Brasil S/A - Livro Pedagógico
O livro pedagógico é formado por seis artigos que contemplam diferentes âmbitos de discussão trazidos pelo filme: o colapso das cidades; o lugar das mulheres na sociedade patriarcal e capitalista; o neodesenvolvimentismo; as questões étnico-raciais; os con itos ambientais; e a sinfonia visual contra um modelo de progresso. Cada artigo re ete as escolhas de seus(suas) autores(as) na forma de abordagem, mas mantém uma estrutura similar, composta pelo texto Brasil s/a 014 (acompanhado por fotos e charges), por uma espécie de glossário (“Fi- que por dentro!”), por sugestões de atividades, e por indicações de leitura (“Para saber mais”).
O livro pedagógico é formado por seis artigos que contemplam diferentes âmbitos de discussão trazidos pelo filme: o colapso das cidades; o lugar das mulheres na sociedade patriarcal e capitalista; o neodesenvolvimentismo; as questões étnico-raciais; os con itos ambientais; e a sinfonia visual contra um modelo de progresso. Cada artigo re ete as escolhas de seus(suas) autores(as) na forma de abordagem, mas mantém uma estrutura similar, composta pelo texto
Brasil s/a 014
(acompanhado por fotos e charges), por uma espécie de glossário (“Fi- que por dentro!”), por sugestões de atividades, e por indicações de leitura (“Para saber mais”).
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
LIVRO PEDAGÓgIcO<br />
textos<br />
Cecília Godoi<br />
Celma Tavares<br />
Felipe Melo<br />
Lúcias Veras<br />
Rodrigo Almeida<br />
Sophia Branco<br />
ilustrações<br />
Odyr<br />
Victor Zalma<br />
coordenação de conteúdo<br />
Marcelo Pedroso<br />
Celma Tavares<br />
projeto gráfico<br />
A Firma<br />
site<br />
João Noberto<br />
produção<br />
Livia de Melo<br />
coordenação de produção<br />
Karina Nobre<br />
distribuição<br />
Inquieta<br />
videoaulas<br />
roteiro, montagem e direção<br />
Caio Sales<br />
narração<br />
Ariel Guerra<br />
Erika Cabral<br />
isbn 978-85-93111-01-3
asil s/a<br />
livro pedagógico<br />
1ª edição – Recife–pe, 2016<br />
www.brasilsafilme.com.br<br />
vilarejoproducao@gmail.com
Ver e ouvir, sentir e pensar: convite<br />
a um percurso reflexivo<br />
p. 008<br />
<strong>Brasil</strong> S/A e o colapso metropolitano<br />
p. 018<br />
As mulheres, o progresso e o <strong>Brasil</strong><br />
p. 038<br />
De olhos bem abertos: a crítica<br />
ao neodesenvolvimentismo em <strong>Brasil</strong> S/A<br />
p. 056<br />
<strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira<br />
p. 070<br />
Os conflitos ambientais<br />
do desenvolvimento sob<br />
a ótica de <strong>Brasil</strong> S/A<br />
p. 086<br />
Sinfonia visual contra<br />
um modelo de progresso<br />
p. 100
Ver e ouvir,<br />
sentir e pensar:<br />
convite a um percurso reflexivo
013 ver e ouvir, sentir e pensar:<br />
convite a um percurso reflexivo<br />
É com muita alegria que estamos, através da distribuição destes<br />
livro e DVD, dividindo com vocês algumas questões, inquietações<br />
e posicionamentos com os quais temos lidado em nossas práticas profissionais<br />
e pessoais. Acreditamos que são pontos que vocês também<br />
vivenciam em sala de aula com seus(uas) educandos(as), assim como em<br />
suas experiências individuais. São, antes de tudo, questões que acreditamos<br />
serem importantes para os(as) próprios(as) jovens. Questões<br />
que podem ajudá-los(as) a pensar sobre nosso país, nossa organização<br />
social e política, nossa sensibilidade e nosso cotidiano, contribuindo<br />
para que possam refletir e se posicionar diante de suas próprias vidas.<br />
Dessa forma, compõem nosso material de distribuição este<br />
livro pedagógico, com textos que fazem reflexões sobre o filme <strong>Brasil</strong><br />
S/A e suas temáticas, e um DVD com o próprio filme, além de quatro<br />
videoaulas, o making off desse processo, e os curtas Em trânsito, Fotograma,<br />
Marcha das vadias e Nada é. Todo este material também está<br />
disponível no site www.brasilsafilme.com.br.<br />
O livro pedagógico e as videoaulas foram produzidos com o<br />
objetivo de problematizar questões políticas, sociais e estéticas levantadas<br />
pelo filme, aproximando as pessoas desse debate, possibilitando<br />
releituras e novos diálogos por meio de um processo educativo mediado<br />
pelas abordagens construídas e as atividades sugeridas.<br />
As videoaulas estão organizadas em quatro episódios que<br />
enfocam as seguintes temáticas: (1) carrocracia; (2) caravelas, tratores<br />
e missão espacial; (3) sonho brasileiro; e (4) sonoridades. Nelas, duas<br />
amigas, Erika e Ariel, conversam sobre o que lhes chamou atenção nas<br />
cenas de <strong>Brasil</strong> S/A com base nas temáticas citadas.<br />
O livro pedagógico, por sua vez, é formado por seis artigos<br />
que contemplam diferentes âmbitos de discussão trazidos pelo filme:<br />
o colapso das cidades; o lugar das mulheres na sociedade patriarcal<br />
e capitalista; o neodesenvolvimentismo; as questões étnico-raciais; os<br />
conflitos ambientais; e a sinfonia visual contra um modelo de progresso.<br />
Cada artigo reflete as escolhas de seus(suas) autores(as) na forma de<br />
abordagem, mas mantém uma estrutura similar, composta pelo texto
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
014<br />
(acompanhado por fotos e charges), por uma espécie de glossário (“Fique<br />
por dentro!”), por sugestões de atividades, e por indicações de<br />
leitura (“Para saber mais”).<br />
Sugestões de uso<br />
Acreditamos e defendemos a autonomia da construção de<br />
cada educador(a) em sua sala de aula, cultivando relações as mais diversas<br />
com seus(uas) educandos(as). Por isso, temos certeza de que<br />
cada um(a) de vocês encontrará a melhor forma de trabalhar o filme<br />
e o material pedagógico em consonância com suas práticas docentes,<br />
metodologias e trajetórias pessoais, visando ao melhor diálogo possível<br />
com as turmas.<br />
Tomamos, no entanto, a liberdade de fazer algumas reflexões<br />
e sugestões de uso, tendo em vista a nossa própria experiência com<br />
o audiovisual enquanto plataforma de produção de conhecimento e<br />
estímulo da sensibilidade.<br />
Para isso, gostaríamos de pontuar que não acreditamos muito<br />
na ideia de um filme como um conteúdo a ser assimilado por uma turma.<br />
Um filme não é necessariamente um vetor de informação – embora<br />
possa ter uma mensagem. Ele não é um código de interpretação literal<br />
a ser decifrado – embora possa, é claro, possuir seus símbolos.<br />
Nós preferimos acreditar no filme como um estímulo, uma provocação,<br />
uma partilha de sentimentos e inquietações. Enquanto tal,<br />
ele é aberto a múltiplas interpretações, leituras, reações. Todas elas,<br />
por mais discrepantes que sejam, dizem respeito à história individual<br />
de cada pessoa e precisam ser valorizadas como tal. Não existe, em<br />
princípio, uma leitura mais correta do que outra: ao ser exibido, o filme<br />
se torna de quem assiste a ele, é o(a) espectador(a) quem dá o sentido<br />
final da obra, tornando-se seu(ua) co-autor(a).<br />
É por isso que enxergamos o material que produzimos para<br />
vocês como algo complementar. Ele representa uma leitura do filme<br />
articulada a partir de diversos pontos de vistas e que vem para se somar
015<br />
Porque um filme, sem o público, é muito pouco, quase nada.<br />
No <strong>Brasil</strong> dos últimos vinte anos, muitos filmes foram feitos.<br />
Invenção, formação, investimento, políticas públicas, profissionalização<br />
– muitos fatores contribuíram para que a quantidade de longasmetragens<br />
brasileiros saltasse de onze produções lançadas em 1995<br />
(ano da chamada retomada) para 129 em 2015, um aumento impressionante<br />
de 1.172%!<br />
O crescimento exponencial, no entanto, pode ocultar uma triste<br />
realidade. Entre os dez maiores sucessos de bilheteria de filmes naciover<br />
e ouvir, sentir e pensar:<br />
convite a um percurso reflexivo<br />
ao ponto de vista mais importante de todos: o do(a) espectador(a) que<br />
acaba de viver a experiência de sentir e interpretar o filme ao investir<br />
nele sua sensibilidade e seu repertório de vivências.<br />
O material pedagógico complementar serve para ampliar a<br />
experiência desse(a) espectador(a), não para sufocá-la. Ele pode lançar<br />
luz para uma reflexão possível sobre o filme, mas essa luz não deve ofuscar<br />
ou neutralizar a possibilidade de as pessoas criarem suas próprias<br />
perspectivas sobre a obra.<br />
É por isso que sugerimos, após as sessões, um tempo para<br />
debate em que os(as) estudantes possam expressar seus pontos de<br />
vistas, cruzar suas perspectivas, produzir seu próprio conhecimento<br />
em torno do filme. Um conhecimento que nasce de suas sensibilidades<br />
e histórias pessoais, de suas vontades, de seu interesse pelas<br />
imagens apresentadas.<br />
Para isso, não podemos temer o silêncio ou a rejeição do filme<br />
– mas pensar em como transformar essas possíveis reações numa<br />
dinâmica de trocas. Estimular esse intercâmbio e promover sua livre<br />
fruição entre os(as) participantes do debate se tornaria um passo importante<br />
para evitar transformar o material pedagógico complementar<br />
num balizador de sentidos que reduzisse as faculdades interpretativas<br />
e a própria dimensão aberta do filme.<br />
Por que distribuir o filme dessa forma?
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
016<br />
nais em 2015, responsáveis por levar aos cinemas mais de 15 milhões de<br />
espectadores(as), nove deles eram comédias produzidas por grandes<br />
canais de televisão com seus astros e estrelas abrilhantando o elenco.<br />
Filmes que, muitas vezes, não passam de um subproduto das dramaturgias<br />
exaustivamente disseminadas pelos próprios canais televisivos, um<br />
derivado recauchutado dos mesmos enredos, piadas e personagens.<br />
Ao buscar formas complementares de, em seu lançamento,<br />
fazer o <strong>Brasil</strong> S/A chegar ao público, estamos nos alinhando a uma<br />
corrente de pessoas que tem se esforçado para diversificar a produção<br />
de cinema no país e oxigenar a possibilidade de circulação saudável<br />
dos filmes. Contribuindo assim para a reflexão em torno da urgente<br />
necessidade de criação de uma política pública que liberte as obras<br />
dos gargalos perversos do mercado distribuidor e sua dinâmica homogeneizadora<br />
e excludente.<br />
Acreditamos que a liberdade criativa e política das pessoas<br />
que fazem cinema no <strong>Brasil</strong> não deve ser refém das exigências do mercado<br />
– quase sempre embrutecedor –, mas também não pode se furtar<br />
ao compromisso de promover um retorno à sociedade através da democratização<br />
do acesso à obra e reverberação das emoções, sentimentos<br />
e reflexões contidos nela.<br />
Acreditamos que a formação crítica e política de um olhar para<br />
o cinema passa pela ruptura dos meios tradicionais, hoje covardemente<br />
submissos aos padrões impostos pelas grandes corporações televisivas.<br />
E que essa formação se dá no corpo a corpo, ouvido a ouvido, boca a<br />
boca, através do contato e da conversa.<br />
O gesto de pular fora do cercadinho imposto pelo mercado<br />
exibidor através de suas redes de multiplexes é antes de tudo um convite<br />
ao público para que se disponha a olhar para outras formas de<br />
cinema. Não se trata apenas de oferecer a esse público o acesso, a<br />
simples possibilidade de escolher. Trata-se de sensibilizá-lo, dividir com<br />
ele os desejos, sonhos, angústias e preocupações.<br />
É por tudo isso que esse livro chega até você professor(a),<br />
estudante, militante, cineclubista, trabalhador(a), desocupado(a) ou so-
017<br />
ver e ouvir, sentir e pensar:<br />
convite a um percurso reflexivo<br />
nhador(a). Para que juntemos nossas inquietações e as transformemos<br />
em possibilidades de diálogos, reflexões, dúvidas e esforços e possamos<br />
ver e ouvir, sentir e pensar o projeto de sociedade que queremos.<br />
Boa sessão, boas conversas!<br />
MARCELO PEDROSO & CELMA TAVARES
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
020<br />
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
e o colapso<br />
metropolitano
021 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
022<br />
Lúcia Maria de S. C. Veras<br />
Arquiteta, pesquisadora do Laboratório da Paisagem e<br />
professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo, ambos<br />
da UFPE. Seus estudos sobre a cidade centram-se na<br />
paisagem, com vistas à sua conservação.
023 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
Desconstruindo e reconstruindo um olhar sobre o desenvolvimento<br />
econômico brasileiro, a narrativa de <strong>Brasil</strong> S/A também nos fala<br />
de cidades e, em especial, de grandes cidades, protagonistas da vida<br />
contemporânea. É na cidade que as pessoas se concentram, reúnemse,<br />
mas também se isolam, em um conjunto edificado resultante de um<br />
movimento crescente de urbanização. Se há uma predominância sobre<br />
o campo pelo recobrimento de antigas áreas agrícolas, há também<br />
uma interdependência em sentido contrário, porque vem do campo<br />
a maioria dos alimentos que abastecem as cidades. A cidade, então,<br />
criada para abrigar e satisfazer as necessidades humanas e sociais de<br />
muitas pessoas, pode oferecer oportunidade de emprego, segurança<br />
e estrutura física. É aqui que as áreas públicas como parques, praças e<br />
jardins, inclusive as reservas naturais protegidas, são típicos espaços<br />
de amenidades, que asseguram a conservação da natureza na cidade<br />
e proporcionam bem-estar tornando-as saudáveis e prazerosas. É por<br />
isso que o arquiteto francês Philippe Panerai compreende o espaço<br />
público – áreas verdes, de circulação e de estar –, como o DNA de uma<br />
cidade, porque é responsável pela manutenção das suas permanências.<br />
Se edifícios são construídos, reconstruídos ou substituídos, os<br />
espaços públicos são mais difíceis de serem modificados e garantem<br />
a forma urbana que identifica uma cidade.<br />
No entanto, as cidades estão perdendo o ponto de<br />
equilíbrio. A matriz complexa entre fornecer o suporte para as<br />
atividades humanas e proteger os ambientes ameaçados pelas<br />
mesmas atividades humanas, não tem sido equacionada em um<br />
grande número delas, e com mais evidência nas grandes cidades.<br />
O contraponto que se faz com o campo denuncia, antes de tudo,<br />
a relação do ser humano com a natureza, na extrema transformação<br />
de um ambiente natural em artificial, que se reconhece<br />
como a maior criação da humanidade – a cidade.<br />
Em 2012, o estudioso brasileiro sobre cidades sustentáveis, e também<br />
arquiteto, Carlos Leite, ao apontar que a evolução das cidades materializa a<br />
história da humanidade ao longo dos séculos, afirma que, se o século XIX foi dos
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
024<br />
Figura 1<br />
—<br />
Cidade do Recife:<br />
protótipo de uma<br />
metrópole (recorte<br />
de paisagem do filme<br />
<strong>Brasil</strong> S/A)<br />
impérios e o XX das nações, o século XXI é considerado o século das cidades.<br />
Basta observar a Figura 2, que ilustra essa evolução. De 1800 a 2050, pularemos<br />
de 3% para 75% da população mundial em cidades.<br />
Isso significa que, em 2050, seremos uma população urbana de<br />
cerca de mais de sete bilhões de habitantes. Ou seja, nascem hoje, por<br />
dia, em torno de 250 mil pessoas, o equivalente à cidade de Novo Ham-<br />
3% 97%<br />
1800 10% 90%<br />
1910 29% 71%<br />
1950 50% 50%<br />
Figura 2<br />
—<br />
Percentual da evolução<br />
da população urbana no<br />
mundo, de 1800 a 2050<br />
(Gráfico construído a<br />
partir de Leite, 2012 e<br />
Rogers, 2010).<br />
2010 60% 40%<br />
2030 75% 25%<br />
2050
025 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
burgo, no Rio Grande do Sul, ou, ainda, em um mês, trinta vezes esse<br />
número, o equivalente aproximado à população da cidade de Londres.<br />
Portanto, como afirma o arquiteto Richard Rogers, “é uma ironia que as<br />
cidades, habitat da humanidade, [caracterizem-se] como o maior agente<br />
destruidor do ecossistema e a maior ameaça para a sobrevivência da<br />
humanidade no planeta”. Essa crise ambiental é consequência direta<br />
da aceleração do ritmo do crescimento urbano e da forma como vem<br />
sendo imposto. Desmatamento, industrialização e aumento das manchas<br />
urbanas são evidências de um caminho não sustentável.<br />
O filme <strong>Brasil</strong> S/A explora alguns dos problemas das megacidades<br />
e das metrópoles brasileiras. A diferença entre ser uma megacidade<br />
ou metrópole está, principalmente, no número de habitantes. Segundo<br />
a ONU – Organização das Nações Unidas –, quando uma cidade atinge<br />
10.000.000 de habitantes, passa a ser considerada uma megacidade.<br />
A única do <strong>Brasil</strong> é São Paulo, sendo a quarta maior do mundo, com<br />
11,3 milhões de habitantes, levantados pelo senso de 2010, que também<br />
listou as dez maiores brasileiras.<br />
Esses números demonstram o quanto essas cidades estão<br />
superpovoadas e espalhadas pelo <strong>Brasil</strong>, o que demanda produção de<br />
N º Estado Cidade Habitantes<br />
1 São Paulo São Paulo 11.244.369<br />
2 Rio de Janeiro Rio de Janeiro 6.323.037<br />
3 Bahia Salvador 2.676.606<br />
4 Distrito Federal Brasília 2.562.963<br />
5 Ceará Fortaleza 2.447.409<br />
6 Minas Gerais Belo Horizonte 2.375.444<br />
7 Amazonas Manaus 1.802.525<br />
8 Paraná Curitiba 1.746.896<br />
9 Pernambuco Recife 1.536.934<br />
10 Rio Grande do Sul Porto Alegre 1.409.939<br />
Tabela 1<br />
—<br />
População das dez cidades<br />
mais populosas no<br />
<strong>Brasil</strong> em 2010 (IBGE,<br />
2010).
