strong>de</strong>, ?Is cinco.E o vice-rei mandare levantar um so<strong>br</strong>ado so<strong>br</strong>e a po<strong>br</strong>e casaque fez construir para o carpintsiro! disse com ironia pungente MarcosFulgencio.-- Espere oito dias, pelo castigo do criminoso.- E se no fim <strong>de</strong> oito dias o criminoso ostentar ainda a sua impunida<strong>de</strong>,e em vez <strong>de</strong> receber a puniflo merecida, mandar-me pren<strong>de</strong>r econ<strong>de</strong>nar-me aos trabalhos pbblicos?- - Dada essa hipbtese, hA s6 dois recursos.


- Quais?- Ou submissa"~0 carpinteiro bateu raivoso com o p6.- Ou comqar a vingan~a pel0 vice-rei.<strong>de</strong> escravo ao po<strong>de</strong>r que abusa e provoca. . .-- Miseridrdia! <strong>br</strong>adou Fernanda.- Ela tem raza"o, disse Emiliana; se o vice-rei n b fizer justi~a,haverh na"o um, por6m dois criminosos, e dos dois o primeiro sera o vice-rei.-- Ainda bem! exclamou h4arcos Fulgbncio.- Estamos, pois, entendidos? perguntou Maria.- Estamos, disse o carpinteiro.- Ainda do, tornou Emiliana.- Por qub?- Porque na"o 15 meu p?i, sou eu que <strong>de</strong>vo ir pedir justi~a aovice-rei.- 6 assim, disse Maria.- Meu pai me acompanharh ao palficio, e serei eu auem pedirhaudidncia ao vice-rei.- At6 que enfim! tornou Maria.- E se o Con<strong>de</strong> da Cunh_a ainda, por oito dias, <strong>de</strong>ixar impune oseu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, justi~a seja feita por meu pai, pois que nzo temos<strong>gov</strong>ern0 que no-la fa~a.Maria sorriu-se e disse:- Na"o hh <strong>de</strong> ser preciso.


0 Con<strong>de</strong> da Cunha era madrugador, e especialmente no verso,preferia trabalhar nas horas frescas que prece<strong>de</strong>m ao intenso calor tropical.Sentado B mesa, o vice-rei examinava diversos paphis relativos Aadministraqa"~ da gran<strong>de</strong> colbnia, e muito atentamente o alistamento doshabitantes da Capitania, a que mandara proce<strong>de</strong>r, e que da cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> algumasvilas jii tinha chegado sem ddvida muito incornpletarnente executado;causava-lhe estranheza e pena o ndmero extraordinh<strong>rio</strong> <strong>de</strong> jovens solteiros <strong>de</strong>arnbos os sexos, e maldizia <strong>de</strong> urn fato que, embora aproveitasse bastante aoex<strong>br</strong>cito, era evi<strong>de</strong>ntemente nocivo 6 moralida<strong>de</strong> e ao progress0 da col8nia.<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do aumento da popula~Zo.0 vice-rei meditou por muito tempo so<strong>br</strong>e o assunto, e enfim,parecendo ter assentado em alguma provid6ncia, passou a ler o.utros paphis,encrespou a fronte, encontrando as nomeaqaes dos comandantes e oficiais donovo terco, propostas por Alexandre Cardoso, e tra~ando com a pena os nomesdos candidatos, escreveu em nota: "proponha outros".Interrompendo o trabalho para almoqar, voltava <strong>de</strong> novo aele, quando Germiano Ihe apareceu.0 Con<strong>de</strong> da Cunha olhou para o mudo, que esten<strong>de</strong>ndo o <strong>br</strong>aqo,apontou corn o <strong>de</strong>do para o lado da entrada do paliicio, e aproximando-se,entregou-lhe uma folha <strong>de</strong> papel.0 vice-rei leu: "a viuva <strong>de</strong> Clhlio hias".- Clhlio hias! 0 velho usura<strong>rio</strong> que rnorreu?0 mudo fez sinal afirmativo.- Faze-a entrar para aqui.Germiano tinha regalias excepcionais no palicio, e todos respeitavamnele o ca"o fie1 e estimado do vice-rei.Dal a pouco Emiliana, trajando pesado luto, entrou conduzidapelo mudo, que imediatamente se refirou.A jovem e bela menina estava comovida e trgrnula; mas havia no


seu rosto alguma coisa <strong>de</strong> enhrgica <strong>de</strong>cisb.- a vidva <strong>de</strong> ClBlio bias? perguntou o con<strong>de</strong>.- Sou, Sr. Vice-Rei; e sou tamb6m a filha do carpinteiro Marcos.Fulgbncio.Ouvindo esse nome, o vice-rei fez um movimento; mas conteveselogo, e disse friamente:- Po<strong>de</strong> falar.- 0 Sr. Vice-Rei mandou reconstruir B sua custa, a casa <strong>de</strong> meupai, <strong>de</strong>vorada pelo incbndio, cuja origem at6 hoje nZo se explicou; ha, por6m,outra <strong>de</strong>sgraqa muito maior, <strong>de</strong> que fomos vltimas nessa noite e que oSr. Vice-Rei n b po<strong>de</strong> reparar.- E qua1 B?. . .- 0 ultraje feito 4 minha honra, disse Emiliana, abaixando a voze a cabeca.- Se houve crime, nb faltar5 o castigo; mas, on<strong>de</strong> as provas docrime?- Sr. Vice-Rei, nb venho pedir a exposi~Zo pdblica da minhavergonha para alcanqar vinganqa, aviltando-me aos olhos <strong>de</strong> todos ...- EntZo que quer?- 0 Sr. Vice-Rei 6 juiz e B pai do povo que <strong>gov</strong>erna, eu nb re-queiro ao juiz, queixo-me ao pai.0 con<strong>de</strong> sentiu a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za da observa~Zo e reconheceu que Ihefalava uma jovem, que recebera alguma educaqZo.- Ouem foi o seu ofensor? perguntou.- Um hornem que se co<strong>br</strong>e com o nome e com a proteqb doSr. Vice-Rei.- 0 seu nome?- Alexandre Cardoso.0 con<strong>de</strong> ja esperava ouvir esse nome, e por isso nb mostrouabalo, nem surpresa.- Conte-me a historia do seu infortdnio, disse ele.Emiliana fez um supremo esforqo para dominar o pejo que Ihepeava a lingua, e com os olhos no cHa"o, comecou a falar.0 vice-rei escutava a historia <strong>de</strong> que sabia meta<strong>de</strong>; havia, porem,nela, um ponto obscuro e duvidoso que <strong>de</strong>sejava esclarecer: erii i e Emilianafora vitima da violbncia, ou cdmplice seduzida, ou especuladora enganada.Pouco a pouco a inocbncia e a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Emiliana foram entrandona alma do vice-rei.Mas, enquanto o Con<strong>de</strong> da Cunha ouvia com interesse animadora filha do carpinteiro, uma cena violenta se passava no sagub do palhcio.Alexandre Cardoso chegou; e, ao entrar no sagua"o, esbarroucom Marcos Fulgkncio, que, passeando, esperava Emiliana.


0 ajudante oficial<strong>de</strong>-sala estremeceu, supondo que o carpinteirovinha falar ao vice-rei, e dirigiu-se a ele com fingida amabilida<strong>de</strong>:- Marcos Fulgi2ncio! Estimo ver-te; a tua casa estarh acabada<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quinze dias, e. . .Alexandre Cardoso estacou, vendo os traqos <strong>de</strong>scompostos dorosto <strong>de</strong> Marcos.As naturezas no<strong>br</strong>es, generosas e ru<strong>de</strong>s nk sabem fingir: o carpinteiroolhava Alexandre Cardoso com raiva amea~adora, e no convulsardos Idbios, mostrava-lhe alvejantes os <strong>de</strong>ntes cerrados.- Que tens, Marcos FulgEncio? Que aspect0 feroz B esse? perguntouo soberbo oficial, sorrindo com <strong>de</strong>sprezo.- Siga o seu caminho! murmurou rouca e sinistramente o carpinteiro,tendo jh a cabeca perdida.Alexandre Cardoso voltou-the as costas, e disse aos soldados daguarda:- Ponham fora daqui esse doido.Como se realmente houvesse endoi<strong>de</strong>cido o carpinteiro rugiuterrlvel, e atirou-se fu<strong>rio</strong>so so<strong>br</strong>e o seu inimigo; mas numerosos <strong>br</strong>acos oagarraram e travou-se luta <strong>de</strong>sigual, em que o carpinteiro contra os soldados,um contra vinte, <strong>de</strong>sesperado se <strong>de</strong>batia.0 ruldo chegou aos ouvidos do vice-rei, que mandou saber o quehavia, e Alexandre Cardoso, correndo a informd-lo, recuou corno espavorido,encontrando o con<strong>de</strong> em companhia <strong>de</strong> Emiliana.Simulando nZo ter percebido o espanto do seu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala,o con<strong>de</strong> perguntou-lhe:- Que h8 18 embaixo?. . .Alexandre Cardoso dominara-se logo, e respon<strong>de</strong>u, adivinhandoe arrostando toda a situaqZo.- Senhor Vice-Rei, 18 embaixo o pai <strong>de</strong>sta moqa insultou-me, eousou ameaqar-me; ca em cima esta mulher me caluniava sem dbvida.- Como o sabe?- No ernpenho <strong>de</strong> hostilizar-me, odientos inimigos, explorandoa RerversZo <strong>de</strong> uma aventura, fizeram <strong>de</strong>la o seu instrumento, e eta e elesconvenceram o mais estbpido dos pais <strong>de</strong> que eu fui sedutor <strong>de</strong> sua filha. . .Emiliana, tomada <strong>de</strong> horror, olhou para o Con<strong>de</strong> da Cunha enZo ousou falar.- Era o que eu estava pensando! exclamou o vice-rei; e com intrigassemelhantes me tomam o tempo, e perturbam o espirito! Que <strong>de</strong>stino<strong>de</strong>u ao pai <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>sgraqada?- Vou mandh-lo recolher a ca<strong>de</strong>ia, se o Sr. Vice-Rei n b or<strong>de</strong>naro contrh<strong>rio</strong>. . .- Estou hoje <strong>de</strong> bom humor; dormi bem e almocei ainda me-


Ihor: haja perdzo! A esta moca, basta a sua vergonha, ao pai, a sua loucura;faca entregar a filha ao pai, e que arnbs nos <strong>de</strong>ixern tranqiiilos.0 ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala curvou-se respeitosamente.Emiliana, profundarnente ressentida, fez uma simples v6nia aovice-rei, e saiu a<strong>br</strong>asada em c6lera.Marcos Fulg6ncio estava subjugado no sagub do palAcio; mas,em obediencia Bs or<strong>de</strong>ns do vice-rei, foi solto, e acompanhou Erniliana <strong>de</strong>volta para casa.- Disseste tudo ao vice-rei?- Tudo.- E entb?- Justiqa seja feita contra o vice-rei, que 6 o primeiro criminoso.


