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O cântico do<br />
Bom Sucesso!
Francisco Lecaros David Ayusso<br />
A ufania de<br />
Santa Joana de Valois - Museu de<br />
Belas Artes, Rouen, França<br />
ser católico!<br />
Santa Joana de Valois foi desprezada<br />
por todo mundo, até pelo<br />
pai e, por fim, repudiada pelo<br />
marido. Mas ela conduziu a vida com<br />
dignidade e serenidade. Fundou uma<br />
Ordem Religiosa e governou muito<br />
bem o feudo adquirido depois de sua<br />
separação conjugal. Após sua morte,<br />
recebeu a honra dos altares.<br />
Apesar de tudo quanto pudessem<br />
dizer dela, só uma coisa importava:<br />
ela era católica, e isso bastava. Para<br />
sua segurança, seu cartão de visita<br />
estava pronto: católica apostólica romana.<br />
É um título lindíssimo!<br />
Essa ufania de ser católico é a raiz<br />
daquilo que Camões chamava “os<br />
cristãos atrevimentos”. Quando temos<br />
essa ufania é que nos atrevemos<br />
a nos lançar. Não porque sejamos<br />
mais na ordem humana dos valores;<br />
talvez até sejamos menos do que alguns.<br />
Mas isso não importa. O que<br />
tem importância é o fato de sermos<br />
católicos, termos recebido o sinal do<br />
Batismo na fronte, sermos filhos da<br />
Santa Igreja Católica Apostólica Romana.<br />
(Extraído de conferência de 15/6/1967)<br />
2
Sumário<br />
Ano XX - Nº <strong>227</strong> Fevereiro de 2017<br />
O cântico do<br />
Bom Sucesso!<br />
Na capa, Nossa Senhora do<br />
Bom Sucesso - Convento<br />
das Concepcionistas,<br />
Quito, Equador.<br />
Foto: Henry Restrepo<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.<strong>227</strong>.674.110<br />
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Tel: (11) 2238-4200<br />
Editorial<br />
4 O cântico do Bom Sucesso!<br />
Piedade pliniana<br />
5 Oração para pedir a troca de vontades<br />
Dona Lucilia<br />
6 “Vejam como estou em paz...”<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
12 Impulso do passado com vistas ao futuro - II<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
17 Equilíbrio de alma<br />
Calendário dos Santos<br />
22 Santos de Fevereiro<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
24 A batalha da caravela contra os submarinos<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum............... R$ 130,00<br />
Colaborador........... R$ 180,00<br />
Propulsor.............. R$ 415,00<br />
Grande Propulsor....... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Hagiografia<br />
31 Modos de tratar os pecadores<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
34 Harmonia na arte, harmonia na vida<br />
Última página<br />
36 A Virgem do Bom Sucesso<br />
3
Editorial<br />
O cântico do<br />
Bom Sucesso!<br />
AApresentação do Menino Jesus é um episódio único na história do Templo de Jerusalém. Maria<br />
Santíssima, acompanhada de São José, entra tendo em seus braços o Verbo encarnado. Pode-se<br />
imaginar que, nesse momento, os Anjos encheram o Templo e se puseram a cantar.<br />
Cumprido o rito da Apresentação, que consagrava o bom sucesso da Virgem-Mãe na gestação de<br />
seu Divino Filho, Ela ouve, encantada, Simeão profetizar a glória e a Cruz daquele Menino: Luz para<br />
iluminar as nações e glória de Israel; causa de queda e reerguimento de muitos, sinal de contradição,<br />
pelo qual seriam revelados os pensamentos de muitos corações (cf. Lc 2, 32; 34-35).<br />
O sucesso é filho do esforço, da dedicação e do heroísmo.<br />
Nossa Senhora do Bom Sucesso, no sentido mais amplo da palavra, é a padroeira de todos aqueles<br />
que procuram um bom sucesso para o serviço da Causa d’Ela.<br />
Todos quantos trabalhem a favor da Contra-Revolução, em última análise, esforçam-se para que<br />
desponte o sol do Reino de Maria sobre o mundo. É algo parecido com uma geração, e o nascimento<br />
desse Reino se parecerá admiravelmente com um bom, um magnífico sucesso!<br />
Sóror Mariana de Jesus Torres para ser fiel à vocação dela – uma espécie de profetiza do Bom Sucesso<br />
e do Reino de Maria – teve que passar por provações terríveis, entre as quais, sofrer por cinco<br />
anos, em sua alma, os tormentos do Inferno.<br />
Entretanto, quantas alegrias experimentava ela ao conversar com a Santíssima Virgem, passeando<br />
pelo claustro do convento como Adão com Deus no Paraíso!<br />
Durante os castigos previstos em Fátima, haverá momentos em que nos perguntaremos: “Não será<br />
o Inferno?! Nossa Senhora do Bom Sucesso, rogai por nós!” Haverá também circunstâncias nas<br />
quais sentiremos tanta alegria interior que diremos: “Já não é o Céu?! Nossa Senhora do Bom Sucesso,<br />
rogai por nós!”<br />
E especialmente nas horas mais difíceis deveremos suplicar: “Venha a nós o vosso Reino, seja feita<br />
a vossa vontade, assim na Terra como no Céu!” É o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo na sua expressão<br />
mais perfeita: o Reino de Maria!<br />
Filhos indignos, mas amorosos, transidos de enlevo, quando raiar a aurora desse Reino, poderemos<br />
dizer-Lhe: “Senhora, nós Vos apresentamos o mundo que Vós iluminais. A luz de vosso Reino é<br />
o nosso e o vosso sucesso, Minha Mãe! Vós fizestes tudo, a começar por nos obter a imerecida graça<br />
de sermos levados às fontes batismais. Que gratuidade assombrosa a desse dom!”<br />
Por fim, chegará o momento em que tudo quanto é obra da iniquidade cairá por terra e não passará<br />
de casca vil de uma cobra moribunda. Começará, então, o Reino de Maria e nós cantaremos o cântico<br />
do Bom Sucesso! *<br />
* Excertos adaptados de conferências de 2/2/1983 e 2/2/1985.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Gustavo Kralj<br />
Anunciação - Basílica de São Pedro, Vaticano<br />
Oração para pedir<br />
a troca de vontades<br />
ÓCoração Sapiencial e Imaculado de Maria, que simbolizais a mentalidade sagrada,<br />
a vontade santíssima, a perfeitíssima disciplina da Mãe de Deus, nós Vos pedimos:<br />
abri-Vos para nós.<br />
Considerai nossas mentes infiltradas de máximas revolucionárias! Tende em vista as nossas<br />
vontades debilitadas por toda espécie de maus hábitos e pressões decorrentes do ímpeto<br />
da Revolução! Olhai para a nossa sensibilidade trabalhada pelos mais nocivos fermentos do<br />
mundo satânico que a Revolução vem desenvolvendo, e tende pena de nós!<br />
Nós Vos pedimos que substituais nossas mentalidades revolucionárias, de maneira que<br />
nossos princípios reflitam, com a fidelidade perfeita, a doutrina e o espírito da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana. Trocai a nossa vontade corrompida, substituindo-a pela vossa<br />
sem mancha, sem hesitação, sem concessões! Substituí nossa sensibilidade pela vossa, ordenada,<br />
equilibrada, puríssima, em tudo obediente à vossa vontade e inteligência!<br />
Vós sois, Coração Imaculado, o Sacrário do Espírito Santo. Habitai no meu coração para<br />
que o vosso Divino Esposo habite em mim e eu seja um templo d’Ele!<br />
Dai-me, assim, ó Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, o Grand Retour tão desejado<br />
e fazei-me um discípulo perfeito vosso! Amém.<br />
(Composta provavelmente na década de 1980)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
“Vejam<br />
como estou<br />
em paz...”<br />
Devido à influência da Revolução, as pessoas têm uma<br />
espécie de intolerância para com o sofrimento, ficando<br />
inconformadas quando este se apresenta. Dona Lucilia, pelo<br />
contrário, possuía uma total conformidade com a dor. Embora<br />
sofresse muito, possuía uma doçura e uma luminosidade<br />
dentro da alma que a tornavam a mestra da resignação.<br />
ARevolução não é um fenômeno<br />
atuante apenas nas<br />
ideias, nos princípios, mas<br />
também nas tendências. Estas, por<br />
sua vez, têm subjacentes doutrinas<br />
que, precisamente por estarem subjacentes,<br />
o indivíduo tem dificuldade<br />
em conhecê-las e identificar a que<br />
doutrinas correspondem uma série<br />
de tendências sentidas por ele.<br />
Efeitos da Revolução<br />
Industrial nas almas<br />
O papel da tendência é muito especial,<br />
e cabe à graça fazer desabro-<br />
char nas almas dos homens as tendências<br />
boas. Às vezes é pelo que eles<br />
dizem, mas às vezes pelo que a graça<br />
faz sentir de modo imponderável.<br />
Por exemplo, a questão da música<br />
sacra. Esta pode ser tocada como<br />
melodia apenas, e não com palavras,<br />
mas assim mesmo falar possantemente<br />
às almas dos homens, incitando-os<br />
à virtude. De que maneira? Por aqueles<br />
sons e harmonias a música opera,<br />
pela ação da graça, um efeito santificante<br />
das tendências, tranquiliza, ordena,<br />
por assim dizer limpa as tendências<br />
dos homens, e nisso lhes faz<br />
um bem muito grande para a alma.<br />
Há qualquer coisa na Revolução<br />
meio ligada ao seu caráter industrial<br />
no ambiente em que vivemos – pois<br />
estamos ainda sob o domínio da Revolução<br />
Industrial –, com todas as<br />
agitações, febricitações, ambições<br />
despertadas por ela, como também<br />
as friezas de alma, as faltas de afeto,<br />
as durezas, os egoísmos deslavados<br />
que ela suscita. E é muito difícil<br />
para um homem – ainda que ele seja<br />
dotado de uma tal ou qual capacidade<br />
de discussão ou de exposição de<br />
uma doutrina – remover essa disposição<br />
de alma, criada às vezes quando<br />
a pessoa ainda não está no uso da<br />
6
azão, e já essas tendências erradas<br />
vão se formando dentro dela.<br />
Uma influência<br />
sempre benéfica<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Uma coisa que eu, em vida de<br />
mamãe, notava muito – ela possuía<br />
em alto grau – era uma forma<br />
de presença que o simples trato comum<br />
de uma dona de casa, quer dizer,<br />
de uma senhora com o seu marido,<br />
os seus filhos, a residência,<br />
ela o fazia com uma ordenação interior,<br />
do mais profundo do seu espírito<br />
tão ordenado, harmonioso,<br />
sério, elevado, mas tão afável, acolhedor,<br />
virtuoso, que aquilo contagiava,<br />
no sentido bom da palavra.<br />
E as pessoas com isso ficavam de<br />
repente distendidas, acalmadas e<br />
tranquilas.<br />
Lembro-me, por exemplo, de que<br />
quando eu era pequeno tive toda espécie<br />
dessas doenças que criança<br />
tem: crupe, coqueluche, caxumba. E,<br />
naturalmente, quem tratava de mim<br />
era Dona Lucilia. Mas, como toda<br />
criança, começava a ficar torcendo<br />
para não ter mais febre. E ela era<br />
uma campeã do termômetro, vira e<br />
mexe o usava.<br />
Ela notava que eu me impacientava<br />
com o termômetro, pois enquanto<br />
não passasse a febre ela não me deixaria<br />
sair da cama, e eu preferia não<br />
ter esse controle e levantar logo. Então,<br />
não querendo acentuar demais<br />
o uso desse instrumento ela punha a<br />
mão sobre a minha testa.<br />
Só o sentir a mão de mamãe sobre<br />
a minha fronte, em geral eu tinha<br />
uma impressão de frescor, de<br />
tranquilidade, de suavidade e todas<br />
as minhas impaciências passavam.<br />
Às vezes mamãe vinha até mim e<br />
eu pensava: “Que bom, ela não vai<br />
fazer baixar minha febre, mas aliviará<br />
qualquer coisa em mim que está<br />
fervendo!” Ela punha a mão na minha<br />
testa e dizia: “Meu filho, você<br />
ainda tem um pouco de febre...” Ela<br />
fazia baixar a sensação de febre, e<br />
era uma tranquilidade…<br />
Muitas vezes a presença de Dona<br />
Lucilia dava-me também a sensação<br />
da proteção da Providência, pelo<br />
modo de me sentir garantido de<br />
tudo, pois ela me protegeria. Quando<br />
pequeno, por ser ela minha mãe<br />
e, portanto, uma pessoa mais poderosa<br />
do que eu. Depois, com o tempo,<br />
