13.07.2015 Views

Leia um trecho do livro em PDF

Leia um trecho do livro em PDF

Leia um trecho do livro em PDF

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

1Pré-história e xamanismoDeus surgiu tardiamente na história da h<strong>um</strong>anidade. O serh<strong>um</strong>ano existe há vários milhões de anos, mas a arqueologiamostra que as primeiras representações de divindades surg<strong>em</strong>há apenas 10 mil anos. Aliás, foram as deusas que precederamos deuses! Quanto à noção de <strong>um</strong> Deus único, muito difundidaatualmente por intermédio <strong>do</strong>s monoteísmos judeu, cristãoe muçulmano, ela nasce no Egito, no século XIV antes denossa era, sob o reina<strong>do</strong> <strong>do</strong> faraó Amenhotep IV, que passa ase chamar Akhenaton, para se referir ao culto solar <strong>do</strong> deusúnico, Aton. No entanto, o politeísmo — a crença <strong>em</strong> váriosdeuses — triunfa logo após sua morte, e foi preciso esperar atémea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> primeiro milênio antes de nossa era para que omonoteísmo fosse confirma<strong>do</strong> <strong>em</strong> Israel, como culto a Javé, ena Pérsia, como culto a Ahura Mazda.Os primeiros traços de religiosidadeNão exist<strong>em</strong> traços arqueológicos precisos da religião ao longoda pré-história, pelo menos não no perío<strong>do</strong> que precede a revo-


lução neolítica, há aproximadamente 12 mil anos, quan<strong>do</strong> nossosancestrais começaram a se sedentarizar e a construir aldeiase, posteriormente, cidades. Alguns indícios, porém, nos permit<strong>em</strong>imaginar a religiosidade <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> pré-histórico. O primeirosão os rituais da morte, o que nenh<strong>um</strong> outro animal realiza.Os túmulos mais antigos foram encontra<strong>do</strong>s <strong>em</strong> Qafzeh,onde hoje fica Israel. Há aproximadamente 100 mil anos, oHomo sapiens antigo depositou ali, cuida<strong>do</strong>samente, cadáveres<strong>em</strong> posição fetal, cobrin<strong>do</strong>-os com a cor vermelha. N<strong>um</strong> sítiovizinho, homens e mulheres foram enterra<strong>do</strong>s seguran<strong>do</strong> galhadasde cervídeos ou mandíbulas de javali, e ten<strong>do</strong> o ocre sobreou <strong>em</strong> torno de suas ossadas. Essas sepulturas comprovam a existência<strong>do</strong> pensamento simbólico que caracteriza o ser h<strong>um</strong>ano.Aquelas cores e os objetos são símbolos de <strong>um</strong>a crença. Mas qual?Provavelmente, nossos ancestrais acreditavam n<strong>um</strong>a possível sobrevida<strong>do</strong> ser após a morte, como atesta a disposição <strong>do</strong> corpo<strong>em</strong> posição fetal ou a presença de armas que sirvam para caçarno além. Mas não pod<strong>em</strong>os afirmar com certeza. Creio que essesincipientes rituais da morte são a primeira manifestação de religiosidade,de <strong>um</strong>a provável crença n<strong>um</strong> mun<strong>do</strong> invisível.As Vênus pré-históricasTal como a famosa Vênus de Lespugue, foram encontradas naEuropa n<strong>um</strong>erosas representações de mulheres com exagera<strong>do</strong>satributos da f<strong>em</strong>inilidade e, principalmente, da maternidade.As mais antigas aparec<strong>em</strong> há cerca de 20 mil anos. Algunsve<strong>em</strong> nelas as primeiras deusas da h<strong>um</strong>anidade ou mesmoo culto universal de <strong>um</strong>a grande Deusa-mãe. Tal teoria meparece pouco provável <strong>um</strong>a vez que nenh<strong>um</strong> outro símboloestá associa<strong>do</strong> a elas. Certamente pod<strong>em</strong>os encontrar nessasVênus arquétipos da f<strong>em</strong>inilidade e, s<strong>em</strong> dúvida, da veneração10