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
026<br />
energia, investimentos e planejamento. Em todas, no entanto, não há<br />
planejamento eficiente, e os problemas urbanos se repetem como se<br />
fossem produto de um grande projeto de empreendimento brasileiro,<br />
de norte a sul, que obedece à ideia de expansão desenfreada do tecido<br />
urbano e agressão à natureza, tanto por essa expansão quanto, no seu<br />
entorno, pelo extrativismo da terra na produção da monocultura em<br />
grandes latifúndios, visando exclusivamente o lucro.<br />
<strong>Brasil</strong> S/A nos mostra essa correlação cidade-campo, que culmina<br />
na substituição da produção do açúcar pela extração de petróleo.<br />
Mais do que ressaltar a apoteose do acontecimento em si – substituir o<br />
ouro branco pelo ouro negro –, insinua a relação desse acontecimento<br />
do campo com a vida da cidade, porque vincula o fato à construção<br />
de novos complexos viários, ao aumento do número de automóveis, à<br />
poluição do ar e à insatisfação da população de classe média diante de<br />
uma cidade travada. Por trás desse panorama, as populações pobres<br />
são negligenciadas e quase invisíveis, estão no filme pela imposição de<br />
sua ausência e pelo incômodo que causam ao tentar atrapalhar o livre<br />
deslizar de um motorista que se desloca em seu carro blindado. Dos<br />
inúmeros signos, significados e metáforas colocados por <strong>Brasil</strong> S/A,<br />
a ideia de colapso metropolitano será explorada nos dois principais<br />
problemas expostos: (1) as cidades emperradas pelo automóvel e (2)<br />
as cidades fortificadas, desconectadas do espaço público e da vida<br />
urbana. Por fim, (3) reflete-se sobre a busca do equilíbrio para o futuro.<br />
1. As cidades emperradas<br />
Há um livro clássico e de referência para muitos(as) arquitetos(as)<br />
e planejadores(as) urbanos(as), escrito em 1961 pela jornalista<br />
Jane Jacobs, que causou grande impacto pelos ataques que a autora<br />
fez à cidade do início do século XX, quando o automóvel passou a ser<br />
o protagonista da vida urbana. O livro Vida e morte de grandes cidades<br />
critica, principalmente, o urbanismo moderno norte-americano,<br />
que propunha a renovação de áreas urbanas centrais sem considerar
027 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
a cidade preexistente e consolidada, com a construção de complexos<br />
sistemas para a circulação de automóveis, compostos de vias, elevados,<br />
pontes, túneis e viadutos. Para a autora, ruas e calçadas são vitais para<br />
a cidade, porque são espaços do encontro e da convivência. Apoiado<br />
no discurso da ordem, da função e da velocidade, esse urbanismo<br />
desconsidera a diversidade urbana e o uso do espaço público pelas<br />
pessoas. É o que ilustra a Figura 3. Em <strong>Brasil</strong> S/A, ao tentar sair de casa,<br />
a moradora encontra um “mar” de carros e talvez se pergunte: qual a<br />
função de um carro, potente e confortável, se não se consegue nem<br />
mesmo chegar às ruas?<br />
figura 3<br />
—<br />
Cena <strong>Brasil</strong> S/A:<br />
moradora de um<br />
condomínio de luxo<br />
tenta sair de casa e se<br />
depara com intenso<br />
engarrafamento.<br />
Essa cena mostra a calçada vazia e a calha da rua repleta de<br />
automóveis. Mostra também a arquitetura do medo, com muros altos sem<br />
abertura de conexão com as ruas (apenas para os carros), sem grades<br />
nem jardins, definindo o limite da fortaleza que se pretende impenetrável.<br />
Aqui não há pessoas no inóspito espaço público. Elas estão ‘ protegidas’<br />
em seus carros e já não usufruem da vida no espaço público, que cada<br />
vez mais perde a vitalidade urbana. Sem as pessoas, perde-se também<br />
aquilo que Jane Jacobs chamava de “os olhos da rua”. Ou seja, quanto<br />
mais pessoas nas ruas, mais “olhos vigilantes” trazem segurança para o<br />
pedestre, que pode circular, ainda que entre desconhecidos.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
028<br />
Muitas vezes, quando nos aventuramos a atravessar certas<br />
vias na cidade, deparamo-nos com uma barreira de latas coloridas e<br />
barulhentas que nos mostram, sem dúvidas, que o automóvel é um dos<br />
grandes responsáveis pela alienação e pelo rompimento da estrutura<br />
social da cidade. Em 2008, a Organização Mundial da Indústria Automobilística<br />
anunciou, em Genebra, que a frota de carros no mundo já<br />
passa de 1 bilhão, e trilhões de metros cúbicos de fumaça são lançados<br />
na atmosfera por ano. De fato, a motorização se instalou em quase<br />
todas as cidades do mundo, principalmente em países em desenvolvimento<br />
que não priorizam o transporte público, como o <strong>Brasil</strong>.<br />
Por que o carro é objeto de desejo e brinquedo favorito de tantas<br />
pessoas? Este conflito é mostrado em outros momentos do <strong>Brasil</strong> S/A,<br />
quando o carro, que promete a velocidade, é apenas troféu de consumo;<br />
quando, ao não permitir o deslocamento, é lugar do descanso; quando é<br />
lugar das refeições que antes reuniam a família numa mesa, ou quando, no<br />
conforto de um mundo isolado, também separa irmãos que não interagem,<br />
não conversam, não discutem, nem percebem a paisagem.<br />
carro para exibir<br />
carro para dormir<br />
Figura 4<br />
—<br />
<strong>Brasil</strong> S/A:<br />
carro para exibir, para<br />
dormir, para comer e<br />
para brincar separado.<br />
carro para comer<br />
carro para brincar separado<br />
Carros e congestionamentos são sinônimos de grandes cidades<br />
e poluem a atmosfera pela queima de combustíveis fósseis nocivos
029 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
à natureza. Esse desequilíbrio,junto à poluição pela queima de matéria<br />
orgânica das queimadas, tem causado a destruição da camada de<br />
ozônio que protege o planeta. Além da poluição, <strong>Brasil</strong> S/A nos mostra<br />
outros problemas que abordaremos a seguir.<br />
2. As cidades fortificadas<br />
As cidades são organismos essencialmente coletivos. Para<br />
abrigar milhões de pessoas, a alternativa da verticalização aparece<br />
como sinônimo da metrópole. Não há metrópole sem edifícios e verticalizados.<br />
Mas o problema não está exatamente na presença dos altos<br />
edifícios, e sim na forma como são feitos, nos programas que estabelecem<br />
os usos e os contatos com a rua, com a quadra, com o bairro e<br />
com a cidade. O problema também está na desigualdade do grau de<br />
investimento público, concentrado nos bairros de classe média, em<br />
detrimento daqueles mais pobres, excluídos dos benefícios sociais e<br />
relegados à miséria e à informalidade. Mesmo distantes economicamente<br />
e culturalmente, embora muitas vezes vizinhos fisicamente, são<br />
parte do mesmo tabuleiro urbano e deveriam ser regidos por regras<br />
que maximizassem os benefícios e minimizassem os malefícios para<br />
todas as pessoas. A falta de equidade elimina a possibilidade de se<br />
garantir para todos(as) os direitos básicos que fazem com que certas<br />
cidades sejam mais humanas e sustentáveis.<br />
<strong>Brasil</strong> S/A explora parte da vida em condomínios de luxo de um<br />
bairro de classe média que, ambientado no Recife, representa qualquer<br />
grande cidade do <strong>Brasil</strong>. Essa massa edificada, mais do que os espaços<br />
públicos, são a marca registrada do que se identifica como metrópole.<br />
Enclausurados e protegidos por muralhas que separam o que é público<br />
do que é privado, o que é seguro do que é inseguro, a riqueza da pobreza,<br />
edifícios-fortaleza negam a relação com a rua e tornam os espaços públicos<br />
lugares perigosos e de segregação. A rua, que possibilita o encontro,<br />
além do deslocamento, não interessa a esses condomínios, porque ameaça<br />
a paz e a segurança, por abrigar o desconhecido.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
030<br />
Esses edifícios habitacionais ocupam áreas definidas por um<br />
zoneamento funcionalista, que separa distintos padrões econômicos e<br />
funções, colocando-se ‘cada coisa em seu lugar’ e eliminando-se duas das<br />
principais características da cidade: a diversidade e a mistura. Nessas<br />
cidades, a diversidade de usos e a mistura de serviços e níveis sociais, que<br />
animam e trazem a segurança dos “olhos da rua”, estão dissociadas das<br />
habitações e reunidas por diferentes padrões: negócios são agrupados<br />
em centros empresariais, lojas são agrupadas em shoppings, habitações<br />
em diferentes áreas de distinto poder aquisitivo.<br />
Figura 5<br />
—<br />
Para quem é a cidade?<br />
Montagem de recorte<br />
da cidade do Recife do<br />
filme <strong>Brasil</strong> S/A<br />
Por que, então, a diversidade e a mistura, que ajudam a diminuir<br />
as distâncias, os deslocamentos e trazer segurança, não são contempladas<br />
no planejamento urbano do <strong>Brasil</strong>? Tentando responder a<br />
estas questões, vamos fechar estas reflexões pensando no futuro. Há<br />
um futuro melhor para as cidades? Como poderão ser reinventadas?<br />
3. As cidades do futuro: recuperando o ponto de equilíbrio<br />
Em dezembro de 2011, uma manchete de capa da revista National<br />
Geographic <strong>Brasil</strong>, anunciava em letras garrafais a notícia: “Sete<br />
Bilhões. A cidade é a solução”. Escrita pelo jornalista Robert Kunzig, a
031 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
matéria nos convida a refletir e compreender o porquê de se afirmar<br />
que, apesar de todos os problemas populacionais, as cidades são o<br />
remédio contra os males da superpopulação do planeta. Esta seria<br />
uma cidade densa, de atividades sobrepostas, equitativa e ecológica e,<br />
sobretudo, que pudesse emocionar e satisfazer os anseios do espírito<br />
humano. Para isso e sobre essas leituras, recorto cinco pontos que<br />
deveriam ser considerados por gestores(as), planejadores(as) e moradores(as)<br />
das cidades:<br />
a. Cidades como ecossistemas<br />
figura 6<br />
—<br />
Estrutura da Ecologia<br />
urbana (Fonte: Agencia<br />
de Ecologia Urbana de<br />
Barcelona apud Barbero.<br />
P. http://imapa.net/blog/<br />
page/2/)<br />
A cidade é um ecossistema que exerce grande pressão sobre os recursos<br />
naturais. Para preservá-los, é preciso explorar energias renováveis,<br />
usar água e energia com parcimônia, reciclar, manter áreas verdes, utilizar<br />
transportes públicos, andar a pé ou de bicicleta e usufruir do espaço<br />
público como um direito de todos(as).<br />
b. Uso misto gera circulação de pessoas<br />
Quanto mais diversificados os usos das edificações, mais fluxo de pessoas<br />
como “olhos da rua”. Habitações junto de lojas, padarias, farmácias,
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
032<br />
escritórios, mercados, igrejas, praças e cinemas, por exemplo, tornam<br />
as cidades mais vivas.<br />
c. Incentivo ao transporte público<br />
figura 8<br />
—<br />
Equivalência entre<br />
ônibus e carros<br />
01 ônibus = 40 carros<br />
(80 passageiros)<br />
O automóvel é o maior dos vilões na cidade. Ocupa um espaço precioso<br />
das vias, polui o ar e, quase sempre, circula com uma ou duas pessoas.<br />
A equação é simples: um ônibus, que leva 80 pessoas, equivale a 40<br />
carros a menos nas ruas.<br />
d. Reconhecimento das preexistências<br />
Nem sempre o reconhecimento de técnicos(as) e especialistas por<br />
determinados lugares consegue capturar o que realmente tem valor<br />
para uma população. O planejamento terá que considerá-los e propor<br />
projetos que respeitem as preexistências, a história, os desejos e a<br />
paisagem das cidades.<br />
Figura 9<br />
—<br />
Cartões-postais de<br />
paisagens que identificam<br />
a cidade do Recife.
033 <strong>Brasil</strong> S/A e o<br />
colapso metropolitano<br />
e. Planejamento compartilhado<br />
O planejamento compartilhado considera a opinião dos técnicos, dos<br />
especialistas e dos moradores de uma cidade. Os projetos urbanos<br />
devem revelar este desejo coletivo para que tragam benefícios para<br />
todos(as). Quando as pessoas são ouvidas e participam do processo de<br />
decisão, são capazes de incorporar e defender as ideias de transformação.<br />
Exemplo de reivindicação deste planejamento se deu em Recife<br />
entre 2012 e 2015, quando os grupos Direitos Urbanos e #OcupeEstelita,<br />
lutando para conservar uma paisagem histórica da cidade, impediram<br />
a construção do megalomaníaco Projeto Novo Recife, que se arrasta<br />
até os dias de hoje.<br />
O “colapso metropolitano” não está na metrópole em si, mas na<br />
forma como algumas são pensadas, planejadas e construídas, desconsiderando-se<br />
suas diversidades e valores. Como afirma Richard Rogers,<br />
em seu livro Cidades para um pequeno planeta, as cidades são, por<br />
excelência, o “ímã demográfico de nossos tempos, porque facilitam o trabalho<br />
e são a sementeira de nosso desenvolvimento cultural”. Cabe-nos,<br />
portanto, lutar para que sejam socialmente mais justas, mais sustentáveis<br />
e que, sem abandonar a arte, possam nos emocionar.<br />
Figura 10<br />
—<br />
O movimento #Ocupe Estelita<br />
organizou vários protestos<br />
contra o Projeto Novo Recife,<br />
caracterizando um dos movimentos<br />
de reivindicação mais<br />
emblemáticos do <strong>Brasil</strong> nos<br />
últimos tempos.
034<br />
Os exercícios sugeridos abordam os cinco pontos levantados<br />
em relação à recuperação do ponto de equilíbrio da cidade: (1) cidade<br />
como ecossistema, (2) uso misto, (3) transporte público, (4) reconhecimento<br />
das preexistências e (5) planejamento compartilhado.<br />
(1) Cidade como ecossistema<br />
Identifique, no seu bairro, os elementos da cidade que caracterizam<br />
um ecossistema urbano: áreas edificadas (casas, prédios, lojas, teatros,<br />
igrejas), áreas livres (praças, parques, jardins, quintais, campos<br />
de pelada) e áreas de circulação (ruas, calçadas, viadutos, pontes).<br />
Explique a importância da vegetação e aponte quais as áreas mais<br />
confortáveis do seu bairro e por quê? Utilize desenhos, fotografias,<br />
recortes, ou outras ferramentas, como a poesia.<br />
(2) Uso misto gera circulação<br />
Escolha duas ruas de seu bairro: a mais movimentada e a menos<br />
movimentada. Faça um desenho indicando todos os usos das edificações<br />
ao longo dessas ruas. Fazendo uma comparação entre elas,<br />
explique por que uma é mais movimentada do que a outra.<br />
(3) Incentivo ao transporte público<br />
Entreviste quatro pessoas do seu bairro, uma que utiliza o transporte<br />
público, outra o automóvel, outra a bicicleta e outra que costuma<br />
andar a pé. Procure descobrir as vantagens e desvantagens de cada<br />
uma dessas modalidades de locomoção. Qual a sua conclusão?<br />
(4) Reconhecimento das preexistências<br />
Aponte um monumento de sua cidade protegido por lei, por seu<br />
valor histórico e descreva-o. Depois fotografe alguma coisa de seu<br />
bairro (edificação, árvore, jardim, quintal, montanha, lagoa, etc) que<br />
você acha que deveria ser protegido por lei porque as pessoas de<br />
seu bairro reconhecem como um bem de valor local.
