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01 - Extinguish

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~ 1 ~


J.M. Darhower<br />

#1 <strong>Extinguish</strong><br />

Série <strong>Extinguish</strong><br />

Tradução e revisão: Lu<br />

Leitura Final: Anne Pimenta<br />

Data: 09/2<strong>01</strong>6<br />

<strong>Extinguish</strong> Copyright © 2<strong>01</strong>3 J.M. Darhower<br />

~ 2 ~


SINOPSE<br />

Um... dois... três... quatro.<br />

Eu declaro guerra.<br />

Serah sempre acreditou que o mundo ao seu redor era perfeito.<br />

Como um Poder, uma espécie de anjos guerreiros, ela passou sua<br />

existência defendendo os inocentes do mau. Depois que uma tragédia<br />

acontece, dando fim à vida do irmão de Serah, é dada a ela a tarefa de<br />

parar o apocalipse que se aproxima antes que seja tarde demais.<br />

Só uma coisa, porém: ela tem que se aventurar pelo Inferno para<br />

fazer isso.<br />

Lúcifer – ou Luce, como ele prefere ser chamado – tem passado<br />

um tempo no Inferno, querendo vingança contra aqueles que tão<br />

facilmente o jogaram nesse buraco. Quando a beleza celestial aparece<br />

nos seus portões, ele fica tão cativado por ela quanto ela por ele. A<br />

atração entre ele é palpável, e a força de vontade de Serah começa a<br />

enfraquecer lentamente. Como pode essa criatura encantadora, esse<br />

Arcanjo caído, ser aquele que vai destruir o mundo que ela tanto ama?<br />

Quando a guerra cobra seu preço, o mundo entra no caos, e<br />

Serah começa a questionar tudo que sempre soube. Quando luz e<br />

escuridão, fogo e gelo, finalmente colidem, ela tem que fazer uma<br />

escolha – uma escolha que vai incendiar seu mundo branco e preto<br />

explodindo em chamas de cores.<br />

Serah tem perguntas. Ela quer respostas.<br />

Luce quer apenas jogar um jogo.<br />

~ 3 ~


A SÉRIE<br />

Série <strong>Extinguish</strong><br />

J.M. Darhower<br />

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Tudo que é feito por amor, acontece entre o bem e o mal.<br />

- Friedrich Nietzsche<br />

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Prólogo<br />

O ar frio rastejou através do pequeno pátio da escola, agitando os<br />

balanços abandonados em cada lado de Serah. Uma vez cheio de vida<br />

com o riso infantil despreocupado, tudo que podia ser ouvido aqui agora<br />

eram os sons da desolação; as correntes de metal rangendo e se<br />

batendo, as folhas de tom terroso se quebrando nas árvores ao serem<br />

surradas pelo vento, misturados com os agudos e ameaçadores ruídos<br />

pairando na atmosfera, assobios e gemidos que só ela podia ouvir.<br />

Os braços e pernas de Serah estavam arrepiados enquanto ela<br />

tremia, tirando o cabelo castanho do rosto quando ele voou sobre os<br />

seus olhos. Seu vestido longo de verão balançava ao vento, escurecido<br />

pela sujeira que escondia o bonito tom de pêssego que ele costumava<br />

ter. Certa vez respeitável e elegante, ela tinha sido rasgada, manchada<br />

pelo pecado, coberta de desonra.<br />

Como ela tinha ido tão longe? Como ela caiu tão rápido, tão<br />

duramente?<br />

A resposta à sua pergunta apareceu bem na frente do seu rosto.<br />

Ela o sentiu antes de vê-lo, sentiu sua presença como a brisa<br />

amarga. Ele tinha cheiro de fósforos, de faíscas estalando com uma<br />

pitada de hortelã-pimenta. A eletricidade no ar se intensificou, o céu se<br />

agitou, um redemoinho vermelho e preto de nuvens bloqueou a luz solar<br />

tão necessária. Uma tempestade se aproximava rapidamente e essa<br />

tempestade tinha nome.<br />

— Lúcifer.<br />

Serah olhou para o outro lado do parque quando ele saiu de trás<br />

do escorregador de metal desgastado. Embora fosse a metros de<br />

distância, ela sabia que ele tinha ouvido ela sussurrar seu nome. Alto,<br />

moreno e bonito, um grande clichê, essa era a única maneira que ela<br />

conseguia pensar em descrevê-lo. Seu cabelo curto e escuro estava uma<br />

bagunça selvagem de cachos grossos, sua camisa de mangas compridas<br />

estava abotoada de maneira que permitia ver uma sugestão do seu peito<br />

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sólido. Com ombros largos e pele bronzeada, Lúcifer parecia resistente,<br />

mas ainda inofensivo, as covinhas que se mostravam com seu meiosorriso<br />

quase amigáveis. Com apenas um olhar, uma leve curvatura dos<br />

seus lábios, ele convidava você a ficar para sempre. E não havia como<br />

negar a uma criatura tão carismática. Embora talvez não fosse o<br />

Paraíso, ele certamente era casa.<br />

Mas seus olhos contavam outra história, uma bem diferente, mais<br />

raivosa e sinistra, apenas levemente escondida por encanto. Uma vez<br />

tão brilhantes e azuis, como uma tarde de verão, eles agora queimavam<br />

em preto e vermelho, como o céu em chamas à noite, um pequeno<br />

vislumbre do monstro apodrecido sob sua pele bonita.<br />

— Pare com isso, — ela disse, sua voz baixa e suave. — Por favor.<br />

Ele deu um passo para frente, se aproximando. Serah estremeceu<br />

violentamente quando o ar ao seu redor ficou mais gelado, como se ele<br />

tivesse reivindicado cada partícula de calor para si mesmo. O coração<br />

dela disparou freneticamente no peito, tão rápido e forte que doía, uma<br />

britadeira frenética em sua caixa torácica. Thump, thump, thump. Essa<br />

era uma sensação que ela não sentiu até recentemente – não até ele,<br />

não até isso.<br />

— Eu não posso, — ele sussurrou.<br />

— Você precisa, — ela insistiu. — Isso já foi longe demais.<br />

Ele ficou lá, impassível, escultural enquanto olhava para ela. O<br />

céu continuou agitado, esporádicos pingos grossos começaram a cair.<br />

Um deles salpicou na pele dele e chiou quando se evaporou em uma<br />

nuvem de vapor.<br />

O céu estava chorando lágrimas de ácido.<br />

— Lúcifer, eles vão...<br />

Ele a cortou. — Eu sei.<br />

— Você não pode vencer.<br />

— Eu sei disso, também.<br />

— Então por quê? — ela perguntou, pediu, implorou uma<br />

resposta que fosse capaz de entender. — Por que você está fazendo<br />

isso?<br />

Ele hesitou, dando mais um passo na direção dela, suas mãos<br />

agarrando as correntes do balanço em que ela estava sentada. Se<br />

~ 7 ~


inclinando, ele pressionou a testa febril contra a dela e olhou fixamente<br />

em seus olhos, em busca de alguma coisa, enquanto ela também<br />

procurava a verdade nos dele.<br />

Depois de um momento, ele soltou um suspiro<br />

profundo. Pressionando os lábios nos dela, ele a beijou suavemente,<br />

docemente, um gesto inocente para uma criatura que era chamada de<br />

‗Diabo‘.<br />

— Eu tenho que tentar, — ele murmurou, — por você.<br />

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Capítulo Um<br />

SEIS SEMANAS ANTES<br />

(Ou seis meses, ou seis anos... o tempo é nada mais que um piscar, às vezes)<br />

Ring-a-round a rosie,<br />

A pocket full of posies;<br />

Ashes! Ashes!<br />

We all fall down 1 .<br />

As duas meninas caíram na grama verde e exuberante. A loira, de<br />

sete anos de idade, Emily Ann Dryer, balançou seus pés com alegria,<br />

enquanto sua melhor amiga, a morena Nicki Marie Lauer, ria<br />

alegremente ao lado dela. Suas colegas corriam ao redor delas,<br />

brincando e gritando, curtindo cada segundo que havia na pausa do<br />

meio-dia.<br />

— Isso é sobre a praga? — Hannah perguntou, inclinando a<br />

cabeça de cachos loiros para o lado enquanto estudava as crianças. —<br />

A Peste Negra?<br />

— Talvez, — respondeu Serah, balançando suavemente para trás<br />

e para frente sentada no balanço do meio. — Ou talvez seja apenas uma<br />

canção para crianças.<br />

— De qualquer maneira, é um absurdo, — disse Hannah. — Isso<br />

não faz sentido.<br />

1 Esse é um trecho de uma cantiga rimada infantil, que as crianças cantam enquanto<br />

brincam de roda. Na verdade, ela é uma música meio polêmica, porque se acredita que<br />

faça referência à Peste Negra, que matou cerca de um terço da população europeia o<br />

século XIV. Os trechos são assim: Um círculo avermelhado (infectados costumavam<br />

ter um anel vermelho ao redor dos olhos)/Um bolso cheio de flores (as pessoas<br />

carregavam flores para disfarçar o cheio de corpos decompostos que se espalhava<br />

pelas cidades, já que não havia saneamento e essas coisas)/Cinzas! Cinzas! (eles<br />

costumavam pegar os cadáveres e pessoas em sofrimento, jogar em uma cova e<br />

colocar fogo, para diminuir o avanço da doença)/Todos nós vamos cair (quer dizer que<br />

todos vão morrer).<br />

~ 9 ~


— Essa é a questão, — Serah observou enquanto as meninas se<br />

afastavam de mãos dadas, girando em círculos novamente. — A ideia é<br />

ser uma música boba.<br />

Hannah suspirou. — Eu nunca vou entender os seres humanos.<br />

Serah olhou para o balanço ao lado dela, enquanto a atenção de<br />

Hannah se afastou das crianças. Ela olhou para o céu da tarde sem<br />

nuvens, os olhos focados diretamente no sol. Seu vestido vermelho<br />

brilhava sob os raios fortes, e era quase possível ver através das suas<br />

asas cintilantes, um escudo de luz dourada no ar em torno dela.<br />

Justo então um garoto correu – Johnny Lee-Smith, de oito anos –<br />

e puxou o rabo de cavalo de Nicki. Ele puxou com força, a afastando da<br />

sua melhor amiga, e a jogando no chão antes de correr outra vez.<br />

Suspirando, Serah estalou os dedos. Johnny patinou até parar e<br />

se virou, fazendo uma pausa por uma fração de segundo antes de correr<br />

de volta para ajudar Nicki a levantar.<br />

— Me desculpe, — ele murmurou. — Não fique brava, ok?<br />

As lágrimas de Nicki secaram enquanto ela balançava a cabeça.<br />

— Ok.<br />

São as coisas básicas – amor, respeito e compaixão – que faz a<br />

grande diferença, na maioria das vezes. O menino e a menina trocaram<br />

um sorriso antes de cada um seguir seu caminho outra vez.<br />

— Você deveria ser canonizada, — disse Hannah. — Eu não<br />

poderia lidar com essas pequenas criaturas inconstantes todos os dias.<br />

— Há coisas piores lá fora, — Serah lembrou. — Além disso, as<br />

crianças são as mais fáceis. Eles ainda têm consciência.<br />

— Por isso que você quis esse trabalho?<br />

As meninas voltaram a dar as mãos e continuaram a brincar<br />

como se nada tivesse acontecido. Criaturas resilientes, as crianças.<br />

Serah ficou feliz por voltar a assumir a tarefa de vigiá-los, uma tarefa<br />

que os de sua espécie não compreendiam ou apreciavam. — Eles me<br />

dão esperança. Me lembram porque todos nós fazemos o que fazemos<br />

todos os dias.<br />

— Eu poderia dizer o mesmo sobre a grama e as árvores, mas<br />

você não me vê sendo voluntária para o serviço de jardinagem, não é?<br />

~ 10 ~


Serah riu. — Eu não vejo você se voluntariando para qualquer<br />

coisa.<br />

Um sino tocou ao longe. Todas as crianças correram para o prédio<br />

da escola, passando por elas, alguns batendo contra os seus balanços.<br />

Ninguém olhou na direção delas ou suspeitou de sua presença, as<br />

crianças alheias aos anjos sentados no pátio da escola.<br />

Eles só eram vistos quando queriam ser vistos.<br />

Quando as crianças obedientemente formaram uma fila para<br />

voltar às salas de aula, algo se agitou no ar. O sol vibrante desapareceu<br />

de repente atrás de uma cobertura densa de nuvens, e o céu azul<br />

escureceu até ficar escuro como a noite.<br />

— Você está fazendo isso? — Serah perguntou, olhando para<br />

cima.<br />

Hannah balançou a cabeça lentamente. — Hoje não deveria<br />

chover.<br />

Elas saltaram ao mesmo tempo quando um trovão rugiu, o<br />

relâmpago mortal piscando no céu. As crianças gritaram, assustadas<br />

com a mudança de tempo, antes de correr para dentro da escola,<br />

fugindo da chuva que se aproximava.<br />

Eletricidade chiou através da pele de Serah, o céu gritando o que<br />

palavras não poderiam dizer.<br />

Em algum lugar lá fora, algum anjo havia caído hoje.<br />

* * *<br />

As duas se teletransportaram para casa ao mesmo tempo, assim<br />

como muitos outros anjos, uma vasta extensão de terra brilhando em<br />

um plano diferente, longe dos olhos humanos. Sussurros frenéticos<br />

percorreram o ar branco e puro enquanto eles todos faziam uma<br />

varredura pessoal, se certificando de que seus amigos estavam lá, que a<br />

Graça ainda estava intacta.<br />

Hannah saiu voando através do grupo, tentando encontrar<br />

respostas, enquanto Serah parou à margem do grande grupo, os olhos<br />

examinando a multidão de seus irmãos e irmãs. Era impossível manter<br />

~ 11 ~


contato com todos, sendo eles tantos. Era raro todos se reunirem, e isso<br />

só acontecia em épocas de desespero imensurável.<br />

E desespero, naquele momento, era um grande eufemismo.<br />

Um anjo caindo, para eles, era a maior tragédia. Eles deveriam<br />

ser inabaláveis, sua fé inabalável, sua força incomparável, mas quando<br />

um deles caía de seu pedestal divino e se perdia para as terrenas<br />

transgressões, seria como um lembrete austero de que até mesmo<br />

invencível não era imune às tentações do pecado.<br />

Hannah reapareceu. Serah olhou para ela, que tinha os olhos<br />

arregalados. Poucas coisas os afetavam, eles não sentiam fome, nem<br />

frio, nem dor física, mas até mesmo os anjos podiam ter medo. Eles<br />

foram treinados para sentir isso, para detectar até os menores avisos de<br />

perigo ao seu redor. — Quem foi? Quem caiu?<br />

— Eu, uh... eu não sei ainda.<br />

Andando para frente, Hanna agarrou a mão de Serah e deu um<br />

aperto tranquilizador. As duas tinham estado lado a lado desde o início.<br />

Elas assistiram juntas e com admiração quando Deus criou o universo,<br />

observaram fascinadas quando Ele criou o homem, e viram com tristeza<br />

quando essa criação perseguiu o Seu filho.<br />

E juntas, elas assistiram com horror quando um dos seus<br />

próprios se voltou contra o seu Pai, derrubando muitos de sua espécie<br />

ao longo do caminho.<br />

— Eu posso sentir todas as Virtudes 2 , — disse Hannah,<br />

visivelmente relaxando. — Não foi um dos nossos que caiu, estamos<br />

bem.<br />

Serah ficou congelada, desejando sentir o mesmo alívio. Algo<br />

dentro dela estava agitado, uma expansão vazia, uma ligação faltando.<br />

Era como se um membro seu tivesse sido cortado, uma parte indo<br />

embora lentamente, mas com determinação.<br />

Um suspiro saiu de seu peito quando o elo da cadeia brutalmente<br />

estalou. — Eu acho que é...<br />

2 Os anjos possuem uma hierarquia, sendo que a mais famosa foi popularizada por<br />

São Tomás de Aquino. Ele divide as entidades angelicais em nove grupos, organizados<br />

em três tríades, sendo a primeira composta pelos anjos mais próximos de Deus, e a<br />

terceira, pelos anjos mais afastados Dele (de hierarquia inferior). As Virtudes fazem<br />

parte da Segunda Tríade, que é composta pelos príncipes celestiais. A principal<br />

característica desta classe de anjos é a pureza e a força (principalmente mental, sendo<br />

também bastante associados a demonstrações de bravura).<br />

~ 12 ~


— Samuel.<br />

O coro de murmúrios cessou quando a voz forte e masculina os<br />

interrompeu. Ela vinha de longe, solitária e estoica, mas o som<br />

carregava um sofrimento devastador através da multidão. Serah o<br />

sentiu de forma especial, confirmando o seu vazio.<br />

Samuel. Oh, Samuel.<br />

Lentamente, ela se virou e ficou cara a cara com Michael, que<br />

estava atrás dela, suas asas enormes e iridescentes duas vezes o<br />

tamanho de todas as outras. O aparecimento de um Arcanjo fez com<br />

que a maioria dos anjos fosse embora dentro de segundos, mas Serah<br />

não se mexeu. Ela não podia. Ainda não.<br />

Não podia ser Samuel. Tinha que ser um erro.<br />

Tinha que ser.<br />

O olhar de Michael se arrastou pelo que restava da multidão<br />

antes de parar atentamente sobre rela. Simpatia brilhou em seus olhos<br />

azuis, o rosto esculpido generosamente sobrecarregado. — Eu sinto<br />

muito.<br />

Se Serah fosse capaz de chorar, lágrimas já teriam riscado o seu<br />

rosto pálido. Samuel – seu irmão, seu melhor amigo, havia caído.<br />

Mas como?<br />

Embora ela não tivesse perguntado em voz alta, Michael ouviu a<br />

pergunta. — Como qualquer um de nós cai?<br />

Pecado.<br />

Mais anjos prontamente desapareceram, retornando às suas<br />

funções sem fim, enquanto outro se materializava. O Dominion, com<br />

seus ultrapassados ternos cinza e pequenas asas correspondentes,<br />

calmamente deu ordens para os anjos restantes. Serah apenas ficou lá,<br />

olhando sem dizer nada a Michael, esperando que alguma coisa saísse<br />

de seus lábios e desse sentido a tudo isso, mas ele escolheu ficar<br />

calado. Se ele tivesse respostas, se ele tivesse uma explicação real, não<br />

estava planejando dar a ela uma pista.<br />

— Posso ter um momento, Serah?<br />

A voz monótona desviou os olhos de Serah de Michael. Ela se<br />

virou para o Dominion que estava esperando, e sua voz baixa<br />

respondeu, — Claro.<br />

~ 13 ~


Hanna deu um último aperto breve antes de ir embora com um<br />

pop de eletricidade estática. Então uma grande mão agarrou o ombro de<br />

Serah, pesada e forte, a puxando para baixo, enquanto a elevava ao<br />

mesmo tempo. Era reconfortante, mas não totalmente – acolhedor,<br />

ainda que temível. A presença de um Arcanjo 3 aqui era incomum, um<br />

fato quase inédito. Os anjos que ainda estavam lá desapareceram em<br />

um burburinho aquecido de fofoca, deixando Serah e Michael a sós com<br />

o Dominion.<br />

— Você tem uma nova tarefa, — declarou o Dominion. — Sua<br />

presença é requerida na fronteira entre o justo e o ímpio, na borda da<br />

Terra onde tudo desce em chamas.<br />

Demorou a Serah um momento para compreender a instrução. —<br />

Espere... na linha de frente?<br />

Ele balançou a cabeça em confirmação.<br />

— Tem que ser um erro, — disse Serah. — Eu tenho vocação para<br />

as crianças, não para a guerra.<br />

— Não existem erros, — disse o Dominion. — Você é uma<br />

Potestade 4 . Vocês protegem os inocentes do mal, e não há ameaça maior<br />

do que a que existe lá.<br />

— O que eu devo fazer? — ela perguntou. — Qual é a minha<br />

tarefa?<br />

— Você deve ir aos portões.<br />

Ela ficou boquiaberta. — Os portões?<br />

— Você vai exigir um cessar-fogo do líder da insurreição. Essa<br />

guerra já foi longe demais, e sem paradas. Muitos caíram. Você tem até<br />

que a neve caia para estabelecer a trégua.<br />

dela.<br />

— Eu vou, — Michael entrou na conversa. — Eu vou no lugar<br />

— Você não pode, — disse o Dominion.<br />

3 Arcanjos, naquela classificação de São Tomás de Aquino, estão na Terceira Tríade, e<br />

são uma espécie de executores dos desígnios de Deus, tanto punindo anjos quanto<br />

homens, conforme a vontade Dele. Segundo a Bíblia, foi o Arcanjo Miguel (Michael, em<br />

inglês) que expulsou Lúcifer (um Querubim, que estão entre os anjos mais próximos<br />

de Deus) quando este se rebelou.<br />

4 Localizados na Segunda Tríade, as Potestades são o terceiro grupo, vindo logo após<br />

as Virtudes. São os responsáveis da consciência de toda a humanidade, e disseminam<br />

o pensamento superior e iluminado. Também são descritos como anjos guerreiros<br />

completamente fieis a Deus.<br />

~ 14 ~


— Eu posso, e eu vou, — respondeu ele. — Ela não tem nenhuma<br />

história com ele.<br />

— Esse é o ponto, — disse o Dominion. — Ele não tem nada com<br />

ela, nenhum ressentimento ou rancor de longa data para ficar no<br />

caminho. Há uma chance maior de cooperação se...<br />

Uma risada amarga irrompeu de Michael. — Cooperação? Você<br />

acha que ele vai cooperar?<br />

— Há uma chance, se ela conseguir apelar para a sua natureza<br />

original. Serah provou ser paciente e persistente para tocar a<br />

consciência de uma alma. É o seu talento. Ela cultiva. Se fosse você,<br />

Michael, o plano nunca iria funcionar.<br />

— Não vai funcionar de qualquer maneira, — declarou Michael. —<br />

Ele não tem consciência para ser tocada! Você não entende? Enviamos<br />

homens lá há eras para convencê-lo a parar com essa bobagem<br />

absoluta, e ele nunca escuta! Então eu vou até lá dessa vez, para<br />

poupar ela da jornada inútil.<br />

— Não é o seu trabalho.<br />

— Não é meu trabalho? — raiva agitou a voz de Michael. —<br />

Quando a batalha final chegar, é meu dever enfrentá-lo, e só meu.<br />

— Sim, eu estou ciente, mas não é hora para isso ainda.<br />

— Você pode supervisionar os outros anjos, mas não vai me dar<br />

ordens, Dominion. Você não dita o que eu faço. Você não me diz quando<br />

é hora de fazer alguma coisa.<br />

— Enquanto isso é verdade, Príncipe, — o Dominion zombou, e<br />

essa foi a primeira demonstração de emoção que Serah já viu em algum<br />

deles, — essa não é nossa ordem.<br />

Michael hesitou antes de murmurar, — É Dele.<br />

— Sim, e eu dificilmente me referiria à vontade de Deus como<br />

inútil. Ele tem motivos, mesmo que nós não vejamos nenhum, — o<br />

Dominion voltou sua atenção para Serah. — É imperativo que você se<br />

apresente nos portões o quanto antes. Ele estará aguardando sua<br />

chegada.<br />

Um estalo alto ricocheteou e estremeceu a terra quando o último<br />

Dominion dispersou. A mão de Michael no ombro de Serah ficou mais<br />

pesada e firme pela resignação.<br />

~ 15 ~


— Venha comigo, — ele sussurrou. — Vamos passar a noite<br />

juntos.<br />

Serah relutantemente balançou a cabeça. Dormência revestia sua<br />

mente, retardando suas reações. Ela estava em choque. Os portões? Ela<br />

nunca tinha conhecido ninguém que tinha ido até lá, apenas ouviu<br />

histórias dos terrores que ali existiam. — Você ouviu, Michael. Eu devo<br />

me apresentar.<br />

— Amanhã, — Michael insistiu. — Nada vai mudar durante a<br />

noite, Serah. Na verdade, nada vai mudar quando se trata dele. Não há<br />

nenhuma razão em sair correndo se é para chegar a lugar nenhum.<br />

Além disso, você provavelmente poderia usar a energia extra com outras<br />

coisas.<br />

Não foi difícil convencê-la. Serah relaxou contra Michael, suas<br />

asas douradas e brilhantes se dobrando ao redor dela. As costas dela se<br />

aqueceu contra o peito dele, e a fez soltar um suspiro profundo e<br />

rendido.<br />

Essa guerra esteve sendo preparada desde o início dos tempos.<br />

Uma noite não iria fazer diferença, certo?<br />

Michael passou os braços fortes ao redor dela enquanto se<br />

inclinou para baixo, se aninhando em seu pescoço. — Para onde?<br />

Ela agarrou seus antebraços. — Você escolhe.<br />

* * *<br />

É um mito que o céu é um lugar singular. Não há portas de<br />

pérolas que levam a um santuário de nuvens macias, não há São Pedro<br />

monitorando nomes e determinando quem é permitido entrar. A<br />

Salvação não é gerida por um livro. Não há uma lista de bom e mau<br />

comportamento, à la Papai Noel.<br />

Não, o Céu é uma ideia. O céu é o espaço onde uma alma livre<br />

habita uma vez que foi expulsa do seu corpo, a energia que viveu dentro<br />

de uma pessoa crepitante em seu próprio cantinho da atmosfera. Você<br />

poderia dizer que ele é uma ilusão, pura imaginação, mas é mais<br />

profundo do que isso. É um sonho magnifico em loop eterno. Você<br />

continua existindo, ainda que tecnicamente não exista mais.<br />

~ 16 ~


O Céu é o que você faz, o que você quer que ele seja. Uma vida de<br />

obediência, e você ganha uma eternidade de liberdade.<br />

Michael e Serah se materializaram no meio de um campo aberto,<br />

a grama quase tão alta quanto seus joelhos. Flores silvestres brilhantes<br />

cobriam a planície isolada – vermelhas, laranjas, amarelas, roxas e<br />

rosas, todas misturadas com o verde vibrante. Esse Céu pertencia a<br />

uma mulher chamada Margaret Lou Jackson, que passou todos os 48<br />

anos de sua vida profissional amontoada em um pequeno cubículo de<br />

escritório. Ela sempre quis viajar e ver o mundo, apreciar a natureza e<br />

experimentar a verdadeira paz, mas nunca teve a chance antes de<br />

falecer.<br />

— É tão bonito aqui, — disse Serah, dando alguns passos através<br />

do campo, seus pés descalços afundando na terra macia.<br />

— Não tanto quanto você, — Michael arrancou uma flor cor de<br />

rosa do chão e a girou entre os dedos. — Esse é o tom que eu imagino<br />

que a sua pele teria se você pudesse corar.<br />

Ele se aproximou, empurrando seu comprido cabelo castanho por<br />

cima do ombro, antes de acomodar a flor atrás da orelha dela, a rosa<br />

pálida iluminada por sua pele incolor. A grande mão dele cobriu o rosto<br />

dela. — Você está franzindo a testa. O que há?<br />

— Eu simplesmente não posso acreditar nisso, — ela<br />

sussurrou. — Samuel. Ele é um grande guerreiro.<br />

— Ele era, — Michael concordou, passando o polegar suavemente<br />

sobre seu lábio inferior. — Você não deve ficar pensando nisso.<br />

— Como não? — ela perguntou. — Eu não entendo.<br />

— Você não está destinada a entender, — disse Michael.<br />

— Mas...<br />

Ele a puxou para mais perto, interrompendo sua linha de<br />

raciocínio enquanto tentava aliviar o seu fardo com um abraço. Serah<br />

ficou na ponta dos pés, e passou os braços ao redor do pescoço dele.<br />

Seus lábios se encontraram, sua língua explorando a dela enquanto<br />

eles se beijavam suavemente, docemente, sem pressa. Seus braços<br />

fortes se envolveram ao redor dela, a confortando, enquanto suas<br />

enormes asas lentamente começaram a se dobrar para trás. Michael era<br />

vulnerável quando assumia sua forma humana, sem as asas, não mais<br />

poderoso que o resto deles. Serah foi uma das raras pessoas que já o<br />

~ 17 ~


tinha visto tão exposto, despojado até o núcleo, a guarda<br />

completamente baixa.<br />

Mesmo assim, com suas asas escondidas, sua verdadeira<br />

natureza escondida, Michael continuava desumanamente bonito.<br />

Ainda enquanto a beijava, ele removeu suas vestes brancas<br />

intocadas, ficando completamente nu, até que finalmente afastou os<br />

lábios dos dela. Ela o estudou, tomando da sua visão imaculada – os<br />

músculos perfeitamente formados e sua masculinidade avantajada –<br />

enquanto deixou cair o seu vestido até o chão, e se juntou a ele.<br />

Fizeram amor no meio do campo, rolando na grama, os dois anjos<br />

se fundindo em um só. Era sensual, um chama de energia e luz<br />

formigando interminavelmente. Aqui, escondidos em meio à serenidade<br />

obscura de alguém, os dois puderam se dar um momento a sós em um<br />

universo desordenado.<br />

Ele beijou o pescoço dela, sua língua lambendo a pele enquanto<br />

ele pairava sobre seu corpo se contorcendo, lentamente empurrando<br />

profundamente dentro dela. Eles trabalharam em perfeita harmonia, ela<br />

mexendo os quadris enquanto ele dirigia para dentro, a enchendo<br />

completamente.<br />

Este era o Céu deles, tocando os nervos profundamente<br />

enterrados dentro de cada um. Poucos deles encontravam isso, poucos<br />

deles sequer sabiam que isso estava lá, mas Serah e Michael foram<br />

sortudos de encontrar um ao outro. O que eles tinham era puro,<br />

imaculado, e foi por isso que tiveram autorização para continuar.<br />

Eles seguiram sem parar, nenhum deles precisando descansar,<br />

apenas terminando quando seu tempo juntos acabou. Horas se<br />

passaram, um dia escorrendo para o próximo em um piscar de olhos.<br />

Michael parou seus movimentos, ainda em cima dela, ainda dentro<br />

dela, enquanto olhava fixamente em seus olhos castanhos profundos. —<br />

Eu te amo, Serah.<br />

Ela passou a mão pelo cabelo loiro despenteado dele e deu um<br />

beijo casto em seus lábios. — Eu também te amo, Michael.<br />

— Tenha cuidado lá em baixo, — disse ele. — Ele pode ser<br />

complicado.<br />

— Eu sei que ele pode. E não se preocupe, eu vou ficar bem.<br />

— Você vai, — ele concordou, se afastando dela para ficar de<br />

pé. Ele estalou os dedos, suas roupas voltaram para o seu corpo e as<br />

~ 18 ~


asas se expandiram em uma lufada súbita, o homem passando em um<br />

piscar de olhos de vulnerável a Arcanjo infalível. Ele olhou para ela<br />

ainda deitada no chão e sorriu. — Afinal, você ainda tem Deus do seu<br />

lado.<br />

* * *<br />

Ao contrário do Céu, o Inferno é concreto. Ela fica a cerca de<br />

3.000 quilômetros abaixo da terra, cercado pelo manto e pelo núcleo<br />

escaldante da Terra. O poço de fogo é literal, mas, no entanto, também<br />

é muito mais do que isso. Ele é formado por cada pesadelo já concebido,<br />

torturando seus habitantes dia após dia.<br />

O inferno é reservado apenas para os verdadeiramente sem<br />

chance de redenção, aqueles que são tão maus que nada pode ser feito,<br />

exceto trancá-los. Essa é uma prisão de segurança máxima para os<br />

degenerados. Suas almas, sua energia, são perigosas demais para<br />

serem autorizadas a se misturar com o resto, por isso eles foram<br />

lançados no lago de fogo, longe dos inocentes.<br />

Soltar o que habita lá seria catastrófico, e por isso esse lugar é<br />

guardado, trancado e selado. Ainda assim, pode acontecer. Eles<br />

encontram maneiras de deslizar através das rachaduras, reaparecendo<br />

na Terra e causando estragos até que sejam enviados de volta. Para<br />

cada um apanhado, porém, outros dois parecem conseguir escapar. É<br />

um ciclo interminável de perseguição sangrenta que resulta em mortes<br />

todos os dias.<br />

Só há uma maneira de chegar ao Inferno. Nas profundezas das<br />

florestas da Pensilvânia em Hellum Township, não muito longe da<br />

pequena cidade de Chorizon, há uma série de sete portões que devem<br />

ser atravessados. Muitos já tentaram percorrer o caminho, ouvindo as<br />

lendas, pensando que fosse uma brincadeira, mas nenhum mortal<br />

jamais conseguiu passar do quinto portão. Os sentimentos de desespero<br />

e morte, a sensação ameaçadora do mal é tão avassaladora que<br />

ninguém se atreve a ir em frente.<br />

Se o fizesse, quando alcançassem o sétimo portão, o Inferno iria<br />

engoli-los inteiros.<br />

Serah seguiu pelo caminho, a trilha ficando cada vez mais<br />

estreita, e passando sem cerimônia pelos cinco primeiros portões. Ela<br />

~ 19 ~


chegou a velha cerca de ferro forjado que se estendia em direção ao céu<br />

e deslizou por ela, andando por um caminho de cascalho diretamente<br />

para um grande edifício de pedra. O exterior estava queimado e coberto<br />

de sujeira, a casca de um velho asilo incendiado. As paredes altas e<br />

colunas maciças faziam com que o lugar parecesse um castelo<br />

esquecido, abandonado por toda a realeza. O mal irradiava dele, suas<br />

ondas a acertando uma vez após a outra, tentando avisá-la, tentando<br />

fazer com que ela se virasse e fosse embora.<br />

Serah abriu a pesada porta, que rangeu, e encontrou nada além<br />

de escuridão nebulosa à sua frente. Ela entrou, cruzou o limiar do<br />

edifício abandonado e foi até o sexto portão.<br />

O ar ao redor dela se alterou instantaneamente.<br />

A escuridão se transformou em uma explosão de luz violenta, tão<br />

intensa que derrubou Serah. Ela sentiu como se estivesse caindo com<br />

muita rapidez, seu estômago alojado na garganta, até que ela parou<br />

abruptamente, tudo se acalmando.<br />

Com um solavanco, ela se viu em pé na fronteira para o Inferno,<br />

seus pés firmemente plantados nos sedimentos duros enquanto seu<br />

olhar digitalizava o terreno pela primeira vez. Nada vivo prosperava<br />

aqui, nada que respirasse e crescesse, nada que florescesse. A terra<br />

estava rachada e abandonada, e a sensação de morte iminente se<br />

agarrava a tudo, sofredora e miserável. Nuvens escuras cobriam o céu<br />

infinito, misturado com redemoinhos cor de fogo, enquanto relâmpagos<br />

continuamente piscavam, reverberavam ao longe, seu retumbar vicioso<br />

vibrando sob seus pés. À distância, no final de um caminho reto e<br />

estreito, Serah podia vagamente distinguir uma torre de pedra, um<br />

castelo misterioso erigido para o Rei do Inferno.<br />

O portão final era invisível, um enorme escudo enfeitiçado de<br />

energia e eletricidade. Serah mal conseguia vê-lo, instável e<br />

bruxuleante, estalando e brilhando, enquanto sombras negras pairavam<br />

acima dele. Ceifadores 5 guardavam a cena insuportável, se alimentando<br />

das almas vis que viviam ali dentro.<br />

Tomando uma respiração profunda - um hábito que ela pegou na<br />

Terra - Serah seguiu em frente, parando a poucos quilômetros de<br />

distância do portão. Só havia silêncio do outro lado, parecendo<br />

5 É a morte, geralmente associada àquela imagem da criatura que veste um manto<br />

com capuz preto e segura uma foice. Aqui a autora dá a ideia de que existem várias<br />