isso continuava, mas de uma maneira<br />
diversa.<br />
Por exemplo, eu não ia a um exame<br />
no colégio sem pedir a ela que<br />
me fizesse uma cruz na fronte. E isso<br />
foi assim até as últimas provas da<br />
Faculdade de Direito. Ela fazia, não<br />
uma cruz, mas umas dez cruzes pequenas.<br />
E eu me dirigia aos exames<br />
acompanhado de um primo que estudava<br />
comigo; e o que tem propósito<br />
da parte de uma mãe para seu filho<br />
já tem menor cabimento de uma<br />
7
Dona Lucilia<br />
tia para com seu sobrinho.<br />
Entretanto, o<br />
meu primo, que estava<br />
junto a mim para nos<br />
despedirmos de Dona<br />
Lucilia e irmos para<br />
a Faculdade, pedia<br />
também, e ela igualmente<br />
fazia várias cruzes<br />
sobre a testa dele.<br />
Íamos, então, para o<br />
exame e passávamos<br />
sempre! O que era<br />
mais milagroso com o<br />
meu primo do que comigo…<br />
Quando eu ia viajar<br />
– sempre que não<br />
fossem as minhas viagens<br />
às ocultas para<br />
a Europa sem mamãe<br />
saber; ela só sabia<br />
depois –, ela me<br />
fazia vários sinais da<br />
Cruz na testa. E eu<br />
sentia que aquilo me<br />
protegia, me ajudava.<br />
É Doutrina Católica<br />
que a bênção de<br />
uma mãe pode atrair<br />
a proteção de Deus para um filho. E<br />
ela, ciente disso, queria essa proteção<br />
de todo jeito. Então várias cruzes,<br />
etc.<br />
Ela era um pouquinho baixa, e eu<br />
para a minha geração, alto. E notava<br />
que ela se punha um tanto na ponta<br />
dos pés para fazer as cruzes. Então,<br />
eu me curvava para facilitar. Depois<br />
nos beijávamos e eu saía, às vezes osculando<br />
sua mão também.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Ação de presença de<br />
Dona Lucilia<br />
Tudo isso indicava uma ação de<br />
presença que eu teria dificuldade em<br />
explicitar. Dou outro exemplo:<br />
A sede da Ação Católica era no<br />
mesmo andar que o meu escritório<br />
de advocacia. Após um dia de trabalho,<br />
eu retornava para casa cansado,<br />
porque de manhã dava aulas, à tarde<br />
enfrentava os aborrecimentos próprios<br />
a um escritório de advocacia e<br />
os problemas da Ação Católica. Não<br />
era tanto um cansaço físico comum,<br />
de quem carregou um fardo, mas um<br />
cansaço mais psicológico.<br />
Apenas ao entrar – em geral eu<br />
a encontrava sentada na cadeira de<br />
balanço do meu escritório, lendo ou,<br />
o mais das vezes, rezando – eu sentia<br />
a atmosfera de tranquilidade que<br />
a presença dela deixava naquele ambiente.<br />
Só o fato de ela estar lá já me<br />
valia por duas ou três horas de descanso.<br />
Era uma ação imediata.<br />
Essa ação de presença tem algo<br />
de indiretamente contrarrevolucionário:<br />
tranquilizar e aquietar tudo<br />
quanto é o borbulhar de uma cidade,<br />
que é uma das maiores do mundo, e<br />
preparar para a luta, para a oração,<br />
para a serenidade de<br />
alma. Eis a tranquilidade<br />
que Dona Lucilia<br />
comunicava.<br />
Embora ninguém<br />
me tenha dito, creio<br />
ser esse o fenômeno<br />
que acontece com<br />
as pessoas, principalmente<br />
as mais jovens,<br />
quando estão junto à<br />
sepultura de mamãe<br />
no Cemitério da Consolação.<br />
Por vezes, vejo-as<br />
paradas, algumas<br />
recitam o terço, outras<br />
não estão rezando<br />
propriamente e parecem<br />
estar absortas,<br />
sem prestar atenção<br />
em nada. O que fazem<br />
ali? Estão recebendo<br />
uma influência que, a<br />
meu ver, é o prolongamento<br />
daquela exercida<br />
por ela em vida.<br />
Pude notar que,<br />
quando vão para o Cemitério,<br />
as pessoas andam<br />
com pressa; ao<br />
voltarem, caminham devagar, tranquilas,<br />
conversando. Seria impossível<br />
atrair e reter tantos jovens lá se não<br />
houvesse alguma coisa desse gênero.<br />
Às vezes o Quadrinho 1 ou uma fotografia<br />
de mamãe produz esse efeito.<br />
Paciência com um<br />
sobrinho surdo<br />
Quantas vezes presenciei cenas<br />
assim, na vida de família! Dona Lucilia<br />
tinha um sobrinho surdo de nascença,<br />
com um temperamento muito<br />
difícil. Às vezes, ele ia à casa de minha<br />
avó materna, onde morávamos,<br />
e começava a brigar com ela. Mamãe<br />
ficava olhando aquilo e quando percebia<br />
ter chegado a um certo paroxismo,<br />
aproximava-se dele, tranquilizava-o<br />
e ia com ele para uma saleta<br />
onde o entretinha durante mais de<br />
8
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
uma hora. Sendo surdo, não graduava<br />
bem o volume de sua voz, e soltava<br />
algumas palavras aos gritos. Ao<br />
cabo de uma hora e tanto, o Tito –<br />
era o seu apelido doméstico – saía<br />
tranquilo, beijava-a e ia embora.<br />
Isso acontecia quando ele e eu éramos<br />
meninos, e até durante nossa<br />
viagem a Paris. Os pais do Tito estavam<br />
lá com Dona Lucilia. Mamãe demonstrava<br />
uma tal paciência com o<br />
Tito, sacrificando por vezes os atrativos<br />
da viagem, que quando preparava<br />
a mala a fim de voltar para São Paulo,<br />
encontrou dentro um vestido muito<br />
bonito, muito fino, que ela não havia<br />
encomendado. Ergueu-o e viu que<br />
estava de acordo com o tamanho dela<br />
perfeitamente. Ficou intrigada e, mexendo<br />
na vestimenta, caiu um cartãozinho,<br />
escrito pela mãe do Tito: “À<br />
querida Tia Lucilia, mil agradecimentos<br />
de Tito.”<br />
Ajudando a encontrar<br />
os ovos de Páscoa<br />
Mamãe organizava piqueniques<br />
de Páscoa num lugar dos arredores<br />
de São Paulo, e escondia os ovos de<br />
Páscoa aqui, lá e acolá. Os sobrinhos<br />
e os filhos dela chegavam depois e<br />
cabia ao pessoal descobrir os ovos de<br />
Páscoa. Alguns eram muito espertos,<br />
saíam logo correndo e encontravam<br />
os ovos.<br />
Vendo minha dificuldade, ela me<br />
dizia sorrindo: “Filhão, veja se você<br />
encontra um ovo lá...”<br />
Eu pensava: “Mas não era mais<br />
fácil que ela me trouxesse o ovo de<br />
uma vez?!”<br />
Eu chegava até o local, e ela me<br />
dizia: “Não, você não está procurando<br />
bem. Procure lá…” Os outros estavam<br />
longe e não ouviam o favorecimento.<br />
Afinal de contas, eu encontrava<br />
uns dois ou três ovos escondidos<br />
por ela num lugar onde me ficasse<br />
fácil encontrar.<br />
Eu sentia o afeto com que isso era<br />
feito e experimentava uma inundação<br />
de alegria inocente e satisfeita,<br />
cumulado e envolto nessa atmosfera<br />
de proteção, de afago,<br />
de bondade.<br />
Mamma<br />
Margherita e<br />
Dona Lucilia<br />
Recordo-me de<br />
que o meu primeiro<br />
movimento grande<br />
de afeto a Maria<br />
Santíssima foi diante<br />
daquela imagem<br />
de Nossa Senhora<br />
Auxiliadora da Igreja<br />
do Coração de Jesus.<br />
Não houve milagre,<br />
a imagem não<br />
se moveu, mas recebi<br />
a graça de esperar<br />
que Ela agisse desse<br />
jeito comigo. Pensei:<br />
“Nossa Senhora<br />
é incalculavelmente<br />
boa! Tão boa, que é<br />
melhor do que mamãe!<br />
E o que mamãe<br />
não está aturando,<br />
Ela atura. Ademais,<br />
me dá uma<br />
força que não recebo<br />
de mamãe. Então<br />
vou pedir para Nossa<br />
Senhora” 2 . Assim<br />
9
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia me preparava para a<br />
devoção à Santíssima Virgem.<br />
São João Bosco, fundador dos Salesianos,<br />
levou sua mãe, Mamma<br />
Margherita para morar no colégio<br />
por ele fundado, onde ela trabalhava<br />
na cozinha e em outros afazeres<br />
de dona de casa. E assim, o quanto a<br />
saúde permitiu, até o fim da vida ela<br />
trabalhou.<br />
São João Bosco dizia que Mamma<br />
Margherita era uma verdadeira santa,<br />
e a queria bem de um modo extraordinário.<br />
Podemos admitir que São João<br />
Bosco fosse canal – isto ele era, certamente<br />
– de muitas graças para toda<br />
aquela meninada, professores, sobretudo<br />
padres, freiras, etc., mas que<br />
algumas dessas graças eram recebidas<br />
pelo pessoal por meio da Mamma<br />
Margherita. Isto parece verdadeiro,<br />
tanto é que a sepultura dela<br />
é visitadíssima por toda espécie de<br />
pessoas ligadas à obra salesiana, que<br />
vão lá rezar, embora ela não tenha<br />
sido canonizada.<br />
E creio que se alguma pessoa, a<br />
qual a Providência destinasse a receber<br />
uma graça pela Mamma Margherita<br />
e não pedisse a ela, podia<br />
não receber aquela graça, porque<br />
Deus indica o caminho que cada um<br />
deve seguir.<br />
Em ponto num certo sentido menor,<br />
em certo sentido maior, dentro<br />
de nosso Movimento uma coisa dessas<br />
pode se repetir perfeitamente.<br />
Não vejo nada de heterodoxo.<br />
Tenho a impressão de que, ainda<br />
que não tivéssemos infidelidades, a<br />
época na qual vivemos é de tal maneira<br />
oposta à fidelidade, que se não<br />
houvesse em determinado momento<br />
uma intervenção do Divino Espírito<br />
Santo para nos elevar a uma altura<br />
bem maior, por um modo pelo<br />
qual o caminho comum da graça não<br />
nos ergueria, não chegaríamos aonde<br />
precisamos para enfrentar os castigos<br />
previstos por Nossa Senhora<br />
em Fátima.<br />
Carlos Aguirre<br />
Tenho a impressão de que a ação<br />
de Dona Lucilia nos predispõe para<br />
essa graça, nos dá serenidade para<br />
esse efeito.<br />
Doçura e luminosidade<br />
de alma<br />
Ela sofria muito, mas foi a melhor<br />
mestra de resignação que encontrei<br />
Mamma Margherita<br />
em minha vida. E não houve homem<br />
algum que me ensinasse a resignação<br />
como mamãe. Porque ela tinha<br />
uma espécie de doçura e de luminosidade<br />
dentro da alma que a levava<br />
a suportar dores que para outros seriam<br />
insuportáveis, por uma espécie<br />
de elasticidade interior, pela qual tinha<br />
uma capacidade de sofrer cada<br />
vez maior, e às vezes de um modo<br />
10
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
espantoso! Mas, achando tão natural<br />
sofrer, e amando tanto uma certa<br />
consolação interior que era a causa<br />
da doçura dela, e a tornava a mestra<br />
da resignação!<br />
Embora mamãe, às vezes, estivesse<br />
muito aflita, uma pessoa podia falar<br />
com ela e sair consolada, por essa<br />
elasticidade para a dor, que eu não<br />
vejo as pessoas de hoje terem. Elas<br />
são rebarbativas, revoltam-se contra<br />
a dor e a consideram quase uma vergonha.<br />
A influência hollywoodiana torna<br />
feio o sofrer. O bonito é estar continuamente<br />
alegre e bem disposto,<br />
ter uma espécie de intolerância para<br />
com o sofrimento, o revés e a indisposição.<br />
Por causa disso, se a dor se<br />
apresenta, os homens ficam rebarbativos,<br />
zangados, não se conformam.<br />
Dona Lucilia não era assim. Por<br />
exemplo, às vezes ocorria de mandarmos<br />
vir um aparelho para verificar<br />
como estava o coração, ou a<br />
pressão, etc. E cada inspeção dessas<br />
pode trazer uma notícia-bomba.<br />
De maneira que a pessoa, em geral,<br />
quando se sujeita a algo assim, sobretudo<br />
uma senhora que é mais fraca<br />
para essas coisas do que um homem,<br />
fica meio preocupada.<br />
Eu a vi mais de uma vez ser sujeita<br />
a exame cardíaco, com uma naturalidade,<br />
uma serenidade, uma coisa<br />
única! Terminado, em geral dava<br />
certo, porém ela não tinha um grande<br />
júbilo. Mas não dando bom resultado,<br />
ela não sofria uma grande<br />
baixa; continuava a vidinha dela<br />
tal e qual. A meu ver, a longevidade<br />
dela se atribui, em parte, a isso. Porque<br />
para uma pessoa que a propósito<br />
de qualquer coisa fica alarmada,<br />
isso não pode deixar de ser desgastante.<br />