035<br />
(5) Planejamento compartilhado<br />
Vamos trabalhar com o planejamento compartilhado na escola.<br />
A gestão compartilhada deve incluir a direção da escola, os(as)<br />
funcionários(as), os(as) alunos(as) e seus pais e suas mães, para<br />
que se discuta sobre o que deveria ser mudado, melhorado e/<br />
ou transformado em sua escola. Organizem-se em grupos para<br />
participar de um debate, e cada grupo deverá apresentar a<br />
sua proposta de melhora. O grupo vencedor poderá, de fato,<br />
participar, durante um ano, das ações escolares de melhoria do<br />
espaço escolar.<br />
FRANÇA, Elisabete. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes.<br />
Resenhas Online, São Paulo, ano 13, n. 153.03, Vitruvius, set.<br />
2014 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/13.153/5298<br />
JACOBS, Jane. Vida e morte de grandes cidades. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 2000.<br />
JESSÉ ALEXANDRE DA SILVA, Geovany; BUSTOS ROMERO,<br />
Marta Adriana. O urbanismo sustentável no <strong>Brasil</strong>. A revisão de<br />
conceitos urbanos para o século XXI (parte 01). Arquitextos, São<br />
Paulo, ano 11, n. 128.03, Vitruvius, jan. 2011<br />
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.128/3724<br />
KUNZIG, Robert. Sete bilhões. A cidade é a solução. In: Revista<br />
National Geographic <strong>Brasil</strong>. Dezembro, 2011. p.42-61.<br />
LEITE, Carlos. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento<br />
sustentável num planeta urbano. Porto Alegre:<br />
Bookman, 2012.
036<br />
MARICATO, Ermínia. Cidades rebeldes. É a questão urbana, estúpido!<br />
Le Monde Diplomatique <strong>Brasil</strong>. São Paulo, ago. 2013. http://www.<br />
diplomatique.org.br/artigo.php?id=1465<br />
PANERAI, Philippe. O retorno à cidade: o espaço público como<br />
desafio do projeto urbano. In: Revista Projeto, abril/1994, nº 173.<br />
ROGERS, Richard. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona:<br />
Editorial Gustavo Gili, 2013.<br />
ROLNIK, Raquel. Um novo lugar para o velho centro. Minha Cidade,<br />
São Paulo, ano 06, n. 071.01, Vitruvius, jun. 2006 .
as mulheres,<br />
o progresso<br />
e o brasil
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
042<br />
SOPHIA BRANCO<br />
Feminista e professora de sociologia. Atualmente é<br />
estudante de mestrado no Programa de Pós-Graduação em<br />
Sociologia da UFPE.
043 as mulheres, o progresso<br />
e o brasil<br />
Uma forma de começarmos a pensar sobre as questões de gênero<br />
a partir de <strong>Brasil</strong> S/A é refletindo sobre os lugares que as mulheres<br />
não ocupam no filme. O navio que abre a primeira cena representa a<br />
chegada ofensiva de uma forma de ver o mundo e a vida trazida pelos<br />
colonizadores. Essa forma foi se transformando ao longo dos séculos,<br />
mas continuou tendo como referência uma visão eurocêntrica de<br />
desenvolvimento, ou seja, uma visão pautada no que as sociedades<br />
europeias acreditavam e acreditam que é bom. A palavra progresso<br />
é central para esse ideal de desenvolvimento e o trabalho, por sua<br />
vez, é central para compreender o que se entende por progresso. Por<br />
isso, podemos começar pensando sobre como as ideias de progresso<br />
e trabalho impactam a vida das mulheres.<br />
Por trabalho, entendemos todo tipo de atividade humana a<br />
partir da qual transformamos o que está a nossa volta e a nós mesmas(os).<br />
De acordo com a narrativa moderna do progresso, a história<br />
da humanidade seria a história do avanço dos meios a partir dos quais<br />
transformamos e dominamos a natureza. Seria a história de como deixamos<br />
de depender da luz solar ao criarmos a luz elétrica; ou de como<br />
passamos a depender menos das chuvas ao inventarmos mecanismos<br />
de irrigação. A ideia de progresso, então, está relacionada a um processo<br />
de transformação da natureza em algo útil para o ser humano.<br />
<strong>Brasil</strong> S/A se debruça exatamente sobre essa narrativa que<br />
está presente em nosso imaginário, mas as mulheres não aparecem<br />
na tela como trabalhadoras. Dessa forma, elas não aparecem como<br />
construtoras da trajetória de progresso do país que é contada pelo<br />
filme. Isso ocorre porque o trabalho das mulheres não está contido<br />
na narrativa oficial do <strong>Brasil</strong>. Na realidade, na nossa história oficial as<br />
mulheres quase não entram. Um bom termômetro para pensar sobre<br />
isso é caminhar pela sua cidade e buscar ruas que tenham nomes de<br />
mulheres. São sempre muito poucas, porque a maior parte das personagens<br />
da história do <strong>Brasil</strong> são homens.<br />
Será que as mulheres não ocuparam lugares de prestígio<br />
na história do país ou será que seus nomes foram apagados dessa<br />
Fique por dentro!<br />
—<br />
O substantivo ‘personagens’ é um<br />
dos poucos da língua portuguesa<br />
que pode ser usado no feminino<br />
para se referir a coletividades que<br />
incluam homens e mulheres. Não<br />
é estranho que em uma sala que<br />
estejam presentes 10 meninas e 2<br />
meninos tenhamos que falar “Bom<br />
dia, alunos”? Isso ocorre porque<br />
a linguagem não está à parte da<br />
sociedade, ela é ao mesmo tempo<br />
fruto da sociedade em que vivemos<br />
e construtora dessa sociedade.<br />
Por isso, o machismo presente<br />
na nossa linguagem reflete e cria<br />
o machismo existente na nossa<br />
realidade, muitas vezes sem sequer<br />
percebermos. Quando falamos<br />
“os cineastas brasileiros”, logo<br />
imaginamos um grupo de homens<br />
atrás de câmeras. Estou errada?<br />
Nós sabemos que também existem<br />
mulheres cineastas, mas é como se,<br />
ao universalizarmos o masculino,<br />
estivéssemos incluindo as mulheres.<br />
Mesmo que, segundo a regra<br />
gramatical, essa inclusão esteja<br />
prevista, o fato é que as mulheres<br />
só são (quando são) incluídas de<br />
forma secundária na imagem que<br />
criamos dos cineastas brasileiros.<br />
Uma forma de contornar isso é<br />
aderindo a uma linguagem inclua<br />
as mulheres não discurso e, dessa<br />
forma, no nosso imaginário. Por<br />
exemplo, no lugar de falarmos “Bom<br />
dia, alunos”, podemos falar “Bom<br />
dia alunas e alunos”.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
044<br />
Fique por dentro!<br />
—<br />
O trabalho doméstico é tão<br />
invisibilizado como trabalho na<br />
nossa sociedade que as pessoas<br />
que atuam como profissionais nesse<br />
campo só tiveram seus direitos<br />
trabalhistas regulamentados<br />
em 2013. Até então, as(os)<br />
empregadas(os) domésticas(os) não<br />
tinham a maior parte dos direitos<br />
trabalhistas que são garantidos<br />
às(aos) outras(os) trabalhadoras(es).<br />
Viviam em uma situação de<br />
semiescravidão, na qual sequer<br />
tinham garantidas a jornada de<br />
trabalho de oito horas diárias e o<br />
pagamento de horas extras.<br />
história? Podemos dizer que existe um pouco das duas coisas. Ao<br />
longo da nossa história foi negada às mulheres participação na esfera<br />
pública e em lugares de prestígio. Ainda assim, em muitos momentos<br />
elas tiveram participação ativa, mas seus nomes foram retirados<br />
pelas mãos que redigiram nossa história. Nesse sentido, as mulheres<br />
passam por um duplo sufocamento: tentou-se ao máximo impedi-las<br />
de participar da vida pública e, quando elas participaram, foi-lhes<br />
negado o reconhecimento.<br />
Em relação ao trabalho das mulheres, acontece algo parecido.<br />
Em geral, a história que se conta é que as mulheres só passaram a trabalhar<br />
“fora de casa” em meados do século XX, após muita luta para conquistar<br />
essa liberdade. Antes de qualquer coisa, precisamos entender<br />
que não é apenas entre homens e mulheres que existem desigualdades.<br />
Elas também existem entre as próprias mulheres. É comum que se diga<br />
que a mulher foi desde sempre impedida de trabalhar e considerada<br />
frágil. Essa situação diz respeito, majoritariamente, à condição social<br />
das mulheres brancas da elite. A realidade das mulheres negras não<br />
apenas na história do <strong>Brasil</strong>, mas em toda história da escravidão e da<br />
expansão colonial europeia, tem sido completamente diferente. Estas<br />
sempre trabalharam de forma tão exaustiva quanto os homens negros.<br />
Ainda assim, quando pensamos nas mãos que construíram o <strong>Brasil</strong>, a<br />
imagem que se tem é de homens trabalhando em canaviais, lavouras<br />
de café e nas minas. É essa a imagem oficial retratada em <strong>Brasil</strong> S/A.<br />
O mercado de trabalho sempre contou com a participação<br />
das mulheres que não pertenciam às elites, mas as funções que desempenhamos<br />
têm sido menos valorizadas e, mesmo quando ocupamos<br />
as mesmas atividades que os homens, muitas vezes ainda não<br />
recebemos o mesmo prestígio e os mesmos salários. Há também outro<br />
tipo de trabalho, normalmente desempenhado por mulheres, que é<br />
invisibilizado da nossa história: o trabalho doméstico. Para compreender<br />
como ocorre essa invisibilização, precisamos entender melhor<br />
o sistema capitalista e patriarcal que está posto e de que forma estes<br />
dois sistemas se retroalimentam.
045<br />
as mulheres, o progresso<br />
e o brasil<br />
Patriarcado e Capitalismo<br />
Patriarcado vem da combinação das palavras gregas pater<br />
(pai) e arkhe (origem e comando). Portanto, significa a autoridade<br />
do pai. Chamamos de patriarcado à formação social em que os homens<br />
detêm o poder, ou seja, onde há dominação masculina sobre<br />
as mulheres Em um texto intitulado “O Patriarcado e a situação<br />
das mulheres”, Carmen Silva e Silvia Camurça afirmam que essa<br />
dominação se dá a partir da desvalorização de tudo que se refere<br />
ao universo feminino e de vários outros mecanismos como: (1) a<br />
divisão sexual do trabalho, que separa as diferentes atividades que<br />
desempenhamos em “trabalhos de homem” e “trabalhos de mulher”,<br />
valorizando as atividades masculinas mais do que as femininas; (2)<br />
a exclusão das mulheres dos espaços de poder e de tomada de<br />
decisão, impedindo-as de expor suas questões e defender seus<br />
interesses; (3) a expropriação do corpo das mulheres, que faz com<br />
que seus corpos passem a servir muito mais à satisfação do desejo<br />
masculino e à procriação do que aos seus próprios interesses e<br />
desejos; (4) e a violência propriamente dita, que é acionada quando<br />
estes outros mecanismos de controle não funcionam ou para<br />
garantir que eles funcionem.<br />
O patriarcado é um sistema de dominação anterior ao capitalismo,<br />
mas, com o surgimento do capitalismo, o patriarcado adquire<br />
características específicas. O capitalismo é um sistema socioeconômico<br />
que tem no dinheiro o seu centro operacionalizador: todos os bens e<br />
serviços podem ser reduzidos a um valor monetário e trocados. No capitalismo,<br />
os meios de produção (terras, fábricas, máquinas), o dinheiro<br />
para investir nesses meios de produção e o resultado dessa produção<br />
são propriedade privada. A produção é destinada à venda, não ao uso<br />
próprio, e visa o lucro. Por isso, todos os bens precisam ser comprados<br />
para ser consumidos. Aqueles que não detêm meios de produção vendem<br />
a sua força de trabalho em troca de salários e, com esses salários,<br />
adquirem os bens dos quais necessitam para sobreviver.<br />
Fique por dentro!<br />
—<br />
divisão sexual do trabalho<br />
Danièle Kergoat, no verbete sobre<br />
Divisão sexual do trabalho do<br />
Dicionário crítico do feminismo,<br />
afirma que a divisão sexual do<br />
trabalho tem dois princípios<br />
organizativos: a separação entre<br />
“trabalhos de homens” e “trabalhos<br />
de mulheres” e a hierarquização a<br />
partir da qual o trabalho do homem<br />
vale mais do que o trabalho da<br />
mulher. Embora esse modelo de<br />
divisão social do trabalho seja<br />
encontrado em diferentes formas<br />
de organização social, o seu<br />
conteúdo não é um dado rígido e<br />
imutável: uma tarefa considerada<br />
feminina em um contexto pode ser<br />
considerada masculina em outros.<br />
O que se repete e, por isso, é o<br />
que caracteriza fundamentalmente<br />
a divisão sexual do trabalho é o<br />
fato de existir a separação e a<br />
hierarquização das atividades.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
046<br />
Trabalho visível e trabalho invisível<br />
O processo de monetarização da vida (quando todas as relações<br />
de troca passaram a ser mediadas pelo dinheiro) veio junto com a<br />
urbanização e a industrialização. No campo, por exemplo, muitas famílias<br />
plantavam aquilo que consumiam. Na cidade, isso se torna cada vez mais<br />
difícil, e as famílias são obrigadas a vender sua força de trabalho para<br />
consumir o necessário para sua sobrevivência. A intensificação do trabalho<br />
nas fábricas radicalizou a separação entre duas categorias distintas<br />
de trabalho que desenvolvemos para garantir a nossa sobrevivência: o<br />
trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. Essa divisão está associada<br />
a uma divisão sexual do trabalho em que os homens são responsáveis<br />
pelo trabalho produtivo, e as mulheres, pelo reprodutivo.<br />
No capitalismo, o trabalho que gera lucro de forma direta é considerado<br />
trabalho produtivo. O trabalho doméstico se encaixa na categoria<br />
do trabalho reprodutivo, que é todo trabalho envolvido na reprodução<br />
da vida. O capitalismo radicaliza essa separação porque introduz uma<br />
clara demarcação espacial (o trabalho doméstico é realizado em casa e<br />
o trabalho assalariado é realizado fora de casa) e monetária (recebemos<br />
salário apenas pelo trabalho que desenvolvemos fora de nossas próprias<br />
casas, ou seja, que não é destinado aos nossos familiares). A divisão sexual<br />
do trabalho não é uma criação do capitalismo, mas as condições em que<br />
ela se dá, nesse sistema, reforçam o lugar de subordinação das mulheres,<br />
uma vez que o trabalho doméstico desempenhado por elas não é apenas<br />
desvalorizado porque estamos inseridas(os) em um sistema patriarcal, que<br />
naturalmente desvaloriza o que é feito pelas mulheres, mas porque é um<br />
trabalho que não gera dinheiro em uma sociedade na qual o dinheiro é o<br />
que garante a autonomia das pessoas.<br />
O trabalho doméstico não inclui apenas aquelas funções que<br />
normalmente visualizamos quando pensamos nos afazeres domésticos<br />
como arrumar a casa, cozinhar e lavar roupas. Inclui também todo o cuidado<br />
com as crianças, idosos e doentes da família, atividades que normalmente<br />
se acredita que as mulheres fazem por amor. Elas podem até
047 as mulheres, o progresso<br />
e o brasil<br />
desempenhar essas funções por amor, mas isso não nega o fato de que<br />
são atividades exaustivas e que precisam ser realizadas por alguém. É<br />
muito comum ouvirmos diversos profissionais afirmarem que trabalham<br />
por amor, mas isso não significa que não desejam reconhecimento. No<br />
caso do trabalho realizado para o mercado, esse reconhecimento vem em<br />
forma de prestígio e dinheiro. O reconhecimento não existe no trabalho<br />
doméstico porque, no imaginário da população, as mulheres não estão<br />
fazendo nada além do que é esperado delas e, quando elas não desempenham<br />
essas funções, são repreendidas. Um homem que não cuida das(os)<br />
suas(seus) filhas(os) será muito menos repreendido socialmente do que<br />
uma mulher que aja da mesma forma.<br />
Dentro da definição de trabalho que demos no início do texto,<br />
o cuidado é o tipo de atividade humana a partir da qual transformamos a<br />
nós mesmas(os). O cuidado que temos umas(uns) com as(os) outras(os)<br />
é, na realidade, fundamental para que a própria vida possa existir, porque<br />
não precisamos apenas comer, ter o que vestir e uma casa para morar.<br />
O afeto e a proteção também são fundamentais para que possamos ter<br />
uma boa vida. Isso pode parecer óbvio, mas, dentro da lógica capitalista,<br />
quando as coisas que realmente importam são colocadas na ponta do<br />
lápis, esses atributos não são contabilizados.<br />
É por isso que, em uma família na qual o homem trabalha fora<br />
de casa, e a mulher trabalha em casa, em geral, ela não tem decisão<br />
sobre o que vai ser feito com o dinheiro. A ideia que se faz é a de que<br />
ele trabalha para sustentar a casa. Mas, na realidade, ambos estão trabalhando<br />
para sustentar a casa. Existe um trabalho operacional que<br />
está sendo feito: tem alguém que fica em casa para garantir que todos<br />
os dias ele possa ir ao trabalho. Essa pessoa lava as suas roupas, limpa<br />
o banheiro que ele usa, faz a sua comida. Há uma dimensão produtiva<br />
nesse tipo de trabalho, porque todas essas funções estão estreitamente<br />
conectadas ao produto final que o assalariado gera em suas atividades<br />
fora de casa. Mas essa conexão é ignorada, como se o trabalho feito<br />
dentro dos escritórios e fábricas em nada dependesse do trabalho feito<br />
dentro de casa.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
048<br />
Ao dividir e hierarquizar as atividades, a divisão sexual do trabalho<br />
gera a ilusão de que alguns trabalhos são próprios e exclusivos das<br />
mulheres e outros são, necessariamente, dos homens. Por isso, independentemente<br />
de trabalharem fora de casa, as mulheres continuaram sendo<br />
responsáveis pelo trabalho doméstico, sendo submetidas à dupla jornada<br />
de trabalho, com rotinas extremamente exaustivas.<br />
Na contramão da ideologia capitalista, acreditamos que nem<br />
todas as atividades e relações sociais podem ser monetarizadas. O afeto,<br />
a proteção e o carinho, por exemplo, não podem ser contabilizados porque<br />
são simplesmente incalculáveis. Mas acreditamos que as atividades<br />
que supostamente envolvem esses sentimentos também precisam ser<br />
entendidas como trabalho para que se compreenda que essas atividades<br />
precisam ser partilhadas entre homens e mulheres, porque elas geram<br />
desgaste e cansaço como todas as outras formas de trabalho. Para além<br />
das atividades que podemos estar desenvovelndo com amor, há também<br />
um amplo leque de afazeres da vida doméstica que desempenhamos por<br />
obrigação, já que é um trabalho que precisa ser realizado por alguém.<br />
Pensemos agora no trabalho doméstico de todas as mulheres<br />
que foi invisibilizado ao longo da história do <strong>Brasil</strong>. Teríamos construído<br />
todos esses engenhos, estradas, cidades, prédios, carros e máquinas se<br />
alguém não estivesse em casa desempenhando o trabalho reprodutivo?<br />
Para começo de conversa, a nossa própria espécie teria deixado de existir<br />
se ninguém estivesse garantindo o cuidado das crianças.<br />
Um enorme contingente de trabalho foi e tem sido realizado<br />
gratuitamente pelas mulheres para construir uma sociedade na qual elas<br />
sequer têm voz. Esse trabalho é incorporado pela esfera produtiva, na<br />
medida em que garante a reprodução da força de trabalho assalariada e<br />
do cotidiano. Isso significa que ele contribui para gerar o lucro, mas essa<br />
contribuição não é reconhecida. Quando dizemos que esse trabalho foi<br />
realizado gratuitamente, não estamos reivindicando, necessariamente, que<br />
as mulheres as quais não estão inseridas profissionalmente, no campo das<br />
atividades domésticas, devem receber em dinheiro pelo seu trabalho, mas<br />
que mudemos o cálculo sobre o que é importante na nossa sociedade.