‗mortes‘ guardando a entrada do Inferno.<br />

~ 20 ~


abandonado, nada além de terra árida e montanhas rochosas envoltas<br />

pelas sombras negras.<br />

O Inferno deveria ser tão... quieto?<br />

— Olá?<br />

Uma batida de coração, duas batidas, três batidas. Nada além de<br />

silêncio.<br />

— Olá? — ela chamou novamente. — Tem alguém aí?<br />

Serah alisou seu vestido com inquietação – outro hábito humano<br />

sem sentido – e esperou por algo, qualquer coisa, acontecer.<br />

Minutos se passaram, então horas. Metade de um dia se foi em<br />

um piscar de olhos, e a absoluta imobilidade persistindo. Fisicamente,<br />

ela não sentia cansaço, mas mentalmente ela já tinha tido o suficiente<br />

desse lugar. — Isso é incrível.<br />

— É mesmo.<br />

A voz repentina a alarmou. Um estrondo como de um trovão<br />

rasgou a terra quando um relâmpago explodiu em luz, revelando uma<br />

forma à espreita nas sombras do outro lado.<br />

— A única questão, — continuou ele, dando um passo em direção<br />

aos portões, — é se você quer dizer isso de uma forma boa ou ruim.<br />

Olhos negros perfuraram os dela, sua pele da cor da imundície da<br />

Terra, coberto de cicatrizes prateadas e marcas pretas vibrantes. Silos<br />

tinham sido queimados em sua carne como tatuagens, aparentemente<br />

ainda fumegando com o vapor que irradiava da sua pele. As mangas da<br />

sua camisa preta com botões da mesma cor tinham sido dobradas até<br />

os cotovelos, expondo seus antebraços para ela. Serah arregalou os<br />

olhos quando decifrou os símbolos que haviam ali.<br />

Serpens. Malum. Diabolus. Inimicus.<br />

Serpente. Mal. Diabo. Inimigo.<br />

Satanás, ela soube imediatamente, quase irreconhecível de sua<br />

forma uma vez angelical. Ele parecia que tinha caminhado através do<br />

fogo, suas roupas chamuscadas, assim como os pés descalços. Ele era<br />

rude e grosseiro, a voz ligeiramente rouca, como uma lixa desgastada.<br />

Apesar de seu exterior inquietante, ele parecia mais humano do<br />

que ela esperava que fosse, um fato que a enervava. Ele era robusto<br />

~ 21 ~


como Michael, escuro onde o Arcanjo era claro, mas ele se portava como<br />

um homem. Seus passos tinham uma ligeira arrogância, sem pressa e<br />

sem graça.<br />

Essa coisa – esse homem – era o grande inimigo? A maior ameaça<br />

de todos eles? Da humanidade?<br />

— Quero dizer que isso é um absurdo, — disse ela timidamente.<br />

— Não há nada de bom sobre esse lugar. Eu estive aqui de pé por horas.<br />

— Eu sei.<br />

Ela ficou boquiaberta. — Você sabe?<br />

— Sim. Eu estive observando você.<br />

— Você esteve me observando?<br />

— Sim. E você está atrasada.<br />

Ela zombou. — Estou atrasada?<br />

— Sim, você está atrasada. O que há com você? Eu assumi que<br />

essas asas significavam que você é um anjo, não um maldito papagaio.<br />

Ela começou a responder ao seu comentário infantil, mas ele a<br />

parou antes que ela pudesse, sua voz uma oitava acima, se forçando<br />

sobre as palavras dela enquanto ele cuspia as suas próprias.<br />

— Era para você estar aqui na noite passada. Eu esperei por você<br />

ontem à noite, mas você me deixou esperando. Então foi justo, quando<br />

você finalmente decidiu que eu era importante o suficiente para mostrar<br />

seu rosto por aqui, que eu a mantivesse esperando também.<br />

— Eu não percebi que tinha um compromisso, — disse ela na<br />

defensiva. Quem era ele para falar com ela daquela maneira? — Eu<br />

estava ocupada.<br />

— Aposto que você estava, — ele respirou fundo, inclinando a<br />

cabeça para trás enquanto fechava os olhos. Um vórtice de vento<br />

soprou sobre ela, mexendo a sujeira e a parte inferior do seu vestido<br />

enquanto se arrastava pelo seu cabelo e rosto. Ela o afastou para longe<br />

e o ar se acalmou, então ele reabriu os olhos lentamente. — Você cheira<br />

como meu irmão. O cheiro dele está sobre você toda. Isso fede.<br />

Serah gaguejou. — Eu, uh... — ele podia sentir o cheiro? — Olha,<br />

Satanás...<br />

~ 22 ~


— Pare, — disse ele, o tom mordaz mais duro em sua voz. — Meu<br />

nome não é Satanás.<br />

Ela hesitou. Isso não estava indo bem. — Você prefere ser<br />

chamado de Príncipe das Trevas?<br />

— Não, eu realmente prefiro o meu nome.<br />

— Lúcifer.<br />

A sugestão de um sorriso passou pelos lábios dele. — Me chame<br />

de Luce.<br />

— Lúcifer, — disse ela novamente. — Eu só vim aqui para pedir...<br />

— Me pedir para parar a luta? Para dar uma chance à paz? — ele<br />

riu amargamente. — Eu sei por que você veio aqui, e você pode apenas<br />

virar e ir embora agora. Eu não vou ter alguém andando em meu<br />

território e me desrespeitando, me tratando como se eu fosse nada, me<br />

chamando por essa palavra suja como se fosse o meu nome. Você quer<br />

falar comigo, meu anjo? Você quer ter essa conversa? Volte quando você<br />

não estiver fedendo pra caralho.<br />

Tão rapidamente quanto surgiu, ele se vaporizou, desaparecendo<br />

novamente na escuridão, deixando-a sozinha. Ela andou para trás,<br />

passando de volta pelo sexto portão, a negritude tomando sua visão<br />

quando ela foi puxada por um ciclone. Ela voou no ar, pousando de<br />

volta em seus pés no interior do prédio do asilo abandonado.<br />

Serah estremeceu. Bizarro.<br />

* * *<br />

— Você fez o quê?<br />

Um trovão repentino abalou o céu da tarde. Serah se encolheu<br />

com o barulho e ficou tensa. Oh Deus, de novo não. — Por favor, me<br />

diga que isso foi você.<br />

— Desculpe, — Hannah murmurou. — Eu não quis te assustar.<br />

Eu só... fiquei chocada.<br />

Serah suspirou enquanto distraidamente se torcia e balançava no<br />

balanço do pátio da escola. Não havia ninguém hoje, porque era final de<br />

semana. Pingos de chuva começaram a cair quando nuvens surgiram<br />

~ 23 ~


diretamente acima delas, uma consequência da reação abrupta de<br />

Hannah.<br />

Hannah se sentou no balanço ao seu lado depois de um<br />

momento. — Então, como foi lá embaixo?<br />

— Surreal, — ela respondeu. — Eu venho tentando me concentrar<br />

nisso desde que fui embora de lá. É estranhamente quieto. Muito<br />

irritante.<br />

— E você o viu? Tipo, realmente o viu?<br />

— Sim.<br />

— E como ele era?<br />

— Como ele era? Enlouquecedor.<br />

— Uau, — disse Hannah. — Então você vai voltar lá para baixo?<br />

— Acho que sim, — respondeu ela. — Michael diz que não vai<br />

funcionar, mas eu tenho que tentar.<br />

— É claro que não vai funcionar. Como nós vamos acreditar que<br />

tudo isso vai acabar só porque você está pedindo? Sim, claro. Não há<br />

um osso compassivo no corpo dele. Cada pedacinho dele foi<br />

reivindicado pelo mal quando ele caiu da Graça dos Céus.<br />

— O Dominion disse que essa era a Sua vontade.<br />

Hannah ficou mais tranquila ao ouvir isso. Sua vontade, Sua<br />

palavra era tudo. — Desde quando nós negociamos com terroristas?<br />

Achei que nós não fazíamos isso desde aquele cara, Ronald Reagan 6 .<br />

Serah abriu um sorriso ao ouvir isso. — Você está algumas<br />

décadas atrasada na política americana.<br />

— Hm. E ele ganhou?<br />

— Sim. Duas vezes.<br />

— Bom saber, — disse Hannah. — Eu não tenho certeza se você<br />

vai ser bem-sucedida, no entanto.<br />

Serah sorriu tristemente. Ela provavelmente estava certa, é<br />

claro. — Eu me pergunto o que Samuel iria pensar sobre isso tudo.<br />

6 40º Presidente dos Estados Unidos, ficou conhecido por financiar grupos armados e<br />

paramilitares em sua cruzada anticomunista.<br />

~ 24 ~


— Bem, em primeiro lugar, ele ia lamentar por não ser ele a estar<br />

indo lá embaixo. Você sabe como ele adorava ser o centro das atenções<br />

nessa guerra.<br />

— Verdade.<br />

— Então ele ia te provocar sobre isso. Você sabe, ir para o<br />

Inferno, — Hannah baixou um pouco a voz, imitando o familiar tom do<br />

sexo masculino. — Eu sempre soube que eu era o bom, mana.<br />

Serah riu, embora tristeza apertasse seu peito. Como ela desejava<br />

ouvir a voz dele novamente.<br />

— Mas então, enquanto você estivesse lá e ninguém estivesse<br />

prestando atenção, ele ficaria andando freneticamente, provavelmente<br />

aqui mesmo nesta pracinha, esperando você voltar, para se certificar de<br />

que estava tudo bem. Ele sempre se preocupou com você.<br />

Serah franziu a testa. — Eu me preocupo com ele agora.<br />

— Não, — disse Hannah. — Ele se foi.<br />

— Foi para onde?<br />

Hannah deu de ombros. — Nós não fazemos perguntas quando<br />

eles caem, Serah. Você sabe disso. Nós apenas dizemos adeus e<br />

seguimos em frente.<br />

* * *<br />

O lugar estava tranquilo e silencioso uma vez mais quando Serah<br />

se aproximou do sétimo portão, alguns dias depois. A peculiar<br />

escuridão avermelhada novamente encobria o céu enquanto ceifeiros 7<br />

voavam no alto, supervisionando a entrada. Nada tinha mudado desde<br />

a última visita, e ela imaginou que isso nunca aconteceria. O Inferno<br />

era tão estagnado quanto o seu interior morto.<br />

Ela fez uma pausa a alguns metros de distância e suspirou. Antes<br />

que ela pudesse gritar, uma rajada de vento girou em torno dela. Suas<br />

7 Ceifeiros seriam o que nós geralmente consideramos como a Morte: um espírito<br />

encapuzado que carrega uma foice (para ceifar as vidas, por isso ‗ceifeiro‘). Na cultura<br />

popular, há uma crença de que existem muitos ceifeiros, não apenas um único<br />

espírito, e eles trabalhariam para o próprio Diabo.<br />

~ 25 ~


asas farfalharam e brilharam enquanto ela foi levantada alguns<br />

centímetros do chão.<br />

— Você cheira como o Sol.<br />

Quando pousou no chão outra vez, Serah viu através da<br />

barricada translúcida que Lúcifer se materializar do outro lado. — Eu?<br />

— Sim. Você tem cheiro de primavera. Agora esse é um perfume<br />

do qual eu tenho saudade. O outro? Eu posso viver para sempre sem<br />

nunca o sentir outra vez.<br />

Ele chegou mais perto, os ombros relaxados, as mãos<br />

casualmente para dentro dos bolsos das suas calças pretas. Ele parecia<br />

à vontade. Até mesmo sua voz escorria um pouco de contentamento<br />

calmo, seu comportamento muito diferente do daquela criatura que ela<br />

encontrou no primeiro dia.<br />

Talvez houvesse esperança, afinal de contas. Talvez ela tivesse<br />

uma chance.<br />

— Estou aqui para pedir a você para parar, — ela disse. — Para<br />

dar um fim à guerra.<br />

— Eu sei por que você está aqui, — disse ele, seu olhar tão<br />

intenso que queimou através dela. — Você é muito mais bonita do que a<br />

última que mandaram.<br />

— Eu, hm... — ela foi pega de surpresa pelo elogio. — Se você<br />

sabe por que estou aqui...<br />

— Eu não quero falar sobre isso.<br />

Ela olhou para ele, confusa. — O que mais há para falar?<br />

— Você, meu anjo. Vamos falar sobre você. Me diga por que você<br />

demorou tanto tempo para voltar.<br />

— Faz apenas alguns dias. E eu estive ocupada.<br />

— Hmm, mas não ocupada com o meu irmão, dessa vez, — o<br />

canto dos seus lábios se curvaram em um sorriso com covinhas. —<br />

Como isso aconteceu, afinal? Você não é um Arcanjo, e certamente não<br />

é um Serafim. Eu me lembro de cada um deles. Mas você, eu não me<br />

lembro mesmo de você. Com base no fato de que você está aqui, diria<br />

que você é um dos muitos anjos guerreiros, correto?<br />

Ela assentiu com a cabeça lentamente.<br />

~ 26 ~


— Então, como você capturou a atenção de Michael? Sem ofensa,<br />

mas vocês, Potestades, são um em um milhão, soldadinhos de Deus na<br />

grande guerra contra... bem... mim. Como um Arcanjo sequer percebeu<br />

a sua existência?<br />

— Só porque você não consegue olhar além de si mesmo não<br />

significa que seu irmão seja igual, — ela respondeu. — Nem todos são<br />

tão narcisistas como você.<br />

Ele agarrou dramaticamente o peito. — Oh, ui, isso doeu. Por<br />

favor, retire o que você disse.<br />

Sua zombaria a irritou. Ela apertou os dentes, mantendo a boca<br />

fechada, se recusando a ser instigada pelos gostos dele.<br />

— Não, sério, me diga, — ele continuou. — Eu quero saber como<br />

as suas, hm, atividades extracurriculares com o bom e velho Mikey não<br />

mandaram você diretamente para cá comigo. Da última vez que eu<br />

chequei, querida, luxúria ainda era um pecado.<br />

— Eu não estou aqui para falar sobre Michael.<br />

— Eu não me importo. Eu não poderia me importar menos com a<br />

tarefa que você recebeu do nosso Pai, — ele cuspiu a palavra como se<br />

ela maculasse a sua língua, seu comportamento calmo desaparecendo à<br />

medida que seu corpo tencionou, a carne quente assumindo o lugar da<br />

pedra fria. — Você quer falar, anjo? É do meu jeito ou de jeito nenhum.<br />

— Meu nome é Serah, — disse ela, levantando a voz<br />

propositalmente para encontrar a dele, — e você não vai mandar em<br />

mim, Satanás.<br />

Ele recuou, se esgueirando de volta para as sombras como se ela<br />

o tivesse atingido. — É hora de você ir embora. Você não é bem-vinda<br />

aqui.<br />

— Mas...<br />

Um trovão ecoou, e mais uma vez ele desapareceu bem diante dos<br />

seus olhos. Ela olhou para a terra estéril que ele tinha ocupado<br />

segundos atrás, franzindo a testa.<br />

Ele que a provocou, afinal de contas.<br />

~ 27 ~


Capítulo Dois<br />

Ar gelado correu por Luce enquanto ele caminhava pelo Inferno,<br />

incendiando ainda mais as crateras de fogo espalhadas por todo o<br />

território. Apesar de ser o centro da Terra e haver lava queimando ao<br />

seu redor, a temperatura caía quanto mais fundo se ia.<br />

Gritos torturantes ecoaram na sua cabeça, gemidos de dor e<br />

luxúria nublando a sua mente, dominantes e azarentos. Pecados o<br />

cercavam, sufocando-o, aprisionando-o como uma camisa de força. Ele<br />

tentou afastar o barulho, a empurrá-lo para longe e se concentrar em<br />

outra coisa, mas o tumulto nunca parava, nunca o deixava. Isso<br />

impedia a sua conexão com o mundo fora dos portões, abafando tudo<br />

mais ao ponto de um mero ruído de fundo.<br />

Blá, blá, blá do caralho.<br />

Este era o seu inferno: o tormento inescapável que ele suportava<br />

sozinho. Ele ansiava pelo silêncio, mas era premiado com o caos. Em<br />

vez de luz e vitalidade, ele existia em completa escuridão. Sua natureza<br />

de Arcanjo o ajudava a levar tudo na esportiva, mas nunca era fácil,<br />

mesmo para aquele que o mundo todo via como o inimigo.<br />

Satanás.<br />

Ele odiava o termo desde a primeira vez que o ouviu no campo de<br />

batalha, até há pouco, quando ele foi dito por aquela voz pura e<br />

angelical.<br />

Satanás, o adversário maligno.<br />

Satanás, inimigo público número um.<br />

Satanás. Foda-se essa merda.<br />

Ele que buscou isso para si mesmo, certamente, mas nada o<br />

impedia de culpar os outros, também.<br />

Apesar do tumulto em sua cabeça, o que tornava difícil pensar<br />

direito a metade do tempo, ele ainda poderia facilmente recordar o<br />

~ 28 ~


momento em que cruzou a linha final, o momento em que ele<br />

amaldiçoou a si mesmo com esse destino. A guerra tinha começado, a<br />

faísca já tinha pegado fogo quando ele apareceu naquele campo de<br />

batalha em Israel.<br />

Michael estava lá, liderando os anjos guerreiros contra a<br />

insurreição. — Pare com isso, Luce.<br />

— Você sabe que eu não posso.<br />

— Esta é a sua última chance, irmão, — Michael advertiu. —<br />

Acabe com isso agora.<br />

Luce balançou a cabeça. — Não.<br />

Foi então que tudo mudou, o ar se deslocando enquanto o sangue<br />

de sua família salpicava sua roupa, combinando com o vermelho<br />

escorrendo do céu acima. A expressão de Michael endureceu, cada gota<br />

de amor e respeito derretendo com ressentimento.<br />

Eles não eram mais irmãos.<br />

— Você é o maior inimigo da humanidade, — disse Michael, raiva<br />

se projetando em sua voz alta. — Você vai ser condenado por isso,<br />

Satanás.<br />

Satanás.<br />

Ele foi, e enquanto ele fazia seu caminho através dos corredores<br />

do Inferno, o profundo buraco negro subterrâneo de sofrimento sem<br />

fim, a raiva a partir daquele dia permaneceu dentro dele. Ela inflamou,<br />

aumentou e aumentou, cresceu e cresceu, até que chegou a ser demais<br />

para ele aguentar.<br />

Rapidamente, ele entrou em uma gaiola, segurando um pesado<br />

chicote de couro. Grossas paredes de pedra o cercavam, a escuridão<br />

sinistra revestindo a masmorra trancada. Ódio em sua forma mais pura<br />

emergiu de debaixo da sua pele, hostilidade reprimida lhe corroendo,<br />

implorando para ser liberada.<br />

O homem acorrentado à parede no interior gritou, o som<br />

estridente ecoando entre os ouvidos de Luce. Sem dizer uma única<br />

palavra, ele selvagemente golpeou o homem, rasgando a sua carne com<br />

a ponta do chicote. Grunhidos e rosnados ferozes balançaram a gaiola,<br />

vibrando no peito de Luce enquanto o monstro dentro de si mostrava<br />

sua cara feia, feliz por voltar a ser convidado a jogar.<br />

~ 29 ~


Nada ajudou a aliviar a tensão de Luce. Seus músculos estavam<br />

rígidos, a cabeça ainda latejando quando o homem caiu mole e imóvel,<br />

seu corpo retalhado. Ele se curaria durante a noite, e voltaria a gritar<br />

pela manhã, assim como a raiva de Luce seria reconstruída outra vez.<br />

Era um ciclo vicioso, um impossível de quebrar. A mesma merda<br />

sem sentido de sempre. A mesma brutalidade sangrenta. De novo e de<br />

novo. Sem perdão.<br />

Frustrado, Luce desapareceu da gaiola e se materializou dentro<br />

de outra. Esta era mais silenciosa, iluminada por velas, uma<br />

reminiscência de um covil no estilo vitoriano da virada do século. Uma<br />

mulher pulou no momento em que ele apareceu, seus olhos escuros o<br />

encarando, boquiaberta. — Meu Senhor.<br />

Os demônios eram as coisas mais próximas que ele tinha de<br />

aliados, mas até ele desprezava as criaturas furtivas. Eles o adoravam,<br />

no entanto, outra parte do seu próprio Inferno. Dado que ele tinha sido<br />

punido por seu orgulho, isso era meio que uma piada retorcida e<br />

doente.<br />

Você quer ser Deus? Vá governar o Inferno, garoto.<br />

Seu Pai certamente tinha senso de humor.<br />

Os demônios eram o produto de incontáveis anos de tortura. Uma<br />

pessoa só pode aguentar um tanto antes que algo se encaixe de forma<br />

irrevogável, infectando-a com malícia letal, quando se chega a esse<br />

ponto de ruptura. Cada pedacinho de humanidade se desintegra, não<br />

lhe deixando nada além de negras almas mortais.<br />

— De joelhos, — ele ordenou, desafivelando suas calças,<br />

precisando de algum tipo de liberação, a necessidade de purgar alguma<br />

energia para diminuir a pressão.<br />

Ela obedientemente se adiantou e caiu de joelhos na frente dele,<br />

ansiosamente o tomando na boca. Ela chupou vigorosamente, engolindo<br />

cada polegada da sua carne até passar pela garganta. Ele inclinou a<br />

cabeça para trás e fechou os olhos, saboreando as sensações que<br />

invadiram seu corpo.<br />

Luxúria era o seu pecado favorito, sem dúvida.<br />

* * *<br />

~ 30 ~


No dia seguinte, Serah pulou sua parada matinal habitual em<br />

Chorizon e se viu chegando ao primeiro portão, a cabeça erguida e os<br />

passos decididos. A breve conversa de ontem a tinha tirado do sério,<br />

mexeu com seus sentidos, mas para conseguir o que ela precisava dele,<br />

uma trégua, uma concessão, ela reconhecia que ia ter de jogar o jogo<br />

estúpido dele.<br />

Isso estava enraizado nela, de certa maneira, como parte de seus<br />

instintos de Potestade. Ela havia sido criada para combater criaturas<br />

como ele, para erradicar o veneno maléfico contaminando o universo, e<br />

de acordo com o Dominion, fazia parte do destino dela enfrentar<br />

Satanás. Não importava o quanto ele a empurrasse, o quanto ele a<br />

provocasse, ela precisava manter o controle, se queria ganhar.<br />

E quanto mais cedo ela ganhasse, mais cedo ela poderia dizer<br />

adeus a esse buraco miserável para sempre.<br />

— Sem perfume de primavera hoje.<br />

Ele apareceu na frente dela de forma tão abrupta que Serah se<br />

assustou. E por falar em manter o controle. Sua confiança vacilou um<br />

segundo. — Não?<br />

— Você cheira a algo como poeira. Sem ofensa, mas eu prefiro<br />

muito mais a luz do sol em você.<br />

Ela o olhou com curiosidade, enquanto ele estava ali, com as<br />

mãos nos bolsos de novo, esperando ansiosamente. — É assim que você<br />

sabe que eu estou vindo? Você pode me sentir?<br />

Ele esboçou um sorriso. — Não.<br />

— Então como?<br />

Ele bateu na têmpora com o dedo indicador. — Eu ainda estou<br />

ligado em rede.<br />

Os olhos dela se arregalaram com a confissão dele. — Você pode<br />

nos ouvir?<br />

— Não tão forte como antes, mas ainda posso ouvir a maior parte.<br />

O volume está apenas mais baixo nos dias de hoje.<br />

— Como isso é possível?<br />

~ 31 ~


Ele deu um leve encolher de ombros casual. — Só porque eu<br />

estou exilado aqui não muda o que eu sou no meu núcleo.<br />

— Mas...<br />

— Mas o quê? Você pensou que eu perdi tudo quando eu caí?<br />

— Bem, sim. Você não parece com um de nós.<br />

Ele soltou uma risada, o som turbulento e animador, a<br />

surpreendendo tanto que ela deu um passo para trás. — Você vê o que<br />

eu quero que você veja – nem mais, nem menos. Minhas asas não têm<br />

muita utilidade aqui embaixo. Não há nenhum ponto em sair batendoas<br />

por aí se eu não vou usá-las, se você sabe o que eu quero dizer.<br />

— Mas você tem? — ela perguntou, curiosa. — Você ainda tem<br />

suas asas?<br />

Ele levantou uma sobrancelha enquanto inclinou um pouco a<br />

cabeça, a estudando. Minutos de silêncio tenso se passaram. Serah<br />

conseguiu permanecer em silêncio junto com ele, mas ela não pôde<br />

deixar de ficar se remexendo sob o seu escrutínio.<br />

Tudo mudou inesperadamente com um trovão. O chão tremeu<br />

violentamente, rachaduras se formaram como se a terra estivesse sendo<br />

dilacerada por um terremoto. Instintivamente, Serah olhou para seus<br />

pés trêmulos antes de olhar para o portão. Um suspiro alto foi<br />

arrancado do seu peito e ela imediatamente recuou. A visão dele a<br />

assustou.<br />

Asas pretas enormes irromperam de suas costas, se misturando<br />

parcialmente com o seu entorno, como sombras ameaçadoras. Somente<br />

quando outro relâmpago estourou é que ela pôde ver de verdade o<br />

tamanho que elas tinham. As maiores asas que ela já tinha visto<br />

passaram diante dos seus olhos, brilhando à luz no céu antes de serem<br />

engolidas pela escuridão outra vez. Suas características nítidas ficaram,<br />

de alguma forma, mais nítidas, desumanamente bonitas, ainda que<br />

assustadoramente sinistras. Vermelho girava em seus olhos negros,<br />

combinando com o céu acima.<br />

Serah fechou os olhos quando não pôde mais olhar para ele,<br />

precisando de um momento para se firmar.<br />

Ela o tinha visto uma vez antes, eras atrás, quando ele tinha sido<br />

o anjo de olhos azuis de outros tempos. Como o favorito de Deus, ele<br />

passava a maior parte do tempo perto do Seu trono, um daqueles<br />

lugares que Serah não estava autorizada a ir. Ele raramente aparecia<br />

~ 32 ~


para alguém, poucos sequer sabiam como ele era até a sua guinada<br />

notória. Serah tinha estado lá, com seu irmão Samuel, quando a guerra<br />

eclodiu pela primeira vez em um campo, não diferente daquele ao qual<br />

Michael a tinha levado muitas vezes. Lúcifer tinha se materializado bem<br />

no meio da batalha, bem na frente do seu irmão.<br />

Samuel, protetoramente, a tinha agarrado e a feito desaparecer de<br />

lá em questão de segundos, protegendo-a da brutalidade da luta que se<br />

aproximava. Lúcifer tinha sido lançando no Inferno ao cair daquela<br />

noite, e Michael tomou seu lugar como o Príncipe antes que o sol tivesse<br />

se levantando na Terra no dia seguinte. Embora essa batalha tivesse<br />

terminado rapidamente, a guerra ainda era travada, a luta entre o bem<br />

e o mal perdurando ao longo dos milênios.<br />

Serah reabriu os olhos e olhou para ele, a tensão se afastando de<br />

seu corpo quando ela viu a figura humana simples ali de pé, a cabeça<br />

ainda inclinada para o lado, a sobrancelha ainda levantada.<br />

— Eu suponho que responde a minha pergunta, — ela<br />

murmurou.<br />

Ele riu novamente, desta vez mais suave, moderado. — Eu<br />

suponho que sim.<br />

— Eu não entendo, no entanto. Outros perderam suas asas.<br />

— Eles foram despojados de sua imortalidade, — disse ele. — É<br />

por isso que todos eles sangram quando caem.<br />

Serah piscou rapidamente enquanto processava o que ele disse.<br />

— Eles se tornam humanos?<br />

— Em certo sentido, sim, mas eu fui trancafiado aqui nesta<br />

forma. Estou amaldiçoado a lembrar, enquanto todos os outros podem<br />

esquecer.<br />

— É por isso que você está fazendo isso? Por isso você ainda está<br />

lutando depois de todo esse tempo?<br />

Ele deu de ombros casualmente outra vez, mas não ofereceu<br />

nenhuma resposta real quando se virou. — Eu tenho coisas para fazer.<br />

— Espere!<br />

Ele tinha ido embora antes que a palavra tivesse escapado<br />

totalmente dos seus lábios.<br />

~ 33 ~


* * *<br />

— Você sempre quer ajudar as pessoas?<br />

A testa de Samuel se vincou em perplexidade diante da pergunta<br />

enquanto ele olhava fixamente do outro lado da mesa para sua irmã. —<br />

Não é isso que eu faço todos os dias?<br />

— Sim, mas não é isso que eu quis dizer. Você faz o seu trabalho,<br />

mas você nunca, você sabe, quer... fazer mais?<br />

— Eu não sei o que mais eu poderia fazer, Ser.<br />

Suspirando, Serah olhou ao redor da lanchonete movimentada. O<br />

sol tinha acabado de nascer lá fora, e o lugar já estava cheio de clientes.<br />