Ela tocava aquilo com uma serenidade,<br />
mas que era a tal elasticidade<br />
para a dor. Mamãe sofria muito,<br />
mas com uma calma, achando natural<br />
sofrer, e com uma bondade resultante,<br />
creio eu, da sua devoção<br />
ao Sagrado Coração de Jesus, que<br />
nos aparece na iconografia católica<br />
cercado com uma coroa de espinhos,<br />
indicando o sofrimento que<br />
Ele teve.<br />
Em geral, quando uma senhora<br />
tira uma fotografia, a expressão dela<br />
é: “Olhe como eu estou bem sucedida,<br />
bonita, contente.” Em mamãe<br />
a expressão é sempre: “Vejam como<br />
eu estou em paz, apesar de muitas<br />
dores, e como a minha alma está<br />
bem.” É a expressão do Quadrinho.<br />
<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
22/9/1990)<br />
1) Quadro a óleo, que muito agradou<br />
a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />
discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucilia. Ver <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />
2) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 122, p. 18-23.<br />
11
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Impulso do passado com<br />
vistas ao futuro - II<br />
Os patriarcas têm o senso da realidade profunda,<br />
representam todo o impulso do passado, levando a<br />
sociedade a dar um passo para a frente com eles. Nenhum<br />
homem merece o título de patriarca se não cumpre<br />
duravelmente os Mandamentos da Lei de Deus.<br />
Francisco Lecaros<br />
Quando uma família é muito<br />
antiga sua memória vai<br />
se perdendo no passado;<br />
por exemplo, a memória da família<br />
de um nobre pode conservar-se desde<br />
mil anos atrás. Mas uma família<br />
mais modesta nem tem sentido conservar<br />
o nome por tanto tempo. Esse<br />
é o passado da família, e o rumo que<br />
o presente carrega em direção ao futuro,<br />
mas que ele recebeu do passado,<br />
é tradição. Vai para a frente!<br />
Grandes homens à<br />
maneira de patriarca<br />
Oração em família<br />
Museu Saint-Loup,<br />
Troyes, França<br />
As famílias ilustres ou não, inclusive<br />
pequenas, são animadas por uma<br />
determinada tradição e, de vez em<br />
quando, os parentescos entre elas já<br />
são meio apagados, não se sabe mais<br />
bem quem é parente de quem. Elas<br />
têm uma parentela geral, mas difusa;<br />
estão se transformando em país.<br />
E aquela unidade que o patriarca<br />
conservava vai-se borrando, generalizando;<br />
o nexo patriarcal vai-se dissolvendo<br />
ao longo das gerações. Então,<br />
qual é a solução?<br />
12
É aparecerem grandes homens<br />
que fazem um papel à maneira do<br />
patriarca, os quais representem toda<br />
a meta, todo o impulso do passado;<br />
dessa forma aquilo que se estava tornando<br />
vago, por assim dizer, se precisa,<br />
se define e dá um passo para a<br />
frente com eles.<br />
E assim essa longa sequência se<br />
acentua.<br />
Mas isto não quer dizer apenas formar<br />
grandes homens cujos nomes<br />
saiam nos jornais. Eu conheci gente<br />
modesta – não do proletariado, mas<br />
da pequena burguesia – constituindo<br />
um grupo de famílias, que se percebia<br />
serem parentes, e havia um que<br />
eles respeitavam enormemente: Fulano.<br />
“Vamos ouvir o Fulano, a opinião<br />
dele é decisiva.” Ou então Da. Fulana,<br />
aquela que sabe e é meio médica<br />
daquele grupo de famílias. Quando<br />
alguém adoece, perguntam para<br />
ela qual é o melhor remédio, ou o melhor<br />
médico, ou se aquela doença tem<br />
perigo ou não. Quando há uma briga<br />
na família, vão pedir conselho para<br />
Da. Fulana. Se alguém da família está<br />
desempregado, solicitam-lhe emprego<br />
porque o marido dela arranja. Tais<br />
pessoas são uma espécie de patriarca<br />
nascido de um definido, mas pequeno,<br />
aumento de valor. São grandes homens<br />
de quarteirão, dos quais não se<br />
deve rir; pode-se sorrir, mas não rir.<br />
Nós sorrimos quando, ao olharmos<br />
para um formigueiro, vemos uma formiga<br />
carregar uma folha enorme para<br />
dentro dele. Sorrimos e não achamos<br />
ridícula, mas fenomenal a formiga,<br />
porque pequenininha ela carrega uma<br />
folha tão grande, e para aquele formigueiro<br />
marca história.<br />
Um velho professor<br />
de música<br />
professor de música, homem já idoso,<br />
austríaco. A mãe parece-me que<br />
era – não estou bem certo – alemã<br />
ou francesa. Ele, como músico, tocava<br />
violino… todo musical. E era, em<br />
medida pequena, um homem respeitável<br />
mesmo.<br />
Sua mulher era vivíssima. Ele se<br />
entregava a uma vida meio ideal, para<br />
poder dar o que o talento musical<br />
concede, e a mulher fazia um pouco<br />
o papel do marido: ela trabalhava,<br />
bordava, confeccionava rendas, fazia<br />
bolos e vendia. O filho ficou médico,<br />
as filhas todas se formaram, uma delas<br />
em professora de música; todos<br />
fizeram a vida. Tinham um respeito<br />
por ele... Mas eu percebia que aquela<br />
rua – e os dois quarteirões adjacentes<br />
– era de pequena burguesia.<br />
E havia naquela redondeza um respeito<br />
pelo velho professor, quando<br />
ele saía ou nos acompanhava ao jardim,<br />
brincando com muita benevolência,<br />
etc. Eu notava que o pessoal<br />
da rua olhava para ele com respeito.<br />
A molecada que jogava futebol na<br />
via pública, quando passava o professor<br />
parava e assim ficava até ele<br />
terminar seu trajeto.<br />
Era uma notabilidade de quarteirão,<br />
de arrabalde. Feliz a cidade onde<br />
cada arrabalde ou cada quarteirão<br />
tem um grande homem, um patriarcazinho,<br />
assim!<br />
Diretor funcional de<br />
repartição pública<br />
Eu fui também funcionário público,<br />
e notei que algumas repartições<br />
tinham diretores patriarcais. E outras<br />
possuíam diretores funcionais<br />
apenas.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Assim, por exemplo, eu imagino<br />
que era, nos meus remotos tempos de<br />
infância, o Largo do Coração de Jesus.<br />
Eu conheci, numa rua próxima<br />
do Largo, uma família cujo pai era<br />
Igreja do Sagrado Coração<br />
de Jesus, na década de<br />
1920, São Paulo, Brasil<br />
13
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Numa seção de médicos<br />
em que trabalhei,<br />
o diretor era um homem<br />
rico, morava inclusive<br />
na Avenida Paulista.<br />
Ele chegava de automóvel<br />
à repartição, a<br />
qual era distante da Avenida<br />
Paulista. Ele ia três<br />
vezes – ou duas, não me<br />
lembro bem – por semana<br />
à seção; de longe dava<br />
um toque de buzina e<br />
já vinha o porteiro para<br />
lhe abrir a porta que dava<br />
para um parque dessa<br />
repartição.<br />
Ele entrava com uns<br />
olhos de caráter não definido<br />
por detrás de uns<br />
óculos esfumaçados, que<br />
não permitiam bem ver<br />
o que ele estava observando.<br />
Um olhar bambo.<br />
Ele passava por nossa<br />
sala, dizia “boa-tarde”<br />
para todo mundo, uma<br />
pseudocortesia, e trancava-se<br />
em sua sala.<br />
Daí a instantes, o secretário ia<br />
com o expediente para a sala e despachava<br />
com ele. O diretor ficava<br />
meia hora ou uma hora lá. Depois se<br />
levantava, dizia “boa-tarde”, sem falar<br />
com ninguém, e saía.<br />
Havia medo dele. Inclusive porque<br />
era um homem rico e poderoso.<br />
Mas nele não existia patriarcalidade<br />
nenhuma.<br />
Diretor patriarcal<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Lembro-me de um outro homem<br />
que era diretor de uma repartição<br />
de engenheiros, mas diretor-patriarca:<br />
um homenzinho baixinho, já idoso,<br />
calvo com uma coroa de cabelos<br />
brancos, e uma barbichinha branca<br />
pontuda; e tesinho, representando<br />
a personificação da consciência,<br />
mas muito interessado por cada funcionário.<br />
E nas horas vagas, do café,<br />
Igreja de Santa Cecília, São Paulo, Brasil<br />
etc., ele conversava com os funcionários,<br />
sempre ditando altas sentenças<br />
que os iluminavam pela sabedoria.<br />
Eu as julgava umas vigorosas banalidades,<br />
mas eles achavam o homem<br />
formidável.<br />
Um dia eu estava subindo as escadas<br />
da Igreja de Santa Cecília – e como<br />
não gostava de subir escadas, tinha<br />
tomado o hábito de subi-las correndo,<br />
porque assim se acaba a coisa<br />
logo; era um modo de combater a<br />
preguiça – e vejo a meu lado, a escada<br />
é larga – o Doutor Fulano com a barbinha<br />
dele, que ia com duas ou três filhas<br />
já vetustas também, solteironas,<br />
acompanhando o pai para a Missa.<br />
Elas olhavam para o jeito do pai<br />
subir a escada, mas cada passo dele<br />
era um respeito, para evitar que o<br />
“ídolo” não se quebrasse na ascensão…<br />
E ele dando o braço para uma<br />
e para outra e com ar digno. Elas encantadas<br />
com o pai… Ele era o pa-<br />
triarca daquela pequena<br />
unidade como era o patriarca<br />
da repartição. E,<br />
mais ainda, ele merecia<br />
ser: para o seu tamanhinho<br />
estava perfeitamente<br />
benzinho.<br />
Onde entra a indústria<br />
e a máquina, o patriarcado<br />
desaparece; é uma<br />
coisa mais ou menos intuitiva,<br />
e creio que nem<br />
sequer preciso explicar.<br />
A questão do<br />
“grande homem”<br />
Então, podemos ter<br />
mais ao vivo a ideia do<br />
que seria uma sociedade<br />
com um mundo de pequenos<br />
patriarcas assim;<br />
eles tendem a patriarcalizar<br />
o patriarca maior,<br />
de maneira a formar uma<br />
hierarquia natural de patriarcas,<br />
que é a própria<br />
hierarquia do povo. E,<br />
naturalmente, as famílias ilustres, nobres,<br />
têm também seus patriarcas, e<br />
há famílias que são patriarcais em relação<br />
a outras. Não é só este que é patriarca<br />
em relação àquele, mas há famílias<br />
que são patriarcais em relação<br />
a outras famílias.<br />
Vejamos agora o ponto precioso<br />
disso.<br />
Um Demóstenes pode ser uma<br />
grande honra para um país, mas é<br />
possível também que ele seja um<br />
grande malfeitor. Todo homem inteligentíssimo<br />
e dotado de muita força<br />
de vontade, ou tende para o santo<br />
ou para o bandido. Porque, se ele<br />
é voltado para um ideal verdadeiro e<br />
bom, faz toda espécie de benefícios<br />
e encaminha para o bem. Mas se é<br />
direcionado para o interesse pessoal,<br />
ele se serve de seu talento para guiar<br />
para a direita ou esquerda, do modo<br />
mais vil, a multidão que depende<br />
dele. E tudo tem conexão com o di-<br />
14
nheiro ou a imoralidade; ele leva as<br />
pessoas de um lado para outro.<br />
Qual é a defesa da sociedade contra<br />
o “grande homem”? Porque a sociedade<br />
precisa ter uma defesa, senão<br />
o “grande homem” é um vendaval<br />
que de vez em quando nasce e<br />
destrói tudo. Este é o aspecto negativo<br />
e positivo do “grande homem”.<br />
E os defensores são os patriarcas.<br />
Porque eles têm o senso da seleção,<br />
da escolha, da realidade profunda.<br />
E esse senso faz com que, quando o<br />
“grande homem” é um charlatão, no<br />
comentário do âmbito dos patriarcas<br />
eles o recebem com frieza. Tal frieza<br />
explica aos outros, e, quando necessário,<br />
eles falam, porque é preciso ter<br />
desconfiança com aquele homem.<br />
Portanto, o “grande homem” ou<br />
afina com o que há na sociedade de<br />
melhor, que são os patriarcas, ou<br />
não tem carreira. Mas os patriarcas<br />
não dependem dele.<br />
O professor de música ao qual me<br />
referi não dependia de ninguém: ele<br />
exercia uma influência direta sobre<br />
aqueles quarteirões. Mas o “grande<br />
homem”, se quisesse ter influência<br />
