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Formas de apagamento das línguas indígenas - Universidade ...

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Ângela Santana Saturnino 2[2]Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Brasília<strong>Formas</strong> <strong>de</strong> <strong>apagamento</strong> <strong>das</strong> línguas indígenas 1[1]O objetivo <strong>de</strong>sta comunicação, que é parte <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> pesquisa mais amplo, écompreen<strong>de</strong>r como se <strong>de</strong>u o processo <strong>de</strong> constituição do discurso sobre as línguas indígenas noBrasil, através da análise <strong>de</strong> alguns textos dos períodos iniciais da colonização, pois, para seenten<strong>de</strong>r o que se tem hoje é fundamental compreen<strong>de</strong>r o que ocorreu na colonização, enquanto umdiscurso fundador (Orlandi: 1993) <strong>de</strong> nossa brasilida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional. Nosso objetivo maisespecífico é <strong>de</strong>stacar e analisar alguns mecanismos lingüísticos e discursivos utilizados para apagaras línguas indígenas e o seu discurso, ou seja, para apagar a história <strong>de</strong> povos e culturas distintas <strong>das</strong>européias, brancas e cristãs.Em certas obras que falam sobre as línguas indígenas (LI), percebe-se o funcionamento <strong>de</strong>uma formação discursiva 3[3] , acarretando efeitos <strong>de</strong> sentidos que caracterizam um discursopreconceituoso. Existem inúmeros enunciados, em diferentes autores, <strong>de</strong> diferentes períodoshistóricos, que tratam a LI como uma língua “bárbara”, “rústica”, “pobre” e “primitiva”. Caberessaltar que este último vocábulo não tem aqui o seu significado etimológico, o <strong>de</strong> “primeiro”, masadquire um sentido pejorativo, o <strong>de</strong> “selvagem”. Vamos aqui nos <strong>de</strong>ter nos dois séculos iniciais dacolonização, tendo como recorte textos <strong>de</strong> Abbeville (1945), Léry (1980), Thevet (1978),mencionados na bibliografia.A partir da leitura dos textos, percebe-se que as línguas indígenas eram inteiramentediferentes <strong>das</strong> línguas <strong>de</strong> “civilização”, a que os europeus estavam acostumados, e que issoprovocava por parte <strong>de</strong>les uma avaliação negativa. Faz-se presente o fenômeno do etnocentrismo,segundo o qual o indivíduo vê to<strong>das</strong> as outras culturas em função da sua própria cultura. Daí o uso<strong>de</strong> adjetivos como “extravagante”, “exótico”, para tudo que não ia <strong>de</strong> encontro ao seu ambientecultural. Em relação à língua, o etnocentrismo era ainda maior, porque a língua faz parte doindivíduo, ou melhor, o constitui como sujeito e é o meio permanente <strong>de</strong> contato com o mundo, coma cultura, com o outro, consigo mesmo.1[1] . Texto apresentado na “V Jornada <strong>de</strong> Produção Científica <strong>das</strong> Universida<strong>de</strong>s Católicas do Centro-Oeste”,realizada na Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Brasília, <strong>de</strong> 03 a 05 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 2001.2[2] . Graduanda em Letras e bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica da UCB no projeto “O Português do Brasil”.3[3] . “A formação discursiva se <strong>de</strong>fine como aquilo que numa formação i<strong>de</strong>ológica dada – ou seja, a partir <strong>de</strong>uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – <strong>de</strong>termina o que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser dito.” (Orlandi:1999, 43)