Um sino no balcão tocava repetidamente e o cozinheiro gritava: ‗Pedido<br />

pronto!‘. Garçonetes usando saias e blusas listradas derrapavam ao<br />

redor, levando pedidos e atendendo aos clientes, enquanto o som de<br />

uma música contagiante dos anos 50 tocava no jukebox nas<br />

proximidades.<br />

Os olhos de Serah caíram sobre uma mulher de meia-idade<br />

esperando para ser atendida. Ela usava uma saia cinza e jaqueta, seu<br />

cabelo loiro puxando em um coque apertado.<br />

— Olhe ela, por exemplo, — disse Serah, apontando para a<br />

mulher. — É seu primeiro dia em um novo trabalho, em um escritório,<br />

como secretária, e ela tem um rasgo em suas meias. É uma luta difícil<br />

para as mulheres americanas no ambiente de trabalho. Ninguém vai<br />

levá-la a sério desse jeito.<br />

— Sério, Ser? Você está soando como essas feministas. Você não<br />

quer falar sobre igualdade de remuneração, enquanto estamos no<br />

assunto?<br />

— Bem, sim, — Serah suspirou quando seu irmão riu dela. —<br />

Estamos nos anos 60. Os tempos já deveriam ser outros.<br />

— Eu concordo, — disse ele. — Mas é para isso que servem os<br />

Guardiões, no entanto. Eles controlam os humanos, não nós.<br />

— Sim, mas por que nós não podemos? — quando a mulher<br />

passou, indo até a porta com o seu café, Serah esticou o braço e tocou<br />

sua perna, consertando instantaneamente a sua meia. — Eu só quero<br />

que ela tenha um bom começo<br />

~ 34 ~


Samuel levantou uma sobrancelha. — Por que isso te importa<br />

tanto?<br />

— Por que você não se importa?<br />

— Touché, — Samuel relaxou na cabine, seu olhar mudando para<br />

um homem sentado sozinho de costas, o nariz enterrado no jornal de<br />

hoje. — Eu acho que eu estou mais preocupado com os gostos dele do<br />

que se uma senhora vai ter um dia agradável no trabalho ou não.<br />

Serah podia sentir a presença maliciosa rondando profundamente<br />

dentro do homem. Samuel tinha estado atrás dele desde a noite<br />

anterior, esperando o momento perfeito para erradicar o demônio que<br />

ele abrigava sem causar uma cena.<br />

— Mas eu amo isso em você, mana, — continuou Samuel. — Você<br />

vai para cima e além, enquanto eu simplesmente dou um salto direto<br />

para as trincheiras. Acho que se eu fosse humano, apreciaria que<br />

houvesse alguém lá fora que se importa. Você sabe... para o caso de eu<br />

ter um buraco nas minhas calças.<br />

O homem do outro lado da cafeteria se levantou, segurando o<br />

jornal enquanto caminhava para sair. Samuel o seguiu imediatamente.<br />

Curiosa, Serah se juntou ao seu irmão quando ele seguiu o homem pela<br />

cidade, apenas observando, esperando pacientemente. Quando o<br />

homem estava finalmente sozinho em um quintal, isolado, ainda<br />

incólume, Samuel atacou.<br />

O demônio sentiu o ataque iminente uma fração de segundo<br />

antes de acontecer. Ele reagiu, assumindo controle total, os olhos<br />

verdes cansados do homem virando escuros. Um rosnado ricocheteou<br />

pelo quintal quando a criatura se levantou para trás, e uma longa briga<br />

se seguiu antes que Samuel fosse capaz de colocar a palma da mão<br />

plana contra o peito do homem, sobre o seu coração silencioso,<br />

apreendido pela besta maldita. — Exorcizo te, spiritus omnis immunde...<br />

O homem caiu no chão enquanto Samuel recitava o<br />

encantamento de exorcismo, a grama ao redor do seu corpo se<br />

queimando e virando um marrom crocante enquanto a vida era expulsa,<br />

o demônio sendo forçado violentamente a sair, amaldiçoado de volta<br />

para a sua jaula. Samuel ficou sobre o homem até detectar uma<br />

pulsação constante, então ele se virou e se afastou.<br />

O homem ficaria inconsciente por alguns minutos. Quando ele<br />

acordasse, não teria nenhuma memória do evento. Era um presente<br />

~ 35 ~


com o qual os humanos foram abençoados – a capacidade de esquecer –<br />

e Samuel tirou o máximo proveito disso.<br />

Outros não eram tão gentis. Era tão fácil destruir um demônio<br />

com a lâmina de uma faca mágica mergulhada no peito do ser humano<br />

quanto fazer isso usando um feitiço.<br />

Só que a faca era muito, muito mais rápida.<br />

* * *<br />

Fumaça saía das chaminés, se infiltrando entre as nuvens e<br />

manchando o céu azul com ondas de cinza. Centenas de batimentos<br />

cardíacos ecoavam harmoniosamente dentro da velha fábrica enquanto<br />

os trabalhadores terminavam seus turnos da manhã, alheios ao fato de<br />

Serah os observar do lado de fora.<br />

Ela não estava lá há muito tempo quando o ar estalou atrás dela<br />

e braços fortes imediatamente se enrolaram em volta da sua pequena<br />

cintura. Um sorriso puxou os seus lábios quando ela descansou sem<br />

dizer nada contra Michael, procurando conforto no seu abraço.<br />

Foi uma semana longa, para dizer o mínimo.<br />

— Eu sempre sei que se eu tenho dificuldades de te sentir, é<br />

porque você está aqui embaixo se misturando com esses mortais.<br />

— É pacífico aqui, — ela disse. — As pessoas trabalham duro e<br />

amam ainda mais duro. Em parte é tão... simples. Viver uma existência<br />

tão passiva.<br />

Bem nesse momento, uma sirene alta soou e a porta da frente da<br />

fábrica se abriu. As pessoas se derramaram para fora, rindo e<br />

conversando, escorrendo contentamento. Elas estiveram trabalhando<br />

por doze longas horas, mas a maioria ainda estava cheia de energia<br />

enquanto se dirigiam para suas casas.<br />

O pai de Nicki Lauer, Nicholas, andou a passos largos para fora,<br />

apertando dolorosamente os olhos quando a luz do dia chegou ao seu<br />

rosto. Ele levantou a mão e esfregou sua têmpora enquanto um suspiro<br />

exasperado deixava seus lábios.<br />

— Você está bem, cara? — seu amigo perguntou, lhe dando um<br />

tapinha no ombro. — Você esteve quieto o dia todo.<br />

~ 36 ~


— Sim, apenas uma dor de cabeça. Está piorando.<br />

— Talvez você devesse ir ver um médico.<br />

Ele bufou. — Com o nosso seguro?<br />

— É, eu sei, — o cara disse. — Bem, você quer uma carona?<br />

— Sim, claro, — os dois homens caminharam na direção deles e<br />

passaram tão perto que Serah se esticou e tocou no pai de Nicki quando<br />

eles se aproximaram. Ela passou os dedos suavemente pela testa dele,<br />

instantaneamente aliviando a sua dor. Ele parou de andar enquanto<br />

piscava rapidamente. — Na verdade, estou me sentindo melhor, então<br />

acho que vou andando. Obrigado, de qualquer maneira.<br />

— Aneurisma cerebral, — Michael disse divertido, observando os<br />

homens enquanto eles seguiam caminhos opostos. — Há alguma razão<br />

para você ter acabado de salvar essa vida humana em particular?<br />

— Ele é um dos bons. Nós podemos usar tudo que pudermos a<br />

nosso favor.<br />

Michael beijou o topo da cabeça de Serah enquanto a puxava<br />

mais aperto contra ele, seu corpo se derretendo no dele. Eles<br />

permaneceram em silêncio, o olhar dela vagando pelas nuvens de<br />

fumaça que se dispersavam agora que pessoas tinham ido embora.<br />

— O que você está pensando? — ele perguntou depois de um<br />

momento. — Sua mente está bloqueada para mim aqui.<br />

— Estou pensando em Samuel, — ele disse. — Me perguntando o<br />

que aconteceu com ele.<br />

— Isso não importa.<br />

Suas sobrancelhas se juntam. — O que isso significa?<br />

— Significa que ele caiu, Serah, — ele disse. — Onde ele acabou<br />

não faz a menor diferença. Ele perdeu a sua Graça. Ele não é mais um<br />

de nós definitivamente.<br />

— Mas ele é meu irmão.<br />

— Não é mais.<br />

O sorriso dela sumiu com as suas palavras.<br />

— Vamos lá, — ele disse. — Vamos sair daqui e esquecer as<br />

coisas por um tempo. Nós dois certamente merecemos essa semana.<br />

~ 37 ~


Suas palavras rapidamente a lembraram de outras: Eu estou<br />

amaldiçoado a lembrar, quando todos os outros podem esquecer.<br />

— Eu gostaria disso, — ela disse. — Esquecer seria legal.<br />

Os dois apareceram em um campo de flores silvestres e se<br />

perderam em seu abraço carnal. Paixão sutil surgiu enquanto Michael<br />

deslizava dentro e fora dela, lhe dando cada parte de si que ele podia.<br />

Ele se segurava continuamente, a força total do seu poder era algo que<br />

ela nunca tinha testemunhado, muito menos experimentado. Ele se<br />

segurou, fazendo dos dois iguais, muito longe do Arcanjo comandante<br />

que ela sabia que ele poderia realmente ser.<br />

O Arcanjo comandante que ele estava destinado a ser.<br />

Ela explorou suas costas esculpidas, passando levemente as<br />

pontas dos dedos pelas suas asas escondidas nas omoplatas. As mãos<br />

dela correram pelas suas mechas suaves e se enroscaram no cabelo do<br />

pescoço enquanto seus lábios se encontravam em beijos doces e<br />

sensuais.<br />

Serah gemeu quando ele sussurrou o seu nome, a segurando, se<br />

agarrando firmemente a ela, quando uma corrente cantarolou pela sua<br />

pele exposta. Estar com ele sempre lhe garantia uma faísca extra para a<br />

sua própria Graça, a luz e a força dentro dela em plena explosão<br />

enquanto ele se mexia, reacendendo e alimentando a dele. Era como ser<br />

conectada a uma tomada, repondo suas energias enquanto ele se dava<br />

a ela.<br />

Michael eventualmente parou e os rolou sobre a grama, puxando<br />

o corpo dela gentilmente sobre o dele. Ele a segurou, acariciando a pele<br />

suave da sua lateral enquanto ela se aninhava contra o seu peito.<br />

Os dois ficaram quietos por um tempo antes de Serah falar. —<br />

Michael, o que você vê em mim?<br />

A mão dele parou no seu quadril. — Você é cheia de beleza e<br />

graça.<br />

— Sim, mas assim são os outros anjos. Entre todos, por que eu?<br />

— Por que você está tão insegura? — ele perguntou. — Nós<br />

encontramos o amor faz muito tempo. Por que questionar as coisas<br />

agora?<br />

— Eu não estou. É só...<br />

~ 38 ~


Ela parou. Ela não sabia o que dizer, como explicar.<br />

— É ele, não é? — Michael perguntou. — É essa tarefa absurda<br />

em que você está metida.<br />

— Não, — ela pausou. — Bem, talvez... eu realmente não sei.<br />

Michael se levantou, colocou suas roupas de volta em um piscar<br />

de olhos, suas asas se expandindo defensivamente enquanto ele pairava<br />

sobre ela. — Não o escute, Serah, não importa o que ele diga. Você não<br />

pode deixar ele ficar sob a sua pele. Ele vai te manipular se você fizer<br />

isso. Nenhuma palavra que ele diz pode ser confiável. Você me ouviu?<br />

— Sim, e eu sei que Satanás é uma serpente que quer envenenar<br />

a todos nós, — as palavras saíram dos seus lábios como se ela estivesse<br />

lendo um folheto de propaganda. — É só que...<br />

Ela não teve a chance de terminar seu pensamento antes que<br />

Michael a puxasse de pé e a trouxesse para os seus braços, suas armas<br />

enormes os circundando protetoramente. — Eu não suporto o<br />

pensamento de perder você, Serah.<br />

— Você não vai, — ela disse. — Eu te amo.<br />

— Eu sei que sim, — ele repetiu, — mas eu o conheço, também.<br />

Melhor do que ninguém.<br />

* * *<br />

Dois dias mais tarde, quando os últimos traços de Michael<br />

haviam desaparecido do seu corpo, Serah fez a viagem através dos<br />

portões novamente. Ela passou a manhã se aventurando por Chorizon,<br />

assistindo as crianças brincando na escola enquanto o jardineiro<br />

cortava a grama pela última vez naquele ano. As estações estavam<br />

mudando, o outono profundo dando espaço ao inverno logo ao virar da<br />

esquina. Isso era como de costume, na Terra e abaixo dela.<br />

Lúcifer já estava esperando quando ela apareceu. Como das<br />

outras vezes, ela parou a alguns metros de distância e ele tomou uma<br />

respiração profunda, calculada, inalando a sua presença.<br />

— Ah, o cheiro de pura inocência e grama recém-cortada, — ele<br />

disse. — Eu não tenho certeza de qual é mais afrodisíaco. Se eu não<br />

~ 39 ~


soubesse melhor, diria que você estava tentando me excitar – o que,<br />

nesse caso, eu diria que está funcionando.<br />

Ela ignorou sua colocação engraçadinha. — Eu tenho uma<br />

pergunta.<br />

Ele suspirou, acenando com a mão bruscamente. — Pergunte.<br />

— Como você sabe como as coisas cheiram?<br />

Ele piscou algumas vezes, como se tivesse sido pego de surpresa.<br />

Não era a pergunta que ele estava esperando. Serah sorriu para si<br />

mesma, mas escondeu sua satisfação por tê-lo pego com a guarda<br />

baixa, não querendo que ele visse isso.<br />

— Eu me lembro das coisas.<br />

— Como?<br />

Ele suspirou dramaticamente. — Só porque estou preso aqui<br />

embaixo não significa que eu não tenho conexões lá em cima.<br />

— Mas como você sabe como é o cheiro de tudo, para começar?<br />

Levou um momento para ele registrar isso. — Ah, porque eu sou<br />

um anjo, certo? E anjos não têm olfato.<br />

— Certo.<br />

— Eles também não têm paladar, — ele continuou. — Ou tato.<br />

— Eu tenho tato.<br />

Ele balançou a cabeça. — Você não tem.<br />

— Eu tenho, — ela insistiu, hesitando antes de adicionar<br />

suavemente. — Eu sinto quando estou com ele.<br />

Ele olhou para ela peculiarmente enquanto algo brilhava em seus<br />

olhos, uma chama vermelha intensa, como fogo alimentado com<br />

gasolina. O céu escureceu, como se algo dentro dele controlasse a<br />

estratosfera do lugar. — Seja lá qual for o pequeno formigamento que<br />

Michael oferece a você, é pálido em comparação a sentir de verdade.<br />

Anjos sabem das coisas. Nós fomos criados com simpatia. Você pode<br />

detectar dor e fome e desejo, e sabe o que eles significam, o que eles<br />

precisam, mas você não pode sentir nada disso.<br />

— E você pode?<br />

~ 40 ~


— Sim.<br />

— Como?<br />

Ele se aproximou, parando quando estava quase contra a<br />

barreira, mais perto do que eles dois jamais estiveram antes. Se ela não<br />

soubesse melhor, durante sua aproximação repentina, ela teria jurado<br />

que ele pretendia parar diretamente ao seu lado. Uma voz em sua<br />

mente, seu reflexo angelical, a avisou para se afastar da alma imoral,<br />

mas a grave expressão dele a prendeu no lugar enquanto esperava por<br />

uma resposta.<br />

— Eu não fui apenas obrigado a me lembrar, mas também fui<br />

amaldiçoado com algo que fez tudo isso muito, muito pior – empatia.<br />

Ela uniu as sobrancelhas. — Isso não seria uma benção?<br />

Uma risada amarga explodiu do seu peito, a barreira entre eles<br />

não impedindo que isso chegasse até ela. — Uma benção? Você acha<br />

que isso é uma benção? Eu sinto tudo. Cada grama de sentimento que<br />

eles têm, cada pequena sensação – eu sou forçado a suportar. Você<br />

sabe como é estar com tanta fome, tão absolutamente faminto, que é<br />

como se você estivesse sendo comido vivo de dentro para fora? Está lá<br />

constantemente, mas nada que eu faço satisfaz a fome, a necessidade, o<br />

desejo.<br />

— Você sabe como é ser torturado, ser constantemente rasgado<br />

como se alguém estivesse levantando um martelo e batendo no seu<br />

crânio, mas nunca encontrasse o doce alívio da morte? Você sabe o que<br />

é querer tanto algo, precisar disso, sentir que você não pode ir em frente<br />

sem, só para ter isso negado bem na sua cara? Essa tortura, esse<br />

tomento mental, é pior do que qualquer dor física que você pode<br />

perceber, anjo, mais forte do que qualquer porra de formigamento que<br />

meu irmão te conceda quando você tira o vestido para ele.<br />

Ele instantaneamente desapareceu com um alto estalo de trovão,<br />

tão impetuoso que até mesmo os ceifeiros pararam para tomar nota.<br />

Serah apenas ficou ali, muito chocada para se mover, sua boca aberta.<br />

— Sata... hm, Lúcifer? — ela chamou, olhando em frente para a<br />

terra deserta. Ela não tinha ideia de onde ele havia ido, mas ela<br />

esperava que ele pudesse ouvi-la de onde estivesse. — Eu posso não<br />

sentir todas essas coisas – a fome, a dor, a necessidade – mas eu sinto<br />

algo que você não.<br />

~ 41 ~


Silêncio foi a resposta. Ela continuou parada ali, observando,<br />

esperando, mas nada aconteceu por alguns minutos. Resignada, ela se<br />

virou para ir quando o ar estalou atrás dela. — O quê?<br />

Ela se virou para encará-lo. — Amor.<br />

Ele cruzou os braços grossos sobre o peito e a encarou, nem um<br />

traço de diversão nas suas feições. Ele não disse uma palavra em<br />

resposta à sua declaração.<br />

— Se você sentisse amor, se conhecesse o amor verdadeiro, não<br />

estaria fazendo nada disso, — ela disse. — Essa luta está ferindo<br />

aqueles que você deveria amar, aqueles que você deveria proteger. Isso<br />

tem que acabar.<br />

— Por que eu deveria me importar com eles? — ele perguntou. —<br />

Eles não se importam comigo. Ninguém se importa.<br />

— Então por que isso está acontecendo? Vingança?<br />

Ressentimento? Você faz isso por puro ódio?<br />

— Eu faço porque tenho que fazer.<br />

— Por quê?<br />

Ele foi embora de novo, dessa vez tão silenciosamente que Serah<br />

sabia que ele não voltaria por hoje.<br />

* * *<br />

Miss Mary Mack, Mack, Mack,<br />

All dressed in black, black, black,<br />

With silver buttons, buttons, buttons,<br />

All down her back, back, back! 8<br />

As duas meninas cantavam enquanto batiam as palmas juntas,<br />

rindo quando erraram ao mesmo tempo. Serah as observou em silêncio<br />

quando elas tentaram novamente, não indo muito longe na segunda<br />

tentativa.<br />

8 É uma canção de roda infantil, mas também com um significado um pouco macabro,<br />

porque faria referência a um caixão ou a uma mulher morta. Os versos seriam algo<br />

como: Senhora Mary Mack/Toda vestida de preto/Com botões de prata/Presos nas<br />