Durante dois dias, que se passaram <strong>de</strong>pois da noite da serraqbda velha, a populaqZo da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro s6 se ocupou <strong>de</strong> dois assuntos:do atentado contra a famllia <strong>de</strong> Jer6nimo Ll<strong>rio</strong>, e do encontro <strong>de</strong>Alexandre Cardoso com o carpinteiro Marcos Fulgdncio no saguzo do palhcio;a audidncia dada pelo vice-rei a Emiliana foi geralmente sabida, e os fatos,comentados e exagerados, tomaram proporq5es romanescas, mas em todasou em quase todas as diversas relaqBes, o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala era gravementecomprometido.Assim nas mil hist6rias do acontecimento do caminho da Gamboa,a parte que tomara na luta o jovem Isidoro, que trajava vestidos feminis,a<strong>br</strong>ia espaqo a contos <strong>de</strong> imaginaqzo; corria, porbm, como certo que oatentado tinha por exclusive fim o rapto da menina Inds, <strong>de</strong>terminado porAlexandre Cardoso; relativamente 3 filha do carpinteiro, contavam-se diversosromances, a comeqar da noite do incdndio, e cujos irltimos capltulosse <strong>de</strong>senvolviam a custa do casamento do velho usurh<strong>rio</strong> Clblio hias com apo<strong>br</strong>e Emiliana e da en<strong>br</strong>gica resoluqb tomada por esta, <strong>de</strong> ir pessoalmentedar queixa ao vice-rei contra Alexandre Cardoso; al6m <strong>de</strong> outras invenqces,pretendiam uns que o Con<strong>de</strong> da Cunha maltratara e <strong>de</strong>spedira corn <strong>de</strong>sprezocruel a po<strong>br</strong>e moqa queixosa; queriam outros que o con<strong>de</strong> se dispunha a castigarseverarnente o seu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala; mas que tendo na mesmaocasib Marcos Fulgdncio esbofeteado no saguzo do palhcio ao ofensor <strong>de</strong>sua filha, o vice-rei <strong>de</strong>ra este por suficientemente castigado, e mandara emboraa ofendida sem reparaqgo, e o esbofeteador com perfeita impunida<strong>de</strong>.Havia, enfim, quem assegurasse que esta questgo se resolvera, ajustando-se ocasamento <strong>de</strong> Alexandre Cardoso com a viirva <strong>de</strong> Cl6lio hias.0 Con<strong>de</strong> da Cunha tinha mandado chamar Jer6nimo Ll<strong>rio</strong>, <strong>de</strong>quem ouviu por mihdo quanto Ihe acontecera, e o verda<strong>de</strong>iro motivo dodisfarce <strong>de</strong> Isidoro; garantindo ao negociante a seguranqa pessoal <strong>de</strong>sse jovem,or<strong>de</strong>nou-lhe que o trouxesse logo P sua presenqa.


!Ilsidoro recebeu do vice-rei cumprimentos pela sua intrepi<strong>de</strong>z evalor, e passou em seguida por minucioso interrogat6ri0, sendo at6 o<strong>br</strong>igadoa <strong>de</strong>clarar quantos golpes <strong>de</strong> espada supunha ter acertado, e que pontos docorpo dos salteadores, com quem se batera, acreditava ter ferido.Infelizmente, faltava um objeto que estiverat em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Isido-/Iro e que talvez pu<strong>de</strong>sse indicar os criminosos: a espada que o jovem arrancaradas m5os <strong>de</strong> urn <strong>de</strong>les, e com que combatera, tinha <strong>de</strong>saparecido, ficandoesquecida no lugar do atentado.Alem <strong>de</strong>stas averigua~Ges, feitas pelo vice-rei, o ajudante oficial<strong>de</strong>-salamostrava-se muito empenhado na <strong>de</strong>scoberta dos salteadores, e o juizcompetente a<strong>br</strong>ira <strong>de</strong>vassa.110s dias, porbm, iam correndo, Alexandre Cardoso continuava aser ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, ostentando mais influencia e po<strong>de</strong>r do que nunca,e nem Emiliana, nem JerBnimo, nem a moralida<strong>de</strong> publica recebiam satisfaqZoalguma.0 povo murmurava por toda parte, nZo era mais Alexandre Cardoso,era o Con<strong>de</strong> da Cunha o mais <strong>de</strong>testado e recriminado. Dizia-se quetinham sido mandadas para Lisboa as mais graves queixas'c' ontra o vice-rei.AntBnio Pires chegava a comprometer-se, manifestando publicamentee com impru<strong>de</strong>nte veembncia, as mais acres censuras contra o <strong>gov</strong>ern0do Con<strong>de</strong> da Cunha.0s pasquins inju<strong>rio</strong>sos repetiam-se, aparecendo quase todas asmanhZs nas pare<strong>de</strong>s das casas, ou largados pelas ruas. I:Dir-se-ia aue se cons~irava uma revolta. ;IMais ainda: as senhoras cornetpvam a pronunciar-se; em todas ascasas, nos encontros casuais, nas visitas, as mZes <strong>de</strong> famllia, como as donzelas,maldiziam do vice-rei, que as nb protegia contra Alexandre Cardoso eseus dcios, tornados ameaqas vivas e impunes que traziam em risco a inocenciae a honra das rnais recatadas.I!Agravava este justo so<strong>br</strong>essalto do sexo mimoso e fraco, o <strong>de</strong>sgostoproveniente das providgncias severas, mas bern aconselhadas, que tomarao bispo proibindo certas solenida<strong>de</strong>s religiosas t~ noite, a mnversa~bcom as senhoras, e a corte feita a elas, as portas e nos Bt<strong>rio</strong>s das Igrejas. e algunscostumes ridiculos que se misturavam com as cerirndnias das procisfies,e s6 serviam para profano divertimento.Alem <strong>de</strong>ssas medidas, que diminulam as ocasiGes <strong>de</strong> colheitas <strong>de</strong>tributos <strong>de</strong> adora~b para as senhoras, revoltavam-se estas contra as institui-~Ges <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> recolhimento for~ado para muitas esposas e filhas, verda<strong>de</strong>iroscBrceres em que a vonta<strong>de</strong> dos pais e dos maridos tinham recurso seguro,que servia B sua prepotbncia. 1Realmente a Bpoca nZo era lisonjeira para o belo sexo, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>alguns anos, ressentindo e <strong>de</strong>sgostoso, aproveitara entZo o sentimento ge-I1I/


al <strong>de</strong> reprova~iio do <strong>gov</strong>erno do Con<strong>de</strong> da Cunha, e tomava parte consiaeravelna oposiqa"~ <strong>de</strong> murmuraq6es e <strong>de</strong> acerbas censuras.E nb se tenha em pouco essa oposiqSo feminil; po<strong>de</strong> muito a diiriae insistente pregaczo da mk, da esposa, dasfilhasedas irmzs, quefalam livrementeem casa, e que sabem convencer agradando, ameigando ou chorando;e podiam muito as senhoras, que, arriscando-se menos que os homens Aspersegui~aes da autorida<strong>de</strong>, cantavam ao cravo, ou l guitarra e l viola, oslundus e as cantigas corn alus6es epigramaticas ao Con<strong>de</strong> da Cunha, ao seuajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, e aos abusos e escindalos que se observavam.0 que al6m <strong>de</strong> tudo isto preocupava alguns esplritos, e nenhumexplicava, era uma notivel modifica~b nas praticas do <strong>gov</strong>erno do Con<strong>de</strong> daCunha, que sempre suspeitoso e violento, esmagava com pronto castigo e sistemaiticaopresszo as mais leves <strong>de</strong>monstrafies <strong>de</strong> censura ou <strong>de</strong> reprovaqZodos seus atos, e que entiio por tolerdncia, ou por <strong>de</strong>sprezo, <strong>de</strong>ixava livre cursois queixas do povo, na"o or<strong>de</strong>nara prisiio alguma!l e nem ao menos fizeraperseguir algum suspeito <strong>de</strong> fixar ou espalhar os pasquins, em que alias era' ele o mais injuriado.Mas nem por essa generosida<strong>de</strong> o vice-rei era poupado ou aindapor essa ostentaeo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo do povo murmurador; o povo se mostravacada dia mais hostil a ele, nb Ihe perdoando a im'punida<strong>de</strong> <strong>de</strong> AlexandreCardoso, que alias se exaltava corn a sua confian~a, sendo conservado nocargo <strong>de</strong> ajudante oficial<strong>de</strong>-sala.Era esta a situacb da capital do Brasil-ColBnia nos hltimos diasda primeira quinzena do mb <strong>de</strong> marqo, quando o vice-rei mandou anunciarsolene parada dos regimentos <strong>de</strong> linha e auxiliares ou <strong>de</strong> millcia da cida<strong>de</strong>,para 19 do mesmo mgs, ou dia <strong>de</strong> S b Jose, santo dolnome do rei.Evi<strong>de</strong>ntemente a festa n80 era feita ao hem-aventurado do cbu, esim ao bem-aventurado da terra.Na manha" seguinte o pasquim disse:0 nosso Con<strong>de</strong> da CunhaNem do c6u respeita a lei;No furor da adula~bFurta do santo para o rei.Tem razz0 o Vice-Rei;A conscidncia o aterra;Descr6 os santos do c6u,Agarra-se ao rei da terra.0 Condq da Cunha, se leu ou teve conhecimento <strong>de</strong>ste pasquim,<strong>de</strong>sprezou-o, como <strong>de</strong>sprezara outros.No meio <strong>de</strong>ste pronunciamento <strong>de</strong>.<strong>de</strong>sgosto geral, Jer6nimo seI1I'


conservava silencioso, e esperava: espantava-se da longanimida<strong>de</strong> do Con<strong>de</strong>da Cunha; mas ainda confiava nele.Velando implaci4vel pela vinganqa que jurara tomar <strong>de</strong> AlexandreCardoso, Maria nb se <strong>de</strong>scuidava.Dois dias <strong>de</strong>pois daquele em que Emiliana falara ao vice-rei,Maria voltou B casa da Rua do Parto, e pediu informaqBes do que se passarana audikncia.Emiliana <strong>de</strong>u-lhe conta <strong>de</strong> tudo, acabando por dizer que o con<strong>de</strong>ouvira com fingida bonda<strong>de</strong>.- Fingida por qug?11- Porque, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nos apareceu Alexandre Cardoso, nb meaten<strong>de</strong>u mais, e <strong>de</strong>spediu-me <strong>de</strong> modo revoltante.- 6timo sinal, disse Maria.- Como?- 0 Con<strong>de</strong> da Cunha fingiu somente para com Alexandre Cardoso.Esperemos mais seis dias.- Mais cinco apenas, que completariio oito,!que prometi espe-11rar, disse Marcos Fulgkncio, levantando-se.- E <strong>de</strong>pois? perguntou Maria.- Depois?. . . isso fica por minha conta.- Que far& po<strong>br</strong>e Marcos?- O<strong>br</strong>a do meu oflcio, minha no<strong>br</strong>e senho'ra; levantarei umaforca. . . para mim.Fernanda segurou instintivamente, corn forqa, o <strong>br</strong>aqo do marido,exclamando: 111- Santo nome <strong>de</strong> Jesus!. . . Nossa Senhora qub te livre <strong>de</strong> tal!- Senhor Marcos Fulgkncio, disse Maria; daqui a cinco dias voitarei;espere-me.