ali dentro, dependia dele, porque<br />
nada havia como a aprovação do<br />
professor para levantar a reputação<br />
de um homem. E nada como a “maledicência”<br />
dele para derrubar.<br />
E era, por assim dizer, este cenáculo<br />
invisível de patriarcas que servia<br />
de rumo para que o país não fosse<br />
como uma espécie de navio com<br />
a carga muito leve, que as ondas podem<br />
derrubar, “enlouquecendo” o<br />
navio. Eles, os patriarcas, são a carga<br />
sadia, a tradição.<br />
Virtude primitiva dos<br />
antigos patriarcas<br />
Em relação a este todo, o que é o<br />
Sagrado Coração de Jesus?<br />
Nenhum homem merece esse<br />
patriarcado verdadeiramente se<br />
não pratica duravelmente todos os<br />
Mandamentos. Os antigos patriarcas<br />
das antigas tribos, muito frequentemente,<br />
eram herdeiros de<br />
vagas reminiscências do tempo de<br />
Noé, talvez de Noé até Adão e Eva,<br />
quando a humanidade ainda tinha<br />
a marca dos ensinamentos de Deus<br />
e do convívio com o Criador, feito<br />
por uma revelação de que lhes<br />
constava alguma coisa. E a pureza<br />
das circunstâncias primitivas em<br />
que eles viviam facilitava-lhes levar<br />
uma vida que precariamente podia<br />
ser chamada virtuosa. Daí a respeitabilidade<br />
deles.<br />
Mas hoje em dia acabou isso, porque<br />
ninguém vive da revelação do<br />
tempo de Noé, mas da Revelação<br />
feita ao povo eleito e a realizada por<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo e pregada<br />
para o mundo inteiro.<br />
Francisco Lecaros<br />
15
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
E quem recusa essa Revelação, se<br />
pode conhecê-la, peca. Quem aceitou<br />
a Revelação e a rejeita é um<br />
apóstata. Para esses não há possibilidade<br />
de ter a virtude primitiva dos<br />
antigos patriarcas.<br />
Eles são inimigos de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo que é o Modelo de<br />
todo o Bem. Todo homem, quando<br />
tem vontade de ser santo, deseja imitar<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, de ser<br />
como Ele. E o Coração Sagrado de<br />
Jesus nos revela, como no seu foco, a<br />
própria santidade d’Ele.<br />
Quando vemos uma imagem do<br />
Sagrado Coração de Jesus temos<br />
vontade de olhar para o Coração,<br />
ajoelhar e dizer: Anima Christi, sanctifica<br />
me!<br />
O Sagrado Coração de<br />
Jesus é o Patriarca, o<br />
alfa e o ômega de tudo<br />
De outro lado, o Sagrado Coração<br />
de Jesus, enquanto tal, atua possantemente<br />
sobre a vontade do homem.<br />
Vê-Lo expresso pelo seu Coração,<br />
pela sua bondade, sua generosidade,<br />
desarma a nossa maldade.<br />
Há qualquer coisa em nós em que os<br />
arreganhos do egoísmo, do ceticismo,<br />
da dúvida, das desconfianças, da<br />
preguiça, da modorra, da ansiedade,<br />
tudo isso entra em paz. Olhando para<br />
o Coração de Jesus, dir-se-ia que<br />
as virtudes cardeais vão renascendo.<br />
É um mar de lama que vai secando<br />
e se transforma em pó, deixando de<br />
fora apenas a antiga catedral – isto é,<br />
a nossa virtude –, outrora submergida<br />
pelo lodo.<br />
O Sagrado Coração de Jesus é o<br />
Patriarca, a meta, o impulso originário,<br />
a tradição, o começo e o fim, o<br />
alfa e o ômega de tudo o que se fez<br />
depois d’Ele.<br />
A Santa Igreja Católica é o Corpo<br />
Místico de Cristo. Ela reluz de tudo<br />
quanto há n’Ele, quando vista na sua<br />
autenticidade e não em contrafações<br />
miseráveis como verificamos hoje.<br />
Sagrado Coração de Jesus - Catedral de Santiago, Innsbruck, Áustria<br />
Então, ver a Santa Igreja Católica<br />
é ver a Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Assistindo a uma Missa, percebemos<br />
o esplendor da Liturgia onde reluz<br />
a santidade divina de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
Daí nascem todas as condições<br />
para uma sociedade virtuosa. E onde<br />
há uma sociedade virtuosa, meio<br />
como causa, meio como efeito, o tecido<br />
patriarcal se compõe. Está feita<br />
a Cristandade.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/01/1986)<br />
Francisco Lecaros<br />
16
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Equilíbrio de alma<br />
A Revolução Industrial atentou contra as virtudes cardeais,<br />
especialmente a da temperança. Ela promoveu o rompimento<br />
de uma série de equilíbrios, que corresponde ao nascedouro<br />
de uma revolução neurológica e psiquiátrica.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Uma das razões pelas quais<br />
o inocente vê as coisas<br />
com clareza está no fato<br />
de ter ele, na sua ordenação, uma<br />
propensão natural para considerá-<br />
-las em suas hierarquias. Como a<br />
pessoa inocente, na própria retidão<br />
de sua natureza, mesmo sem ter explicitado<br />
nada, é dotada de espírito<br />
muito hierárquico, tende a não misturar<br />
uns elementos com os outros,<br />
nem agrupá-los erradamente, ou seja,<br />
a não fazer confusão.<br />
Inocência e espírito<br />
hierárquico<br />
Em geral a confusão dos assuntos<br />
provém, em larga medida, da falta<br />
de espírito de hierarquia. Ora, esse<br />
espírito emana da inocência, porque<br />
o inocente distingue muito bem entre<br />
o essencial e o acidental, aquilo<br />
que tem maior ou menor importância.<br />
Como ele não tem apegos nem<br />
movimentos desordenados, o seu<br />
olhar é hierárquico e as suas apetências<br />
ordenadas. Por isso, ele toma<br />
uma posição facilmente anti-igualitária.<br />
Então, esse papel do espírito hierárquico<br />
– visto fora do eterno problema<br />
das classes e hierarquias so-<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Francisco Lecaros<br />
Isabel, a Católica, sendo proclamada Rainha<br />
Alcácer de Segóvia, Espanha<br />
cidades. Sempre que se quer ou rejeita<br />
uma coisa intemperantemente,<br />
a própria intemperança daquela<br />
posição de alma suscita o desejo de<br />
uma velocidade falsa. A preguiça dá<br />
a vontade das falsas lentidões e, pelo<br />
contrário, os apegos favorecem<br />
o gosto das velocidades super-rápidas,<br />
excessivas e contínuas. O indivíduo<br />
temperante gosta das velocidades<br />
proporcionadas à rapidez e à<br />
lentidão do raciocínio e da elaboração<br />
ordenada, normal do ser humano,<br />
apreciando o verdadeiro repouso<br />
como a verdadeira ação, dentro das<br />
medidas tomadas em função da natureza<br />
dele.<br />
Há uma velocidade na qual a natureza<br />
do indivíduo legitimamente se<br />
compraz, e que pode vir a ser uma espécie<br />
de superpotência dele. Existe<br />
também uma lentidão na qual ele se<br />
regozija e que é uma grande capacidade<br />
de recolhimento. Ou, o que é perfeitamente<br />
legítimo e respeitável, um<br />
homem sem esses extremos, mas com<br />
as proporções normais das coisas.<br />
Contudo, quando o homem perde<br />
a inocência, e com ela esse equilíbrio,<br />
começam a se formar nele cargas de<br />
apetência ou de recusa da ação, que<br />
já correspondem à ação pela ação<br />
ou à inércia pela inércia. De maneiciais,<br />
formas políticas e sociais de organização<br />
– chega a este ponto: a inocência<br />
é a condição para a formação<br />
do verdadeiro espírito hierárquico.<br />
Disso decorre outra consequência.<br />
Em toda sociedade verdadeiramente<br />
hierárquica paira certa inocência,<br />
enquanto nas sociedades niveladas,<br />
igualitárias, não.<br />
Portanto, no tema das desigualdades,<br />
é muito legítimo considerar<br />
o lado socioeconômico ou político;<br />
ademais, é um campo muito tangível,<br />
onde se pegam com facilidade as<br />
coisas como são, porém não é o mais<br />
importante. O aspecto principal é ter<br />
o espírito hierárquico, essa inocência<br />
hierarquizante que paira nos lugares<br />
onde esse espírito está dominando<br />
adequadamente.<br />
Eu não acredito, por exemplo,<br />
que uma pessoa entregue à lubricidade<br />
possa ter um verdadeiro espírito<br />
hierárquico. Se tiver, é por hábitos<br />
mentais oriundos do tempo em<br />
que ela era inocente. Contudo, aquilo<br />
está deperecendo como um sorvete<br />
ao Sol: subsiste durante algum<br />
tempo.<br />
Assim, quando demonstramos<br />
tanto empenho em que a nota hierárquica<br />
refulja sobre toda a sociedade,<br />
mais do que a ordenação hie-<br />
rárquica das coisas, estamos desejando<br />
a refulgência desse espírito sobre<br />
todos os homens. Ora, é precisamente<br />
este espírito que a Revolução procura<br />
eliminar.<br />
Isso se liga ao assunto do qual vínhamos<br />
tratando 1 .<br />
Temperança e velocidade<br />
No fundo da alma humana inocente<br />
estão contidas todas as formas<br />
possíveis de temperança. Uma<br />
dessas formas está ligada às velo-<br />
Marcha comunista em 1917<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
18
a que o indivíduo adquire um gosto<br />
pela rapidez, não por ela o conduzir<br />
diretamente ao fim, mas pela velocidade<br />
enquanto tal. Do mesmo modo,<br />
a lentidão não o agrada pelo gosto da<br />
calma, mas pela pachorra em si.<br />
fecristovao (CC3.0)<br />
Delírio pela mudança<br />
Durante o período desde o Humanismo<br />
ou a Renascença até o começo<br />
da Revolução Industrial, no fim do<br />
século XVIII – naturalmente se nota<br />
muito mais depois da Revolução<br />
Francesa –, há o rompimento de uma<br />
porção de velhos equilíbrios, que corresponde<br />
ao nascedouro de uma revolução<br />
neurológica e psiquiátrica.<br />
No indivíduo pré-Revolução Industrial,<br />
por haver nele apetências desregradas,<br />
começam se desencadear<br />
apegos fabulosos, os quais ele quer<br />
satisfazer, mas que são reprimidos<br />
pelas lentidões do compasso da vida.<br />
Então, ele tem uma vontade doida de<br />
velocidades desenfreadas.<br />
Isso gera um efeito curioso: na Revolução<br />
Industrial, as descobertas<br />
que chamam mais a atenção do público<br />
e o inebriam mais são as que permitem<br />
correr. Quer dizer, as supervelocidades<br />
inebriantes empolgam mais<br />
do que, por exemplo, o encontro de<br />
um novo remédio ou de um sistema<br />
de fabricar e pôr ao alcance de muito<br />
mais gente travesseiros cômodos.<br />
Assim, a primeira coisa que salta<br />
aos olhos na Revolução Industrial é<br />
a mania da velocidade em todos os<br />
aspectos, e foi para onde a atenção,<br />
a confiança e o entusiasmo do público<br />
por essa Revolução mais se acentuou.<br />
Isso se deu por causa da carga<br />
excessiva de calma que as pessoas<br />
carregavam anteriormente.<br />
O gosto pela trepidação entra aí<br />
como uma espécie de subproduto do<br />
horror à inação. Como a pessoa tem<br />
aversão à inércia, ela tem horror a<br />
que zonas de sua alma não estejam<br />
continuamente solicitadas a alguma<br />
forma de impressão ou de ação.<br />
Entretanto, esse desejo de trepidação<br />
é algo colateral. A meu ver,<br />
uma prova disso está no seguinte:<br />
tão logo são fabricados transportes<br />
velozes com motores muito barulhentos,<br />
os próprios fabricantes se<br />
põem a inventar artefatos que diminuam<br />
o barulho. E às vezes se sentem<br />
triunfantes quando atenuam ou<br />
eliminam o ruído, mas nunca quereriam<br />
diminuir a velocidade.<br />
Há uma espécie de adoração do<br />
movimento dentro disso, relacionada,<br />
por sua vez, com a mania de fazer<br />
que é, ela mesma, a mania de<br />
mudar. O delírio pela mudança para<br />
satisfazer o gosto de novidade marca<br />
não só a Revolução Industrial, mas a<br />
mentalidade dos que vivem imersos<br />
nessa Revolução.<br />
Idade Média: explosão<br />
de vitalidade<br />