suas costas.<br />

~ 42 ~


— Você só pode estar brincando comigo, — Hannah disse,<br />

sentando no balanço ao lado dela. — Agora essa música é sobre morte.<br />

É uma rima sobre um caixão.<br />

— Ou é apenas outra cantiga infantil.<br />

— Outra cantiga absurda, — Hannah revirou os olhos enquanto<br />

as garotas tentavam pela terceira vez. — Falando de morte e absurdos,<br />

como estão indo as coisas no Inferno?<br />

As penas das asas de Serah se agitaram. — Hm...<br />

— Tão mal assim?<br />

— Bem, a guerra ainda está em curso, — ela disse. — Ele não<br />

parece interessado em recuar tão cedo... ou em algum momento, na<br />

verdade.<br />

— Eu não estou surpresa, — Hannah disse. — Então, isso<br />

significa que você vai desistir dele?<br />

— Não.<br />

— Você e seu suprimento de paciência infinita. O que você faz lá<br />

embaixo, afinal? Olha para ele? — Hannah estremeceu. — Deve ser<br />

assustador.<br />

— Perto, — ela disse. — Nós ficamos lá de pé e conversamos.<br />

— Sobre o que no mundo vocês conversam?<br />

— Ele, é claro.<br />

A risada de Hannah se fundiu com o sino da escola, marcando o<br />

recomeço das aulas. — Eu não estou surpresa. Ele é completamente<br />

cheio de arrogância pecadora, como sempre.<br />

Serah sorriu tristemente. Ele não era tão pretensioso, mas ela não<br />

corrigiu sua amiga.<br />

As garotas correram juntas de braços dados, enquanto Hannah e<br />

Serah sentaram em silêncio. O parquinho estava completamente<br />

deserto depois de alguns minutos.<br />

Hannah ia falar quando um cão magricelo veio andando sem<br />

rumo. Ele hesitou ao se aproximar, seu foco mudando para os balanços<br />

enquanto um rosnado vibrava na sua garganta. O pelo amarelo sujo se<br />

eriçou quando ele abaixou a cabeça e se preparou para um ataque.<br />

~ 43 ~


Serah o olhou, confusa. — Pelo nome do Senhor?<br />

Hannah estalou o dedo no ar, iniciando uma pequena rajada de<br />

vento que assustou o cachorro. Ele guinchou e saiu correndo na direção<br />

do parquinho. — Não posso dizer que isso já aconteceu antes.<br />

— Parecia que... — Serah vacilou. — Ele podia nos ver.<br />

— Isso não poderia acontecer a menos que ele estivesse possuído.<br />

Não senti nenhuma presença demoníaca.<br />

Nem Serah. Não, tudo que ela sentiu foi uma suspeita inerente e<br />

um pouco de medo irradiando do cão. Como se ele se sentisse<br />

ameaçado, sabendo que não estava sozinho.<br />

— Enfim, — Hannah disse, se levantando. — O dever me chama.<br />

Hoje é noite de lua cheia. Boa sorte com Satanás.<br />

* * *<br />

— Vamos lá, rapazes! Nós estamos nessa!<br />

Samuel agarrou a corda com força, forçando seus músculos<br />

tensos enquanto puxava. Três corpos atrás dele trabalhavam em<br />

harmonia enquanto os quatro à sua frente puxavam com toda a sua<br />

força.<br />

Cabo-de-guerra: que brincadeira sem sentido.<br />

Serah relaxou na colina gramada, observando seu irmão e outras<br />

Potestades testarem a sua força. Eles estavam nisso há horas e sem<br />

progressos, os dois lados igualmente fortes, o enorme poço de lama<br />

entre eles intocado.<br />

— Quanto tempo você acha que vai levar? — Hannah perguntou,<br />

sentando ao lado dela.<br />

— Não sei, — ela respondeu. — Da última vez demorou três dias<br />

antes que o Dominion aparecesse com ordens para eles voltarem ao<br />

trabalho.<br />

— Aff, eles são tão humanos às vezes, — Hannah revirou os<br />

olhos. — Eles deveriam apenas puxar sua genitália para fora e resolver<br />

isso de uma vez por todas.<br />

~ 44 ~


Os olhos de Serah se arregalaram e ela explodiu em gargalhadas.<br />

— O quê?<br />

— Não é isso que homens mortais fazem? Aparentemente o<br />

tamanho do pênis é um indicativo de virilidade agora, o que eu<br />

realmente não entendo.<br />

— Hm... — Serah não tinha ideia do que dizer.<br />

— Você se lembra da época em que ter seis dedos era demais? Era<br />

isso que definia verdadeiros reis. Mas todos os homens têm pênis. Eles<br />

são tão comuns, como membros em miniatura.<br />

Serah balançou a cabeça. — Você com certeza sabe como<br />

banalizar as coisas.<br />

— Claro, procriar é importante, mas assim também é comer, e<br />

eles não comparam o tamanho das suas bocas, — ela pausou. — Eles<br />

não fazem isso, fazem?<br />

— Não geralmente.<br />

— Então eu não entendo porque sexo fascina a todos. Os fluidos,<br />

o suor, os barulhos, a penetração. É tudo tão... bagunçado. Parece<br />

doloroso.<br />

— É prazeroso.<br />

— Como você saberia, — Hannah disse, lhe cutucando. — É uma<br />

ação humana, não é destinada à nossa espécie.<br />

— Mas Azreal e Dinah...<br />

— Os dois caíram.<br />

— Benjamin e Laura.<br />

— Eles caíram, também.<br />

— Cian e Maylin.<br />

Hannah hesitou. — Maylin caiu.<br />

— Mas Cian não, — Serah apontou.<br />

— Verdade, — Hannah concedeu. — Independentemente disso, eu<br />

não vejo o apelo. Eu nunca assumiria esse risco. E você?<br />

Serah permaneceu em silêncio enquanto observava seu irmão e<br />

os outros na batalha por controle. Ela correria o risco? Ela viu milhares<br />

~ 45 ~


– milhões – de humanos se apaixonar, viu suas emoções consumirem<br />

cada parte deles, controlarem cada pensamento e mudar quem eles<br />

eram. Conhecer tanta paixão seria glorioso. Mas valeria a pena se abrir<br />

para as tentações terrenas? Ela não tinha certeza.<br />

Amor e luxúria eram uma ladeira escorregadia. Eles poderiam se<br />

aquecer com o amor, mas se render ao desejo seria o fim deles.<br />

Apenas alguns minutos passaram quando o ar estalou e um<br />

Arcanjo apareceu no meio do parque. Sua presença surpreendeu a<br />

todos, menos Samuel, que aproveitou a repentina distração para tirar<br />

vantagem no jogo. Ele puxou com força, derrubando seus oponentes<br />

diretamente na poça de lama com um barulho alto.<br />

Rindo enquanto os anjos tentavam se limpar, Samuel fez seu<br />

caminho até a colina gramada. Ele sentou ao lado de Serah, sua face<br />

iluminada com um largo sorriso. Seu cabelo castanho alcançava o<br />

queixo, caindo pelo seu rosto. Ele ignorou suas mechas bagunçadas e<br />

jogou um braço sobre os ombros da irmã, puxando-a rudemente para<br />

perto dele em um abraço apertado. — Ei, irmãzinha.<br />

— Samuel, — ela disse, tentando escapar do seu aperto. — Você<br />

esqueceu que eu sou três nanosegundos mais velha do que você?<br />

— Mais velha, mas ainda assim menor.<br />

Ela conseguiu se soltar. — Mas sou tão forte quanto.<br />

O Arcanjo se aproximou com cautela, o único no parque que não<br />

estava em forma humana. Suas asas pareciam maiores do que todas as<br />

outras, sua postura intimidante.<br />

— Michael, — Samuel o cumprimentou. — Bom ver você, amigo.<br />

Sente aí. Relaxe.<br />

Todos permaneceram imóveis, atentos, quase assustados com a<br />

sua presença ali. Eles não adoravam ninguém a não ser o nosso Pai,<br />

mas Michael também lhes inspirava. Estar na sua presença,<br />

testemunhar o seu esplendor, os fazia se sentir um pouco mais santos<br />

nesse momento.<br />

Samuel não parecia afetado, no entanto. Sempre tão tranquilo,<br />

sempre tão amigável.<br />

Michael não se sentou, não parecendo nada confortável. Ele<br />

pairou na frente deles, os observando com curiosidade, não acostumado<br />

a socializar. Os olhos dele eventualmente encontraram os de Serah, o<br />

~ 46 ~


azul magnifico tão brilhante quanto um céu à tarde sem nuvens.<br />

Curiosidade brilhou neles quando seus lábios se curvaram em um<br />

sorriso – o primeiro sorriso que ela já viu no rosto dele.<br />

— Essa é minha irmã, Serah, — Samuel disse, percebendo para<br />

onde tinha ido a sua atenção. — Serah, esse é...<br />

— Michael, — ela sussurrou. — Eu sei quem ele é.<br />

Samuel riu. — Claro que você sabe.<br />

As outras Potestades gritaram pedindo revanche, arrastando<br />

Samuel de volta para o parque.<br />

— Serah, — Michael disse, seu nome era uma brisa quente de<br />

verão nos lábios dele. — Eu sinto muito, mas não posso dizer que sei<br />

tanto de você quanto você sabe de mim.<br />

— Não precisa se desculpar, — ela disse. — Você é um Arcanjo e<br />

eu sou...<br />

— Extraordinária.<br />

Ela empalideceu. Isso certamente não era algo que ela esperava<br />

que ele dissesse.<br />

O olhar de Michael correu para o parque quando o segundo round<br />

da brincadeira começou. — O seu irmão é um grande guerreiro. Eu não<br />

poderia pedir por um aliado melhor na luta contra o mal.<br />

— Sim, Samuel é brilhante. Eu espero ser exatamente como ele<br />

um dia.<br />

— Eu não tenho dúvidas de que você já é, — ele disse, se virando<br />

para ela. — Mas eu nunca vi você em uma batalha, no entanto.<br />

— Eu prefiro deveres terrenos.<br />

— Que pena, — Michael disse. — Se eu tivesse você ao meu lado<br />

todos os dias, talvez tudo não parecesse tão incrivelmente enfadonho.<br />

Antes que Serah pudesse entender o significado das suas<br />

palavras, Michael se afastou. Ele interrompeu o cabo-de-guerra,<br />

agarrando o meio da corda e, sozinho, enviou os outros homens para a<br />

poça de lama antes de desaparecer.<br />

Hannah clareou a garganta. — Bem, acho que nós sabemos quem<br />

tem o maior pênis aqui.<br />

~ 47 ~


Serah sacudiu com a risada enquanto o encontro terminava,<br />

Hannah desaparecendo para voltar ao trabalho com as demais<br />

Potestades. Samuel tentava se limpar da lama enquanto avançava na<br />

direção dela. — Eu tinha uma sensação de que ele ia fazer isso.<br />

— Ele é, hm... interessante.<br />

— Ele é um grande aliado.<br />

— Ele falou a mesma coisa de você, — ela disse. — Ele parece te<br />

admirar.<br />

— E eu a ele, — Samuel disse. — A maioria das pessoas ficam<br />

tímidas perto dele, e eu entendo por que. Não importa o quão bom ele é,<br />

não importa quão puro, é difícil se afastar da sombra de alguém que<br />

caiu e perdeu sua Graça de uma forma tão horrível.<br />

— Satanás.<br />

— Sim, — Samuel disse. — Imagine ter esse cara como irmão. Me<br />

faz parecer um milhão de vezes melhor, hm?<br />

Serah dramaticamente enrugou o nariz. — É, acho que você é ok.<br />

* * *<br />

— Foi o meu irmão.<br />

As sobrancelhas de Lúcifer se uniram enquanto ele olhava para<br />

Serah através do portão. — Seu irmão?<br />

— Você perguntou como Michael me notou, — ela disse. — Foi<br />

por causa do meu irmão.<br />

— Ah, — ele chutou o chão casualmente, agitando a terra seca. O<br />

ar ao redor dele estava nublado, revirando perto dos seus tornozelos. —<br />

Mas você é uma Potestade, então deve ter, o que, centenas de milhares<br />

de irmãos?<br />

— Tecnicamente, — ela disse, — mas esse era meu irmão de<br />

verdade. Nós fomos criados ao mesmo tempo, nascemos da mesma luz.<br />

— Gêmeos, — ele murmurou. — Duas metades de um todo.<br />

~ 48 ~


Ela sabia que ele entenderia, sendo um dos poucos que sabia<br />

como isso era. Uma parte dele existia fora do seu corpo, a mesma Graça<br />

que uma vez corria pelas suas veias ainda fluía por outras.<br />

Michael.<br />

— Então devo supor que você e esse irmão são próximos?<br />

— Sim, — ela disse. — Nós éramos.<br />

— Eram?<br />

— Ele, hm... ele caiu.<br />

Os olhos de Lúcifer instantaneamente encontraram os dela, o<br />

vermelho ali revirando loucamente com a curiosidade. — Ele caiu<br />

comigo?<br />

Ela balançou lentamente a cabeça. — Ele caiu há duas semanas.<br />

— Ah, Samuel.<br />

Serah piscou rapidamente quando o demônio falou o nome do seu<br />

irmão. — Você sabe?<br />

— Sim, eu sei que ele caiu. Eu sei o momento em que todos caem,<br />

— ele bateu na sua têmpora. — Rede dos Anjos, lembra? Estou<br />

surpreso que Samuel tenha demorado tanto, para ser honesto. Eu<br />

tentei fazer com que ele viesse comigo desde o começo, mas ele resistiu.<br />

Ele queria, no entanto.<br />

— Você está mentindo, — ela disse. — Samuel nunca se juntaria<br />

ao seu lado.<br />

— Estou dizendo a verdade. Ele quase veio, mas mudou de ideia<br />

na última hora. Acho que me lembro dele dizendo que tinha uma irmã<br />

que estava preocupado de deixar para trás. Faz sentido agora. Eu não<br />

teria querido deixar você, também.<br />

A convicção na voz suave de Lúcifer fez Serah parar e realmente<br />

considerar as suas palavras, apesar de suas defesas estarem gritando o<br />

contrário. Não escute a serpente venenosa. Não confie em nada que sai<br />

da sua boca vil e traiçoeira. Ela não queria acreditar que Samuel<br />

trocaria de lado, e até duas semanas atrás, ela não teria sequer<br />

pensado nisso. Mas a verdade não podia ser negada – ele havia perdido<br />

a sua Graça de algum jeito, de alguma maneira.<br />

~ 49 ~


Apesar de ser uma Potestade, um dos anjos intermediários na<br />

grande hierarquia, Samuel sempre tinha parecido tão formidável –<br />

quase tão intimidante para Serah quanto os Arcanjos. Sua força e firme<br />

convicção de que a inocência precisava de proteção não combinavam<br />

em nada com o assustador anjo caído que estava de pé na frente dela<br />

agora. Como poderia Samuel ter considerado se juntar ao lado de<br />

Lúcifer?<br />

Absurdo.<br />

— Ele está aqui? — ela perguntou, as palavras saindo antes que<br />

ela pensasse direito. — Samuel é como você agora? Ou ele... você<br />

sabe...?<br />

— Isso importa?<br />

— Sim.<br />

— Por quê?<br />

— Porque ele é meu irmão.<br />

— E daí? — Lúcifer pressionou. — Mesmo depois dele cair,<br />

mesmo depois do que eu acabei de te dizer, você ainda pensa em<br />

Samuel como seu irmão?<br />

— Sim.<br />

Depois de um momento de contemplação, Lúcifer encolheu um<br />

dos ombros. — Eu não posso te dizer onde ele está. Mas você é mais do<br />

que bem-vinda a entrar e procurar por aí.<br />

Serah gaguejou, surpresa com a oferta. Entrar? No Inferno? —<br />

Você é louco!<br />

Ele riu baixinho. — Já fui chamado de coisas piores.<br />

— Eu nunca poderia entrar. Isso é estúpido. É impossível.<br />

— Estúpido? Talvez. Impossível? Dificilmente.<br />

Lúcifer chutou uma pedra no chão, a enviando diretamente para<br />

o outro lado do portão. Ela hesitou ao bater nele, penetrando o campo<br />

de força brilhante em câmera lenta. Um assobio baixo sacudiu a terra,<br />

interrompendo temporariamente os ceifeiros, que olharam enquanto a<br />

pedra voava para o outro lado. Ela chegou direto para Serah, rolando<br />

até parar aos seus pés descalços.<br />

~ 50 ~


Alarmada, ela imediatamente deu alguns passos para trás, seu<br />

olhar balançando freneticamente entre Lúcifer e a pedra. Como ele fez<br />

isso? O portão deveria manter tudo ali dentro.<br />

— É apenas mágica simples, — ele explicou, como se tivesse<br />

escutado seus pensamentos preocupados. — Algumas coisas são<br />

imunes aos encantamentos.<br />

— Como pedras, — ela concluiu.<br />

— E anjos.<br />

Ela olhou para ele em choque. — Se anjos são imunes, como<br />

você...?<br />

— Como eles me mantém aqui? — ele adivinhou. Ela acenou, e<br />

ele rapidamente abriu a sua camisa, expondo mais símbolos cobrindo o<br />

seu corpo tonificado. No seu peito, onde um coração esquecido deveria<br />

estar, um enorme hexagrama negro estava marcado na pele, a<br />

elaborada estrela de seis pontas contida dentro de um círculo. Ela<br />

estudou o signo que pulsava em sua carne, pulsando como se fosse um<br />

batimento de coração constante.<br />

Levantando a mão, Lúcifer lentamente contornou o símbolo com a<br />

ponta dos dedos calosos, estremecendo. — Quanto mais perto estou do<br />

portão, mais doloroso é.<br />

— Isso mantém você trancado aí dentro?<br />

— Sim.<br />

— Parece... frágil. — Para essa criatura, ela esperava mais<br />

segurança que apenas uma simples tatuagem gloriosa. — Superficial.<br />

— Eu também achei isso. Na verdade, eu ri quando a vi. Eu ri do<br />

nosso Pai, de Michael, de todos esses anjos perfeitos e metidos quando<br />

eu fui trancado nesse buraco com essas marcas. Eu era um Arcanjo e<br />

eles esperavam que isso me mantivesse preso? — ele riu amargamente.<br />

— A primeira coisa que eu fiz foi ir direto para a saída. No momento em<br />

que alcancei o portão, no momento em que ele me tinha em suas<br />

garras, eu senti a verdadeira tortura pela primeira vez. Era como se eu<br />

estivesse sendo rasgado ao meio. E então os ceifadores me atacaram,<br />

obstinados a me manter aqui, e destruíram qualquer pitada de bondade<br />

que foi deixada dentro de mim.<br />

Ele abotoou a camisa, escondendo novamente a marca.<br />

~ 51 ~


— Mais alguém aqui tem uma dessas?<br />

Ele balançou a cabeça. — Apenas eu.<br />

— Por quê?<br />

— Você sabe, é um pouco triste a forma como Ele te mantém no<br />

escuro. Em vez de me interrogar, por que você apenas não pergunta ao<br />

nosso Pai?<br />

Ela não podia, e ele sabia. Ninguém O questionava. Sua palavra<br />

era ouro. Ele dizia a você apenas o que era necessário ser dito.<br />

— Eu tenho total liberdade aqui embaixo, — ele ofereceu depois<br />

de um momento. — Os outros estão presos em suas pequenas jaulas,<br />

seus pesadelos pessoais. Eles escapam das suas amarras, escapam do<br />

seu Inferno, e seu único obstáculo é passar pelos ceifadores. Eu sou o<br />

único aqui preso por esse portão.<br />

— Há uma razão para isso, — ela disse. — Você é mantido aqui<br />

por uma razão.<br />

Ele bufou. — Você não acha que eu sei disso, porra?<br />

Ela não tinha certeza porque disse isso, sabendo que somente iria<br />

provocá-lo. — Eu só estou dizendo, você sabe... é por isso que eu vou<br />

ficar desse lado.<br />

— Você acha que eu vou te machucar? — ele perguntou,<br />

levantando uma sobrancelha interrogativamente. — Você acha que se<br />

chegar perto de mim eu, felizmente, soltaria a besta? Que Satanás iria<br />

aniquilar a bonita anjinha?<br />

— Bem... sim.<br />

Ele chutou o chão de novo. — Eu não tenho desejo de te<br />

machucar, mas mesmo que tivesse, eu não poderia.<br />

— Você não pode?<br />

— Não.<br />

— Eu não acredito em você.<br />

Lúcifer balançou a cabeça, suspirando exasperadamente. — Você<br />

está começando a ser cansativa, anjo.<br />

Serah não tinha certeza do que dizer. Ela não estava ali para<br />

entretê-lo.<br />

~ 52 ~


— Olhe, se você despejar um balde de gelo em uma bacia de água<br />

fervente, o que vai obter? — ele perguntou.<br />

— Água morna, eu acho.<br />

— Precisamente, — ele disse. — Os dois extremos cedem. Nós<br />

somos o mesmo aqui, você e eu – anjos no Inferno.<br />

— Exceto que eu ainda tenho a minha Graça.<br />

— Você tem, — ele concordou. — Eu posso sentir, você sabe. Eu a<br />

sinto emanando de você. É extremamente poderosa. Me faz sentir falta<br />

da minha.<br />

— Isso é inveja? — ela provocou. — Ainda pecando, eu vejo.<br />

— Querida, você não sabe nem a metade. Eu te invejo mais do<br />

que você poderia entender.<br />

— Por quê? — ela perguntou. — Você tinha tudo que eu tenho e<br />

ainda mais, mas desistiu de tudo.<br />

— Eu desisti, — ele disse, a voz dura. — E eu não me arrependo.<br />

O que eu fiz foi justificado, você acredite ou não. Mas isso não significa<br />

que eu não sinto falta de partes daquela vida... partes daquele mundo.<br />

Eu sinto falta da primavera, da chuva, do sol e da porra do ar fresco.<br />

Você sabe o que eu daria por ar fresco, para não ter que respirar esse<br />

fedor sujo todos os dias?<br />

— Você desistiria da guerra?<br />

Ele riu. — Boa tentativa.<br />

Ela deu de ombros. Valeu a tentativa.<br />

— Mas, acima de tudo, eu invejo a sua inocência. Eu invejo a sua<br />

ignorância. Eu desejaria não saber as coisas que eu sei, — ele balançou<br />

a cabeça enquanto rosnava com raiva para si mesmo, as palavras<br />

incoerentes para ela. — Você tem cheiro de flores hoje, aliás.<br />

— Eu estava em um campo mais cedo. Havia flores silvestres.<br />

Ela foi até lá procurando por Michael, mas tinha mudado de ideia,<br />

decidindo descer até os portões em vez de esperar o Arcanjo aparecer.<br />

— Você gosta de flores silvestres?<br />

— Claro, — ela disse. — Elas são uma das mais bonitas criações<br />

do nosso Pai. Você não acha?<br />

~ 53 ~


Ele não respondeu quando se virou para partir.<br />

* * * * *<br />

A família Lauer estava reunida em volta da pequena mesa, seus<br />

pratos cheios de comida. Os três uniram as mãos e baixaram as<br />

cabeças enquanto Nicholas Lauer fez uma oração em voz baixa. —<br />

Senhor, abençoe essa comida e todos nessa mesa. Por favor, nos ajude<br />

a sermos atentos às necessidades dos outros. Amém.<br />

Samantha e sua filha Nicki disseram um ―Amém‖ baixinho<br />

enquanto Serah deslizava sem cerimônias na única cadeira vazia na<br />

mesa de jantar.<br />

Nicholas e Samantha começaram a comer, conversando<br />

casualmente sobre o trabalho e amigos, enquanto a atenção de Nicki<br />

estava focada no seu caderno da Hello Kitty e na caixa de gizes de cera<br />

quebrados. Sua comida quase não foi tocada enquanto ela desenhava,<br />

figuras altas de palitinhos que representavam seus pais ocupavam a<br />

maior parte da página. Ela desenhou a si mesma também, de pé entre o<br />

pai e a mãe, completando a pequena família.<br />

Um quarto batimento calmamente ecoou na sala, desconhecido<br />

para a família como a presença de Serah. Uma pequena vida, não maior<br />

que uma semente de gergelim, crescia dentro de Samantha Lauer. A<br />

batida, ainda que fraca, atingiu Serah como o bumbo de um tambor.<br />

Samantha largou seu garfo, suavemente gemendo para si mesma<br />

enquanto segurava o estômago.<br />

— Você está bem, querida? — Nicholas perguntou, olhando para<br />

sua esposa com preocupação. — Você está pálida.<br />

— Sim, estou bem, — ela murmurou. — Eu estive um pouco<br />

estranha hoje. Acho que algo não me fez bem. — Espero que não seja<br />

nada sério.<br />

— Tenho certeza que não, — Samantha se levantou e jogou o<br />

guardanapo sobre o prato. — Eu só vou me deitar um pouco.<br />

O olhar de Serah a seguiu pelo corredor. Depois que ela foi,<br />

Nicholas focou sua atenção na filha. — O que você está desenhando aí,<br />

pequena?<br />

~ 54 ~


— Um retrato de família, — ela respondeu, levantando o caderno.<br />

— Vê? É você, eu e a mamãe!<br />

— E quem é esse aqui?<br />

Curiosa, Serah levou os olhos para o caderno, ficando chocada<br />

quando viu o que ela havia adicionado ao desenho. O quarto boneco de<br />

palitinhos flutuava no céu, pequenas asas saindo das suas costas.<br />

— É um anjo.<br />

— Ah, — Nicholas levantou uma sobrancelha. — Eu pensei que<br />

fosse a Sininho.<br />

Nicki riu. — Não seja bobo, papai, fadas não existem.<br />

— Você está certa, — Nicholas disse, se levantando e pegando seu<br />

prato. Ele o colocou na pia e beijou o topo da cabeça da sua filha ao<br />

passar. — Mas você esqueceu de desenhar a auréola.<br />

Ele seguiu pelo corredor para ver como estava sua esposa<br />

enquanto Nicki balançava a cabeça. — Anjos de verdade não têm<br />

auréola.<br />

Serah ficou congelada, pensamentos sobre o cão no parquinho<br />

vieram à sua mente. Algo estava acontecendo, embora não tivesse<br />

certeza do que ou como poderia ser assim. Nicki continuou a desenhar,<br />

preenchendo o desenho, enquanto Serah lentamente levantou a mão em<br />

frente ao rosto da garota. Ela acenou de um lado para o outro,<br />

esperando ser vista, sem saber o que faria se fosse, mas Nicki não<br />

reagiu aos movimentos.<br />

Graças a Deus.<br />

Depois de um momento, a garota se virou para a sua comida,<br />

devorando rapidamente uma porção antes de sair correndo para<br />

brincar. Serah continuou onde estava, olhando para o desenho do outro<br />

lado da mesa. — O que está acontecendo?<br />

Um estalo de estática soou atrás dela e uma leve brisa fez voar o<br />

desenho infantil. — Essa é uma boa pergunta.<br />

Serah se virou rapidamente quando Michael apareceu, seu corpo<br />

enorme preenchendo a pequena sala de jantar. — O que você está<br />

fazendo aqui?<br />

— Procurando por você.<br />

~ 55 ~


— Por quê?<br />

Ele uniu as sobrancelhas. — Preciso de uma razão?<br />

— Oh, — ela levantou, instantaneamente caindo em um abraço<br />

nos seus braços. — Claro que não.<br />

— Senti saudades, — ele disse. — Levou um tempo para te achar.<br />

Você geralmente não vai para dentro das suas casas.<br />

— Sim, eu sei. Eu só estava pensando sobre família e me<br />

perguntando como era para eles, então eu pensei... você sabe... em me<br />

juntar a eles para o jantar.<br />

Michael suspirou, seu rosto obscurecido pela confusão. — Isso é<br />

algo estranho para se pensar. O que te fez pensar nisso?<br />

Ela hesitou. — Samuel.<br />

Michael se afastou dela, franzindo o cenho. — Eu pensei que nós<br />

tínhamos estabelecido que ele não era mais relevante, que nós<br />

deveríamos esquecê-lo.<br />

— Você estabeleceu isso, — ela disse. — Você deixou isso bem<br />

claro. Mas ele ainda é meu irmão, Michael.<br />

— Não, ele não é, Serah. Não é mais. Você precisa aceitar isso.<br />

Nicki veio balançando do seu quarto e então pegou o caderno e a<br />

caixa de giz de cima da mesa. Ela começou a sair, mas hesitou, suas<br />

sobrancelhas únicas, e ela olhou ao redor da sala. — Papai, a cozinha<br />

está com um cheiro estranho.<br />

— Cheiro de quê? — ele veio correndo ansiosamente. — Fogo?<br />

Algo está queimando?<br />

— Não. Tem o cheiro daquela vez que você e a mamãe me levaram<br />

ao lago e nós fomos nadas e eu tinha aquelas boias cor de rosa e você<br />

levou um cooler com sanduíches. Lembra? Era o seu aniversário! Tia<br />

Maggie veio!<br />

— Sim.<br />

— Eu sinto o cheiro daquele dia, — ela disse.<br />

Nicholas riu. — Então a cozinha tem cheiro de Abril? Primavera?<br />

Nicki deu de ombros. — Acho que sim.<br />

~ 56 ~


Depois que a pequena garota voltou ao seu quarto, Michael<br />

segurou Serah novamente e os tirou de dentro da casa. Ela estava<br />

chocada demais para resistir, pega na conversa entre pai e filha.<br />

Primavera. Era exatamente esse o cheiro que Lúcifer disse que ela<br />

tinha.<br />

— O que deu em você? — Michael perguntou quando estavam do<br />

lado de fora. — Você sabe como as coisas funcionam. É a base da nossa<br />

existência.<br />

Ela se balançou para sair do estupor. — Samuel não era só meu<br />

irmão, ele era meu amigo. E ele era seu amigo, também. Isso não te<br />

incomoda?<br />

— Não. Eu não deixo. Eu desejaria que ele não tivesse caído, mas<br />

ele caiu. Não há nada mais para falar. Ele se foi. Fim da história. Nós<br />

temos que seguir em frente.<br />

— Como você pode apenas esquecer o meu irmão desse jeito?<br />

Como você pôde esquecer o seu próprio irmão tão facilmente?<br />

Michael ficou tenso, sua expressão endureceu e ele estufou o<br />

peito, suas asas batendo defensivamente. — Eu não tenho irmão.<br />

— Você tem, Michael. Lúcifer sempre vai ser seu irmão.<br />

Michael olhou para ela, estudando sua declaração – se olhares<br />

pudessem matar. — Lúcifer não existe mais. Aquela coisa lá embaixo,<br />

aquele meio-anjo corrupto, meio-demônio monstruoso, é Satanás. Não<br />

importa o que ele diga ao contrário, ele não é nada além de maldade.<br />

Ele não quer nada mais que buscar vingança contra todos nós.<br />

— Como você sabe?<br />

— Como eu sei? — ele deu um passo na sua direção, a cabeça<br />

erguida, autoridade em sua postura. Serah estava determinada a<br />

permanecer no lugar, mas o movimento a fez vacilar. — Você está<br />

questionando a minha afirmação? Eu sou um Arcanjo! Eu já estive ao<br />

lado do trono! Eu já estive na Sua presença!<br />

— Assim como Lúcifer.<br />

Michael balançou a cabeça enquanto apertava os punhos. Se<br />

Serah não soubesse melhor, ela suspeitaria que ele sentiu um pouco de<br />

raiva agora. — Você não sabe nada sobre ele. Essa tarefa está mexendo<br />

com a sua lógica. Isso tem que parar! Você está questionando coisas<br />

~ 57 ~


que não deveria; você está se impondo sobre essa família humana. Eu<br />

vou colocar um fim a isso agora.<br />

Michael desapareceu. Serah imediatamente se adiantou,<br />

procurando pela sua essência, tentando senti-lo e achar a sua<br />

localização, mas não sentiu nada. Um anjo não poderia ser encontrado<br />

se ele não quisesse, especialmente se estivesse muito longe.<br />

Em pânico, ela imediatamente apareceu nos portões, rapidamente<br />

passando por eles, e suspirando de alívio quando viu que o último deles<br />

estava vazio.<br />

Pelo menos ele não tinha ido lá. A presença de Michael em frente<br />

a Lúcifer, no território de Lúcifer, com certeza seria um gatilho para o<br />

Apocalipse.<br />

Balançando a cabeça, ela soltou um longo suspiro, e estava<br />

prestes a partir quando uma voz irritada a parou, afiada como a lâmina<br />

de uma faca.<br />

— Você tem muita coragem mesmo, porra.<br />

Serah congelou quando Lúcifer apareceu na luz, suas narinas<br />

dilatadas e o corpo tremendo. Escuro e perigoso. — O quê?<br />

— Você vem aqui, cheirando desse jeito – com o cheiro dele –<br />

depois que eu expressamente disse a você para não fazer isso. Você<br />

acha que as minhas palavras não significam nada? Você acha que eu<br />

sou uma piada? Que você pode apenas desconsiderar o que sai da<br />

minha boca? Aqui embaixo, a minha palavra é ouro. Aqui embaixo, eu<br />

tenho a última palavra. Você aparece aqui, desrespeitando a minha<br />

autoridade... se eu pudesse, te rasgaria ao meio agora, pedaço por<br />

pedaço maldito.<br />

Serah sentiu algo então, algo balançando dentro dela, uma<br />

sensação fria e intensa em seus sentidos aguçados. Ela deu um passo<br />

para trás, seu estômago revirado em nós, seu rosto pálido ficando de<br />

alguma forma mais branco.<br />

— Qual o problema, anjo? — ele provocou. — Você está com<br />

medo? Desse pouquinho do meu velho eu?<br />

— Isso foi um erro, — ela sussurrou, mal conseguindo dizer as<br />

palavras através dos lábios trementes. — Michael estava certo sobre<br />

você.<br />

~ 58 ~


— Meu querido irmão está sempre certo, não é? É por isso que ele<br />

é o príncipe glorioso.<br />

— Eu te defendi, — ela disse. — Eu o irritei e ele partiu. Eu sugeri<br />

que talvez ele estivesse errado sobre você, que talvez você não fosse<br />

completamente mau. Eu pensei que ele tivesse vindo aqui para provar<br />

que eu estava errada.<br />

Ele olhou para ela. — Você me defendeu?<br />

— Eu não deveria ter feito isso, — ela disse. — Eu não deveria<br />

nem ter vindo aqui. Ele está certo. Isso é inútil. Lúcifer está morto. Você<br />

