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Alfabetização: Sujeito e Autoria - Universidade Católica de Brasília

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ao mesmo que mantém e/ou modifica o próprio modo <strong>de</strong> apropriação. No processo <strong>de</strong> ensino eaprendizagem, a produção do discurso é, então, organizada, controlada, redistribuída, através <strong>de</strong>mecanismos <strong>de</strong> exclusão que funcionam em diferentes instâncias, e <strong>de</strong> diferentes formas, nainstituição escolar.Tais procedimentos reproduzem não só um funcionamento discursivo dado, como tambémas condições <strong>de</strong>sse funcionamento, através <strong>de</strong> prática cotidiana <strong>de</strong> restrições - regras, categorização,or<strong>de</strong>nação e distribuição da língua -, que buscam conter a dispersão do sujeito e do sentido. Nestetrabalho <strong>de</strong> linguagem e com a linguagem, o sujeito irá - ou não - exercer <strong>de</strong>terminadas funções, ouexercê-llas <strong>de</strong> diferentes maneiras, irá qualificar-se para falar, ler e escrever como cidadão <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> livre.Neste sentido, po<strong>de</strong>mos pensar a autoria, seguindo inicialmente Foucault (1969), como umafunção enunciativa fundamental para a organização e gestão social da discursivida<strong>de</strong> em umasocieda<strong>de</strong> dada. Para ele, tal forma <strong>de</strong> individualização do sujeito é entendida como princípio <strong>de</strong>agrupamento do discurso, como unida<strong>de</strong> e origem <strong>de</strong> suas significações, como foco <strong>de</strong> sua coerência[...] O princípio do autor limita o acaso do discurso pelo jogo <strong>de</strong> uma "i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>" que tem a formada "individualida<strong>de</strong>" e do "eu". (26-29).Orlandi e Guimarães (1985) trabalharam esse princípio <strong>de</strong> autoria proposto por Foucault,ampliando-o para todo texto <strong>de</strong> um sujeito em que se produz um efeito discursivo <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> nãocontradição,<strong>de</strong> coerência, <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> relevância, <strong>de</strong> correção gramatical. Este seria o lugarenunciativo <strong>de</strong> controle da dispersão do sujeito e do texto (sentido).Para que o sujeito se coloque como autor, ele tem <strong>de</strong> estabelecer uma relação com a exteriorida<strong>de</strong>,ao mesmo tempo em que ele se remete à sua própria interiorida<strong>de</strong>: ele constrói assim sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>como autor, isto é, ele apren<strong>de</strong> a assumir o papel <strong>de</strong> autor e aquilo que ele implica.(Orlandi,1983:78)A autoria seria, então, uma outra função enunciativa do falante que viria acrescentar-se à <strong>de</strong>locutor - aquele que se representa como "eu" - e à <strong>de</strong> enunciador - a perspectiva que esse "eu"constrói; sendo o autor a função social que esse "eu" assume enquanto produtor da linguagem.O falante é o material empírico bruto, enquanto o enunciador é o sujeito dividido em suas váriasposições no texto. O autor, ao contrário, é a diferença (originalida<strong>de</strong>) sem ser divisão(individualida<strong>de</strong>). O autor, então, enquanto tal, apaga o sujeito produzindo uma unida<strong>de</strong> que resulta<strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação do sujeito pelo seu discurso. Desse modo vê-se a ação do discursosobre o sujeito. (Orlandi, 1983: 61)