049<br />
as mulheres, o progresso<br />
e o brasil<br />
Em resumo, o que ocorre é que a importância do trabalho que<br />
as mulheres desenvolvem tanto dentro como fora de casa tem sido<br />
camuflada na história que nos contam. Os lugares que as mulheres não<br />
ocupam em <strong>Brasil</strong> S/A são os mesmos que elas não ocupam na nossa<br />
historiografia oficial: o de protagonistas. Se as mulheres não têm sido<br />
representadas dessa forma, como elas têm aparecido na imagem que<br />
construímos do <strong>Brasil</strong>? Um dos lugares que temos ocupado de forma<br />
recorrente é o de “ornamentos”.<br />
O corpo das mulheres lhes pertence<br />
Aparecemos como ornamentos no fundo do palco, dançando<br />
com roupas curtas, em programas de apresentadores como Faustão, Gugu<br />
Liberato, Luciano Hulk e muitos outros, que são moda desde a época de<br />
Chacrinha. Somos vistas como ornamentos toda vez que, ao passarmos<br />
na rua, algum homem nos solta alguma gracinha sem considerar como<br />
nos sentimos diante desse tipo de atitude. Aparecemos como enfeites<br />
na ideia que se vende do <strong>Brasil</strong>, quando as mulheres brasileiras são colocadas<br />
como mais uma de nossas “belezas naturais”. Aparecemos como<br />
enfeite também na forma como representam o carnaval, que coloca as<br />
mulheres sempre no lugar de musas hipersexualizadas, mas nunca no lugar<br />
de compositoras ou artistas. Somos enfeites nos comerciais de cervejas e<br />
de carros, que não são destinados a nós, mas se utilizam de nossos corpos<br />
para chamar a atenção dos homens.<br />
Fique por dentro!<br />
—<br />
feminismo<br />
Segundo Carmen Silva e Silvia<br />
Camurça, no livro “Feminismo<br />
e Movimentos de Mulheres”, o<br />
feminismo é ao mesmo tempo (1)<br />
uma teoria que analisa criticamente<br />
o mundo e a situação das mulheres,<br />
denunciando as injustiças da<br />
sociedade patriarcal; (2) um<br />
movimento social organizado, a<br />
partir do qual as mulheres lutam<br />
por direitos, mudanças, igualdade e<br />
justiça; e (3) uma postura cotidiana<br />
assumida por cada mulher diante da<br />
sua própria vida ao não aceitar ser<br />
o ‘tipo de mulher’ que a sociedade<br />
impõe que ela seja.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
050<br />
É estranho falarmos das mulheres como enfeites, porque ser<br />
enfeite é atributo para um objeto. Mas é exatamente isso que tem sido<br />
feito com as imagens das mulheres: um processo de objetificação. Quando<br />
a imagem de uma mulher é usada para vender uma cerveja, não são<br />
considerados os seus atributos intelectuais, suas emoções, o que ela<br />
pensa ou que ela tem a dizer. A sua aparência importa mais do que<br />
qualquer outro aspecto da sua personalidade. A objetificação se dá a<br />
partir desse processo de despersonalização, na qual somos resumidas<br />
apenas a uma imagem.<br />
Na passagem do filme em que vemos um balé de máquinas<br />
sendo regido por uma mulher, é exatamente a representação dessa objetificação<br />
que está em cena. As máquinas, ali, representam a potência<br />
de um modelo de progresso patriarcal: as máquinas são os homens, sua<br />
virilidade, sua força de trabalho, sua ação devastadora na transformação<br />
da natureza. A imagem feminina não aparece regendo as máquinas<br />
pela força que a personagem impõe enquanto mulher, mas pelo fetiche<br />
e sedução que circundam o corpo das mulheres. Se o seu poder não<br />
estivesse na exploração do seu corpo desnudo, porque ela apareceria<br />
de biquíni? A imagem se assemelha bastante à forma como os corpos<br />
femininos são representados no tipo de comerciais que mencionamos.<br />
Ali e aqui, esses corpos aparecem como meros objetos para satisfazer<br />
o desejo sexual masculino.
051<br />
Comparativamente à quantidade de comerciais que exploram<br />
a imagem do corpo feminino, é ínfimo o número de comerciais que se<br />
utilizam da imagem sexualizada de homens para vender produtos para<br />
as mulheres. Isso ocorre porque a sociedade patriarcal gira em torno da<br />
repressão da sexualidade das mulheres e da liberação da sexualidade<br />
dos homens. Então, é como se nós mulheres não sentíssemos ou não<br />
devêssemos sentir desejo sexual, por isso a nossa sexualidade não é<br />
incentivada. Em contrapartida, devemos estar a serviço do desejo dos<br />
homens, devemos satisfazê-los.<br />
As imagens idealizadas das mulheres que vemos cotidianamente<br />
também cumprem outra função: elas são projetadas como um ideal de<br />
beleza que devemos seguir. Dessa forma, se transformam em verdadeiras<br />
prisões para as mulheres: é preciso estar sempre magra, ter os peitos<br />
grandes e a bunda sem celulites, ter a pele bem cuidada, unhas sempre<br />
feitas, cabelos sem frizz. Tratam-nos como verdadeiras bonecas a serem<br />
manipuladas pela indústria da beleza. É importante ressaltar que esses<br />
padrões de beleza carregam uma boa dose de racismo, tomando como<br />
referencial estereótipos brancos, como o cabelo liso, olhos claros.<br />
Quando falamos em expropriação do corpo das mulheres, estamos<br />
nos referindo a todos esses mecanismos a partir dos quais nos roubam<br />
a autonomia dos nossos próprios corpos. Tiram-nos a liberdade de ser da<br />
forma que queremos ser, pois precisamos estar sempre encaixadas em<br />
padrões de beleza arbitrários. Ensinam-nos a conter nossos desejos sexuais<br />
para que sejamos valorizadas por uma sociedade opressora. Utilizam<br />
os nossos corpos como enfeites sexualizados para contemplar o desejo<br />
dos homens, mas se queremos sair na rua com aquelas mesmas roupas<br />
curtas com as quais somos retratadas na televisão, dizem que estamos<br />
“pedindo” para ser assediadas e violentadas. Ouvimos gracinhas como se<br />
fôssemos apenas um pedaço de carne desfilando na rua. Os homens que<br />
soltam essas gracinhas não são repreendidos, mas a sociedade nos exige<br />
que estejamos sempre atentas para não “abrir brecha” para assédios.<br />
Ao esgarçar a narrativa patriarcal do progresso, <strong>Brasil</strong> S/A nos<br />
ajuda a pensar sobre essas questões. De que forma queremos ser retrataas<br />
mulheres, o progresso<br />
e o brasil
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
052<br />
das? Como queremos aparecer no cinema, na televisão, nas revistas e nos<br />
livros de história? Como queremos nos ver e como queremos ser vistas<br />
pelas(os) outras(os)? O patriarcado vem tentando impedir que sejamos<br />
donas de nossos corpos e das nossas vidas, mas nós estamos resistindo<br />
de diversas formas e desde sempre. Diferentemente do que às vezes<br />
ouvimos, as feministas não desejam dominar e oprimir os homens. O feminismo<br />
é simplesmente a ideia radical de que as mulheres são gente e,<br />
por isso, devem ter os mesmos direitos, espaço, voz, representatividade<br />
e reconhecimento que os homens. Queremos, simplesmente, ter nossos<br />
trabalhos reconhecidos socialmente, ser donas dos nossos corpos, escrever<br />
as nossas próprias histórias.
054<br />
1) Pesquise sobre mulheres que foram importantes para a história<br />
do <strong>Brasil</strong>.<br />
2) Atividade de observação<br />
a. Entre em uma loja de brinquedos e peça à(ao) vendedora(o) uma<br />
indicação para presentar uma menina e um menino.<br />
b. Assista a desenhos animados destinados às meninas e desenhos<br />
destinados aos meninos.<br />
c. Leia alguma revista destinada ao público adolescente feminino e<br />
uma revista destinada ao público adolescente masculino.<br />
d. A partir dos comerciais de televisão, observe quais são os produtos<br />
claramente direcionados às mulheres e aqueles direcionados<br />
aos homens e de que forma estes comerciais nos representam.<br />
Você observou alguma diferença? Quais? Você acha que essas diferenças<br />
influenciam de alguma forma a nossa personalidade e o tipo<br />
de atividade que desenvolvemos na vida adulta? Como?<br />
3) Ao folhear uma revista, recorte as imagens em que as mulheres<br />
aparecem e as imagens em que os homens aparecem. Faça uma<br />
análise comparativa da forma como homens e mulheres são representadas(os).<br />
4) Algumas pessoas se esforçam para inscrever as mulheres na linguagem<br />
e no nosso imaginário a partir de uma linguagem inclusiva.<br />
Pesquise diferentes estratégias utilizadas para esse fim e discuta<br />
com suas(seus) colegas e professoras(es).
055<br />
Blogueiras Feministas http://blogueirasfeministas.com<br />
Blogueiras Negras: http://blogueirasnegras.org<br />
Blogueiras Negras Teen: http://bnteen.com.br<br />
Escravo, nem pensar! Uma abordagem sobre trabalho escravo contemporâneo<br />
na sala de aula e na comunidade. Disponível em: http://<br />
escravonempensar.org.br/biblioteca/escravo-nem-pensar<br />
HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São<br />
Paulo: Editora Unesp, 2009.<br />
MARCELINO, Maria Fernanda et al. Trabalho, Corpo e Vida das Mulheres:<br />
uma leitura feminista sobre as dinâmicas do capital nos territórios.<br />
São Paulo: SOF – Sempreviva Organização Feminista, 2014.<br />
MARIANO, Agnes. Para entender a economia feminista. São Paulo,<br />
SOF Sempreviva Organização Feminista. Disponível em: http://<br />
www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/cartilhaEconomiaFeminista-web.pdf<br />
OLIVEIRA, Rayane et al. “Linguagem Inclusiv@: O que é e para que<br />
serve?!”. In Apostolova, Bistra (org). Introdução crítica ao direito<br />
das mulheres. Brasília: CEAD, FUB, 2012.<br />
SCHUMAKER, Schuma; VITAL , Erico (orgs.) Dicionário de Mulheres do<br />
<strong>Brasil</strong> de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2000.<br />
SILVA, Carmen; CAMURÇA, Silvia. O patriarcado e a situação das<br />
mulheres. Recife, SOS Corpo, mimeo.<br />
Série Mulheres em Movimento. Recife: SOS Corpo. Disponível em:<br />
http://soscorpo.org/publicacoes/series/<br />
Vídeo-documentário Mulheres invisíveis. Realização SOF – Sempreviva<br />
Organização Feminista. Disponível em: https://www.youtube.<br />
com/watch?v=VycN-Jsm9Lg
De olhos<br />
bem abertos:<br />
a crítica ao neodesenvolvimentismo<br />
em <strong>Brasil</strong> S/A
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
060<br />
celma tavares<br />
Pedagoga, pesquisadora do Núcleo de Estudos<br />
e Pesquisas de Educação em Direitos Humanos,<br />
Diversidade e Cidadania e professora do Programa de<br />
Pós-Graduação em Direitos Humanos, ambos da UFPE.