é Satanás.<br />

* * * * *<br />

O balanço oscilou levemente, uma pálida flor rosa voou por ele, as<br />

pétalas delicadas esvoaçando na brisa das primeiras horas da manhã.<br />

Era domingo, e a maioria dos habitantes de Chorizon ainda estava na<br />

cama, dormindo profundamente. Alguns acordavam cedo, alguns<br />

estavam fazendo seu caminho até a igreja, enquanto outros passavam o<br />

dia com a família. O pátio da escola estaria deserto por mais algumas<br />

horas – nada além de Serah e a flor misteriosa descansando sobre o seu<br />

lugar habitual.<br />

Ela olhou ao redor, conferindo se estava sozinha, antes de se<br />

aproximar cautelosamente. Ela pegou a flor, a girando entre os dedos, e<br />

se sentou. Hesitante, ela a trouxe até o nariz e inalou profundamente,<br />

mas não havia nada – nenhum aroma, nenhum sentimento, nada. Nada<br />

novo. Apenas... nada. Era apenas uma flor, do tipo que crescia em<br />

abundância nas extensões de terra que homem ainda não havia tocado.<br />

— Michael, — o ar permaneceu estático, o parque continuou<br />

deserto. Ela ficou sentada ali por um tempo, apreciando o silêncio<br />

pacífico, antes de se forçar a voltar para os Céus, onde a cidade<br />

acordava para o dia.<br />

Serah se manteve ocupada pelos próximos dias, imersa em<br />

trabalho extra. ―Micro controle‖, é como Samuel havia chamado isso. O<br />

único outro anjo que ela encontrou foi Hannah, que apareceu algumas<br />

vezes no pátio da escola.<br />

~ 59 ~


Embora ela ainda não tivesse visto Michael durante todo esse<br />

tempo, lembranças dele apareciam em todo lugar. Parecia que a cada<br />

esquina que Serah virava – a todos os lugares que ela ia – uma flor<br />

estava descansando em seu caminho, uma pitada de beleza radiante e<br />

cor no meio da monotonia do dia a dia.<br />

Segurando uma flor amarela que ela tinha encontrado na porta<br />

da frente da família Lauer, ela se transportou para um campo no<br />

Paraíso. No momento em que ela chegou, sentiu a forte presença de<br />

Michael. Seus olhos correram ao redor, o encontrando a alguns metros<br />

de distância, a grama exuberante batendo em seus joelhos, seu rosto<br />

inclinado para o céu sem nuvens.<br />

Ele se virou lentamente, a sentindo. — Serah.<br />

— Olá, Michael.<br />

— Eu não esperava te ver, — ele disse. — Eu pensei que você<br />

estava me evitando.<br />

— Eu estava, — ela admitiu.<br />

— Mas não mais?<br />

Ela balançou a cabeça. — Não mais.<br />

— Fico feliz, — ele disse. — Eu ouvi do Dominion que você não vai<br />

aos portões faz uma semana, desde o dia da nossa discussão.<br />

— Sim, — ela murmurou. — Você estava certo sobre ele.<br />

— Claro que eu estava.<br />

Um suspiro escapou dos lábios de Serah enquanto ela olhava<br />

para a flor. — Obrigada, aliás.<br />

— Você não precisa me agradecer por te avisar.<br />

— Não é isso, — ela disse. — Eu estava agradecendo pelas flores.<br />

Michael franziu o cenho. — Que flores?<br />

Confusão genuína marcou a sua expressão. Ele não tinha ideia do<br />

que ela estava falando.<br />

— Acho que a sua amiga Hannah merece mais gratidão do que<br />

eu, — ele disse quando ela não explicou. — As Virtudes cuidam da<br />

natureza.<br />

~ 60 ~


— Sim, — Serah abaixou a flor com o cenho franzido. Elas não<br />

vieram dele? — Acho que você tem razão.<br />

Michael se aproximou, seu corpo enorme encobrindo a pequena<br />

estatura dela. Envolvendo os braços ao redor dela com força, engolindoa<br />

em um abraço, ele beijou o topo da sua cabeça. — Eu estou sempre<br />

certo, Serah. Você não deveria soar tão surpresa.<br />

Serah tentou achar conforto em seus braços, mas assim como<br />

com a flor, ela não sentiu nada. Braços que uma vez trouxeram consolo<br />

agora eram apenas vazios. Eles estavam juntos, se tocando, se<br />

abraçando; ainda assim, algo estava em seu caminho. Uma ranhura<br />

havia sido criada, uma massa de desentendimento, atada com<br />

perguntas sem respostas.<br />

O que estava acontecendo?<br />

Serah se afastou de Michael e forçou um sorriso em seus lábios.<br />

— Eu realmente deveria ir andando.<br />

— Fique comigo.<br />

Ela lentamente levantou a cabeça, ignorando a voz tentadora em<br />

sua mente que gritava – Fique com ele! — Eu não devo. Eu realmente<br />

não posso.<br />

Michael a soltou de má vontade, suavemente pressionando um<br />

beijo casto na sua testa. — Fica para a próxima, então.<br />

Serah retornou ao parquinho em Chorizon, se assustando com<br />

uma forma se escondendo nas sombras. A noite já havia caído há<br />

horas, era próximo da meia-noite, a única coisa mais espessa que a<br />

escuridão natural era a maldade no ar.<br />

O demônio errante se virou na direção dela. Seus olhos negros<br />

brilharam enquanto um rosnado baixo e defensivo vibrou em seu peito.<br />

Serah olhou para os poços sem fundos que eram seus olhos antes de<br />

desviar para o punho cerrado. Instintivamente a criatura abriu a mão,<br />

uma haste de flores roxas caindo no chão. As flores eram pequenas,<br />

cada uma com quatro pétalas, se combinando para fazer um pequeno<br />

buquê.<br />

— Quem é você? — ela exigiu. — Por que você está aqui?<br />

— Estou onde quero estar, — um sorriso de satisfação torceu<br />

seus lábios quando ele correu a mão pelo rosto, admirando o corpo que<br />

~ 61 ~


tinha possuído. — Eu meio que gosto desse aqui, no entanto. Eu<br />

pretendo o manter por um tempo.<br />

— Você não vai fazer isso.<br />

— Quem vai me impedir? — ele perguntou. — Você?<br />

A resposta veio de Serah em latim quando ela atacou o homem e o<br />

derrubou, o encantamento de exorcismo voando dos seus lábios. O<br />

demônio lutou violentamente antes de finalmente explodir em risadas,<br />

desistindo. Ele sabia que não podia ganhar. Lutar era inútil. — Ele<br />

disse que você era feroz.<br />

Seu corpo convulsionou e o demônio foi expulso em uma explosão<br />

de luz quando o coração do homem voltou a bater. Serah olhou para<br />

ele, sua mão ainda pressionada contra o peito dele, e suas palavras<br />

correram para ela.<br />

Ele disse que você era feroz.<br />

Um grunhido de irritação rasgou o seu peito e ela agarrou as<br />

flores descartadas e se encaminhou direto para o Inferno.<br />

Ela pisou acaloradamente contra os sedimentos em direção ao<br />

último portão, segurando a haste de flores, não esperando ele aparecer<br />

antes de se dirigir a ele. — Era você? Sério? Você?<br />

Um momento de silêncio se passou antes que ele rapidamente<br />

aparecesse com o estalo de um trovão. — Me desculpe?<br />

Você!<br />

— Você fez isso, — ela o acusou, balançando a haste de flores. —<br />

— O que te faz pensar isso?<br />

— Porque ninguém mais enviaria demônios para fazer seu<br />

trabalho sujo, — ela cuspiu. — O que você estava pensando? Qual era o<br />

ponto? Ordenando que seus capangas me seguissem pela Terra,<br />

deixando flores aonde eu ia! Você é terrível! Verdadeiramente<br />

deplorável! Isso é doentio!<br />

Com as mãos nos bolsos, Lúcifer olhou impassível para ela, seu<br />

tom controlado passando através do portão. — Você parece um pouco<br />

irritada, anjo.<br />

Ela o encarou. — É claro que eu estou irritada!<br />

~ 62 ~


— Você está brava porque eu fiz isso? — ele perguntou. — Ou é<br />

porque o meu irmão não fez?<br />

Ela abriu sua boca preparada para responder, para lhe dar uma<br />

chicotada verbal por brincar com ela, mas as palavras ficaram presas,<br />

enjauladas, incapazes de escapar do confinamento dentro da sua<br />

cabeça. Não estava nela mentir, mesmo falando com o maior mentiroso<br />

já criado, e a amarga verdade cresceu dentro dela.<br />

Ela não estava realmente irritada com ele.<br />

— Foi o que eu pensei, — ele murmurou.<br />

— Você não sabe de nada, — ela sibilou. — O seu orgulho faz você<br />

pensar que sabe, mas não! Raiva arrogante preenche cada pedaço seu!<br />

Você é insuportável!<br />

aqui.<br />

Lúcifer levantou as sobrancelhas. — Você é a única atacando por<br />

— Por sua causa! O pecado te envenenou! Você pensa que é um<br />

líder todo-poderoso, digno de louvo, mas não é! Há apenas um Deus, e<br />

Ele certamente não vive aqui embaixo, Satanás!<br />

Lúcifer apenas a observou, estremecendo quando ela cuspiu o<br />

título como se fosse uma maldição, mas manteve a sua firmeza, levando<br />

o insulto com firmeza. — Você acabou agora?<br />

— Não!<br />

Ele acenou a mão com desenvoltura para ela prosseguir, mas<br />

Serah não podia pensar em nada mais para dizer. Ela não tinha certeza<br />

de para onde seus argumentos tinham ido ou que ponto ela estava<br />

tentando provar, quando ele não estava nem sequer rebatendo as suas<br />

palavras<br />

Serah hesitou. — Certo. Sim. Eu acabei.<br />

— Bom, — ele disse. — Agora que você tirou tudo isso do seu<br />

sistema, é a minha vez.<br />

Cada músculo de Serah se tencionou em antecipação quando ela<br />

se preparou para toda a força da raiva de Lúcifer. Ela já tinha visto<br />

vislumbres do monstro aqui e ali, mas ainda não tinha o encarado<br />

totalmente solto.<br />

~ 63 ~


Lúcifer abriu a boca, seus olhos demoníacos em chamas, mas sua<br />

voz foi um suave murmúrio em vez de um grito magnífico. — Você pode<br />

estar certa sobre mim.<br />

— Ah, você é tão cheio de si! Você... — ela perdeu a voz, perplexa<br />

pelas suas palavras. — Espere, o quê?<br />

— Talvez eu seja o inimigo. Talvez eu seja mau. Talvez eu seja<br />

esse Satanás que você diz, aquele que as crianças chamam de Diabo, —<br />

ele sorriu, o vermelho demoníaco dos seus olhos desaparecendo<br />

enquanto seus traços suavizavam, a tensão sumindo da sua mandíbula.<br />

— Isso é possível, certo?<br />

— Claro.<br />

— Mas então, talvez eu não seja. Talvez eu seja apenas mal<br />

compreendido, e você nunca vai saber, porque se recusa a abrir sua<br />

mente sobre isso.<br />

Ela bufou. — Você espera que eu acredite que você é um bom<br />

rapaz?<br />

Ele latiu uma risada. — Porra, não. Eu nunca pensaria nisso. Eu<br />

não sou o herói aqui, anjo, e eu não quero ser. Mas eu não sou o vilão,<br />

também.<br />

— Então quem é?<br />

Ele deu de ombros. — Infernos, eu não sei. Talvez seja você.<br />

— Eu?<br />

— Bem, você acabou de aparecer aqui e me repreender pela<br />

minha gentileza.<br />

— Você chama ordenar seus demônios miseráveis me seguirem de<br />

gentileza?<br />

— Eu quis dizer as flores, não os seguires, — ele disse. — Ou você<br />

não gostou delas?<br />

Seus olhos foram para as flores que ainda estavam em sua mão.<br />

— Eu gostava mais delas quando pensava que eram de Michael.<br />

— Ah, você não deveria julgar uma flor por quem a entregou.<br />

— Você não as entregou. Foram os seus lacaios.<br />

~ 64 ~


— Tecnicamente, — ele disse. — Foi inevitável, dadas as<br />

circunstancias, mas a ideia ainda estava ali.<br />

— Por quê? — ela perguntou. — Que tipo de jogo você está<br />

jogando?<br />

— Sem jogos.<br />

— Então o quê?<br />

— Um pedido de desculpas.<br />

Um pedido de desculpas.<br />

Ele estava se desculpando? Se Serah não estava confusa antes,<br />

ela certamente estava agora.<br />

Lúcifer estendeu a mão. — Posso?<br />

— Pode o quê?<br />

— Ver a flor, — ele disse. — Eu vou te devolver.<br />

Ela olhou para ele. — Como você espera que isso aconteça?<br />

— Apenas me alcance através do portão, — ele disse. — Eu te<br />

disse, ele não pode te machucar.<br />

— Não é o portão que me preocupa.<br />

— Vamos lá, eu não vou te morder. Eu não sou um vampiro.<br />

Ela revirou os olhos. — Vampiros não existem.<br />

— Eles estão aqui. Tudo existe aqui embaixo. Se você pode<br />

imaginar, isso existe em alguma dessas jaulas. Mas isso não vem ao<br />

caso. O fato é que eu não sou um vampiro, nem um lobisomem ou um<br />

metamorfo ou um ceifeiro ou uma fada.<br />

Ela piscou rapidamente, os pensamentos de Nicki desenhando<br />

invadiram a sua mente. — Fada?<br />

— Pequenas bastardas cruéis. Elas correm pelo ar, mordendo<br />

tudo que em que podem colocar os dentes. Elas são mortais, então eu<br />

me garanto de deixá-las bem presas. Claro, elas não poderiam matar<br />

um anjo, no entanto. Poucos podem.<br />

Ela acenou lentamente. — Somente outro anjo.<br />

— Que é o que eu sou, — ele disse. — Um anjo.<br />

~ 65 ~


— Um anjo caído.<br />

— Sim, ok, eu caí – não há porque negar isso – mas o seu irmão<br />

também. Você não tem medo dele ou pensa que ele é mau, certo?<br />

— Não, mas você não é Samuel.<br />

Ele olhou para ela em contemplação antes de olhar para as<br />

marcas nos seus antebraços. — Isso aqui não é apenas decoração. Meu<br />

irmão as marcou em mim com a sua lâmina de fogo para me impedir de<br />

machucar pessoas inocentes. Então mesmo que eu quisesse fazer<br />

algum dano – o que eu não quero – ele fez isso para que eu não pudesse<br />

te ferir.<br />

Ele contornou as linhas pretas com a ponta do dedo, repetindo as<br />

palavras que o condenaram enquanto deixava sair um longo e<br />

exasperado suspiro. Timidamente, Serah deu um cauteloso passo para<br />

frente, então outro, e outro, até que ela fechou a distância entre eles. O<br />

portão estava tão perto que ela podia ouvir a eletricidade estalando, o ar<br />

brilhando como uma enorme bolha de sabão. Lentamente, ela estendeu<br />

a mão para ele, quase tocando o portão, quando Lúcifer veio<br />

abruptamente para frente, fechando a distância entre ele e a entrada.<br />

Assustada, Serah deixou escapar uma respiração trêmula, os olhos<br />

desconfiados sobre ele. Com um sorriso culpado, ele levantou as mãos e<br />

acenou para ela continuar.<br />

Não houve fogos de artifício ou gritos de tortura, nem enormes<br />

explosões ou erupções de dor brutal. Os ceifeiros nem notaram quando<br />

os dedos dela passaram pela superfície do portão, cuidadosamente<br />

mergulhando nos encantamentos. Ela meio que esperava que a bolha<br />

estourasse, mas em vez disso ela brilhou, girando ao redor dos seus<br />

dedos e subindo pela sua pele, como se ela tivesse submergido a mão<br />

na água.<br />

Lúcifer a olhou intensamente, sem dizer nada, suas mãos ainda<br />

levantadas enquanto ele permanecia como uma estátua, mais rígido que<br />

o solo aos seus pés. Ele esperou até que a mão trêmula dela aparecesse<br />

ao seu lado, segurando a haste de flores, para sair daquela posição.<br />

No momento em que ele se moveu, os sentidos de Serah chutaram<br />

com tudo, sua intuição mandando alarmes para a sua cabeça quando<br />

ele segurou o seu braço. Uma sensação esmagadora passou por ela,<br />

estranha e assustadora. Um formigamento profundo dentro dela<br />

acendeu uma faísca que subiu pela sua espinha, tão intensa que seus<br />

dentes bateram. Ofegando, ela se preparou para ser puxada para o seu<br />

lado, mas ele apenas pegou as flores da sua mão antes se soltá-la.<br />

~ 66 ~


Serah puxou sua mão para trás e agarrou seu punho, os olhos<br />

arregalados observando enquanto Lúcifer deu um passo para longe do<br />

portão. — O que foi isso?<br />

— Isso o quê? — ele perguntou.<br />

— Essa coisa dentro de mim. Esse sentimento. Essa sensação.<br />

Ela respondeu sua própria pergunta. Essa sensação. Ela sentiu<br />

alguma coisa, realmente sentiu algo cru e poderoso pela primeira vez.<br />

Ignorando-a, a atenção de Lúcifer se fixou nas flores, balançando<br />

levemente no ar infernal, o roxo quase tão vibrante quando tinha sido<br />

na mão dela. Isso a chocou e entristeceu, ver algo tão bonito, tão vivo,<br />

preso daquele lado com ele. Ela quase esperou que a cor sumisse,<br />

desaparecesse, manchada pelo seu toque.<br />

— Ela é chamada de...<br />

— Cleome serrulata, — ela sussurrou, o cortando. Ela podia<br />

identificar cada planta que existia.<br />

— Eu ia dizer apenas Cleome, mas isso serve também, — ele<br />

disse. —São plantas oportunistas, e é exatamente por isso que elas<br />

sobrevivem. Elas crescem em qualquer lugar – campos abandonados,<br />

terrenos vazios, buracos no concreto. Onde a sua semente cai, elas<br />

firmam raízes.<br />

— Incrível, não é? — Serah perguntou.<br />

— Sim, isso é algo, com certeza, — ele disse. — Nosso Pai<br />

ofereceu mais liberdade a elas do que a nós. Essas coisas fazem o que<br />

querem sem arrependimentos, crescem onde flores não deveriam<br />

crescer, tomam conta de campos e passam por cima de tudo que vive<br />

ali, matando tudo que vive ali, e ainda assim são consideradas uma das<br />

suas mais magníficas criações. Uma maldita planta tem mais clemência<br />

do que eu.<br />

— Uma planta não pensa. Ela não faz decisões conscientes.<br />

— E os mortais? — ele perguntou. — Os Seus amados humanos.<br />

Sua criação favorita. Ele os absolve de tudo, basta eles pedirem. Por que<br />

a mim não foi mostrada a mesma compaixão? Eu nem tive a chance de<br />

me desculpar.<br />

Serah o encarou. — Você teria se desculpado?<br />

— Não. Eu não fiz nada errado.<br />

~ 67 ~


— Nada errado? — ela perguntou incrédula. — Você tentou tomar<br />

o mundo!<br />

Ele bufou. — Eu apenas fiz perguntas. Eu tive a audácia de<br />

duvidar Dele, de tomar uma posição enquanto Ele deixa mortais<br />

cometerem loucuras. Metade do mundo não acredita Nele, duvida da<br />

Sua existência, e isso é facilmente perdoado. Até mesmo os anjos que<br />

caíram comigo – ao meu redor – tiveram a sua chance. Menos eu.<br />

— É por isso que você está fazendo isso? — ela perguntou. — É<br />

por isso que essa guerra continua em curso?<br />

Como sempre, Lúcifer ignorou a sua pergunta, sua atenção<br />

retornando para a flor na sua mão. Ele a levou ao nariz e inalou, um<br />

estremecimento correu pelo seu corpo e ele sorriu. — Você sabe qual é o<br />

cheiro da Cleome? Um dos cheiros mais desagradáveis, se você me<br />

perguntar, tão forte que eu posso sentir a amargura na minha língua,<br />

mas ainda assim não tão repulsivo quanto o cheiro de Michael em você<br />

agora.<br />

Lúcifer estendeu a mão, a ponta da haste de flores penetrando o<br />

escudo translúcido. Serah deu um passo à frente, segurando-o,<br />

puxando as flores de volta para o seu lado sem fazer contato com ele.<br />

Uma vez que ela as tinha, Lúcifer se virou, desaparecendo em silêncio<br />

sem dizer outra palavra.<br />

Hesitante, Serah levou as flores ao nariz e inalou uma segunda<br />

vez, se perguntando o que ele tinha sentido, querendo saber como ele<br />

provava o ar.<br />

* * * * *<br />

— Encontro você lá!<br />

Samuel saltou do chão, suas asas totalmente abertas enquanto<br />

ele voava para o céu como um foguete. A escuridão da noite o engoliu<br />

em questão de segundos, enviando uma Serah perplexa atrás dele. —<br />

Lá onde?<br />

Ela lutou para acompanhar seu irmão enquanto ele voava pelo ar,<br />

nunca diminuindo o ritmo, se recusando a deixar as coisas fáceis para<br />

ela. Meio quilômetro os separava enquanto eles atravessavam as<br />

nuvens, acelerando entre os aviões como se eles estivessem parados,<br />

~ 68 ~


fechando a distância entre eles e as estrelas radiantes. Os orbes de luz<br />

magnífica queimavam na atmosfera, passando a camada de ozônio,<br />

seus gases em explosão liberando forte energia – a mesma energia que<br />

fluía pelo corpo de Serah. Uma pequena estrela queimava dentro dela, a<br />

enchendo de vida, emanando Graça, como sangue bombeando por um<br />

frágil coração humano.<br />

Os dois correram de um lado a outro do mundo; passaram pelos<br />

protestos cobrindo as ruas de Pequim, assim como pelo Muro de Berlim<br />

prestes a ser demolido, pela estação Purley, em Londres, que ainda<br />

estava se recuperando de um mortal acidente de trem. Eles voaram<br />

sobre o Oceano Atlântico, Samuel mergulhando nas profundezas da<br />

água enquanto Serah continuava no ar, seus dedos tocando a superfície<br />

do oceano, fazendo a água ondular.<br />

Eles cruzaram a fronteira da América do Norte, onde Samuel<br />

abruptamente parou no meio do ar. Serah também parou<br />

repentinamente quando ele desceu, indo em direção ao solo como um<br />

míssil atômico. Ele tinha pousado em seus pés em um parquinho de<br />

uma escola para crianças quando Serah apareceu ao seu lado,<br />

balançando a cabeça. — Onde nós estamos?<br />

— Em uma pequena cidade chamada Chorizon, — ele disse.<br />

— Ok, — ela acenou. — E por que nós estamos aqui?<br />

Ele agitou a mão na sua frente, gesticulando na direção de um<br />

edifício do outro lado da rua, um cartaz onde se lia ―Grande Abertura‖<br />

pendurado desde o teto. Centro Comunitário de Chorizon. Carros<br />

invadiam a área ao redor dele, música alta saía lá de dentro. Além do<br />

barulho, que vinha a partir de um baixo alto vibrante, Serah podia ouvir<br />

a corrida frenética de mais de uma centena de batimentos cardíacos.<br />

Atrás deles, o ar se moveu e uma corrente estalou, Hannah<br />

apareceu. Serah mal teve tempo de olhar para sua amiga antes que<br />

outro som explodisse, mais alto, menos restrito. Michael apareceu,<br />

silenciando ambas as garotas antes que elas pudessem começar a<br />

conversar.<br />

— Fico feliz que você pôde vir, cara, — Samuel disse, o<br />

cumprimentando.<br />

— Eu agradeço o convite, — Michael respondeu. — No entanto,<br />

não tenho certeza de qual seria nosso interesse aqui.<br />

~ 69 ~


— Aparentemente isso, — Serah disse, apontando para o outro<br />

lado da rua. — Eu realmente não sei o que é isso ainda, mas tenho<br />

certeza que é algo grande para Samuel nos arrastar até aqui.<br />

Ela olhou para o seu irmão. Ele convidava Michael para ir a todos<br />

os lugares ultimamente, e Serah ainda não tinha se acostumado com a<br />

sua presença imponente.<br />

— É algo grande, — Samuel confirmou. — Pelo que eu ouvi, pelo<br />

menos. Mas eu ainda não estou adaptado aos costumes humanos,<br />

então eu posso estar enganado. Assim que eu começo a me acostumar,<br />

eles mudam.<br />

Serah uniu as sobrancelhas. — O que está acontecendo?<br />

Um enorme sorriso apareceu nos lábios de Samuel. — Um baile<br />

de formatura.<br />

Hannah e Michael permaneceram impassíveis, nenhum dos dois<br />

entendendo o que Samuel queria dizer, mas essas palavras disseram a<br />

Serah tudo que ela precisava saber. Baile de formatura. — Sério?<br />

— O que é um baile de formatura? — Hannah perguntou. — Eu<br />

não entendo.<br />

— É uma celebração, — Serah explicou. — Adolescentes vêm aqui<br />

acompanhados, se vestem bem e dançam a noite toda. É um rito de<br />

passagem para os humanos.<br />

As expressões de Hannha e Michael combinavam, ambos vidrados<br />

com confusão e um pouco de preocupação.<br />

— Sim, — Hannah disse. — Eu estou fora.<br />

Hannah desapareceu e Serah e Samuel se viraram para Michael.<br />

Serah esperava que ele também se fosse, mas ele ficou, sua aparência<br />

perplexa não mudando enquanto ele acenava para o outro lado da rua.<br />

— Nós vamos ficar aqui ou vamos nos juntas às festividades?<br />

Serah gaguejou quando Michael olhou diretamente para ela,<br />

esperando que respondesse a sua pergunta. Ela não tinha muita<br />

certeza do que dizer. Samuel soltou uma gargalhada, a cutucando de<br />

brincadeira quando ela finalmente deu um encolher de ombros casual.<br />

— Vamos, — Samuel disse. — Isso vai ser do caralho.<br />

~ 70 ~


Serah soltou uma gargalhada quando a expressão de Michael<br />

endureceu em desaprovação. Samuel lhe deu um tapa no ombro, rindo.<br />

— Relaxa, é apenas algo que as crianças dizem hoje em dia.<br />

Os três entraram no baile. Serah não perdeu tempo em imergir no<br />

mar de vestidos rodados em cores vibrantes e cabelos presos de forma<br />

escandalosa, girando através da pista de dança ao ritmo da música pop,<br />

suas asas dobradas para trás quando ela assumiu sua forma humana.<br />

Ela permaneceu invisível de propósito, uma leve brisa ao passar, se<br />

movendo ao redor e em torno deles, misturando-se com a multidão.<br />

Samuel também se misturou, indetectável em sua forma humana,<br />

enquanto Michael ficou para trás, de pé, suas asas totalmente abertas<br />

como um Arcanjo protetor. O poderoso guerreiro parecia pouco à<br />

vontade no meio da multidão adolescente, mas não foi embora, em vez<br />

disse optou por observar, apreensão em seus olhos brilhantes que<br />

permaneciam fixos nos anjos dançando livremente. Serah podia sentir a<br />

sua presença no ar, intensa, esmagadora. Como os humanos podiam<br />

estar perto dele, ao redor dele, encostar nele, e não sentir sua poderosa<br />

força de vida? Isso a deixava fascinada.<br />

Ela estava voando em seus pés – literalmente – quando Samuel<br />

estalou ao lado dela, a agarrando pela cintura e a girando ao redor. Ela<br />

girou em um círculo, rodando como um tornado, e riu quando ficou<br />

cara a cara com o seu irmão.<br />

— Se divertindo? — ele perguntou.<br />

Ela acenou, tirando o cabelo do rosto. — O que foi que te deu essa<br />

ideia?<br />

— Você.<br />

Ela juntou as sobrancelhas. — Eu? Como?<br />

— Acho que toda a sua conversa das últimas décadas sobre os<br />

humanos e como devemos ajudá-los finalmente chegou até mim, — ele<br />

respondeu. — Eu estava nessa cidade outro dia, caçando um demônio<br />

que possuiu um professor dessa escola, quando ouvi um garoto<br />

chamado Nicholas dizer que queria levar uma garota chamada<br />

Samantha para o baile. Samantha gostava de Nicholas, mas eles<br />

estavam muito envergonhados até mesmo para se cumprimentar.<br />

Serah levantou as sobrancelhas. — Então você os apresentou?<br />

— Você poderia dizer isso, — ele disse. — Eu me materializei por<br />

um mísero segundo e fisicamente empurrei os dois no corredor. Ela<br />

~ 71 ~


derrubou seus livros, ele os pegou e voilá... Eles estão dançando bem<br />

atrás de você.<br />

Serah se virou, tão perto que ela poderia praticamente tocar o<br />

casal. Eles balançavam com a música, as mãos dele no seu quadril, os<br />

braços dela nos seus ombros enquanto ela gentilmente brincava com o<br />

cabelo no pescoço dele. Seus olhos estavam conectados, algo forte<br />

passando entre eles, acho puro e divino.<br />

Amor.<br />

Um sorriso apareceu nos lábios de Serah. — Você fez bem, irmão.<br />

— Eu não acabei ainda, — ele disse baixinho. — Você vê aquele<br />

Arcanjo ali, encostado na parede? Vá convidar ele para dançar.<br />

Serah se virou para o seu irmão. — O quê? De jeito nenhum!<br />

— Por que não?<br />

Ela baixou a voz até um assobio discreto. — Ele é o príncipe,<br />

Samuel.<br />

— Ele é apenas um anjo – um anjo que não tem absolutamente<br />

nenhum interesse em danças, ou costumes humanos, ou se misturar ou<br />

micro controle, mas eu tenho bastante autoridade para dizer que não<br />

há nenhum outro lugar no universo que ele preferiria estar do que aqui.<br />

— Por quê?<br />

— Porque você está aqui, Ser.<br />

Ela piscou rapidamente, chocada pelas suas palavras. — Mas ele<br />

é Michael. Ele está...<br />

— Ele está caidinho, isso é o que ele está, — Samuel disse. —<br />

Vamos lá, mana. Olhe para ele. Ele olhe para você do jeito que Nicholas<br />

olha para Samantha. Dê a ele uma chance. Não me faça te empurrar<br />

fisicamente, também. Porque eu vou. E você sabe disso.<br />

— Certo, — ela cruzou o salão. Michael se endireitou quando ela<br />

se aproximou, seus ombros retos, seus olhos nunca deixando os dela.<br />

— Você, hm... não gostaria de dançar comigo, gostaria?<br />

Um forte e enfático ―não‖ veio dos seus lábios antes que ela<br />

pudesse terminar a frase. Ela bufou, envergonhada pela rejeição, e se<br />

virou para se afastar quando ele segurou sua mão. — Eu amaria fazer<br />

~ 72 ~


qualquer outra coisa com você, Serah – absolutamente qualquer coisa –<br />

mas receio que dançar seja algo fora das minhas habilidades.<br />

Um sorriso apareceu nos seus lábios. — Nós podemos fazer outra<br />

coisa.<br />

— Maravilhoso.<br />

Michael retribuiu o sorrio enquanto Samuel ria o do outro lado do<br />

salão.<br />

— Vê? — ele gritou. — O que eu disse? Uma noite do caralho.<br />

* * * * *<br />

Uma velha calçada circulava o parquinho da escola, levantada<br />

onde as raízes das árvores a empurrava para cima, criando corcovas<br />

fraturadas. O pavimento estava rachado no centro, um ramo de dentesde-leão<br />

se projetava para fora pela linha.<br />

Serah se abaixou e pegou um. — Você considera dente-de-leão<br />

uma flor ou uma erva daninha?<br />

— Ambos, — Hannah respondeu. — É uma erva daninha<br />

florescendo.<br />

— É bonita para um parasita, você não acha?<br />

Hannah riu. — Elas são mais benéficas que prejudiciais. Elas são<br />

comestíveis, nutricionais, medicinais – as pessoas a julgam pela sua<br />

natureza parasitária, não levando em conta que elas servem a um<br />

propósito maior, — ela pausou, dando e ombros e adicionando depois<br />

de pensar um pouco. — Sim, elas são bonitas, eu acho.<br />

Serah olhou para o dente-de-leão por um momento antes de<br />

colocar seu polegar debaixo da flor e estalar a parte superior do tronco.<br />

Ela riu quando as sementes voaram pelo ar e caíram na calçada,<br />

rolando diretamente de volta para a fissura.<br />

Hannah franziu o cenho para a planta destruída. — Qual foi o<br />

ponto disso?<br />

— É uma brincadeira de crianças, — Serah disse. — Mamãe tem<br />

um bebê e a sua cabeça caiu.<br />

~ 73 ~


Hannah ofegou por ar. — O quê?<br />

— É o que eles dizem quando arrancam a cabeça de um dente-deleão<br />

9 .<br />

— Que mórbido.<br />

— É mais uma tolice.<br />

Hannah suspirou, balançando a cabeça. — Eu tenho que voltar<br />

ao trabalho. Tente não matar muitas plantas quando eu me for, ok? Só<br />

faz o meu trabalho mais difícil.<br />

Serah permaneceu ali depois que sua amiga desapareceu,<br />

olhando para o outro lado da rua ocupada para o depredado Centro<br />

Comunitário. Ele tinha sido fechado alguns anos atrás, a cidade não era<br />

mais capaz de mantê-lo. Ela não tinha entrado lá desde aquela noite de<br />

maio de 1989 – a noite que tinha mudado seu universo de muitas<br />

maneiras.<br />

Uma sirene tocou, o som estridente pulsando através do ar<br />

enquanto a escola primária encerrava o seu dia. Serah permaneceu<br />

imóvel enquanto as crianças passavam correndo a caminho de casa.<br />

Nicki Lauer apareceu, de mãos com a sua melhor amiga, as duas<br />

garotinhas parando ao lado de uma árvore enorme.<br />

Nicki se abaixou e puxou os dentes-de-leão remanescentes da<br />

fenda, com raiz e tudo. Pedaços de solo úmido caíram na calçada, aos<br />

pés de Serah. — Eu vou dar esses para a mamãe! — Nicki gritou<br />

animada.<br />

Depois que as crianças se foram pulando para longe, Serah se<br />

aventurou lá embaixo novamente, caminhando sem pressa na direção<br />

do portão. Lúcifer estava parado do outro lado, já esperando,<br />

aguardando sua chegada como sempre.<br />

— Você tem cheiro de flores, — ele disse. — Eles não estão mais<br />

deixando elas para você, não é? Eu os avisei, mas demônios tendem a<br />

ser meio lentos para entender o recado. Idiotas, sério.<br />

— Não, eles pararam, — ela disse. — Uma pena, no entanto.<br />

— Por quê? — Lúcifer levantou uma sobrancelha, curioso. — Você<br />

esperava exorcizar mais alguns dos meus caras?<br />

9 Até onde eu sei, no Brasil não temos o costume de dizer uma frase específica para<br />

quando fazemos isso, mas é uma brincadeira, um ditado popular nos Estados Unidos.<br />

