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Revista Dr. Plinio 227

Fevereiro de 2017

Fevereiro de 2017

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O cântico do<br />

Bom Sucesso!


Francisco Lecaros David Ayusso<br />

A ufania de<br />

Santa Joana de Valois - Museu de<br />

Belas Artes, Rouen, França<br />

ser católico!<br />

Santa Joana de Valois foi desprezada<br />

por todo mundo, até pelo<br />

pai e, por fim, repudiada pelo<br />

marido. Mas ela conduziu a vida com<br />

dignidade e serenidade. Fundou uma<br />

Ordem Religiosa e governou muito<br />

bem o feudo adquirido depois de sua<br />

separação conjugal. Após sua morte,<br />

recebeu a honra dos altares.<br />

Apesar de tudo quanto pudessem<br />

dizer dela, só uma coisa importava:<br />

ela era católica, e isso bastava. Para<br />

sua segurança, seu cartão de visita<br />

estava pronto: católica apostólica romana.<br />

É um título lindíssimo!<br />

Essa ufania de ser católico é a raiz<br />

daquilo que Camões chamava “os<br />

cristãos atrevimentos”. Quando temos<br />

essa ufania é que nos atrevemos<br />

a nos lançar. Não porque sejamos<br />

mais na ordem humana dos valores;<br />

talvez até sejamos menos do que alguns.<br />

Mas isso não importa. O que<br />

tem importância é o fato de sermos<br />

católicos, termos recebido o sinal do<br />

Batismo na fronte, sermos filhos da<br />

Santa Igreja Católica Apostólica Romana.<br />

(Extraído de conferência de 15/6/1967)<br />

2


Sumário<br />

Ano XX - Nº <strong>227</strong> Fevereiro de 2017<br />

O cântico do<br />

Bom Sucesso!<br />

Na capa, Nossa Senhora do<br />

Bom Sucesso - Convento<br />

das Concepcionistas,<br />

Quito, Equador.<br />

Foto: Henry Restrepo<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.<strong>227</strong>.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Nywgraf Editora Gráfica<br />

Rua Antônio Pinto Vieira, 322<br />

02566-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2238-4200<br />

Editorial<br />

4 O cântico do Bom Sucesso!<br />

Piedade pliniana<br />

5 Oração para pedir a troca de vontades<br />

Dona Lucilia<br />

6 “Vejam como estou em paz...”<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

12 Impulso do passado com vistas ao futuro - II<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

17 Equilíbrio de alma<br />

Calendário dos Santos<br />

22 Santos de Fevereiro<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

24 A batalha da caravela contra os submarinos<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 130,00<br />

Colaborador........... R$ 180,00<br />

Propulsor.............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Hagiografia<br />

31 Modos de tratar os pecadores<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

34 Harmonia na arte, harmonia na vida<br />

Última página<br />

36 A Virgem do Bom Sucesso<br />

3


Editorial<br />

O cântico do<br />

Bom Sucesso!<br />

AApresentação do Menino Jesus é um episódio único na história do Templo de Jerusalém. Maria<br />

Santíssima, acompanhada de São José, entra tendo em seus braços o Verbo encarnado. Pode-se<br />

imaginar que, nesse momento, os Anjos encheram o Templo e se puseram a cantar.<br />

Cumprido o rito da Apresentação, que consagrava o bom sucesso da Virgem-Mãe na gestação de<br />

seu Divino Filho, Ela ouve, encantada, Simeão profetizar a glória e a Cruz daquele Menino: Luz para<br />

iluminar as nações e glória de Israel; causa de queda e reerguimento de muitos, sinal de contradição,<br />

pelo qual seriam revelados os pensamentos de muitos corações (cf. Lc 2, 32; 34-35).<br />

O sucesso é filho do esforço, da dedicação e do heroísmo.<br />

Nossa Senhora do Bom Sucesso, no sentido mais amplo da palavra, é a padroeira de todos aqueles<br />

que procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.<br />

Todos quantos trabalhem a favor da Contra-Revolução, em última análise, esforçam-se para que<br />

desponte o sol do Reino de Maria sobre o mundo. É algo parecido com uma geração, e o nascimento<br />

desse Reino se parecerá admiravelmente com um bom, um magnífico sucesso!<br />

Sóror Mariana de Jesus Torres para ser fiel à vocação dela – uma espécie de profetiza do Bom Sucesso<br />

e do Reino de Maria – teve que passar por provações terríveis, entre as quais, sofrer por cinco<br />

anos, em sua alma, os tormentos do Inferno.<br />

Entretanto, quantas alegrias experimentava ela ao conversar com a Santíssima Virgem, passeando<br />

pelo claustro do convento como Adão com Deus no Paraíso!<br />

Durante os castigos previstos em Fátima, haverá momentos em que nos perguntaremos: “Não será<br />

o Inferno?! Nossa Senhora do Bom Sucesso, rogai por nós!” Haverá também circunstâncias nas<br />

quais sentiremos tanta alegria interior que diremos: “Já não é o Céu?! Nossa Senhora do Bom Sucesso,<br />

rogai por nós!”<br />

E especialmente nas horas mais difíceis deveremos suplicar: “Venha a nós o vosso Reino, seja feita<br />

a vossa vontade, assim na Terra como no Céu!” É o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo na sua expressão<br />

mais perfeita: o Reino de Maria!<br />

Filhos indignos, mas amorosos, transidos de enlevo, quando raiar a aurora desse Reino, poderemos<br />

dizer-Lhe: “Senhora, nós Vos apresentamos o mundo que Vós iluminais. A luz de vosso Reino é<br />

o nosso e o vosso sucesso, Minha Mãe! Vós fizestes tudo, a começar por nos obter a imerecida graça<br />

de sermos levados às fontes batismais. Que gratuidade assombrosa a desse dom!”<br />

Por fim, chegará o momento em que tudo quanto é obra da iniquidade cairá por terra e não passará<br />

de casca vil de uma cobra moribunda. Começará, então, o Reino de Maria e nós cantaremos o cântico<br />

do Bom Sucesso! *<br />

* Excertos adaptados de conferências de 2/2/1983 e 2/2/1985.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Gustavo Kralj<br />

Anunciação - Basílica de São Pedro, Vaticano<br />

Oração para pedir<br />

a troca de vontades<br />

ÓCoração Sapiencial e Imaculado de Maria, que simbolizais a mentalidade sagrada,<br />

a vontade santíssima, a perfeitíssima disciplina da Mãe de Deus, nós Vos pedimos:<br />

abri-Vos para nós.<br />

Considerai nossas mentes infiltradas de máximas revolucionárias! Tende em vista as nossas<br />

vontades debilitadas por toda espécie de maus hábitos e pressões decorrentes do ímpeto<br />

da Revolução! Olhai para a nossa sensibilidade trabalhada pelos mais nocivos fermentos do<br />

mundo satânico que a Revolução vem desenvolvendo, e tende pena de nós!<br />

Nós Vos pedimos que substituais nossas mentalidades revolucionárias, de maneira que<br />

nossos princípios reflitam, com a fidelidade perfeita, a doutrina e o espírito da Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana. Trocai a nossa vontade corrompida, substituindo-a pela vossa<br />

sem mancha, sem hesitação, sem concessões! Substituí nossa sensibilidade pela vossa, ordenada,<br />

equilibrada, puríssima, em tudo obediente à vossa vontade e inteligência!<br />

Vós sois, Coração Imaculado, o Sacrário do Espírito Santo. Habitai no meu coração para<br />

que o vosso Divino Esposo habite em mim e eu seja um templo d’Ele!<br />

Dai-me, assim, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, o Grand Retour tão desejado<br />

e fazei-me um discípulo perfeito vosso! Amém.<br />

(Composta provavelmente na década de 1980)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

“Vejam<br />

como estou<br />

em paz...”<br />

Devido à influência da Revolução, as pessoas têm uma<br />

espécie de intolerância para com o sofrimento, ficando<br />

inconformadas quando este se apresenta. Dona Lucilia, pelo<br />

contrário, possuía uma total conformidade com a dor. Embora<br />

sofresse muito, possuía uma doçura e uma luminosidade<br />

dentro da alma que a tornavam a mestra da resignação.<br />

ARevolução não é um fenômeno<br />

atuante apenas nas<br />

ideias, nos princípios, mas<br />

também nas tendências. Estas, por<br />

sua vez, têm subjacentes doutrinas<br />

que, precisamente por estarem subjacentes,<br />

o indivíduo tem dificuldade<br />

em conhecê-las e identificar a que<br />

doutrinas correspondem uma série<br />

de tendências sentidas por ele.<br />

Efeitos da Revolução<br />

Industrial nas almas<br />

O papel da tendência é muito especial,<br />

e cabe à graça fazer desabro-<br />

char nas almas dos homens as tendências<br />

boas. Às vezes é pelo que eles<br />

dizem, mas às vezes pelo que a graça<br />

faz sentir de modo imponderável.<br />

Por exemplo, a questão da música<br />

sacra. Esta pode ser tocada como<br />

melodia apenas, e não com palavras,<br />

mas assim mesmo falar possantemente<br />

às almas dos homens, incitando-os<br />

à virtude. De que maneira? Por aqueles<br />

sons e harmonias a música opera,<br />

pela ação da graça, um efeito santificante<br />

das tendências, tranquiliza, ordena,<br />

por assim dizer limpa as tendências<br />

dos homens, e nisso lhes faz<br />

um bem muito grande para a alma.<br />

Há qualquer coisa na Revolução<br />

meio ligada ao seu caráter industrial<br />

no ambiente em que vivemos – pois<br />

estamos ainda sob o domínio da Revolução<br />

Industrial –, com todas as<br />

agitações, febricitações, ambições<br />

despertadas por ela, como também<br />

as friezas de alma, as faltas de afeto,<br />

as durezas, os egoísmos deslavados<br />

que ela suscita. E é muito difícil<br />

para um homem – ainda que ele seja<br />

dotado de uma tal ou qual capacidade<br />

de discussão ou de exposição de<br />

uma doutrina – remover essa disposição<br />

de alma, criada às vezes quando<br />

a pessoa ainda não está no uso da<br />

6


azão, e já essas tendências erradas<br />

vão se formando dentro dela.<br />

Uma influência<br />

sempre benéfica<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Uma coisa que eu, em vida de<br />

mamãe, notava muito – ela possuía<br />

em alto grau – era uma forma<br />

de presença que o simples trato comum<br />

de uma dona de casa, quer dizer,<br />

de uma senhora com o seu marido,<br />

os seus filhos, a residência,<br />

ela o fazia com uma ordenação interior,<br />

do mais profundo do seu espírito<br />

tão ordenado, harmonioso,<br />

sério, elevado, mas tão afável, acolhedor,<br />

virtuoso, que aquilo contagiava,<br />

no sentido bom da palavra.<br />

E as pessoas com isso ficavam de<br />

repente distendidas, acalmadas e<br />

tranquilas.<br />

Lembro-me, por exemplo, de que<br />

quando eu era pequeno tive toda espécie<br />

dessas doenças que criança<br />

tem: crupe, coqueluche, caxumba. E,<br />

naturalmente, quem tratava de mim<br />

era Dona Lucilia. Mas, como toda<br />

criança, começava a ficar torcendo<br />

para não ter mais febre. E ela era<br />

uma campeã do termômetro, vira e<br />

mexe o usava.<br />

Ela notava que eu me impacientava<br />

com o termômetro, pois enquanto<br />

não passasse a febre ela não me deixaria<br />

sair da cama, e eu preferia não<br />

ter esse controle e levantar logo. Então,<br />

não querendo acentuar demais<br />

o uso desse instrumento ela punha a<br />

mão sobre a minha testa.<br />

Só o sentir a mão de mamãe sobre<br />

a minha fronte, em geral eu tinha<br />

uma impressão de frescor, de<br />

tranquilidade, de suavidade e todas<br />

as minhas impaciências passavam.<br />

Às vezes mamãe vinha até mim e<br />

eu pensava: “Que bom, ela não vai<br />

fazer baixar minha febre, mas aliviará<br />

qualquer coisa em mim que está<br />

fervendo!” Ela punha a mão na minha<br />

testa e dizia: “Meu filho, você<br />

ainda tem um pouco de febre...” Ela<br />

fazia baixar a sensação de febre, e<br />

era uma tranquilidade…<br />

Muitas vezes a presença de Dona<br />

Lucilia dava-me também a sensação<br />

da proteção da Providência, pelo<br />

modo de me sentir garantido de<br />

tudo, pois ela me protegeria. Quando<br />

pequeno, por ser ela minha mãe<br />

e, portanto, uma pessoa mais poderosa<br />

do que eu. Depois, com o tempo,<br />

isso continuava, mas de uma maneira<br />

diversa.<br />

Por exemplo, eu não ia a um exame<br />

no colégio sem pedir a ela que<br />

me fizesse uma cruz na fronte. E isso<br />

foi assim até as últimas provas da<br />

Faculdade de Direito. Ela fazia, não<br />

uma cruz, mas umas dez cruzes pequenas.<br />

E eu me dirigia aos exames<br />

acompanhado de um primo que estudava<br />

comigo; e o que tem propósito<br />

da parte de uma mãe para seu filho<br />

já tem menor cabimento de uma<br />

7


Dona Lucilia<br />

tia para com seu sobrinho.<br />

Entretanto, o<br />

meu primo, que estava<br />

junto a mim para nos<br />

despedirmos de Dona<br />

Lucilia e irmos para<br />

a Faculdade, pedia<br />

também, e ela igualmente<br />

fazia várias cruzes<br />

sobre a testa dele.<br />

Íamos, então, para o<br />

exame e passávamos<br />

sempre! O que era<br />

mais milagroso com o<br />

meu primo do que comigo…<br />

Quando eu ia viajar<br />

– sempre que não<br />

fossem as minhas viagens<br />

às ocultas para<br />

a Europa sem mamãe<br />

saber; ela só sabia<br />

depois –, ela me<br />

fazia vários sinais da<br />

Cruz na testa. E eu<br />

sentia que aquilo me<br />

protegia, me ajudava.<br />

É Doutrina Católica<br />

que a bênção de<br />

uma mãe pode atrair<br />

a proteção de Deus para um filho. E<br />

ela, ciente disso, queria essa proteção<br />

de todo jeito. Então várias cruzes,<br />

etc.<br />

Ela era um pouquinho baixa, e eu<br />

para a minha geração, alto. E notava<br />

que ela se punha um tanto na ponta<br />

dos pés para fazer as cruzes. Então,<br />

eu me curvava para facilitar. Depois<br />

nos beijávamos e eu saía, às vezes osculando<br />

sua mão também.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Ação de presença de<br />