da mulher como porta<strong>do</strong>ra e <strong>do</strong>a<strong>do</strong>ra de vida. Nada nos levaa crer que sejam representações de seres sobrenaturais. Algunsespecialistas da arte pré-histórica, como o professor LeRoyMcDermott, pensam até que essas Vênus sejam autorretratosde mulheres grávidas, o que explicaria ao mesmo t<strong>em</strong>po asdeformações características e a ausência de traços faciais.Pinturas rupestres e xamanismoAs pinturas rupestres são prova de crenças religiosas? É <strong>um</strong>debate frequente entre os especialistas da pré-história. Vocêssab<strong>em</strong> que a maioria dessas pinturas representa animais. Paraalguns, são gestos puramente artísticos: seria o nascimento daarte pela arte. Mas essa tese se choca com várias objeções. Aprincipal é exatamente o lugar onde a maior parte dessas pinturasfoi realizada: grutas escuras e de difícil acesso. Não pod<strong>em</strong>osimaginar por que os artistas da pré-história se esconderiam<strong>em</strong> tais lugares para realizar suas obras. A maioria <strong>do</strong>sespecialistas prefere, portanto, <strong>um</strong>a outra hipótese, a da art<strong>em</strong>ágica: ao pintar cenas de caçada, o hom<strong>em</strong> captura a imag<strong>em</strong><strong>do</strong>s animais antes de capturá-los de fato. Aprofundan<strong>do</strong>mais, alguns especialistas, como Jean Clottes e David Lewis--Williams, desenvolveram a hipótese xamânica. Segun<strong>do</strong> eles,as pinturas não representam os animais <strong>em</strong> si, mas o espírito<strong>do</strong>s animais que os xamãs da pré-história invocavam e com osquais eles se comunicavam através <strong>do</strong>s transes. Isso explicariaperfeitamente a escolha de grutas de difícil acesso, lugares favoráveisao isolamento e ao transe xamânico. Essa hipótese éconfirmada por <strong>do</strong>is el<strong>em</strong>entos importantes. Inicialmente, oisolamento da maioria <strong>do</strong>s sítios de arte rupestre, afasta<strong>do</strong>s dasgrutas habitadas e, portanto, especificamente consagra<strong>do</strong>s a11


essa atividade ritualística. Além disso, segun<strong>do</strong> as observações<strong>do</strong>s etnólogos a respeito das populações mais recentes de caça<strong>do</strong>res-coletores,os xamãs faz<strong>em</strong> as pinturas <strong>em</strong> ossos, chifres ourochas a fim de se comunicar<strong>em</strong> com os espíritos invisíveis,especialmente os espíritos daqueles animais que serão caça<strong>do</strong>s.Pode parecer estranho que comentários feitos hoje sobrealg<strong>um</strong>as tribos nos ajud<strong>em</strong> a conhecer o hom<strong>em</strong> pré-histórico.É surpreendente, mas de mo<strong>do</strong> alg<strong>um</strong> absur<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se sabeque alg<strong>um</strong>as tribos ainda viv<strong>em</strong> como nossos distantes ancestrais.Esses povos tend<strong>em</strong> a desaparecer, porém n<strong>um</strong>erosos etnólogosos observaram no século XX, notadamente na América<strong>do</strong> Sul, na Austrália, na Sibéria ou <strong>em</strong> alg<strong>um</strong>as regiões da Ásia.Esses pequenos grupos nômades ou s<strong>em</strong>issedentários não praticamn<strong>em</strong> a agricultura, n<strong>em</strong> a criação, e viv<strong>em</strong> da caça e da colheita.Eles mostram como provavelmente era a religião da pré--história, porque viv<strong>em</strong> conforme o mo<strong>do</strong> de vida <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>pré-histórico: na natureza, ten<strong>do</strong> com principal busca a subsistência.Ora — e isso é extr<strong>em</strong>amente apaixonante —, constatamospor meio da história de longa duração que as crenças e aspráticas religiosas evolu<strong>em</strong> de acor<strong>do</strong> com as mudanças <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>sde vida <strong>do</strong> ser h<strong>um</strong>ano. Do mesmo mo<strong>do</strong> que esses povosque ainda viv<strong>em</strong> inseri<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> natural, os homens pré--históricos se sentiam totalmente inseri<strong>do</strong>s na natureza e a suareligiosidade nos mostra o que pode ter si<strong>do</strong> a religião da pré--história: <strong>um</strong>a religião da natureza, através da qual se consideraque o mun<strong>do</strong> é composto pelo visível e pelo invisível.Um mun<strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> de espíritosCada coisa visível possui <strong>um</strong> duplo invisível com o qual algunsindivíduos pod<strong>em</strong> se comunicar. A partir da observação <strong>do</strong>s12