~ 74 ~


— Bem... sim.<br />

Ele riu. — Eu me desculparia por fazer a sua vida mais difícil,<br />

mas eu não lamento. É melhor assim.<br />

— Se você diz.<br />

— Sim, — ele afirmou. — É um aborrecimento quando eles são<br />

enviados aqui para baixo antes que seu trabalho seja feito, mas não é<br />

tão ruim quanto poderia ser. É raro o que você faz, sabe, os expulsando<br />

sem danificar o navio. Faz mais fácil para os meus caras encontrar<br />

cascas humanas quando eles voltam para a Terra. Uma vez possuído,<br />

facilmente repossuído.<br />

— Eles são pessoas, não navios, — Serah disse. — Pessoas<br />

inocentes, que não merecem ser feridas nessa sua guerra. Meu irmão<br />

me ensinou como poupar os humanos, para salvá-los de gente como<br />

você.<br />

— Ah, seu irmão. Você já o encontrou?<br />

— Não.<br />

— Você ao menos esteve procurando?<br />

Serah hesitou. — Não.<br />

— Por quê? — Lúcifer perguntou.<br />

Essa era uma pergunta que ela não sabia como responder. — Nós<br />

não questionamos as coisas.<br />

— Eu questiono.<br />

Ela riu secamente. — E olhe o que aconteceu com você.<br />

— Sim, mas é porque eles levaram a minha queda pessoalmente.<br />

Isso é apenas trabalho para Michael com os outros.<br />

Essas palavras passaram através de Serah, a surpreendendo. —<br />

Michael?<br />

— O que, você não sabe que o seu amante é um dos carrascos?<br />

Somente um anjo pode matar outro anjo, se lembra? É o destino de<br />

Michael. Punir o que desobedecem. Eles saem da linha e... — Lúcifer<br />

levantou a mão, usando seus dedos para imitar uma tesoura, — tic, tic.<br />

Ela piscou rapidamente. — Samuel?<br />

~ 75 ~


Lúcifer a encarou do outro lado do portão, algo perto de simpatia<br />

brilhando nos seus olhos escuros. — Sim. Samuel também.<br />

Algo se torceu dentro dela, um nó apertado onde deveria estar o<br />

seu estômago. Michael foi um dos que retirou a Graça de Samuel, tirou<br />

seu irmão da sua vida, e não mostrou nem um grama de preocupação<br />

sobre isso. Não houve conflito, não houve remorso ou arrependimento.<br />

Michael não apenas perdeu um amigo. Ele pessoalmente acabou<br />

com um.<br />

— Como vocês dois estão juntos e você nem sabe o que ele faz?<br />

— Você está enganado, — ela sussurrou.<br />

— Não estou, — ele disse com firmeza. — Eu era um Arcanjo<br />

também. Eu sei o nosso propósito.<br />

— Então você sabe, — ela disse, mal fechando os olhos quando a<br />

realidade afundou. — Você sabe onde meu irmão está. Você sabe o que<br />

aconteceu com ele.<br />

Ela abriu os olhos outra vez, desespero brilhando dos seus olhos,<br />

só para encontrar o outro lado do portão de repente vazio.<br />

* * * * *<br />

Serah voou por aí no próximo dia, evitando Michael enquanto se<br />

ocupava com trabalho tedioso. Ela foi aos portões à noite, sua mente<br />

cheia de perguntas que ela queria ansiosamente fazer. Ela esperava que<br />

Lúcifer estivesse esperando como de costume, mas o outro lado estava<br />

vazio.<br />

Uma hora passou. Então duas. Ela chamou o seu nome, mas ele<br />

nunca apareceu. Depois de três horas, ela desistiu e foi embora.<br />

A tarde seguinte foi igual, assim como a próxima depois dela.<br />

Uma semana se passou com visitas sem sinal de Lúcifer. Não importava<br />

quanto tempo ela ficasse ali parada, esperando, chamando por ele, ele<br />

não mostrou seu rosto novamente.<br />

Confusão abalou as suas certezas, alimentada naquela sexta-feira<br />

quando ela se sentou sozinha no parquinho da escola, olhando as<br />

crianças brincarem. Nicki e sua melhor amiga estavam inclinadas<br />

~ 76 ~


contra uma árvore a alguns metros de distância, encolhidas em seus<br />

casacos, dividindo uma caixa de lápis de cor que usavam para desenhar<br />

em seus cadernos. Um estalo de eletricidade vibrou no ar à sua frente<br />

quando um Dominion apareceu, bloqueando a vista de Serah das<br />

crianças. — Você não tem cumprido a sua tarefa.<br />

— O que você espera que eu faça?<br />

— Eu não espero nada, — ele disse. — Mas Ele espera que você<br />

seja bem-sucedida.<br />

— É impossível, — ela disse. — Ele não vai cooperar.<br />

— Faça com que ele coopere.<br />

— E como exatamente eu deveria fazer isso?<br />

O Dominion encolheu os ombros. — Seja criativa. É o seu destino,<br />

Serah.<br />

Serah fez uma careta. Amargura se espalhou pela sua pele fria,<br />

correndo para o seu interior, torcendo e mexendo, apertando-a em nós.<br />

O Dominion inclinou a cabeça em um aceno educado antes de<br />

desaparecer de repente como tinha chegado.<br />

Mensagem recebida.<br />

— Grande destino, — ela murmurou, enfiando os dedos na terra<br />

embaixo dos seus pés.<br />

— Destino é tudo.<br />

Ela se virou, surpresa, para ficar cara a cara com Michael, que<br />

estava pairando ao seu lado. Seu rosto estava duro, nem um pingo de<br />

emoção à mostra. — Eu não ouvi você chegar.<br />

— Eu estava aqui antes de você.<br />

Suas sobrancelhas se uniram. O quê? — Eu não te senti.<br />

— Então seus sentidos podem estar precisando de um ajuste.<br />

Serah não disse nada. Ela se virou para longe dele, seu foco<br />

voltando para o chão. Michael caminhou até a frente dos balanços e<br />

parou ali, não fazendo nenhum movimento para se sentar, mas também<br />

não mostrando sinais de que iria partir.<br />

— A sua ligação com esse lugar, com essas pessoas, não é<br />

saudável. Isso me preocupa.<br />

~ 77 ~


— Eles eram especiais para Samuel, — ela disse. — Você se<br />

lembra dele, não é? Ele era seu amigo.<br />

— Claro que eu me lembro dele, — Michael disse, seu tom<br />

apertado. — Por que você me perguntaria isso?<br />

— Você se lembra de quando tirou as suas asas? — ela<br />

perguntou, sua raiva aumentando. — Você se esqueceu que eram<br />

amigos quando o destruiu?<br />

Os olhos de Michael se estreitaram. — Você não sabe nada sobre<br />

o que aconteceu.<br />

— Me conte.<br />

— Eu não posso.<br />

— Mas ele é meu irmão!<br />

— Não. Ele. Não. É! — Michael disse através dos dentes<br />

apertados, enfatizando cada palavra. — Você acha que eu tive prazer<br />

nisso, Serah? É por isso que eu existo. Quanto mais cedo você aceitar<br />

isso, mais cedo as coisas irão voltar ao normal.<br />

Normal. Ela estava começando a se perguntar o que isso<br />

significava. Normal era ter Samuel ao redor, rindo e brincando,<br />

aliviando alguma pressão das asas sobre os seus ombros, a<br />

relembrando que as coisas iriam ficar bem, que o mundo era um lugar<br />

bonito. A relembrando que só porque você perdeu algumas batalhas não<br />

significava ter perdido toda a guerra. Tudo parecia tão triste sem ele.<br />

Como as coisas poderiam estar bem sem ele? Como as coisas poderiam<br />

ser normais de novo?<br />

— Isso não existe, — ela sussurrou. — Você não pode<br />

desconhecer algo depois que já sabe sobre ela.<br />

Michael desapareceu do parquinho absolutamente frustrado, com<br />

um estalo tão alto que parecia um caminhão explodindo ao longe.<br />

Algumas crianças pararam o que estavam fazendo e olharam ao redor,<br />

ouvindo o barulho, mas voltaram a brincar dentro de segundos.<br />

Serah se levantou e caminhou até onde Nicki e sua amiga<br />

estavam sentadas, ainda colorindo. Ela olhou para os seus cadernos,<br />

sorrindo para as borboletas tortas de Nicki, mas congelou quando<br />

estudou o desenho que cobria a página da outra garota. Monstros de<br />

todos os tipos tomavam o espaço, com grandes dentes, garras afiadas e<br />

olhos raivosos. Bem no meio do papel havia uma enorme criatura<br />

~ 78 ~


vermelha, grandes chifres saiam da sua cabeça oblonga, uma cauda<br />

longa e pontiaguda se arrastando para trás.<br />

— Não é assim que o diabo realmente parece, — Nicki disse,<br />

olhando para o desenho da amiga.<br />

— Como você sabe?<br />

— Porque ele era um anjo, dã, — Nicki disse. — Se lembra? Eles<br />

disseram isso na igreja.<br />

— Oh, — a garota estudou seu desenho e pegou um lápis preto,<br />

desenhando enormes asas nas costas da criatura. Ela sorriu quando<br />

acabou. — Agora está certo.<br />

— Isso é besteira, — Nicki murmurou. — Você desenha como um<br />

menino. Meninos gostam de coisas feias, como monstros e filmes de<br />

terror.<br />

A garota arrancou a folha do caderno e a jogou no chão ao seu<br />

lado, então começou a desenhar borboletas com a sua melhor amiga.<br />

Alguns minutos depois, a sirene para voltar à aula soou, e as<br />

garotas correram para se juntar aos outros alunos. O papel permaneceu<br />

na grama próxima à árvore, descartado, os monstros já esquecidos.<br />

Serah esperou até que a área estivesse vazia para pegá-lo e se<br />

teletransportou para Hellum Township com o desenho na mão.<br />

Ela atravessou os seis primeiros portões sem hesitar, seu<br />

estômago nos pés quando chegou ao sétimo novamente. O terreno<br />

estava mais uma vez vazio, ninguém para encontrá-la. Irritada, ela<br />

gritou o seu nome, exigindo que ele aparecesse, mas nada se moveu que<br />

não fosse o vento.<br />

Dez segundos se passaram, então vinte. Depois de trinta<br />

segundos, sua paciência estava tão pequena que foi completamente<br />

devastada, seus nervos cruamente expostos, uma pitada de emoção<br />

agonizante brilhando. Um gemido alto vibrou do seu peito quando ela<br />

atravessou o portão, vacilando apenas um momento antes de pisar do<br />

lado de dentro.<br />

Ele não podia dizer tudo aquilo a ela e então desaparecer.<br />

O ar brilhou ao seu redor, eletricidade cobrindo sua pele,<br />

formigando por todo seu corpo quando ela penetrou no campo de força.<br />

Sua visão borrou, tudo brilhando em branco quando ela o atravessou,<br />

os encantamentos a empurrado para fora, tentando forçá-la de volta<br />

~ 79 ~


para o lado do bem. Ela marchou em frente, implacável, quebrando a<br />

barreira e dando seu primeiro passo dentro do Inferno.<br />

~ 80 ~


Capítulo Três<br />

A longa mesa, construída inteiramente de mármore cinza,<br />

preenchia o aposento, combinando com as paredes que revestiam as<br />

paredes. Nove cadeiras pretas a cercavam, enquanto um bloco de<br />

mármore foi talhado em um trono gótico e se elevava na cabeceira.<br />

Luce estava sentado nele, tamborilando os dedos no braço do seu<br />

trono, seu corpo grande jogado sobre o encosto alto do seu assento.<br />

Dezenas de velas brancas longas iluminavam levemente o lugar,<br />

lançando sombras bruxuleantes sobre a face do homem sentado na<br />

outra ponta da mesa, em frente a Luce. O medo brilhava nos olhos do<br />

homem, que uma vez foram verdes, mas agora eram amarelos e mortos<br />

como tudo nesse buraco.<br />

Luce casualmente agitou o dedo indicador, virando as cartas de<br />

uma alta pilha do outro lado da mesa, enquanto o homem segurava<br />

uma pilha menor, suas mãos tremendo enquanto ele virava as cartas<br />

uma a uma. Luce olhou para baixo, uma carranca desinteressada<br />

cobrindo o seu rosto, seus olhos em qualquer lugar menos no jogo. Ele<br />

parecia nem estar jogando, pelo menos a trinta metros de distância das<br />

suas cartas, mas estava prestando atenção em tudo que acontecia.<br />

Ele via cada movimento, anotava cada mão, capaz de predizer<br />

quais cartas seriam as próximas na linha.<br />

Ambos mostraram três. Luce bateu os dedos, deslizando cartas<br />

viradas para baixo na mesa.<br />

Um. Dois. Três. Quatro.<br />

Eu declaro guerra.<br />

Ele virou outra – um Rei – e suspirou quando o homem mostrou<br />

um dois. Luce acenou com a mão, todas as cartas magicamente voando<br />

para o final da sua pilha.<br />

— Você não está se dando bem com as cartas aí, Robert, — Luce<br />

zombou. — Não é um bom presságio para você.<br />

~ 81 ~


— Isso ainda não acabou, — Robert declarou, sua voz tremendo<br />

assim como as suas mãos. — Estou me sentindo com sorte.<br />

— Bom para você, — Luce murmurou, virando outra carta<br />

quando um vento soprou pela sala, apagando a chama de todas as<br />

velas. Luce estalou os dedos, acendendo-as novamente, enquanto ouvia<br />

ela em sua cabeça, acima do caos que geralmente o consumia.<br />

Serah.<br />

Lúcifer, ela gritou. Eu estou indo para você.<br />

— Eu vou ser amaldiçoado como um filho da puta, — ele disse,<br />

incapaz de parar o sorriso que torceu os cantos dos seus lábios, uma<br />

risada escapando quando ele exalou.<br />

Passos rápidos vieram do corredor e as grandes portas de madeira<br />

dupla foram abertas. — Há um intruso no portão!<br />

— Eu estou ciente, — o olhar de Luce se virou para o demônio<br />

que tinha acabado de irromper na sala. Lire, o líder da Legião Negra,<br />

um dos únicos que tinha liberdade para andar pelo Inferno. Ele<br />

considerava a si mesmo o braço direito de Luce, mas Luce o tratava<br />

como um garoto de recados. — Você acha que eu sou imbecil? Você<br />

acha que não sei o que acontece no meu reino?<br />

— Não, Meu Senhor! — ele balançou a cabeça freneticamente. —<br />

É só que... ela é um deles. O que você quer que nós façamos?<br />

— Deixe ela entrar, — ele ordenou, — e se comporte bem sobre<br />

isso, sim? Se você ofender a minha convidada, vai passar a noite<br />

pregado na parede.<br />

O demônio estremeceu, acenando submissamente antes de dar ré<br />

para sair da sala. Os olhos de Luce instantaneamente correram da<br />

porta para Robert, o pegando em flagrante quando ele tentava dar uma<br />

espiada nas próximas cartas. Luce fechou os punhos com raiva, suas<br />

articulações saltando brancas. O homem deixou sair um guincho alto<br />

de agonia quando segurou o próprio braço, sua mão direita se torcendo<br />

quando os ossos foram triturados em pequenos pedacinhos e rasgaram<br />

a pele. Sangue escorreu pelo seu braço, pingando no chão de concreto.<br />

— Você acha que pode me enganar? — ele cuspiu. — Você acha<br />

que eu não vou saber?<br />

— Isso foi um erro! — ele gritou. — Me desculpe! Por favor! Eu<br />

não vou fazer de novo!<br />

~ 82 ~


Os olhos vermelhos de Luce queimaram, suprimindo a escuridão,<br />

enquanto o chão abaixo deles vibrou. O espaço atrás do homem se<br />

abriu em um vórtice negro giratório, gritos de tortura queimando dentro<br />

do fogo selvagem, tão ferozes que Luce fez uma careta. Balançando a<br />

mão, Luce mandou o homem voando para fora da cadeira, diretamente<br />

para o inferno raivoso, as chamas alaranjadas o engolindo por inteiro.<br />

Seus gritos foram silenciados quando o vórtice se fechou abruptamente,<br />

tudo voltando a ficar quieto e imóvel.<br />

— Com certeza você não vai fazer isso de novo, porra.<br />

Ele voltou a se sentar para trás em sua cadeira novamente,<br />

tamborilando os dedos mais um pouco, esperando. Ele podia sentir que<br />

ela estava perto, o ar se agitando com algo que ele não sentia há muito<br />

tempo. Ela trazia luz do sol com ela, a escuridão se iluminando, ar<br />

fresco irradiando da sua presença.<br />

No momento em que as portas se abriram, ele fechou os olhos e<br />

jogou a cabeça para trás, tomando uma respiração profunda. Ela estava<br />

falando, sua voz inflamada, mas ele ignorou as palavras, muito<br />

consumido pela sua fragrância. Ela era tão forte sem o portão os<br />

separando, tão intensa, que ele estremeceu ao inalar. O perfume<br />

radiante encheu seus pulmões e correu pelo seu corpo como oxigênio,<br />

alimentando sua força de vida.<br />

— Você está me ouvindo? — ela perguntou, batendo algo na mesa<br />

na frente dele.<br />

Luce abriu os olhos de novo, a encarando. Ele levantou uma<br />

sobrancelha para a sua postura, seus olhos estreitados, as mãos nos<br />

quadris. — Não.<br />

— Você é insuportável. Totalmente impossível.<br />

— Obrigado, — ele disse, acenando com a mão na direção da<br />

mesa, a cadeira recém-desocupada se mexendo. — Tome um lugar.<br />

— Não.<br />

Ele suspirou pela sua teimosia, seu olhar se virando para Lire,<br />

que esperava na porta. — Nos deixe. Garanta que não sejamos<br />

interrompidos.<br />

— Sim, Meu Senhor.<br />

— Meu Senhor, — ela imitou, seus lábios se curvando em uma<br />

careta. — Blasfêmia.<br />

~ 83 ~


Luce tentou manter o rosto sério, mas estava se divertindo<br />

demais. Um meio sorriso torceu seus lábios e ele balançou a cabeça. —<br />

Você é feroz, anjo. Eu vou te dar isso. Honestamente, não pensei que<br />

você tivesse essa coragem. Eu esperava que tivesse, é claro, mas<br />

ninguém antes teve. Acho que nem meu irmão é corajoso o bastante<br />

para vir aqui.<br />

A expressão irritada de Serah suavizou. — Não?<br />

Luce balançou a cabeça. — Você é a primeira a dar um passo<br />

além do portão por vontade própria.<br />

Surpresa marcou o seu rosto. — Eu sou?<br />

— Sim, — ele disse. — Você vê, é perigoso aqui embaixo. Muito<br />

perigoso.<br />

— Somente um anjo pode ferir outro anjo, — ela disse com<br />

confiança. — E você está impedido de machucar um inocente, então<br />

nada pode me ferir.<br />

— Verdade, — ele disse. — E mesmo que eu pudesse te<br />

machucar, eu não iria... mas há outra coisa que eu faria, algo<br />

provavelmente pior.<br />

Seu corpo endureceu. — O quê?<br />

— Manter você aqui.<br />

Ela apenas o olhou, como se estivesse tentando processar isso.<br />

Depois de um momento, algo brilhou no seu rosto, algo que ele<br />

conhecia bem, algo além do puro terror.<br />

Ela percebeu que ele poderia fazer isso.<br />

— Relaxe, — ele disse, gesticulando na direção da cadeira outra<br />

vez. — Eu disse que eu faria isso, não que vou fazer. É uma tentação,<br />

no entanto. Eu devo admitir.<br />

Serah hesitou antes de se mover na direção da cadeira e se sentar<br />

timidamente. Ela permaneceu em silêncio, seus olhos desconfiados<br />

enquanto o observava. O olhar de Luce correu dela para o papel<br />

amassado que ela tinha batido na mesa, seus olhos imediatamente<br />

caíram no desenho do diabo. Ele deixou escapar uma gargalhada<br />

amarga e afiada, empurrando-o para o lado enquanto acenava com a<br />

mão, e toda a pilha de cartas voou na sua direção. Ele as pegou e<br />

casualmente começou a embaralhar.<br />

~ 84 ~


— Você saber jogar War 10 ?<br />

— Guerra não é um jogo.<br />

— Nesse caso, é. É um jogo de cartas.<br />

— Oh.<br />

— É fácil. Tudo que você tem que fazer é virar a carta do tipo.<br />

Quem tiver o número mais alto, ganha a rodada. O primeiro a perder<br />

todas as cartas, perde. Uma criança poderia fazer isso, — ele repartiu a<br />

pilha ao meio, vinte e seis cartas em cada, e deslizou uma metade pela<br />

mesa para ela. — Uma partida. Se você ganhar, pode me fazer as suas<br />

perguntas e então ir embora.<br />

— Por que eu jogaria com você?<br />

— Porque você realmente não tem nenhuma escolha, anjo, — ele<br />

disse. — Você quer respostas; eu quero companhia.<br />

Ela o encarou, contemplando, antes de acenar levemente. —<br />

Certo.<br />

Eles começaram o jogo, Luce casualmente virando suas cartas<br />

com mágica, enquanto Serah optou pelo modo tradicional. Confiança<br />

cresceu em Serah quando ela ganhou as primeiras rodadas, mas não<br />

durou muito. Luce começou a dominar o jogo, virando carta após carta,<br />

sua pilha ficando imóvel enquanto a dela diminuía. Ela fez uma careta e<br />

bufou de frustração, enviando a ele olhares irritados com frequência,<br />

mas sem dizer uma palavra.<br />

Alguns minutos depois, Serah tinha sua última carta.<br />

Suspirando, ela a virou. Luce nem teve que olhar para saber que era<br />

um dois, a pior carta possível.<br />

Ele virou a carta no topo da sua pilha – um oito – e deslizou todas<br />

as cartas remanescentes para o fim do seu monte. — Eu ganhei.<br />

— E agora?<br />

— Jogamos de novo.<br />

— E se eu não quiser? — ela perguntou. — Você vai me manter<br />

como refém? Me obrigando a jogar jogos estúpidos?<br />

10 Literalmente significa ―guerra‖, mas é também um jogo de cartas. No Brasil ele<br />

também se chama War, não há tradução.<br />

~ 85 ~


— Dificilmente, — ele zombou. — Eu estive advogando pela<br />

liberdade dos anjos por toda a minha existência. Não tenho interesses<br />

em tirar isso de ninguém. Você quer ir? Então dê o fora daqui, porra.<br />

Mas se você quer que eu responda às suas perguntas, vai ter que<br />

ganhar uma partida.<br />

Ela o encarou estreitando os olhos, os lábios duros, uma linha<br />

fina de desprezo. — Você é insuportável.<br />

— Você é muito bonita, anjo, — ele brincou, seus lábios se<br />

curvando em um sorriso malvado. — Isso significa que você está<br />

dentro?<br />

Serah pegou a sua pilha de cartas e as deslizou pela mesa. —<br />

Apenas cale a boca e embaralhe.<br />

* * * * *<br />

Intermináveis horas foram gastas jogando War; rodada após a<br />

rodada, partida após partida, jogo após jogo. Assim que Serah começava<br />

a ganhar, assim que ela acreditava que finalmente tinha a chance de<br />

vencer o anjo arrogante, ele mostrava uma carta maior e a sua sorte<br />

acabava.<br />

Irritação voou pelo seu corpo quando ela jogou suas cartas contra<br />

a mesa, grunhindo cada vez que ele ganhava. Lúcifer permaneceu<br />

largado em seu trono de mármore, jogando as cartas com desdém. Seus<br />

olhos estavam fixos nela, quebrando a sua concentração enquanto ela<br />

tentava manter o que sobrava da pilha. Ela só tinha mais cinco cartas.<br />

— Você vai parar de me olhar? — ela estalou, virando um sete.<br />

Lúcifer estalou o dedo, virando um nove, e deslizou as cartas para<br />

a pilha. — Eu ainda não estou sob a sua pele, estou?<br />

— Claro que não, — ela disse, virando um Rei. Ela sorriu, sua<br />

esperança se desfazendo no momento em que ele virou um Às. — Aff,<br />

você é impossível!<br />

— Eu já ouvi isso, — ele disse, virando um seis a seguir. Serah<br />

virou um cinco e bateu a mão contra a mesa enquanto ele pegava as<br />

cartas, deixando ela apenas com mais duas restantes.<br />

Ele virou um seis; ela virou um cinco.<br />

~ 86 ~


Ele virou outro seis; ela deixou escapar uma risada amarga<br />

enquanto balançava a cabeça. — Três seis em sequência. Típico.<br />

Antes que ele pudesse responder, ela atirou sua última carta na<br />

mesa para ele. Ela voou no ar, flutuando e girando antes de pousar<br />

direto no seu colo. Ele olhou para baixo.<br />

Um dois, ela sabia.<br />

— Eu ganhei, — ele declarou. — De novo.<br />

— Claro, — ela murmurou, cruzando os braços sobre o peito e<br />

olhando para ele, vendo o sorriso de satisfação no seu rosto. — Misture<br />

as cartas.<br />

Ele balançou a cabeça, pegando o dois no seu colo. — Acho que<br />

nós acabamos.<br />

— O quê? Por quê?<br />

— Por quê? — ele levantou uma sobrancelha para ela. — Primeiro<br />

de tudo, porque você atirou uma carta em mim. Se mais alguém tivesse<br />

feito isso, estaria em dor excruciante agora mesmo. Em segundo lugar,<br />

porque se você bater na minha mesa com mais força, vai ser capaz de<br />

fazer uma rachadura, e acontece que eu adoro essa mesa. E, em<br />

terceiro, porque eu disse, porra. Eu faço as regras aqui, anjo. Você não<br />

gosta? Sabe onde é a saída.<br />

Ela observou quando ele se levantou e caminhou até a porta. — E<br />

as minhas respostas?<br />

— O que tem elas? Você tem que ganhar. Você quer jogar de novo.<br />

Volte amanhã, — ele levantou a mão e a colocou sobre o símbolo<br />

marcado na carne do seu peito. — Eu certamente não vou a lugar<br />

algum, lembra?<br />

* * * * *<br />

As luzes amarelas de East York brilhavam como estrelas na<br />

distância. Serah se sentou em um penhasco há 20 Km da cidade, os<br />

pés descalços balançando na beira. O som de ‗Heaven‘, de Warrant 11 ,<br />

11 Para quem quiser ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=rrSdXtFJG20<br />

~ 87 ~


adava dos pequenos alto-falantes de um carro nas proximidades, a<br />

música abafada pelas janelas fechadas e embaçadas.<br />

Um estalo de eletricidade estática rasgou o ar atrás de Serah,<br />

uma fração de segundo passou antes que um lamento a alcançasse. —<br />

Estranho, — Samuel disse, eles estão fornicando a menos de vinte<br />

metros de você, Ser.<br />

Ela revirou os olhos. — Eles estão só ficando.<br />

— Mesma coisa, — ele disse, se sentando ao lado dela. — Acho<br />

que eles chamam esse lugar de Coitus Cliff 12 por uma razão.<br />

Serah deixou escapar uma gargalhada. — Eles não chamam<br />

assim.<br />

— Eh, eles poderiam, — ele disse. — É meio cativante, não é?<br />

Quase tão cativante quanto essa música. É o meu hino.<br />

Antes que Serah pudesse dizer uma palavra em resposta, Samuel<br />

começou a cantar junto. Sua voz ecoou pela pelas árvores e pela cidade<br />

abaixo, afogando qualquer outro ruído da noite. Ninguém mais podia<br />

ouvir, no entanto, incapaz de captar a frequência da sua voz enquanto<br />

ele cantava a balada de rock do topo dos seus pulmões.<br />

Quando o refrão começou, Serah não pôde deixar de cantar junto<br />

com ele. Samuel se inclinou para trás, chutando ferozmente as pernas,<br />

suas mãos se movendo freneticamente enquanto ele fazia seu show solo<br />

de air guitar, seus dedos experientes agitando as cordas invisíveis.<br />

Quando a música terminou, Serah se dobrou e gargalhou enquanto um<br />

sorriso radiante aparecia no rosto de Samuel.<br />

— Acho que você encontrou sua verdadeira vocação, Samuel.<br />

— Eu poderia definitivamente ser um rock star, — ele disse. —<br />

Bem, se eu fosse humano.<br />

— Isso seria legal, sabe, ser capaz de fazer o que você quisesse. As<br />

opções são intermináveis para eles. Nossa existência é pré-escrita, mas<br />

os mortais – eles têm esse grande e lindo mundo, e liberdade para<br />

fazerem o que quiserem. E muitos não apreciam isso. Eu só me<br />

pergunto como seria ser capaz de escolher... se nós tivéssemos esse<br />

precioso presente, e não eles.<br />

O sorriso de Samuel foi sumindo gradualmente enquanto olhava<br />

para ela. — Serah, não.<br />

12 Seria algo como ―Penhasco do Coito‖ kkk<br />

~ 88 ~


— Não o quê?<br />

— Eu já ouvi essas palavras antes, — ele disse, uma borda dura<br />

na sua voz baixa. — Elas foram faladas algumas horas antes de eu ver<br />

meu amigo jogar seu próprio irmão em um lago de fogo para sempre. E<br />

eu não posso... Serah, você não pode pensar assim.<br />

Ela ofegou, seus olhos se arregalando quando ela entendeu as<br />

suas palavras. — Samuel, eu nunca faria isso! Satanás odeia os<br />

mortais. Ele é cheio de raiva e orgulho e inveja. Eu não!<br />

— Eu sei, — ele disse baixinho. — Mas eu também sei que é uma<br />

linha fina que separa o bem do mal. Há uma área cinza, uma na qual<br />

todos nós estamos. E está tudo bem, eu acho. Nós não somos imunes<br />

às emoções. Apenas me prometa que você não vai pisar além dela. Você<br />

não vai deixar isso te consumir. Você vai ser cuidadosa.<br />

— Eu prometo, — ela disse. — Você não tem que se preocupar<br />

comigo. Eu tenho tudo que preciso. Eu tenho amigos, tenho o meu<br />

trabalho e tenho você – meu irmão. Enquanto eu tiver você, eu seria<br />

uma boba por querer algo mais.<br />

As coisas ficaram quietas enquanto os dois ficaram sentados,<br />

pensando. Música continuou a tocar no carro próximo a eles com os<br />

dois amantes dentro. Nicholas e Samantha, comemorando seus seis<br />

meses juntos – uma marca que talvez nunca fosse alcançada se não<br />

fosse pela intervenção de Samuel nas suas vidas.<br />

— O que você faria? — ele perguntou depois de um tempo. — Se<br />

você fosse humana, o que gostaria de ser?<br />

Ela tinha uma resposta certa, soube sem hesitar. — Eu gostaria<br />

de pilotar um carro de corrida.<br />

A resposta instantaneamente acendeu o humor de Samuel, que<br />

abriu outro sorriso. — Sério, mana? Corredora?<br />

— Sim. Eu sempre me perguntei como seria dirigir um carro. Eles<br />

são a criação mais incrível do homem, uma que continua evoluindo.<br />

Carros são práticos, e ainda assim excitantes. E pessoas são pagas para<br />

dirigir eles, como um esporte! Você pode acreditar nisso?<br />

— Uau, — Samuel a estudou com surpresa. — Pela primeira vez<br />

em um milênio, estou aprendendo algo novo sobre você. Eu nunca<br />

percebi que você gostava de carros.<br />

~ 89 ~


Serah olhou para o que estava estacionado perto deles. — Esse é<br />

o meu carro favorito. É um Pontiac GTO conversível 1996, vermelhocereja.<br />

Samuel enrugou o nariz. — Parece laranja para mim.<br />

— É porque ele está em mau estado, — Serah disse. — Ele é lindo<br />

quando bem cuidado.<br />

— Então, hm, há um problema com isso tudo.<br />

— Qual?<br />

— Eu ouvi dizer que mulheres são péssimas motoristas.<br />

Revirando os olhos, Serah o empurrou com força, o chutando<br />

para fora do penhasco. Ele escorregou alguns metros, descendo na<br />

direção do chão, mas abriu suas asas e voou de volta para ela. Ele<br />

retomou seu lugar com uma risada, lhe cutucando de brincadeira.<br />

— O astro do rock e a piloto de carros, — ele disse. — Nós<br />

fazemos uma grande dupla.<br />

Ela passou um abraço no dele e se encostou contra o seu ombro.<br />

— Nós fazemos.<br />

— Você não estava totalmente certa agora pouco, sabe. Claro,<br />

humanos têm opções infinitas, mas suas vidas são escritas como as<br />

nossas. Olhe para Nicholas e Samantha. Nós sabemos tudo que eles<br />

irão fazer de hoje até o dia em que morrerem. Nicholas vai trabalhar em<br />

uma fábrica, e Samantha vai ser assistente de um professor. Eles vão<br />

ter uma filha, uma garotinha chamada Nicole. No momento em que eu<br />

os aproximei, seus futuros foram determinados, e o único jeito disso<br />

mudar é se um de nós mudar isso para eles. Nós, Ser.<br />

— Mas eles escolhem suas vidas, — Serah disse. — Nós apenas<br />

sabemos o que eles irão escolher.<br />

— Sim, nós sabemos, — ele disse. — Esse é o ponto. Não há<br />

surpresas quando se trata dos mortais. Somos nós que surpreendemos<br />

Deus. Somos nós que desviamos o seu caminho. Diga o que você quiser<br />

sobre Lúcifer, mas uma coisa é inegável: ele foi o primeiro a desafiar o<br />

destino. E ser o primeiro a fazer qualquer coisa que exige coragem.<br />

* * * * *<br />

~ 90 ~


— Posso te perguntar uma coisa?<br />

Serah virou um nove, e não ficou surpresa quando Lúcifer virou<br />

uma Rainha.<br />

Ele suspirou, deslizando as cartas para o fundo de sua pilha. —<br />

Quantas vezes eu tenho que dizer isso? Você tem que ganhar para obter<br />

respostas.<br />

— Não é sobre essas coisas, — disse ela, virando um Rei. Lúcifer<br />

tinha um dois. Serah sorriu enquanto pegava as cartas. — É sobre esse<br />

lugar... sobre você.<br />

Com olhos curiosos, Lúcifer a encarou enquanto girava o dedo,<br />

virando um sete. — O que é?<br />

— Você disse que sente o que todo mundo sente, — ela disse,<br />

virando um três. — Você disse que esteve agonizando, que estar aqui<br />

era um tormento, que a empatia era uma maldição. Você disse...<br />

— Eu sei o que eu disse, — ele disse entre os dentes cerrados. —<br />

Há uma pergunta em algum lugar? Porque eu não estou ouvindo uma.<br />

— Como que é aqui é tão quieto?<br />

Ele levantou uma sobrancelha. — Quieto?<br />

— Sim. Acho que eu esperava mais desse lugar. O submundo<br />

deveria ser, bem, infernal.<br />

Lúcifer não disse nada. Ele calmamente virou sua carta, olhandoa<br />

com impaciência enquanto esperava ela jogar. O silêncio ficou entre<br />

eles enquanto passavam as rodadas, carta após carta indo diretamente<br />

para ele. Ele girou o dedo indiferentemente, virando um Às, enquanto<br />

Serah virou sua última carta.<br />

Eles sabiam que era um Valete. Eles sabiam que ele tinha<br />

ganhado.<br />

O chão ao redor deles estremeceu, vibrando violentamente<br />

quando o solo abaixo dos pés de Serah se abriu em dois,<br />

instantaneamente engolindo a mesa e as cadeiras. No momento em que<br />

chão se abriu, gritos horríveis e choros de angústia emergiram da fenda,<br />

berros de gelar o sangue enchendo o ar. Fogo violento era cuspido pelo<br />

buraco enquanto as paredes ao lado deles desmoronavam. Em pânico,<br />

os olhos se Serah corriam ao redor enquanto suas asas se expandiam<br />

~ 91 ~


em defesa. Ela voou acima do solo, pairando acima das chamas que<br />

consumiam a sala e tudo dentro dela. Lúcifer permaneceu no seu trono<br />

de mármore, intocado pelas chamas. Suas asas cresceram a partir das<br />

suas costas, enormes escudos negros balançando na repentina nuvem<br />

de fumaça que encheu o aposento.<br />

Serah cobriu os ouvidos com as mãos, tentando bloquear o<br />

barulho, mas isso só vez com que ele ecoasse mais alto, mais torturado.<br />

A agonia parecia estar dentro dela, os gritos inexplicavelmente<br />

incorporados à sua mente, insuportáveis e inevitáveis. Ela apertou bem<br />

os olhos, gritando para isso acabar.<br />

De uma só vez, o ruído foi cortado com um guincho, como se a<br />

agulha de uma vitrola fosse retirada, e silêncio total dominou tudo.<br />

Serah abriu os olhos, chocada por encontrar o aposento em ordem,<br />

todas as coisas onde tinham estado. Ela pairou no ar enquanto Lúcifer<br />

permaneceu no trono, seu rosto uma máscara de indiferença, mas<br />

vermelho girava loucamente em seus olhos enquanto a encarava.<br />

— O que foi isso? — ela perguntou enquanto fechava as asas,<br />

voltando a pousar no chão.<br />

— Inferno, — ele disse em voz baixa. — Eu diluí um pouco para<br />

você, mas você pôde ter uma ideia.<br />

— Isso é o Inferno?<br />

Ele acenou. — Você vê o que eu quero que você veja, anjo. Mas<br />

isso? Isso é a realidade. E eu não apenas a vejo ou a ouço – e a sinto. A<br />

cada segundo de cada dia.<br />

Ela olhou para ele. — Eu, hm...<br />

Ele balançou a cabeça antes que ela pudesse continuar e apontou<br />

para a única carta que de alguma forma ainda estava sobre a mesa,<br />

virada para baixo. — Vire para que nós possamos terminar essa<br />

partida.<br />

Serah se sentou e virou a carta, sem nem olhar para ela. Seus<br />

olhos continuaram focados nele. — Então se você me faz ver o que quer,<br />

isso significa que você pode me fazer ver qualquer coisa?<br />

Ele suspirou em frustração enquanto pegava suas cartas. — Você<br />

é terrivelmente persistente.<br />

— Já me disseram isso uma ou duas vezes antes.<br />

~ 92 ~


— Esse lugar é alimentado por pesadelos, — ele explicou,<br />

embaralhando as cartas. — É como o Paraíso, mas ao contrário. No<br />

Paraíso, uma alma vê o que a faz feliz. Aqui embaixo, elas revivem o que<br />

as aterroriza.<br />

— Eu sei isso.<br />

— Bem, como você tem liberdade lá em cima e pode invadir o<br />

Paraíso de qualquer um, eu posso invadir o Inferno de qualquer pessoa.<br />

Eu posso entrar em qualquer jaula e fazer o que eu quero. Mas há<br />

também um lugar comum, como no seu lar.<br />

— E isso, esse fogo, esses gritos, isso é o seu lar?<br />

— Sim.<br />

— Então você pode me mostrar o Inferno de qualquer pessoa?<br />

— Sim.<br />

Ela olhou em volta do lugar. — De quem é esse Inferno?<br />

— Eu acho que você pode dizer que é o meu.<br />

Suas sobrancelhas se uniram. Dele? Ela não perguntou, não<br />

empurrando mais. Ela podia dizer pela sua expressão tensa que ele já<br />

havia dito tudo nessa questão. Ela não obteria mais dele a menos que<br />

jogasse por respostas e as ganhasse de forma justa.<br />

* * * * *<br />

Os jogos iam e vinham, tantas partidas que Serah não se<br />

preocupou em contar quantas já havia jogado. Lúcifer ganhou todas as<br />

vezes, algumas em questão de minutos, enquanto outras demoravam<br />

horas. Ela se perdeu em um mar de cartas e números, esquecendo todo<br />

o resto em sua busca por ganhar.<br />

— Eu não entendo como você continua me batendo, — ela disse,<br />

bufando depois de um jogo particularmente longo. — Eu tinha certeza<br />

que ia ganhar dessa vez.<br />

Lúcifer mexeu as cartas, mas Serah as pegou antes que ele<br />

pudesse pegá-las. Ela se encostou em sua cadeira e começou a misturálas,<br />

seus olhos fixos nele, esperando que ele fizesse alguma objeção. Um<br />

sorriso torceu seus lábios enquanto ele acenou para ela continuar.<br />

~ 93 ~


— Você pode embaralhar o quanto quiser, — ele disse. — War é<br />

um jogo de azar. É tudo sobre sorte, não mais premeditado que o uso<br />

de uma arma em uma Roleta Russa.<br />

— Eu acho que preferiria jogar isso nesse momento, — ela<br />

murmurou. — Que pena que você é imune a balas.<br />

Ele riu. — Ah, não seja tão mal-humorada. Você deveria aceitar o<br />

fato de que talvez não seja para achar essas respostas. Talvez você<br />

esteja destinada a passar mais tempo comigo.<br />

— Besteira, — ela disse, estreitando os olhos. — Deus está do<br />

meu lado. Eu vou ganhar.<br />

Ela dividiu a pilha ao meio e virou sua primeira carta, mais<br />

determinada que nunca a vencer a partida. Menos de dez minutos<br />

depois, Serah virou mais uma carta desprezível, enquanto a pilha de<br />

Lúcifer se impunha sobre a dela.<br />

Perdeu. De novo.<br />

— Pensei que você ia ganhar, anjo? Pensei que o Papai estava ao<br />

seu lado?<br />

— Você é irritante.<br />

— Você também.<br />

Serah virou sua última carta e se levantou, sem se importar em<br />

esperar para ver qual era a dele. Ela caminhou até as portas duplas de<br />

madeira e saiu sem dizer uma palavra.<br />

* * * * *<br />

Orbes de cor marcavam o céu escuro como breu, e nenhuma<br />

nuvem podia ser vista em qualquer lugar. Vermelhos e azuis, e verdes e<br />

vibrantes amarelos queimavam brilhantemente, tons de luz originadas<br />

do espaço profundo. Estrelas cadentes, é assim que os mortais<br />

chamavam. Dezenas passavam sobre eles, trilhas de fogo queimando na<br />

atmosfera.<br />

— Faça um pedido, — Hannah murmurou.<br />

— Eu não tinha visto uma chuva de meteoros assim em muito<br />

tempo, — Serah disse, olhando para o céu. Enquanto era bonito, ela<br />

~ 94 ~


sabia que não era um bom sinal. Nunca era bom quando o pandemônio<br />

reinava.<br />

— Nós fizemos o melhor para afastar o asteroide, mas muito dele<br />

se partiu, — Hannah disse. — Da próxima vez podemos não ter tanta<br />

sorte. O universo está em caos, e só fica pior. Os furacões, os tsunamis,<br />

os terremotos – é só uma questão de tempo agora.<br />

— O Apocalipse.<br />

— Peste, Guerra, Fome e Morte irão vir à superfície, e então a vida<br />

como nós conhecemos terá acabado, — Hannah disse. — Satanás irá<br />

ascender.<br />

— Eu não entendo, — Serah disse baixinho, ainda olhando para o<br />

céu frenético. Lúcifer parecia tão sedentário. Como ele poderia estar se<br />

aproximando do Apocalipse quando estava preso lá embaixo sem jeito<br />

de escapar? Ele parecia quase ter aceitado esse fato.<br />

Ela precisava de respostas, e precisava rápido.<br />

— Hannah, você sabe alguma coisa sobre War?<br />

— Eu sei que ninguém realmente ganha. Todos perdem.<br />

— Não estou falando de guerra de verdade.<br />

— Dos Cavaleiros do Apocalipse, então?<br />

— Não, do jogo de cartas.<br />

As sobrancelhas de Hannah se juntaram quando ela olhou para<br />

Serah, seus olhos se afastando do céu agitado pela primeira vez naquela<br />

noite. — Um jogo? Você sabe mais sobre passatempos humanos do que<br />

eu.<br />

O ar do campo estalou atrás de Serah, a essência esmagadora de<br />

Michael irradiando pela terra ao seu redor. Hannha olhou para ele, mas<br />

Serah não se moveu. Ela fixou seu olhar no céu, o evitando de<br />

propósito.<br />

— Eu disse que isso não ia funcionar, — Michael disse<br />

imediatamente. — Apenas olhe para esse céu profético. O Dia do<br />

Julgamento está chegando.<br />

— Eu não preciso do seu sermão de ‗eu avisei‘, — Serah disse. —<br />

Isso não nos ajuda em nada.<br />

~ 95 ~


— Eu não estou dando sermão, — Michael disse. — Estou<br />

simplesmente constatando a verdade, Serah. Todo esse tempo que você<br />

tem gasto com aquele bastardo depravado é irracional.<br />

Serah segurou sua língua, sua mandíbula rígida enquanto ela<br />

prendia as palavras que desejava dizer: Aquele bastardo é seu irmão,<br />

você goste ou não.<br />

Hannah suspirou, cutucando levemente o braço de Serah e lhe<br />

dando um sorriso de simpatia antes de desaparecer. Serah permaneceu<br />

imóvel enquanto Michael caminhou atrás dela e passou os braços em<br />