061 de olhos bem abertos: a crítica ao<br />
neodesenvolvimentismo em <strong>Brasil</strong> S/A<br />
No meu primeiro contato com <strong>Brasil</strong> S/A, fiquei impactada<br />
com sua capacidade de nos apresentar, de forma crítica e com a força<br />
dos símbolos e imagens, os problemas causados pelo neodesenvolvimentismo.<br />
Façamos, então, o exercício do duplo movimento do olhar<br />
que o filme nos propõe.<br />
Nosso ponto de partida é pensar no que nos diz a palavra<br />
‘desenvolvimento’. Seu significado na língua portuguesa é de ampliação,<br />
progresso, crescimento. Caso este termo seja acompanhado por<br />
outro, que o especifique e qualifique, podemos situá-lo em distintas<br />
áreas, como desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento<br />
sustentável, etc. Na educação, também temos presente<br />
a ideia de desenvolvimento (escolar) quando pensamos, por exemplo,<br />
no processo de aprendizagem.<br />
Se avaliarmos o que nos ocorre desde nosso nascimento,<br />
veremos que temos distintos níveis de desenvolvimento: físico,<br />
mental, psicológico, cognitivo, etc, que irão contribuir com o nosso<br />
desenvolvimento geral ao longo da vida, em termos individuais<br />
e coletivos, profissionais, familiares, entre outros. Isso demonstra<br />
como o desenvolvimento nos é familiar, apesar de muitas vezes não<br />
percebermos isso.<br />
Mas não é apenas para as pessoas que o desenvolvimento é<br />
necessário, ele é importante também para o país. Aqui devemos então<br />
nos perguntar qual é o desenvolvimento que queremos, com qual objetivo<br />
e com que custo para a nação. E neste ponto é que <strong>Brasil</strong> S/A nos<br />
ajuda a refletir sobre um dos modelos que vem sendo utilizado pelo<br />
Estado brasileiro: o neodesenvolvimentismo.<br />
Palavra com ‘poder mágico’ para juntar ricos e pobres no<br />
mesmo caminho do (suposto) desenvolvimento econômico do país, o<br />
neodesenvolvimentismo se inicia na segunda metade dos anos 2000,<br />
articulado a um momento de redirecionamento do neoliberalismo que<br />
se converte em social-liberalismo. Você pode estar se perguntando o<br />
que significam esses termos. Vamos, então, guardá-los neste momento<br />
e voltar a falar sobre eles adiante.<br />
OLHAR O PASSADO<br />
—<br />
O processo de colonização do<br />
<strong>Brasil</strong>, entre os séculos XVI e<br />
XIX, foi configurado por sua<br />
dependência da metrópole<br />
portuguesa, por sua economia<br />
baseada na monocultura, na<br />
grande propriedade, no trabalho<br />
escravo e no sistema de produção<br />
agroexportador. Além disso, sua<br />
formação social teve origem<br />
personalista; e sua formação<br />
política se fundamentou<br />
no patrimonialismo.<br />
Os componentes conservadores<br />
dessa ordem social resistiram ao<br />
longo do tempo, inclusive ante a<br />
chegada do liberalismo europeu,<br />
que foi trazido para o <strong>Brasil</strong> filtrado<br />
pelas elites; o que na prática<br />
significou emancipação para as<br />
classes dominantes, mas sem<br />
inserir as massas. Isso permitiu a<br />
continuidade de uma estrutura<br />
social baseada em relações privadas<br />
de mando e obediência.<br />
Nesse contexto, o país apresenta<br />
uma modernização do tipo<br />
conservadora, que, por um lado tem<br />
como fundamento o liberalismo<br />
formal e, por outro lado, mantém<br />
o patrimonialismo como prática,<br />
garantindo o privilégio das<br />
classes dominantes e negando o<br />
reconhecimento dos direitos para<br />
todas as outras pessoas.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
062<br />
fiquei por dentro!<br />
—<br />
patrimonialismo<br />
Está fundado na ideia de não<br />
distinção entre o público e o<br />
privado, segundo a qual as questões<br />
de ordem pública são tratadas<br />
como questões pessoais, e o<br />
interesse público é desconsiderado<br />
em favor do interesse privado,<br />
tornando o Estado uma extensão<br />
da casa.<br />
liberalismo<br />
É um fenômeno histórico ocorrido<br />
na Idade Moderna que engloba um<br />
conjunto de princípios de defesa<br />
da liberdade política e econômica;<br />
entre os quais a liberdade<br />
individual, a liberdade de mercado<br />
(mínima intervenção do Estado), e a<br />
defesa da propriedade privada.<br />
Antes, é importante dizer que o neodesenvolvimentismo não<br />
cai de paraquedas nas nossas cabeças, mas apresenta estreita relação<br />
com um contexto que possibilita seu surgimento. Assim, para compreendermos<br />
de maneira ampla a problematização trazida no filme, é preciso<br />
fazer um movimento de olhar o passado, pois a trajetória histórica<br />
nos revela a influência que têm, na atualidade, as heranças de nossa<br />
formação socioeconômica e cultural.<br />
Ao mesmo tempo, é necessário recordar as duas fases que<br />
antecedem o neodesenvolvimentismo: a do Estado nacional-desenvolvimentista,<br />
vigente entre 1930 e 1980, e a do Estado mínimo, que vai<br />
da década de 1980 até meados dos anos 2000.<br />
Com o primeiro, houve um processo de industrialização por<br />
meio da substituição de importações (aumenta-se a produção interna<br />
e diminuem-se as importações), que articulou o moderno e o arcaico<br />
presentes no país. Por meio desse mesmo processo, o Estado com<br />
perfil investidor e interventor manteve aliança com a burguesia nacional.<br />
O nacional-desenvolvimentismo também buscava ser a expressão<br />
crítica dos problemas nacionais ao incluir as questões da autonomia<br />
nacional e da integração social, que depois foram abandonadas durante<br />
a Ditadura Militar.<br />
A Ditadura Militar, inclusive, foi um período peculiar no caminho<br />
do desenvolvimento do país. Por um lado, tínhamos supressão de<br />
direitos civis, políticos, sociais, censura, tortura, assassinatos, trabalhadores<br />
e trabalhadoras proibidos de se organizar, salários abaixo da<br />
inflação (o conhecido arrocho salarial), e, por outro, o que foi chamado<br />
de ‘milagre brasileiro’, ou seja, um crescimento econômico maior do<br />
que em períodos anteriores. Porém, esse crescimento não tinha por<br />
objetivo a distribuição de renda e a redução da desigualdade. Ao contrário,<br />
a promessa dos governantes era de ‘esperar o bolo crescer para<br />
depois dividir’, o que nunca ocorreu. E o ‘milagre’ beneficiou apenas<br />
uma pequena parcela da população.<br />
No período de Estado mínimo, a ideologia orientadora de suas<br />
ações é o neoliberalismo. A proposta do Estado mínimo, como o termo
063<br />
já diz, é esvaziar as responsabilidades do Estado e passá-las à iniciativa<br />
privada. Vocês sabem o que isso quer dizer na prática? Quer dizer a<br />
diminuição de direitos sociais e sua transformação em mercadoria via<br />
privatização, o que resultou, por exemplo, no aumento de faculdades<br />
privadas e planos de saúde, em lugar do atendimento gratuito e de<br />
qualidade na educação e na saúde. Além disso, a privatização promoveu<br />
a retirada dos bens públicos da população por meio da venda ao<br />
capital estrangeiro, por vezes associado ao capital nacional, de grandes<br />
e importantes empresas do país, como a Vale do Rio Doce, e empresas<br />
do setor de energia e telecomunicações.<br />
Todo esse movimento vem acompanhado por um processo<br />
de reestruturação produtiva (no qual a máquina é o centro da<br />
produção) e precarização do trabalho que é muito bem retratado<br />
em <strong>Brasil</strong> S/A, nas suas várias imagens sobre trabalhadores(as) de<br />
diferentes áreas.<br />
A reestruturação produtiva é uma estratégia pela qual o capitalismo<br />
busca reduzir as perdas (leia-se diminuição dos lucros), causadas<br />
por suas contínuas crises a partir da década de 1970, e que se baseia<br />
em um modelo chamado de acumulação flexível. Esse modelo impõe<br />
um mercado desregulamentado, ou seja, em que os direitos trabalhistas<br />
perdem força, e o Estado não intervém. Sua preocupação é com o<br />
de olhos bem abertos: a crítica ao<br />
neodesenvolvimentismo em <strong>Brasil</strong> S/A<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
neoliberalismo<br />
Ideologia que pretende acabar<br />
com qualquer limitação ao<br />
desenvolvimento do mercado,<br />
propondo a não intervenção do<br />
Estado na economia e o corte<br />
de gastos sociais. Começou a<br />
ser gestado na década de 1940,<br />
ganhando força com a crise do<br />
capitalismo na década de 1970.<br />
Marcou o cenário político brasileiro<br />
a partir da década de 1990,<br />
baseado no trinômio da abertura<br />
econômica, das privatizações e da<br />
desregulamentação do Estado.<br />
social-liberalismo<br />
Ideologia que se apoia nos<br />
pressupostos da necessidade<br />
de políticas de crescimento<br />
econômico e redução da<br />
desigualdade, na focalização<br />
dos gastos sociais e no<br />
desenvolvimento baseado no<br />
investimento no capital humano<br />
e em um conjunto de reformas<br />
(tributárias, previdenciárias e<br />
trabalhistas). Defende a separação<br />
entre politica econômica e política<br />
social. E compreende a produção<br />
da pobreza como resultado<br />
do nível de educação formal e<br />
da capacidade de competição<br />
individual. Ou seja, sem relação<br />
com os problemas gerados<br />
pelo capitalismo.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
064<br />
crescimento apoiado na exploração do trabalho e amparado em uma<br />
dinâmica tecnológica e organizacional específica.<br />
Neste momento, você deve estar pensando qual a relação disso<br />
com sua vida, não é? Pois bem, todas essas mudanças promovidas para<br />
“salvar” o capitalismo, na prática, implicam a intensificação do trabalho,<br />
os contratos temporários marcados pela instabilidade e insegurança, a<br />
precariedade salarial, a demissão de um número cada vez maior de trabalhadores(as),<br />
aumentando o desemprego, etc. Aproveite então para<br />
refletir como isso já está afetando ou vai afetar sua vida profissional.<br />
Agora façamos o movimento de olhar o presente. Como já<br />
dissemos, toda a narrativa de <strong>Brasil</strong> S/A está permeada por questões<br />
econômicas, sociais e culturais, que evidenciam as estruturas de poder<br />
e violência, como a exploração do(a) trabalhador(a) no campo e na<br />
cidade, o caos urbano, a degradação ambiental, a segregação social,<br />
entre outras.<br />
Essas questões são continuamente influenciadas por uma<br />
lógica de desenvolvimento excludente e destrutiva, que atende aos<br />
interesses das elites nacionais e do capital internacional e coloca em<br />
ordem de importância a acumulação da riqueza antes do bem-estar coletivo.<br />
No filme, essa lógica está demarcada em muitas cenas. Gostaria,<br />
no entanto, que vocês prestassem atenção a uma cena específica, que<br />
sintetiza todas as questões que discutimos até aqui: a das máquinas
065<br />
de olhos bem abertos: a crítica ao<br />
neodesenvolvimentismo em <strong>Brasil</strong> S/A<br />
sendo “protegidas” por agentes do Estado. Pois essa sequência representa<br />
um dos ápices de como o público é apropriado pelos interesses<br />
privados, passando a priorizá-los.<br />
É nesse contexto que o neodesenvolvimentismo aprofunda<br />
essa visão, no que seria uma “nova” etapa de desenvolvimento do país,<br />
apesar de o Estado retomar o viés investidor, que havia sido abandonado<br />
na década de 1990.<br />
O neodesenvolvimentismo buscou conjugar crescimento econômico<br />
e distribuição de renda, promovendo a conciliação de classes;<br />
esta última uma forma de neutralizar a luta de classes que é o real meio<br />
de emancipação do(a) trabalhador(a). A opção em propiciar crescimento<br />
econômico e distribuição de renda decorre da ideologia orientadora<br />
do neodesenvolvimentismo, que é o social-liberalismo, na qual supostamente<br />
se busca dar uma “cara mais humana” ao capitalismo. Na prática,<br />
isso significa um modelo que não se contrapôs aos interesses do grande<br />
capital e fez poucas mudanças nas bases econômicas e políticas da<br />
sociedade brasileira.<br />
Em outras palavras, passou a haver investimento do Estado<br />
em grandes obras (que vieram acompanhadas por graves problemas<br />
sociais e ambientais), geração de empregos (ainda que precários e<br />
temporários) e ampliação do consumo para as classes trabalhadoras.<br />
Esta última ocorreu por meio de políticas chamadas de focalizadas e<br />
compensatórias, como os programas de transferência de renda, que,<br />
apesar de necessários, não enfrentam o cerne da desigualdade social<br />
no país. Pois a desigualdade brasileira está ancorada na concentração<br />
de terra, na concentração de riqueza e no capital rentista (aquele que<br />
tem lucros exorbitantes na bolsa de valores ou em títulos da dívida<br />
pública, por exemplo).<br />
As implicações desse percurso neodesenvolvimentista estão<br />
presentes ao longo de <strong>Brasil</strong> S/A de forma crítica, consistente e com<br />
o objetivo de fazer pensar quem somos e como chegamos aqui, que<br />
projeto de nação e de sociedade temos e a quem ele beneficia. Essa<br />
reflexão é fundamental para traçar contrapontos que nos ajudem a
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
066<br />
construir um processo de desenvolvimento que seja inclusivo, socialmente<br />
coerente e ambientalmente responsável.<br />
Ao longo de sua história, o país criou e manteve uma imagem<br />
de “país do futuro”, um país “predestinado a dar certo” e pautado pelo<br />
lema (positivista e conservador) de “ordem e progresso” que guiava seus<br />
passos, dando segurança ao porvir. O que <strong>Brasil</strong> S/A se propõe a fazer<br />
é abrir nossos olhos para as limitações desse imaginário coletivamente<br />
construído e aceito, apontando os erros que se repetem e se agravam<br />
e realçando o vazio que paira sobre nossas cabeças e que relutamos<br />
em enxergar.
068<br />
1) Escolha algumas cenas do filme nas quais vocês identificam o processo<br />
neodesenvolvimentista e debatam sobre suas consequências<br />
sociais e ambientais.<br />
2) Com base na crítica que é feita ao neodesenvolvimentismo no<br />
filme, discutam alternativas possíveis aos problemas gerados por<br />
esse modelo.<br />
3) Façam uma enquete no seu bairro para saber o que as pessoas<br />
sabem sobre o desenvolvimento do país, o que acham dele (pontos<br />
positivos e negativos) e como pensam que ele deve ser realizado.<br />
Depois apresentem e discutam os resultados.<br />
4) Criem vídeos com o celular – individualmente ou em grupos – sobre<br />
o modelo de desenvolvimento que temos a partir da realidade<br />
do seu bairro. Em seguida apresentem os vídeos e organizem uma<br />
roda de diálogo sobre seus conteúdos.
069<br />
ANTUNES, Ricardo. A Desertificação neoliberal no <strong>Brasil</strong>: Collor,<br />
FHC e Lula. Campinas/SP, Ed. Autores Associados, 2004.<br />
ARRUDA SAMPAIO JR., Plínio. Desenvolvimentismo e neodesenvolvimentismo:<br />
tragédia e farsa. In: Serviço Social e Sociedade, São<br />
Paulo, n. 112, p. 672-688, out./dez. 2012.<br />
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do <strong>Brasil</strong>. São Paulo,<br />
Companhia das Letras, 1995.<br />
CASTELO, Rodrigo. O novo desenvolvimentismo e a decadência<br />
ideológica do pensamento econômico brasileiro. In: Serviço Social e<br />
Sociedade, São Paulo, n. 112, p. 613-636, out./dez. 2012.<br />
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato<br />
político brasileiro. Rio Grande do Sul, Editora Globo, 1997.
<strong>Brasil</strong> foragido:<br />
rotas sobre as relações de trabalho<br />
e a produção da cultura afro-brasileira
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
074<br />
CECÍLIA GODOI<br />
Formada em Ciências Sociais e estudante de mestrado<br />
em Educação, Culturas e Identidades – UFRPE/FUNDAJ;<br />
faz parte do coletivo de mulheres negras Cabelaço-PE.