<strong>Autoria</strong> é uma função enunciativa fundante <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong>, uma posição que constrói umlugar <strong>de</strong> referencialida<strong>de</strong> e literalida<strong>de</strong> para o sujeito letrado atuar na socieda<strong>de</strong>, enquanto um sujeitolivre para submeter-se a uma língua escrita com estrutura e funcionamento <strong>de</strong>limitados porgramáticas, dicionários, manuais, bem como por disciplinas e práticas próprias da escritura.No exercício enunciativo <strong>de</strong>ssa função, o sujeito <strong>de</strong>ve assumir o seu dizer como um atopessoal e responsabilizar-se por ele, nomeando uma coisa em sua singularida<strong>de</strong>; configurando-secomo uma individualida<strong>de</strong>, assegurando-se uma imagem. Neste lugar, o sujeito se apresenta - erepresenta - como um enunciador que dommina e controla o acontecimento discursivo, com um dizersem falhas: um sujeito consciente e intencional que conhece e domina um objeto <strong>de</strong> conhecimentounívoco.A individualida<strong>de</strong> que aí se constitui, caracteriza-se não pelo objeto do qual se apropria,mas pelo modo como o faz. Mesmo porque esse objeto não é um objeto empírico, mas, sim, históricoe simbólico, referido a uma exteriorida<strong>de</strong> discursiva: uma positivida<strong>de</strong> que se constrói no interior <strong>de</strong>uma re<strong>de</strong> discursiva com suas relações <strong>de</strong>s<strong>de</strong>-já <strong>de</strong>terminadas histórica e inconscientemente.O Discurso Pedagógico irá construir os objetos <strong>de</strong> que falamos: língua, escrita, leitura, leitor,autor..., enquanto uma prática discursiva: um conjunto <strong>de</strong> regras anônimas, históricas, sempre<strong>de</strong>terminada no tempo e no espaço, que <strong>de</strong>finiram, em uma dada época e para uma <strong>de</strong>terminadaárea as condições <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> uma função enunciativa. (Foucault: 1969)No cotidiano pedagógico <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong> uma textualida<strong>de</strong> dadahistoricamente, a escola irá atuar na construção <strong>de</strong>ssa autoria pelo modo como trabalha a/com alinguagem e as línguas no domínio e controle dos processos discursivos e dos processos textuais.Encontramo-nos, assim, no cerne do problema da subjetivida<strong>de</strong> em sua relação com a escrita nainstituição escolar, ao buscar compreen<strong>de</strong>r como se dá a inserção do sujeito na socieda<strong>de</strong>, na cultura,via domínio <strong>de</strong> um novo espaço <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> linguagem: o mundo letrado, via apropriação <strong>de</strong> umobjeto histórico e simbólico: a escrita.Em se tratando da socieda<strong>de</strong> brasileira, esta apropriação se <strong>de</strong>u, historicamente, emcondições lingüísticas, econômicas e sociais específicas: pela disciplinarização das línguas indígenas,pela distribuição privada das terras e pela adoção do trabalho escravo. No interior <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong>domesticação dos bens da terra e do homem do Novo Mundo é que po<strong>de</strong>mos pensar na constituiçãoda prática discursiva do apren<strong>de</strong>r a ler e a escrever em sua ambigüida<strong>de</strong> fundamental: a da repetiçãomecânica <strong>de</strong> letras, sílabas, palavras e frases e/ou a da interpretação polissêmica <strong>de</strong> textos.