volta da sua cintura, a puxando na sua direção. Ela não lutou, não se<br />

afastou do seu abraço, mas não derreteu em seus braços como faria no<br />

passado.<br />

— Eu senti sua falta, — Michael disse. — Senti falta de nós dois.<br />

Você não se sente assim também?<br />

— Sim, — ela admitiu. Ela sentia. Era verdade. Ela sentia falta do<br />

conforto que ele costumava trazer para ela, como ela se sentia segura<br />

com ele, como ele parecia infalível.<br />

— Você ainda me ama?<br />

Ela não tinha certeza, mas pensou sentir um pouco de dúvida na<br />

voz dele. — Claro que sim, Michael. Você não apenas para de amar<br />

alguém. O amor muda você.<br />

— Então por que você está tão distante? — ele perguntou.<br />

— Porque o amor muda, também.<br />

— Não precisa ser assim.<br />

— Mas é, — ela argumentou. — Tudo muda com o tempo, não<br />

necessariamente para pior, mas nem sempre para melhor, também.<br />

— O que isso significa, Serah?<br />

— Significa que o mundo não é sempre preto e branco, — ela<br />

respondeu. — Às vezes é cinza, e às vezes o cinza explode em cores que<br />

você nem sabia que existiam.<br />

— Eu ainda não entendo.<br />

Ela franziu o cenho. Ela não pensou que ele entenderia.<br />

~ 96 ~


* * * * *<br />

Serah caminhou rapidamente pelo longo corredor que levava ao<br />

aposento ao final. Ela chegou às enormes portas duplas de madeira e as<br />

abriu, sua boca se movendo quando palavras começaram a sair dos<br />

seus lábios. Ela esperava que Lúcifer estivesse sentado em seu trono,<br />

embaralhando uma pilha de cartas, mas o que ela encontrou foi bem o<br />

oposto.<br />

Luz do sol explodiu quando ela passou pelas portas e chegou a<br />

uma longa e sinuosa estrada de asfalto ladeada por calçadas recém<br />

pintadas. Modestas casas de dois andares se alinhavam dos dois lados<br />

da estrada, suas entradas com carros e minivans estacionados. Árvores<br />

estavam espalhadas por todo o lugar, folhas de um verde vibrante<br />

farfalhavam na leve brisa enquanto grama cortada revestia os jardins.<br />

Ela podia ouvir o canto dos pássaros enquanto eles voavam no ar,<br />

agitando o bairro tranquilo.<br />

Serah estava tão pasma que apenas ficou ali, olhando, incapaz de<br />

se mover até que ouviu um barulho atrás de si. Ela virou apenas em<br />

tempo de ver uma criança de bicicleta vindo na sua direção, a rua se<br />

estendendo tão longe onde seus olhos podiam ver, a porta que ela tinha<br />

acabado de passar tinha desaparecido. Ela congelou, esperando que o<br />

menino passasse através dela como se ela não existisse, mas ele<br />

desviou para a calçada para não a atingir.<br />

— Desculpa, senhora, — ele gritou quando passou por ela. — Eu<br />

não vi você!<br />

Seus olhos se arregalaram com o choque. — O que é isso?<br />

Ela girou outra vez, formando um círculo, e deixou escapar um<br />

grito quando ficou cara a cara com Lúcifer. Ele agarrou seus braços e a<br />

estabilizou, a presença repentina dele a deixando fora de órbita. Ela<br />

ofegou quando ele tocou sua pele, ondas de eletricidade correndo pelo<br />

seu corpo, fluindo pela sua espinha. Imediatamente, ela deu um passo<br />

para trás.<br />

— Relaxe, — ele disse, levantando as mãos defensivamente. —<br />

Não posso te machucar, lembra?<br />

— Que lugar é esse? — ela perguntou, seus olhos correndo ao<br />

redor. — Onde nós estamos?<br />

~ 97 ~


— Inferno, — ele respondeu. — No Inferno de alguém, de qualquer<br />

maneira.<br />

Ela o encarou. Esse é o Inferno de alguém?<br />

— Esse é um dos meus favoritos, — Lúcifer continuou. — A<br />

maioria das jaulas são escuras e feias, mas essa... é quase como estar<br />

realmente lá fora. Bem, exceto pelo fato de que cheira a sangue e carne<br />

queimada, mas eu aceito o que posso conseguir.<br />

Serah ficou em silêncio enquanto tentava processar isso. Parecia<br />

tão pacífico e inocente, quase uma cópia dos Paraísos que ela tinha<br />

encontrado ao longo do caminho. Isso era estranho para ela, ver Lúcifer<br />

parado no meio de um bairro no subúrbio, cercado por árvores altas<br />

enquanto a luz do sol o banhava. Sua pele bronzeada parecia brilhar<br />

sob os raios, o vermelho tinha desaparecido dos seus olhos; muito mais<br />

castanhos hoje do que o preto que ela estava acostumada.<br />

— Vamos, — ele disse, acenando para que ela o seguisse<br />

enquanto ele dava alguns passos para trás. — Me deixe te mostrar um<br />

pouco os arredores.<br />

Ela lentamente balançou a cabeça, se recusando, mas seus pés<br />

não pareciam entender a mensagem. Curiosidade alimentou os seus<br />

passos e ela se moveu para frente, o seguindo pela rua. Lúcifer passou<br />

entre duas casas, pulando sobre a bicicleta descartada do menino, e fez<br />

seu caminho até o jardim dos fundos. Serah continuou a segui-lo,<br />

observando quando ele pulou uma alta cerca de madeira e pousou do<br />

outro lado fora de vista.<br />

Serah escalou a cerca, chocada quando pulou do outro lado e se<br />

encontrou em outro lugar, em outro tempo. Uma multidão vibrava ao<br />

redor deles enquanto ela e Lúcifer estavam de pé no meio de uma arena<br />

empoeirada, gladiadores cheios de concussões a meros metros de<br />

distância. Ofegando, ela recuou, olhando para Lúcifer com horror<br />

quando sangue voou na sua direção. — Eu acho que o outro era<br />

melhor.<br />

Ele sorriu, estalando os dedos, seus arredores mudando na<br />

mesma hora. Eles estavam de pé em uma enorme tenda vermelha, os<br />

espectadores ao redor observando palhaços que faziam uma<br />

performance no centro. Risadas invadiram o lugar, acima do som de um<br />

rugido de tigre que vinha do lado de fora da tenda. — Bem, palhaços<br />

são aterrorizantes, eu acho.<br />

~ 98 ~


Lúcifer estalou os dedos de novo, tudo ficando preto. Serah<br />

piscou rapidamente, tentando ver na escuridão, mas não havia nada<br />

ali... nada mesmo. O espaço parecia totalmente vazio, um grande<br />

buraco negro de nada.<br />

Mas então ela sentiu isso, um formigamento no seu pescoço, o<br />

calor úmido de uma respiração trêmula contra a sua pele. Ela se virou,<br />

sem encontrar nada ali, mas escutou. Ela podia ouvir um rosnado baixo<br />

e agressivo, faminto e furioso, como se desejasse devorá-la. Ela tremeu<br />

com o pensamento. — Ok, eu entendi. Já chega.<br />

Um estalo alto soou, e Serah se encontrou de pé na pacífica rua<br />

com Lúcifer de novo.<br />

— Bem aqui nessa rua, na casa azul com a bicicleta no jardim,<br />

um homem é forçado a ver sua família ser assassinada todos os dias, —<br />

ele disse. — O gladiador é espancado a cada hora, todas as horas. O<br />

domador do circo é comido vivo pelo tigre.<br />

— E o último? — ela perguntou hesitante. — De quem era aquele<br />

Inferno?<br />

Lúcifer levantou uma sobrancelha para ela. — O seu.<br />

— Meu?<br />

— Curioso, não é? O seu maior medo é o esquecimento.<br />

— O que era aquela coisa lá? — ela perguntou. — Aquele...<br />

monstro?<br />

Um sorriso cruel curvou o canto dos seus lábios. — Aquele era<br />

eu, anjo.<br />

* * * * *<br />

A floresta exuberante de árvores de outono cercava a água azul<br />

cristalina, de modo tão nítido e claro que se assemelhava ao reflexo em<br />

um vidro. Um penhasco rochoso ao norte alimentava o rio, água caindo<br />

em cascata pela rocha natural, formando uma cachoeira. Serah parou<br />

na borda do rio, olhando ao redor, enquanto Lúcifer tirava a camisa e a<br />

jogava de lado. Agarrando um galho acima deles, ele se impulsionou<br />

para cima de uma alta árvore retorcida e a escalou sem muito esforço<br />

~ 99 ~


até uma longa corda amarrada na ponta por um nó. Sem dizer nada, ele<br />

saltou, passando direto por Serah e balançando na direção da água.<br />

Ele soltou a corda quando alcançou o meio, soltando os braços e<br />

pernas e caindo no rio com um splash colossal. Água respingou para<br />

todos os lados e bateu em Sarah, molhando levemente seu vestido cor<br />

de pêssego. Ela recuou um pouco, atordoada quando Lúcifer<br />

desapareceu dentro da água.<br />

Um minuto se passou sem sinal dele, então dois. Ela começou a<br />

entrar em pânico quando fazia cinco minutos que ele tinha estado lá.<br />

Ela gritou seu nome e deu um passo em direção à borda bem quando<br />

ele estalou para fora da água a apenas alguns metros dela, ensopado,<br />

água escorrendo pelo seu rosto e pingando do seu cabelo.<br />

— Entre, — ele disse, acenando para ela com uma mão. — A água<br />

está fria pra caralho, mas isso não importa muito, eu acho, já que você<br />

não sente uma maldita coisa.<br />

Ela estreitou levemente os olhos para ele, suas mãos nos quadris.<br />

— Eu não vou entrar aí.<br />

— Por quê?<br />

— Porque, — ela disse, — isso não é hora para diversão. Nós<br />

temos um jogo para jogar.<br />

Ele bufou. — Sim, isso faz muito sentido. Você acabou de se<br />

escutar?<br />

Até mesmo ela tinha que admitir o absurdo do que havia dito. Ela<br />

deu de ombros com indiferença, sem vontade de discutir quando ele<br />

estava sendo agradável pela primeira vez.<br />

Lúcifer não esperou que ela mudasse de ideia. Ele bateu as mãos<br />

na superfície da água, fazendo montes de água espirrar na sua direção.<br />

Isso molhou toda a frente do seu vestido, o material se grudando à sua<br />

pele enquanto a água pingava nos seus pés descalços.<br />

Resmungando, ela pulou no rio, respingando água nele em<br />

retribuição. No momento em que abriu os olhos debaixo da água, ela<br />

encontrou cores vibrantes, todo um universo que existia abaixo da<br />

superfície. Plantas multicoloridas floresciam, crescendo e se<br />

misturando, enquanto as criaturas nadavam ao redor. Cardumes de<br />

peixes animados a circulavam enquanto as tartarugas mantinham um<br />

ritmo lento. Serah piscou rapidamente quando voltou à tona, girando ao<br />

redor até ver Lúcifer. — É lindo aqui embaixo!<br />

~ 100 ~


— Eu sei.<br />

— Como? — ela balançou a cabeça, totalmente abismada. — Isso<br />

não faz sentido. Como algo tão glorioso existe nesse lugar tão<br />

miserável?<br />

— É melhor não questionar, — ele disse. — Apenas aproveite,<br />

anjo. Confie em mim, é melhor assim.<br />

Ela encolheu os ombros, não pressionando a questão, e voltou a<br />

mergulhar. Lúcifer se juntou a ela, os dois explorando as profundezas<br />

vivas da água. Ele a levou para uma caverna abaixo da cachoeira, onde<br />

um pequeno peixe amarelo brilhava na escuridão, como vaga-lumes no<br />

céu noturno. Eles espirraram água e brincaram juntos, Lúcifer<br />

agarrando seu pé e a puxando mais para o fundo, um sorriso em seu<br />

rosto maior do que ela já tinha visto alguma vez. Ela chutou para longe<br />

dele, uma risada silenciosa surgindo em seu peito e saindo em forma de<br />

bolhas.<br />

Horas se passaram, os dois se perdendo no mundo submerso,<br />

tudo o mais esquecido enquanto Serah, pela primeira vez desde que<br />

perdeu seu irmão, sentiu alegria verdadeira de novo.<br />

Ela voltou à superfície ainda rindo, enquanto Lúcifer estalou ao<br />

seu lado. No momento em que ele apareceu, ela jogou água em seu<br />

rosto. Ele retribuiu enquanto ela tentava escapar, mas não foi muito<br />

longe antes que ele a alcançasse, a puxando um pouco de volta para<br />

baixo da água.<br />

— Isso é incrível, — ela disse, voltando à tona.<br />

Lúcifer levantou as sobrancelhas. — Incrível?<br />

Ela acenou. — E eu quero dizer isso de um jeito bom, dessa vez.<br />

Isso é incrível. Você... você é incrível.<br />

Surpresa passou pelo seu rosto.<br />

— Eu não ria tanto assim há muito tempo, — ela continuou<br />

olhando para o sol que passava entre os galhos das árvores. Parecia tão<br />

real.<br />

— Eu também não, — ele murmurou, se aproximando dela dentro<br />

da água. — Faz muito tempo para mim. Muito, muito tempo.<br />

Uma nuvem apareceu enquanto ele falava, espessa e implacável,<br />

bloqueando toda a luz do sol. Escuridão cobriu o rio, a água cristalina<br />

~ 1<strong>01</strong> ~


ficou borrada, se transformando em um tom de tinta. Um tiro gelado<br />

subiu pela espinha de Serah, arrepios cobriram cada parte da sua pele.<br />

Ela estremeceu com violência, seus dentes começaram a bater, o som<br />

ecoando no ar escuro.<br />

Lúcifer a encarou. — Você está com frio?<br />

— Eu, hm... — ela olhou para ele, absolutamente desconcertada<br />

quando viu em seus olhos uma mistura de céu azul com a escuridão. —<br />

Talvez.<br />

Algo aconteceu na água então, uma forte corrente de água os<br />

circulou. Isso pegou Serah por trás, brutalmente a empurrando para<br />

Lúcifer. Seu peito se contraiu quando ela gritou, uma pressão<br />

crescendo debaixo da sua pele, apertando suas costelas. O azul<br />

desapareceu totalmente dos olhos de Lúcifer, substituído pelo vermelho<br />

rodopiante quando o rosto dele endureceu.<br />

— Hora de ir, — ele disse, a segurando com força e a tirando da<br />

água, a colocando de pé na beira do rio. Trovões soaram e um raio<br />

atravessou o céu, o vento ficou mais forte. O rio mudou, se<br />

transformando em um vórtice giratório, um ciclone submarino.<br />

— O que foi isso? — ela perguntou, tentando parar de tremer.<br />

— Eu te disse, é melhor não perguntar, — ele respondeu. — Há<br />

coisas nessa água que você preferiria não encontrar.<br />

— Elas não podem me machucar, — ela disse. — Somente um<br />

anjo pode.<br />

— Sim, bem, nós não vamos correr o risco.<br />

Lúcifer estalou os dedos. Em um piscar de olhos, Serah estava<br />

parada no meio do aposento mal iluminado, velas brilhando por todo o<br />

lugar. Seu vestido estava seco, seu cabelo macio caindo em cascatas<br />

pelos ombros. Ela passou os dedos por ele, tentando achar a umidade,<br />

mas não havia nada. Era como se as últimas horas não tivessem<br />

acontecido.<br />

— Isso foi, — ela não tinha certeza do que dizer. — Uau.<br />

— Se sente, — Lúcifer disse, seu tom duro enquanto apontava na<br />

direção da cadeira ao fim da mesa. Ele não olhou para ela enquanto<br />

colocava a camisa de novo e sentava em seu trono, sua expressão tão<br />

tensa e inflexível quanto o mármore. — Ou não. Que seja.<br />

~ 102 ~


Hesitante, Serah deslizou na cadeira, observando-o com interesse<br />

enquanto ele misturava as cartas e as dividia em duas pilhas. Ele virou<br />

a sua primeira carta ao girar um dedo, ainda sem olhar para ela<br />

enquanto esperava que ela jogasse.<br />

— Você está bem? — ela perguntou, virando um Às e pegando as<br />

duas cartas.<br />

isso.<br />

Ele zombou. — Eu não preciso da sua pena, anjo. Eu não quero<br />

— Não é pena, — ela disse em voz baixa. — É uma pergunta<br />

genuína. Eu estava...<br />

— Preocupada? — ele perguntou. — Pobre patético Satanás,<br />

certo?<br />

Ela balançou a cabeça. — Eu não acho que você é patético.<br />

— Mas eu sou o Satanás.<br />

— Você disse, não eu.<br />

Ela virou a carta e ele também. Eles jogaram algumas rodadas em<br />

silêncio antes que ele deixasse escapar um longo e exasperado suspiro.<br />

— Vamos apenas jogar mais essa partida e então você pode ir embora.<br />

Tenho certeza que você tem coisas melhores para fazer do que ficar aqui<br />

comigo o dia todo, todos os dias.<br />

Desânimo apareceu na sua voz suave, e uma pitada de<br />

vulnerabilidade se mostrou. Serah balançou lentamente a cabeça. —<br />

Não, na verdade não.<br />

* * * * *<br />

Tudo mudou naquele momento, embora fosse apenas vagamente<br />

perceptível na luz sombria do lugar. Uma brisa leve agitou a chama das<br />

velas, ondulando o cabelo de Serah, levando seu perfume até Lúcifer.<br />

Ele inalou, fechando os olhos momentaneamente quando a fragrância<br />

varreu por ele, o cheio mexendo com algo dentro do seu corpo, uma<br />

pequena picareta perfurando a parede que ele tinha construído há<br />

muito tempo – a parede que impedia tudo e todos de acharam um<br />

caminho sob a sua pele.<br />

~ 103 ~


O buraco na sua barreira, dificilmente notado, era o bastante<br />

para fazer com que tudo pelo que ele tinha lutado começasse a<br />

desaparecer, puras emoções flutuando pelo seu corpo, se misturando<br />

com o pecado que parecia sempre fluir pelo seu sistema. A necessidade,<br />

o desejo, a luxúria – o orgulho, a ganancia, a inveja – tudo gritava para<br />

ele, pedindo que ele os saciasse, que cedesse à sua vontade.<br />

Ele tentou ignorá-los.<br />

Ela fez isso impossível.<br />

— Me fale sobre o seu irmão.<br />

Serah franziu o cenho. — Eu já falei de Samuel.<br />

— Você me falou dele, — ele disse. — Me fale sobre ele.<br />

— Oh, bem... acho que é difícil descrevê-lo. Ele é forte e leal, cheio<br />

de amor e compaixão. Ele é uma alma bonita.<br />

— Então muito parecido com você?<br />

Ela deu de ombros. — Eu acho que nós somos um pouco<br />

parecidos.<br />

— O que faz ele tão especial para você?<br />

— Ele entende.<br />

— Entende o quê?<br />

Ela hesitou. — Meu desejo por mais.<br />

Desejo. Lúcifer sabia tudo sobre desejo.<br />

— O que você vai fazer se o encontrar?<br />

— Se? Você não quer dizer quando eu o encontrar?<br />

Lúcifer acenou. — Quando você o encontrar, então.<br />

— Eu não sei, — ela respondeu. — Acho que depende do que<br />

aconteceu com ele.<br />

— Você está preocupada com o que vai encontrar? — ele<br />

perguntou.<br />

Ela levantou uma sobrancelha para ele. — Eu deveria?<br />

Lúcifer encolheu um ombro, sua atenção voltando para as cartas.<br />

Serah estava na frente no jogo, deixando Lúcifer com apenas sete<br />

~ 104 ~


cartas. Ele podia sentir a sua esperança irradiando forte pelo aposento,<br />

tão potente que ele quase se sentiu culpado quando virou um Às e<br />

quebrou a sua sequência de vitórias.<br />

— Ah, não, — ela disse, fazendo um biquinho com os lábios. —<br />

Você não pode ganhar sempre.<br />

— Vamos ver.<br />

Trinta minutos depois, Serah virou sua última carta bufando,<br />

cruzando os braços sobre o peito quando ele ganhou outra vez.<br />

* * * * *<br />

Conforme os dias transcorriam, Serah passava mais e mais<br />

tempo na cova com Lúcifer e menos tempo atendendo aos seus deveres<br />

mundanos. As coisas na terra estavam entrando em colapso, desastres<br />

naturais, um atrás do outro, devastando as terras. Doenças estavam se<br />

espalhando pelos países, enfermidades mortais infectando os humanos,<br />

enquanto o mal começava lentamente a crescer.<br />

Ninguém na Terra fez essa conexão, mas os anjos sabiam o que<br />

isso significava.<br />

Era difícil para Serah conciliar essa loucura com a criatura à sua<br />

frente, continuamente virando cartas em um jogo após o outro, como se<br />

não houvesse nada mais no universo para ele fazer. Como ele poderia<br />

destruir a humanidade, planejando tomar o controle de tudo, quando<br />

passava quase todos os momentos jogando um jogo bobo de cartas com<br />

ela? Ele não escapava para participar de reuniões misteriosas, não<br />

havia exércitos do mal treinando ao seu lado. Na verdade, exceto por<br />

aquele que lhe mostrou o caminho no primeiro dia, ela nunca<br />

encontrou um único demônio na sua presença.<br />

A atmosfera estava leve, qualquer tensão que havia existido tinha<br />

desaparecido enquanto os dois brincavam e riam, pela primeira vez<br />

seus jogos eram mais uma diversão que uma obrigação. Havia dois<br />

lados dele, dois seres imensamente diferentes que de alguma forma<br />

coexistiam dentro de um corpo. Havia Satanás, o demônio de olhos<br />

vermelhos, que estalava sua raiva e invocava o mal... e então havia<br />

Lúcifer, fazendo o melhor que podia com o que lhe havia sido dado,<br />

ainda encontrando cor em um mundo muito sombrio.<br />

~ 105 ~


E essa parte – a pequena parte persistente do anjo, otimista e<br />

brilhante – a fascinava como nada tinha feito antes.<br />

Lúcifer embaralhou as cartas e dividiu em duas pilhas. Ele estava<br />

prestes a deslizar para ela a sua metade quando ela levantou uma mão<br />

e o impediu. — Isso não está funcionando.<br />

— O quê?<br />

— O jeito como estamos jogando, — ela explicou. — Não está<br />

funcionando.<br />

— Você está desistindo?<br />

— Não, apenas quero fazer isso de um modo diferente.<br />

Lúcifer riu secamente. — Isso é War. Não há outro jeito de jogar.<br />

— Há sim, — ela insistiu. — Você pode jogar como uma pessoa<br />

normal.<br />

— Eu não sou normal, — ele disse, — nem sou uma pessoa.<br />

— Talvez não, mas você pode fingir.<br />

— Por quê?<br />

— Porque eu pedi.<br />

— E daí?<br />

Ela suspirou. — Tente, por mim. Por favor?<br />

Ele a encarou com a expressão em branco. Uma pequena onda de<br />

tensão passou entre eles, mas desapareceu quando ele se levantou e<br />

caminhou até o outro lado da sala, parando de pé ao lado dela. Ele<br />

puxou uma cadeira, e Serah esperou que ele sentasse, mas em vez<br />

disso ele subiu em cima a mesa de frente para ela, se impondo sobre ela<br />

enquanto se sentava com as pernas balançando para o lado.<br />

— Certo, — ele grunhiu, quase como se fosse fisicamente doloroso<br />

conceder. — Vamos acabar com isso.<br />

O jogo começou normalmente, ambos dando e recebendo de<br />

forma igual, e Lúcifer virou as cartas manualmente pela primeira vez.<br />

Serah começou a vencer as partidas, ganhando uma rodada após a<br />

outra. A pilha de Lúcifer foi diminuindo conforme o jogo andava, o<br />

deixando ao final com apenas três cartas.<br />

~ 106 ~


Serah virou um Rei; Lúcifer virou um seis.<br />

Serah virou uma dez; Lúcifer virou um seis.<br />

Serah virou um oito e olhou para ele enquanto o esperava virar<br />

sua última carta. — Se você virar um seis, eu desisto.<br />

Ele riu, fazendo um movimento para virar sua última carta. —<br />

Estou surpreso que você não desistiu antes. Eu ganhei cento e vinte e<br />

três partidas em sequência. Você tinha que saber que algo não estava<br />

certo.<br />

Os olhos dela se estreitaram. — Você estava trapaceando?<br />

— Claro, — ele disse. — Vamos lá. Você realmente acha que eu<br />

jogo limpo? Se eu quero algo, eu pego. Eu te disse: eu faço todas as<br />

regras aqui.<br />

— Você... você... você... — raiva nublou a sua expressão. — Seu<br />

babaca!<br />

Os olhos de Lúcifer se arregalaram. — Me diga como você<br />

realmente se sente, anjo.<br />

— Eu não acredito em você! — ela estalou. — Eu dediquei tudo<br />

para ganhar esse jogo, então nós finalmente poderíamos ter uma<br />

conversa honesta, e o tempo todo você estava trapaceando! Era<br />

impossível eu ganhar!<br />

Lúcifer virou sua última carta – um seis, claro. — Você me bateu<br />

essa vez.<br />

— Porque você deixou.<br />

— Não, porque você me pediu para jogar limpo.<br />

Ela olhou para ele quando bateu a mão sobre a mesa. Ela pegou<br />

as duas últimas cartas, as empurrando para debaixo da sua pilha. —<br />

Eu quero as minhas respostas.<br />

— Faça suas perguntas.<br />

— Onde está meu irmão?<br />

— Não posso dizer.<br />

— Por que você ainda está lutando?<br />

Ele deu de ombros.<br />

~ 107 ~


— Pare com isso, — ela insistiu. — Acabe com a guerra.<br />

— Não é uma pergunta.<br />

— Por favor?<br />

— Não.<br />

Um rosnado alto de frustração ecoou pela sala enquanto Serah<br />

ficava de pé, empurrando para trás a sua cadeira. Com raiva, ela jogou<br />

a pilha de cartas nele, todas as cinquenta e duas voando ao redor dele,<br />

algumas batendo no seu peito. — Eu fiz tudo isso por nada? Sério?<br />

Você não vai me dar nada?<br />

Ela se virou para sair quando ele agarrou o seu braço, puxando-a<br />

de volta para a cadeira. Ela o empurrou para longe, tirando suas mãos<br />

de cima dela enquanto algo surgia debaixo da sua pele. Foi tão intenso<br />

que ela sentiu todo seu corpo vibrando.<br />

— Ele veio aqui.<br />

— Quem?<br />

— O seu irmão.<br />

quê?<br />

A raiva de Serah diminuiu um pouco com as suas palavras. — O<br />

— Ele veio até o portão. Ele me chamou.<br />

— Quando?<br />

— Algumas semanas atrás, — ele disse. — Foi a primeira vez que<br />

eu senti o seu cheiro. O seu perfume estava todo sobre ele aquele dia.<br />

— Por quê? — ela perguntou.<br />

Ele deu de ombros. — Provavelmente porque ele tinha acabado de<br />

te ver.<br />

— Não, eu quero dizer, por que ele veio aqui? — ela perguntou. —<br />

O que ele queria?<br />

— Ele queria me fazer uma pergunta.<br />

— Que pergunta?<br />

— Ele queria saber por que eu não recuei. Eu tinha tudo, e desisti<br />

por isso, — ele acenou com a mão ao redor, a movendo pela sala<br />

brilhante. — Ele queria saber se eu achava que cair valia a pena.<br />

~ 108 ~


— O que você disse?<br />

— Eu disse que preferiria suportar uma eternidade de dor por<br />

escolha própria que não sentir nada para sempre por obrigação, — ele<br />

disse, batendo em sua têmpora. — No dia seguinte, os anjos estavam<br />

frenéticos. Samuel tinha caído, eles disseram. Ninguém sabia porque,<br />

ou como, mas eu sabia.<br />

— Por quê?<br />

Lúcifer se aproximou dela. Ela o encarou, desespero brilhando<br />

dos seus olhos enquanto esperava por uma explicação, algo que<br />

finalmente fizesse sentido. Samuel era tão leal, dedicado à inocência. O<br />

que ele tinha feito para merecer esse destino?<br />

— Ele caiu porque decidiu que cair valia a pena, — Lúcifer disse.<br />

— Ele pediu a Michael para tirar as suas asas.<br />

Serah balançou a cabeça furiosamente. — Não, ele não faria isso.<br />

— Ele faria, — ele disse, — e ele fez.<br />

— Você está errado.<br />

Lúcifer suspirou. — Não estou. Ele foi o primeiro, sabe. Todos os<br />

outros caíram como forma de punição. Samuel caiu porque ele estava<br />

pronto para ir.<br />

Devastação tomou Serah, enquanto ela continuava a balançar a<br />

cabeça, se recusando a acreditar que seu irmão faria isso. — Ele não<br />

faria... ele não podia fazer isso. Ele não podia me deixar sozinha. Ele<br />

não faria isso.<br />

— Você não está sozinha, — ele disse. — Eu gosto de pensar que<br />

ele deixou você em mãos capazes.<br />

Serah franziu o cenho enquanto processava as palavras. Será? —<br />

Michael.<br />

Lenta e cuidadosamente, Lúcifer se inclinou para frente, seu rosto<br />

quase na frente do dela, e suspirou. — Eu quis dizer eu.<br />

Um arrepio correu pelo seu corpo quando a respiração dele<br />

atingiu sua pele. A bochecha de Lúcifer escovou contra a dela, faíscas<br />

surgiram onde eles se tocaram. Ela o encarou quando ele se aproximou<br />

mais, a ponta dos seus narizes se encostando. A respiração de Serah<br />

ficou presa na sua garganta, seu peito doendo com uma queimação<br />

~ 109 ~


desconhecida quando a escuridão nos seus olhos lentamente derreteu,<br />

o familiar azul reaparecendo.<br />

Ele não hesitou em inclinar sua cabeça para o lado, pressionando<br />

os lábios contra os dela. Ela permaneceu imóvel, cambaleando<br />

enquanto ele a beijava gentilmente, a língua passando pelo seu lábio<br />

inferior. Ela deixou escapar uma respiração trêmula, a língua dele<br />

explorando a sua boca no segundo que ela a abriu, suavemente<br />

acariciando. Algo explodiu dentro dela nesse momento, algo<br />

surpreendente e novo. Ela levantou a mão trêmula e a correu pelo<br />

cabelo escuro dele. Cada parte dela que tocava ele formigava, agulhas<br />

sob a sua pele, como se ela estivesse acordando pela primeira vez.<br />

Houve fogo então, a paixão em erupção quando suas mãos o<br />

tocaram. O beijo ficou mais duro, os lábios se movendo freneticamente.<br />

Ela tentou o beijar de volta, tentou manter os movimentos bruscos, mas<br />

tudo ao mesmo tempo era demais – muito esmagador, muito estranho,<br />

muito intenso. Ela se empurrou para longe dele, balançando a cabeça.<br />

Lúcifer congelou, sua respiração pesada, o azul em seus olhos foi<br />

ultrapassado pelo preto enquanto ele a encarava. Sua expressão se<br />

transformou rapidamente em confusão. — Oh, porra.<br />

Ela tentou se afastar, mas a mão dele voou, sua palma larga<br />

cobrindo a sua bochecha. Seu polegar roçou contra sua pele,<br />

rapidamente secando algo quando a visão de Serah borrou, embaçando<br />

sua visão dele.<br />

A queimação em seu peito se intensificou quando sua garganta<br />

fechou, as palavras mal conseguindo sair pelo canal obstruído. — O que<br />

está acontecendo comigo?<br />

— Você está chorando, — ela sussurrou. — Você está chorando,<br />

porra.<br />

Serah se empurrou para longe dele de novo, trazendo as mãos<br />

freneticamente até o rosto. Chorando? Ela podia ver as lágrimas<br />

brilhando nos seus dedos quando ela as secou, pequenos diamantes<br />

cintilando sob a luz fraca.<br />

Impossível.<br />

Ela se levantou em pânico e correu para a porta. Lúcifer tentou<br />

pará-la, correndo atrás dela, mas ela foi muito rápida. Ela atravessou a<br />

porta e voou até o portão na velocidade da luz, passando diretamente<br />

através dele. Lúcifer tentou segui-la e bateu no escudo com força total.<br />

~ 110 ~


Um grito agudo rasgou o céu quando os encantamentos se<br />

ativeram para mantê-lo preso, tão alto que Serah se encolheu e<br />

levantou as mãos para cobrir os ouvidos. Ela se virou, vendo que<br />

Lúcifer tinha passado pela metade do escudo antes de ser brutalmente<br />

repelido por ele.<br />

Um grito excruciante rasgou o seu peito e seus olhos queimaram<br />

em chamas, seus lábios se curvando em um sorriso de escárnio<br />

monstruoso. Ele caiu de joelhos, sua pele bronzeada ficando laranja<br />

quando o fogo se alastrou por baixo, o ponto em seu peito onde Michael<br />

tinha feito a marca brilhando tão intensamente que Serah podia ver<br />

através da sua camisa preta. As chamas pareciam explodir do círculo,<br />

queimando as suas roupas.<br />

Ele jogou a cabeça para trás e fechou as mãos em punhos quando<br />

outro ruído ricocheteou pela terra. O chão tremeu quando os ceifeiros<br />

desceram sobre ele, os monstros negros sem rosto rasgando a sua pele.<br />

Os gritos dele ficaram mais altos, seu corpo absorvendo as criaturas<br />

deformadas antes de expeli-las, como se fossem meras sombras<br />

passando através dele.<br />

A visão de Serah borrou ainda mais, seu peito apertando quando<br />

ela lutou por compostura, ofegando por ar, incapaz de respirar o<br />

suficiente. Ela cobriu a boca quando as lágrimas escorreram pelas suas<br />

bochechas e se virou de costas para ele, incapaz de olhar mais. Ela<br />

correu novamente, não parando até pisar novamente na mata de<br />

Hellum Township.<br />

* * * * *<br />

Serah e Hannah se balançavam gentilmente nos balanços do<br />

parquinho da escola. As crianças estavam na aula, o recreio ainda<br />

demoraria mais uma hora, deixando os anjos sozinhos por um tempo. O<br />

ar atrás de Serah estalou segundos antes do seu balanço parar<br />

abruptamente, quase a jogando para fora. Ela agarrou as correntes com<br />

força, se segurando, enquanto Hannah olhou para trás delas. —<br />

Samuel.<br />

Serah suspirou quando seu irmão se teletransportou para frente<br />

dela no momento em que ela se virou para encará-lo. Ela se virou<br />

novamente, levantando uma sobrancelha quando encontrou seu olhar,<br />

~ 111 ~


vendo a expressão divertida em seu rosto. — Você não tem nada melhor<br />

para fazer do que me irritar?<br />

hoje.<br />

— Não, — ele disse. — Nada mais importante que a minha irmã<br />

— Por quê?<br />

Ele sorriu. — Feliz Dia da Criação!<br />

Serah revirou os olhos. — Nós fomos criados no verão. Estamos<br />

no outono.<br />

— Sério?<br />

— Sim, sério. Você sabe disso, Samuel.<br />

— Oh, bem, acho que eu fiz uma surpresa por nada, então.<br />

Serah uniu as sobrancelhas quando o estudou com curiosidade.<br />

— Uma surpresa?<br />

Ele acenou, sua atenção se virando para Hannah. — Desculpe,<br />

hippie, eu não tenho nada para você.<br />

Hannah balançou a cabeça. — Eu não sei porque você insiste em<br />

me chamar assim.<br />

— Você faz essas coisas hippie, como brincar com a natureza e<br />

olhar para o cosmos. Se você fosse mortal, iria fumar baseados e cantar<br />

‗Kumbaya‘ com seus amigos maconheiros.<br />

— Acho que você está me confundindo com você, — Hannah<br />

disse. — Tenho certeza que ouvi você e Michael discutindo a paz<br />

mundial ontem.<br />

— Ei, esse é um grande conceito, — Samuel disse. — Com certeza<br />

faria nosso trabalho muito mais fácil se todos pensassem nisso.<br />

— Bem, eles não vão, — Hannah se levantou, dando a Serah um<br />

pequeno sorriso antes de se virar para Samuel. Ela levantou dois dedos<br />

fazendo um V e mostrou a língua para ele. — Faça paz.<br />

Ela desapareceu em um estalo de eletricidade. Samuel riu,<br />

balançando a cabeça enquanto se virava para Serah. Ele chutou os pés<br />

dela quando ela se balançou na direção dele. — Vamos lá, se levante.<br />

Hora de ir.<br />

— Ir aonde?<br />

~ 112 ~


— Sua surpresa, lembra?<br />

Suspirando, Serah se levantou, esperando que Samuel se<br />

teletransportasse para algum lugar e ela tivesse que correr para<br />

descobrir a sua localização, mas não. Em vez disso, ele começou a<br />

caminhar pelo parquinho em direção à rua. Ela o seguiu de perto, os<br />

dois andando casualmente pelas ruas de Chorizon.<br />

— A minha surpresa é aqui?<br />

— Sim.<br />

— O que é?<br />

— Você verá.<br />

— Por que você não me diz?<br />

— Porque vai estragar a surpresa.<br />

Eles caminharam algumas quadras, diminuindo o ritmo quando<br />

chegaram a uma pequena cafeteria. Serah olhou pela janela, vendo<br />

poucos clientes dentro, nada que inflamasse seu interesse em<br />

particular.<br />

— Café? — ela perguntou. — Sempre pareceu algo meio nojento<br />

para mim, Samuel.<br />

Ele riu. — Não, sua surpresa está atrás de você.<br />

Serah moveu seu olhar. Pelo vidro da janela, ela pôde ver o reflexo<br />

da rua atrás. Então ela viu, o Pontiac GTO 1966 vermelho-cereja<br />

estacionado junto ao meio-fio, a capota abaixada, a tinta fresca<br />

brilhando sob a luz do sol. Ela se virou. — Meu carro favorito!<br />

— Sim, — ele disse, lhe cutucando com o cotovelo. — Surpresa<br />

que eu lembrei?<br />

Antes que ela pudesse responder, o ar ao redor deles estalou<br />

quando Samuel mudou, tomando sua forma humana. Um homem<br />

saindo da cafeteria parou chocado, alarmado, derrubando sua bebida<br />

quando Samuel apareceu bem na frente dos seus olhos. Samuel olhou<br />

para o homem atrás, acenando casualmente. — E aí?<br />

Serah assobiou entre os dentes cerrados. — O que você está<br />

fazendo? As pessoas podem te ver!<br />

~ 113 ~


— E daí? — ele deu de ombros. — Nós não podemos dirigir esse<br />

garoto a menos que nos materializemos. Vai chamar muito mais<br />

atenção se não tiver ninguém atrás do volante.<br />

— Dirigir? — ela olhou para ele. — Nós não podemos dirigir,<br />

Samuel.<br />

— Por quê?<br />

— Porque é contra as regras!<br />

— Ah, corta essa, — ele disse. — Me diga qual dos mandamentos<br />

nós vamos quebrar.<br />

— Não roubarás.<br />

— Estamos pegando emprestado. Vê? As chaves já estão ali para<br />

nós. Não é roubo.<br />

Serah olhou para as chaves. — Não cobiçarás.<br />

— Não é cobiça. Nós estamos dirigindo.<br />

Serah suspirou. — Eu não sei dirigir.<br />

— Como você sabe? Você nunca tentou, — ele acenou as mãos,<br />

gesticulando na direção do carro. — Vamos lá. Eu pareço louco, parado<br />

aqui falando comigo mesmo.<br />

Ela olhou para o seu irmão, contemplando. — Você tem certeza<br />

disso?<br />

— Absoluta, irmãzinha, — ele disse, a convicção em sua voz<br />

tornando isso mais fácil. Ele esfregou as mãos. — Vamos fazer isso.<br />

Serah olhou ao redor desconfiada, esperando que ninguém<br />

estivesse olhando quando ela se materializou ao lado do seu irmão. Ele<br />

sorriu para ela e correu na direção do carro, pulando no banco do<br />

passageiro. Serah contornou o automóvel para ir ao lado do motorista e<br />

abriu a porta, timidamente deslizando no assento. Ela colocou o cinto<br />

de segurança, o que lhe valeu um dramático revirar de olhos. — Nós<br />

não podemos nos machucar.<br />

— Não, mas há uma lei sobre cintos de segurança, — ela disse, —<br />

mas vá em frente e não use o seu se você quer que um policial nos pare.<br />

Samuel deu de ombros. — Eh, isso certamente seria interessante.<br />

~ 114 ~


Serah ligou o carro, um sorrindo aparecendo em seus lábios<br />

quando ele veio à vida, o carro vibrando quando o motor ronronou. Ela<br />

tentou se lembrar o que os mortais faziam ao dirigir e verificou os<br />

espelhos, ajustando seu assento para alcançar melhor os pedais. Ela<br />

ligou o pisca para sinalizar e olhou ao redor com cuidado, tendo certeza<br />

de que ninguém estava vindo quando ela puxou para a rua.<br />

Samuel olhou em volta do veículo, abrindo o porta-luvas e<br />

olhando dentro. — Rá! — ele gritou depois de um momento, pegando<br />

um óculos escuros de dentro do compartimento. Ele se acomodou para<br />

trás no seu assento e o colocou no rosto, casualmente descansando o<br />

braço contra a porta. — Tudo certo, mana. Acelere.<br />

Seus olhos se arregalaram. — O quê?<br />

— Pise no acelerador.<br />

— Eu estou pisando.<br />

Samuel inclinou o pescoço para olhar para o velocímetro. Serah<br />

olhou também: 32 Km/hora. — Por favor. Que piloto de corrida dirige<br />

tão devagar?<br />

— Eu não sou um piloto de corrida de verdade, — ela disse<br />

incrédula.<br />

— Finja, — ele disse, levantando uma sobrancelha para ela. —<br />

Pise no acelerador ou eu vou.<br />

Serah bateu o pé no acelerador, sabendo que seu irmão faria o<br />

que tinha dito. O carro saltou, rugindo alto quando acelerou rápido pela<br />

rua. Eles passaram semáforo após semáforo, cada um deles ficando<br />

verde logo antes deles o alcançarem. Serah olhou para o lado, vendo<br />

seu irmão casualmente estalando os dedos, mudando as luzes para ela.<br />

Eles correram por toda Chorizon e para fora dos limites da cidade,<br />

voando por sinuosas estradas secundárias, sem passar por nenhum<br />

carro ao longo do caminho. O Pontiac, apesar de ter quase cinquenta<br />

anos, correu suavemente, nenhum solavanco à troca automática das<br />

marchas, rugindo cada vez que ela pressionava mais o acelerador. O<br />

velocímetro subia mais e mais – 104, 120, 136, 152 – enquanto o vento<br />

agitava o longo cabelo de Serah, fazendo as mechas balançarem<br />

loucamente no ar. Samuel se reclinou para trás, sorrindo enquanto a<br />

observava dirigir pela primeira vez.<br />

Ele se esticou e ligou o rádio, trocando os canais e pulando pelas<br />

estações até achar uma que gostou. 30 Seconds to Mars ecoou nos alto-<br />

~ 115 ~


falantes e Samuel colocou no volume no máximo, cantando junto a letra<br />

de Kings and Queens 13 .<br />

Serah dirigiu de volta para Chorizon, ouvindo a voz melódica de<br />

seu irmão e a paixão que se derramava do seu peito com a música.<br />

Quando a canção acabou, eles tinham alcançado os limites da cidade<br />

novamente. Eles cruzaram a cidade a 56 Km/h, e Serah estacionou o<br />

carro no mesmo lugar em frente à cafeteria. Ela sorriu, tirando seu<br />

cabelo selvagem do rosto enquanto desligava o motor.<br />

Samuel olhou para ela. — Eu sou ou não sou o melhor irmão do<br />

mundo?<br />

— Você é, — ela concordou. — Esse foi o maior momento da<br />

minha existência.<br />

— Até agora. Você vai ter muitos outros como esse, se não<br />

melhores, no futuro, — ele sorriu, se esticando para cutucá-la embaixo<br />

do queixo. — Nós dois vamos, mana. Eu apenas sei.<br />

Samuel desapareceu dali, sumindo do carro enquanto Serah mais<br />

uma vez se tornava invisível. Ela ficou ali sentada segurando o volante,<br />

sem saber, enquanto aproveitava o momento, que aquela tinha sido a<br />

última vez que seus olhos tinham estado sobre a forma imortal do seu<br />

irmão.<br />

* * * * *<br />

Cinderella, dressed in yella'<br />

Went upstairs to kiss her fella'<br />

Made a mistake and kissed a snake,<br />

How many doctors did it take? 14<br />

13 https://www.youtube.com/watch?v=hTMrlHHVx8A<br />

14 É mais uma dessas canções infantis meio macabras que a autora traz. Literalmente,<br />

os versos querem dizer: Cinderella, de vestido amarelo/Desceu as escadas para beijar<br />