Dona Lucilia<br />

Tudo isso indicava uma ação de<br />

presença que eu teria dificuldade em<br />

explicitar. Dou outro exemplo:<br />

A sede da Ação Católica era no<br />

mesmo andar que o meu escritório<br />

de advocacia. Após um dia de trabalho,<br />

eu retornava para casa cansado,<br />

porque de manhã dava aulas, à tarde<br />

enfrentava os aborrecimentos próprios<br />

a um escritório de advocacia e<br />

os problemas da Ação Católica. Não<br />

era tanto um cansaço físico comum,<br />

de quem carregou um fardo, mas um<br />

cansaço mais psicológico.<br />

Apenas ao entrar – em geral eu<br />

a encontrava sentada na cadeira de<br />

balanço do meu escritório, lendo ou,<br />

o mais das vezes, rezando – eu sentia<br />

a atmosfera de tranquilidade que<br />

a presença dela deixava naquele ambiente.<br />

Só o fato de ela estar lá já me<br />

valia por duas ou três horas de descanso.<br />

Era uma ação imediata.<br />

Essa ação de presença tem algo<br />

de indiretamente contrarrevolucionário:<br />

tranquilizar e aquietar tudo<br />

quanto é o borbulhar de uma cidade,<br />

que é uma das maiores do mundo, e<br />

preparar para a luta, para a oração,<br />

para a serenidade de<br />

alma. Eis a tranquilidade<br />

que Dona Lucilia<br />

comunicava.<br />

Embora ninguém<br />

me tenha dito, creio<br />

ser esse o fenômeno<br />

que acontece com<br />

as pessoas, principalmente<br />

as mais jovens,<br />

quando estão junto à<br />

sepultura de mamãe<br />

no Cemitério da Consolação.<br />

Por vezes, vejo-as<br />

paradas, algumas<br />

recitam o terço, outras<br />

não estão rezando<br />

propriamente e parecem<br />

estar absortas,<br />

sem prestar atenção<br />

em nada. O que fazem<br />

ali? Estão recebendo<br />

uma influência que, a<br />

meu ver, é o prolongamento<br />

daquela exercida<br />

por ela em vida.<br />

Pude notar que,<br />

quando vão para o Cemitério,<br />

as pessoas andam<br />

com pressa; ao<br />

voltarem, caminham devagar, tranquilas,<br />

conversando. Seria impossível<br />

atrair e reter tantos jovens lá se não<br />

houvesse alguma coisa desse gênero.<br />

Às vezes o Quadrinho 1 ou uma fotografia<br />

de mamãe produz esse efeito.<br />

Paciência com um<br />

sobrinho surdo<br />

Quantas vezes presenciei cenas<br />

assim, na vida de família! Dona Lucilia<br />

tinha um sobrinho surdo de nascença,<br />

com um temperamento muito<br />

difícil. Às vezes, ele ia à casa de minha<br />

avó materna, onde morávamos,<br />

e começava a brigar com ela. Mamãe<br />

ficava olhando aquilo e quando percebia<br />

ter chegado a um certo paroxismo,<br />

aproximava-se dele, tranquilizava-o<br />

e ia com ele para uma saleta<br />

onde o entretinha durante mais de<br />

8


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

uma hora. Sendo surdo, não graduava<br />

bem o volume de sua voz, e soltava<br />

algumas palavras aos gritos. Ao<br />

cabo de uma hora e tanto, o Tito –<br />

era o seu apelido doméstico – saía<br />

tranquilo, beijava-a e ia embora.<br />

Isso acontecia quando ele e eu éramos<br />

meninos, e até durante nossa<br />

viagem a Paris. Os pais do Tito estavam<br />

lá com Dona Lucilia. Mamãe demonstrava<br />

uma tal paciência com o<br />

Tito, sacrificando por vezes os atrativos<br />

da viagem, que quando preparava<br />

a mala a fim de voltar para São Paulo,<br />

encontrou dentro um vestido muito<br />

bonito, muito fino, que ela não havia<br />

encomendado. Ergueu-o e viu que<br />

estava de acordo com o tamanho dela<br />

perfeitamente. Ficou intrigada e, mexendo<br />

na vestimenta, caiu um cartãozinho,<br />

escrito pela mãe do Tito: “À<br />

querida Tia Lucilia, mil agradecimentos<br />

de Tito.”<br />

Ajudando a encontrar<br />

os ovos de Páscoa<br />

Mamãe organizava piqueniques<br />

de Páscoa num lugar dos arredores<br />

de São Paulo, e escondia os ovos de<br />

Páscoa aqui, lá e acolá. Os sobrinhos<br />

e os filhos dela chegavam depois e<br />

cabia ao pessoal descobrir os ovos de<br />

Páscoa. Alguns eram muito espertos,<br />

saíam logo correndo e encontravam<br />

os ovos.<br />

Vendo minha dificuldade, ela me<br />

dizia sorrindo: “Filhão, veja se você<br />

encontra um ovo lá...”<br />

Eu pensava: “Mas não era mais<br />

fácil que ela me trouxesse o ovo de<br />

uma vez?!”<br />

Eu chegava até o local, e ela me<br />

dizia: “Não, você não está procurando<br />

bem. Procure lá…” Os outros estavam<br />

longe e não ouviam o favorecimento.<br />

Afinal de contas, eu encontrava<br />

uns dois ou três ovos escondidos<br />

por ela num lugar onde me ficasse<br />

fácil encontrar.<br />

Eu sentia o afeto com que isso era<br />

feito e experimentava uma inundação<br />

de alegria inocente e satisfeita,<br />

cumulado e envolto nessa atmosfera<br />

de proteção, de afago,<br />

de bondade.<br />

Mamma<br />

Margherita e<br />

Dona Lucilia<br />

Recordo-me de<br />

que o meu primeiro<br />

movimento grande<br />

de afeto a Maria<br />

Santíssima foi diante<br />

daquela imagem<br />

de Nossa Senhora<br />

Auxiliadora da Igreja<br />

do Coração de Jesus.<br />

Não houve milagre,<br />

a imagem não<br />

se moveu, mas recebi<br />

a graça de esperar<br />

que Ela agisse desse<br />

jeito comigo. Pensei:<br />

“Nossa Senhora<br />

é incalculavelmente<br />

boa! Tão boa, que é<br />

melhor do que mamãe!<br />

E o que mamãe<br />

não está aturando,<br />

Ela atura. Ademais,<br />

me dá uma<br />

força que não recebo<br />

de mamãe. Então<br />

vou pedir para Nossa<br />

Senhora” 2 . Assim<br />

9


Dona Lucilia<br />

Dona Lucilia me preparava para a<br />

devoção à Santíssima Virgem.<br />

São João Bosco, fundador dos Salesianos,<br />

levou sua mãe, Mamma<br />

Margherita para morar no colégio<br />

por ele fundado, onde ela trabalhava<br />

na cozinha e em outros afazeres<br />

de dona de casa. E assim, o quanto a<br />

saúde permitiu, até o fim da vida ela<br />

trabalhou.<br />

São João Bosco dizia que Mamma<br />

Margherita era uma verdadeira santa,<br />

e a queria bem de um modo extraordinário.<br />

Podemos admitir que São João<br />

Bosco fosse canal – isto ele era, certamente<br />

– de muitas graças para toda<br />

aquela meninada, professores, sobretudo<br />

padres, freiras, etc., mas que<br />

algumas dessas graças eram recebidas<br />

pelo pessoal por meio da Mamma<br />

Margherita. Isto parece verdadeiro,<br />

tanto é que a sepultura dela<br />

é visitadíssima por toda espécie de<br />

pessoas ligadas à obra salesiana, que<br />

vão lá rezar, embora ela não tenha<br />

sido canonizada.<br />

E creio que se alguma pessoa, a<br />

qual a Providência destinasse a receber<br />

uma graça pela Mamma Margherita<br />

e não pedisse a ela, podia<br />

não receber aquela graça, porque<br />

Deus indica o caminho que cada um<br />

deve seguir.<br />

Em ponto num certo sentido menor,<br />

em certo sentido maior, dentro<br />

de nosso Movimento uma coisa dessas<br />

pode se repetir perfeitamente.<br />

Não vejo nada de heterodoxo.<br />

Tenho a impressão de que, ainda<br />

que não tivéssemos infidelidades, a<br />

época na qual vivemos é de tal maneira<br />

oposta à fidelidade, que se não<br />

houvesse em determinado momento<br />

uma intervenção do Divino Espírito<br />

Santo para nos elevar a uma altura<br />

bem maior, por um modo pelo<br />

qual o caminho comum da graça não<br />

nos ergueria, não chegaríamos aonde<br />

precisamos para enfrentar os castigos<br />

previstos por Nossa Senhora<br />

em Fátima.<br />

Carlos Aguirre<br />

Tenho a impressão de que a ação<br />

de Dona Lucilia nos predispõe para<br />

essa graça, nos dá serenidade para<br />

esse efeito.<br />

Doçura e luminosidade<br />

de alma<br />

Ela sofria muito, mas foi a melhor<br />

mestra de resignação que encontrei<br />

Mamma Margherita<br />

em minha vida. E não houve homem<br />

algum que me ensinasse a resignação<br />

como mamãe. Porque ela tinha<br />

uma espécie de doçura e de luminosidade<br />

dentro da alma que a levava<br />

a suportar dores que para outros seriam<br />

insuportáveis, por uma espécie<br />

de elasticidade interior, pela qual tinha<br />

uma capacidade de sofrer cada<br />

vez maior, e às vezes de um modo<br />

10


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

espantoso! Mas, achando tão natural<br />

sofrer, e amando tanto uma certa<br />

consolação interior que era a causa<br />

da doçura dela, e a tornava a mestra<br />

da resignação!<br />

Embora mamãe, às vezes, estivesse<br />

muito aflita, uma pessoa podia falar<br />

com ela e sair consolada, por essa<br />

elasticidade para a dor, que eu não<br />

vejo as pessoas de hoje terem. Elas<br />

são rebarbativas, revoltam-se contra<br />

a dor e a consideram quase uma vergonha.<br />

A influência hollywoodiana torna<br />

feio o sofrer. O bonito é estar continuamente<br />

alegre e bem disposto,<br />

ter uma espécie de intolerância para<br />

com o sofrimento, o revés e a indisposição.<br />

Por causa disso, se a dor se<br />

apresenta, os homens ficam rebarbativos,<br />

zangados, não se conformam.<br />

Dona Lucilia não era assim. Por<br />

exemplo, às vezes ocorria de mandarmos<br />

vir um aparelho para verificar<br />

como estava o coração, ou a<br />

pressão, etc. E cada inspeção dessas<br />

pode trazer uma notícia-bomba.<br />

De maneira que a pessoa, em geral,<br />

quando se sujeita a algo assim, sobretudo<br />

uma senhora que é mais fraca<br />

para essas coisas do que um homem,<br />

fica meio preocupada.<br />

Eu a vi mais de uma vez ser sujeita<br />

a exame cardíaco, com uma naturalidade,<br />

uma serenidade, uma coisa<br />

única! Terminado, em geral dava<br />

certo, porém ela não tinha um grande<br />

júbilo. Mas não dando bom resultado,<br />

ela não sofria uma grande<br />

baixa; continuava a vidinha dela<br />

tal e qual. A meu ver, a longevidade<br />

dela se atribui, em parte, a isso. Porque<br />

para uma pessoa que a propósito<br />

de qualquer coisa fica alarmada,<br />

isso não pode deixar de ser desgastante.<br />

Ela tocava aquilo com uma serenidade,<br />

mas que era a tal elasticidade<br />

para a dor. Mamãe sofria muito,<br />

mas com uma calma, achando natural<br />

sofrer, e com uma bondade resultante,<br />

creio eu, da sua devoção<br />

ao Sagrado Coração de Jesus, que<br />

nos aparece na iconografia católica<br />

cercado com uma coroa de espinhos,<br />

indicando o sofrimento que<br />

Ele teve.<br />

Em geral, quando uma senhora<br />

tira uma fotografia, a expressão dela<br />

é: “Olhe como eu estou bem sucedida,<br />

bonita, contente.” Em mamãe<br />

a expressão é sempre: “Vejam como<br />

eu estou em paz, apesar de muitas<br />

dores, e como a minha alma está<br />

bem.” É a expressão do Quadrinho.<br />

<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

22/9/1990)<br />

1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />

a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />

discípulos, com base nas últimas fotografias<br />

de Dona Lucilia. Ver <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />

2) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 122, p. 18-23.<br />

11


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Impulso do passado com<br />