075 <strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira<br />
Quem vê o <strong>Brasil</strong> assim, do jeito que é, acha que foi sempre<br />
assim. Principalmente quem nasceu há 15 ou 20 anos. Você já parou para<br />
pensar que o mar é um território que conta um bocado sobre a história<br />
do <strong>Brasil</strong>? Convido-o(a) a um passeio por esse trajeto. Um passeio que,<br />
contado pelos passos da história brasileira, é repleto de conflitos, sangue<br />
e muito, mas muito suor. Mas aqui é só um texto, daonde nascem<br />
apenas reflexos e possibilidades para situar na história esses conflitos<br />
e o presente.<br />
Como vemos em <strong>Brasil</strong> S/A, a Região Metropolitana do Recife<br />
(RMR) é uma área portuária, tomada pelos fluxos do mar e do rio.<br />
O mar chega, toca na pedra, que filtra sua água, e então surge outro<br />
sistema aquífero: o dos rios, que passeiam pelas pedras e se misturam<br />
com a terra, formando lodo e lama. A RMR vive perpassada por este<br />
ciclo natural. Quando os homens brancos do famigerado ‘velho continente’<br />
resolveram embarcar nesse fluxo, atravessando o além-mar de<br />
suas fronteiras, trouxeram consigo malas, alimentos, animais, possíveis<br />
mapas, as próprias embarcações, que representavam grandes avanços<br />
científicos e tecnológicos, e pessoas que eles não consideravam<br />
pessoas. As rotas riscadas sobre o mar transatlântico são inúmeras, e<br />
podemos vê-las expressas nos traços de nossas cidades, sociedades,<br />
cultura e geopolítica.<br />
Relações raciais, mercado de trabalho e educação<br />
4/5 da história do <strong>Brasil</strong> foi vivida sob o sistema escravocrata.<br />
Construímos muito de lá até aqui, e a parcela significativa de nossa<br />
produção, enquanto terras férteis, naturalmente adubadas, de clima<br />
favorável, está acumulada nas mãos de quem mesmo? A população<br />
negra, desde que chegou aqui, trabalhou e trabalha dia após dia para o<br />
funcionamento da jornada de trabalho necessária ao nosso desenvolvimento.<br />
Desenvolvimento não apenas e simplesmente econômico, mas<br />
também nosso desenvolvimento geopolítico, nossa evolução espiritual<br />
e cultural. No entanto, ao invés de receber pelos tributos gerados pela<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
racismo<br />
Ideia que se faz do outro como<br />
sendo inferior a si, embasando-se<br />
na noção de que existem raças<br />
diferentes dentro da espécie<br />
humana. Nesta forma de agir,<br />
racializam-se os sujeitos, e<br />
formula-se uma hierarquia entre<br />
as raças de acordo a aparência<br />
física destes sujeitos.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
076<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
ideologia<br />
É um conjunto de ideias ou<br />
pensamentos de uma pessoa<br />
ou de um grupo de indivíduos.<br />
A ideologia pode estar ligada a<br />
ações políticas, econômicas e<br />
sociais. O termo ideologia foi<br />
usado de forma marcante pelo<br />
filósofo Antoine Destutt de Tracy.<br />
O conceito de ideologia foi muito<br />
trabalhado pelo filósofo alemão<br />
Karl Marx, que ligava a ideologia<br />
aos sistemas teóricos (políticos,<br />
morais e sociais) criados pela<br />
classe social dominante. De<br />
acordo com Marx, a ideologia<br />
da classe dominante tinha como<br />
objetivo manter os mais ricos no<br />
controle da sociedade.<br />
força de trabalho empenhada, a população negra paga por esse desenvolvimento,<br />
e pior, é morta e mantida nas piores posições e condições<br />
de trabalho.<br />
Desvantagens sociais de negras e negros, mesmo que livres,<br />
acumularam-se durante e após a escravidão. No âmbito escolar, o<br />
que resvala naturalmente na realidade do mercado de trabalho para<br />
pessoas negras, há notória desvantagem educacional dos não brancos<br />
(nesse caso, “não brancos” refere-se a afro-descendentes, não incluindo<br />
os indígenas, pelo foco que aqui se pretende dar) em relação aos<br />
brancos, e, por mais que os índices de analfabetismo tenham baixado<br />
significativamente, na população em geral, o hiato entre a população<br />
branca e a não branca permanece estável. Mesmo com o crescimento<br />
substancial da rede pública de ensino e a consequente universalização<br />
do acesso ao ensino fundamental, que teve início entre as décadas de<br />
1940 e 1950, as expectativas de progressão e desempenho em termos<br />
de ascensão social de pessoas negras ficam bastante desiguais às de<br />
pessoas brancas.<br />
Tradicionalmente, cabia à família o papel da educação, porém,<br />
com a crescente complexidade das sociedades modernas, fez-se necessária<br />
a busca de auxílio de outras instituições para o exercício dessa<br />
tarefa. A instituição escolar é uma delas. E é no processo de educar-se<br />
que as pessoas constroem suas identidades e, portanto, reconhecem a<br />
sua cor. A cor atua como elemento que afeta negativamente a trajetória<br />
escolar do indivíduo pelos traços de negação a esta origem, presente<br />
tanto em atitudes discriminatórias de estudantes e professores ou professoras,<br />
quanto na própria estrutura curricular de ensino.<br />
Haja vista o caso brasileiro, tem-se uma instituição escolar profundamente<br />
influenciada pela ideologia racista, que formulou nosso<br />
ideal de estado-nação. Acreditava-se que o <strong>Brasil</strong> iria para a frente, caso<br />
purificasse a sua raça, tornando-a branca e eliminando os vestígios do<br />
corpo “escuro” e “sombrio” de pessoas negras e indígenas.<br />
Não à toa, visto que o sistema escolar não é neutro e segue<br />
a agenda ideológica nacional, a escola é o espaço mais traumático de
077<br />
vivência do racismo por pessoas negras. Pois é na escola que a criança<br />
descobre que é negra e que isso tem um impacto na sua vivência social.<br />
<strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira<br />
Sociedade brasileira discrimina e criminaliza, o corpo<br />
negro se disfarça<br />
Existe uma obrigatoriedade social que atinge o corpo de pessoas<br />
negras no sentido de que, para ser bonito e aceito, devem-se<br />
disfarçar os fenótipos atrás de um padrão que assimile a branquitude.<br />
A polícia mata baseada em fenótipo. As pessoas se casam, no <strong>Brasil</strong>,<br />
baseadas no fenótipo. Entram e saem do mercado de trabalho a partir<br />
do fenótipo. Já parou para pensar ou sentir na pele que a sua cor, o<br />
formato de sua boca, nariz e fibra dos seus cabelos definem seu lugar<br />
na sociedade?<br />
Podemos falar por duas vias sobre essa coisa da importância<br />
do fenótipo no contexto brasileiro. Uma via é a que ganha forma com<br />
a ideologia da branquitude ditando padrões do que é bonito e do<br />
que é feio.<br />
A indústria da beleza investe, cada vez mais, em tecnologias<br />
para alisamento de cabelos – na forma de chapinha e escovas “inteligentes”<br />
–, assim como há um investimento em técnicas de maquiagem que<br />
clareiam a cor da pele e sombreamentos para afinamento dos traços – o<br />
mais marcante é a diminuição da espessura dos lábios e afinamento do<br />
formato do nariz. O filme demonstra isso na cena em que a corte do<br />
maracatu passa pó branco no rosto. Os corpos negros, desde a mais<br />
tenra idade sofrem por essa idealização negativa de suas feições e pela<br />
busca em velar esses traços. É o que a psicologia define como Ideal de<br />
Ego. Este ideal, no caso das relações raciais no <strong>Brasil</strong>, é pautado ainda<br />
na ideia base da colonialidade, a ideia de que a humanidade deve espelhar-se<br />
na cultura branca europeia, e é nisso que se escora a ideologia<br />
dominante da sociedade.<br />
Como afirma Jurandir Freire: “ser negro é ser violentado de<br />
forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
fenótipo<br />
Existem duas formas de definir a<br />
origem familiar de uma pessoa:<br />
a partir da aparência do corpo e<br />
da leitura do DNA dos indivíduos.<br />
A aparência do corpo da pessoa<br />
é o fenótipo, já as características<br />
do código do DNA são chamadas<br />
de genótipo. O <strong>Brasil</strong> é um país<br />
racista, que acredita existirem<br />
raças entre os seres humanos.<br />
Pessoas racistas se baseiam no<br />
fenótipo para discriminar pessoas<br />
de pele negra e cabelos crespos,<br />
por exemplo.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
078<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
ideal de ego<br />
É como as pessoas definem suas<br />
ações e jeito de ser a partir de um<br />
exemplo (que pode ser do pai, da<br />
mãe, de um galã da novela, dos<br />
amigos da escola, etc). Tem a ver<br />
com aquilo ou alguém em que a<br />
gente se espelha, sendo a relação<br />
de aprender habilidades que<br />
vão definir nossa forma de nos<br />
apresentar no mundo.<br />
injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e<br />
a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro”.<br />
Apesar de nosso texto trazer elementos para pensarmos a<br />
história numa dimensão milenar, agora é o momento de tratarmos de<br />
modo factual o que é vivido cotidianamente em nossa sociedade.<br />
No dia 20 de março de 2015, em audiência temática sobre<br />
assassinato de jovens negros no <strong>Brasil</strong>, a Organização dos Estados<br />
Americanos (OEA), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos,<br />
admite o cenário de extermínio da juventude negra existente no país.<br />
Segundo reportagem publicada no Portal Geledés, do total de assassinatos<br />
cometidos no <strong>Brasil</strong>, 30% das vítimas são jovens. Deste total,<br />
80% são negros – segundo os dados do Mapa da Violência de 2014. O<br />
Governo Federal, graças à intensa pressão dos movimentos sociais para<br />
avaliação justa e crítica dos dados, reconhece que tal realidade decorre<br />
do racismo que perdura no cotidiano brasileiro – isso sem contar com<br />
o silêncio ainda mantido sobre as violências vividas por jovens nos<br />
sistemas “socioeducativos”, que significam danos físicos por arma de<br />
fogo, maus tratos e tortura.<br />
A população negra vive um real estado de amedrontamento<br />
frente às estruturas sociais. As instituições garantem a manutenção de<br />
desigualdades através de um sistema que legitima relações de poder<br />
entre os indivíduos por meio da racialização de corpos. Isto promove a
079<br />
existência inescrupulosa de privilégios de uma classe pretensamente<br />
dominante, essa classe é branca e detentora dos mecanismos de poder<br />
que vão desde o estado republicano, passando pelos meios de produção<br />
e consumo, chegando às mídias de massa.<br />
<strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira<br />
O silenciamento do protagonismo da mulher negra<br />
O lugar da mulher exibido em <strong>Brasil</strong> S/A pode ser mais bem<br />
refletido em outra seção desta coletânea. Contudo, cabe-nos salientar<br />
a imagem daquela Rainha. Aquela que aparece já toda maquiada,<br />
com a tez negra ofuscada pela maquiagem em pó branco. Entre as<br />
mulheres do filme, talvez seja ela a que aparece num lugar de protagonismo<br />
diante da cena apresentada. Podemos perceber esta imagem<br />
refletida em nossa realidade. As mulheres negras têm soberania<br />
em termos de participação da construção histórica do <strong>Brasil</strong>, mas<br />
esta efetiva participação é maquiada pelos lugares estigmatizados<br />
reservados às mulheres negras no país. São as que cuidam da casa,<br />
das filhas e filhos do <strong>Brasil</strong>, que lavam roupa para o <strong>Brasil</strong> trabalhar.<br />
As que ensinaram sobre afeto e cuidado à nossa cultura. Toda essa<br />
participação foi explorada e distorcida durante o sistema escravocrata<br />
e se perpetua até os dias de hoje, colocando a mulher negra num<br />
lugar de serviço, de objeto e não de sujeito da história. A noção de<br />
“mãe-preta” ou “mulata do tipo exportação” são reverberações atuais<br />
dessa realidade que tem origem na noção e antigo cargo ocupado<br />
por estas mulheres, o de mucamas serventes e hiperssexualizadas<br />
no seio familiar da casa-grande.<br />
No território brasileiro, plantaram cultura negra: a participação<br />
dos povos transmigrados de África na construção<br />
da identidade nacional<br />
Para além da negação do corpo negro, a outra via em que podemos<br />
analisar a ideologia da branquitude é que extrapola o fenótipo e
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
080<br />
impede a existência de espaços de vivência da cultura negra de forma<br />
geral. Sabemos que nossa cultura passou e passa por um constante<br />
processo de sincretismo. O sincretismo ocorre quando há a fusão de<br />
uma cultura com a outra, graças a processos históricos de aproximação<br />
de sujeitos provenientes de diferentes origens culturais. No nosso caso,<br />
o sincretismo acontece como forma de resistência e como possibilidade<br />
de perpetuar a cosmovisão africana, mesmo com as investidas do sistema<br />
colonial de apagar os traços desta cultura. Os Orixás passaram a<br />
ser chamados por nomes de santos católicos para prosseguirem sendo<br />
cultuados. É o rito em que o maracatu dança minueto. Foram os “jogos<br />
de cintura” para a resistência da cultura de matriz africana. Apesar<br />
desses passos, cada vez cresce o movimento de não mais velar esta<br />
cultura com vestes da cultura branca, e sim assumir o lugar de origem<br />
como sendo de uma variedade de regiões do continente africano.
081<br />
Daí elabora-se uma teia complexa na produção de cultura.<br />
O <strong>Brasil</strong> discrimina pela cor da pele e pela cultura. Consideremos os<br />
casos, que cada vez mais vêm à tona, de intolerância religiosa contra<br />
terreiros de Candomblé e Umbanda e as violências também vividas<br />
pelas agremiações culturais comos afoxés e cocos em suas variadas<br />
formas de expressão.<br />
O movimento negro tem, nessa complexidade, forte base<br />
para os preceitos de sua luta. Outro fenômeno que surge daí é o da<br />
apropriação cultural, na qual podemos compreender as investidas do<br />
mercado étnico em vender uma cultura sem dar nenhum tipo de retorno<br />
e reconhecimento aos sujeitos dessa cultura. O uso de turbantes<br />
pela indústria da moda instigou vários debates em torno do tema, e a<br />
pergunta básica que pode ser feita, mais uma vez, é sobre a capacidade<br />
de esvaziar os sentidos dos objetos e valorizar os artigos étnicos<br />
quando usados por pessoas brancas em detrimento da manifestação<br />
da cultura negra. O conflito reflete, acima de tudo, que o uso de certas<br />
indumentárias, como vestes brancas e turbantes, tem um sentido, para a<br />
comunidade negra, muito mais amplo e profundo do que o estético. Há<br />
um sentido espiritual e de relação de respeito e devoção nas práticas<br />
religiosas de matriz africana.<br />
Quando os africanos foram traficados pelos portugueses para<br />
servirem de força de trabalho ao desenvolvimento da colônia lusitana,<br />
trouxeram consigo todo o trajeto histórico de suas culturas que foram<br />
deixadas no continente africano. Povos do Benim, de Angola, da bacia<br />
do Congo vieram; pessoas do comércio, da arte de dobrar ferro, de<br />
cultivar a terra, reis e rainhas, princesas e príncipes dos sistemas vigentes<br />
nas nações africanas. Lá, na África, o processo de colonização<br />
é anterior ao do <strong>Brasil</strong>. Essas sociedades e culturas, já com avançados<br />
sistemas simbólicos e de organização, foram expropriadas de suas terras<br />
e modos de levar a vida.<br />
Chegando, foram distribuídos por todo o território que hoje<br />
conhecemos por <strong>Brasil</strong>, perpetuaram a prática de suas culturas e formas<br />
de organização conforme a adaptação foi sendo estabelecida,<br />
<strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
082<br />
com a passagem do tempo e a evolução do conhecimento sobre as<br />
terras ameríndias.<br />
Assim como Portugal recria a estrutura de seu reinado em terras<br />
brasileiras, os povos de África o fazem da mesma forma. A questão é que<br />
o sistema colonial se sustenta exatamente na expropriação da história do<br />
outro. Dizendo melhor, o sistema colonial criou uma ideia de outro com<br />
base na informação de que os europeus são superiores e os africanos e<br />
indígenas são inferiores, desprovidos de alma e subjetividade.<br />
Você se lembra do momento em que Edilson bota fogo no canavial?<br />
Botar fogo no canavial foi uma prática entre os homens escravizados<br />
por outros homens e pelo trabalho servil degradante nas plantações.<br />
Era uma forma de boicote. Com um incêndio provocado num canavial,<br />
planejavam-se fugas numa estratégia de desvio de atenção, além de ser<br />
uma forma de responder com um mega prejuízo para a casa-grande às<br />
condições desumanas às quais eram submetidos e poderem se libertar,<br />
fugindo para os quilombos da região. É o que Paulo Freire coloca como<br />
legítima raiva, em Pedagogia da Autonomia. Era uma forma de resistência<br />
frente ao sistema escravocrata e ao processo colonizador.<br />
O canavial também é cenário para manifestações culturais trazidas<br />
de África. Como o que temos na complexidade da brincadeira do
083<br />
Cavalo Marinho, na zona da mata daqui de Pernambuco. A brincadeira<br />
revela traços da vida que se levava e do trabalho de corte e plantio de<br />
cana. É possível ver, na brincadeira, reproduções de aspectos históricos<br />
vividos, principalmente, pelo coronelismo.<br />
As cenas do canavial, ao serem cenário para a evolução de<br />
nossa imaginação, podem nos mostrar através do invisível, a partir<br />
do momento em que o consideramos como um espaço de vivência<br />
e, por conseguinte, de produção de sentidos. Nos espaços queimados<br />
e destruídos para o cultivo da terra, aconteceram também<br />
as primeiras expressões do que conhecemos hoje por Capoeira.<br />
Umas das possíveis origens da capoeira é o N’golo, um importante<br />
ritual de passagem da fase adulta e a então formação da família de<br />
jovens rapazes.<br />
Outra cena marcante que pode nos fazer pensar em tantas<br />
coisas é quando Edilson, em sua missão, encontra o petróleo em uma<br />
região. É como um sonho, uma alucinação vivida há tantos anos no<br />
<strong>Brasil</strong>, e ao mesmo tempo é algo que não se vê. Em algum momento<br />
você já viu televisionada a descoberta de algum poço de petróleo? As<br />
mãos de Edilson são as responsáveis pelo achado, pela habilidade de<br />
descobrir terras férteis e de fazê-las produtivas e rentáveis. Mas quem<br />
recebe o reconhecimento sobre a descoberta? Talvez essa falta de<br />
reconhecimento venha a ser o que faz com que aquela menina branca,<br />
do alto de seu New Beetle, sendo transportada por um serviço de táxi<br />
para carros (“cegonha móvel”), possa fumar seu baseado em paz.<br />
<strong>Brasil</strong> foragido: rotas sobre<br />
as relações de trabalho e a produção<br />
da cultura afro-brasileira
084<br />
A partir das imagens que aparecem no correr do texto, crie, individualmente<br />
ou em grupo, uma narrativa para uma das personagens,<br />
dando-lhe personalidade e trazendo relações com as outras personagens<br />
e imagens que aparecem em <strong>Brasil</strong> S/A. Pense se existem<br />
algumas dessas situações apresentadas no filme que você gostaria<br />
de mudar e apresente-as no texto com a mudança que você gostaria<br />
que acontecesse na situação daquela personagem ou cena.
085<br />
Filmes<br />
ÔRÍ (de Raquel Gerber e Beatriz Nascimento)<br />
BRANCO SAI, PRETO FICA (de Adirley Queirós)<br />
COLORISMO (https://www.youtube.com/watch?v=fkOh4ZvAnlU)<br />
JOGO DE CORPO: CAPOEIRA E ANCESTRALIDADE (co-dirigido<br />
por Richard Pakleppa, Matthias Rörhig Assunção e pelo Mestre<br />
Cobramansa)<br />
Textos<br />
Sobre o N’golo:<br />
http://www.geledes.org.br/adolescencia-rituais-africanos-que-marcavam-os-jovens-guerreiros/<br />
Sobre cultura de branqueamento:<br />
http://www.nodeoito.com/artistas-nao-brancas-brancas/<br />
Sobre genocídio da juventude negra:<br />
http://www.geledes.org.br/relatora-de-cpi-reconhece-genocidiocontra-jovens-negros/<br />
Sobre apropriação cultural:<br />
http://azmina.com.br/2016/04/apropriacao-cultural-e-um-problemado-sistema-nao-de-individuos/
Os conflitos<br />
ambientais do<br />
desenvolvimento<br />
sob a ótica<br />
de <strong>Brasil</strong> S/A
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
090<br />
FELIPE MELO<br />
Biólogo e chefe do Laboratório de Ecologia Aplicada na<br />
UFPE. Suas pesquisas têm como objetivo entender como<br />
as biotas respondem aos distintos impactos causados por<br />
atividades humanas.