Alexandre Cardoso afetava aos olhos <strong>de</strong> todos serenida<strong>de</strong> e seguranca;mas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, receava talvez bem pr6xima a sua <strong>de</strong>sgraca, porquetarnbbm a ele espantava a cega confianca, corn que o vice-rei o amparavacontra a animadversb geral, apesar da gravida<strong>de</strong> dos dltimosacontecimentos.Al6m disso, outras contrarieda<strong>de</strong>s o afligiam; o jog0 absorvera-Ihe quanto dinheiro tinha, e quanto pu<strong>de</strong>ra tomar <strong>de</strong> empr6stimo B bolsados amigos; a morte <strong>de</strong> Cl6lio fiias o privara <strong>de</strong> uma fonte <strong>de</strong> recursos, e arecusa do vice-rei B nomeacb dos oficiais para o novo terqo o <strong>de</strong>ixava emdificllima e triste posiqiio; por bltimo, a sua infeliz paixzo pela menina Ink,o mau resultado <strong>de</strong> sua criminosa tentativa, na noite da serraqzo da velha,enchiam-lhe <strong>de</strong> fel o corae5o.Entretanto, o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala dissimulava as perturba-@es do seu Inimo; mas, irritado e <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> tirar vinganqa daquele queprincipalmente fora a causa <strong>de</strong> haver abortado o seu plano para o rapto <strong>de</strong>In& e j6 perfeitamente informado <strong>de</strong> quem era lsidoro e do motivo do seudisfarce, <strong>de</strong>terminara persegui-lo a todo transe, e recrutB-lo para soldado.Nb entrava no seu plano a id6ia <strong>de</strong> que Jer6nimo Ll<strong>rio</strong> quisessepara seu genro um jovem sem fortuna e sem futuro, como era Isidoro, quesomente se recomendava por alguma educa~b literaria e artlstica, que osfra<strong>de</strong>s franciscanos do convent0 <strong>de</strong> vila <strong>de</strong> Santo Antanio <strong>de</strong> SB Ihe tinhamdado, movidos pelo interesse que lhes inspirava a bela inteligencia daquelemenino.Alexandre Cardoso compreen<strong>de</strong>u que nb era pru<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>poisdo que acontecera, fulminar diretamente corn os raios da sua vinganca osimpatico Isidoro; estudara, pois, e calculara urna provid2ncia que compreen<strong>de</strong>sselsidoro pela regra geral, e dirigiu-se ao con<strong>de</strong> da Cunha corn urnbando jA redigido, em que eram <strong>de</strong>clarados soldados <strong>de</strong> linha todos quantosat6 a data do bando eram solteiros e nbtinham of lcio ativo, ou estabeleci


mento pr6p<strong>rio</strong> e conhecido no comBrcio, indbstria e artes, tendo <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoitoa quarenta anos.0 Con<strong>de</strong> da Cunha leu o bando e disse, mostrando-se satisfeito:- Eu tambbm tinha pensado nisto, que alihs jh esth em prhtica,pois b principalmente na massa dos solteiros e vadios que fazemos recrutar.- No bando que escrevi, para oferecer B shbia consi<strong>de</strong>raqa"~ doSr. Vice-Rei, excluo a idBia do recrutamento arbitrh<strong>rio</strong> <strong>de</strong> que muitos sequeixam e proponho uma regra que, por ser geral, agradare ao povo.- Que temos n6s corn a gritaria do povo?. . . Guardo o seu bando,e amanha" ou <strong>de</strong>pois Ihe darei outro com uma idBia nova que <strong>de</strong>sejoensaiar.0 ajudante oficial<strong>de</strong>-sala curvou-se.0 vice-rei continuou:- Quero que,seja esplendida a gran<strong>de</strong> parada que pessoalmentecomandarei no dia do nome <strong>de</strong>l-Rei, meu senhor; hh muitos dias quenb visitamos as fortalezas, e <strong>de</strong>las se <strong>de</strong>vem retirar, para concorrerem B parada,quantas pracas se pu<strong>de</strong>rem dispensar em suas guarni~ges; saiamos, pois:o senhor vh Bs fortalezas, eu irei aos quart& e ao meu arsenal.Alexandre Cardoso tornou a curvar-se e saiu.Pouco <strong>de</strong>pois o con<strong>de</strong> da Cunha foi visitar os quartBis, on<strong>de</strong> seinformou do ncmero <strong>de</strong> pracas prontas, do estado das armas e do fardamento.No regimento novo, os soldados doentes tratavam-se todos nocompetente hospital e no da Santa Casa <strong>de</strong> Miseric6rdia; no regimentovelho, tr6s soldados doentes n5o estavam, como outros, nos hospitais.0 vice-rei quis saber a razb <strong>de</strong>ssa exce~b.0 major do regimento respon<strong>de</strong>u:- Tiveram licen~a para tratar-se fora.-I E quem os cura?. . .- Eu o ignoro, Sr. Vice-Rei.0 con<strong>de</strong> da Cunha cerrou as so<strong>br</strong>ancelhas e perguntou:- E on<strong>de</strong> se tratam?0 major est'remeceu.- Tambkm o ignora?. . .Quero sab6-10.- Um <strong>de</strong>sses soldados doentes B casado e tanto ele como 0s doiscamaradas, <strong>de</strong> quem B parente ou amigo, szo tratados em casa.- E on<strong>de</strong> B essa casa?- Sr. Vice-Rei, eu nb estava preparado para. . .- Devia estar! <strong>br</strong>adou o Con<strong>de</strong> da Cunha; e se n5o esth, prepare-sejh para respon<strong>de</strong>r-me; dou-lhe <strong>de</strong>z minutos.E o vice-rei tirou o re16gio e marcou, em alta voz, a hora queera.0 major, tr6mulo e assustado, foi para o inte<strong>rio</strong>r do quartel e,


no f im <strong>de</strong> trC minutos, voltou apressado.- Preparou-se? perguntou o vice-rei corn ironia terrlvel.0 major disse, a gaguejar <strong>de</strong> medo:- A casa 6 no morro do Desterro, urn pouco aclma do convento<strong>de</strong> Santa Teresa. . . B beira do caminho e B mb esquerda <strong>de</strong> quem sobe. . .0 vice-rei voltou as costas ao major e disse aos oficiais que B distlnciarespeitosa se achavam reunidos:- 0 tenente-coronel Alexandre Cardoso, o<strong>br</strong>igado a <strong>de</strong>sempenharos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> meu ajudante oficial<strong>de</strong>-sala, tinha o direito <strong>de</strong> ser maiszelosamente servido pelos seus subordinados no comando do regimentovelho; hei <strong>de</strong> dizer-lhe o que observei aqui, e basta-me isso. 0 tenente-coronelainda na"o mentiu B minha confianp.E o velho Con<strong>de</strong> da Cunha montou a cavalo, dirigiu-se ao arsenal,on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>rnorou at6 B hora do jantar. ,De volta ao palecio, e recolhido ao seu gabinete, consultouapontamentos que tomara, interrogando Isidoro, e leu para si: "penso queferi no om<strong>br</strong>o o salteador que tentava raptar a menina In&s; corn certeza ferino rosto e na ilharga outro salteador, <strong>de</strong> alta estatura e for~a <strong>de</strong>scomunal,que esteve a ponto <strong>de</strong> matar-me; nbferi nenhum outro".0 Con<strong>de</strong> da Cunha a<strong>br</strong>iu uma gaveta <strong>de</strong> segredo e <strong>de</strong>la tirou umacarta; era ainda um novo relat6<strong>rio</strong> semanal da vida e proezas <strong>de</strong> AlexandreCardoso, que ele leu ainda para si: "o mandate<strong>rio</strong> do atentado foi AlexandreCardoso, o fim era o rapto da menina Inbs, filha <strong>de</strong> JerBnimo Ll<strong>rio</strong>; os instrumentosforam soldados do regimento velho, alguns dos quais foram feridos,e estzo sendo tratados fora do quartel; ainda nao sei on<strong>de</strong>, e menos osabe o vice-rei, que faz garbo <strong>de</strong> tudo ignorar".0 Con<strong>de</strong> da Cunha mandols chamar Germiano, que nb tardoua apresentar-se. 0 vice-rei Ihe disse:- No morro do Desterro, um pouco acima do convento, B beirado caminho, B mfio esquerda, <strong>de</strong> quem o sobe, he uma casi, on<strong>de</strong> estb emtratamento trQs doentes, soldados do regimento velho; preciso saber que mol6stiassofrem eles, e se estb feridos, como me informam, em que regiaesou pontos do corpo receberam feridas. Vai-te: tens dois dias para <strong>de</strong>sempenharesta comissb.0 mudo sorriu-se, fez sua vQnia e <strong>de</strong>ixou o vice-rei.Germiano, que sabia tudo quanto se passava e se murmurava nacida<strong>de</strong>, compreen<strong>de</strong>u perfeitamente o empenho do vice-rei, e, por amor <strong>de</strong>ste,sendo inimigo <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, esmerou-se em executar prontamenteas or<strong>de</strong>ns do seu idolatrado amo: jantou e bebeu em vez <strong>de</strong> uma, comotinha por costume, trQ garrafas <strong>de</strong> vinho ao jantar.0 mudo sabia a sua conta: uma garrafa <strong>de</strong> vinho era apenas o excitantenormal da digestb, duas davam-lhe alegria, trC o levavam ao estado


duvidoso que prece<strong>de</strong> a ern<strong>br</strong>iaguez; quatro tiravarn-lhe a conscigncia.Germiano bebeu, pois, tr&s garrafas <strong>de</strong> vinho e saiu a passear;tornou a direqzo do rnorro do Desterro e corneqou a subi-lo, passou al6rn doconvento e, reconhecendo, pelas indicaqces, a casa que procurava, paroudiante <strong>de</strong>la, introduziu na garganta dois <strong>de</strong>dos para provocar urn v<strong>br</strong>nito e<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que conseguiu esse indlcio da ern<strong>br</strong>iaguez, que pretendia sirnular, <strong>de</strong>ixou-secair contra a porta da casa e, estirado no chb, pbs-se a gerner pungenternente.A porta da casa a<strong>br</strong>iu-se, e uma rnulher e urn soldado, que traziaurn lenqo atado B cabeqa, aparecerarn.A rnulher disse:- E urn bgbedo.0 soldado curvou-se um pouco, exarninando o rosto <strong>de</strong> Gerrniano,e exclamou:- E o cb do vice-rei, 6 o patife do rnundo, que hoje bebeu pelornenos urn garrafb <strong>de</strong> vinho!- Manda esse rnaroto para a porta do convento, disse outra voz,que partia do inte<strong>rio</strong>r da casa.- Era precis0 que o borracho tivesse pernas; aqui na"o hh que hesitar:ou atirar corn o cb do vice-rei pela escarpa do morro abaixo, levandoa cabeqa que<strong>br</strong>ada e sern rniolos, ou recolh6-lo e trath-lo corno amigo; estebiltre B czo capaz <strong>de</strong> rnor<strong>de</strong>r, e ao cb <strong>br</strong>avo, ou cornpra-se a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, ournata-se <strong>de</strong> urna vez.lsto dizia da porta o soldado que, entrando e conferenciandocorn os carnaradas, voltou corn a rnulher e arnbos carregararn para <strong>de</strong>ntroGerrniano, a quern esten<strong>de</strong>rarn em urna esteira velha.0 rnudo dorrniu ou fingiu dormir longas horas, at6 que, <strong>de</strong>spertandoe sentando-se na esteira, olhou espantado em torno <strong>de</strong> si.- Esths em casa <strong>de</strong> arnigos, Gerrniano, disse-lhe o soldado quetrazia o lenqo B cabeqa; tornaste solene bebe<strong>de</strong>ira, corno Bs vezes nos acontece,e o senhor vice-rei nb ficarh rnal contigo por isso.Gerrniano pbs-se a custo <strong>de</strong> joelhos e levou urn <strong>de</strong>do a boca, pedindosegredo do excess0 <strong>de</strong> vinho que o levara B ern<strong>br</strong>iaguez.- Urn dia nio s b dias, e urna rnk lava a outra: tu te ernbebe-daste por exceqa"~ e n6s te socorremos; torna nota disto, e olha bern paran6s a fim <strong>de</strong> que, lern<strong>br</strong>ando as caras, nb esqueqas a gratidb.0 rnudo tornou a <strong>de</strong>itar-se e adorrneceu.S6 no dia seguinte, pelas <strong>de</strong>z horas da manha", Gerrniano entrou,<strong>de</strong> volta, no palhcio; mas apenas entrou, foi direito ao gabinete particular dovice-rei.- JA sabes tudo? perguntou-lhe o con<strong>de</strong>.0 rnudo fez sinal afirrnativo.