vistas ao futuro - II<br />

Os patriarcas têm o senso da realidade profunda,<br />

representam todo o impulso do passado, levando a<br />

sociedade a dar um passo para a frente com eles. Nenhum<br />

homem merece o título de patriarca se não cumpre<br />

duravelmente os Mandamentos da Lei de Deus.<br />

Francisco Lecaros<br />

Quando uma família é muito<br />

antiga sua memória vai<br />

se perdendo no passado;<br />

por exemplo, a memória da família<br />

de um nobre pode conservar-se desde<br />

mil anos atrás. Mas uma família<br />

mais modesta nem tem sentido conservar<br />

o nome por tanto tempo. Esse<br />

é o passado da família, e o rumo que<br />

o presente carrega em direção ao futuro,<br />

mas que ele recebeu do passado,<br />

é tradição. Vai para a frente!<br />

Grandes homens à<br />

maneira de patriarca<br />

Oração em família<br />

Museu Saint-Loup,<br />

Troyes, França<br />

As famílias ilustres ou não, inclusive<br />

pequenas, são animadas por uma<br />

determinada tradição e, de vez em<br />

quando, os parentescos entre elas já<br />

são meio apagados, não se sabe mais<br />

bem quem é parente de quem. Elas<br />

têm uma parentela geral, mas difusa;<br />

estão se transformando em país.<br />

E aquela unidade que o patriarca<br />

conservava vai-se borrando, generalizando;<br />

o nexo patriarcal vai-se dissolvendo<br />

ao longo das gerações. Então,<br />

qual é a solução?<br />

12


É aparecerem grandes homens<br />

que fazem um papel à maneira do<br />

patriarca, os quais representem toda<br />

a meta, todo o impulso do passado;<br />

dessa forma aquilo que se estava tornando<br />

vago, por assim dizer, se precisa,<br />

se define e dá um passo para a<br />

frente com eles.<br />

E assim essa longa sequência se<br />

acentua.<br />

Mas isto não quer dizer apenas formar<br />

grandes homens cujos nomes<br />

saiam nos jornais. Eu conheci gente<br />

modesta – não do proletariado, mas<br />

da pequena burguesia – constituindo<br />

um grupo de famílias, que se percebia<br />

serem parentes, e havia um que<br />

eles respeitavam enormemente: Fulano.<br />

“Vamos ouvir o Fulano, a opinião<br />

dele é decisiva.” Ou então Da. Fulana,<br />

aquela que sabe e é meio médica<br />

daquele grupo de famílias. Quando<br />

alguém adoece, perguntam para<br />

ela qual é o melhor remédio, ou o melhor<br />

médico, ou se aquela doença tem<br />

perigo ou não. Quando há uma briga<br />

na família, vão pedir conselho para<br />

Da. Fulana. Se alguém da família está<br />

desempregado, solicitam-lhe emprego<br />

porque o marido dela arranja. Tais<br />

pessoas são uma espécie de patriarca<br />

nascido de um definido, mas pequeno,<br />

aumento de valor. São grandes homens<br />

de quarteirão, dos quais não se<br />

deve rir; pode-se sorrir, mas não rir.<br />

Nós sorrimos quando, ao olharmos<br />

para um formigueiro, vemos uma formiga<br />

carregar uma folha enorme para<br />

dentro dele. Sorrimos e não achamos<br />

ridícula, mas fenomenal a formiga,<br />

porque pequenininha ela carrega uma<br />

folha tão grande, e para aquele formigueiro<br />

marca história.<br />

Um velho professor<br />

de música<br />

professor de música, homem já idoso,<br />

austríaco. A mãe parece-me que<br />

era – não estou bem certo – alemã<br />

ou francesa. Ele, como músico, tocava<br />

violino… todo musical. E era, em<br />

medida pequena, um homem respeitável<br />

mesmo.<br />

Sua mulher era vivíssima. Ele se<br />

entregava a uma vida meio ideal, para<br />

poder dar o que o talento musical<br />

concede, e a mulher fazia um pouco<br />

o papel do marido: ela trabalhava,<br />

bordava, confeccionava rendas, fazia<br />

bolos e vendia. O filho ficou médico,<br />

as filhas todas se formaram, uma delas<br />

em professora de música; todos<br />

fizeram a vida. Tinham um respeito<br />

por ele... Mas eu percebia que aquela<br />

rua – e os dois quarteirões adjacentes<br />

– era de pequena burguesia.<br />

E havia naquela redondeza um respeito<br />

pelo velho professor, quando<br />

ele saía ou nos acompanhava ao jardim,<br />

brincando com muita benevolência,<br />

etc. Eu notava que o pessoal<br />

da rua olhava para ele com respeito.<br />

A molecada que jogava futebol na<br />

via pública, quando passava o professor<br />

parava e assim ficava até ele<br />

terminar seu trajeto.<br />

Era uma notabilidade de quarteirão,<br />

de arrabalde. Feliz a cidade onde<br />

cada arrabalde ou cada quarteirão<br />

tem um grande homem, um patriarcazinho,<br />

assim!<br />

Diretor funcional de<br />

repartição pública<br />

Eu fui também funcionário público,<br />

e notei que algumas repartições<br />

tinham diretores patriarcais. E outras<br />

possuíam diretores funcionais<br />

apenas.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Assim, por exemplo, eu imagino<br />

que era, nos meus remotos tempos de<br />

infância, o Largo do Coração de Jesus.<br />

Eu conheci, numa rua próxima<br />

do Largo, uma família cujo pai era<br />

Igreja do Sagrado Coração<br />

de Jesus, na década de<br />

1920, São Paulo, Brasil<br />

13


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Numa seção de médicos<br />

em que trabalhei,<br />

o diretor era um homem<br />

rico, morava inclusive<br />

na Avenida Paulista.<br />

Ele chegava de automóvel<br />

à repartição, a<br />

qual era distante da Avenida<br />

Paulista. Ele ia três<br />

vezes – ou duas, não me<br />

lembro bem – por semana<br />

à seção; de longe dava<br />

um toque de buzina e<br />

já vinha o porteiro para<br />

lhe abrir a porta que dava<br />

para um parque dessa<br />

repartição.<br />

Ele entrava com uns<br />

olhos de caráter não definido<br />

por detrás de uns<br />

óculos esfumaçados, que<br />

não permitiam bem ver<br />

o que ele estava observando.<br />

Um olhar bambo.<br />

Ele passava por nossa<br />

sala, dizia “boa-tarde”<br />

para todo mundo, uma<br />

pseudocortesia, e trancava-se<br />

em sua sala.<br />

Daí a instantes, o secretário ia<br />

com o expediente para a sala e despachava<br />

com ele. O diretor ficava<br />

meia hora ou uma hora lá. Depois se<br />

levantava, dizia “boa-tarde”, sem falar<br />

com ninguém, e saía.<br />

Havia medo dele. Inclusive porque<br />

era um homem rico e poderoso.<br />

Mas nele não existia patriarcalidade<br />

nenhuma.<br />

Diretor patriarcal<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Lembro-me de um outro homem<br />

que era diretor de uma repartição<br />

de engenheiros, mas diretor-patriarca:<br />

um homenzinho baixinho, já idoso,<br />

calvo com uma coroa de cabelos<br />

brancos, e uma barbichinha branca<br />

pontuda; e tesinho, representando<br />

a personificação da consciência,<br />

mas muito interessado por cada funcionário.<br />

E nas horas vagas, do café,<br />

Igreja de Santa Cecília, São Paulo, Brasil<br />

etc., ele conversava com os funcionários,<br />

sempre ditando altas sentenças<br />

que os iluminavam pela sabedoria.<br />

Eu as julgava umas vigorosas banalidades,<br />

mas eles achavam o homem<br />

formidável.<br />

Um dia eu estava subindo as escadas<br />

da Igreja de Santa Cecília – e como<br />

não gostava de subir escadas, tinha<br />

tomado o hábito de subi-las correndo,<br />

porque assim se acaba a coisa<br />

logo; era um modo de combater a<br />

preguiça – e vejo a meu lado, a escada<br />

é larga – o Doutor Fulano com a barbinha<br />

dele, que ia com duas ou três filhas<br />

já vetustas também, solteironas,<br />

acompanhando o pai para a Missa.<br />

Elas olhavam para o jeito do pai<br />

subir a escada, mas cada passo dele<br />

era um respeito, para evitar que o<br />

“ídolo” não se quebrasse na ascensão…<br />

E ele dando o braço para uma<br />

e para outra e com ar digno. Elas encantadas<br />

com o pai… Ele era o pa-<br />

triarca daquela pequena<br />

unidade como era o patriarca<br />

da repartição. E,<br />

mais ainda, ele merecia<br />

ser: para o seu tamanhinho<br />

estava perfeitamente<br />

benzinho.<br />

Onde entra a indústria<br />

e a máquina, o patriarcado<br />

desaparece; é uma<br />

coisa mais ou menos intuitiva,<br />

e creio que nem<br />

sequer preciso explicar.<br />

A questão do<br />

“grande homem”<br />

Então, podemos ter<br />

mais ao vivo a ideia do<br />

que seria uma sociedade<br />

com um mundo de pequenos<br />

patriarcas assim;<br />

eles tendem a patriarcalizar<br />

o patriarca maior,<br />

de maneira a formar uma<br />

hierarquia natural de patriarcas,<br />

que é a própria<br />

hierarquia do povo. E,<br />

naturalmente, as famílias ilustres, nobres,<br />

têm também seus patriarcas, e<br />

há famílias que são patriarcais em relação<br />

a outras. Não é só este que é patriarca<br />

em relação àquele, mas há famílias<br />

que são patriarcais em relação<br />

a outras famílias.<br />

Vejamos agora o ponto precioso<br />

disso.<br />

Um Demóstenes pode ser uma<br />

grande honra para um país, mas é<br />

possível também que ele seja um<br />

grande malfeitor. Todo homem inteligentíssimo<br />

e dotado de muita força<br />

de vontade, ou tende para o santo<br />

ou para o bandido. Porque, se ele<br />

é voltado para um ideal verdadeiro e<br />

bom, faz toda espécie de benefícios<br />

e encaminha para o bem. Mas se é<br />

direcionado para o interesse pessoal,<br />

ele se serve de seu talento para guiar<br />

para a direita ou esquerda, do modo<br />

mais vil, a multidão que depende<br />

dele. E tudo tem conexão com o di-<br />

14


nheiro ou a imoralidade; ele leva as<br />

pessoas de um lado para outro.<br />

Qual é a defesa da sociedade contra<br />

o “grande homem”? Porque a sociedade<br />

precisa ter uma defesa, senão<br />

o “grande homem” é um vendaval<br />

que de vez em quando nasce e<br />

destrói tudo. Este é o aspecto negativo<br />

e positivo do “grande homem”.<br />

E os defensores são os patriarcas.<br />

Porque eles têm o senso da seleção,<br />

da escolha, da realidade profunda.<br />

E esse senso faz com que, quando o<br />

“grande homem” é um charlatão, no<br />

comentário do âmbito dos patriarcas<br />

eles o recebem com frieza. Tal frieza<br />

explica aos outros, e, quando necessário,<br />

eles falam, porque é preciso ter<br />

desconfiança com aquele homem.<br />

Portanto, o “grande homem” ou<br />

afina com o que há na sociedade de<br />

melhor, que são os patriarcas, ou<br />

não tem carreira. Mas os patriarcas<br />

não dependem dele.<br />

O professor de música ao qual me<br />

referi não dependia de ninguém: ele<br />

exercia uma influência direta sobre<br />

aqueles quarteirões. Mas o “grande<br />

homem”, se quisesse ter influência<br />

ali dentro, dependia dele, porque<br />

nada havia como a aprovação do<br />

professor para levantar a reputação<br />

de um homem. E nada como a “maledicência”<br />

dele para derrubar.<br />

E era, por assim dizer, este cenáculo<br />

invisível de patriarcas que servia<br />

de rumo para que o país não fosse<br />

como uma espécie de navio com<br />

a carga muito leve, que as ondas podem<br />

derrubar, “enlouquecendo” o<br />

navio. Eles, os patriarcas, são a carga<br />

sadia, a tradição.<br />

Virtude primitiva dos<br />

antigos patriarcas<br />

Em relação a este todo, o que é o<br />

Sagrado Coração de Jesus?<br />

Nenhum homem merece esse<br />

patriarcado verdadeiramente se<br />

não pratica duravelmente todos os<br />

Mandamentos. Os antigos patriarcas<br />

das antigas tribos, muito frequentemente,<br />

eram herdeiros de<br />

vagas reminiscências do tempo de<br />

Noé, talvez de Noé até Adão e Eva,<br />

quando a humanidade ainda tinha<br />

a marca dos ensinamentos de Deus<br />

e do convívio com o Criador, feito<br />

por uma revelação de que lhes<br />

constava alguma coisa. E a pureza<br />

das circunstâncias primitivas em<br />

que eles viviam facilitava-lhes levar<br />

uma vida que precariamente podia<br />

ser chamada virtuosa. Daí a respeitabilidade<br />

deles.<br />

Mas hoje em dia acabou isso, porque<br />

ninguém vive da revelação do<br />

tempo de Noé, mas da Revelação<br />

feita ao povo eleito e a realizada por<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo e pregada<br />