Câmara Jr. (1965) fala sobre a existência do preconceito lingüístico em relação a algumaslínguas antigas, evi<strong>de</strong>nciando que o mesmo existe há muito tempo. Refletindo sobre o nosso tema,po<strong>de</strong>mos dizer que o preconceito é um efeito <strong>de</strong> sentido produzido pelas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rexistentes no interior <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> e entre diferentes socieda<strong>de</strong>s. E se <strong>de</strong>u, no nosso caso,quando o colonizador se <strong>de</strong>parou com uma língua indígena diversa, em condições culturaiscompletamente diferentes <strong>das</strong> suas, e não sabendo ou não dispondo <strong>de</strong> instrumental para lidar com adiferença, encontra como solução <strong>de</strong>nominá-las línguas “inferiores”.Algumas teorias do campo <strong>das</strong> ciências humanas e sociais fortaleceram, historicamente, essediscurso discriminatório e conservador, como a teoria do homem natural e a teoria evolucionista. Naprimeira teoria, formulada no século XVIII, fazia-se uma distinção entre os homens. Distinção estaque fazia com que alguns homens fossem vistos como naturais, significando “selvagem”, e outros,como homens <strong>de</strong> cultura, significando “civilizados”. Essa distinção influenciava até mesmo emcomo a língua era vista, pois se a língua é parte do homem, e se os homens eram distintos, logo suaslínguas também o eram. Sendo esta diferenciação, mais um argumento para se menosprezarem aslínguas indígenas. Já na segunda teoria, formulada no século XIX, a idéia central era a <strong>de</strong> evolução,<strong>de</strong> progresso. Nesta, acreditava-se que o homem passava, gradualmente, por uma evoluçãocontínua, o que possibilitou a evolução da humanida<strong>de</strong>. Evolução que partia <strong>de</strong> um estágio atrasadopara um estágio adiantado. Com base nesta teoria, os povos indígenas – e as línguas por eles fala<strong>das</strong>- teriam permanecido em um estágio menos evoluído. A partir <strong>das</strong> duas teorias aborda<strong>das</strong> po<strong>de</strong>-sechegar a um único adjetivo capaz <strong>de</strong> qualificar tanto o povo como a língua indígena: “primitivo”.Nos textos analisados, observamos outras formas lingüísticas em seu funcionamentodiscursivo que contribuíram para que a língua indígena se tornasse cada vez mais opaca. Nos textos,encontramos a alegação <strong>de</strong> que os “selvagens” falavam <strong>de</strong> maneira “ininteligível”, “engrolada”, ouque eles quase não falavam, trocavam por gestos as palavras, articulavam mal os sons e que, entreeles, cada som variava muito e não tinha niti<strong>de</strong>z. Porém, nunca se atentava para o fato <strong>de</strong> que tudoisto podia ocorrer em outra cultura. Ao se analisar, por exemplo, uma conversa corriqueira hoje, <strong>de</strong>falante <strong>de</strong> português, no Brasil, em que não há um policiamento do que se diz, o analista iráencontrar certamente a sua frente o mesmo fenômeno: palavras “mal enuncia<strong>das</strong>”, sons “malarticulados”, gestos também suprindo a voz, e assim por diante. Com relação às LI, parece-nos, quequeriam que falassem <strong>de</strong>vagar e claramente para facilitar a compreensão dos colonizadores. E comoisto não ocorria, atribuía-se ao outro o problema, concluindo que a LI era confusa.