Se buscarmos as causas mais profundas<br />
dessa transformação veremos<br />
que, da vida aventureira da Idade<br />
Média para a existência cada vez<br />
mais caseira dos séculos posteriores,<br />
houve um acúmulo excessivo de securitarismo.<br />
O desaparecimento, a<br />
fuga do heroísmo de dentro da existência<br />
humana tinha que produzir<br />
algum desequilíbrio nesse sentido.<br />
É fácil compreender como a reação<br />
proveniente desse desequilíbrio tenha<br />
produzido, forçosamente, a mania<br />
da velocidade.<br />
Mas não é a única razão. A meu<br />
ver, a causa preponderante está nas<br />
apetências desregradas.<br />
A posição verdadeira preconizada<br />
por nós é, portanto, de um equilíbrio<br />
no ponto de partida que se chama<br />
inocência, e entra no nosso conceito<br />
de Contra-Revolução, de hierarquia,<br />
de pureza, etc. É uma espécie<br />
de temperança primeira e fundamental.<br />
Para compreendermos todo o estrago<br />
perpetrado pela Revolução Industrial,<br />
seria preciso termos a ideia<br />
desse equilíbrio de alma primeiro,<br />
originário, pré-existente à essa Re-<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Leopoldo Werner<br />
como um inerte,<br />
mas um superativo.<br />
Na Idade Média<br />
era tal a capacidade<br />
de contemplação<br />
e de<br />
ação ao mesmo<br />
tempo, que o povo,<br />
ao construir<br />
uma catedral, tinha<br />
uma noção<br />
global, implícita<br />
ou explícita, de<br />
como ela seria.<br />
Eles a contemplavam,<br />
mais ou menos,<br />
como os judeus<br />
a Terra Prometida.<br />
Passavam<br />
gerações trabalhando<br />
naquele<br />
edifício sagrado,<br />
com calma, sem<br />
exigir vê-lo concluído.<br />
Morriam<br />
em paz com a catedral<br />
incompleta,<br />
mas cuja edi-<br />
Catedral de Reims, França<br />
ficação eles, ativa<br />
volução, já meio estragado pelo período<br />
que vai do Humanismo a Dan-<br />
realizar. Vejo nisso um equilíbrio ex-<br />
e contemplativamente, procuraram<br />
ton, e que só se vê inteiramente na traordinário! A eternidade era uma<br />
Idade Média.<br />
das dimensões do tempo para eles.<br />
Eu compreendo bem terem havido<br />
exceções no mundo medieval. descomunais, mas queriam produzir<br />
Aliás, os medievais faziam coisas<br />
Entretanto, de um modo geral, existiram<br />
pujanças e atividades descon-<br />
estático, e nem um pouco a do ester-<br />
a impressão do proporcionado, do<br />
certantes que não consistiam na intemperança<br />
pela intemperança, nem estertor continuamente em tudo.<br />
tor. A arte moderna visa produzir o<br />
na fobia do repouso, mas correspondiam<br />
à explosão da vitalidade de um que eles faziam eram voltados a pro-<br />
As cores dos vitrais e tudo o mais<br />
mundo extraordinariamente fecundo,<br />
cuja temperança consistia em ção, a qual coabita harmonicamente<br />
duzir no homem uma forma de sensa-<br />
entrar opulentamente dentro do jogo<br />
da vida, pelo desejo saudável de tas, mas não contraditórias. Essa é a<br />
com todas as outras sensações opos-<br />
gastar-se a si próprio, dando origem, melhor noção de repouso. Ao contemplarmos<br />
as coisas medievais, sen-<br />
por sua vez, ao gosto dos repousos<br />
profundos. Por vezes, essa vitalidade<br />
partia para as grandes contem-<br />
dor, de candura e de profundidatimos<br />
nossos anseios de alegria e de<br />
plações. E o homem muito ativo venerava<br />
o muito contemplativo, não atendidos ao mesmo tempo, de<br />
de, de ação e de contemplação meio<br />
ma-<br />
neira a ter uma espécie de plenitude<br />
onde a nossa vitalidade atinge o auge.<br />
Galope para a loucura<br />
A Revolução Industrial não tem<br />
essa meta, mas pelo contrário rompe<br />
com ela.<br />
No século XIX houve quem se<br />
perguntasse, em presença da Revolução<br />
Industrial, se ela atentava contra<br />
as virtudes teologais, e chegaram<br />
à conclusão que não. Porém, ela<br />
atentava contra as virtudes cardeais,<br />
e isso eles não viram.<br />
Ficam dados, assim, esses pressupostos<br />
para uma análise da Revolução<br />
Industrial, que são um ponto de<br />
equilíbrio interno do homem, ou seja,<br />
a inocência, na qual, proporcionadamente<br />
com a natureza humana,<br />
o homem sente, conforme as circunstâncias,<br />
que todas suas paixões,<br />
todos os seus instintos e impulsos<br />
da alma podem aplicar-se e desenvolver-se,<br />
mas nunca em detrimento<br />
do equilíbrio entre si. Cada qual tem<br />
um dinamismo por onde se move<br />
sem violar os demais, sem procurar<br />
ocupar um espaço que não lhe é devido,<br />
e tendo seu gáudio em chegar<br />
adequadamente à plena intensidade<br />
de si mesmo nas ocasiões em que isso<br />
se justifica. E fora disso, tendo um<br />
gáudio em ocupar a proporção devida<br />
na sã psicologia humana, o que é<br />
a aplicação, nessa correlação interna,<br />
dos princípios que regem a sociedade<br />
hierárquica, harmônica, equilibrada,<br />
pura e sacral.<br />
A violação desse equilíbrio fundamental<br />
é o ponto de partida de todas<br />
as desordens, e produz esse galope para<br />
a loucura que vemos hoje em dia.<br />
A Revolução Industrial é, portanto,<br />
um modo para produzir uma espécie<br />
de desordem daquilo que, no sentido<br />
literal da expressão, seria a infraestrutura<br />
do pensamento humano, o pressuposto<br />
pessoal, psicológico de equilíbrio<br />
que deve ter o homem, quando<br />
ele se põe a pensar, a querer, a viver.<br />
20
Juan Manuel Besnes e Irigoyen (CC3.0)<br />
Tendências: a ordem<br />
natural, o sobrenatural<br />
e o preternatural<br />
O mundo das tendências não existe<br />
apenas na ordem natural. Essas<br />
tendências são muito visitadas pela<br />
graça, que produz no homem esse<br />
equilíbrio de que eu falo.<br />
Também a tendência para os desequilíbrios<br />
é muito visitada pelo<br />
preternatural, e o homem também<br />
sente algo do demônio dentro disso.<br />
Daí decorre que, historicamente,<br />
em cada indivíduo não há apenas o<br />
fenômeno natural. Ele teve sensações<br />
mais ou menos místicas que o<br />
levaram a conhecer a graça, e essas<br />
sensações ele recusou por uma coisa<br />
do demônio, e os dois polos estão<br />
implantados na alma dele; e a vida<br />
inteira ele tem uma atração da graça<br />
e do demônio, ou uma fobia do<br />
demônio e da graça, que estão no<br />
fundo da Revolução tendencial dele,<br />
fazendo a luta concomitantemente<br />
com os elementos naturais, interpenetrando-se<br />
e dando o fundo das<br />
origens da Revolução ou da Contra-<br />
-Revolução.<br />
Entretanto, o Humanismo deu ao<br />
homem uma fobia do sobrenatural e<br />
uma tendência ao comprazimento do<br />
natural que, no fundo, tocava nesse<br />
ponto. Então, o demônio entrou.<br />
O fim da Idade Média foi precedido<br />
por uns cem ou duzentos anos de<br />
decadência, antes de aparecer o contrário<br />
dela, que é o fruto do extremo<br />
da decadência dela mesma. O período<br />
da cavalaria andante, dos menestréis,<br />
dos jograis, dos romances<br />
de amor eram fugas do sobrenatural<br />
graduais que preparavam o momento<br />
em que viria a rejeição. O Humanismo<br />
é, portanto, o brado de revolta<br />
final de uma longa evolução anterior.<br />
Em alguns ambientes entrava o<br />
mal e começava a produzir esse desequilíbrio.<br />
Os bons se deixavam<br />
tentar, tiveram um pequeno esmorecimento<br />
anterior ao pecado. Veio a<br />
tentação, eles caíram.<br />
Tendo sentido a ação da graça e<br />
do demônio dentro de si, o homem<br />
percebe que os meros padrões naturais<br />
de equilíbrio não lhe bastam. Se<br />
ele busca esse equilíbrio, quando encontra<br />
a Igreja Católica ele procura<br />
discernir isso nela e amá-la por essa<br />
causa, e fazer com que isso se generalize<br />
por sua alma.<br />
Embora os estilos que foram penetrando<br />
sucessivamente na arte religiosa<br />
terem sido cada vez menos ricos<br />
disso, houve um fenômeno pelo<br />
qual, tomando por pretexto instrumentos<br />
de expressão material menos<br />
idôneos, entretanto a graça continuava<br />
a fazer sentir integralmente<br />
esse equilíbrio dela.<br />
Portanto, essa impressão de equilíbrio<br />
proveniente da graça, posso<br />
dar testemunho de que senti em<br />
todas ou quase todas as igrejas onde<br />
estive. Com mais intensidade em<br />
umas, menos noutras, com muito<br />
mais intensidade no estilo medieval,<br />
evidentemente.<br />
Isso se aplica às pessoas também.<br />
Quer dizer, os próprios clérigos tinham<br />
um certo carisma no qual algo<br />
disso transparecia.<br />
De maneira<br />
que, apesar de<br />
talvez eles terem<br />
Meister des Codex Manesse (CC3.0)<br />
advertido pouco<br />
a respeito da Revolução<br />
nas tendências,<br />
enquanto<br />
contrária às virtudes<br />
cardeais, a<br />
Igreja irradiou esse<br />
equilíbrio continuamente.<br />
v<br />
(Extraído de<br />
conferência de<br />
20/8/1986)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> n. 226, janeiro<br />
de 2017,<br />
p. 9-13<br />
21
Andrea Barbiani (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
São Pedro Damião<br />
1. São Sigisberto III, rei (†656). Filho<br />
do rei merovíngio Dagoberto I.<br />
Construiu os mosteiros de Stavelot,<br />
de Malmedy, na Bélgica. Distribuiu<br />
esmolas às igrejas e aos pobres. Morreu<br />
em Metz, França, aos 26 anos.<br />
2. Apresentação do Senhor.<br />
Santa Joana de Lestonnac, viúva<br />
(†1640). Após a morte de seu esposo,<br />
fundou em Bordeaux, França, a Sociedade<br />
das Filhas de Nossa Senhora,<br />
à imitação da Companhia de Jesus,<br />
para formação da juventude feminina.<br />
3. São Brás, bispo e mártir<br />
(†c. 320).<br />
Santo Oscar, bispo (†865).<br />
4. Santa Joana de Valois, rainha<br />
(†1505). Ver página 2.<br />
Santo Isidoro de Pelúsio, presbítero<br />
(†c. 449). Ver página 31.<br />
5. V Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
Santa Águeda, virgem e<br />
mártir (†c. 251).<br />
Beata Isabel Canori<br />
Mora, mãe de família<br />
(†1825). Sofreu com paciência<br />
e caridade a infidelidade<br />
e maus tratos de um<br />
mau esposo. Ingressou na<br />
Ordem Terceira da Santíssima<br />
Trindade, em Roma,<br />
oferecendo sua vida pela<br />
conversão dos pecadores.<br />
6. São Paulo Miki e<br />
companheiros, mártires<br />
(†1597).<br />
São Brinolfo Algotsson,<br />
bispo (†1317). Bispo<br />
de Skara, na Suécia, célebre<br />
por sua ciência e dedicação<br />
à Igreja.<br />
7. Beato Pio IX, Papa<br />
(†1878). Proclamou os<br />
dogmas da Imaculada Conceição e da<br />
Infalibilidade Pontifícia. Estimulou o<br />
florescimento das Congregações religiosas<br />
e convocou o Concílio Vaticano<br />
I.<br />
8. São Jerônimo Emiliani, presbítero<br />
(†1537).<br />
Santa Josefina Bakhita, virgem<br />
(†1947).<br />
Beata Josefina Gabriela Bonino,<br />
virgem (†1906). Fundadora da Congregação<br />
da Sagrada Família de Savigliano,<br />
Itália.<br />
9. São Rainaldo, bispo (†1222).<br />
Monge camaldulense na abadia de<br />
Fonte Avellana, exerceu o ministério<br />
episcopal em Nocera, Itália, conservando<br />
os hábitos da vida monástica.<br />
10. Santa Escolástica, virgem<br />
(†c. 547).<br />
Beato José Sánchez del Río, mártir<br />
(†1928). Jovem de 14 anos morto<br />
com um tiro na cabeça durante a<br />
Guerra dos Cristeros, em Cotija, México,<br />
após sofrer com sobranceria inúmeros<br />
tormentos. Expirou sobre uma<br />
cruz traçada por ele no solo com o<br />
próprio sangue.<br />
11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />
Santa Sotéria, virgem e mártir<br />
(†c. 304). Por amor à Fé, renunciou às<br />