- 0 s soldados estzo feridos?. . .lgual resposta <strong>de</strong>u Germiano, acenando com a cabeqa.- Quantos sgo?0 mudo mostrou trds <strong>de</strong>dos.- Sb trC, muito bem; e o primeiro, on<strong>de</strong> foi ferido?0 mudo pbs a m b na cabeqa.- 0 segundo?0 mudo mostrou o om<strong>br</strong>o direito.- Ah! no om<strong>br</strong>o? lsso mesmo.-- E o terceiro?. . .0 mudo apontou o rosto, e <strong>de</strong>pois a ilharga.- No rosto e na ilharga?. . . tat e qual! E esse ferido po rosto ena ilharga, 15 <strong>de</strong> baixa estatura?. . .0 mudo fez com a cabeqa sinal negativo, e <strong>de</strong>pois encostando-seB pare<strong>de</strong>, levou a mzo um palmo acima da sua propria altura.- Entb ... um homem gigantesco?. . .0 mudo indicou que sim.- Tudo como me informam! murmurou o vice-rei.


Sem o pensar, o Con<strong>de</strong> da Cunha pbs a cida<strong>de</strong> em movimento,distraindo-a <strong>de</strong> suas som<strong>br</strong>ias apreensijes com uma medida sAbia e btil, masque oferecia margem para gracejos e apreciagces divertidas.Dois dias antes do <strong>de</strong> Slio Jos6, a 17 <strong>de</strong> margo, o vice-rei entregoua Alexandre Cardoso o bando que escrevera em substituiga"~ do outroque o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala redigira, e or<strong>de</strong>nou-lhe que o fizesse logoproclamar.0 bando do vice-rei encerrava pensamento absolutamente opostoao <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, ou pelo menos, muito favorAvel <strong>de</strong> isengijes dorecrutamento; mas o secretd<strong>rio</strong> do vice-rei nb se animou a fazer objeglio .alguma, antes, <strong>de</strong>u-se por feliz, vend0 que oCon<strong>de</strong> da Cunha, ocupado seriarnente<strong>de</strong>ste assunto, e dando-lhe gran<strong>de</strong> importtincia, se esquecia da questbdos soldados doentes do regirnento velho, cuja averiguaglio cornpleta bernpu<strong>de</strong>ra produzir graves conseqiibncias.Assim, pois, no mesmo dia, o bando foi proclamado, e os habitantesda cida<strong>de</strong> ficararn na inteligbncia <strong>de</strong> que o vice-rei, aten<strong>de</strong>ndo i <strong>de</strong>sproporga"~que se notava entre os homens casados e solteiros, sendo exageradamentesupe<strong>rio</strong>r o nbmero <strong>de</strong>stes, e consi<strong>de</strong>rando a fartura que havia <strong>de</strong>vadios onerosos ao Estado e nocivos B socieda<strong>de</strong>, or<strong>de</strong>nava que todos os jovense quantos estivessem na ida<strong>de</strong> varonil, tratassem <strong>de</strong> casar-se em <strong>br</strong>eveprazo, e que aqueles que o nzo fizessem, assentassem praga nos regimentos<strong>de</strong> linha.Esta providgncia econbmico-polltica, a que nb faltava o cunhodo po<strong>de</strong>r absoluto e da opressb do <strong>gov</strong>erno, se estendia al6m da cida<strong>de</strong>, atoda a capitania, e era por certo <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rAvel proveito futuro; os habitantes<strong>de</strong> Sebastian6polis, porbm, a consi<strong>de</strong>rararn em suas relagijes corn o presentee a receberarn em tom <strong>br</strong>incb.Houve festa ao bando do vice-rei.A noite, as famllias amigas salram a visitar-se; as mocas pergun-


tavam umas is outras, quantos pedidos em casamento jh haviam recebido; osvelhos celibatA<strong>rio</strong>s, com o direito da sua ida<strong>de</strong>, divertiam-se a empenhar-sepor achar noivas, e os jovens solteiros e esquivos ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> tomar famllia,pensavam seriamente no bando do vice-rei.0 que nb se mostrou duvidoso, o que se manifestou francamente,foi uma revolucb sdbita na opinizo phblica feminina. 0 belo sexo, queat6 entb e principalmente nos hltimos dias, se pronunciara vivamente adversoao Con<strong>de</strong> da Cunha, mudou <strong>de</strong> parecer e encareceu-lhe a sabedoria do<strong>gov</strong>erno; as jovens solteiras, com particularida<strong>de</strong>, entusiasmaram-se pelo ve-Iho vice-rei.Na primeira e nas siguintes, is mesas <strong>de</strong> ceias <strong>de</strong> alegres companhias,as senhoras faziam <strong>de</strong>z vezes a sah<strong>de</strong> do Con<strong>de</strong> da Cunha, e elas tinhamraza"o, porque em dois dias, mais <strong>de</strong> vinte meninas po<strong>br</strong>es jB tinhamnoivos muito ernpenhados em apreesar seus casamentos.Na casa <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>. . . tamb6m se festejava o bando do vice-reie na noite da v6spera do dia <strong>de</strong> Sa"o Jos6, reunira-se no clrculo folgazb enb pouco leviano da famosa cortesa".Alexandre Cardoso e Goncalo Pereira n b tinham faltado; mas oprirneiro cala As vezes em irresistlvel meditaeb e o segundo mat disfarcavaa sua tristeza.A raza"o das reflexaes <strong>de</strong> um e da tristeza do outro provinha dasintrigas da odienta e vingativa mulher.Gonplo Pereira tinha nesse dia almovdo com a cortesa" e acabad0o almoco, recomecou entre ambos a luta que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> rnuito se travava, eque punha no inirno do oficial a paixb mais ar<strong>de</strong>nte em violento combatecontra o rnelindre e a honra.Maria reclarnava, rnais que nunca, o concurso <strong>de</strong> Goncalo paraper<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma vez Alexandre Cardoso, e exigia que ele se prestasse a dar aovice-rei testemunho <strong>de</strong> fatos criminosos ou escandalosos que vira o ajudanteoficial<strong>de</strong>-sala cometer.Goncalo revoltou-se e perguntou col6rico:- Queres, pois, que, al6rn da ignomlnia <strong>de</strong> espib, me caiba aindaa,vergonha <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciante?- Quem fala em <strong>de</strong>nfincia? disse Maria.- Que exiges enta"o?- Que se fores chamado e interrogado pelo vice-rei, Ihe digas averda<strong>de</strong>.- Oh! e quem <strong>de</strong>nunciara Alexandre Cardoso?-- Eu.- Maria! Serias capaz?. . .- Eu sou pomba e tigre.E confiou ao amante a hist6ria dos relat6<strong>rio</strong>s semanais, que


mandava ao Con<strong>de</strong> da Cunha.Gon~alo pb<strong>de</strong> apenas dizer:- Terrlvel mulher!-- Vou apelar para o teu testemunho na carta anbnima, que ovice-rei hd <strong>de</strong> receber amanha", a noite.-- E eu negarei os fatos, embora minta! exclamou o oficial.Maria empregou todas as suas graCas e fascina6es para dominarGon~alo, que pela primeira vez resistiu ao po<strong>de</strong>r da fada mal6fica.A cortesa" revoltou-se contra a resistdncia invenclvel do amante,e, entrando em furor. disse-lhe:- N b precis0 dos teus servi~os. ..sei tudo quanto <strong>de</strong>sejo so<strong>br</strong>eAlexandre Cardoso. . . e n b C tu que mo dizes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muitos dias. . .-- Ainda bem! '- N b o sabes, ou nb me disseste e eu sei que foi AlexandreCardoso quem mandou atacar no caminho da Gamboa, a famllia <strong>de</strong> JerbnimoLl<strong>rio</strong>. . .- 6 imposslvel! Semelhante crime. . .-, Eu sei e o vice-rei tamMm jd sabe todas as circunsthcias doatentado.E Maria referiu por miirdo o ataque, o combate, os ferimentosdos soldados, cujo tratamento se fazia fora do quartel.- E quem foi o traidor que te informou tb circunstanciadamente?Porque foi um traidor, um cirmplice que viu tudo. . . Quem foil. . .Maria <strong>de</strong>satou numa risada <strong>de</strong> eschrnio.- Hds <strong>de</strong> dizer-mo! exclamou Goncalo a<strong>br</strong>asado em fu<strong>rio</strong>so ciirme:h6s <strong>de</strong> dizer-mo! Semelhante traipzo s6 podias comprar com a moeda,com que me corrompeste!Maria empali<strong>de</strong>ceu; mas disse corn firmeza:- N b to direi.Seguiu-se longa cena <strong>de</strong> frenetic0 ciQme, at6 que, <strong>de</strong> repente,Gontylo murmurou, raivoso:- 0 alferes Constlncio Lessa. . .Maria empali<strong>de</strong>ceu ainda mais; fingiu, porbm, segunda risada <strong>de</strong>escdrnio.Gonplo awbava <strong>de</strong> lem<strong>br</strong>ar-se <strong>de</strong> haver encontrado, no dia imediatoao do a<strong>de</strong>ntado do caminho da Gamboa, o alferes Constlncio bessa nacasa da corted. acrexendo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algumas semanas concebera suspeTtas<strong>de</strong> rela~aes rnais lntirnas entre os dois.Constincio Lessa era o mais <strong>de</strong>smoralizado dos oficiais do regimentovelho, e ski0 e instrumento dos maiores escln<strong>de</strong>ios e pervers5as <strong>de</strong>Alexandre Cardoso.Arrebatado <strong>de</strong> ciQrne e <strong>de</strong> indignaHo, Gon~alo tornou o chaphu


e <strong>de</strong>ixou Maria, que n b menos col6rica ficava.Um longo passeio aplacou o furor do oficial, que resolveu-se aprocurar pleno conhecimento dos fatos, cuja suspeita o <strong>de</strong>sorientava.Foi-lhe facil encontrar o alferes Constlncio Lessa. a quem convidoupara jantar, e ainda mais fscil faze-lo <strong>de</strong>spejar e beber algumas garrafas<strong>de</strong> vinho generoso.Habituado a todos os vlcios, Constlncio Lessa ern<strong>br</strong>iagava-semuitas vezes.Gonplo calculou o efeito das libafies e quando viu o alferesmais alegre e rnais ghrrulo, provocou a questb:- Tu 6s um bom diabo, disse-lhe; mas As vezes pecas pela llngua<strong>de</strong>senvolta. . .- Na eloquencia do vinho, meu tenente; d8-me rnais um copo.E recebeu e virou o copo.- Entb. . . falo As vezes <strong>de</strong>mais?- E rnuito; queres uma prova? Escuta: por que havias <strong>de</strong> confiar0 segredo daquela <strong>br</strong>inca<strong>de</strong>ira do carninho da Gamboa 3 nossa alegre arnigaMaria, que tgo-ciurnenta anda do tenentecoronel?- E mentira. . . Eu sei 14 <strong>de</strong>ssas coisas?. . .- N b po<strong>de</strong>s negil-lo; foi ela rnesrna que mo confessou. . .- Ela?. . . Vem-me cil corn essas. . .- Bebamos um cop0 B sad<strong>de</strong> daquela con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte beleza!- Viva Maria! exclamou o alferes Constlncio Lessa, bebendo.- Eu tamMrn amo a Maria, que nem sempre B cruel comigo;mas o diabo me leve, s6 ela me arranca segredo!- Sim?. . . Pois que te a<strong>br</strong>es comigo, eu... eu vou a<strong>br</strong>ir-mecontigo. . .Gon~alo sentiu que a llngua <strong>de</strong> Constlncio Lessa tornava-se pesada,e receou havl-lo feito beber <strong>de</strong>rnais.- D8-me vinho, disse o alferes.- Acaba primeiro o que ias dizer e dou-te urna garrafa cheia; enta"oMaria. . .- Aquele <strong>de</strong>rnanio. . .6 mercadora <strong>de</strong> amor. . . por, segredos. . .da vida do tenentecoronel. . .- Entlo ela nlo mentiu? Contaste-lhe a hist<strong>br</strong>ia da tal<strong>br</strong>inca<strong>de</strong>ira?. . .. - Pois se ela disse rneta<strong>de</strong>. . . eu <strong>de</strong>via dizer tudo ...- Entendo, feliz diabo! Foi favor por favor. . .- Ou favores. . . por favores. . . tornara eu ter mais que contar. ..e levo o <strong>de</strong>mo. . . o tenente-coronel. . .- oh! Que boa vida! Que pecas que pregamos ao tenente-coronel!Maria ama-me hA quatro meses. . . E a ti?. . .