091 Os conflitos ambientais do<br />
desenvolvimento sob a ótica<br />
de <strong>Brasil</strong> S/A<br />
Na atualidade, há uma clara noção de que nosso modo de<br />
consumo e, por consequência, de viver, é antagônico à conservação da<br />
natureza. Há poucas certezas na sociedade, mas entre elas está a de<br />
que a natureza está em perigo. Todos nós temos alguma ideia de que<br />
a Terra sofre aquecimento provocado pelas atividades humanas (principalmente<br />
a queima de combustíveis fósseis), de que muitas espécies<br />
estão ameaçadas de extinção e as florestas estão sendo desmatadas.<br />
Tomamos ciência de más notícias quase diárias sobre a natureza, e isso<br />
nos incomoda. Ao mesmo tempo, cultivamos, de alguma maneira, uma<br />
relação direta de amor com as coisas do mundo natural. Gostamos das<br />
paisagens naturais, das cachoeiras, das trilhas na mata, das praias, e<br />
ficamos sempre felizes quando avistamos algum animal silvestre. Essa<br />
contradição, no entanto, é onipresente na história humana. Desde tempos<br />
pré-históricos, a humanidade venerou a natureza ao mesmo tempo<br />
em que se nutriu dela. <strong>Brasil</strong> S/A torna evidente esse lado destrutivo<br />
da nossa relação com a natureza e nos convida à reflexão sobre nossos<br />
caminhos como sociedade e sobre nossa noção de desenvolvimento e<br />
progresso socioeconômico.<br />
máquinas, animais e progresso<br />
As máquinas em <strong>Brasil</strong> S/A são, talvez, os personagens mais<br />
intrigantes. São retratadas com personalidade e até feições. Elas dançam<br />
sob o comando de gestos humanos, obedecem e impressionam<br />
pela sua obediência. As primeiras criaturas que utilizamos para fazer o<br />
nosso trabalho foram os animais domesticados, há milênios. Animais de<br />
corte e tração foram os primeiros a serem explorados. Bois e cavalos<br />
provavelmente multiplicaram a força humana para modificar a terra.<br />
Cavar o chão para plantar com as próprias mãos, mesmo munidas de<br />
instrumentos, não é a mesma coisa que utilizar a força de tração animal.<br />
Com a ajuda dos animais de tração e corte, foi possível alimentar uma<br />
grande quantidade de pessoas, erguer grandes cidades e percorrer<br />
grandes distâncias, carregando tudo o que se comerciava em tempos
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
092<br />
antigos, incluindo o produto da agricultura. Com a ajuda dos animais<br />
transformados em máquinas de modificar o mundo, passamos a ter uma<br />
força de transformação da natureza impossível de alcançar com nossas<br />
próprias mãos.<br />
Figura 1<br />
—<br />
Representação de<br />
animais domesticados<br />
no Egito Antigo. Fonte:<br />
https://en.wikipedia.org/<br />
wiki/Domestication<br />
A domesticação da natureza nunca parou. A humanidade<br />
chegou a utilizar cerca de 10 mil espécies de plantas e muitas outras<br />
de animais e insetos para se alimentar. Atualmente, porém, mais de<br />
50% de nossa demanda calórica (aquela energia ingerida através das<br />
refeições) vem de apenas quatro espécies de vegetais: arroz, milho,<br />
batata e soja. Após a Revolução Industrial, chegaram as máquinas,<br />
que substituíram os animais na aplicação de força na modificação da<br />
terra. As máquinas não precisam ser alimentadas como os animais<br />
domésticos, elas comem combustível fóssil. Um trator faz o trabalho<br />
de dezenas/centenas de animais de tração. As máquinas são muito<br />
mais obedientes que bois ou jumentos.<br />
As máquinas feitas pelos homens potencializam nossa capacidade<br />
de domesticar a natureza como um todo. Em <strong>Brasil</strong> S/A, parece<br />
iminente que o trabalhador da cana-de-açúcar será substituído por<br />
uma máquina que, sozinha, pode realizar o trabalho de centenas de
093<br />
homens, sem a necessidade de descanso e almoço embaixo de uma<br />
sombra (como retrata o filme).<br />
Rasgar o chão, erguer torres, cortar os mares de todo o mundo.<br />
Tudo isso caracteriza os tempos modernos humanos. Nossos carros, barcos,<br />
tratores, aviões e tudo o mais que hoje reconhecemos como parte<br />
de nossa paisagem, tão naturalizados, parecem ser a expressão máxima<br />
de um aprendizado acumulado por milênios. Submeter a natureza à vontade<br />
humana é a máxima expressão de poder humano. Aparentemente,<br />
alcançamos um nível de domínio da natureza inimaginável, e isso nos<br />
traz responsabilidades, pois sabemos não só explorar a natureza, temos<br />
também o melhor dos conhecimentos para prever os danos causados<br />
por nossas atividades, podendo minimizá-los e/ou revertê-los.<br />
Os conflitos ambientais do<br />
desenvolvimento sob a ótica<br />
de <strong>Brasil</strong> S/A<br />
O Antropoceno<br />
O(a) leitor(a), até agora, já deve ter notado que não precisamos<br />
contrapor a ancestralidade humana (supostamente mais ligada à natureza)<br />
com nosso momento atual: urbano e predador do meio ambiente.<br />
Esse “lugar comum” não acrescenta uma maior compreensão do papel<br />
do ser humano como força modificadora da natureza. Ao contrário,<br />
permite criar uma falsa ideia de que antes vivíamos de maneira mais<br />
“harmônica” com a natureza e que hoje perdemos essa ligação. Esse<br />
texto pretende conduzir o(a) leitor(a) por outra via de reflexão que o<br />
filme <strong>Brasil</strong> S/A permite que seja explorada, a seguir.<br />
Hoje o ser humano pode ser considerado uma força geológica,<br />
tão forte na transformação da Terra quanto o meteorito que extinguiu<br />
os dinossauros, por exemplo. Mas há, na história humana, diversos<br />
exemplos de colapsos de sociedades resultantes da exploração desenfreada<br />
de seus recursos naturais. Os habitantes da Ilha de Páscoa<br />
(Chile) desapareceram sem deixar vestígios, provavelmente por terem<br />
levado ao colapso o ecossistema de uma ilha inteira. Os antigos Maias<br />
já haviam abandonado suas grandes cidades uma por uma, numa sequência<br />
temporal que durou centenas de anos e, mesmo assim, não<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
antropoceno<br />
Período que marca a presença<br />
humana na Terra de forma<br />
definitiva. Há uma discussão<br />
acadêmica fértil, mas ainda não<br />
terminada, sobre sua data de<br />
início, mas há certo consenso<br />
de que o impacto humano no<br />
planeta já pode ser registrado<br />
geologicamente seja nos vestígios<br />
de nossa civilização espalhados<br />
por todos os lugares, ou pelas<br />
mudanças que promovemos<br />
na composição da atmosfera<br />
e na extinção de espécies que<br />
estamos causando.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
094<br />
puderam aprender que algo estava mal com seu sistema de exploração<br />
de recursos naturais. Essa é a grande diferença entre nós na atualidade<br />
e nossos primos(as) que constituíram essas civilizações antigas: eles(as)<br />
não puderam aprender tão bem com o passado. Nós, do contrário, não<br />
podemos usar da ignorância como justificativa para continuar agindo<br />
como nossos(as) primos(as) antigos(as), caminhando para o abismo a<br />
passos largos. Atualmente temos a capacidade de deixar, nas camadas<br />
geológicas da Terra, a nossa marca. O “Antropoceno” substitui o Holoceno<br />
na escala temporal geológica e inaugura a era dos seres humanos.<br />
Esse é o momento em que começamos a deixar marcas indeléveis na<br />
geologia e na vida da Terra. Arqueólogos(as) alienígenas do futuro vão<br />
olhar para os vestígios que deixamos e vão encontrar marcas de nossa<br />
presença por todos os lados, em todos os continentes. Vão notar que<br />
extinguimos espécies, que mudamos os cursos dos rios, que acabamos<br />
com florestas inteiras e, principalmente, mudamos a composição química<br />
da Terra. O “Antropoceno” ou “era dos seres humanos” está em<br />
pleno debate no meio científico e pode ser reconhecido não somente<br />
pelas feridas que causamos na Terra, mas pela responsabilidade que<br />
passamos a ter com nossa casa.<br />
Figura 2<br />
—<br />
Ilha de Páscoa (A),<br />
‘Moais’ (B) e Tikal (C)
Pobreza sustentável?<br />
095<br />
Os conflitos ambientais do<br />
desenvolvimento sob a ótica<br />
de <strong>Brasil</strong> S/A<br />
Há uma sequência emblemática em <strong>Brasil</strong> S/A sobre a desigualdade<br />
no acesso aos recursos naturais na nossa sociedade. Um homem<br />
navega por um rio em uma jangada, empurrada por um pau, enquanto assiste<br />
com expressão de tristeza e dor a motosserras cortando os mangues<br />
e guindastes se erguendo ao seu redor. A cena termina com o homem se<br />
juntando a muitos outros para catar caranguejo na lama daquele mesmo<br />
mangue, em vias de desaparecer. A sequência suscita uma reflexão importantíssima<br />
na atualidade: como se dá o acesso aos recursos naturais<br />
em nossa sociedade? Ainda, qual o papel desse acesso extremamente<br />
desigual na perpetuação da exclusão social e da pobreza?<br />
Responder a essas perguntas exige do(a) leitor(a) uma análise<br />
muito mais ampla do que se imagina, pois não há respostas fáceis para<br />
elas. Os(as) governantes costumam usar o termo “interesse social” para<br />
justificar a remoção de dezenas/centenas de famílias de lugares onde<br />
grandes obras serão construídas. Foi assim em todas as hidrelétricas<br />
construídas no <strong>Brasil</strong>, em muitos portos, como o de Suape em Pernambuco.<br />
A sociedade, aparentemente, aceita e considera justa a remoção<br />
de pessoas que viviam ancestralmente num lugar para dar lugar a grandes<br />
empreendimentos que cumprem com o mote de “geradores de<br />
emprego e renda”. Caso esses empreendimentos destruam o ambiente<br />
(como <strong>Brasil</strong> S/A mostra), ficamos chocados(as), mas também aceitamos,<br />
contanto que os benefícios sejam distribuídos. No entanto, os<br />
benefícios desses grandes empreendimentos quase nunca compensam<br />
os custos sociais e ambientais gerados e, via de regra, esses benefícios<br />
se concentram nas mãos de poucos(as).<br />
Por outro lado, há também a romantização de certos modos<br />
de vida considerados “tradicionais” e “sustentáveis” que, por vezes,<br />
não escapam a uma análise mais profunda e se revelam, na verdade,<br />
modos de vida de pessoas completamente excluídas da sociedade, às<br />
quais somente resta a exploração dos recursos naturais como alternativa<br />
de vida. A coleta de caranguejo é, tradicionalmente, um trabalho<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
A Ilha de Páscoa foi habitada<br />
durante séculos por povos<br />
polinésios, que ergueram<br />
majestosos ‘moais’, figuras em<br />
pedra que consumiam muita<br />
madeira na sua confecção.<br />
Sabe-se hoje que a ilha era uma<br />
grande floresta e, quando se<br />
extinguiram os povos dessa ilha,<br />
praticamente não havia árvores<br />
lá. Outro exemplo de colapso<br />
civilizatório foram as grandes<br />
cidades maias, hoje engolidas<br />
pelas florestas que retornaram<br />
ao lugar onde estavam antes<br />
de serem desmatadas pelos<br />
milhares de habitantes de Tikal<br />
na Guatemala.<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
sustentável<br />
Qualidade ou atributo de qualquer<br />
atividade humana que pode<br />
ser exercida sem prejudicar as<br />
gerações vindouras e, portanto, ser<br />
mantida a longo prazo. Deriva-se<br />
daí a expressão ‘desenvolvimento<br />
sustentável’ que significa<br />
um modo de desenvolvimento<br />
capaz de se manter a longo prazo<br />
e não comprometer a utilização<br />
de recursos naturais para as<br />
futuras gerações.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
096<br />
de subsistência mal remunerado e duríssimo, executado por pessoas<br />
geralmente com pouco ou nenhum grau de instrução formal (escola)<br />
e completamente desatendidas pelo poder público. Achar que essas<br />
pessoas praticam uma atividade sustentável é uma forma de ilusão<br />
romântica do que significa o termo sustentável. Atualmente está em<br />
curso um processo de reconhecimento de práticas tradicionais e sustentáveis<br />
de populações que vivem da exploração de recursos naturais,<br />
não sem o devido estudo e melhoria das técnicas utilizadas por essas<br />
populações. Práticas tradicionais não são sinônimo de ambientalmente<br />
amigáveis e nem a economia industrial necessita ser inimiga da natureza.<br />
A solução para muitos dos problemas socioambientais encontra-se na<br />
busca incessante de soluções que ainda não estão prontas.<br />
O grande desafio de um modelo de desenvolvimento justo<br />
ambiental e socialmente talvez seja escapar das alternativas de desenvolvimento<br />
aparentemente sustentáveis, mas que geram “armadilhas<br />
de pobreza”. Ou seja, métodos de desenvolvimento social e econômico<br />
não podem aprisionar pessoas já excluídas em atividades supostamente<br />
sustentáveis que tendem a mantê-las socialmente excluídas e economicamente<br />
pobres. Catadores(as) de papel nas cidades, catadores(as)<br />
de caranguejo e de marisco nos litorais do Nordeste são exemplos des-
097<br />
sas armadilhas de pobreza travestidas de modos de vida sustentáveis<br />
sempre que continuam servindo apenas à subsistência excludente e à<br />
manutenção do sistema econômico tal como é hoje.<br />
Então, antes de respostas, <strong>Brasil</strong> S/A deixa uma porção de<br />
perguntas no ar e que podem ser trabalhadas em grupos. Com base<br />
neste texto, no filme e em outras fontes, sugiro tentar responder às<br />
seguintes perguntas:<br />
Os conflitos ambientais do<br />
desenvolvimento sob a ótica<br />
de <strong>Brasil</strong> S/A<br />
1) Por que nosso poder de modificação da natureza alcançou níveis<br />
tão alarmantes e qual a nossa responsabilidade como sociedade no<br />
manejo desse poder?<br />
2) Como podemos escapar das dicotomias sedutoras que opõem o<br />
desenvolvimento e a conservação da natureza, preservando os avanços<br />
tecnológicos alcançados pela humanidade e reduzindo drasticamente<br />
as desigualdades?
098<br />
1) Visite alguma localidade conhecida por suas belezas naturais e<br />
observe quem são os(as) moradores(as) da região, como vivem e<br />
como se relacionam com os recursos naturais do local. Caso não seja<br />
possível visitar um lugar, reflitam sobre um lugar que já conheçam.<br />
2) Calcule sua “pegada ecológica”, que consiste em medir o impacto<br />
de seu estilo de vida e hábitos de consumo sobre o planeta. Há<br />
vários ‘sites’ que calculam em minutos sua pegada ecológica, basta<br />
fazer um busca por “ecological footprint” ou mesmo “pegada ecológica”<br />
e utilizar alguma das opções que aparecerão. Em seguida,<br />
veja qual dos seus hábitos pesa mais no seu impacto e reflita qual a<br />
relação que esse hábito de consumo tem com a noção de progresso<br />
discutida em <strong>Brasil</strong> S/A
099<br />
DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso<br />
ou sucesso. Rio de Janeiro, Editora Record, 2005.<br />
FERNANDEZ, Fernando. O poema imperfeito: crônicas de biologia,<br />
conservação da natureza e seus heróis. Paraná, Editora Universidade<br />
Federal do Paraná (UFPR), 2011.
Sinfonia visual<br />
contra um modelo<br />
de progresso
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
104<br />
RODRIGO ALMEIDA<br />
Doutorando em Comunicação na UFPE; curador do Janela<br />
Internacional de Cinema do Recife, membro do coletivo de<br />
produção audiovisual Surto & Deslumbramento.