honras e riquezas de sua nobre estirpe<br />
e, recusando-se a imolar aos ídolos, foi<br />
martirizada à espada, em Roma.<br />
12. VI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Bento de Aniane, abade (†821).<br />
Educado na corte de Carlos Magno,<br />
fez-se monge sob a regra beneditina e<br />
erigiu um mosteiro em Kornelimünster,<br />
Alemanha.<br />
13. São Martiniano, eremita<br />
(†c. 398). Viveu como eremita próximo<br />
a Cesareia, na Palestina. Mais tarde<br />
viajou a Atenas, Grécia, onde faleceu.<br />
14. São Cirilo, monge (†869) e São<br />
Metódio, bispo (†885).<br />
São João Batista da Conceição<br />
Garcia, presbítero (†1613). Religioso<br />
trinitário, empreendeu a renovação<br />
da Ordem e a defendeu com ardor em<br />
meio a dificuldades e tribulações, em<br />
Córdoba, Espanha.<br />
15. Santo Onésimo (†séc. I). São<br />
Paulo o acolheu como escravo fugitivo<br />
e na prisão o gerou como filho na<br />
Fé em Cristo, como ele mesmo escreveu<br />
a seu amo Filêmon.<br />
16. Beato Francisco Toyama Jintaró,<br />
mártir (†1624). Nobre samurai<br />
cuja vida cristã exemplar, influenciou<br />
na conversão de muitas pessoas. Por<br />
não negar a Fé, foi decapitado em Hiroshima,<br />
Japão.<br />
22
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
GFreihalter (CC3.0)<br />
17. Sete Santos Fundadores dos<br />
Servitas (†1310).<br />
São Flaviano, bispo (†449). Bispo<br />
de Constantinopla, que por defender<br />
a Fé Católica no Segundo Concílio de<br />
Éfeso, foi agredido pelos partidários<br />
de Dióscoro, morrendo pouco depois<br />
no exílio.<br />
18. São Teotônio, presbítero<br />
(†c.1162). Após duas peregrinações<br />
à Terra Santa, fundou em Coimbra,<br />
Portugal, a Congregação dos Cônegos<br />
Regrantes da Santa Cruz.<br />
19. VII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Lúcia Yi Zhenmei, virgem e<br />
mártir (†1862). Decapitada na aldeia<br />
de Kaiyang, China por ter confessado<br />
sua Fé.<br />
São Sigisberto III<br />
20. São Serapião, mártir (†c. 248).<br />
No tempo do imperador Décio, teve<br />
de suportar cruéis suplícios e depois<br />
foi precipitado do alto de<br />
sua própria casa, em Alexandria,<br />
Egito.<br />
21. São Pedro Damião,<br />
bispo e Doutor da Igreja<br />
(†1072).<br />
Beato Noël Pinot, presbítero<br />
e mártir (†1794). Pároco<br />
de Le Louroux-Béconnais,<br />
perto de Angers, guilhotinado<br />
durante a Revolução<br />
Francesa.<br />
22. Festa da Cátedra de São<br />
Pedro Apóstolo.<br />
Beata Maria de Jesus d’Oultremont,<br />
viúva (†1879). Após a morte do<br />
marido, fundou e dirigiu na Bélgica a<br />
Sociedade de Maria Reparadora, sem<br />
em nada negligenciar os cuidados maternos<br />
dos seus quatro filhos.<br />
23. São Policarpo, bispo e mártir<br />
(†c. 155).<br />
Beato Vicente Frelichowski, presbítero<br />
e mártir (†1945). Apesar de<br />
passar por várias prisões, nunca fraquejou<br />
na fé. Faleceu no campo de<br />
concentração de Dachau, Alemanha,<br />
após atender a muitos companheiros<br />
enfermos.<br />
24. Beato Marcos de Marconi, eremita<br />
(†1510). Religioso da Ordem<br />
dos Eremitas de São Jerônimo, em<br />
Mântua, Itália, levou vida de estudo,<br />
oração e mortificações.<br />
São Policarpo<br />
Gustavo Kralj<br />
25. Beata Maria Ludovica De Angelis,<br />
virgem (†1962). Italiana de nascimento,<br />
ingressou na Congregação<br />
das Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia<br />
e foi enviada à Argentina,<br />
onde se dedicou ao cuidado e formação<br />
de crianças e enfermos num hospital<br />
de La Plata.<br />
26. VIII Domingo do Tempo Comum.<br />
São Porfírio de Gaza, Bispo<br />
(†421). Filho de uma família da Tessalônica,<br />
viveu como anacoreta no<br />
deserto. Ordenado Bispo de Gaza,<br />
Palestina, abateu muitos templos dedicados<br />
aos ídolos e converteu numerosos<br />
pagãos.<br />
27. Beato José Tous y Soler, presbítero<br />
(†1871). Religioso capuchinho,<br />
fundou a Congregação das Irmãs Capuchinhas<br />
da Mãe do Divino Pastor,<br />
em Barcelona, Espanha, para a formação<br />
cristã da infância e juventude.<br />
28. Beato Carlos Gnocchi, presbítero<br />
(†1956). Fundou em Milão, Itália,<br />
a obra “Fundação Pro Juventute”,<br />
hoje chamada Obra Don Gnocchi,<br />
para ajudar aos mutilados pela Guerra<br />
e aos filhos dos sobreviventes.<br />
23
Gesta marial de um varão católico<br />
Armada del Ecuador (CC3.0)<br />
José Luís Ávila Silveira/Pedro Noronha e Costa (CC3.0)<br />
24
A batalha<br />
da caravela contra<br />
os submarinos<br />
Servindo-se de uma linguagem metafórica, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> resume o itinerário de sua luta, desde a<br />
infância, contra o pecado e a Revolução.<br />
M<br />
ais ou menos até os dez<br />
anos, quando entrei no<br />
Colégio São Luiz e comecei<br />
a tomar contato com essa miniatura<br />
da vida que é o colégio, eu tinha<br />
a existência alegre, feliz, de uma<br />
criança inocente que não enfrentara<br />
seus primeiros embates.<br />
Uma cordilheira<br />
de felicidade<br />
Vivia na felicidade da graça batismal,<br />
da inocência, tendo naturalmente<br />
o bem estar, o conforto material de<br />
uma criança colocada, não em condições<br />
de grande luxo nem de esplendor,<br />
mas muito convenientes, adequadas<br />
e confortáveis, proporcionadas<br />
ao que era natural apetecer. Nesse<br />
sentido, era uma criança que tinha<br />
tudo. Inclusive saúde normal. Assim,<br />
gozava de todos os prazeres de uma<br />
normalidade dourada, não no sentido<br />
do dinheiro, mas de uma luz de ouro<br />
dentro dessa normalidade.<br />
Mesmo no tocante ao relacionamento<br />
com as pessoas, reservada<br />
a primazia a Dona<br />
Lucilia, era um ambiente<br />
absolutamente<br />
todo feito de harmonias,<br />
mas no qual<br />
as consonâncias terrenas<br />
faziam cantar<br />
no meu espírito outras<br />
que eu não sabia<br />
bem como exprimir.<br />
Tantas alegrias,<br />
tanta felicidade vinham-me<br />
de perceber<br />
a retidão, a veracidade,<br />
a beleza,<br />
a bondade das coisas<br />
e de me sentir<br />
um com elas. Parecia-me<br />
tão natural<br />
que a vida fosse<br />
assim indefinidamente,<br />
que nem<br />
me passava pela<br />
cabeça poder ser de outra maneira.<br />
Ia se formando assim, no meu<br />
espírito, uma espécie de padrão<br />
de felicidade terrena católica que<br />
<strong>Plinio</strong>, Ilka e Rosée no Jardim da Luz<br />
consistia muito menos num passeio,<br />
num brinquedo, enfim, nessas coisas<br />
que divertem as crianças, do que em<br />
ver a retidão, a harmonia de tudo, e<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
25
Gesta marial de um varão católico<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Da esquerda para a direita: Rosée, Da. Zili, Da. Lucilia e <strong>Plinio</strong><br />
um imponderável e indescritível relacionamento<br />
disso com a alma, mais<br />
do que com o corpo.<br />
Comprazia-me ver a virtude, ou<br />
o que eu imaginava ser virtude, nos<br />
outros. As aparências eram muito<br />
mais saudáveis no mundo daquele<br />
tempo do que no de hoje. Eu imaginava,<br />
a julgar pela primeira vista, todo<br />
mundo virtuoso, e me alegrava.<br />
Havia qualquer imponderável<br />
que me falava mais do Céu, sem que<br />
eu fizesse incialmente essa correlação.<br />
Eu sentia esse imponderável e<br />
era como se existisse um outro mundo<br />
do qual este nosso não é senão a<br />
imagem. Eu acreditava no Céu, graças<br />
a Nossa Senhora, mas não fazia<br />
muito o relacionamento. Era um<br />
mundo de imaginação, de ouro, de<br />
nácar, que era a projeção deste e para<br />
o qual tudo devia tender.<br />
Tudo isso me dava uma ideia de<br />
uma cordilheira de felicidade, onde<br />
as razões de ser feliz se encaixavam<br />
umas nas outras e faziam um cortejo<br />
de felicidades.<br />
Os submarinos<br />
bombardeiam a caravela<br />
Minha situação na vida se me afigurava<br />
como a de uma linda caravela<br />
antiga a navegar com o vento soprando<br />
nas velas, tendo na proa<br />
uma imagem de Nossa Senhora, por<br />
exemplo, Regina Marium – a Rainha<br />
dos Mares –, mas que de repente levasse<br />
de um submarino uma bomba<br />
tremenda, rangesse inteira e tudo<br />
nela ameaçasse desconjuntar-se.<br />
Dir-se-ia que as velas murchavam,<br />
a madeira se encolhia, os ornatos e<br />
as esculturas fanavam, tudo perdia a<br />
cor na caravela e toda ela se crispava<br />
pela violência do golpe.<br />
Essa “bomba” foi, para mim, a súbita<br />
revelação do seguinte: “O mundo<br />
no qual você vai viver não é esse<br />
desejado por você. Ele tem algo<br />
disso, mas isso está moribundo. Pelo<br />
contrário, você vai viver num mundo<br />
que lhe oferece outra cordilheira<br />
de prazeres, e o ameaça com uma<br />
perseguição se você se manifestar de<br />
acordo com seus primeiros anseios.<br />
É preciso, portanto, entrar na cordilheira<br />
dos prazeres ilícitos e proibidos,<br />
meter-se nela completamente<br />
e dizer: ‘Vós sois minha alegria’, e<br />
fruí-la. Olhe como é gostoso! Tome!<br />
Com uma condição: abandone esse<br />
seu mundo dourado. Se você continuar<br />
nesse caminho, nós o liquidamos!”<br />
A metáfora escolhida por mim é<br />
intencional. Caravela, torpedo, bomba,<br />
submarino, são das coisas mais<br />
anacrônicas e antagônicas que possa<br />
haver. Mas é como se um homem<br />
Palácio de Queluz (CC3.0)<br />
26
Francisco Lecaros<br />
A Virgem com o Menino - Mosteiro<br />
de São Bento, Cuntis, Espanha<br />
estivesse dirigindo uma linda caravela<br />
com tropas de antigamente e, de<br />
repente, tivesse a revelação de haver<br />
submarinos com outro estilo de<br />
guerra mais potente, mais eficiente<br />
que liquida com ele. A caravela atingida<br />
pela bomba representa toda essa<br />
tradição, todo esse passado, todo<br />
esse sobrenatural que recebe esse<br />
impacto da Revolução.<br />
A caravela contra-ataca<br />
Imaginem, porém, uma caravela<br />
sui generis, não feita de madeira, mas<br />
viva. Dependeria dela dizer sim ou<br />
não ao torpedo. Se dissesse “sim”, a<br />
bomba entrava; se dissesse “não”, a<br />
bomba não entrava. Mas no momento<br />
em que ela dissesse “não”, ela veria<br />
o mar coalhar-se de submarinos,<br />
dos quais sairia o convite-gargalhada,<br />
o convite-desprezo, convite-insulto<br />
procedente de megafones míticos:<br />
“Avance, se você ousar!”<br />
Solução, concluiria ela: “Salve<br />
Rainha, Mãe de misericórdia...<br />
Não há outra saída, porque força<br />
para enfrentar não tenho. Não sou<br />
senão uma caravela. De outro lado,<br />
não quero deixar de ser caravela!<br />
Não consinto em me transformar<br />
em submarino, não quero<br />
que minhas esculturas desapareçam<br />
e o nobre lenho de que sou<br />
feita se transforme num vil metal.<br />
Não quero que meu formato<br />
– comparável ao de um imenso<br />
cisne a flutuar na superfície<br />
das águas – passe a ser o de um<br />
vil tubo à maneira de um charuto<br />
que afunda.<br />
Começam, então, todos os<br />
sofrimentos, todas as tristezas<br />
da batalha. Quantas e quantas<br />
vezes irá perguntar-se a si própria:<br />
Será bem verdade que a<br />
mim está acontecendo isso? Tudo<br />
mudou de um momento para<br />
o outro! E que terrível luta<br />
para enfrentar! Mas, de outro<br />
lado, a alternativa é clara: ou<br />
deixo de ser uma caravela que singra<br />
os mares, entre as ondas, à luz do<br />
Sol e da Lua, com a bênção de Nossa<br />
Senhora e me transformo num vil<br />
charuto; ou enfrento e sigo para a<br />
frente.<br />