- HA trC semanas somente. . . Das-me mais v~nho?.Gonqalo , ciente da mais cruel verda<strong>de</strong>, empurrou uma garrafapara Constlncio Lessa, levantou-se e saiu maldizendo da cortesg, que se aviltavaao ponto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r-se por vinganp e corrucSo. ao mais vil dos hornens.Maria calra, a seus olhos, na mais profunda abjecso; olhando-a,por6m, no fundo do vergonhoso e imundo abismo, o no<strong>br</strong>e oficial se encontravaa seu lado com a marca da ignomlnia pelos abusos <strong>de</strong> confianqa, pelastraiq5es, em que por sua vez incorrera, <strong>de</strong>nunciando B fatal cortesa" os abusose as <strong>de</strong>senvolturas criminosas <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.Arrependido e envergonhado das suas fraquezas, Goncalo, porqueera verda<strong>de</strong>iramente no<strong>br</strong>e, experimentava nos remorsos e no rnais violentoe arnesquinhador ciirme, o castigo <strong>de</strong> sua paixzo <strong>de</strong>svairada.Duas imagens, a <strong>de</strong> urn homem e a di? uma mulher, incessantesse mostravam ao esplrito agitado <strong>de</strong> Goncalo: Alexandre Cardoso, por eledurante algum tempo traido, e Maria, que atrai~oara a arnbos. Procurandoescapar a essas lem<strong>br</strong>an~as crubis, o .jovem oficial <strong>de</strong>sprezou o alferes ConstlncioLessa, que ficara a beber na mesa, e <strong>de</strong> novo foi pedir ao passeio, aoar livre, ao encontro <strong>de</strong> conhecidos, e B fadiga, o arrefecirnento do seu veernentesofrer.Mas passeava apenas h8 meia hora, e Gon~alo sentiu que algubmIhe pusera a ma? so<strong>br</strong>e o om<strong>br</strong>o direito, e achou-se em frente <strong>de</strong> AlexandreCardoso.- Nern me via, Tenentel. . . Que preocupa~gol- certo, Sr. Tenente-Coronet.- Se precisa <strong>de</strong> urn amigo, disponha absotutamente <strong>de</strong> mim.Gon~alo corou; preferia urn insulto, ao obsequioso oferecimento<strong>de</strong> Alexandre Cardoso.- Nada <strong>de</strong> cerimbnias, Tenente; ponho B sua disposiqk o coraqb,o <strong>br</strong>aqo e a klsa, ernbora esta nb an<strong>de</strong> muito provida.Gonplo levou a mb ao peito, que arfava, e disse, tornando <strong>de</strong>sirbito uma resoluqb:- Senhor Tenente-Coronel, far-lhe-ei uma confi<strong>de</strong>ncia importantlssima,receba-a e guar<strong>de</strong>-a em segredo, para melhor acautelar-se.- Pois 15 <strong>de</strong> rnim que se trata?- Po<strong>de</strong> ser que <strong>de</strong> nbs ambos; mas, pouco importa o que me 6relativo.- Entb, que hB?- HB rnais <strong>de</strong> tr6s rneses que o atrai~oam e tramam a sua<strong>de</strong>sgraqa.- Eu comeCava a suspeit8-lo. . .- O vice-rei 6 constante e miudamente informado <strong>de</strong> todos


0s seus atos, ainda os mais. . . rnelindrosos. . . e cornprornetedores. . .- E como?- Ele sabe tudo. . . os episMios que acornpanhararn.~incgndioda casa do carpinteiro. . . a tentativa <strong>de</strong> rapto da rnenina Inls, szo-lhe conhecidos,como as suas perdas ao jogo, e quantos fatos po<strong>de</strong>rn servir ao seu<strong>de</strong>scrbdito. . .Alexandre Cardoso <strong>de</strong>sfigurou-se.- Tem certeza disso, Tenente? perguntou corn voz alterada.-. Absoluta certeza.- E o nome do traidor?-- HB nornes <strong>de</strong> traidores.- Diga-rnos todos.- NZo posso faze-lo; sb tenho o direito <strong>de</strong> dizer-the o nome <strong>de</strong>um.- Esse ao rnenos. . .-- Na"o me 6 posslvel dize-lo jB; o Sr. Tenente-Coronel vai aserviqo?. . . - NZo. . . passeava sem <strong>de</strong>stino. . .-- Passeernos.- Tenente, quern me escon<strong>de</strong> o nome dos traidores, serve atraiqb. . . - Eu <strong>de</strong>i-lhe o aviso da traiqZo urdida; nornear-lhe os traidoresfora tornar-me <strong>de</strong>lator.- Mas prorneteu-me <strong>de</strong>nunciar urn. . .- Tenho esse direito. . . passeernos. . .Alexandre Cardoso, aturdido pela notlcia, n b soube rnais <strong>de</strong> si,e ora instando por novos esclarecirnentos, ora absorvendo-se em profunda esom<strong>br</strong>ia rneditaqb, <strong>de</strong>ixou-se levar por Gonqalo, que no fim <strong>de</strong> longa rnarchapelo carnpo do Rosi<strong>rio</strong>, parou em urn sltio <strong>de</strong>sert0 e lirnpo <strong>de</strong> Brvores,mas cercado <strong>de</strong> moitas <strong>de</strong> arbustos.- Senhor Tenente-Coronel, disse Gonqalo; o traidor, cujo norneposso <strong>de</strong>clarar, apaixonou-se no correr do ano passado por uma rnulher quetinha sido sua amante, e que ferida pelo seu <strong>de</strong>sprezo, pBs por preqo aoarnor que esse hornern Ihe pedia, a espionagern dos seus passos, e a traiqb Bsua conf ianqa.- Eo infarne.. .- 0 infarne?!! exclamou Gonplo, batendo com a m b nos coposda espada; o infarne. . . louco <strong>de</strong> paixzo. . . su<strong>br</strong>neteu-se a essa indignida<strong>de</strong>,e durante alguns meses foi espib <strong>de</strong> seus atos. . . e abusou <strong>de</strong> suaconf ianqa. . .E quem foi esse miseiivel?. . .- 0 tenente Gonplo Pereira, que estB pronto a dar-lhe satisfa-


$0 <strong>de</strong> cavalheiro.0s dois oficiais <strong>de</strong>sernbainharam as espadas, e o cornbate travouselogo.Erarn arnbos valentes e a<strong>de</strong>strados; mas Gonplo Pereira,esgrirnidor nothvel e rnuito rnais habil que o seu adversh<strong>rio</strong>, parecia <strong>de</strong>terrninadoa cansd-lo, e apenas se <strong>de</strong>fendia.Alexandre Cardoso, enfurecido, sentiu que Gonplo Ihe poupavaa vida; ainda rnais se enraiveceu por isso e quando contava ferir <strong>de</strong> rnorte otenente, viu sua espada escapar-lhe da rn80 e cair a duas <strong>br</strong>aqas <strong>de</strong> distlncia.tiontylo cruzou os <strong>br</strong>aps e ficou im6vel.- N b aceito a vida! <strong>br</strong>adou o tenente-coronel.0 tenente apanhou a espada <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, e oferecendo-lha,disse friarnente:- Cornecernos <strong>de</strong> novo.- Quero saber o norne da mulher Dor quem se infarnou disseAlexandre Cardoso, sern receber a espada.- N b Iho direi, respon<strong>de</strong>u Gonplo.~an~endo os <strong>de</strong>ntes e espurnando <strong>de</strong> c6lera. o tenente-coroneltornou a espad$jA vencida urna vez e renovou o cornbate, que por rnais <strong>de</strong><strong>de</strong>z rninutos se prolongou terrlvel.Trds vezes Gonpalo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ferir o .adversh<strong>rio</strong>, que se puseraloucarnente a <strong>de</strong>scoberto, trOs vezes a sua generosida<strong>de</strong> foi sentida pelo <strong>de</strong>-sesperado e cego tenente-coronel; mas, finalmente, ao dar urn salt~, ernbarapouurn dos p6s nas ralzes secas <strong>de</strong>ixadas por antigos arbustos e caiu porterra.Alexandre Cardoso corn a espada arneaqadorarnente levantadaso<strong>br</strong>e Gonplo, <strong>br</strong>adou:dizendo:- 0 norne da mulher. . .- N b Iho direi, respon<strong>de</strong>u o tenente, sem alteraqb <strong>de</strong> voz.- Esse norne, ou a rnorte!- Mate!Alexandre Cardoso recuou dois passos e ernbainhou a espada,- N b posso mad-lo.E acrescentou:- Vida por vida.Gonpalo p6s-se em p6 e com o rosto em flarnas <strong>de</strong> vergonha:- Pois que 6 assirn, disse tristernente, perdoe-me tarnb6m o rnalque Ihe fiz.Alexandre Cardoso ofereceu a rn50, que Gonplo apertou.


0 Tenente Gonqalo Pereira, instado por Alexandre Cardoso paraacompanhi'i-lo i casa <strong>de</strong> Maria, nZo ousou resistir ao convite; a resistbnciapu<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>spertar uma <strong>de</strong> duas suspeitas: ou que ele se arreceava <strong>de</strong> mostrarseao lado do ajudante oficial<strong>de</strong>-sala, ameaqado pela adversida<strong>de</strong>, ou que Iherepugnava a casa <strong>de</strong> Maria, que ali5s at6 entZo freqiientara, o que exporia A<strong>de</strong>sconfian :a a cortesa" a quern <strong>de</strong>via generosida<strong>de</strong>.Era assim que na alegre reunib, Alexandre Cardoso cala is ve-zes em irresistlvel meditaqa"~, e Gonqalo ma1 disfarqava a sua tristeza.-. Lundu novo! exclamou uma linda rapariga, levantando-se etomando a viola.- Por que nZo ao cravo?- 0 cravo 6 mais no<strong>br</strong>e, pertence as xi'icaras e as baladas; olundu 6 mais plebeu e cabe <strong>de</strong> direito B viola, que 6 o instrumento do povo.- Venha pois o lundu.A moqa cantou:Graqas ao Con<strong>de</strong> da Cunha,Ao bando casamenteiro,Acham noivos raparigasSem beleza e sem dinheiro.Em um mQ se acabamAs moqas solteiras,0 s noivos recorremAs velhas gaiteiras.Pra muitos que so<strong>br</strong>am,Soltar va"o as freiras,Dos recolhi~nentosSaem prisioneiras.


