11.07.2015 Views

O dia em que nós pegamos Papai Noel

O dia em que nós pegamos Papai Noel

O dia em que nós pegamos Papai Noel

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

O <strong>dia</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> nós<strong>pegamos</strong> <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>Na nossa turma <strong>em</strong> Aracaju — uns 15 mole<strong>que</strong>s de 9 a 10anos de idade, no t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> <strong>que</strong> menino era muito mais besta do <strong>que</strong>hoje —, qu<strong>em</strong> sabia de tudo era Neném, cujo verdadeiro nome até hojedesconheço. Neném era chamado a esclarecer todas as dúvidas, inclusive<strong>em</strong> relação a mulheres, assunto proibidíssimo, <strong>que</strong> suscitava grandescontrovérsias. Ninguém sabia nada a respeito de mulheres e muitos n<strong>em</strong>sabiam direito o <strong>que</strong> era uma mulher. As mulheres usavam saias, falavamfino, tinham direito a chorar e os homens mudavam de assunto ou tomde voz quando uma delas se aproximava — e pouco mais do <strong>que</strong> issoconstava do nosso cabedal de informações, razão por <strong>que</strong> Neném assumiugrande importância no grupo.Neném sabia tudo de mulher, contou cada coisa de arrepiar oscabelos. Houve qu<strong>em</strong> não acreditasse na<strong>que</strong>la s<strong>em</strong>-vergonhice toda: comoé <strong>que</strong> era mesmo, seria possível uma desgraceira dessas? Quer dizer <strong>que</strong>a<strong>que</strong>la conversa de <strong>que</strong> achou a gente dentro da melancia, não sei o quê,a<strong>que</strong>la conversa... Pois isso e muito mais! — garantia Neném, e aí tomeContos e crônicas para ler na escola 15


novidade arrepiante <strong>em</strong> cima de novidade arrepiante. Um menino daturma, o Jackson (<strong>em</strong> Sergipe há muitos Jacksons, por causa de Jacksonde Figueiredo, é a mesma coisa <strong>que</strong> Ruy na Bahia), ficou tão abaladocom as revelações <strong>que</strong> foi ser padre.Mas, antes de Jackson se assustar mais e entrar para o s<strong>em</strong>inário,chegou o primeiro Natal <strong>em</strong> <strong>que</strong> o prestígio de Neném já estava amplamenteconsolidado e a <strong>que</strong>stão das mulheres — tão criadora de tensões,incertezas e pecados por pensamentos, palavras e obras — foi substituídapor debates <strong>em</strong> relação a <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>. A ala mais sofisticada lançava amplasdúvidas quanto à existência de <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> e o ceticismo já se alastravagalopant<strong>em</strong>ente, quando Neném, <strong>que</strong> tinha andado gripado e ficara uns<strong>dia</strong>s preso <strong>em</strong> casa para ser supliciado com chás inacreditáveis, como faziamcom todos nós, apareceu e, para surpresa geral, manifestou-se pelaexistência de <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>. Ele mesmo já estivera pesso almente com <strong>Papai</strong><strong>Noel</strong>. Não falara nada por<strong>que</strong>, se alguém fala assim com <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> nahora do presente, ele toma um susto e não bota o presente no sapato.Apenas abrira um olho cautelosamente, vira <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>, com um sacãomaior <strong>que</strong> um estudebêi<strong>que</strong>r, tirando os presentes lá de dentro, foi aténo ano <strong>em</strong> <strong>que</strong> ele ganhara a bicicleta, l<strong>em</strong>brava-se como se fosse hoje.Então <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> existia, era fato provado.Alguns se convenceram ime<strong>dia</strong>tamente, mas outros resistiram.A<strong>que</strong>le negócio de <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> era tão lorota quan to a história da melancia.Neném se aborreceu, não gostava de ter sua autoridade de fontefidedigna contestada, propôs um desafio. Qu<strong>em</strong> era macho de esperar<strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> na véspe ra de Natal? Tinha <strong>que</strong> ser macho, por<strong>que</strong> era denoite, era es curo e era mais de meia-noite, <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> só chega altas horas.Alguém era macho ali?Ponderou-se <strong>que</strong> macho ali havia, machidão é o <strong>que</strong> não falta<strong>em</strong> Sergipe, não se fizesse ele de besta de achar <strong>que</strong> alguém ali não eramacho do dedão do pé à raiz do cabelo. Mas era uma <strong>que</strong>stão delicada,16