Daí a necessidade de fabricar, pela<br />
experiência diante das decepções,<br />
ciladas, violências, toda uma arte<br />
“náutica” própria. Não a de Colombo,<br />
que com suas naus Santa Maria,<br />
Pinta e Niña veio descobrir a América<br />
atravessando mares desertos, onde<br />
o terror consistia apenas no deserto<br />
aquático aparentemente indefinido<br />
e infinito; mas a de navegar<br />
em um mar cheio de inimizades, perigos<br />
e ciladas de todos os lados.<br />
Qual era o segredo dessa luta?<br />
Primeiro: conservar o estandarte<br />
bem alto. Segundo: saber por onde<br />
avançar. Terceiro: avançar!<br />
Desventuras e alegrias<br />
em meio à batalha<br />
Porém, não é fácil avançar. Quanto<br />
jeito, quanto trabalho, quantas reflexões,<br />
quanta experiência e coordenação<br />
isso exige! Oh, dificuldade!<br />
Era uma desventura que tomava a<br />
vida inteira. Por vezes, eu pensava: se<br />
ao invés de estar colocado nessa situação,<br />
eu tivesse, por exemplo, um defeito<br />
físico notável, como uma perna ou<br />
um braço amputado, talvez algumas<br />
pessoas me evitassem, mas eu ainda<br />
Em pé, no centro, <strong>Plinio</strong>, pouco<br />
depois de seu ingresso nas<br />
Congregações Marianas<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
27
Gesta marial de um varão católico<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Plinio</strong> entre congregados marianos<br />
encontraria caminho por toda parte,<br />
pois ter-se-ia pena de um estropiado<br />
assim. Mas como isso é diferente, nas<br />
minhas condições, com todas as aparências<br />
da normalidade. O prestígio, a<br />
posição de família, as relações e tudo<br />
o que eu quisesse estariam ao meu alcance,<br />
mas a este preço: Você terá tudo<br />
despreocupadamente se, prostrado,<br />
adorares o demônio.<br />
Haveria lados bons, agradáveis da<br />
vida que compensassem esses sofrimentos?<br />
Seria, talvez, muito bonito<br />
se eu dissesse que não. Mas devo dizer<br />
a verdade.<br />
Tenho uma tendência natural a<br />
alegrar-me, a tomar as coisas pelo seu<br />
lado bom, dando muito valor àquilo<br />
que pode ser bom e me contentar.<br />
Por outro lado, não me sentia chamado<br />
a ser um religioso que deixa todas<br />
as coisas da Terra para levar apenas<br />
a vida de seu próprio convento. Sentia-me<br />
propenso a levar a vida<br />
de uma pessoa que percebe<br />
existir no mundo, como era naquele<br />
tempo, muita coisa apreciável,<br />
agradável, deixada pela<br />
tradição, resto de um passado<br />
que falava daquela felicidade<br />
da “caravela”. Quer dizer, vinham<br />
brisas e luzes do mar sereno.<br />
Eram as horas nas quais<br />
a caravela se rejubilava!<br />
“A Contra-Revolução<br />
é a alegria de<br />
minha alma!”<br />
Nesse sentido, Nossa Senhora<br />
me favoreceu obtendo-<br />
-me a graça de compreender<br />
bem o nexo entre todas as coisas<br />
legítimas, boas. De maneira<br />
que fruindo essas coisas, eu<br />
não o fazia pelo lado animal,<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
mas sobretudo pelo prazer de alma<br />
que elas proporcionavam.<br />
Por exemplo, o mar. Sem dúvida,<br />
ele me causava um prazer dos sentidos:<br />
estar dentro do mar, sua beleza<br />
física, o agradável da praia. Tudo<br />
isso era profundamente notado<br />
e apreciado por mim. Mas por cima<br />
disso havia uma ideia da grandeza,<br />
da vastidão, do significado simbólico<br />
do mar, de tudo aquilo para que<br />
o mar convida; a ideia de que ele me<br />
ligava à terra de todas as belezas e<br />
de todas as tradições: a Europa.<br />
Aquela onda que ali chegava, talvez<br />
tivesse batido na Torre de Belém!<br />
Quem sabe proviesse, pelo estreito<br />
de Gibraltar, da Côte d’Azur,<br />
celestial e magnificamente azul, no<br />
sul da França. Quiçá da baía de Nápoles...<br />
Teria aquela água, que eu via<br />
se mover diante de mim, passado pelo<br />
Canal da Mancha, estado no Mar<br />
do Norte, roçado icebergs mais para<br />
o norte ou mergulhado, mais para<br />
o sul, nas brumas prateadas e azuladas,<br />
representadas nas porcelanas<br />
dinamarquesas? Que maravilha!<br />
Que magnificência!<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contempla o mar, em 1993<br />
Ubatuba, São Paulo, Brasil<br />
28
Carlos Luis M C da Cruz (CC3.0)<br />
Torre de Belém<br />
Lisboa, Portugal<br />
A alegria de imaginar-me envolto<br />
por esse azul e esse prateado tinha seu<br />
suporte de realidade nos sentidos, mas<br />
se referia principalmente a estados de<br />
alma já vislumbrados por mim em menino,<br />
e que a maturação da idade foi<br />
tornando mais definidos e ricos, permitindo-me<br />
discerni-los melhor.<br />
Havia nisso uma capacidade de<br />
ser mais espiritual e, portanto, de<br />
participar da felicidade que é irmã<br />
da virtude. Porque fora do estado de<br />
graça a alma não entende nem frui<br />
essas alegrias.<br />
Assim, no meio de todas as asperezas<br />
das batalhas, de todos os episódios<br />
intrincados da luta, havia momentos<br />
nos quais eu sentia a união, a<br />
coesão da virtude com todos os prazeres<br />
ordenados nesta Terra.<br />
Revendo, como homem maduro,<br />
minha reação ante as carruagens<br />
de Versailles 1 , tenho certeza de que<br />
aquele gosto tão enfático, fruído em<br />
estado de graça, dava-me uma felicidade<br />
que me levaria a dizer: A Contra-Revolução<br />
é, na Terra, a alegria<br />
de minha alma!<br />
Marcha triunfal sobre os<br />
escombros dos submarinos<br />
Ao longo de toda a vida pode-se<br />
ser tentado a cometer pecados mortais.<br />
Nos meus primeiros embates<br />
nessa guerra contra as tentações, vinha-me<br />
instintivamente ao espírito<br />
a ideia – maturada e aprofundada<br />
mais tarde – de que, analisando apenas<br />
o grau de prazer nesta vida, o homem<br />
prevaricador é um bobo, porque<br />
todo o deleite que o pecado pode<br />
dar não é comparável a essa felicidade<br />
vinda da retidão do sentir e<br />
do fruir o universo, essa integridade<br />
da alma voltada para a virtude e para<br />
Deus.<br />
Isso me levava a concluir: o felizardo<br />
sou eu! Não segundo os critérios<br />
do mundo, ou seja, sem luta e<br />
sofrimento. Eu vergo sob o peso da<br />
luta e quase racho sob o fardo do sofrimento.<br />
Mas há um lado da realidade<br />
para a qual eu olho e minha alma<br />
se expande inteira.<br />
Quem se entrega a uma vida pecaminosa<br />
tem fogachos de deleites<br />
físicos, estremecimentos, frêmitos de<br />
prazeres sensíveis que passam. Mas<br />
sente, depois, o lixo e horror de sua<br />
situação. O que o demônio promete,<br />
isso mesmo é o que ele quer tirar.<br />
Ele oferece, com o pecado, a felicidade,<br />
mas o pecador experimenta<br />
a frustração.<br />
Essa verdade tornou-se inteiramente<br />
patente para mim, com sonoridades<br />
de marcha triunfal, quando<br />
deixei o mundo e entrei para o movimento<br />
católico. Isso se estendeu,<br />
atingiu um ápice com minha eleição<br />
para deputado. Conservou-se muito<br />
alto na minha condição de professor<br />
na Faculdade de Direito, em<br />
cujas cátedras famosas, veneradas<br />
por São Paulo inteira, eu lecionava<br />
para alunos quase de minha idade.<br />
Ademais, liderava um movimento<br />
religioso, cuja importância na vida<br />
temporal ia ficando cada vez mais<br />
clara aos olhos de todo mundo, e isso<br />
ainda em minha extrema mocidade.<br />
Era uma vitória! Propriamente a<br />
marcha triunfal sobre os escombros<br />
dos submarinos.<br />
29
Gesta marial de um varão católico<br />
www.nmm.ac.uk (CC3.0)<br />
“O estandarte está no<br />
alto e o dia da justiça<br />
está chegando!”<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Assim foi até o momento em que<br />
comecei a notar os problemas denunciados<br />
em meu livro Em Defesa<br />
da Ação Católica 2 , ou seja, a serpente<br />
imunda que se esgueirava, difundindo<br />
a sonoridade ruim dos seus<br />
guizos, com sua dança lúbrica e indecente,<br />
no salão magnífico, nobre como<br />
um tabernáculo, da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana. Travaram-se,<br />
então, outros combates.<br />
Restava, por fim, uma coisa muito<br />
importante: por mais que caíssem<br />
as pedras, por mais que o mar se tornasse<br />
turvo e revolto, se a caravela<br />
não afundasse, ela constituía parte<br />
marcante no panorama, e era um<br />
pedestal digno para o estandarte que<br />
ela mantinha bem alto.<br />
Continuava, portanto, a haver no<br />
cenário da luta um lugar de honra<br />
para esse pedestal. Enquanto o estandarte<br />
ficasse içado bem no alto da<br />
caravela, ele seria honrado ad majorem<br />
Dei gloriam, ad majorem Mariæ<br />
gloriam, ad majorem Ecclesiæ gloriam<br />
3 . Isso feito, o navegar da caravela<br />
se justificava por si. Para frente!<br />
Vieram, mais tarde, outras compensações:<br />
a caravela, que outrora navegava<br />
sozinha, viu aparecer junto a si<br />
escaleres que constituíam seu ornato e<br />
sua alegria. Restava ainda a felicidade<br />
de ver as “naus” se multiplicando.<br />
Em determinado momento, a integridade<br />
física da “caravela”, um desastre<br />
a levou... 4 No total, convivendo<br />
com a dor, uma alegria se conserva.<br />
Essa alegria, qual é? Ainda que nenhuma<br />
outra restasse, esta permaneceria:<br />
o estandarte está no alto e o dia<br />
da justiça está chegando! v<br />
(Extraído de conferência de<br />
11/4/1981)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 17, p. 28-29.<br />
2) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 129, p. 19-20.<br />
3) Do latim: Para a maior glória de Deus,<br />
para a maior glória de Maria, para<br />
a maior glória da Igreja.<br />
4) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se refere ao desastre de automóvel<br />
sofrido por ele em 3 de fevereiro<br />
de 1975.<br />
30
Hagiografia<br />
Modos de tratar<br />
os pecadores<br />
Aos pecadores que se<br />
arrependem de suas faltas<br />
devemos tratar com doçura.<br />
Mas aos que não sentem<br />
pesar de suas culpas e<br />
são petulantes, é preciso<br />
mostrar toda firmeza para<br />
quebrar seu orgulho.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
V<br />
amos tratar de Santo Isidoro<br />
de Pelúsio, grande lutador<br />
contra as heresias, que<br />
viveu no século V.<br />
Vingar a injúria<br />
feita a Deus<br />
Um sofista, Asclépio, em uma de<br />
suas cartas a Santo Isidoro, recomendava-lhe<br />
que moderasse sua linguagem.<br />
Então respondeu o Santo:<br />
Não creias que mudarei de tom e<br />
que me tornarei um fraco bajulador.<br />
Ao contrário, ou cessas de me dar tais<br />
conselhos ou eu te expulsarei do número<br />
de meus amigos.<br />
Que admirável! Isto é o cumprimento<br />
do preceito de Nosso Senhor,<br />
constante do Evangelho: “Seja vossa<br />
Santo Isidoro de Pelúsio<br />
31
Hagiografia<br />
Sergio Hollmann<br />
linguagem sim, sim, não, não!” (Mt<br />
5, 37). Esse Asclépio recomendou<br />
a Santo Isidoro que atacasse menos<br />
fortemente os arianos e obteve essa<br />
resposta. Ou seja, se quiser me dar<br />
um conselho idiota que importa uma<br />
traição à causa católica, eu o corto<br />
do número dos meus amigos.<br />
Trecho de uma carta de Santo Isidoro<br />
ao Bispo de Teón:<br />
Somos igualmente culpados. Tanto<br />
quando vingamos nossas injúrias<br />
como também quando não sentimos<br />
as que são feitas a Deus. Tratando-se<br />
de nós, usemos de toda a indulgência<br />
quando nos ofenderem. Entretanto se<br />
foi Deus ultrajado, não devemos suportar.<br />
Ele diz que há duas formas de<br />
culpa, em matéria de injúrias: uma<br />