E as qu'em vb amavam,E as que lastimavamA sorte, que o feio, cruel celibatoTb mau lhes impunha,E as mocas sem dote, e as velhas e as freirasQue B luz se escondiam, corujas do mato,Sb hoje <strong>de</strong>votas e noivas festeirasDo Con<strong>de</strong> da Cunha.Coma esta, mais cinco ou seis coplas cantou a bonita rapariga nomeio <strong>de</strong> vivos aplausos.Depondo a viola, disse ela a rir:- Todos me aplaudiram, menos o senhor tenente-coronel, quepensa no dia <strong>de</strong> amanha", e o senhor tenente Gonpalo, que estA triste, cornsauda<strong>de</strong>s do dia <strong>de</strong> ontem!- N k 6 isso, exclamou Maria; o Sr. Alexandre Cardoso e o Sr.Goncalo Pereira estb aflitlssimos, porque ambos me pediram em casamento,e a ambos me recusei.- Querem ver que tivemos medo <strong>de</strong> assentar prap! disse AlexandreCardoso.- N k; mas o vice-rei vai mandar proclamar outro bando, con<strong>de</strong>nandoA perda <strong>de</strong> seus postos os oficiais solteiros que n8o se casaremprontamente.- Em tal caso, pedirei a minha <strong>de</strong>missa"~.- Pois, Sr. tenente-coronel, apresse-se antes que Iha d8em.Alexandre Cardoso perturbou-se, lem<strong>br</strong>ando-se da confidancia<strong>de</strong> Gon~alo Pereira.Maria voltou-se para o tenente, e perguntou-lhe:- E o senhor tambbm preten<strong>de</strong> pedir a sua <strong>de</strong>missio?Gonvlo ficou corn olhos flamejantes a cortesa" e disse:- JB <strong>de</strong>i-a.Maria corou <strong>de</strong> leve, sentindo o golpe que recebera; acrescentou,porbm, logo:- E como conserva e traz a farda e as divisas?- Estas s b as do regimento novo, e foi <strong>de</strong> oficial <strong>de</strong> outro corpoque me <strong>de</strong>miti.- Entb <strong>de</strong> qual?- Do regimento dos escravos do vlcio.- Ainda bem que a sua presenp aqui indica que esta casa nb 6quartel <strong>de</strong>sse regimento, respon<strong>de</strong>u Maria, contendo-se.Alexandre Cardoso comepva a prestar aten~a"~.A cortesz, ferida ru<strong>de</strong>mente em sua vaida<strong>de</strong>, tornou, dizendo:- Que sirbita regeneraflo! 0s arrependidos assim, ou ficam san-


tos, ou bem <strong>de</strong>pressa per<strong>de</strong>m no caminho da salvaq30, e d nSo caem noinferno, quando o diabo lhes fecha a porta.Gonqalo Pereira guardou silencio.Alexandre Cardoso conservava-se pensatlvo e imovel na suaca<strong>de</strong>ira.- Que insuporthvel melancolia a <strong>de</strong>stes senhores oflcla~s! Fazem-nossono! Creio que e stk assustados com a gran<strong>de</strong> parada <strong>de</strong> amanha".E, sempre audaciosa, Maria acrescentou:- Falta-nos aqui o elegante alferes Constdrrcio Lessa, que nuncasabe o que 15 tristeza! 'E falando i s senhoras:- Mundo as avessas! Faqamos danqar estes cavalhelros,exclamou.As senhoras levantaram-se alegremente, e Gonqalo Pere~ra, aproveitandoo movimento da companhia, aproximou-se da cortesa", e disse-lhe: ',,. - Se quer aqui o alferes ConstBncio Lessa, man<strong>de</strong> busch-lo Bminha casa, on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ixei em vergonhoso estado <strong>de</strong> em<strong>br</strong>iaguez, <strong>de</strong>pois queIhe ouvi quanto me convinha saber.Gonqalo voltava as costas; porem Maria travou-lhe do <strong>br</strong>aqo, erespon<strong>de</strong>u-the com impavi<strong>de</strong>z:- Se me tivesse perguntado o que Ihe convinha saber, poupar-seiaa uma aqgo <strong>de</strong>sleal, e Bs <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> um jantar envenenado; porque euIhe diria. . . tudo.E lanqou-se ao tu;bilha"o da danqa., Gonwlo Pereira foi <strong>de</strong><strong>br</strong>uqar-se a janela.Alexandre Cardoso esperou alguns minutos, e quando viu a socieda<strong>de</strong>mais ocupada com a danqa, encaminhou-se tambem para a janela.- Tenente Gonqalo Pereira! disse-lhe; se nb nos tiv6ssemos batidoesta tar<strong>de</strong> no campo do Rosa<strong>rio</strong>, sairiamos agora mesmo daqui para nosbatermos.. . - Senhor Tenente Coronel. . .- A mulher que me atraiqoa e por quem me traiu, 6 Maria.Gonqalo nZo respon<strong>de</strong>u.E Maria! repetiu Alexandre Cardoso.0 tenente manteve-se mudo.- Maria!. . . tornou com voz surda e ameaqadora o tenente-coronel.Gonqalo, por un~ca resposta, perguntou:- Quer que saiamos?. . .Alexandre Cardoso passou a mtio pela frmte e disse:- NZo tornaremos a bater-nos. . . do. . . essa mulher nZo I5digna <strong>de</strong> um duelo entre dois cavalheiros. . . vi bem que suas relac6es com


ela estiio que<strong>br</strong>adas. . . as minhas, que<strong>br</strong>o-as hoje. . . e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora. . .- Urn pouco tar<strong>de</strong>! murmurou sinistramente Maria, mostrandosejunto dos dois oficiais.Espantados <strong>de</strong> tanto e ta"o afrontoso cinismo, Alexandre Cardosoe Gon~alo Pereira tiveram a mesma id& para castigar a soberba e impdvidacortesa", idkia profundamente insultuosa, material, baixa e repugnante;mas iddia que sem prkvio ajuste, ambos puseram em prdtica ao mesmo tempo,e como se estivessem <strong>de</strong> acordo.0s dois oficiais simultaneamente atiraram suas bolsas <strong>de</strong> our0aos pBs da cortesa" e retiraram-se.


IA cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sa"o Sebastigo do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>spertou festivano dia 19 <strong>de</strong> marCo, acordando ao ribornbo das salvas <strong>de</strong> artilharia das fortalezasemban<strong>de</strong>iradas.A Pra~a do Carmo ou Largo do Paqo estava margeada <strong>de</strong> irnensopovo que ocupava suas quatro faces, olhando e adrnirando as tropas que se<strong>de</strong>senvolviam no centro; as janelas do paldcio, do convent0 do Carrno, edas casas particulares, se rnostravarn armadas, e as Oltimas atopetadas <strong>de</strong> senhoras;junto do palicio e perto da porta, on<strong>de</strong> soberbo cavalo esperava oCon<strong>de</strong> da Cunha, mais compacta era a rnultidb <strong>de</strong> cu<strong>rio</strong>sos, e encostado apare<strong>de</strong> tinham muitos rnostrado o carpinteiro Marcos Fulggncio corn semblantecarregado; o carpinteiro na"o se fizera acornpanhar nern pela esposa,nem pela filha: tinha a urn lado uma rnulher <strong>de</strong> rnantilha, e do outro urn padrevelho que Ihe eram ou pareciam <strong>de</strong>sconhecidos.Marcos FulgGncio trazia urna <strong>de</strong>terminaqiio crirninosa e horrlvel;viera armado <strong>de</strong> urna pistola, <strong>de</strong> urn punhal, e <strong>de</strong>cidido a assassinar o Con<strong>de</strong>da Cunha, aproveitando os rnornentos, em que ele montasse a cavalo; <strong>de</strong>ixaraem casa Fernanda ch.orando <strong>de</strong>sesperadarnente e Emiliana em violentaagitaca"~ nervosa.Na tar<strong>de</strong> da v6spera Maria tinha ido enten<strong>de</strong>r-se com MarcosFulggncio; mas <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> o aconselhara a adiar a sua vingan~a, gatantindo-lheo pr6ximo castigo <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.0 carpinteiro respon<strong>de</strong>ra corn aterradora frieza estas Onicaspalavras sempre repetidas:- 0 prazo da espera terrnina hoje: o vice-rei conhece o criminoso,e o <strong>de</strong>ixa irnpune; amanha" hei <strong>de</strong> rnatar o vice-rei e, se eu pu<strong>de</strong>r escapar,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanha" matarei Alexandre Cardoso.A <strong>de</strong>scren~a da justi~a phblica inspirava a vindita particular eum homem honrado, per<strong>de</strong>ndo a raza"o pela irnpunida<strong>de</strong> do perverso algoz<strong>de</strong> sua honesta filha, ia ser crirninoso <strong>de</strong> assassinato.


Maria <strong>de</strong>ixara preocupada e aflitlssima o carpinteiro MarcosFulgbncio, <strong>de</strong> cujo vingativo empenho fora ela a pr6pria provocadora.Maria na"o era celerada, e a id6ia <strong>de</strong> um assassinato a horrorizava;mais ainda al6m disso, o crime que Marcos Fulg6ncio premeditava, <strong>de</strong>via emtodas as hip6teses contrariar as tramas que ela enredava para sacrificarAlexandre Cardoso.A <strong>de</strong>speito das instiincias <strong>de</strong> Maria, e das legrimas <strong>de</strong> Fernanda,o carpinteiro fora tomar o seu posto na rnanha" <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> marpo, e com ama"o no peito, on<strong>de</strong> trazia a pistola, esperava o vice-rei.As onze horas da manha" em ponto, o grito da guarda e a contin6nciados soldados anunciaram a presenqa do Con<strong>de</strong> da Cunha, que mostrou-se,e avanqando para o cavalo, pas o p6 no estribo.Aclamaq6es gerais saudaram o vice-rei.E Marcos Fulgbncio fez tal movirnento com a ma"o que trazia-aopeito, que rebentou alguns bot6es da v6stia; mas a mulher <strong>de</strong> mantilha queestava a seu lado imediatamente lanqou-se diante <strong>de</strong>le, e disse-lhe em vozbaixa:- N b quero. . . nZo quero. . . isso!Marcos Fulggncio recuou um passo e quando reconheceu Mariana mulher <strong>de</strong> rnantilha, jB o Con<strong>de</strong> da Cunha estava longe.- Oue pretendia fazer este homem? perguntou o padre que pertose achava.- Atirar este ramalhete <strong>de</strong> flores so<strong>br</strong>e o vice-rei, disse Maria,apresentando urn ramalhete ao padre.- Pois era isso?- E entzo? o fogoso cavalo em que vai o senhor Con<strong>de</strong> daCunha po<strong>de</strong>ria espantar-se, e talvez acontecesse algum infortlrnio.0 padre voltou-se, e dai a pouco a rnulher <strong>de</strong> mantilha seguiapar e passo o carpinteiro que <strong>de</strong>ixara a posi~Zo que, para tentar contra a vidado Con<strong>de</strong> da Cunha, havia tomado.Marcos Fulgbncio seguiu em direqb B praia, e quando se achoubastante afastado da multida"~ para n5o ser ouvido, volto~-se para Maria eperguntou-lhe irado:- Que tem a senhora corn o meu proce<strong>de</strong>r e com o meu<strong>de</strong>stino?- Em todas as hip6teses faria o que fiz; mas nesta, o sangue <strong>de</strong>rramadodo vice-rei cairia tamb6m so<strong>br</strong>e a minha cabe~a; porque fui eu queacendi a sua vinganqa.-. EstB bem, senhora, jB cumpriu o seu <strong>de</strong>ver; agol'a <strong>de</strong>ixe-me empaz.- NZo.0 carpinteiro travou do <strong>br</strong>aqo <strong>de</strong> Maria, e com um rir feroz:


a moca. .- Julga-me seu escravo? perguntou.- A sua mb <strong>de</strong> ferro me contun<strong>de</strong> o <strong>br</strong>aco, disse pacificamehteMarcos Fulg6ncio a<strong>br</strong>iu a mb, e voltou os olhos, ouvindo o ruldo<strong>de</strong> uma pisada.0 padre que fora testemunha do que pouco antes se passara,tinha-se aproximado sem ser visto e estava junto do,carpinteiro e da mulher<strong>de</strong> mantilha.- Marcos Fulgbncio, disse ele; tu precisas/<strong>de</strong> mim, meu irmfio.- Eu, senhor reverendo?- N b era um ramalhete que ias atirar so<strong>br</strong>e o vice-rei.0 carpinteiro olhou espantado para o padre.- Conheco-te, meu irm5'0, continuou o padre; 6s homem chbe temente a Deus; mas o <strong>de</strong>m6nio te persegue sem ddvida e nb estas em ti.- Aben~oada seja a interven@o do ministro do Senhor! murmurouMaria.- Pecador! disse ainda o padre ao carpinteiro; as portas da igreja<strong>de</strong> S b Jose esta"o abertas; B Deus que me envia a ti: vem confessar-te e contritoreceber o corpo e o sangue <strong>de</strong> Jesus que te hh <strong>de</strong> salvar.E tomou pela mb a Marcos Fulg6ncio que humil<strong>de</strong> e absolutamentedominado se <strong>de</strong>ixou conduzir.Maria respirou, e caminhando apressadamente, <strong>de</strong>sapareceu noseio da multida"~.


A gran<strong>de</strong> parada foi rnagnlfica em rela~b Bs condiq6es da cida<strong>de</strong>do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que at6 entiio nunca vira tb belo e festivo aparatomilitar; a diversida<strong>de</strong> dos uniforrnes dos corpos <strong>de</strong> linha e auxiliares, oelegante fardarnento dos oficiais e so<strong>br</strong>e todos os <strong>br</strong>ilhantisrno corn que sernostrou o Con<strong>de</strong> da Cunha, encantararn tanto o povo, corno a disciplina eprecisiio que ostentararn na rnarcha, nas rnano<strong>br</strong>as, nas <strong>de</strong>scargas e nas contingnciasos regirnentos e os tercos. .Mas a festa nZo acabou al: B noite <strong>de</strong>via haver no teatro repre:sentat,Go gratuita, tendo sido os camarotes oferecidos is principais farnlliasda cida<strong>de</strong>, os bilhetes <strong>de</strong> plat6ia dados em parte aos oficiais militares e emparte <strong>de</strong>ixados ao povo, ou, rnelhor, Bqueles que primeiro se apressassem atomd-10s. ou que rnais protegidos fossern. .Alern da representa~so teatral e da ilurninaciio geral da cida<strong>de</strong>, ovice-rei daria grandiosa ceia, para a qua1 estavam solenernente eonvidados todosos oficiais dos diversos corpos e muitas farnflias no<strong>br</strong>es, ou noteveis pelaposiciio social ou riqueza <strong>de</strong> seus chefes.- Como 6 sabido, o teatro era entb na casa que se charna hojeTesouraria da Casa Imperial e que olha pela frente para o palscio, pela facedireita para o mar, e pela face esquerda para a antiga ca<strong>de</strong>ia, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1823Paqo da Constituinte e da CIrnara dos Deputados,, Bern que esse teatro estivesse a quatro <strong>br</strong>aps do paldcio, o vicerei,que nb <strong>de</strong>via tocar corn os seus p6s o chk que todos pisavarn, foipara ele <strong>de</strong> carruagern, sendo saudado corn entusiasrno pelos espectadoresque enchiarn os carnarotes e a plat6ia. , ,Na plat6ia ostentavarn-se as fardas; nos carnarotes o riqulssirno epesado luxo dos ornarnentos das senhoras, cujos vestidos e sapatos <strong>de</strong> saltoserarn bordados <strong>de</strong> prata ou <strong>de</strong> ouro, e nos hornens as casacas <strong>de</strong> veludo, jalecos<strong>de</strong> cetim tarnb6rn bordados <strong>de</strong> prata ou our0 e contendo urn re16gio emcada bolso, dois rel6gios. pois, presos por. ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> ouro, que tais erarn as


modas usadas pelos rims senhores.0 Con<strong>de</strong> da Cunha sorriu-se levemente, contemplando a espl8ndidaassembldia, e pareceu satisfeito <strong>de</strong> encontrar em um dos camarotes JerdnimoLl<strong>rio</strong> com a mulher e as filhas, tendo ainda a seu lado o velho AntanioPires e o jovem Isidoro, trajando com a mais perfeita eleglncia;turvou-se pordm um pouco, notando em um dos camarotes, Clltimo obsdquioque Alexandre Cardoso fizera trOs dies antes, a muito conhecida el embore,formoee cortesl Maria <strong>de</strong>. . .Deslum<strong>br</strong>ante <strong>de</strong> beleza, esmeradamente vestida, e trazendo emj6ias uma riqueza afrontosa, Maria era como um sol a radiar naquela noite.Causava pena a lem<strong>br</strong>anga da vida licenciosa daquela mulherverda<strong>de</strong>iramente encantadora! S6 a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>via ser bela assim.0 vice-rei, que procurou informar-se <strong>de</strong> quem partira o oferecimentodo camarote a mulher reprovada, mostrou-se indiferente, sabendo averda<strong>de</strong> da pr6pria boca <strong>de</strong> Alexandre Cardoso.- Eu o <strong>de</strong>sculpo, disse; tratava-se <strong>de</strong> festa, e n b se encontrariaflor mais linda.Representou-se a 6pera - Labirinto <strong>de</strong> Creta - do Ju<strong>de</strong>u, isto 6,do poeta fluminense Antanio Jose da Silva.A representag50 teatral que comegara As sete horas terminou i s<strong>de</strong>z e meia da noite.As onze horas serviu-se a ceia no palhcio: f oi ceia <strong>de</strong> vice-rei, ostentosa,riqulssima, porbm comprimida pela etiqueta, e abafada pelagravida<strong>de</strong>.A mesa imensa chegara todavia para os convidados, entre osquais se contavam n5o poucas senhoras.A famllia <strong>de</strong> Jerbnimo Ll<strong>rio</strong>, e os doisarnigos, AntBnioe Isidoro,que a acompanhavam, estavam presentes.As onze horas e meia da noite acabou a ceia.Reunida a socieda<strong>de</strong> em outra sala, o Con<strong>de</strong> da Cunha dirigiu-sea Jerbnimo Ll<strong>rio</strong>, mostrou-lhe um cravo. e perguntou-lhe se lsidoro quereriaprestar-Se a cantar.0 <strong>de</strong>sejo do vice-rei era um <strong>de</strong>creto.lsidoro cantou; mas <strong>de</strong>licado e conveniente escolheu para executarmClsica apropriada B cerimoniosa festa.Desejoso <strong>de</strong> obsequiar o Con<strong>de</strong>.da Cunha, e um pouco vaidos6 domerecimento <strong>de</strong> suas filhas, Jerdnimo ofereceu faz8-las ouvir.Irene cantou melanc6lica e suavemente a mais terna das suasmodinhas.In&, ignorante <strong>de</strong> etiquetas, sem a inspiraglo das conveniancias<strong>de</strong> uma festa oficial, sem que a tivessem prevenido do que Ihe cumpria fazer,escslheu para cantar o que melhor sabia, e com que mais gabos ganhava:


cantou o mais engrapado dos lundus.- Se a - modinha - fora ma1 cabida, o lundu era inteiramentefora <strong>de</strong> prop6sito.Jeranimo Ll<strong>rio</strong> arrependia-se do estouvamento da sua vaida<strong>de</strong><strong>de</strong> pai e olhava severo para a menina In&, que s6 via Isidoro.Mas a inoc&ncia, a grap e a beleza <strong>de</strong> uma jovem t&m privil4giosquase ilimitados.0 lundu cantado por ln&s foi revolta feliz contra a etiqueta.0 vice-rei pas-se a rir, a assembldia a aplaudir, e a cantora animadapelos aplausos, redo<strong>br</strong>ou <strong>de</strong> grapa e <strong>de</strong> sainete, e <strong>de</strong>ixou o cravo no meio<strong>de</strong> uma revolupb <strong>de</strong> alegria, em que o Con<strong>de</strong> da Cunha nk era o menosrevoltoso.Mas nesse momento o sino <strong>de</strong> Sb Bento anunciou meii-noite.- Meia-noite! disse o vice-rei com uoz forte e severa.Toda a socieda<strong>de</strong> se conteve e guardou silancio respeitoso.0 Con<strong>de</strong> da Cunha em p6 no meig da sala. continuou, falandograve e solenemente:- Come~a o novo dia; o <strong>de</strong> ontem toi <strong>de</strong> festa e <strong>de</strong>vopb ao san-to do s6u, e ao nome abenpoado <strong>de</strong> El-Rei rneu senhor; o <strong>de</strong> hoje, que principiaagora, na"o 6 mais <strong>de</strong> festas, nem <strong>de</strong> folguedos; 4 <strong>de</strong> justiqa, e <strong>de</strong> castigoaos culpados.A companhia enregelara-se e tremia diante do <strong>de</strong>sp6tico vice-reique falava assim.- Senhor Tenente-Coronel do regimento novo! <strong>br</strong>adou sinistroo Con<strong>de</strong> da Cunha, chamando.0 tenente-coronel confuso e perturbado aproximou-se do vicereique Ihe falou em voz baixa, e quando acabou <strong>de</strong> ouvi-lo, avantpu triste ecompungidamente para o ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, e diante <strong>de</strong> toda a assembl6iasurpresa, disse-lhe:- Senhor Tenente-Coronel Alexandre Cardoso <strong>de</strong> Meneses, entregue-mea sua espadat Estd preso por or<strong>de</strong>m do Senhor Vice-Rei Con<strong>de</strong> daCunha.Alexandre Cardoso tramulo e Ilvido <strong>de</strong>sembainhou a espada, entregou-aao tenente-coronel do regimento novo, e perguntou:- Posso saber para on<strong>de</strong> vou ser conduzido?. . .- Para a fortaleza <strong>de</strong> Santa Cruz e incomunic6vel at4 segundaor<strong>de</strong>m.- E o meu crime?. . .0 vice-rei <strong>de</strong>u um passo para aquele que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse momento<strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser o seu ajudante oficial-<strong>de</strong>-sala, e disse:- 6 um acervo <strong>de</strong> crimes.0 preso nb respon<strong>de</strong>u; mas simulando forpa <strong>de</strong> lnimo que real-