Ao se analisar uma LI, está se analisando uma língua como qualquer outra, em que não hánada <strong>de</strong> sobrenatural, mas sim uma estrutura lingüística que po<strong>de</strong> inclusive ser similar à nossa emalguns pontos, dirá um lingüista. Discursivamente, sabemos, contudo, que a língua tem umaautonomia relativa, porque afetada pela história e que se há a estrutura há também o acontecimento.O discurso é efeito <strong>de</strong> sentido entre locutores e parte do funcionamento da socieda<strong>de</strong>. O sentido nãoestá, pois, na palavra, nem em cada um dos interlocutores, nem só na estrutura, mas na relação, e arelação era <strong>de</strong> diferença radical.Um estudioso po<strong>de</strong> não perceber estas semelhanças e diferenças porque ele já possui umdiscurso formado, ou seja, constituiu-se em formações discursivas específicas, e, <strong>de</strong>sta forma,<strong>de</strong>fine o que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser registrado sobre as LIs a partir da posição <strong>de</strong> sujeito que ele ocupa.Isto evi<strong>de</strong>ncia as relações entre práticas científicas e práticas políticas, entre teorias e ética.Trago, então, alguns enunciados em que po<strong>de</strong>mos observar as relações imaginárias sobre aLI e seu povo funcionando no discurso do colonizador, no caso, <strong>de</strong> um missionário:“Louvo gran<strong>de</strong>mente tua sabedoria, velho amigo dos franceses, pelo fato <strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rando amiséria e a cegueira <strong>de</strong> tua nação, não só relativamente ao conhecimento do verda<strong>de</strong>iro Deus, mas,também, <strong>das</strong> cousas necessárias ao uso do homem, que te alegrares com a minha chegada e com omeu projeto <strong>de</strong> residir na tua terra” (Abbeville: 1945: 61)“Nossa permanência será um bem e fará a riqueza <strong>de</strong> vosso país, <strong>de</strong> vossos pósteros, os quaisserão doravante iguais a nós e saberão todos as belas coisas que sabemos” (Abbeville:1945:57)“Desnecessário me pareceu perguntar se essas pobres criaturas se compraziam no espetáculo <strong>de</strong>tão belas cerimônias da celebração do santo mistério, principalmente ante a lindos ornamentos <strong>de</strong>que nos revestimos” (Abbeville: 1945 :57)Na obra <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> D´Abbeville, nota-se as marcas <strong>de</strong>sse discurso preconceituoso no sentido<strong>de</strong> negação e <strong>apagamento</strong> do índio como um homem, só que diferente, como se observa acima. Eum dos meios <strong>de</strong> produzir esses efeitos <strong>de</strong> sentido é colocar esta fala – sobre si próprio – na boca docolonizado. No trecho abaixo, um velho ancião indígena fala em um texto que é o europeu quemrelata:“Apresentaram êsses profetas ao nosso pai, do qual <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>mos, duas espa<strong>das</strong>, uma <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira eoutra <strong>de</strong> ferro e lhe permitiram escolher. Êle achou que a espada <strong>de</strong> ferro era pesada <strong>de</strong>mais epreferiu a <strong>de</strong> pau. Diante disso o pai <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>stes, mais arguto, tomou a <strong>de</strong> ferro. Des<strong>de</strong>então fomos miseráveis, pois os profetas, vendo que os <strong>de</strong> nossa nação não queriam acreditarnêles, subiram para o céu, <strong>de</strong>ixando as marcas dos seus pés cravados com cruzes no rochedopróximo <strong>de</strong> Potiú que tu viste tão bem quanto eu (disse dirigindo-se a Migan)”.(Abbeville:1945:61).


Neste trecho, tem-se a impressão <strong>de</strong> que o ancião profere as palavras que o branco querouvir <strong>de</strong>le. Alfredo Bosi, na obra “Dialética da Colonização”(1998), menciona algo similar ao queobservamos em Abbeville, quando fala sobre Anchieta. Bosi diz que o objetivo <strong>de</strong> Anchieta era o <strong>de</strong>incutir a mensagem católica. E como se dava esse processo <strong>de</strong> inculcação? Penetrando noimaginário do outro por meio <strong>de</strong> uma transposição, pela fala do índio, da mensagem cristã-católica.Neste ponto, entra em questão o <strong>apagamento</strong> do discurso “do” índio como forma, inclusive,<strong>de</strong> se constituir um discurso “sobre” as LI. O relato podia levar, ainda, a uma leitura em que o velhoíndio não teria voz, no sentido <strong>de</strong> dizer realmente o que pensava, precisando, sempre, da mediação,da tutela do europeu para dizer e para se dizer.Além da voz do europeu na fala do índio havia outras formas <strong>de</strong> <strong>apagamento</strong>. Uma <strong>de</strong>lasocorria freqüentemente quando o índio falava, e, neste momento, surgia o padre ou o pesquisadorque as interpretava como lhes convinha.No período inicial da colonização, era principalmente através do discurso religioso que sepromovia o <strong>apagamento</strong> do discurso indígena e da sua cultura. Os missionários aprendiam as LIcom fins utilitários, mas também políticos. A língua, além da função didático-religiosa era umpo<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> comunicação entre colonizados e colonizadores e entre ospróprios colonizados, como foi o caso <strong>das</strong> línguas gerais, para manipulação dos povos indígenas epara expansão e fortalecimento da colonização.Além da fala do branco sobre o índio, da fala do índio materializada na fala do europeu e dainterpretação da fala indígena feita pelo europeu, existiam também as traduções feitas por viajantese missionários que até hoje circulam em diferentes ambientes letrados. A tradução também po<strong>de</strong> servista, então, como uma forma <strong>de</strong> <strong>apagamento</strong>, porque nela havia mudanças ou alterações da falaindígena em sua materialida<strong>de</strong> lingüística e discursiva. Por meio <strong>das</strong> traduções que faziam da LI,tinha-se a idéia <strong>de</strong> uma língua rústica, pobre, sem lógica, em que faltavam sons, palavras, conceitos.Aqui, a palavra traduzir ganha uma nova significação: aculturar. Muda-se a forma <strong>de</strong> <strong>apagamento</strong>,<strong>de</strong>sloca-se, mas ele permanece funcionando. Por meio <strong>de</strong>ssas traduções e interpretações produziamseo <strong>apagamento</strong> da cultura indígena e o modo como a língua e seus sentidos circulavam esignificavam.Há, contudo, um fato relevante a se <strong>de</strong>stacar neste processo enquanto um elementoconstitutivo do mesmo: a <strong>de</strong> que aí estava se constituindo um discurso “sobre” as LI com umaconfiguração própria. Um discurso formado por escolhas do que se <strong>de</strong>via dizer em <strong>de</strong>trimento do


que não se podia, formado pelo silêncio - que também significa -, por interpretações <strong>de</strong>termina<strong>das</strong>,pela absorção e anulação do imaginário indígena que produziu uma posição <strong>de</strong> sujeito brasileirosempre dividida por essa transposição <strong>de</strong> uma fala que não era a sua para o seu próprio discurso.BibliografiaABBEVILLE, Clau<strong>de</strong> D. História da missão dos padres capuchinhos a ilha do Maranhãoe terras circunvizinhas: em que se trata <strong>das</strong> singularida<strong>de</strong>s admiráveis e doscostumes estranhos dos índios habitantes do país. São Paulo: São Martins, 1945.BOSI, Alffredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia <strong>das</strong> letras, 1998.CÂMARA, JJr. , Joaquim Mattoso.Introdução ás línguas indígenas brasileiras. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Museu Nacional, 1965.CAMINHA, Pero Vaz <strong>de</strong>. Carta ao rei Dom Manuel/ Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha. Rio <strong>de</strong>Janeiro. Ed.:Ediouro, 1999.FOUCALT, Michel. A or<strong>de</strong>m do discurso. Trad. Laura Fraga <strong>de</strong> Almeida Sampaio. SãoPaulo: Edições Loyola, 1996.FREIRE,Giilberto. Casa gran<strong>de</strong> & senzala: formação da família brasileira sobre o regimeda família patriarcal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1995.LÉRY, Jean <strong>de</strong>. Viagem à terra do Brasil. Tradução e notas Sérgio Milliet. Belo Horizonte:Ed.Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.MAGALHÃESS, Joaquim Romero e Miranda, Susana Münch. Os primeiros 14documentos Relativos à armada <strong>de</strong> Pedro Álvares Cabral. Lisboa: ComissãoNacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999.ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. SãoPaulo: Cortez Editora; Campinas/SP: Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas, 1990._____. Análise do Discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1990._____. Discurso fundador. Campinas: Pontes, 1993.STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Trad. Guiomar <strong>de</strong> Carvalho Franco. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974.RODRIGUESS, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento <strong>das</strong> línguasIndígenas. São Paulo: Loyola, 1986.THEVET, AAndré. As singularida<strong>de</strong>s da França Antártica. Trad. Eugenio Amado. BeloHorizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978.

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