para o mundo inteiro.<br />

Francisco Lecaros<br />

15


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

E quem recusa essa Revelação, se<br />

pode conhecê-la, peca. Quem aceitou<br />

a Revelação e a rejeita é um<br />

apóstata. Para esses não há possibilidade<br />

de ter a virtude primitiva dos<br />

antigos patriarcas.<br />

Eles são inimigos de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo que é o Modelo de<br />

todo o Bem. Todo homem, quando<br />

tem vontade de ser santo, deseja imitar<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, de ser<br />

como Ele. E o Coração Sagrado de<br />

Jesus nos revela, como no seu foco, a<br />

própria santidade d’Ele.<br />

Quando vemos uma imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus temos<br />

vontade de olhar para o Coração,<br />

ajoelhar e dizer: Anima Christi, sanctifica<br />

me!<br />

O Sagrado Coração de<br />

Jesus é o Patriarca, o<br />

alfa e o ômega de tudo<br />

De outro lado, o Sagrado Coração<br />

de Jesus, enquanto tal, atua possantemente<br />

sobre a vontade do homem.<br />

Vê-Lo expresso pelo seu Coração,<br />

pela sua bondade, sua generosidade,<br />

desarma a nossa maldade.<br />

Há qualquer coisa em nós em que os<br />

arreganhos do egoísmo, do ceticismo,<br />

da dúvida, das desconfianças, da<br />

preguiça, da modorra, da ansiedade,<br />

tudo isso entra em paz. Olhando para<br />

o Coração de Jesus, dir-se-ia que<br />

as virtudes cardeais vão renascendo.<br />

É um mar de lama que vai secando<br />

e se transforma em pó, deixando de<br />

fora apenas a antiga catedral – isto é,<br />

a nossa virtude –, outrora submergida<br />

pelo lodo.<br />

O Sagrado Coração de Jesus é o<br />

Patriarca, a meta, o impulso originário,<br />

a tradição, o começo e o fim, o<br />

alfa e o ômega de tudo o que se fez<br />

depois d’Ele.<br />

A Santa Igreja Católica é o Corpo<br />

Místico de Cristo. Ela reluz de tudo<br />

quanto há n’Ele, quando vista na sua<br />

autenticidade e não em contrafações<br />

miseráveis como verificamos hoje.<br />

Sagrado Coração de Jesus - Catedral de Santiago, Innsbruck, Áustria<br />

Então, ver a Santa Igreja Católica<br />

é ver a Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Assistindo a uma Missa, percebemos<br />

o esplendor da Liturgia onde reluz<br />

a santidade divina de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

Daí nascem todas as condições<br />

para uma sociedade virtuosa. E onde<br />

há uma sociedade virtuosa, meio<br />

como causa, meio como efeito, o tecido<br />

patriarcal se compõe. Está feita<br />

a Cristandade.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/01/1986)<br />

Francisco Lecaros<br />

16


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Equilíbrio de alma<br />

A Revolução Industrial atentou contra as virtudes cardeais,<br />

especialmente a da temperança. Ela promoveu o rompimento<br />

de uma série de equilíbrios, que corresponde ao nascedouro<br />

de uma revolução neurológica e psiquiátrica.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Uma das razões pelas quais<br />