Uma ambigüida<strong>de</strong> que marca o próprio objeto a ser apropriado e que obriga, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o suacriação, os setores dominantes <strong>de</strong> cada socieda<strong>de</strong>, através do Estado, a adotarem diferentes políticas epráticas pedagógicas para <strong>de</strong>limitar e limitar as possibilida<strong>de</strong>s interpretativas <strong>de</strong> uma textualida<strong>de</strong>construída a partir da escrita alfabética, no sentido <strong>de</strong> produzir diferentes leitores e autores que irãose distribuir pelos seus vários setores produtivos, presos - mais ou menos - a um imaginárioespecífico.A escrita permite a transformação <strong>de</strong> uma língua em um objeto <strong>de</strong> conhecimento e que seatinja, imaginariamente, o real da língua, tornando o sujeito potente e competente para dominá-la eaprisioná-la a categorias e regras. Se o filho do homem se torna sujeito ao ser tomado pelo simbólicoda linguagem que o torna falante, no caso da escrita, esse sujeito <strong>de</strong>verá tomar, imaginariamente, alinguagem para que se torne leitor e autor. E aí então, o homem tem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervirexplicitamente e dar uma direção a essa apropriação, controlando a língua, o sujeito que ensina eapren<strong>de</strong> e o sentido produzido nessa nova relação do homem com a linguagem.Em se tratando da escrita alfabética, vamos encontrar novos elementos para reflexão aopensar na relação altamente abstrata e diferenciada que ela estabelece com a língua falada, no abismoque cria entre a linguagem e o mundo para constituir um sujeito que <strong>de</strong>s-conhece sua língua e umobjeto a ser conhecido e que <strong>de</strong>verá ser transposto para unir, <strong>de</strong> uma outra forma e em um outroespaço-tempo, um imaginário rompido atravessado pelo simbólico da linguagem. Novas cenasenunciativas <strong>de</strong>verão ser construídas para o re-encontro do sujeito com aquilo que significa algo paraele, para que seja suturado aquilo que foi construído pelo outro como falta.Neste trabalho <strong>de</strong> pesquisa, estamos particularmente interessados na questão da autoria, ouseja, em como o sujeito, neste novo espaço <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> linguagem, apropria-se <strong>de</strong> uma formaparticular da escrita, domina-a, controla-a, produz interpretações e textos próprios, responsabiliza-sepelo dito. Trata-se <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> individualização em que o sujeito <strong>de</strong>ve inscrever-se em uminterdiscurso - memória do dizer - marcado por um tipo <strong>de</strong> abstração que <strong>de</strong>termina uma forma <strong>de</strong>racionalida<strong>de</strong>: jurídica, religiosa, moral, política, científica.O sujeito <strong>de</strong>ve inscrever-se em uma cultura específica: a letrada, racional e urbana, ocuparuma posição enunciativa histórica: a <strong>de</strong> leitor e <strong>de</strong> autor. Nessa forma <strong>de</strong> individualização (umaunida<strong>de</strong> assegurada pela consciência), um sujeito moral (responsável por seus atos) é o complementonecessário do sujeito <strong>de</strong> direito (aquele que tem uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> socialmente reconhecida ereconhecível) e, em se tratando do Brasil, sustentada por um sujeito religioso (temente a Deus). Este


e diz, lê ou escreve enquanto sujeito-falante, "saberá" o que po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser dito. A partir <strong>de</strong>ssaposição, o sujeito se apresenta e representa como leitor e autor <strong>de</strong> textos que têm <strong>de</strong>terminadasinterpretações como evi<strong>de</strong>ntes.As palavras não têm um sentido próprio, evi<strong>de</strong>nte, natural, universal, literal. Seu sentido seconstitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposiçõesmantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva.(Pêcheux:1988). No entanto, o modo como as práticas tratam a escrita, trabalham o esquecimento,pelo sujeito, daquilo que o constituiu como uma unida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>terminou em sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.Pêcheux (1988) <strong>de</strong>fine dois tipos <strong>de</strong> esquecimentos inerentes ao discurso: o esquecimento nº2 pelo qual todo sujeito-falante "seleciona" no interior da formação discursiva que o domina, isto é,no sistema <strong>de</strong> enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação <strong>de</strong> paráfrase - umenunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que po<strong>de</strong>riareformulá-lo na formação discursiva consi<strong>de</strong>rada. Quanto ao esquecimento nº 1, ele dá conta do fato<strong>de</strong> que o sujeito-falante não po<strong>de</strong>, por <strong>de</strong>finição, se encontrar no exterior da formação discursivaque o domina. (:173). Nesse espaço <strong>de</strong> reformulações e paráfrases, acobertadas por essesesquecimentos, produz-se um imaginário que irá dar a interpretação "necessária" e "possível" da"realida<strong>de</strong>".Assim, quando dizemos que a alfabetização é uma prática pedagógica, social e política,estamos pensando esse social como formações imaginárias que se constituem a partir das relaçõesque se estabelecem entre uma situação, sociologicamente <strong>de</strong>scritível, e posições <strong>de</strong> sujeito; e essepolítico como a direção dada aos sentidos que se constituem, junto com o sujeito, em <strong>de</strong>terminadasformações discursivas.O sujeito, imerso nessa re<strong>de</strong> discursiva, encontra-se sempre face à atribuição <strong>de</strong> sentido, à<strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> domínios <strong>de</strong> saber, à interpretação. Nesses gestos <strong>de</strong> interpretação, o sujeito não seencontra, contudo, à <strong>de</strong>riva, aberto à uma polissemia plena e sem limites, pois a interpretação éregida por condições <strong>de</strong> produção específicas, mas que aparecem como sendo iguais para todos,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da situação <strong>de</strong> enunciação e do contexto histórico, fazendo emergir,conseqüentemente, uma literalida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> garantir uma comunicação sem equívocos.Embora o enunciado seja sempre um acontecimento discursivo, que nem a língua nem osentido po<strong>de</strong>m esgotar, pois abre-se para uma memória, para uma história, a prática pedagógicatransforma-o em um repetível, que se esgota no momento da situação enunciativa, que permite liberar


o enunciado <strong>de</strong> toda a sua opacida<strong>de</strong> e conferir-lhe uma unicida<strong>de</strong>, uma consciência, um caráter <strong>de</strong>evidência, condição necessária para o funcionamento da i<strong>de</strong>ologia.Na análise do Discurso Pedagógico, interessa-nos, pois, compreen<strong>de</strong>r as diferentesinstâncias <strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong> uma língua em que se fundam essas unida<strong>de</strong>s que controlam a dispersãodo sujeito e do texto, on<strong>de</strong> aparecem e se apaga uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> objetos. Analisando o DP, vemosse <strong>de</strong>sfazerem os laços entre as palavras e as coisas e emergirem regularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa práticadiscursiva que constrói sistematicamente os objetos - escrita, leitura, texto, palavra, sílaba,, letras - <strong>de</strong>que falamos. Nesse trabalho com um cammpo <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>paramo-nos com posições <strong>de</strong>sujeito históricas, com uma subjetivida<strong>de</strong> que aí se constituiu.Vygosty (1994) é um autor que fornece, através <strong>de</strong> seus trabalhos no campo da psicologia,elementos significativos para que possamos compreen<strong>de</strong>r como se dá essa inscrição do sujeito emuma cultura <strong>de</strong>terminada, como se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam processos <strong>de</strong> filiação <strong>de</strong> sentidos. Ele nos fornecepistas, indícios, <strong>de</strong> como o conhecimento, a informação é (<strong>de</strong>ve ser) tratada na socieda<strong>de</strong>,especialmente a capitalista, tornando-se um elemento estruturante <strong>de</strong>ssa mesma socieda<strong>de</strong>.No processo <strong>de</strong> apropriação da escrita, o sujeito <strong>de</strong>verá inscrever-se em uma memóriadiscursiva, situar-se nessa nova re<strong>de</strong> <strong>de</strong> formulações, produzir uma síntese entre a memória daoralida<strong>de</strong> e a da escrita, reorganizar seu campo visual e espacial, reorganizar suas percepções,<strong>de</strong>slocar sua atenção, unir diferentemente sua experiência passada - da oralida<strong>de</strong> - com a presente -escrita. Deve, pois, assumir novo "comportamento", novos "hábitos", estabelecer novas relaçõesintersubjetivas, falar <strong>de</strong> uma outra posição enunciativa.Em seus textos, e <strong>de</strong> discípulos como Luria(1986), discute-se a questão da formação daconsciência no homem, no modo como ele elabora imagens do mundo, como assimila a experiênciasocial, como domina novas formas <strong>de</strong> refletir a realida<strong>de</strong> e tomam como objeto da psicologia asformas sociais da existência histórica do homem. Mostram, ainda, a relação entre a estruturação daconsciência e a da linguagem, tendo a palavra como elemento fundamental, no processo <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento da criança.Tomo, então, um artigo particular <strong>de</strong> Vygotsky, O papel do brinquedo no <strong>de</strong>senvolvimento(1994), para encaminhar essa reflexão, on<strong>de</strong> ele nos chama a atenção para duas coisas fundamentaisno processo <strong>de</strong> filiação discursiva: 1. para o sujeito enquanto forma <strong>de</strong> existência histórica <strong>de</strong>qualquer indivíduo, agente das práticas sociais (Pêcheux:1988), e 2. para o imaginário que cria umarealida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada histórica e inconscientemente para este sujeito atuar. Para ele, o que


caracteriza um brinquedo é o fato <strong>de</strong> nele a criança criar uma situação imaginária, uma situação quejá contém suas regras, explícitas ou não, antes do sujeito se pôr a brincar.Há, pois, algo já-dito anteriormente, antes, em outro lugar, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente, que Pêcheux(1988) chama <strong>de</strong> efeito <strong>de</strong> pré-construído, uma modalida<strong>de</strong> discursiva da discrepância pela qual oindivíduo é interpelado em sujeito... ao mesmo tempo em que é "sempre-já sujeito". Vygotsky relatauma observação feita por outro psicólogo, <strong>de</strong>screvendo um caso em que duas irmãs, com ida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cinco e sete anos, disseram uma para outra: "Vamos brincar <strong>de</strong> irmãs?". E aí, é interessante o que elediz: ... ao brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que uma irmã <strong>de</strong>veria ser. Na vida, a criançacomporta-se sem pensar que ela é a irmã <strong>de</strong> sua irmã. Po<strong>de</strong>ríamos dizer que estamos observandomovimentos <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sujeito no processo <strong>de</strong> interpelação. Ser irmã: umacoisa do significante daquilo que representa o sujeito para um outro significante (Lacan)Vygotsky prossegue falando em como elas se ajustam às regras do jogo, vestindo, falandocomo irmãs, encenam tudo aquilo que enfatiza suas relações como irmãs à vista <strong>de</strong> adultos eestranhos, ou seja, eu sou o que o outro não é. Um sistema <strong>de</strong> diferenças vai-se construindo e osujeito é preso a essa re<strong>de</strong> significante, fazendo emergir uma subjetivida<strong>de</strong> consciente que po<strong>de</strong> dizer"eu sou irmã <strong>de</strong> alguém".Em Análise do Discurso, dizemos que não há uma relação direta entre linguagem e mundo,linguagem e pensamento e que o discurso é o espaço <strong>de</strong>ssa mediação enquanto efeito <strong>de</strong> sentido entrelocutores. No brinquedo, tal como é analisado por Vygotsky, observamos como essa mediação operapelo lugar que o "significado" - efeito <strong>de</strong> sentido -, antes que o objeto concreto, ocupa na ativida<strong>de</strong>, oque marca um outro estágio na vida do falante em termos <strong>de</strong> inserção em uma cultura específica.Diríamos, então, que não se trata <strong>de</strong> aprendizagem, mas <strong>de</strong> filiação a <strong>de</strong>terminados sentidosque configuram uma formação discursiva. E isso representa uma tamanha inversão da relação dacriança com a situação concreta, real e imediata, que é difícil subestimar seu pleno significado.[...]Nesse ponto crucial a estrutura básica <strong>de</strong>terminante da relação da criança com a realida<strong>de</strong> estáradicalmente mudada, porque muda a estrutura <strong>de</strong> sua percepção.Essa separação entre objeto e significado, faz-nos lembrar do conceito <strong>de</strong> signo lingüísticosaussureano, como resultante da relação entre imagem acústica (representação) e conceito(representação). Não há relação termo-a-termo entre as palavras e as coisas. Há sempre um sujeito euma interpretação possível.