ter medo de cobra, não é contra as normas), outros se <strong>que</strong>ixaram do frio,outros de sono, mas acabamos assentados <strong>em</strong> nossas posições.Acredito <strong>que</strong> cochilei, por<strong>que</strong> não me l<strong>em</strong>bro do começo dorebuliço. Alguém tinha visto um vulto esgueirar- se pela janela do quartoda <strong>em</strong>pregada, <strong>que</strong> ficava separado da casa, do outro lado do quintal.Era <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> indo dar o presente de Laleca, a <strong>em</strong>pregada, uma caboclamuito bonita e, segundo Neném, “da pontinha da orelha es<strong>que</strong>rda”. Noduro <strong>que</strong> era <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>, já havia até descrições do chapéu, da barba, doriso, tudo mesmo. Como os soldados dos filmes de guerra <strong>que</strong> passavamno cin<strong>em</strong>a do pai de Neném, fomos quase rastejando para debaixo dajanela de Laleca. Estava fechada agora, <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> certamente não <strong>que</strong>riatest<strong>em</strong>u nhas.Mas como d<strong>em</strong>orava esse <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>! Claro <strong>que</strong>, nessas horas, ot<strong>em</strong>po não anda, escorre como uma lesma. Mas, mesmo assim, a d<strong>em</strong>oraestava d<strong>em</strong>ais.— Estou ouvindo uns barulhinhos — cochichou Neném.— Eu também.— Eu também. E foi risada, ainda agora, foi risada?— Psiu!Silêncio entre nós, novos barulhinhos lá dentro.— Qu<strong>em</strong> é macho aí de perguntar se é <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> <strong>que</strong> está aí?— perguntou Neném.Eu fui macho outra vez. Estava louco para apurar a<strong>que</strong>la históriatoda, <strong>que</strong>ria saber se <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> tinha trazido o <strong>que</strong> eu pedira e aí griteijunto às persianas:— É <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> <strong>que</strong> está aí?Barulhos frenéticos lá dentro, vozes, confusão.— É <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong>?A barulheira aumentou e, antes <strong>que</strong> eu pudesse repetir a perguntaoutra vez, a janela se abriu com estrépito e de dentro pulou um18


hom<strong>em</strong> esbaforido, segurando uma camisa branca na mão direita, <strong>que</strong>ime<strong>dia</strong>tamente desabalou num carreirão e sumiu no escuro. Lá dentro,ajeitando o cabelo, Laleca fez uma cara s<strong>em</strong> graça e perguntou o <strong>que</strong> agente estava fazendo ali.— Era <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> <strong>que</strong> estava com você?— Era, era — respondeu ela.Mas ninguém ficou muito convencido, até por<strong>que</strong> o hom<strong>em</strong><strong>que</strong> pulara tão depressa janela afora l<strong>em</strong>brava muito o pai de Zizinho,<strong>que</strong> por sinal, no <strong>dia</strong> seguinte, deu cinco mil réis a ele, disse <strong>que</strong> ficassecaladinho sobre o episódio e explicou ainda <strong>que</strong> <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> não existia,<strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> eram os pais, como ele, pai de Zizinho, <strong>que</strong> todo Natal iade quarto <strong>em</strong> quarto distribuindo presentes. De maneira <strong>que</strong> até hoje acoisa não está b<strong>em</strong> esclarecida e nós ficamos s<strong>em</strong> saber se b<strong>em</strong> era umahistória de <strong>Papai</strong> <strong>Noel</strong> ou se b<strong>em</strong> era uma história de mulher da<strong>que</strong>lasde arrepiar os cabelos.Contos e crônicas para ler na escola 19

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!