o inocente vê as coisas<br />

com clareza está no fato<br />

de ter ele, na sua ordenação, uma<br />

propensão natural para considerá-<br />

-las em suas hierarquias. Como a<br />

pessoa inocente, na própria retidão<br />

de sua natureza, mesmo sem ter explicitado<br />

nada, é dotada de espírito<br />

muito hierárquico, tende a não misturar<br />

uns elementos com os outros,<br />

nem agrupá-los erradamente, ou seja,<br />

a não fazer confusão.<br />

Inocência e espírito<br />

hierárquico<br />

Em geral a confusão dos assuntos<br />

provém, em larga medida, da falta<br />

de espírito de hierarquia. Ora, esse<br />

espírito emana da inocência, porque<br />

o inocente distingue muito bem entre<br />

o essencial e o acidental, aquilo<br />

que tem maior ou menor importância.<br />

Como ele não tem apegos nem<br />

movimentos desordenados, o seu<br />

olhar é hierárquico e as suas apetências<br />

ordenadas. Por isso, ele toma<br />

uma posição facilmente anti-igualitária.<br />

Então, esse papel do espírito hierárquico<br />

– visto fora do eterno problema<br />

das classes e hierarquias so-<br />

17


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Francisco Lecaros<br />

Isabel, a Católica, sendo proclamada Rainha<br />

Alcácer de Segóvia, Espanha<br />

cidades. Sempre que se quer ou rejeita<br />

uma coisa intemperantemente,<br />

a própria intemperança daquela<br />

posição de alma suscita o desejo de<br />

uma velocidade falsa. A preguiça dá<br />

a vontade das falsas lentidões e, pelo<br />

contrário, os apegos favorecem<br />

o gosto das velocidades super-rápidas,<br />

excessivas e contínuas. O indivíduo<br />

temperante gosta das velocidades<br />

proporcionadas à rapidez e à<br />

lentidão do raciocínio e da elaboração<br />

ordenada, normal do ser humano,<br />

apreciando o verdadeiro repouso<br />

como a verdadeira ação, dentro das<br />

medidas tomadas em função da natureza<br />

dele.<br />

Há uma velocidade na qual a natureza<br />

do indivíduo legitimamente se<br />

compraz, e que pode vir a ser uma espécie<br />

de superpotência dele. Existe<br />

também uma lentidão na qual ele se<br />

regozija e que é uma grande capacidade<br />

de recolhimento. Ou, o que é perfeitamente<br />

legítimo e respeitável, um<br />

homem sem esses extremos, mas com<br />

as proporções normais das coisas.<br />

Contudo, quando o homem perde<br />

a inocência, e com ela esse equilíbrio,<br />

começam a se formar nele cargas de<br />

apetência ou de recusa da ação, que<br />

já correspondem à ação pela ação<br />

ou à inércia pela inércia. De maneiciais,<br />

formas políticas e sociais de organização<br />

– chega a este ponto: a inocência<br />

é a condição para a formação<br />

do verdadeiro espírito hierárquico.<br />

Disso decorre outra consequência.<br />

Em toda sociedade verdadeiramente<br />

hierárquica paira certa inocência,<br />

enquanto nas sociedades niveladas,<br />

igualitárias, não.<br />

Portanto, no tema das desigualdades,<br />

é muito legítimo considerar<br />

o lado socioeconômico ou político;<br />

ademais, é um campo muito tangível,<br />

onde se pegam com facilidade as<br />

coisas como são, porém não é o mais<br />

importante. O aspecto principal é ter<br />

o espírito hierárquico, essa inocência<br />

hierarquizante que paira nos lugares<br />

onde esse espírito está dominando<br />

adequadamente.<br />

Eu não acredito, por exemplo,<br />

que uma pessoa entregue à lubricidade<br />

possa ter um verdadeiro espírito<br />

hierárquico. Se tiver, é por hábitos<br />

mentais oriundos do tempo em<br />

que ela era inocente. Contudo, aquilo<br />

está deperecendo como um sorvete<br />

ao Sol: subsiste durante algum<br />

tempo.<br />

Assim, quando demonstramos<br />

tanto empenho em que a nota hierárquica<br />

refulja sobre toda a sociedade,<br />

mais do que a ordenação hie-<br />

rárquica das coisas, estamos desejando<br />

a refulgência desse espírito sobre<br />

todos os homens. Ora, é precisamente<br />

este espírito que a Revolução procura<br />

eliminar.<br />

Isso se liga ao assunto do qual vínhamos<br />

tratando 1 .<br />

Temperança e velocidade<br />

No fundo da alma humana inocente<br />

estão contidas todas as formas<br />

possíveis de temperança. Uma<br />

dessas formas está ligada às velo-<br />

Marcha comunista em 1917<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

18


a que o indivíduo adquire um gosto<br />

pela rapidez, não por ela o conduzir<br />

diretamente ao fim, mas pela velocidade<br />

enquanto tal. Do mesmo modo,<br />

a lentidão não o agrada pelo gosto da<br />

calma, mas pela pachorra em si.<br />

fecristovao (CC3.0)<br />

Delírio pela mudança<br />

Durante o período desde o Humanismo<br />

ou a Renascença até o começo<br />

da Revolução Industrial, no fim do<br />

século XVIII – naturalmente se nota<br />

muito mais depois da Revolução<br />

Francesa –, há o rompimento de uma<br />

porção de velhos equilíbrios, que corresponde<br />

ao nascedouro de uma revolução<br />

neurológica e psiquiátrica.<br />

No indivíduo pré-Revolução Industrial,<br />

por haver nele apetências desregradas,<br />

começam se desencadear<br />

apegos fabulosos, os quais ele quer<br />

satisfazer, mas que são reprimidos<br />

pelas lentidões do compasso da vida.<br />

Então, ele tem uma vontade doida de<br />

velocidades desenfreadas.<br />

Isso gera um efeito curioso: na Revolução<br />

Industrial, as descobertas<br />

que chamam mais a atenção do público<br />

e o inebriam mais são as que permitem<br />

correr. Quer dizer, as supervelocidades<br />

inebriantes empolgam mais<br />

do que, por exemplo, o encontro de<br />

um novo remédio ou de um sistema<br />

de fabricar e pôr ao alcance de muito<br />

mais gente travesseiros cômodos.<br />

Assim, a primeira coisa que salta<br />

aos olhos na Revolução Industrial é<br />

a mania da velocidade em todos os<br />

aspectos, e foi para onde a atenção,<br />

a confiança e o entusiasmo do público<br />

por essa Revolução mais se acentuou.<br />

Isso se deu por causa da carga<br />

excessiva de calma que as pessoas<br />

carregavam anteriormente.<br />

O gosto pela trepidação entra aí<br />

como uma espécie de subproduto do<br />

horror à inação. Como a pessoa tem<br />

aversão à inércia, ela tem horror a<br />

que zonas de sua alma não estejam<br />

continuamente solicitadas a alguma<br />

forma de impressão ou de ação.<br />

Entretanto, esse desejo de trepidação<br />

é algo colateral. A meu ver,<br />

uma prova disso está no seguinte:<br />

tão logo são fabricados transportes<br />

velozes com motores muito barulhentos,<br />

os próprios fabricantes se<br />

põem a inventar artefatos que diminuam<br />

o barulho. E às vezes se sentem<br />

triunfantes quando atenuam ou<br />

eliminam o ruído, mas nunca quereriam<br />

diminuir a velocidade.<br />

Há uma espécie de adoração do<br />

movimento dentro disso, relacionada,<br />

por sua vez, com a mania de fazer<br />

que é, ela mesma, a mania de<br />

mudar. O delírio pela mudança para<br />

satisfazer o gosto de novidade marca<br />

não só a Revolução Industrial, mas a<br />

mentalidade dos que vivem imersos<br />

nessa Revolução.<br />

Idade Média: explosão<br />

de vitalidade<br />

Se buscarmos as causas mais profundas<br />

dessa transformação veremos<br />

que, da vida aventureira da Idade<br />

Média para a existência cada vez<br />

mais caseira dos séculos posteriores,<br />

houve um acúmulo excessivo de securitarismo.<br />

O desaparecimento, a<br />

fuga do heroísmo de dentro da existência<br />

humana tinha que produzir<br />

algum desequilíbrio nesse sentido.<br />

É fácil compreender como a reação<br />

proveniente desse desequilíbrio tenha<br />

produzido, forçosamente, a mania<br />

da velocidade.<br />

Mas não é a única razão. A meu<br />

ver, a causa preponderante está nas<br />

apetências desregradas.<br />

A posição verdadeira preconizada<br />

por nós é, portanto, de um equilíbrio<br />

no ponto de partida que se chama<br />

inocência, e entra no nosso conceito<br />

de Contra-Revolução, de hierarquia,<br />

de pureza, etc. É uma espécie<br />

de temperança primeira e fundamental.<br />

Para compreendermos todo o estrago<br />

perpetrado pela Revolução Industrial,<br />

seria preciso termos a ideia<br />

desse equilíbrio de alma primeiro,<br />

originário, pré-existente à essa Re-<br />

19


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Leopoldo Werner<br />

como um inerte,<br />

mas um superativo.<br />

Na Idade Média<br />

era tal a capacidade<br />

de contemplação<br />

e de<br />

ação ao mesmo<br />

tempo, que o povo,<br />

ao construir<br />

uma catedral, tinha<br />

uma noção<br />

global, implícita<br />

ou explícita, de<br />

como ela seria.<br />

Eles a contemplavam,<br />

mais ou menos,<br />

como os judeus<br />

a Terra Prometida.<br />

Passavam<br />

gerações trabalhando<br />

naquele<br />

edifício sagrado,<br />

com calma, sem<br />

exigir vê-lo concluído.<br />

Morriam<br />

em paz com a catedral<br />

incompleta,<br />

mas cuja edi-<br />

Catedral de Reims, França<br />

ficação eles, ativa<br />

volução, já meio estragado pelo período<br />

que vai do Humanismo a Dan-<br />

realizar. Vejo nisso um equilíbrio ex-<br />

e contemplativamente, procuraram<br />

ton, e que só se vê inteiramente na traordinário! A eternidade era uma<br />

Idade Média.<br />

das dimensões do tempo para eles.<br />

Eu compreendo bem terem havido<br />

exceções no mundo medieval. descomunais, mas queriam produzir<br />

Aliás, os medievais faziam coisas<br />

Entretanto, de um modo geral, existiram<br />

pujanças e atividades descon-<br />

estático, e nem um pouco a do ester-<br />

a impressão do proporcionado, do<br />

certantes que não consistiam na intemperança<br />

pela intemperança, nem estertor continuamente em tudo.<br />

tor. A arte moderna visa produzir o<br />

na fobia do repouso, mas correspondiam<br />

à explosão da vitalidade de um que eles faziam eram voltados a pro-<br />

As cores dos vitrais e tudo o mais<br />

mundo extraordinariamente fecundo,<br />

cuja temperança consistia em ção, a qual coabita harmonicamente<br />

duzir no homem uma forma de sensa-<br />

entrar opulentamente dentro do jogo<br />

da vida, pelo desejo saudável de tas, mas não contraditórias. Essa é a<br />

com todas as outras sensações opos-<br />

gastar-se a si próprio, dando origem, melhor noção de repouso. Ao contemplarmos<br />