tungues, povo nômade <strong>do</strong> extr<strong>em</strong>o Nordeste da Sibéria, foida<strong>do</strong>, desde o final <strong>do</strong> século XVII, o nome de “xamã” (<strong>em</strong>língua tungue, saman significa “dançar, saltar”) às pessoas quea tribo escolheu para interceder <strong>em</strong> seu favor junto aos espíritos.E se nomeou “xamânica” essa religião da natureza que,provavelmente, era a <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> pré-histórico <strong>do</strong> Paleolítico.Essa religião natural se fundamenta na crença n<strong>um</strong> mun<strong>do</strong>invisível que cerca o mun<strong>do</strong> visível e na possibilidade de comunicaçãocom tais forças invisíveis. Ela também postula acrença na sobrevida de <strong>um</strong>a parte invisível <strong>do</strong> ser h<strong>um</strong>ano quese reencarna após a morte: a alma. E se caracteriza pela práticade trocas com os espíritos, a fim de ajudar o grupo h<strong>um</strong>ano asobreviver, curar <strong>do</strong>enças e promover a caça. Antes de cadacaçada, o xamã realiza <strong>um</strong> ritual que, geralmente, ass<strong>um</strong>e aforma de <strong>um</strong>a dança durante a qual ele entra n<strong>um</strong> esta<strong>do</strong> modifica<strong>do</strong>de consciência, o transe, para convocar os espíritos<strong>do</strong>s animais — <strong>do</strong>nde a etimologia <strong>do</strong> nome “xamã”, que acabamosde citar. Ele oferece <strong>um</strong>a troca: “Vamos ter de matá-lospara comer, mas, quan<strong>do</strong> morrermos, será nossa vez de darnosso flui<strong>do</strong> vital para a natureza.” Os xamãs são também terapeutasconvictos de que a <strong>do</strong>ença é sintoma de <strong>um</strong>a almadeslocada ou invadida por outra entidade.O sagra<strong>do</strong>O xamanismo constituiria <strong>um</strong>a das primeiras manifestações deespiritualidade? Eu definiria, de preferência, a espiritualidade apartir da dimensão de busca individual. Não pod<strong>em</strong>os dizerque, naquela época, os indivíduos tivess<strong>em</strong> <strong>um</strong>a busca espiritualpessoal, <strong>em</strong> to<strong>do</strong> caso, não <strong>em</strong> termos de elaboração intelectual.A espiritualidade como tentativa de resposta ao enigma13


da existência — que senti<strong>do</strong> t<strong>em</strong> a minha vida? — s<strong>em</strong> dúvidanão existe naquele momento. Ainda viv<strong>em</strong>os <strong>um</strong>a religiosidadecoletiva. To<strong>do</strong>s partilham as mesmas crenças, os mesmosme<strong>do</strong>s, e utilizam os mesmos meios para exorcizá-los. O conceitode “sagra<strong>do</strong>” me parece mais apropria<strong>do</strong>. Mais exatamente,eu diria que eles experimentam o sagra<strong>do</strong>. O sagra<strong>do</strong> é algomais universal e arcaico que a busca espiritual. O teólogo e filósofoal<strong>em</strong>ão Ru<strong>do</strong>lf Otto (1869-1937) define o sagra<strong>do</strong>como <strong>um</strong>a espécie de pavor e de desl<strong>um</strong>bramento diante <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. Os homens sent<strong>em</strong> <strong>um</strong> grande me<strong>do</strong>, porque o mun<strong>do</strong>que os cerca é imenso e os ultrapassa por completo, e, aomesmo t<strong>em</strong>po, viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> esta<strong>do</strong> de admiração diante da belezadesse mun<strong>do</strong>. É <strong>um</strong>a experiência que pod<strong>em</strong>os ter perfeitamentehoje. Ficamos aterroriza<strong>do</strong>s com os transbordamentosda natureza: ciclones, tr<strong>em</strong>ores de terra, tsunamis. Mas nos<strong>em</strong>ocionamos frente ao oceano, no deserto, diante de belaspaisagens... Reconhecer a imensidão <strong>do</strong> cosmos e <strong>em</strong>ocionar--se com ele é <strong>um</strong>a experiência <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>.A religião: racionalização e codificação <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>selvag<strong>em</strong>Assim defini<strong>do</strong>, o sagra<strong>do</strong> é o sentimento, a experiência espontânea,ao mesmo t<strong>em</strong>po individual e coletiva, de nossapresença no mun<strong>do</strong>. A religião é <strong>um</strong>a elaboração social queaparece n<strong>um</strong> segun<strong>do</strong> momento. Poderíamos dizer que ela ritualizae codifica o sagra<strong>do</strong>. As religiões exist<strong>em</strong> para <strong>do</strong>mesticaro sagra<strong>do</strong>, torná-lo inteligível, organizá-lo. É desse jeitoque elas criam laço social, que elas un<strong>em</strong> os homens entre si.Aliás, a palavra religio, que dá orig<strong>em</strong> a “religião”, t<strong>em</strong> duasetimologias. Segun<strong>do</strong> Cícero, ela v<strong>em</strong> da palavra relegere, que14