mente Ihe faltava, porque a prbpria cOnscii5ncia o acusava, saiu com a fronteerguida, acompanhando o tenente-coronel do regimento novo que o conduzia<strong>de</strong>sautorado B prisb.A assernblkia ficara tomada <strong>de</strong> surpresa.Qugndo Alexandre Cardoso <strong>de</strong>sapareceu, o Con<strong>de</strong> da Cunhaexclamou:- Creio que a cida<strong>de</strong> continuare em festa no dia que vaiamanhecer! ~,Logo <strong>de</strong>pois e a um sinal <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida feito pelo vice-rei, as famlliase os oficiais se foram retirando sem <strong>de</strong>scuidar-se da profunda vbnia aele <strong>de</strong>vida.A JerBnimo Ll<strong>rio</strong> tinha o con<strong>de</strong> or<strong>de</strong>nado que se <strong>de</strong>morasse, equando haviam saldo todos os convidados, perguntou-the:- Este satisfeito?JerBnimo respon<strong>de</strong>u:- N k <strong>de</strong>sejo mat a algu6m; mas o Senhor Vice-Rei fez justiqa.- Saiba pois que esta ceia foi dada <strong>de</strong> propbsito para que rnuitose corn especialida<strong>de</strong> o senhor Jerbnimo Ll<strong>rio</strong> fossem testernunhas da prisbsolene <strong>de</strong> Alexandre Cardoso, porque a todos, por6m rnuito.especialmenteao senhor, o Vice-Rei <strong>de</strong>via urna satisfaqb pitblica.- Ah, Senhor Vice-Rei!- Eu tentei precipitd-lo a fazer a <strong>de</strong>sgrav <strong>de</strong> sua filha maismoqa, pedindo-lha em casarnento para esse hornem indigno, e ainda bern queo senhor ma negou; mas juro-lheque nb conhecia nem o careter, e menosos crimes do meu fatal ajudante oficial<strong>de</strong>-sala!- Eu e rninha farnllia sornos escravos da bonda<strong>de</strong> do SenhorVice-Rei.- Pois bem; d6-me uma prova disso: .peqa-me um serviqo, urnfavor que esteja nas minhas faculda<strong>de</strong>s satisfazer.JerBnimo anirnou-se e disse:- Pew ao Senhor Vice-Rei o cumprimento <strong>de</strong> urna promessaque sere para n6s a honra mais elevada.- Qual6?- Que o Senhor Vice-Rei se digne ser padrinho do casamento <strong>de</strong>minha filha Inbs com este mancebo.E mostrou Isidoro.- Oh! com o nosso <strong>br</strong>avo cavalheiro! Perfeitamente: serei o pa-drinho do casamento.Saindo do paleci~ e no ato <strong>de</strong> embarcarern as senhoras nas ca<strong>de</strong>irinhas,JerBnimo perguntou a Antbnio Pires: / ..


- Entiio que dizes agora do vice-rei?- Digo que ele acordou muito tar<strong>de</strong>; Deus po<strong>de</strong> perdoar-lhe; ajustiqa do rei n5o.


A <strong>de</strong>sgraga <strong>de</strong> Alexandre Cardoso foi geralrnente recebida cornojusto castigo.0 infeliz <strong>de</strong>srnoralizado oficial <strong>de</strong>via consolar-se porque a suapunigo se lirnitou a seguir para Lisboa, on<strong>de</strong> alias acabou seus dias narnaior e rnais torrnentosa rnishria.0 povo nb perdoou o Con<strong>de</strong> da Cunha o ngo ter castigadoexernplarrnente no Rio <strong>de</strong> Janeiro a Alexandre Cardoso, e a rnern6ria do<strong>gov</strong>erno opressor e <strong>de</strong>sp6tico <strong>de</strong>sse vice-rei ficou rnarcada corn o selo da reprovagbplrblica.0 gran<strong>de</strong> rninistro do rei D. Jose I, o MarquGs <strong>de</strong> Pombal, <strong>de</strong>ixoutarnbgrn enten<strong>de</strong>r que o <strong>gov</strong>erno <strong>de</strong> Lisboa igualrnente con<strong>de</strong>nara a administrag50do Con<strong>de</strong> da Cunha; porquanto o Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Azambuja chegoupara substitul-lo no vice-reinado do Brasil, inesperadarnente, sern ter havidoprevengo algurna, e surpreen<strong>de</strong>ndo o vice-rei <strong>de</strong>rnitido <strong>de</strong> rnodo sern dlrvidabern <strong>de</strong>sagradavel.A 21 <strong>de</strong> novern<strong>br</strong>o <strong>de</strong> 1767, entregou o Con<strong>de</strong> da Cunha ao <strong>de</strong>Azarnbuja o vice-reinado do Brasil, e poucos dias <strong>de</strong>pois seguiu paraPortugal.Maria <strong>de</strong>. . . esqueceu <strong>de</strong>pressa os gozos sinistros da sua vinganm<strong>de</strong> vaidosa no ernpenho <strong>de</strong> novas conquistas e nos <strong>br</strong>apos <strong>de</strong> novos arnantes,entre os quais a tradi~b nb diz qua se contasse algurn outro ajudanteof icial<strong>de</strong>-sala do vice-rei.0 vice-reinado do velho Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Azarnbuja durou apenas doisanos incornpletos, suce<strong>de</strong>ndo-lhe o Marques do Lavradio que era rnuito senslvelaos encantos do belo sexo, e ar<strong>de</strong>nternente se apaixonou porMaria <strong>de</strong>. . .Mais tar<strong>de</strong> me ernpenharei em escrever a hist6ria ou o romance<strong>de</strong>sses arnores do Vice-Rei Marquds do Lavradio e da forrnosa cortesl.


1 - OBRAS DO ALJTOR1844 - A rnoreninha (romance)1845 - 0 rnqo loiro (romance)0 cego (teatro)1848 - 0s dois amores (romance)1849 - Rosa (romance)- Cob& (teatro)1853 - Vicenrina (romance)1855 - 0 forasreiro (romance)1856 - 0 fanrasrna <strong>br</strong>anco (teatro)1857 - A nebulosa (poema)1 858 - 0 primo da California (teatro)1860 - Luxoevaida<strong>de</strong>(teatro)186 1 - Romances da Sernana (romance)1862 - Um passeio pela cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro1863 - 0 novo Orelo (teatro)A rorre em concurso (teatro)Lusbela (teatro)1865 - 0 culro do<strong>de</strong>ver (romance)1867-68 - Mem<strong>br</strong>ias <strong>de</strong> urn so<strong>br</strong>inho do rneu <strong>rio</strong> (romance)1869 - A lunera rnigica (romance)As vitirnas algozes; quadro da escravidb (romance)0 <strong>rio</strong> do quarro (romance)1870 - Anarnora<strong>de</strong>ira(romance)187 1 - Urn noivo e duas noivas (romance)I 1872 - 0s quatro ponros car<strong>de</strong>ais (romance)A rnisre<strong>rio</strong>sa (romance)


1873 - Cincinato Que<strong>br</strong>a-Louqas (teatro)1876 - A baronesa do amor (romance)1878 - Memdrias da Rua do Ouvidor1880 - Antonica da Silva (teatrq)2. SU'GESTOES DE LEITURAS SOBRE o AUTORAMORA, A.Soares. 0 rornantismo. Sa"o Paulo, Cultrix, 1967. p.210-238.BOSI, ~lfredo. Histdria concisa da literatura <strong>br</strong>asileira. S b Paulo, Cultrix,1970. p. 143-145.CANDIDO, Antonio. 0 honrado e facundo Joaquim <strong>Manuel</strong> <strong>de</strong> <strong>Macedo</strong>. In:-. FormaPo da literatura <strong>br</strong>asi1eira;momentos <strong>de</strong>cisivos. Sa"o Paulo,Martins, 1959. v. 2. p. 97-101; 136-145.COUTINHO, Afrinio (dir). A literatura no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Sul-Arnericana,1955. v. 2. p. 231-236.MERQUIOR, J. Guilherme. De Anchieta a Eucli<strong>de</strong>s; <strong>br</strong>eve hist6ria da literatura<strong>br</strong>asileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jose Olympio, 1977. p. 63-64.PEREI RA, Astrogildo. Interpretaqk. Rio <strong>de</strong> Janeiro, CEB, 1944. p. 49-1 13.ROMERO, Sllvio. Historia da literatura <strong>br</strong>asileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro, JoseOlympio, 1943. p. 260-271.SANT'ANNA, A. Romano <strong>de</strong>. A moreninha. In:-. Aniilise estrutural <strong>de</strong>romances <strong>br</strong>asileiros. Petr6polis, Vozes, '1973.p.84-96.VER~SIMO, Jose. Histdria da literatura <strong>br</strong>asileira. Brasilia, Ed. UNB, 1963.p. 172-176.


Impress0 ern 011 $el DOCERR~GIEDITORA, GRAFICA E PUBLICIDADE LTDARua Sargenla Salva Nunes. 154 - Ramos - Tel 270-3946RIO <strong>de</strong> Janelro - RJcorn lllrnes fornecidos oelo edllor


As mantilhas do t(tulo s8o oselemntos-chave <strong>de</strong>ste mecanismo<strong>de</strong> disfarce. De ornament- usadospelas mulheres honestas do %a110XVl ll tornam-se, no romance <strong>de</strong><strong>Macedo</strong>, urn forrna <strong>de</strong> <strong>de</strong>smascaramentodas arbitrarieda<strong>de</strong>s do po<strong>de</strong>r.Sob elas se esoon<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ntidadw ese revelam verda<strong>de</strong>s.E 4 jubtamente nas festas popularesque crltica e <strong>de</strong>sejo se encontram.E a( que acham <strong>br</strong>echaspara se expandir, agilizrndo aC(les<strong>de</strong> rebelim contra o <strong>gov</strong>erno opreksor do Con<strong>de</strong> da Cunha e os abum<strong>de</strong> seu ajudants<strong>de</strong>-or<strong>de</strong>ns.Num clima <strong>de</strong> mistb<strong>rio</strong>, intrigas,paix8es, amores imposs(veis emuito suspense se movimentam osperoon'agens, at6 o final, cheio <strong>de</strong>mistb<strong>rio</strong> e e o.Mime volume da BibliotecaCa<strong>rio</strong>ca, As Mulheves <strong>de</strong> Mantilhatraz para o leitor <strong>de</strong> hoje um textopouco conhecido <strong>de</strong> um <strong>de</strong> nossosmaiores escritores romlnticos. Aoleitor, o prazer <strong>de</strong> apreciar ora oromancista perfeito, ora o historiadormeticu loso.


.BlBLlOTECA CARIOCA1 - A Era das Demol&6es/Habiti3$&es Populares, <strong>de</strong> OswaldoPorto Rocha e Lia <strong>de</strong> Aquino Carvalho2 - Afommentos - inventd<strong>rio</strong> surni<strong>rio</strong>, elabord por equipesdo Arquivo Geral da Cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Jaiwiro3 - Rio <strong>de</strong> blaneiro: Cida<strong>de</strong> e Reguo, <strong>de</strong> Lyb Bernamhs e+Maria Theminha <strong>de</strong> Segadas Soares.I4 - A Alma Emntadors <strong>de</strong>s Russ, <strong>de</strong> Joh do Rioi6 - Histdrb ch Cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong>Janeiro, <strong>de</strong> Delgado <strong>de</strong> Ca~lhoPr6ximo lammento:Da<strong>rio</strong> do Hosg/cb/O Cemithb dos Vivos, <strong>de</strong> Lima Barreto

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!