105 Sinfonia visual contra<br />
um modelo de progresso<br />
Gestos de um cortador de cana erguendo seu facão. Rosto<br />
imponente, movimentos e sons que lembram um guerreiro se preparando<br />
para a batalha. Um estranho e simétrico balé de escavadeiras.<br />
Máquinas autônomas e excitadas diante de um corpo feminino. Calmas<br />
remadas de um navegante no rio. Vida tranquila ameaçada pelo futuro<br />
distópico que se anuncia. Essas são apenas algumas das sequências<br />
alegóricas que nos forçam a pensar <strong>Brasil</strong> S/A como uma sinfonia visual,<br />
um filme em que a estrutura precisa ser apreendida pela chave do movimento:<br />
movimento interno dentro do plano, movimento ritmado pela<br />
montagem, movimento na ordem e duração de cada uma das imagens.<br />
Podemos nos perguntar: por que esses planos colocados assim e não<br />
de outra maneira? Se colocados de outra maneira, com outra música,<br />
provocariam outros sentidos? Seja qual for a resposta, notamos rapidamente<br />
que o filme é marcado por blocos temáticos e arcos dramáticos<br />
independentes, mas cuja costura narrativa une cada um dos fragmentos<br />
na construção de um painel multifacetado de nossa nação, de nosso<br />
desejo de nação e de uma imagem de nação.<br />
A coreografia dos personagens humanos e não humanos é<br />
assumida como ferramenta central para representar esse movimento<br />
de um país inclinado para o futuro, direcionando o que, em cinema<br />
chamamos, de mise en scène - isto é, todas as escolhas do(a) diretor(a)<br />
em relação à criação da imagem, em particular pensando na encenação<br />
dramática, nas informações elegidas para ocuparem cada quadro,<br />
passando pela iluminação, pela posição da câmera, por tudo. São as<br />
inúmeras decisões que tornam o filme o que ele efetivamente é. Nesse<br />
sentido, o tom de <strong>Brasil</strong> S/A estabelece, de antemão, um flerte com<br />
algumas comédias importantes, tais como Tempos Modernos (EUA,<br />
1936), de Charles Chaplin e Playtime (França, 1967), de Jacques Tati.<br />
Quando o cortador repete os gestos do corte, mas sem a cana, além de<br />
se despedir de um modo de produção e se preparar para a tecnologia<br />
vindoura, revela também as lembranças do trabalho armazenado dentro<br />
do seu corpo, tal qual na cena em que Carlitos desenvolve um tique<br />
nervoso, após horas de uma longa jornada de trabalhos repetitivos.<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
futuro distópico<br />
Se chamamos de “utopia” uma<br />
espécie de futuro ideal, sonhado,<br />
um futuro feliz, podemos dizer<br />
que a “distopia” é o seu exato<br />
contrário, isto é, o futuro sombrio,<br />
o futuro que deu errado, uma<br />
sociedade controlada por meios<br />
extremos de opressão. A ideia<br />
de futuro distópico se difundiu a<br />
partir dos livros Admirável Mundo<br />
Novo, de Aldous Huxley e 1984,<br />
de George Orwell.<br />
arcos dramáticos<br />
Toda uma trajetória narrativa,<br />
partindo de um detonante até a<br />
resolução ou desenlace da história.<br />
Os arcos são marcados por um<br />
conflito interno que acompanha os<br />
personagens através de tensões<br />
cada vez mais intensas. Na maioria<br />
dos casos, depois de uma série de<br />
obstáculos, os personagens chegam<br />
transformados no final da jornada.
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
106<br />
Já na sequência final do filme francês, dezenas de carros dão voltas e<br />
voltas numa rotatória sem fim, com uma música que evoca os sons de<br />
um carrossel, satirizando – numa operação do som sobre a imagem,<br />
operação repetida algumas vezes em <strong>Brasil</strong> S/A – a falência do sonho<br />
carrocrata numa cidade colapsada .<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
land art<br />
Surgida na década de 1960, a Land<br />
Art se refere a uma prática artística<br />
que, impulsionada pelo discurso<br />
ecológico, propõe transformar o<br />
próprio ambiente numa obra de<br />
arte, muitas vezes sobrepondo<br />
materiais externos aos já existentes<br />
na paisagem. Alguns exemplos<br />
são: Spiral Jetty (1970), de Robert<br />
Smithson e Invisible Tree (2001), de<br />
Daniel Siering e Mario Schuster.<br />
Nas três produções, o corpo é lançado num regime em que<br />
justamente o elemento humano se mostra submetido aos dogmas do<br />
desenvolvimento e do progresso. Um corpo em desacordo, que resiste,<br />
atrapalha-se, não entende as regras do jogo até, pouco a pouco, ir se<br />
automatizando e virando também máquina. A partir disso, movimentos<br />
humanos ou não humanos, espontâneos ou programados, parecem<br />
indiscerníveis. Há uma espécie de mortificação do indivíduo numa marcha<br />
para o futuro, na qual homens, mulheres e crianças padronizados<br />
seguem sem saber necessariamente o lugar em que irão chegar. Ainda<br />
assim, seguem encantados.<br />
Se o filme propõe intervenções com uma máquina ultramoderna<br />
no campo de plantio da cana-de-açúcar, num claro diálogo com<br />
a land art de transformar o ambiente na própria obra de arte, faz isso
107<br />
Sinfonia visual contra<br />
um modelo de progresso<br />
estabelecendo uma relação irônica com a violenta, sistemática e sintomática<br />
intervenção de um projeto estatal-empresarial que tornou<br />
o horizonte de boa parte de nossas cidades numa paisagem sem personalidade,<br />
dominada por um mar de prédios quase iguais. Da mesma<br />
forma que olhamos fotos antigas e não reconhecemos os lugares hoje<br />
em dia, <strong>Brasil</strong> S/A coreografa um incontornável futuro já presente, um<br />
futuro que não só já chegou, como se assentou e, definitivamente, não<br />
tem a face gloriosa que esperávamos. Mas que, sem dúvida, faz parte<br />
de um imaginário sonhado muito tempo antes.<br />
O filme-sinfonia e a modernidade<br />
O nascimento do cinema, no final do século XIX, integra-se a<br />
inúmeros fenômenos que ajudaram a definir um conceito de Modernidade.<br />
Não somente pelo fato de o cinema ter se instituído como uma<br />
arte essencialmente tecnológica, na qual a máquina – isto é, a câmera<br />
ou o projetor – ocupa um espaço central nas possibilidades de criação,<br />
reprodução e difusão artísticas. Também por sua própria trajetória histórica<br />
se confundir, em muito, com uma trajetória tecnológica. Os filmes<br />
surgiram mudos, em preto e branco, exibidos de maneira precária em<br />
feiras de variedades. Logo passaram a ocupar grandes salões, caíram<br />
nas graças da classe burguesa e das vanguardas, tornaram-se sonoros,<br />
ganharam cores, multiplicaram seus formatos até chegarem a nós por<br />
meio de diferentes dispositivos.<br />
Contudo, para além das considerações de ordem técnica, vale<br />
destacar os propósitos de ordem estética: o cinema, nos seus primevos<br />
anos, foi um dos principais responsáveis pelo registro, exaltação e<br />
crítica de uma “imagem de modernidade” através da captura de mudanças<br />
drásticas pelas quais passavam os grandes centros urbanos e a<br />
própria sensibilidade humana. Alguns cineastas mais inventivos, como<br />
o russo Dziga Vertov em seu filme O homem com uma câmera (URSS,<br />
1929), chegaram a refletir não apenas sobre o mundo em transformação,<br />
mas sobre a criação e o arranjo das imagens desse mundo. Por vezes,
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
108<br />
FIQUE POR DENTRO!<br />
—<br />
cine-olho<br />
É uma expressão formulada<br />
pelo cineasta russo Dziga Vertov,<br />
formada pelas palavras russas kino<br />
(cine) e oko (olho) para se referir ao<br />
olho mecânico, o olho da câmera,<br />
mas também do microscópio e<br />
do telescópio. Isto é, o olho que<br />
se mostra capaz de ampliar o<br />
mundo que vemos, captando “tudo<br />
aquilo que o nosso olho não vê” e<br />
“tornando visível o invisível”.<br />
defendendo que o olho humano já não seria capaz de assimilar esse<br />
processo e, por isso, necessitava do auxílio de um olho-máquina, um<br />
cine-olho e da fundamental (e poderosa) manipulação da montagem.<br />
Portanto, a experiência subjetiva de lidar com novas formas de<br />
tecnologia, representação, consumismo, mobilidade e entretenimento<br />
estimulou cineastas a observarem com perspicácia e sacarem suas câmeras<br />
diante de um “novo” cotidiano da sociedade. Registraram, assim,<br />
um intenso sistema de relações indivíduo-máquina (seja de dependência,<br />
substituição ou desejo); a abertura de grandes avenidas, a construção<br />
de arranha-céus e a demolição de antigas formas da cidade; a ampliação<br />
das redes ferroviárias e elétricas; os veículos de tração animal sendo<br />
substituídos por automóveis cada vez mais rápidos; um crescente interesse<br />
pelos meios de comunicação; a multiplicação das atividades de<br />
entretenimento; a variedade de vitrines, peças publicitárias, objetos de<br />
decoração e o nascimento dos grandes centros de compras.<br />
Nesse contexto, os futuristas foram os primeiros a aproximar o<br />
cinema da ideia de sinfonia, partindo de princípios como “velocidade”<br />
e “multiplicidade” para defender e celebrar a sétima arte como expressão<br />
perfeita dos “novos tempos”. A imagem em movimento marcada<br />
por elementos em relações recíprocas viria, segundo o manifesto de<br />
1916, para suplantar a velha representação estática dos objetos. Tais<br />
preceitos, no entanto, só ganhariam corpo e materialidade anos depois<br />
nos chamados “filmes-sinfonia”, dentre os quais destacamos os curtas<br />
Manhatta (1921), de Paul Strand e A propósito de Nice (França, 1930), de<br />
Jean Vigo; o média Somente as Horas (França, 1926), de Alberto Cavalcanti<br />
e, em especial, os longas Berlim: Sinfonia da Metrópole (Alemanha,<br />
1927), de Walther Ruttmann, São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929),<br />
de Adalberto Kemeny e o já mencionado O homem com uma câmera<br />
(1929), de Dziga Vertov.<br />
Cada uma dessas produções assume uma diferente cidade do<br />
mundo como um modelo de progresso e, mais do que isso, percebe os<br />
modelos de progresso também como projetos de desejo. Por mais que<br />
tenham perspectivas distintas, os filmes partilham de características
109<br />
Sinfonia visual contra<br />
um modelo de progresso<br />
estéticas comuns, também notáveis em <strong>Brasil</strong> S/A enquanto uma sinfonia<br />
que, claramente, ironiza e problematiza o contemporâneo projeto<br />
desenvolvimentista de nação. São elas: a estrutura em mosaico, bastante<br />
fragmentada, muitas vezes blocando a produção em temas; uma<br />
obsessão pela simetria e pela vida dos trabalhadores; a ausência de<br />
diálogos; as imagens monumentais, grandiosas, eloquentes, por vezes,<br />
repetitivas e com um acompanhamento orquestral também épico; a<br />
montagem alternando cortes velozes com tempos lentos observacionais;<br />
as filmagens aéreas; e um particular interesse no fluxo de corpos<br />
e máquinas, pendulando cada qual entre o orgânico e o autômato.<br />
Sinfonia tradicional, sinfonia farsesca<br />
Se, originalmente, os filmes-sinfonia nasceram a partir de<br />
um ímpeto futurista, ou seja, dentro de um grupo deslumbrado com<br />
a modernidade a ponto de assimilarem todo um modelo de progresso<br />
sem restrições, também existiram produções que desde então se<br />
aproveitaram do mesmo formato para sustentarem visões ambivalentes,<br />
abertamente críticas ou irônicas diante de tais transformações.<br />
Decerto, nos filmes de Paul Strand, Walther Ruttmann e Adalberto<br />
Kemeny, respectivamente sobre Nova Iorque, Berlim e São Paulo, há<br />
uma completa adesão nas imagens, uma ode ao desenvolvimento, enquanto<br />
que nas produções de Jean Vigo, Alberto Cavalcanti e Dziga<br />
Vertov, respectivamente sobre Nice, Paris e Odessa (e outras cidades<br />
soviéticas), esse desenvolvimento é visto com ressalvas, projetando<br />
consequências sociais muitas vezes submersas ou esquecidas diante da<br />
celebração tecnológica e econômica. <strong>Brasil</strong> S/A, naturalmente, alinha-se<br />
ao lado do segundo grupo.<br />
Fazendo uma ponte com o presente, podemos facilmente<br />
identificar as propagandas políticas como as principais herdeiras dos<br />
filmes-sinfonia tradicionais e exaltantes do progresso. Isso porque são<br />
narrativas acostumadas a colocar uma canção - em muitos casos, o hino<br />
nacional - sobrepondo imagens de um país impávido colosso, numa
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
110<br />
geografia de vistas aéreas dos cartões-postais e das grandes obras<br />
alçadas pelo governo como monumentos exemplares de uma gestão,<br />
arrematando com a bandeira do país tremulando na tela. Podemos<br />
nos perguntar: como as fontes oficiais representam nosso país? Como<br />
nós queremos representá-lo? Qual nosso desejo de representação<br />
nacional? Em que medida as imagens veiculadas nessas propagandas<br />
se assemelham com a experiência diária de nossas vidas? <strong>Brasil</strong> S/A<br />
carrega consigo algo que os futuristas desprezavam: o peso do passado,<br />
o peso de pensar sobre essas perguntas, trazendo uma história<br />
marcada pela escravidão, pela monocultura, pela religiosidade e por<br />
um desejo enfermo de segregação social.<br />
Sem a necessidade de encontrar uma resposta, o filme parte<br />
dos questionamentos para compartilhar de um mesmo sistema de símbolos<br />
dessa macronarrativa, só que deslocando radicalmente o significado<br />
de imagens tão similares. A posição prática e visível de uma falência<br />
do projeto desenvolvimentista confronta a projeção mística divulgada<br />
oficialmente. Podemos dizer que <strong>Brasil</strong> S/A é uma espécie de sinfonia<br />
farsesca, que se apropria, em certa medida, da lógica da propaganda<br />
nacional através de personagens e algumas situações caricatas, focando-se<br />
mais na ação, na alegoria do que no diálogo. O discurso irônico<br />
e crítico bate de frente com essa iniciativa que pretende transformar
111<br />
Sinfonia visual contra<br />
um modelo de progresso<br />
o país numa empresa inserida no mercado, no qual há uma dinâmica<br />
supra-humana de funcionamento do sistema. Quase como se uma grande<br />
máquina conduzisse todo destino sob a regência de um maestro<br />
invisível, como se os caminhos e desejos estivessem assinalados para<br />
além das escolhas dos personagens.<br />
Se em Manhatta vemos cartelas exaltando “uma cidade orgulhosa<br />
e apaixonada, constituída de altas fachadas de mármore e ferro”,<br />
se termina desejando a todos os homens e mulheres das futuras<br />
gerações “o esplendor de um centro urbano que se direciona ao céu”,<br />
<strong>Brasil</strong> S/A revela o fracasso e a impossibilidade de tais desejos num<br />
processo de modernização marcado pela exclusão, desigualdade e<br />
irregularidade. Isto é, um processo de modernização aplicado no <strong>Brasil</strong><br />
desconsiderando as características próprias do país e de suas diferentes<br />
regiões. Os automóveis festejados no início do século passado<br />
são agora o retrato da imobilidade no caos urbano. Os condomínios,<br />
com torres enormes e muros isolantes da rua, criaram um espaço<br />
público cada vez mais perigoso e segregador. Se tomarmos os dois<br />
filmes em paralelo, ambos possuem imagens semelhantes de prédios,<br />
máquinas e trabalhadores, mas carregam conotações completamente<br />
diferentes. Para não dizer antagônicas.<br />
Já no filme Somente as Horas, Alberto Cavalcanti abusa de<br />
recursos típicos da montagem soviética, associando diretamente, assim<br />
como nos memes e gifs atuais, duas imagens díspares no intuito<br />
de criar um discurso, uma versão menos triunfante da modernidade:<br />
um homem rico come uma bela carne num restaurante chique, mas o<br />
close no prato com o apetitoso filé dá lugar a um boi sendo morto e<br />
esquartejado num matadouro; pouco depois, representantes da classe<br />
média se divertem num banho público, ignorando por completo mendigos<br />
dormindo na beira do rio Sena. Essas associações de mundos<br />
aparentemente distantes colocados em conflito também estão em <strong>Brasil</strong><br />
S/A, de maneira mais sutil, seja o cortador de cana que encontra o<br />
trator e logo camufla seu desejo na jornada de um astronauta; seja a<br />
corte negra do maracatu que emula as danças dos nobres europeus,
<strong>Brasil</strong> S/A<br />
112<br />
seja o navegante no rio atravessado pelo desmatamento do mangue,<br />
depois pela construção caótica de uma ponte até bater de frente com<br />
um navio gigante em suas águas.<br />
Esses encontros potencializam o significado de um projeto de<br />
país, iluminam as contradições de um modelo de progresso e desenvolvimento,<br />
no qual o ser humano termina sendo o fator mais achatado.<br />
No final, resta a sensação de que, nesse futuro já presente, nessa dança<br />
caótica, os mais ricos poderão viver o sonho prometido; a classe-média<br />
continuará driblando os desconfortos do cotidiano (chamando o caminhão-cegonha,<br />
por exemplo) e os mais pobres, mais uma vez, pagarão o<br />
pato, envoltos numa aura de promessa de um mundo de oportunidades<br />
para todos, que – por esse caminho – jamais se concretizará.
114<br />
a) Pensar em outras imagens ou blocos de imagens que poderiam<br />
estar presentes no filme.<br />
b) A partir de imagens similares ou iguais, montar sequências com<br />
significados diferentes.
115<br />
CHARNEY, Leo; SCHWATZ, Vanessa Schwatz. (Org. ). O cinema e a<br />
Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.<br />
The Futurist Cinema (Disponível em http://www.unknown.nu/futurism/cinema.html)<br />
VERTOV, Dziga. Nós - Variação do Manifesto. IN XAVIER, Ismail<br />
(org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal,<br />
2003.<br />
______________ O nascimento do Cine-olho. IN XAVIER, Ismail (org.). A<br />
experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
Este material pedagógico, incluindo livro e videoaulas,<br />
está disponível para download gratuitamente no site<br />
www.brasilsafilme.com.br<br />
Este livro é composto em Neutra Text, projetada por Christian<br />
Schwartz em 2002, impresso na gráfica Provisual, sobre papel<br />
Offset 90 g/mC para miolo e Triplex 300 g/mC para capa.