as coisas medievais, sen-<br />

por sua vez, ao gosto dos repousos<br />

profundos. Por vezes, essa vitalidade<br />

partia para as grandes contem-<br />

dor, de candura e de profundidatimos<br />

nossos anseios de alegria e de<br />

plações. E o homem muito ativo venerava<br />

o muito contemplativo, não atendidos ao mesmo tempo, de<br />

de, de ação e de contemplação meio<br />

ma-<br />

neira a ter uma espécie de plenitude<br />

onde a nossa vitalidade atinge o auge.<br />

Galope para a loucura<br />

A Revolução Industrial não tem<br />

essa meta, mas pelo contrário rompe<br />

com ela.<br />

No século XIX houve quem se<br />

perguntasse, em presença da Revolução<br />

Industrial, se ela atentava contra<br />

as virtudes teologais, e chegaram<br />

à conclusão que não. Porém, ela<br />

atentava contra as virtudes cardeais,<br />

e isso eles não viram.<br />

Ficam dados, assim, esses pressupostos<br />

para uma análise da Revolução<br />

Industrial, que são um ponto de<br />

equilíbrio interno do homem, ou seja,<br />

a inocência, na qual, proporcionadamente<br />

com a natureza humana,<br />

o homem sente, conforme as circunstâncias,<br />

que todas suas paixões,<br />

todos os seus instintos e impulsos<br />

da alma podem aplicar-se e desenvolver-se,<br />

mas nunca em detrimento<br />

do equilíbrio entre si. Cada qual tem<br />

um dinamismo por onde se move<br />

sem violar os demais, sem procurar<br />

ocupar um espaço que não lhe é devido,<br />

e tendo seu gáudio em chegar<br />

adequadamente à plena intensidade<br />

de si mesmo nas ocasiões em que isso<br />

se justifica. E fora disso, tendo um<br />

gáudio em ocupar a proporção devida<br />

na sã psicologia humana, o que é<br />

a aplicação, nessa correlação interna,<br />

dos princípios que regem a sociedade<br />

hierárquica, harmônica, equilibrada,<br />

pura e sacral.<br />

A violação desse equilíbrio fundamental<br />

é o ponto de partida de todas<br />

as desordens, e produz esse galope para<br />

a loucura que vemos hoje em dia.<br />

A Revolução Industrial é, portanto,<br />

um modo para produzir uma espécie<br />

de desordem daquilo que, no sentido<br />

literal da expressão, seria a infraestrutura<br />

do pensamento humano, o pressuposto<br />

pessoal, psicológico de equilíbrio<br />

que deve ter o homem, quando<br />

ele se põe a pensar, a querer, a viver.<br />

20


Juan Manuel Besnes e Irigoyen (CC3.0)<br />

Tendências: a ordem<br />

natural, o sobrenatural<br />

e o preternatural<br />

O mundo das tendências não existe<br />

apenas na ordem natural. Essas<br />

tendências são muito visitadas pela<br />

graça, que produz no homem esse<br />

equilíbrio de que eu falo.<br />

Também a tendência para os desequilíbrios<br />

é muito visitada pelo<br />

preternatural, e o homem também<br />

sente algo do demônio dentro disso.<br />

Daí decorre que, historicamente,<br />

em cada indivíduo não há apenas o<br />

fenômeno natural. Ele teve sensações<br />

mais ou menos místicas que o<br />

levaram a conhecer a graça, e essas<br />

sensações ele recusou por uma coisa<br />

do demônio, e os dois polos estão<br />

implantados na alma dele; e a vida<br />

inteira ele tem uma atração da graça<br />

e do demônio, ou uma fobia do<br />

demônio e da graça, que estão no<br />

fundo da Revolução tendencial dele,<br />

fazendo a luta concomitantemente<br />

com os elementos naturais, interpenetrando-se<br />

e dando o fundo das<br />

origens da Revolução ou da Contra-<br />

-Revolução.<br />

Entretanto, o Humanismo deu ao<br />

homem uma fobia do sobrenatural e<br />

uma tendência ao comprazimento do<br />

natural que, no fundo, tocava nesse<br />

ponto. Então, o demônio entrou.<br />

O fim da Idade Média foi precedido<br />

por uns cem ou duzentos anos de<br />

decadência, antes de aparecer o contrário<br />

dela, que é o fruto do extremo<br />

da decadência dela mesma. O período<br />

da cavalaria andante, dos menestréis,<br />

dos jograis, dos romances<br />

de amor eram fugas do sobrenatural<br />

graduais que preparavam o momento<br />

em que viria a rejeição. O Humanismo<br />

é, portanto, o brado de revolta<br />

final de uma longa evolução anterior.<br />

Em alguns ambientes entrava o<br />

mal e começava a produzir esse desequilíbrio.<br />

Os bons se deixavam<br />

tentar, tiveram um pequeno esmorecimento<br />

anterior ao pecado. Veio a<br />

tentação, eles caíram.<br />

Tendo sentido a ação da graça e<br />

do demônio dentro de si, o homem<br />

percebe que os meros padrões naturais<br />

de equilíbrio não lhe bastam. Se<br />

ele busca esse equilíbrio, quando encontra<br />

a Igreja Católica ele procura<br />

discernir isso nela e amá-la por essa<br />

causa, e fazer com que isso se generalize<br />

por sua alma.<br />

Embora os estilos que foram penetrando<br />

sucessivamente na arte religiosa<br />

terem sido cada vez menos ricos<br />

disso, houve um fenômeno pelo<br />

qual, tomando por pretexto instrumentos<br />

de expressão material menos<br />

idôneos, entretanto a graça continuava<br />

a fazer sentir integralmente<br />

esse equilíbrio dela.<br />

Portanto, essa impressão de equilíbrio<br />

proveniente da graça, posso<br />

dar testemunho de que senti em<br />

todas ou quase todas as igrejas onde<br />

estive. Com mais intensidade em<br />

umas, menos noutras, com muito<br />

mais intensidade no estilo medieval,<br />

evidentemente.<br />

Isso se aplica às pessoas também.<br />

Quer dizer, os próprios clérigos tinham<br />

um certo carisma no qual algo<br />

disso transparecia.<br />

De maneira<br />

que, apesar de<br />

talvez eles terem<br />

Meister des Codex Manesse (CC3.0)<br />

advertido pouco<br />

a respeito da Revolução<br />

nas tendências,<br />

enquanto<br />

contrária às virtudes<br />

cardeais, a<br />

Igreja irradiou esse<br />

equilíbrio continuamente.<br />

v<br />

(Extraído de<br />

conferência de<br />

20/8/1986)<br />

1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> n. 226, janeiro<br />

de 2017,<br />

p. 9-13<br />

21


Andrea Barbiani (CC3.0)<br />

C<br />

alendário<br />

dos Santos – ––––––<br />

São Pedro Damião<br />

1. São Sigisberto III, rei (†656). Filho<br />

do rei merovíngio Dagoberto I.<br />

Construiu os mosteiros de Stavelot,<br />

de Malmedy, na Bélgica. Distribuiu<br />

esmolas às igrejas e aos pobres. Morreu<br />

em Metz, França, aos 26 anos.<br />

2. Apresentação do Senhor.<br />

Santa Joana de Lestonnac, viúva<br />

(†1640). Após a morte de seu esposo,<br />

fundou em Bordeaux, França, a Sociedade<br />

das Filhas de Nossa Senhora,<br />

à imitação da Companhia de Jesus,<br />

para formação da juventude feminina.<br />

3. São Brás, bispo e mártir<br />

(†c. 320).<br />

Santo Oscar, bispo (†865).<br />

4. Santa Joana de Valois, rainha<br />

(†1505). Ver página 2.<br />

Santo Isidoro de Pelúsio, presbítero<br />

(†c. 449). Ver página 31.<br />

5. V Domingo do Tempo<br />

Comum.<br />

Santa Águeda, virgem e<br />

mártir (†c. 251).<br />

Beata Isabel Canori<br />

Mora, mãe de família<br />

(†1825). Sofreu com paciência<br />

e caridade a infidelidade<br />

e maus tratos de um<br />

mau esposo. Ingressou na<br />

Ordem Terceira da Santíssima<br />

Trindade, em Roma,<br />

oferecendo sua vida pela<br />

conversão dos pecadores.<br />

6. São Paulo Miki e<br />

companheiros, mártires<br />

(†1597).<br />

São Brinolfo Algotsson,<br />

bispo (†1317). Bispo<br />

de Skara, na Suécia, célebre<br />

por sua ciência e dedicação<br />

à Igreja.<br />

7. Beato Pio IX, Papa<br />

(†1878). Proclamou os<br />

dogmas da Imaculada Conceição e da<br />

Infalibilidade Pontifícia. Estimulou o<br />

florescimento das Congregações religiosas<br />

e convocou o Concílio Vaticano<br />

I.<br />

8. São Jerônimo Emiliani, presbítero<br />

(†1537).<br />

Santa Josefina Bakhita, virgem<br />

(†1947).<br />

Beata Josefina Gabriela Bonino,<br />

virgem (†1906). Fundadora da Congregação<br />

da Sagrada Família de Savigliano,<br />

Itália.<br />

9. São Rainaldo, bispo (†1222).<br />

Monge camaldulense na abadia de<br />

Fonte Avellana, exerceu o ministério<br />

episcopal em Nocera, Itália, conservando<br />

os hábitos da vida monástica.<br />

10. Santa Escolástica, virgem<br />

(†c. 547).<br />

Beato José Sánchez del Río, mártir<br />

(†1928). Jovem de 14 anos morto<br />

com um tiro na cabeça durante a<br />

Guerra dos Cristeros, em Cotija, México,<br />

após sofrer com sobranceria inúmeros<br />

tormentos. Expirou sobre uma<br />

cruz traçada por ele no solo com o<br />

próprio sangue.<br />

11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />

Santa Sotéria, virgem e mártir<br />

(†c. 304). Por amor à Fé, renunciou às<br />

honras e riquezas de sua nobre estirpe<br />

e, recusando-se a imolar aos ídolos, foi<br />

martirizada à espada, em Roma.<br />

12. VI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Bento de Aniane, abade (†821).<br />

Educado na corte de Carlos Magno,<br />

fez-se monge sob a regra beneditina e<br />

erigiu um mosteiro em Kornelimünster,<br />

Alemanha.<br />

13. São Martiniano, eremita<br />

(†c. 398). Viveu como eremita próximo<br />

a Cesareia, na Palestina. Mais tarde<br />

viajou a Atenas, Grécia, onde faleceu.<br />

14. São Cirilo, monge (†869) e São<br />

Metódio, bispo (†885).<br />

São João Batista da Conceição<br />

Garcia, presbítero (†1613). Religioso<br />

trinitário, empreendeu a renovação<br />

da Ordem e a defendeu com ardor em<br />

meio a dificuldades e tribulações, em<br />

Córdoba, Espanha.<br />

15. Santo Onésimo (†séc. I). São<br />

Paulo o acolheu como escravo fugitivo<br />

e na prisão o gerou como filho na<br />

Fé em Cristo, como ele mesmo escreveu<br />

a seu amo Filêmon.<br />

16. Beato Francisco Toyama Jintaró,<br />

mártir (†1624). Nobre samurai<br />

cuja vida cristã exemplar, influenciou<br />

na conversão de muitas pessoas. Por<br />

não negar a Fé, foi decapitado em Hiroshima,<br />

Japão.<br />

22


––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />

GFreihalter (CC3.0)<br />

17. Sete Santos Fundadores dos<br />

Servitas (†1310).<br />

São Flaviano, bispo (†449). Bispo<br />

de Constantinopla, que por defender<br />

a Fé Católica no Segundo Concílio de<br />

Éfeso, foi agredido pelos partidários<br />

de Dióscoro, morrendo pouco depois<br />

no exílio.<br />

18. São Teotônio, presbítero<br />

(†c.1162). Após duas peregrinações<br />

à Terra Santa, fundou em Coimbra,<br />

Portugal, a Congregação dos Cônegos<br />

Regrantes da Santa Cruz.<br />

19. VII Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Lúcia Yi Zhenmei, virgem e<br />

mártir (†1862). Decapitada na aldeia<br />

de Kaiyang, China por ter confessado<br />

sua Fé.<br />

São Sigisberto III<br />

20. São Serapião, mártir (†c. 248).<br />

No tempo do imperador Décio, teve<br />

de suportar cruéis suplícios e depois<br />

foi precipitado do alto de<br />

sua própria casa, em Alexandria,<br />

Egito.<br />

21. São Pedro Damião,<br />

bispo e Doutor da Igreja<br />

(†1072).<br />

Beato Noël Pinot, presbítero<br />

e mártir (†1794). Pároco<br />

de Le Louroux-Béconnais,<br />

perto de Angers, guilhotinado<br />

durante a Revolução<br />

Francesa.<br />

22. Festa da Cátedra de São<br />

Pedro Apóstolo.<br />

Beata Maria de Jesus d’Oultremont,<br />

viúva (†1879). Após a morte do<br />

marido, fundou e dirigiu na Bélgica a<br />

Sociedade de Maria Reparadora, sem<br />

em nada negligenciar os cuidados maternos<br />

dos seus quatro filhos.<br />

23. São Policarpo, bispo e mártir<br />

(†c. 155).<br />

Beato Vicente Frelichowski, presbítero<br />

e mártir (†1945). Apesar de<br />

passar por várias prisões, nunca fraquejou<br />

na fé. Faleceu no campo de<br />

concentração de Dachau, Alemanha,<br />

após atender a muitos companheiros<br />

enfermos.<br />

24. Beato Marcos de Marconi, eremita<br />

(†1510). Religioso da Ordem<br />

dos Eremitas de São Jerônimo, em<br />

Mântua, Itália, levou vida de estudo,<br />

oração e mortificações.<br />

São Policarpo<br />

Gustavo Kralj<br />

25. Beata Maria Ludovica De Angelis,<br />

virgem (†1962). Italiana de nascimento,<br />

ingressou na Congregação<br />

das Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia<br />

e foi enviada à Argentina,<br />

onde se dedicou ao cuidado e formação<br />

de crianças e enfermos num hospital<br />

de La Plata.<br />

26. VIII Domingo do Tempo Comum.<br />

São Porfírio de Gaza, Bispo<br />

(†421). Filho de uma família da Tessalônica,<br />

viveu como anacoreta no<br />

deserto. Ordenado Bispo de Gaza,<br />

Palestina, abateu muitos templos dedicados<br />

aos ídolos e converteu numerosos<br />

pagãos.<br />

27. Beato José Tous y Soler, presbítero<br />

(†1871). Religioso capuchinho,<br />

fundou a Congregação das Irmãs Capuchinhas<br />

da Mãe do Divino Pastor,<br />

em Barcelona, Espanha, para a formação<br />

cristã da infância e juventude.<br />

28. Beato Carlos Gnocchi, presbítero<br />

(†1956). Fundou em Milão, Itália,<br />

a obra “Fundação Pro Juventute”,<br />

hoje chamada Obra Don Gnocchi,<br />

para ajudar aos mutilados pela Guerra<br />

e aos filhos dos sobreviventes.<br />

23


Gesta marial de um varão católico<br />

Armada del Ecuador (CC3.0)<br />

José Luís Ávila Silveira/Pedro Noronha e Costa (CC3.0)<br />

24


A batalha<br />

da caravela contra<br />

os submarinos<br />

Servindo-se de uma linguagem metafórica, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> resume o itinerário de sua luta, desde a<br />

infância, contra o pecado e a Revolução.<br />

M<br />

ais ou menos até os dez<br />

anos, quando entrei no<br />

Colégio São Luiz e comecei<br />

a tomar contato com essa miniatura<br />

da vida que é o colégio, eu tinha<br />

a existência alegre, feliz, de uma<br />

criança inocente que não enfrentara<br />

seus primeiros embates.<br />

Uma cordilheira<br />

de felicidade<br />

Vivia na felicidade da graça batismal,<br />

da inocência, tendo naturalmente<br />

o bem estar, o conforto material de<br />

uma criança colocada, não em condições<br />

de grande luxo nem de esplendor,<br />

mas muito convenientes, adequadas<br />

e confortáveis, proporcionadas<br />

ao que era natural apetecer. Nesse<br />

sentido, era uma criança que tinha<br />

tudo. Inclusive saúde normal. Assim,<br />

gozava de todos os prazeres de uma<br />

normalidade dourada, não no sentido<br />

do dinheiro, mas de uma luz de ouro<br />

dentro dessa normalidade.<br />

Mesmo no tocante ao relacionamento<br />

com as pessoas, reservada<br />

a primazia a Dona<br />

Lucilia, era um ambiente<br />

absolutamente<br />

todo feito de harmonias,<br />

mas no qual<br />

as consonâncias terrenas<br />

faziam cantar<br />

no meu espírito outras<br />

que eu não sabia<br />

bem como exprimir.<br />

Tantas alegrias,<br />

tanta felicidade vinham-me<br />

de perceber<br />

a retidão, a veracidade,<br />

a beleza,<br />

a bondade das coisas<br />

e de me sentir<br />

um com elas. Parecia-me<br />

tão natural<br />

que a vida fosse<br />

assim indefinidamente,<br />

que nem<br />

me passava pela<br />

cabeça poder ser de outra maneira.<br />

Ia se formando assim, no meu<br />

espírito, uma espécie de padrão<br />

de felicidade terrena católica que<br />

<strong>Plinio</strong>, Ilka e Rosée no Jardim da Luz<br />

consistia muito menos num passeio,<br />

num brinquedo, enfim, nessas coisas<br />

que divertem as crianças, do que em<br />

ver a retidão, a harmonia de tudo, e<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

25


Gesta marial de um varão católico<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Da esquerda para a direita: Rosée, Da. Zili, Da. Lucilia e <strong>Plinio</strong><br />

um imponderável e indescritível relacionamento<br />

disso com a alma, mais<br />

do que com o corpo.<br />

Comprazia-me ver a virtude, ou<br />

o que eu imaginava ser virtude, nos<br />

outros. As aparências eram muito<br />

mais saudáveis no mundo daquele<br />

tempo do que no de hoje. Eu imaginava,<br />

a julgar pela primeira vista, todo<br />

mundo virtuoso, e me alegrava.<br />

Havia qualquer imponderável<br />

que me falava mais do Céu, sem que<br />

eu fizesse incialmente essa correlação.<br />

Eu sentia esse imponderável e<br />

era como se existisse um outro mundo<br />

do qual este nosso não é senão a<br />

imagem. Eu acreditava no Céu, graças<br />

a Nossa Senhora, mas não fazia<br />

muito o relacionamento. Era um<br />

mundo de imaginação, de ouro, de<br />

nácar, que era a projeção deste e para<br />

o qual tudo devia tender.<br />

Tudo isso me dava uma ideia de<br />

uma cordilheira de felicidade, onde<br />

as razões de ser feliz se encaixavam<br />

umas nas outras e faziam um cortejo<br />

de felicidades.<br />

Os submarinos<br />

bombardeiam a caravela<br />

Minha situação na vida se me afigurava<br />

como a de uma linda caravela<br />

antiga a navegar com o vento soprando<br />

nas velas, tendo na proa<br />

uma imagem de Nossa Senhora, por<br />

exemplo, Regina Marium – a Rainha<br />

dos Mares –, mas que de repente levasse<br />

de um submarino uma bomba<br />

tremenda, rangesse inteira e tudo<br />

nela ameaçasse desconjuntar-se.<br />

Dir-se-ia que as velas murchavam,<br />

a madeira se encolhia, os ornatos e<br />

as esculturas fanavam, tudo perdia a<br />

cor na caravela e toda ela se crispava<br />

pela violência do golpe.<br />

Essa “bomba” foi, para mim, a súbita<br />

revelação do seguinte: “O mundo<br />

no qual você vai viver não é esse<br />

desejado por você. Ele tem algo<br />

disso, mas isso está moribundo. Pelo<br />

contrário, você vai viver num mundo<br />

que lhe oferece outra cordilheira<br />

de prazeres, e o ameaça com uma<br />

perseguição se você se manifestar de<br />

acordo com seus primeiros anseios.<br />

É preciso, portanto, entrar na cordilheira<br />

dos prazeres ilícitos e proibidos,<br />

meter-se nela completamente<br />

e dizer: ‘Vós sois minha alegria’, e<br />

fruí-la. Olhe como é gostoso! Tome!<br />

Com uma condição: abandone esse<br />

seu mundo dourado. Se você continuar<br />

nesse caminho, nós o liquidamos!”<br />

A metáfora escolhida por mim é<br />

intencional. Caravela, torpedo, bomba,<br />

submarino, são das coisas mais<br />

anacrônicas e antagônicas que possa<br />

haver. Mas é como se um homem<br />

Palácio de Queluz (CC3.0)<br />

26


Francisco Lecaros<br />

A Virgem com o Menino - Mosteiro<br />

de São Bento, Cuntis, Espanha<br />

estivesse dirigindo uma linda caravela<br />

com tropas de antigamente e, de<br />

repente, tivesse a revelação de haver<br />

submarinos com outro estilo de<br />

guerra mais potente, mais eficiente<br />

que liquida com ele. A caravela atingida<br />

pela bomba representa toda essa<br />

tradição, todo esse passado, todo<br />

esse sobrenatural que recebe esse<br />

impacto da Revolução.<br />

A caravela contra-ataca<br />

Imaginem, porém, uma caravela<br />

sui generis, não feita de madeira, mas<br />

viva. Dependeria dela dizer sim ou<br />

não ao torpedo. Se dissesse “sim”, a<br />

bomba entrava; se dissesse “não”, a<br />

bomba não entrava. Mas no momento<br />

em que ela dissesse “não”, ela veria<br />

o mar coalhar-se de submarinos,<br />

dos quais sairia o convite-gargalhada,<br />

o convite-desprezo, convite-insulto<br />

procedente de megafones míticos:<br />

“Avance, se você ousar!”<br />

Solução, concluiria ela: “Salve<br />

Rainha, Mãe de misericórdia...<br />

Não há outra saída, porque força<br />

para enfrentar não tenho. Não sou<br />

senão uma caravela. De outro lado,<br />

não quero deixar de ser caravela!<br />

Não consinto em me transformar<br />

em submarino, não quero<br />

que minhas esculturas desapareçam<br />

e o nobre lenho de que sou<br />

feita se transforme num vil metal.<br />

Não quero que meu formato<br />

– comparável ao de um imenso<br />

cisne a flutuar na superfície<br />

das águas – passe a ser o de um<br />

vil tubo à maneira de um charuto<br />

que afunda.<br />

Começam, então, todos os<br />

sofrimentos, todas as tristezas<br />

da batalha. Quantas e quantas<br />

vezes irá perguntar-se a si própria:<br />

Será bem verdade que a<br />

mim está acontecendo isso? Tudo<br />

mudou de um momento para<br />

o outro! E que terrível luta<br />

para enfrentar! Mas, de outro<br />

lado, a alternativa é clara: ou<br />

deixo de ser uma caravela que singra<br />

os mares, entre as ondas, à luz do<br />

Sol e da Lua, com a bênção de Nossa<br />

Senhora e me transformo num vil<br />

charuto; ou enfrento e sigo para a<br />

frente.<br />

Daí a necessidade de fabricar, pela<br />

experiência diante das decepções,<br />

ciladas, violências, toda uma arte<br />

“náutica” própria. Não a de Colombo,<br />

que com suas naus Santa Maria,<br />

Pinta e Niña veio descobrir a América<br />

atravessando mares desertos, onde<br />

o terror consistia apenas no deserto<br />

aquático aparentemente indefinido<br />

e infinito; mas a de navegar<br />

em um mar cheio de inimizades, perigos<br />

e ciladas de todos os lados.<br />

Qual era o segredo dessa luta?<br />

Primeiro: conservar o estandarte<br />

bem alto. Segundo: saber por onde<br />

avançar. Terceiro: avançar!<br />

Desventuras e alegrias<br />

em meio à batalha<br />

Porém, não é fácil avançar. Quanto<br />

jeito, quanto trabalho, quantas reflexões,<br />

quanta experiência e coordenação<br />

isso exige! Oh, dificuldade!<br />

Era uma desventura que tomava a<br />

vida inteira. Por vezes, eu pensava: se<br />

ao invés de estar colocado nessa situação,<br />

eu tivesse, por exemplo, um defeito<br />

físico notável, como uma perna ou<br />

um braço amputado, talvez algumas<br />

pessoas me evitassem, mas eu ainda<br />

Em pé, no centro, <strong>Plinio</strong>, pouco<br />

depois de seu ingresso nas<br />

Congregações Marianas<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

27


Gesta marial de um varão católico<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Plinio</strong> entre congregados marianos<br />