quer dizer “reler”, expressão que r<strong>em</strong>ete à dimensão racional eorganiza<strong>do</strong>ra da religião, ou então à dimensão de transmissãode <strong>um</strong> conhecimento tradicional. Para Lactance, porém, a palavrareligio v<strong>em</strong> de religare, “ligar”. Verticalmente, os indivíduossão liga<strong>do</strong>s a <strong>um</strong>a transcendência, a algo que os ultrapassa,a <strong>um</strong>a fonte invisível <strong>do</strong> “sagra<strong>do</strong>”. Horizontalmente, essaexperiência e essa crença comuns ligam os indivíduos entre si,crian<strong>do</strong> <strong>um</strong> laço social na comunidade. O fundamento maispoderoso de <strong>um</strong>a sociedade é, efetivamente, a religião. O escritore especialista <strong>em</strong> mídia Régis Debray analisou muitob<strong>em</strong> a função pública da religião e mostrou que toda sociedadet<strong>em</strong> necessidade de reunir os indivíduos <strong>em</strong> torno de <strong>um</strong>invisível que os transcende. Isso é cada vez menos verdadeirona Europa, mas trata-se de <strong>um</strong>a exceção. A crença <strong>em</strong> Deus épartilhada por 93% <strong>do</strong>s americanos, quaisquer que sejam asconfissões religiosas, e a coesão social é muito forte nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. Deus é onipresente, inclusive nos rituais da vidacivil. A religião também está presente e é fonte de coesão socialnos outros continentes, nos países cristãos, muçulmanos, budistase ainda na Índia, e até mesmo, curiosamente, na China,<strong>em</strong> torno de tradições confucianas e <strong>do</strong> culto <strong>do</strong>s ancestrais,que nunca desapareceram, apesar <strong>do</strong> comunismo. Apenas naEuropa a religião quase não fundamenta mais o laço coletivo.Por isso, a insistente pergunta das sociedades europeias: comocriar <strong>um</strong> laço social? É a primeira vez na história que <strong>um</strong>a civilizaçãotenta criar <strong>um</strong> laço social fora da religião. À crise dascrenças religiosas nos séculos XVIII e XIX sucederam o que sechama de religiões civis, quer dizer, crenças coletivas, partilhadaspor to<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> torno de algo que nos transcende e nos ultrapassa:o nacionalismo, por ex<strong>em</strong>plo. Durante os séculosXIX e XX, na Europa, as pessoas davam a vida pela pátria. Erao lugar <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>! Hoje, não há mais sagra<strong>do</strong>.15


Volt<strong>em</strong>os, porém, ao nascimento da religião. Excetuan<strong>do</strong>-sealg<strong>um</strong>as tribos de caça<strong>do</strong>res-coletores, não restam muitomais traços da religião natural <strong>do</strong>s homens pré-históricos. Defato, a religião natural se misturou frequent<strong>em</strong>ente com as religiõesposteriores. Amalgamada, ela permanece extr<strong>em</strong>amenteforte na África, na Ásia, na Oceania e na América <strong>do</strong> Sul,inclusive entre os cristãos, muçulmanos e budistas. Ela impregnoude maneira profunda o budismo tibetano, por ex<strong>em</strong>plo:o oráculo que o dalai-lama consulta com regularidadeentra <strong>em</strong> transe exatamente segun<strong>do</strong> os rituais xamanísticostradicionais. Somente na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s a religiãonatural foi quase que totalmente erradicada pela cristianização.Mas, no Ocidente, v<strong>em</strong>os, há uns vinte anos, <strong>um</strong>a forterenovação <strong>do</strong> interesse pelo xamanismo. Seria melhor, contu<strong>do</strong>,falar <strong>em</strong> neoxamanismo, pois aqueles que vão viver experiênciasna Mongólia ou no Peru com xamãs tradicionais nãoestão mais inseri<strong>do</strong>s na natureza. Uma natureza que eles idealizame encantam imaginariamente, como reação a <strong>um</strong> mo<strong>do</strong>de vida urbano e a <strong>um</strong>a religião cristã excessivamente cerebralque afastaram o hom<strong>em</strong> de sua relação com o mun<strong>do</strong>natural.16

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!