quando nos injuriam pessoalmente e<br />
nós nos vingamos; não devemos nos<br />
vingar das injúrias que nos fazem.<br />
Outra forma de culpa é quando não<br />
vingamos as injúrias feitas a Deus. A<br />
essas injúrias nós devemos vingar; é<br />
uma obrigação. Essas são palavras<br />
de um Santo canonizado pela Igreja<br />
para servir de modelo para nós.<br />
É preciso tremer de indignação<br />
quando se vê Deus injuriado.<br />
Tremer quer dizer estremecer de<br />
indignação.<br />
Vede, entretanto, como somos fracos.<br />
Somos sensíveis a ponto de não<br />
querer perdoar nossos inimigos, e só<br />
temos doçura com aqueles que se elevam<br />
contra Deus.<br />
Moisés não agia assim, embora<br />
fosse o mais suave dos homens. Ele<br />
não deixou de se encolerizar contra<br />
os israelitas quando fizeram o bezerro<br />
de ouro, e sua cólera nessa ocasião foi<br />
bem mais santa do que toda a doçura<br />
que acaso houvesse mostrado. Elias<br />
levantou-se contra os idólatras. João<br />
Batista contra Herodes. São Paulo<br />
contra Elimas. Isto sempre para<br />
vingar a injúria feita a Deus.<br />
Quanto a eles, esqueciam-se<br />
sem dificuldade das injúrias<br />
que lhes eram dirigidas.<br />
É verdade que Deus é poderoso<br />
bastante para Se fazer justiça,<br />
mas Ele quer que as pessoas<br />
de bem detestem o pecado e o<br />
façam detestar. E é nesta conduta de zelo<br />
que os Santos faziam consistir a virtude<br />
e a verdadeira Filosofia.<br />
Um pequeno exame<br />
de consciência<br />
Santo Elias - Paróquia<br />
São João da Cruz, Alba<br />
de Tormes, Espanha<br />
O que Santo Isidoro acaba<br />
de dizer, em duas palavras,<br />
é o seguinte: era bom que as<br />
pessoas a quem ele se dirigia<br />
vissem como eram fracas. Diz<br />
ele:<br />
Vede, entretanto, como somos<br />
fracos.<br />
Esse é o modo antigo de<br />
dizer “como vocês são fracos”.<br />
É muito desagradável<br />
chegar num auditório<br />
e declarar: “Vocês são fracos,<br />
vocês têm tais defeitos.”<br />
Então, é uma maneira<br />
educada de dizer “nós somos<br />
fracos”. É claro que o Santo não<br />
era fraco, mas o modelo de fortaleza.<br />
Entretanto, por bondade se colocava<br />
no meio dos outros.<br />
Lembro-me de um Santo que pregava<br />
para leprosos e, quando falava<br />
com eles, dizia “Nós leprosos…”,<br />
porque fica muito desagradável afirmar<br />
“vocês leprosos”. Dá a impressão<br />
que empurra de lado...<br />
Então Santo Isidoro dizia “somos”.<br />
Mas não devemos supor que um Santo<br />
pudesse ter essa fraqueza; é impossível,<br />
a Igreja não o teria canonizado.<br />
Vou pôr na linguagem que exprima<br />
o fundo das coisas: “Vede como sois<br />
fracos, vós sois sensíveis a ponto de<br />
não querer perdoar vossos inimigos.”<br />
Quer dizer, “Quando vos fazem uma<br />
ofensa pessoal, ficais muito sentidos,<br />
e não conseguis perdoar. Entretanto,<br />
contra aqueles que ofendem a Deus,<br />
vós apenas tendes doçura.”<br />
Sergio Hollmann<br />
Moisés - Basílica da Estrela,<br />
32 Lisboa, Portugal
É o caso de fazermos aqui um pequeno<br />
exame de consciência.<br />
Nos quatro ou cinco últimos dias, é<br />
impossível que alguém não nos tenha<br />
feito uma ofensa, por pequena que seja,<br />
um atrito qualquer. Nós vimos pecados<br />
contra Deus de toda ordem,<br />
basta sair à rua. O que mexeu mais<br />
com os nossos nervos: o pecado contra<br />
Deus ou a desatenção feita a nós?<br />
Esse é um bom exame de consciência.<br />
Nesses últimos dias, não teremos<br />
ficado exacerbados com alguma desatenção<br />
que nos foi feita? É bem<br />
provável... Ficamos igualmente exacerbados<br />
diante de algum pecado<br />
que presenciamos? Quem sabe se<br />
nós merecemos as palavras de Santo<br />
Isidoro de Pelúsio? É bem possível!<br />
Eu volto a dizer: é uma boa ocasião<br />
para um exame de consciência.<br />
Não se ganha todo mundo<br />
com métodos iguais<br />
Depois ele dá exemplos de Santos<br />
que não eram assim, mas violentos<br />
no castigar as ofensas feitas a Deus,<br />
e sabiam perdoar as injúrias cometidas<br />
contra eles, como por exemplo,<br />
Moisés que, sendo o mais suave<br />
dos homens, entretanto encolerizou-se<br />
com os israelitas quando fizeram<br />
o bezerro de ouro. Elias levantou-se<br />
contra os idólatras e pediu fogo<br />
do céu, que os exterminou. São<br />
João Batista indignou-se com Herodes.<br />
São Paulo com Elimas.<br />
Por quê? Porque esses eram pecadores,<br />
idólatras, homens de vida impura.<br />
Deus se indignou contra eles,<br />
e também os profetas se indignaram.<br />
Quanto às ofensas feitas a esses Santos<br />
pessoalmente, eles se esqueciam<br />
sem dificuldade.<br />
Em outra ocasião, Santo Isidoro<br />
de Pelúsio afirmou que com as pessoas<br />
de bem é preciso mostrar-se suave,<br />
paciente, humilde, mas com os<br />
arrogantes e orgulhosos deve-se saber<br />
usar um tom firme.<br />
Quer dizer, com as pessoas que<br />
veem com tristeza o mal que fizeram,<br />
podemos ser bons. Quando o indivíduo<br />
vem se jactando do mal que fez,<br />
é preciso pular em cima dele.<br />
Continua o Santo:<br />
Aqueles olham a doçura como<br />
uma virtude; eis por que devemos usá-<br />
-la para consolá-los.<br />
Quer dizer, os que se arrependem<br />
de seus pecados são pessoas inclinadas<br />
à doçura. Os que não se arrependem<br />
são petulantes e só entendem a<br />
força. É preciso mostrar-lhes toda a<br />
firmeza para quebrar seu orgulho.<br />
Com essa conduta sábia e prudente<br />
sustentamos uns e humilhamos outros.<br />
Não se ganha todo o mundo com<br />
métodos iguais.<br />
É uma esplêndida consideração.<br />
Ao pecador arrependido trata-se de<br />
um jeito; ao não arrependido, de outro.<br />
<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/10/1968)<br />
Gustavo Kralj<br />
Francisco Lecaros<br />
São João Batista increpando Herodes<br />
Museu de Navarra, Pamplona, Espanha<br />
Episódios da vida de São Paulo Apóstolo<br />
Basílica São Paulo Extra-muros, Roma, Itália<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
A.Savin (CC3.0)<br />
Harmonia na arte,<br />
harmonia na vida<br />
Fachada principal<br />
da Academia de<br />
Atenas, Grécia<br />
Ao considerar a arte grega, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discerne a<br />
profunda tendência desse povo para a harmonia.<br />
Dotados de bom gosto extraordinário, os gregos<br />
tinham o talento de fazer coisas lindíssimas, até<br />
imortais, sem gastar muito dinheiro. O que custa,<br />
por exemplo, levantar uma coluna? Não é muita coisa.<br />
Colunas que ficaram imortais<br />
Com um muito bom golpe de vista, eles entendiam o<br />
que precisa ter uma coluna para ser maravilhosa. Que relação<br />
deve haver entre a base e o topo, por exemplo. Ela<br />
precisa ir estreitando lentamente, de tal maneira que em<br />
cima seu diâmetro seja menor do que o da base, e o observador<br />
tenha a impressão de que a coluna é mais alta,<br />
porque afinou e está longe da vista dele.<br />
É feia a coluna gorducha em baixo e que vai ficando,<br />
de repente, mais fina. É preciso que ela vá adelgaçando-<br />
-se de tal maneira que a pessoa, à primeira vista, não perceba<br />
que ela afinou.<br />
Coluna lisa, sem graça, é um tubo que não vale nada.<br />
Deve-se fazer coluna com adornos, com reentrâncias e<br />
saliências. Que profundidade devem ter as reentrâncias,<br />
que largura os bordos das saliências para serem bonitas?<br />
Qual é o tamanho de cada gomo da coluna em comparação<br />
com a altura e a largura? Como precisa ser a base<br />
para dar a impressão de que a coluna é forte? Como deve<br />
ser o capitel para causar a impressão de que ela é graciosa?<br />
Por que razão a coluna precisa proporcionar a impressão<br />
de forte na base e graciosa no alto? Não seria bonita<br />
uma coluna graciosa na base e pesadona no alto? Não<br />
pode ser assim, a sugestão é desagradável. Uma coisa<br />
graciosa que aguenta uma pesadona é um pesadelo!<br />
Que proporção de força e de leveza deve ter uma coluna<br />
para agradar ao homem? Há colunas que ficam<br />
imortais. Às vezes, com o passar dos séculos, o templo inteiro<br />
cai, e uma coluna que reste é um monumento histó-<br />
34
Onkel Tuca! (CC3.0)<br />
G Da (CC3.0)<br />
rico, guardado hoje em dia com todo o cuidado, estudado<br />
nos álbuns de arquitetura do mundo inteiro.<br />
Que indicam essas colunas? A tendência profunda<br />
desse povo para a harmonia, a capacidade de estabelecer<br />
as relações entre os vários elementos de um todo, de<br />
maneira a ficar agradável de ver. Esta é a harmonia dentro<br />
da obra de arte.<br />
Mesmo as praças de aldeolas eram de uma beleza, de<br />
uma harmonia célebre até o fim do mundo. Os gregos viviam<br />
ladeados, inundados pela harmonia, mas uma harmonia<br />
inteligente que exigia trabalho para perceber, e<br />
era filha do desejo de perfeição.<br />
Vivacidade e distinção em ânforas de barro<br />
As ânforas de barro fabricadas pelos gregos são admiradas<br />
até hoje em todos os museus bem equipados da<br />
Europa, porque se conservaram muitas. Ânforas de uma<br />
cor de terra avermelhada com uma faixa preta em cima,<br />
na ponta mais larga da ânfora. Eles não pintavam a parte<br />
que não tinha figura, de maneira que esta ficava com a<br />
cor vermelha do barro.<br />
Eram as coisas mais comuns. Por exemplo, um homem<br />
levando um bezerro pela corda para vender no mercado.<br />
Nota-se a elegância do homem, o bezerro anda com classe<br />
e a própria corda tem uma linha extraordinária! O indivíduo<br />
que puxa o bezerro tem um estilo natural ao de um<br />
homem do campo, não é um nobre. Mas é todo distinto.<br />
Na porta da casa está a mulher esperando. É uma figura<br />
de tragédia grega: uma Penélope qualquer com aquelas<br />
saias sucessivas e aquele ar, ao mesmo tempo simples,<br />
natural e distintíssimo. De maneira que se tem a impressão<br />
de um teatro vivo. Entretanto, é apenas uma moringa<br />
comprada na feira!<br />
A harmonia na arte era a meta deles para ter harmonia<br />
na vida. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 11/1/1986)<br />
Ruínas do Partenon, Atenas, Grécia<br />
Ruínas do templo de Zeus, Atenas, Grécia<br />
Teatro de Herodes Ático,<br />
Acrópole de Atenas, Grécia<br />
G Da (CC3.0)<br />
qwesy qwesy (CC3.0)<br />
Andrew Baldwin (CC3.0)<br />
Vista noturna das ruínas do Partenon<br />
Giovanni Dall’Orto. (CC3.0)<br />
35
Timothy Ring<br />
Apresentação do Menino Jesus<br />
no Templo - Pro-Catedral de<br />
Santa Maria, Hamilton, Canadá<br />
A Virgem do Bom Sucesso<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo foi gerado pelo Espírito Santo em Maria Santíssima, virgem antes,<br />
durante e depois do parto. Quando a gestação tem como resultado o bom nascimento<br />
do filho, chama-se “bom sucesso”. Assim, Nossa Senhora do Bom Sucesso é o título conferido<br />
a Ela enquanto tendo dado à luz, maravilhosamente e do modo mais feliz possível, o Filho Divino<br />
que o Espírito Santo gerou em suas entranhas virginais.<br />
A Lei mosaica ordenava que todo primogênito fosse apresentado no Templo e oferecido a Deus.<br />
Embora não precisasse cumprir esse preceito, pois seu Filho era o próprio Deus, Nossa Senhora nos<br />
deu um lindo exemplo de amor e de obediência à Lei, levando o Menino Jesus ao Templo onde o Profeta<br />
Simeão O aclamou como “luz para iluminar as nações” e “sinal de contradição” (Lc 2, 32 e 34).<br />
O Bom Sucesso da Santíssima Virgem foi assim consagrado pela Apresentação do Menino Jesus no<br />
Templo.<br />
(Extraído de conferências de 2/2/1983 e 1/2/1984)