encontraria caminho por toda parte,<br />

pois ter-se-ia pena de um estropiado<br />

assim. Mas como isso é diferente, nas<br />

minhas condições, com todas as aparências<br />

da normalidade. O prestígio, a<br />

posição de família, as relações e tudo<br />

o que eu quisesse estariam ao meu alcance,<br />

mas a este preço: Você terá tudo<br />

despreocupadamente se, prostrado,<br />

adorares o demônio.<br />

Haveria lados bons, agradáveis da<br />

vida que compensassem esses sofrimentos?<br />

Seria, talvez, muito bonito<br />

se eu dissesse que não. Mas devo dizer<br />

a verdade.<br />

Tenho uma tendência natural a<br />

alegrar-me, a tomar as coisas pelo seu<br />

lado bom, dando muito valor àquilo<br />

que pode ser bom e me contentar.<br />

Por outro lado, não me sentia chamado<br />

a ser um religioso que deixa todas<br />

as coisas da Terra para levar apenas<br />

a vida de seu próprio convento. Sentia-me<br />

propenso a levar a vida<br />

de uma pessoa que percebe<br />

existir no mundo, como era naquele<br />

tempo, muita coisa apreciável,<br />

agradável, deixada pela<br />

tradição, resto de um passado<br />

que falava daquela felicidade<br />

da “caravela”. Quer dizer, vinham<br />

brisas e luzes do mar sereno.<br />

Eram as horas nas quais<br />

a caravela se rejubilava!<br />

“A Contra-Revolução<br />

é a alegria de<br />

minha alma!”<br />

Nesse sentido, Nossa Senhora<br />

me favoreceu obtendo-<br />

-me a graça de compreender<br />

bem o nexo entre todas as coisas<br />

legítimas, boas. De maneira<br />

que fruindo essas coisas, eu<br />

não o fazia pelo lado animal,<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

mas sobretudo pelo prazer de alma<br />

que elas proporcionavam.<br />

Por exemplo, o mar. Sem dúvida,<br />

ele me causava um prazer dos sentidos:<br />

estar dentro do mar, sua beleza<br />

física, o agradável da praia. Tudo<br />

isso era profundamente notado<br />

e apreciado por mim. Mas por cima<br />

disso havia uma ideia da grandeza,<br />

da vastidão, do significado simbólico<br />

do mar, de tudo aquilo para que<br />

o mar convida; a ideia de que ele me<br />

ligava à terra de todas as belezas e<br />

de todas as tradições: a Europa.<br />

Aquela onda que ali chegava, talvez<br />

tivesse batido na Torre de Belém!<br />

Quem sabe proviesse, pelo estreito<br />

de Gibraltar, da Côte d’Azur,<br />

celestial e magnificamente azul, no<br />

sul da França. Quiçá da baía de Nápoles...<br />

Teria aquela água, que eu via<br />

se mover diante de mim, passado pelo<br />

Canal da Mancha, estado no Mar<br />

do Norte, roçado icebergs mais para<br />

o norte ou mergulhado, mais para<br />

o sul, nas brumas prateadas e azuladas,<br />

representadas nas porcelanas<br />

dinamarquesas? Que maravilha!<br />

Que magnificência!<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contempla o mar, em 1993<br />

Ubatuba, São Paulo, Brasil<br />

28


Carlos Luis M C da Cruz (CC3.0)<br />

Torre de Belém<br />

Lisboa, Portugal<br />

A alegria de imaginar-me envolto<br />

por esse azul e esse prateado tinha seu<br />

suporte de realidade nos sentidos, mas<br />

se referia principalmente a estados de<br />

alma já vislumbrados por mim em menino,<br />

e que a maturação da idade foi<br />

tornando mais definidos e ricos, permitindo-me<br />

discerni-los melhor.<br />

Havia nisso uma capacidade de<br />

ser mais espiritual e, portanto, de<br />

participar da felicidade que é irmã<br />

da virtude. Porque fora do estado de<br />

graça a alma não entende nem frui<br />

essas alegrias.<br />

Assim, no meio de todas as asperezas<br />

das batalhas, de todos os episódios<br />

intrincados da luta, havia momentos<br />

nos quais eu sentia a união, a<br />

coesão da virtude com todos os prazeres<br />

ordenados nesta Terra.<br />

Revendo, como homem maduro,<br />

minha reação ante as carruagens<br />

de Versailles 1 , tenho certeza de que<br />

aquele gosto tão enfático, fruído em<br />

estado de graça, dava-me uma felicidade<br />

que me levaria a dizer: A Contra-Revolução<br />

é, na Terra, a alegria<br />

de minha alma!<br />

Marcha triunfal sobre os<br />

escombros dos submarinos<br />

Ao longo de toda a vida pode-se<br />

ser tentado a cometer pecados mortais.<br />

Nos meus primeiros embates<br />

nessa guerra contra as tentações, vinha-me<br />

instintivamente ao espírito<br />

a ideia – maturada e aprofundada<br />

mais tarde – de que, analisando apenas<br />

o grau de prazer nesta vida, o homem<br />

prevaricador é um bobo, porque<br />

todo o deleite que o pecado pode<br />

dar não é comparável a essa felicidade<br />

vinda da retidão do sentir e<br />

do fruir o universo, essa integridade<br />

da alma voltada para a virtude e para<br />

Deus.<br />

Isso me levava a concluir: o felizardo<br />

sou eu! Não segundo os critérios<br />

do mundo, ou seja, sem luta e<br />

sofrimento. Eu vergo sob o peso da<br />

luta e quase racho sob o fardo do sofrimento.<br />

Mas há um lado da realidade<br />

para a qual eu olho e minha alma<br />

se expande inteira.<br />

Quem se entrega a uma vida pecaminosa<br />

tem fogachos de deleites<br />

físicos, estremecimentos, frêmitos de<br />

prazeres sensíveis que passam. Mas<br />

sente, depois, o lixo e horror de sua<br />

situação. O que o demônio promete,<br />

isso mesmo é o que ele quer tirar.<br />

Ele oferece, com o pecado, a felicidade,<br />

mas o pecador experimenta<br />

a frustração.<br />

Essa verdade tornou-se inteiramente<br />

patente para mim, com sonoridades<br />

de marcha triunfal, quando<br />

deixei o mundo e entrei para o movimento<br />

católico. Isso se estendeu,<br />

atingiu um ápice com minha eleição<br />

para deputado. Conservou-se muito<br />

alto na minha condição de professor<br />

na Faculdade de Direito, em<br />

cujas cátedras famosas, veneradas<br />

por São Paulo inteira, eu lecionava<br />

para alunos quase de minha idade.<br />

Ademais, liderava um movimento<br />

religioso, cuja importância na vida<br />

temporal ia ficando cada vez mais<br />

clara aos olhos de todo mundo, e isso<br />

ainda em minha extrema mocidade.<br />

Era uma vitória! Propriamente a<br />

marcha triunfal sobre os escombros<br />

dos submarinos.<br />

29


Gesta marial de um varão católico<br />

www.nmm.ac.uk (CC3.0)<br />

“O estandarte está no<br />

alto e o dia da justiça<br />

está chegando!”<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Assim foi até o momento em que<br />

comecei a notar os problemas denunciados<br />

em meu livro Em Defesa<br />

da Ação Católica 2 , ou seja, a serpente<br />

imunda que se esgueirava, difundindo<br />

a sonoridade ruim dos seus<br />

guizos, com sua dança lúbrica e indecente,<br />

no salão magnífico, nobre como<br />

um tabernáculo, da Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana. Travaram-se,<br />

então, outros combates.<br />

Restava, por fim, uma coisa muito<br />

importante: por mais que caíssem<br />

as pedras, por mais que o mar se tornasse<br />

turvo e revolto, se a caravela<br />

não afundasse, ela constituía parte<br />

marcante no panorama, e era um<br />

pedestal digno para o estandarte que<br />

ela mantinha bem alto.<br />

Continuava, portanto, a haver no<br />

cenário da luta um lugar de honra<br />

para esse pedestal. Enquanto o estandarte<br />

ficasse içado bem no alto da<br />

caravela, ele seria honrado ad majorem<br />

Dei gloriam, ad majorem Mariæ<br />

gloriam, ad majorem Ecclesiæ gloriam<br />

3 . Isso feito, o navegar da caravela<br />

se justificava por si. Para frente!<br />

Vieram, mais tarde, outras compensações:<br />

a caravela, que outrora navegava<br />

sozinha, viu aparecer junto a si<br />

escaleres que constituíam seu ornato e<br />

sua alegria. Restava ainda a felicidade<br />

de ver as “naus” se multiplicando.<br />

Em determinado momento, a integridade<br />

física da “caravela”, um desastre<br />

a levou... 4 No total, convivendo<br />

com a dor, uma alegria se conserva.<br />

Essa alegria, qual é? Ainda que nenhuma<br />

outra restasse, esta permaneceria:<br />

o estandarte está no alto e o dia<br />

da justiça está chegando! v<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/4/1981)<br />

1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 17, p. 28-29.<br />

2) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 129, p. 19-20.<br />

3) Do latim: Para a maior glória de Deus,<br />

para a maior glória de Maria, para<br />

a maior glória da Igreja.<br />

4) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se refere ao desastre de automóvel<br />