O brinquedo é, pois, um lugar social <strong>de</strong> interpelação, <strong>de</strong> assujeitamento, <strong>de</strong> configuração <strong>de</strong>subjetivida<strong>de</strong>, lugar enunciativo em que o sujeito se submete livremente à or<strong>de</strong>m significante. Nãoobstante, ele seja:a primeira manifestação da emancipação da criança em relação às restrições situacionais, ele é, aomesmo tempo, o caminho pelo qual a criança apren<strong>de</strong> a seguir os caminhos mais difíceis,subordinando-se a regras e, por conseguinte, renunciando ao que ela quer, uma vez que a sujeição aregras e a renúncia à ação impulsiva constitui o caminho para o prazer no brinquedo. [...] Em umsentido, no brinquedo a criança é livre para <strong>de</strong>terminar suas próprias ações. No entanto, em outrosentido, é uma liberda<strong>de</strong> ilusória, pois suas ações são, <strong>de</strong> fato, subordinadas aos significados dosobjetos, e a criança age <strong>de</strong> acordo com eles. (Vtgotsky: 1994 - grifo meu)Nesse processo <strong>de</strong> inscrição em uma cultura dada, através <strong>de</strong> filiações <strong>de</strong> sentido, lembranos,ainda, Vygotsky da importância da memória, pois se trata <strong>de</strong> entrar em uma memória do dizeron<strong>de</strong> as coisas já têm sentido, e <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> cognição, <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> que se estabelece a partir <strong>de</strong>então, consi<strong>de</strong>rando a referência e a literalida<strong>de</strong> que sustentam essa filiação.No brinquedo, portanto, o sujeito, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do simbólico da linguagem, inaugura as suasfronteiras representativas, produz gestos <strong>de</strong> interpretação acerca do mundo que o ro<strong>de</strong>ia. Isso se dápela nova relação que a criança estabelece entre as palavras e as coisas - um relógio representandouma farmácia - e, conseqüentemente, pela criação <strong>de</strong> novos/antigos referentes, isto é, posições <strong>de</strong>sujeito. O brinquedo, assim pensado, seria fundamental para o aprendizado da escrita, para fazer essapassagem do sujeito falante para sujeito <strong>de</strong> um discurso específico: o da(s) letra(s).REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALTHHUSSER, L. Freud e Lacan, Marx e Freud. Trad. Walter José Evangelista.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Edições Graal, 1985, 2ª edição.FOUCCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Forense-Universitária, 1986, 2ª edição.___________. A or<strong>de</strong>m do discurso. Trad. Laura Fraga <strong>de</strong> Almeida Sampaio. SãoPaulo: Edições Loyola, 1996, 3ª edição.LURIIA, A. R. Pensamento e linguagem: as últimas conferências <strong>de</strong> Luria. Trad.Diana Nyriam Lichtenstein e Mário Corso. Porto Alegre. RS: Artes Médicas,1987ORLAANDI, E. P. Unida<strong>de</strong> e dispersão: uma questão do texto e do sujeito. IN:Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Edit. da UNICAMP,1988, 53-73.


___________. Reflexões sobre Escrita, Educação Indígena e Socieda<strong>de</strong>. IN: Escritos:Escrita, Escritura, Cida<strong>de</strong> (I), No. 5. Campinas, SP: LABEURB, 1999, 7-22.PÊCHHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. EniP. Orlandi. Campinas, SP: Edit. da UNICAMP, 1988.VYGOOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no <strong>de</strong>senvolvimento. IN: A formaçãosocial da mente. Trad. José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto eSolange Castro Afeche. São Paulo, Martins Fontes, 1996, 5ª edição, 121-137.

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