sofrido por ele em 3 de fevereiro<br />

de 1975.<br />

30


Hagiografia<br />

Modos de tratar<br />

os pecadores<br />

Aos pecadores que se<br />

arrependem de suas faltas<br />

devemos tratar com doçura.<br />

Mas aos que não sentem<br />

pesar de suas culpas e<br />

são petulantes, é preciso<br />

mostrar toda firmeza para<br />

quebrar seu orgulho.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

V<br />

amos tratar de Santo Isidoro<br />

de Pelúsio, grande lutador<br />

contra as heresias, que<br />

viveu no século V.<br />

Vingar a injúria<br />

feita a Deus<br />

Um sofista, Asclépio, em uma de<br />

suas cartas a Santo Isidoro, recomendava-lhe<br />

que moderasse sua linguagem.<br />

Então respondeu o Santo:<br />

Não creias que mudarei de tom e<br />

que me tornarei um fraco bajulador.<br />

Ao contrário, ou cessas de me dar tais<br />

conselhos ou eu te expulsarei do número<br />

de meus amigos.<br />

Que admirável! Isto é o cumprimento<br />

do preceito de Nosso Senhor,<br />

constante do Evangelho: “Seja vossa<br />

Santo Isidoro de Pelúsio<br />

31


Hagiografia<br />

Sergio Hollmann<br />

linguagem sim, sim, não, não!” (Mt<br />

5, 37). Esse Asclépio recomendou<br />

a Santo Isidoro que atacasse menos<br />

fortemente os arianos e obteve essa<br />

resposta. Ou seja, se quiser me dar<br />

um conselho idiota que importa uma<br />

traição à causa católica, eu o corto<br />

do número dos meus amigos.<br />

Trecho de uma carta de Santo Isidoro<br />

ao Bispo de Teón:<br />

Somos igualmente culpados. Tanto<br />

quando vingamos nossas injúrias<br />

como também quando não sentimos<br />

as que são feitas a Deus. Tratando-se<br />

de nós, usemos de toda a indulgência<br />

quando nos ofenderem. Entretanto se<br />

foi Deus ultrajado, não devemos suportar.<br />

Ele diz que há duas formas de<br />

culpa, em matéria de injúrias: uma<br />

quando nos injuriam pessoalmente e<br />

nós nos vingamos; não devemos nos<br />

vingar das injúrias que nos fazem.<br />

Outra forma de culpa é quando não<br />

vingamos as injúrias feitas a Deus. A<br />

essas injúrias nós devemos vingar; é<br />

uma obrigação. Essas são palavras<br />

de um Santo canonizado pela Igreja<br />

para servir de modelo para nós.<br />

É preciso tremer de indignação<br />

quando se vê Deus injuriado.<br />

Tremer quer dizer estremecer de<br />

indignação.<br />

Vede, entretanto, como somos fracos.<br />

Somos sensíveis a ponto de não<br />

querer perdoar nossos inimigos, e só<br />

temos doçura com aqueles que se elevam<br />

contra Deus.<br />

Moisés não agia assim, embora<br />

fosse o mais suave dos homens. Ele<br />

não deixou de se encolerizar contra<br />

os israelitas quando fizeram o bezerro<br />

de ouro, e sua cólera nessa ocasião foi<br />

bem mais santa do que toda a doçura<br />

que acaso houvesse mostrado. Elias<br />

levantou-se contra os idólatras. João<br />

Batista contra Herodes. São Paulo<br />

contra Elimas. Isto sempre para<br />

vingar a injúria feita a Deus.<br />

Quanto a eles, esqueciam-se<br />

sem dificuldade das injúrias<br />

que lhes eram dirigidas.<br />

É verdade que Deus é poderoso<br />

bastante para Se fazer justiça,<br />

mas Ele quer que as pessoas<br />

de bem detestem o pecado e o<br />

façam detestar. E é nesta conduta de zelo<br />

que os Santos faziam consistir a virtude<br />

e a verdadeira Filosofia.<br />

Um pequeno exame<br />

de consciência<br />

Santo Elias - Paróquia<br />

São João da Cruz, Alba<br />

de Tormes, Espanha<br />

O que Santo Isidoro acaba<br />

de dizer, em duas palavras,<br />

é o seguinte: era bom que as<br />

pessoas a quem ele se dirigia<br />

vissem como eram fracas. Diz<br />

ele:<br />

Vede, entretanto, como somos<br />

fracos.<br />

Esse é o modo antigo de<br />

dizer “como vocês são fracos”.<br />

É muito desagradável<br />

chegar num auditório<br />

e declarar: “Vocês são fracos,<br />

vocês têm tais defeitos.”<br />

Então, é uma maneira<br />

educada de dizer “nós somos<br />

fracos”. É claro que o Santo não<br />

era fraco, mas o modelo de fortaleza.<br />

Entretanto, por bondade se colocava<br />

no meio dos outros.<br />

Lembro-me de um Santo que pregava<br />

para leprosos e, quando falava<br />

com eles, dizia “Nós leprosos…”,<br />

porque fica muito desagradável afirmar<br />

“vocês leprosos”. Dá a impressão<br />

que empurra de lado...<br />

Então Santo Isidoro dizia “somos”.<br />

Mas não devemos supor que um Santo<br />

pudesse ter essa fraqueza; é impossível,<br />

a Igreja não o teria canonizado.<br />

Vou pôr na linguagem que exprima<br />

o fundo das coisas: “Vede como sois<br />

fracos, vós sois sensíveis a ponto de<br />

não querer perdoar vossos inimigos.”<br />

Quer dizer, “Quando vos fazem uma<br />

ofensa pessoal, ficais muito sentidos,<br />

e não conseguis perdoar. Entretanto,<br />

contra aqueles que ofendem a Deus,<br />

vós apenas tendes doçura.”<br />

Sergio Hollmann<br />

Moisés - Basílica da Estrela,<br />

32 Lisboa, Portugal


É o caso de fazermos aqui um pequeno<br />

exame de consciência.<br />

Nos quatro ou cinco últimos dias, é<br />

impossível que alguém não nos tenha<br />

feito uma ofensa, por pequena que seja,<br />

um atrito qualquer. Nós vimos pecados<br />

contra Deus de toda ordem,<br />

basta sair à rua. O que mexeu mais<br />

com os nossos nervos: o pecado contra<br />

Deus ou a desatenção feita a nós?<br />

Esse é um bom exame de consciência.<br />

Nesses últimos dias, não teremos<br />

ficado exacerbados com alguma desatenção<br />

que nos foi feita? É bem<br />

provável... Ficamos igualmente exacerbados<br />

diante de algum pecado<br />

que presenciamos? Quem sabe se<br />

nós merecemos as palavras de Santo<br />

Isidoro de Pelúsio? É bem possível!<br />

Eu volto a dizer: é uma boa ocasião<br />

para um exame de consciência.<br />

Não se ganha todo mundo<br />

com métodos iguais<br />

Depois ele dá exemplos de Santos<br />

que não eram assim, mas violentos<br />

no castigar as ofensas feitas a Deus,<br />

e sabiam perdoar as injúrias cometidas<br />

contra eles, como por exemplo,<br />

Moisés que, sendo o mais suave<br />

dos homens, entretanto encolerizou-se<br />

com os israelitas quando fizeram<br />

o bezerro de ouro. Elias levantou-se<br />

contra os idólatras e pediu fogo<br />

do céu, que os exterminou. São<br />

João Batista indignou-se com Herodes.<br />

São Paulo com Elimas.<br />

Por quê? Porque esses eram pecadores,<br />

idólatras, homens de vida impura.<br />

Deus se indignou contra eles,<br />

e também os profetas se indignaram.<br />

Quanto às ofensas feitas a esses Santos<br />

pessoalmente, eles se esqueciam<br />

sem dificuldade.<br />

Em outra ocasião, Santo Isidoro<br />

de Pelúsio afirmou que com as pessoas<br />

de bem é preciso mostrar-se suave,<br />

paciente, humilde, mas com os<br />

arrogantes e orgulhosos deve-se saber<br />

usar um tom firme.<br />

Quer dizer, com as pessoas que<br />

veem com tristeza o mal que fizeram,<br />

podemos ser bons. Quando o indivíduo<br />

vem se jactando do mal que fez,<br />

é preciso pular em cima dele.<br />

Continua o Santo:<br />

Aqueles olham a doçura como<br />

uma virtude; eis por que devemos usá-<br />

-la para consolá-los.<br />

Quer dizer, os que se arrependem<br />

de seus pecados são pessoas inclinadas<br />

à doçura. Os que não se arrependem<br />

são petulantes e só entendem a<br />

força. É preciso mostrar-lhes toda a<br />

firmeza para quebrar seu orgulho.<br />

Com essa conduta sábia e prudente<br />

sustentamos uns e humilhamos outros.<br />

Não se ganha todo o mundo com<br />

métodos iguais.<br />

É uma esplêndida consideração.<br />

Ao pecador arrependido trata-se de<br />

um jeito; ao não arrependido, de outro.<br />

<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

7/10/1968)<br />

Gustavo Kralj<br />

Francisco Lecaros<br />

São João Batista increpando Herodes<br />

Museu de Navarra, Pamplona, Espanha<br />

Episódios da vida de São Paulo Apóstolo<br />

Basílica São Paulo Extra-muros, Roma, Itália<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

A.Savin (CC3.0)<br />

Harmonia na arte,<br />

harmonia na vida<br />

Fachada principal<br />

da Academia de<br />

Atenas, Grécia<br />

Ao considerar a arte grega, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discerne a<br />

profunda tendência desse povo para a harmonia.<br />

Dotados de bom gosto extraordinário, os gregos<br />

tinham o talento de fazer coisas lindíssimas, até<br />

imortais, sem gastar muito dinheiro. O que custa,<br />

por exemplo, levantar uma coluna? Não é muita coisa.<br />

Colunas que ficaram imortais<br />

Com um muito bom golpe de vista, eles entendiam o<br />

que precisa ter uma coluna para ser maravilhosa. Que relação<br />

deve haver entre a base e o topo, por exemplo. Ela<br />

precisa ir estreitando lentamente, de tal maneira que em<br />

cima seu diâmetro seja menor do que o da base, e o observador<br />

tenha a impressão de que a coluna é mais alta,<br />

porque afinou e está longe da vista dele.<br />

É feia a coluna gorducha em baixo e que vai ficando,<br />

de repente, mais fina. É preciso que ela vá adelgaçando-<br />

-se de tal maneira que a pessoa, à primeira vista, não perceba<br />

que ela afinou.<br />

Coluna lisa, sem graça, é um tubo que não vale nada.<br />

Deve-se fazer coluna com adornos, com reentrâncias e<br />

saliências. Que profundidade devem ter as reentrâncias,<br />

que largura os bordos das saliências para serem bonitas?<br />

Qual é o tamanho de cada gomo da coluna em comparação<br />

com a altura e a largura? Como precisa ser a base<br />

para dar a impressão de que a coluna é forte? Como deve<br />

ser o capitel para causar a impressão de que ela é graciosa?<br />

Por que razão a coluna precisa proporcionar a impressão<br />

de forte na base e graciosa no alto? Não seria bonita<br />

uma coluna graciosa na base e pesadona no alto? Não<br />

pode ser assim, a sugestão é desagradável. Uma coisa<br />

graciosa que aguenta uma pesadona é um pesadelo!<br />

Que proporção de força e de leveza deve ter uma coluna<br />

para agradar ao homem? Há colunas que ficam<br />

imortais. Às vezes, com o passar dos séculos, o templo inteiro<br />

cai, e uma coluna que reste é um monumento histó-<br />

34


Onkel Tuca! (CC3.0)<br />

G Da (CC3.0)<br />

rico, guardado hoje em dia com todo o cuidado, estudado<br />

nos álbuns de arquitetura do mundo inteiro.<br />

Que indicam essas colunas? A tendência profunda<br />

desse povo para a harmonia, a capacidade de estabelecer<br />

as relações entre os vários elementos de um todo, de<br />

maneira a ficar agradável de ver. Esta é a harmonia dentro<br />

da obra de arte.<br />

Mesmo as praças de aldeolas eram de uma beleza, de<br />

uma harmonia célebre até o fim do mundo. Os gregos viviam<br />

ladeados, inundados pela harmonia, mas uma harmonia<br />

inteligente que exigia trabalho para perceber, e<br />

era filha do desejo de perfeição.<br />

Vivacidade e distinção em ânforas de barro<br />

As ânforas de barro fabricadas pelos gregos são admiradas<br />

até hoje em todos os museus bem equipados da<br />

Europa, porque se conservaram muitas. Ânforas de uma<br />

cor de terra avermelhada com uma faixa preta em cima,<br />

na ponta mais larga da ânfora. Eles não pintavam a parte<br />

que não tinha figura, de maneira que esta ficava com a<br />

cor vermelha do barro.<br />

Eram as coisas mais comuns. Por exemplo, um homem<br />

levando um bezerro pela corda para vender no mercado.<br />

Nota-se a elegância do homem, o bezerro anda com classe<br />

e a própria corda tem uma linha extraordinária! O indivíduo<br />

que puxa o bezerro tem um estilo natural ao de um<br />

homem do campo, não é um nobre. Mas é todo distinto.<br />

Na porta da casa está a mulher esperando. É uma figura<br />

de tragédia grega: uma Penélope qualquer com aquelas<br />

saias sucessivas e aquele ar, ao mesmo tempo simples,<br />

natural e distintíssimo. De maneira que se tem a impressão<br />

de um teatro vivo. Entretanto, é apenas uma moringa<br />

comprada na feira!<br />

A harmonia na arte era a meta deles para ter harmonia<br />

na vida. <br />

v<br />

(Extraído de conferência de 11/1/1986)<br />

Ruínas do Partenon, Atenas, Grécia<br />

Ruínas do templo de Zeus, Atenas, Grécia<br />

Teatro de Herodes Ático,<br />

Acrópole de Atenas, Grécia<br />

G Da (CC3.0)<br />

qwesy qwesy (CC3.0)<br />

Andrew Baldwin (CC3.0)<br />

Vista noturna das ruínas do Partenon<br />

Giovanni Dall’Orto. (CC3.0)<br />

35


Timothy Ring<br />

Apresentação do Menino Jesus<br />

no Templo - Pro-Catedral de<br />

Santa Maria, Hamilton, Canadá<br />

A Virgem do Bom Sucesso<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo foi gerado pelo Espírito Santo em Maria Santíssima, virgem antes,<br />

durante e depois do parto. Quando a gestação tem como resultado o bom nascimento<br />

do filho, chama-se “bom sucesso”. Assim, Nossa Senhora do Bom Sucesso é o título conferido<br />

a Ela enquanto tendo dado à luz, maravilhosamente e do modo mais feliz possível, o Filho Divino<br />

que o Espírito Santo gerou em suas entranhas virginais.<br />

A Lei mosaica ordenava que todo primogênito fosse apresentado no Templo e oferecido a Deus.<br />

Embora não precisasse cumprir esse preceito, pois seu Filho era o próprio Deus, Nossa Senhora nos<br />

deu um lindo exemplo de amor e de obediência à Lei, levando o Menino Jesus ao Templo onde o Profeta<br />

Simeão O aclamou como “luz para iluminar as nações” e “sinal de contradição” (Lc 2, 32 e 34).<br />

O Bom Sucesso da Santíssima Virgem foi assim consagrado pela Apresentação do Menino Jesus no<br />

Templo.<br />

(Extraído de conferências de 2/2/1983 e 1/2/1984)

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