seu amigo/Cometeu um erro e beijou uma serpente/Quantos médicos foram<br />

necessários?<br />

~ 116 ~


Nicki e sua melhor amiga, Emily, pulavam corda enquanto<br />

cantavam em harmonia, começando a contar quando alcançaram o fim<br />

do verso. Serah as observava em transe.<br />

— Ugh, que canção medonha, — Hannha disse, aparatando no<br />

balanço ao lado de Serah. — Me deixe adivinhar: é apenas mais uma<br />

rima boba infantil, certo?<br />

Serah balançou a cabeça lentamente quando as palavras<br />

entraram na sua mente. — Poderia ser sobre Lúcifer.<br />

Hannah enrugou o nariz. — Sério? Satanás?<br />

— E eu, — ela sussurrou quando as garotas começaram de novo,<br />

cantando a canção do começo. Cometeu um erro e beijou uma serpente...<br />

— Foi isso?<br />

— Você está bem? — preocupação amarrou a voz de Hannah. —<br />

Você está me preocupando, Serah.<br />

— Eu não sei, — ela disse baixinho. — Eu não sei mais nada.<br />

As garotas recomeçaram a rima pela terceira vez, mas Serah não<br />

ficou para ouvir. Ela deixou Hannah sem se despedir, se<br />

teletransportando para os campos do Paraíso. Assim que chegou lá,<br />

uma sensação alarmante correu por ela. Com uma respiração profunda,<br />

uma doçura deliciosa entrou nos seus pulmões, o perfume de<br />

incontáveis flores silvestres que cobriam a terra. Ela arrancou um<br />

punhado do solo e as trouxe até o nariz. Inalando, ela foi surpreendida<br />

pela fragrância, tão forte que um travo amargo fez cócegas no fundo da<br />

sua garganta.<br />

Isso por si só quebrou a dúvida que ela tinha na cabeça.<br />

Ela se encaminhou para Hellum Towship, se apressando pelos<br />

portões e correndo diretamente para o Inferno, nenhuma hesitação em<br />

seus passos quando ela atravessou o campo de força, as flores ainda na<br />

mão. Ela correu para a torre e pelo corredor, estourando através das<br />

portas duplas de madeira para entrar na sala de reuniões.<br />

Lúcifer estava sentado em seu trono, parecendo levemente mais<br />

desgastado, mas ainda inteiro, enquanto virava cartas com indiferença<br />

ao girar um dedo. Sua expressão era dura, seus olhos nublados com<br />

um olhar distante enquanto evitava o olhar dela. Do outro lado do<br />

aposento, sentado na cadeira que Serah tinha ocupado dia após da,<br />

estava sentado um homem magro e tremente. Ele olhou aterrorizado<br />

~ 117 ~


para Serah. — Por favor, me ajude, — ele sussurrou, implorando a ela.<br />

— Anjo do Senhor, eu imploro a sua compaixão.<br />

Antes que Serah pudesse sequer pensar no que responder, Lúcifer<br />

levantou um braço, fechando metodicamente a mão em um punho,<br />

roubando a voz daquela alma torturada. O homem continuou a pedir,<br />

seus lábios se movendo freneticamente, mas não havia nenhum som.<br />

Ele agarrou a garganta, o horror aparecendo na sua expressão quando<br />

seus olhos correram para o Rei do Inferno.<br />

— Jogue, — Lúcifer latiu.<br />

O homem rapidamente virou a próxima carta da sua pilha.<br />

— Como você pode ver, eu estou ocupado, então fale e vá embora.<br />

Serah estendeu a mão. — Aqui.<br />

Lúcifer olhou para ela e levantou uma sobrancelha. — Você me<br />

trouxe flores?<br />

— Pegue-as.<br />

— Não.<br />

— Sinta o seu cheiro.<br />

— Sinta você.<br />

— Eu senti, — ela disse. — Um momento atrás.<br />

Ele franziu o cenho levemente enquanto encontrava o seu olhar.<br />

Serah esperou que ele reagisse, que ele pressionasse por uma<br />

explicação, mas ele simplesmente se virou depois de um momento,<br />

voltando para o seu jogo como se ela não estivesse ali. Lentamente ela<br />

abaixou a mão, ainda segurando as flores, enquanto raiva crescia<br />

dentro dela por ter sido ignorada.<br />

Ela se virou, encarando o homem aterrorizado. — Ele trapaceia,<br />

sabe. Ele é apenas um covarde que não consegue jogar limpo.<br />

— Já basta, — Lúcifer cuspiu entre os dentes cerrados.<br />

— Ele pensa que eu o acho patético, mas sério, eu sou a patética,<br />

— ela continuou. — Patética porque eu pensei que talvez havia mais<br />

nele do que isso. Que talvez ele tivesse jeito. Estúpida, não é? Eu<br />

realmente pensei por um segundo que Satanás...<br />

~ 118 ~


Lúcifer se levantou, um trovão inesperado rasgando através do<br />

teto e interrompendo o seu discurso. Todas as velas se apagaram,<br />

deixando-os no escuro. O chão perto de Serah de repente se abriu,<br />

chamas saindo da rachadura enquanto Lúcifer jogava o homem lá<br />

dentro, seus gritos calados quando o piso se fechou outra vez. Lúcifer<br />

avançou diretamente na direção dela, parando quando estavam frente a<br />

frente, se impondo sobre ela, seu peito pressionado contra o dela. Raiva<br />

irradiava dele enquanto a encarava, seus olhos em chamas na sala<br />

escura, suas narinas dilatadas. — Mas você tem muita coragem mesmo,<br />

porra.<br />

— Por quê? — ela exigiu, se recusando a recuar. Ela jogou as<br />

flores nele, o acertando no peito com elas ainda presas na sua mão. —<br />

O que está acontecendo comigo?<br />

— O que está acontecendo, anjo, é que você finalmente está<br />

começando a perceber que o mundo perfeito em que vive não é tão<br />

perfeito quanto deveria ser, — Lúcifer disse, arrancando as flores dela.<br />

— Você está começando a perceber que o papai não é tudo isso.<br />

— Blasfêmia.<br />

— Você pode me amaldiçoar o quanto quiser, — ele continuou. —<br />

Isso não faz com que seja menos verdade. Os sinais estão por todos os<br />

lugares.<br />

— Você está errado.<br />

— Estou? — ele levantou uma sobrancelha para ela. — Me diga<br />

que você não sente o frio no ar, que não sente a minha respiração na<br />

sua pele, — ele se esticou, passando as costas da mão pela pálida<br />

bochecha dela. Ela estremeceu com a sensação, um formigamento<br />

correndo pelo seu corpo quando a mão desceu pelo seu pescoço, depois<br />

pelo peito e então entre os seios. — Me diga que você não sente nada<br />

disso. Eu te desafio, caralho.<br />

Ela bateu na sua mão para afastá-la. — Você é uma vergonha.<br />

— Mas eu estou certo.<br />

— Você fez isso, — ela o acusou. — Isso é sua culpa.<br />

— Oh, eu não fiz nada com você, anjo, — ele se inclinou para<br />

frente, seus lábios perto da sua orelha quando ele sussurrou. — Ainda.<br />

Lúcifer deu um passo para trás e as velas novamente se<br />

acenderam, seus olhos viajando pelo corpo dela lentamente antes dele<br />

~ 119 ~


se virar e voltar para o seu trono. Ele se sentou e chutou as pernas para<br />

cima, acenando para que ela tomasse um lugar, mas ela não se moveu.<br />

— Nós somos muito parecidos, você e eu, — ele disse, — acredite<br />

ou não. Eu sinto as coisas. Eu provo as coisas. Eu sempre quis mais.<br />

Porra, eu até posso chorar, também.<br />

Os olhos dela se arregalaram. — Você chora?<br />

Ele zombou. — Eu disse que eu posso, não que eu faço isso.<br />

— Então como você sabe que pode?<br />

— Eu já deixei escapar algumas lágrimas uma ou duas vezes, —<br />

ele admitiu. — Acertar aquele portão dói pra caralho.<br />

— Eu vi, — ela disse. — Ontem.<br />

— Eu sei.<br />

— Você não deveria ter vindo atrás de mim, — ela insistiu. —<br />

Você não poderia ter me parado.<br />

Ele riu secamente. — É aí que você está enganada. Eu poderia ter<br />

te parado a qualquer momento. Você foi embora porque eu deixei.<br />

Ela franziu o cenho. — Então por que você fez aquilo? Por que<br />

você apenas não me parou, se poderia ter feito isso?<br />

— Eu já disse, não é do meu interesse tirar a liberdade de escolha<br />

de ninguém. Eu queria que você escolhesse se virar, escolhesse voltar.<br />

Mas você não fez isso, mesmo depois que os ceifeiros me atacaram.<br />

Mensagem recebida, anjo, alta e clara pra caralho.<br />

— Como você poderia ter me parado? — ela perguntou. — Você<br />

não pode me machucar.<br />

Lúcifer estalou os dedos, a sala desapareceu em pura escuridão.<br />

Serah sentiu como se estivesse pairando no espaço vazio sem formas de<br />

escapar – sem entrada, sem saída, nada. O seu próprio Inferno. — Ok,<br />

eu entendi. Já deu.<br />

Sem resposta.<br />

Ela virou ao redor em círculos, procurando por Lúcifer, mas não<br />

havia sinal dele em lugar algum. Ela tentou correr, mas não tinha senso<br />

de direção. Era como se a gravidade não existisse mais. — Pare com<br />

isso!<br />

~ 120 ~


Ainda sem resposta.<br />

O tempo parou, seu pânico aumentando. Ela tentou voar, suas<br />

asas rapidamente se expandindo, mas ela não podia dizer se estava<br />

indo a algum lugar sem um chão para lhe orientar. Poderia ter passado<br />

um minuto ou uma hora, um dia ou uma semana – o tempo não<br />

significava nada naquele vasto buraco de nada.<br />

Terror correu por ela, uma sensação gelada tomando seu corpo.<br />

— Lúcifer!<br />

Ao som de um estalo, Serah foi instantaneamente trazida para a<br />

sala de reuniões, os olhos arregalados, o cabelo bagunçado. Lúcifer<br />

estava sentado em seu trono, não aparentando ter se movido um<br />

centímetro. A maioria das flores tinham caído em um monte aos seus<br />

pés, mas ele ainda segurava uma – uma flor silvestre rosa pálido. —<br />

Aterrorizante, não é? Estar presa? Não é uma surpresa que seja o seu<br />

Inferno.<br />

— Você é horrível!<br />

Lúcifer ignorou a crítica e gesticulou para o lugar na mesa à sua<br />

frente pela segunda vez desde que ela tinha irrompido no aposento. —<br />

Tome um assento.<br />

Serah se aproximou dele timidamente. Em vez de sentar em uma<br />

das cadeiras negras, ela subiu na mesa, suas pernas balançando para<br />

fora enquanto o encarava. Ela estava tão perto que podia estender o pé<br />

e lhe dar um chute se quisesse.<br />

No humor em que se encontrava, isso era uma possibilidade real.<br />

— Por que você fez isso? — ela perguntou baixinho. — É tudo que<br />

eu quero saber. Por quê?<br />

— Eu já fiz muitas coisas, então você vai ter que ser mais<br />

específica, — ele disse. — Por que eu me rebelei? Por que eu desisti de<br />

tudo? Por que eu trapaceei no nosso jogo? Por que eu me joguei contra<br />

o portão como um maldito suicida imbecil?<br />

— Não, — ela disse. — Por que você me beijou?<br />

Ele girou a flor entre os dedos, levando-a até o nariz e inalando.<br />

— Por que não?<br />

— Essa não é uma boa resposta.<br />

— É a única que eu tenho.<br />

~ 121 ~


Serah balançou a cabeça com exasperação e olhou para longe,<br />

frustrada. Lúcifer se acomodou e foi para frente, agarrando seu queixo e<br />

puxando seu rosto para olhar para ele novamente.<br />

— Me diga uma coisa, — sua voz era um sussurro baixo e áspero.<br />

— Você já fez algo simplesmente porque queria fazer? Não porque te<br />

ordenaram, não porque você pensou que precisava, mas por egoísmo?<br />

Por pura ganância? Você fez porque não podia se imaginar não fazendo?<br />

As consequências que se danem.<br />

Ela balançou a cabeça lentamente. — Não.<br />

— Você está mentindo, — ele disse. — Você não estaria aqui<br />

comigo do contrário.<br />

— Eu fui enviada para pedir a você...<br />

— Para parar de lutar, — ele disse, a interrompendo. — E você me<br />

pediu... mais de uma vez. E eu neguei... mais de uma vez. Ainda assim,<br />

você está aqui. Por quê?<br />

Ela encolheu um ombro. — Por que não?<br />

Ele sorriu com malícia. — Exatamente.<br />

Eles se encararam por um momento antes que ele, lenta e<br />

deliberadamente, se inclinasse para frente. A respiração de Serah ficou<br />

presa quando ele pressionou os lábios nos dela pela segunda vez, a<br />

beijando suavemente. Ela estremeceu, o beijando de volta, pela primeira<br />

vez provando o sabor mentolado da sua boca, o formigamento em sua<br />

língua. Ela gemeu com a sensação, o som estimulando ainda mais<br />

Lúcifer. Ele tentou aprofundar o beijo, mas Serah o empurrou, as duas<br />

mãos pressionadas no seu peito, o mantendo à distância do braço.<br />

— Nós não podemos fazer isso, — ela disse. — É errado. Está<br />

tudo errado!<br />

— E daí?<br />

Ela o encarou incrédula. — Isso é pecado!<br />

— Ah, pecado, — Lúcifer disse. — Como a serpente que enganou<br />

Eva para que ela comesse o fruto proibido. Ela o devorou, sabendo que<br />

não deveria.<br />

— E foi punida por isso.<br />

~ 122 ~


— Ela foi, — Lúcifer concordou. — Mas se você pensa por um<br />

momento sequer que ela se arrependeu, está enganada. Aquela fruta foi<br />

a coisa mais gloriosa que ela já experimentou – a mais doce, a mais<br />

madura – e uma vez que você experimenta algo que tira seu fôlego dessa<br />

maneira, jamais esquece. Você nunca se arrepende.<br />

— Como você sabe?<br />

— Porque é a mesma coisa com as sensações, — ele disse. —<br />

Depois que você sabe como é cheirar uma flor, não pode mais ver isso<br />

como apenas uma planta. É mais do que isso – muito, muito mais. E é<br />

a mesma coisa com o prazer. Depois de sentir o arrepio do toque de um<br />

amante, não pode ficar entorpecido novamente.<br />

— Mas Eva não machucou apenas a si mesma ao pecar.<br />

— Você dá crédito demais a ela, — Lúcifer disse. — Ela comeu<br />

uma maldita maçã. É isso. Ela não podia ignorar a sua fome. A tentação<br />

era demais. E se alguma coisa, em vez de se colocar contra Eva, o<br />

mundo deveria invejá-la.<br />

— Por quê?<br />

— Por que ela experimentou um prazer que nenhum deles jamais<br />

vai ter, uma satisfação que nenhum deles jamais vai chegar perto. Nem<br />

mesmo eu sei como é morder aquela maçã, e eu nunca me neguei nada,<br />

— Lúcifer acariciou a bochecha dela com o polegar, um pequeno e<br />

sedutor sorriso curvando o canto dos seus lábios. — Ceda a isso, anjo.<br />

— Ceder a quê?<br />

— À fome, — ele disse, sua língua correndo lentamente pelo seu<br />

lábio inferior. — À necessidade. Ao desejo. A mim.<br />

— Nunca, — ela sussurrou, a palavra deslizando impulsivamente<br />

dos seus lábios, nenhuma convicção na sua voz baixa.<br />

— Eu sei que você sente isso, lá no fundo, gritando para ser<br />

reconhecido, para ser saciado, — ele continuou como se ela não tivesse<br />

falado. — Eu posso sentir, arranhando debaixo da sua pele, implorando<br />

para sair, implorando para ser convidado para brincar.<br />

Ela balançou a cabeça, refutando silenciosamente suas palavras.<br />

— Então me diga que você não sente isso, a vibração no seu peito;<br />

os cabelos no seu pescoço se levantando enquanto suas terminações<br />

nervosas se agitam, seus dedos coçando com a necessidade de acariciar<br />

~ 123 ~


alguma coisa, — os olhos dele correram pelo seu corpo. — Me diga que<br />

o seu corpo não dói com o simples pensamento de mim entre as suas<br />

coxas, em cima de você, dentro de você, te dando o que o meu irmão<br />

nunca conseguiu – sentir de verdade, o tipo de sentimento que faz você<br />

gritar tão algo que sua garganta parece estar sangrando. Prazer<br />

agonizante, o tipo que atormenta cada um dos seus pensamentos, te<br />

arrastando para a beira da loucura só para te puxar de volta, uma e<br />

outra vez. Prazer insuportável, do tipo que te faz implorar para que<br />

acabe, mas quando o momento termina, você não se sente nada além<br />

de uma concha vazia e inútil – uma concha que precisa de mais.<br />

Calor fluiu pelo seu corpo, começando do topo da sua cabeça e<br />

correndo para baixo, engolindo esse ponto no ápice das suas coxas que<br />

parecia involuntariamente responder ao discurso dele.<br />

— Me diga, — ele grunhiu. — Me diga que você não sente seu<br />

corpo vindo à vida. Me diga que você não quer mais, que você seria feliz<br />

voltando para a sua miserável existência sem fim onde a porra de um<br />

formigamento é o suficiente para matar a sua sede. Me diga, e eu nunca<br />

vou perguntar isso de novo.<br />

Serah abriu a boca para dizer a ele, para acabar com os jogos,<br />

mas ela não conseguiu fazer as palavras saírem dos seus lábios. Ela<br />

não podia mentir. Ela engoliu em seco, sua respiração aumentando<br />

enquanto ela esfregava as mãos em seu vestido, secando a umidade<br />

repentina nas palmas.<br />

Lúcifer pulou do seu assento, batendo as mãos na mesa em<br />

ambos os lados de Serah. Ele se impôs sobre ela, vermelho girando em<br />

seus olhos durante o prolongado silêncio. — Me diga!<br />

— Não.<br />

O guincho patético, quase inaudível, foi faísca o suficiente para<br />

inflamar um incêndio no aposento. Sem hesitar, sem nenhum pingo de<br />

dúvida, sem pensar duas vezes, Lúcifer esmagou seus lábios nos de<br />

Serah, a beijando com um fervor que ela nunca tinha experimentado<br />

antes. Ele bateu suas costas na mesa, forçando suas pernas a se<br />

abrirem quando ele se empurrou contra ela, as camadas de roupas<br />

entre eles não era o suficiente para conter o calor que irradiava dele. A<br />

sua ereção latejou nas calças, pulsando entre as coxas dela enquanto<br />

ela corria as mãos pelo seu cabelo.<br />

Oh, céus...<br />

~ 124 ~


As mãos de Lúcifer deslizaram acima pelas suas coxas,<br />

empurrando o vestido ao redor da cintura enquanto engatava suas<br />

pernas em volta dos seus quadris. Não havia delicadeza em seus<br />

movimentos, não havia gentileza no seu toque, nada da doçura que ela<br />

sempre associou ao ato. Isso era luxúria, crua e pura, um desejo sem<br />

filtros do que havia se construído entre eles, libertado pela primeira vez.<br />

Lúcifer se afastou dos seus lábios tempo o bastante para arrancar<br />

as roupas dela e jogá-las do outro lado da sala. Ele foi para trás<br />

enquanto ela se deitou na mesa, nenhum pedaço de tecido a protegendo<br />

de seus olhos. Ele arrancou sua camisa e a deixou cair no chão próximo<br />

aos seus pés, seu olhar escuro fixo nos seios dela. Suas mãos roçaram<br />

os mamilos, a carne sensível se apertando ao seu toque. Apenas o dedo<br />

indicador desceu lentamente pelo seu estômago, circulando o umbigo,<br />

antes de mergulhar na carne nua entre eles.<br />

Ela fechou os olhos quando seu dedo esfregou o clitóris,<br />

eletricidade a fazendo saltar. Através da escuridão, ela viu fogos de<br />

artifício, seu mundo explodindo em tantas cores que ela nunca tinha<br />

visto antes. Um gemido escapou do seu peito enquanto ela mexia os<br />

quadris involuntariamente, procurando por mais fricção. Ele não negou<br />

isso a ela, pegando a dica. Ele esfregou círculos ao redor do ponto<br />

enquanto baixava suas calças com a mão livre, as jogando longe<br />

quando chegaram aos seus tornozelos.<br />

Os olhos de Serah se abriram novamente no segundo que a<br />

conexão foi perdida, mas ela não teve tempo de lhe lançar um olhar<br />

curioso. Ele mergulhou dentro dela, a enchendo com um empurrão<br />

duro. A respiração ficou presa na garganta de Serah, escapando como<br />

um gemido estrangulado quando ela jogou a cabeça para trás,<br />

arqueando a espinha com a sensação. A boca de Lúcifer foi direto para<br />

o seu pescoço, lambendo e chupando a carne exposta enquanto<br />

martelava dentro dela, seus quadris batendo em suas coxas.<br />

Suas mãos inquietas exploraram as costas esculpidas enquanto<br />

seu corpo tentava se ajustar a ele dentro dela, seus dedos se<br />

acostumando com a textura áspera da sua pele. Ela deixou escapar<br />

uma respiração instável quando seus lábios encontraram os dela outra<br />

vez, a beijando com paixão e violência, os dentes se batendo.<br />

— Você gosta disso? — ele murmurou contra a sua boca. — É<br />

bom me sentir dentro de você, te fodendo?<br />

— Sim, — ela ofegou, um arrepio correndo pela sua espinha com<br />

as palavras sujas.<br />

~ 125 ~


— Não é bom o bastante, — ele rosnou. — Você ainda pode falar.<br />

Lúcifer mordeu o seu lábio, cortando a pele enquanto se retirava<br />

de dentro dela. Agarrando seus quadris, ele a virou, suas mãos ásperas<br />

a prendendo para baixo, os seios achatados contra a mesa. Um grito<br />

surpreso ecoou pela sala quando ele afundou nela por trás, a enchendo<br />

mais profundamente que antes. Uma salinidade nauseante cobriu a<br />

língua de Serah quando ela lambeu seus lábios. Ela estremeceu com<br />

uma queimação afiada e passou os dedos pela boca, surpresa ao ver o<br />

líquido vermelho.<br />

Sangue.<br />

Ela teve pouco tempo para considerar o que isso significava<br />

quando ele começou a martelar dentro dela, mais e mais duro, mais e<br />

mais fundo. Um grito alto escapou quando ela arranhou a mesa, o<br />

mármore se desfazendo onde as unhas dela formavam sulcos profundos<br />

na pedra dura. Sensações surpreendentes invadiram seu corpo, nada<br />

como o formigamento de antes. Isso era o ataque implacável de um raio<br />

correndo por todo o seu corpo, penetrando cada célula, alterando a sua<br />

essência. Ela podia sentir seu corpo vindo à vida, ficando mais forte a<br />

cada segundo enquanto outra parte sua se deteriorava,<br />

involuntariamente desaparecendo em algo mais. Seu peito doía<br />

violentamente como se estivesse sendo esmagado, pulsando sob a sua<br />

pele. Ela podia ouvir isso acima do som das suas peles batendo juntas,<br />

o tum-tum de uma pulsação, batendo pela primeira vez.<br />

Algo pareceu explodir dentro dela quando seu coração começou a<br />

bater, enviando todos os seus sentidos para uma ultrapassagem. O<br />

cheio almiscarado de sexo e suor encheu seus pulmões, sua visão<br />

borrou, sua pele apertou com arrepios. Uma brisa fria correu pela sala,<br />

uma notável diferença do fogo queimando nas mãos de Lúcifer na sua<br />

carne. Ele apertou com força um dos seus quadris, enquanto a outra<br />

mão acariciava a curva das suas costas, os calos ásperos dos seus<br />

dedos eram como uma lixa contra a pele sensível.<br />

Ele bateu nela, uma e outra vez, sem piedade. Ela doía onde eles<br />

estavam conectados, uma picada prazerosa enquanto ele a esticava e<br />

enchia. Eles se encaixaram perfeitamente, como couro se grudando na<br />

pele molhada, onde ele terminava e ela começava, um borrão de<br />

sensações. Serah tentou limpar sua cabeça, tentou dar sentido a tudo,<br />

mas os sentimentos eram muito esmagadores, muito nebulosos para se<br />

ver através deles.<br />

~ 126 ~


Lúcifer se inclinou sobre ela, seu peito pressionado em suas<br />

costas, seu calor quase queimando a sua pele. Seu hálito fresco passou<br />

pela orelha dela, uma risada suave vibrando pelo seu peito quando ela<br />

estremeceu violentamente.<br />

— Desista, — ele rosnou no seu ouvido. — Se dê para mim.<br />

Nunca, uma voz gritou no fundo da sua mente, a avisando, mas<br />

ela já não podia mais escutar. Seus lábios se moveram um pouco<br />

quando ela murmurou, — Eu sou sua, — as palavras quase um<br />

sussurro, uma mera respiração trêmula, mas foi o suficiente para ele.<br />

O ar mudou nesse momento, dentro da fração de segundo em que<br />

ela tomou a decisão de se comprometer com ele e mudou tudo. O alto<br />

estalo de um trovão dividiu o tato, as paredes começando a desmoronar<br />

ao seu redor enquanto Lúcifer batia nela duro por trás. Ondas brutais<br />

apertaram seu corpo quando ela explodiu em um orgasmo, tremendo de<br />

prazer, gritos de êxtase queimando sua garganta seca. Ela o apertou<br />

quando ele deixou ir, um rugido feroz saindo do seu peito quando os<br />

dois gozaram juntos. Ela podia senti-lo, pulsando quando ele se<br />

derramou dentro dela, a aquecendo de dentro para fora. Um<br />

formigamento familiar – o formigamento da sua Graça sendo energizada<br />

– correu pelo seu corpo, mais e mais forte, cada vez mais forte<br />

crescendo ao ponto da detonação.<br />

Lúcifer deixou escapar um suspiro que fez cócegas no seu pescoço<br />

quando ele se aninhou ali. Ele lhe deu um suave e casto beijo perto da<br />

orelha e suspirou, — Obrigado, anjo.<br />

Um vento forte sacudiu o aposento, apagando as velas, enquanto<br />

a energia do seu corpo parecia sair dela com um assobio, tirando o ar<br />

dos seus pulmões. Lúcifer se afastou dela quando outro trovão estalou.<br />

No brilho do relâmpago, Serah pôde ver as enormes sombras no chão<br />

das asas negras que haviam se estendido a partir das suas costas. Ela<br />

se virou sobre a mesa, os olhos arregalados quando teve um vislumbre<br />

do que acontecia à sua frente.<br />

A pele bronzeada de Lúcifer brilhou laranja, as marcas e os signos<br />

no seu peito e braços pulsando como quando ele tentou atravessar o<br />

portão. Mas agora, em vez de queimarem mais brilhantes, o rendendo,<br />

forçando a criatura para dentro da sua prisão, o condenando a nunca<br />

ferir uma alma inocente, as marcas negras brilhavam laranjas,<br />

gradualmente se misturando à sua pele.<br />

Serah pisou rapidamente, sua respiração acelerando enquanto<br />

Lúcifer lentamente se erguia do chão, pairando no ar à sua frente. Ele<br />

~ 127 ~


inclinou a cabeça para trás quando uma bola de luz cresceu do seu<br />

peito, tão brilhante e intensa que Serah deve que proteger os olhos e<br />

afastar o olhar. Era como se todo seu corpo tivesse sido engolido pelas<br />

chamas.<br />

Quando o brilho diminuiu, ela olhou para ele, encontrando seus<br />

olhos. Eles eram azuis brilhantes, vibrantes e nítidos, girando como o<br />

lago em que eles haviam nadado juntos. Ela estava tão presa pelos seus<br />

olhos, tão hipnotizada pela sua beleza sobrenatural de Arcanjo – o<br />

desenho da sua mandíbula, a imensa envergadura das suas asas, as<br />

covinhas ao redor do seu sorriso suave – que mal notou que sua pele<br />

agora estava livre de quaisquer marcas.<br />

A Graça dela, ela percebeu. Ela tinha se dado a ele. Ela curou as<br />

suas feridas quando passou isso para o seu corpo, regenerando-o como<br />

Michael tinha feito com ela tantas vezes. Terror correu por ela,<br />

agarrando seu coração que havia recém começado a bater, enquanto<br />

freneticamente balançava a cabeça, não querendo acreditar. Lúcifer<br />

apenas olhou para ela, nem um pouco de surpresa na sua expressão.<br />

Ele sabia que isso ia acontecer.<br />

Tinha sido o seu plano o tempo todo.<br />

— Eu sinto muito, — ele sussurrou, o azul voltando a desaparecer<br />

na escuridão. — Sinto muito mesmo, porra.<br />

No próximo estalo de um trovão, ele havia ido. Serah olhou para o<br />

lugar que ele ocupava segundos atrás, horrorizada, mortificada,<br />

enquanto enrolava os braços com força em volta da sua cintura,<br />

tentando se segurar. O chão estremeceu violentamente, estalando, se<br />

abrindo em fendas de fogo. Os altos gritos de agonia rasgaram o ar<br />

quando tudo mais começou a entrar em colapso, o Rei do Inferno não<br />

mais ali para conter o caos.<br />

Sem perceber, ela tinha aberto a jaula do monstro.<br />

~ 128 ~


Capítulo Quatro<br />

— O que você fez?<br />

A voz baixa e venenosa estava tão perto que os cabelos da nuca<br />

de Serah se levantaram. Ela se virou lentamente, ficando cara a cara<br />

com Michael nas sombras da floresta de Hellum Township.<br />

Serah podia sentir que era de manhã cedo, apenas algumas horas<br />

depois do nascer do sol, mas o dia estava tão escuro como se houvesse<br />

uma tempestade à meia-noite. Vermelho havia se misturado ao céu,<br />

nuvens espessas de sangue bloqueando toda a luz solar. Poucos<br />

minutos haviam se passado desde que ela tinha estado naquela sala<br />

fatídica com Lúcifer, mas parecia que uma vida inteira havia<br />

transcorrido na Terra. Tudo estava seco e quebrado, a morte<br />

devastando o solo, enquanto o ar tinha um cheiro estranho e estagnado.<br />

Será que sempre tinha sido assim?<br />

— Posso ouvir o seu coração, — Michael pressionou, — um<br />

coração que não devia bater!<br />

— Eu cometi um erro.<br />

— Um erro? — Michael levantou uma sobrancelha em descrença<br />

que combinava com a sua voz. — Você soltou o Inferno na Terra!<br />

— Eu não sabia que Lúcifer...<br />

— Ele é Satanás! — Michael gritou, dando um passo mais perto, a<br />

raiva marcando seu rosto. — Você permitiu que o diabo te seduzisse!<br />

— Me perdoe, — ela sussurrou, uma única lágrima escorrendo<br />

pela sua bochecha.<br />

O olhar frio e duro de Michael queimou através dela. — Não.<br />

Um rugido cortou a floresta enquanto as árvores se dobravam e<br />

estalavam. O mal escovou a sua pele, saltando fora dela, voando ao<br />

~ 129 ~


edor, enquanto almas se derramavam dos portões que foram deixados<br />

abertos com a saída de Lúcifer.<br />

Ou Satanás, Serah pensou. Talvez Lúcifer não existisse<br />

realmente.<br />

Anjos desceram sobre a área, aparatando em grupos enquanto<br />

corriam ao redor, tentando impedir que mais demônios escapassem.<br />

Michael se afastou de Serah enquanto seus irmãos e irmãs apareciam,<br />

preparados para a batalha, nenhum deles parando para olhar para ela.<br />

— Você deveria fazer sua confissão final, — Michael disse, um<br />

destacamento firme em sua voz. — Isso não vai acabar bem para você,<br />

sua miserável.<br />

Miserável. A palavra era como uma faca passando através do peito<br />

apertado de Serah.<br />

Michael desapareceu, se juntando aos outros. Era ele quem havia<br />

trancado Satanás lá dentro, então era ele que sabia como reativar o<br />

portão. Devastação correu por Serah quando ela caiu de joelhos, se<br />

dobrando enquanto soluçava.<br />

Ela tinha feito isso.<br />

— Samuel, — ela chorou. — Eu preciso de você.<br />

Estática estourou bem na sua frente. Ela olhou para cima,<br />

irracionalmente procurando por seu irmão perdido, mas encontrou<br />

Hannah a encarando em vez disso. Ela franziu o cenho, agarrando<br />

Serah pelo braço e a puxando para ficar de pé.<br />

— Se recomponha, — ela disse, sua voz dura, mas não havia raiva<br />

na sua expressão. — Nós não podemos ter você em pedaços agora.<br />

— Eu fiz isso, — Serah disse. — Fui eu.<br />

— Eu sei. Todos nós sabemos. No momento em que aconteceu –<br />

no momento em que ele ascendeu – o polo magnético se inverteu<br />

totalmente. Vai ser difícil reverter isso – se for possível reverter.<br />

Ela piscou rapidamente. — Eu comecei o Apocalipse.<br />

— Sim, o que significa que de alguma forma você está por dentro<br />

de como tudo isso funciona.<br />

— Eu não sou nada. Eu sucumbi à tentação da serpente. Eu<br />

soltei Satanás.<br />

~ 130 ~


— Você estava encantada por Lúcifer, — Hannah suspirou,<br />

balançando a cabeça. — Ele era um Arcanjo, Ser, o mais glorioso já<br />

criado. Eu não posso te culpar por se apaixonar por ele.<br />

Se apaixonar por ele.<br />

— Eu estou, — ela sussurrou. — Literalmente.<br />

Uma corrente de sombras negras passou correndo por elas,<br />

percorrendo a terra tão longe onde seus olhos podiam ver. O oxigênio<br />

parecia ser sugado da atmosfera enquanto Serah ofegava em agonia,<br />

lutando para respirar.<br />

— Michael soltou os ceifeiros, — Hannah disse, observando as<br />

criaturas mórbidas descerem sobre a Terra. — É apenas uma questão<br />

de tempo antes que eles o encontrem.<br />

— E então o quê? — Serah perguntou.<br />

— Você conhece a profecia: Satanás será destruído de uma vez<br />

por todas, — seu olhar voltou para Serah outra vez. — Michael está<br />

vindo. Você precisa sair daqui.<br />

— Para onde eu vou ir?<br />

— Qualquer lugar em que se sinta segura, — Hannah disse. —<br />

Depois que o dragão for abatido, ele vai ver as coisas claramente. Eu<br />

tenho certeza.<br />

Serah não estava tão certa.<br />

* * * * *<br />

O Apocalipse. O fim dos dias.<br />

O mundo não acabou em uma hora. Não acabou em um dia. Na<br />

verdade, ele não acabou de fato. A maioria dos cantos do planeta<br />

permaneciam sem saber que o Inferno estava devastando a Terra. A<br />

água envenenada, o ar contaminado, os campos morrendo, tudo isso<br />

era algo normal no reino mortal. Eles iam à escola; iam ao trabalho; eles<br />

estudavam e faziam provas, tinham encontros e mantinham os seus<br />

negócios, se adaptando institivamente às condições perigosas.<br />

~ 131 ~


Aquecimento Global era o culpado, assim como uma Mãe Natureza<br />

fictícia. A tempestade do século estava sobre eles, como diziam, enquanto eles<br />

esperavam que tudo se acalmasse e eventualmente chegasse ao fim.<br />

Serah saiu de cena – fora de vista, fora do jogo – enquanto os<br />

anjos lutavam para conter a bagunça que ela tinha feito. Criaturas de<br />

todos os tipos saíam dos portões, pisando na Terra pela primeira vez:<br />

vampiros, lobisomens, até mesmo fadas. O reino sobrenatural tinha<br />

explodido, levando a uma horda de demônios livres.<br />

Era assim que eles esperavam que fosse o Armageddon – pior, de<br />

algumas maneiras – mas algo estava definitivamente faltando.<br />

E esse algo era Satanás.<br />

Uma semana se passou. Sete dias de tormento, e os anjos lutando<br />

tinham contido um pouco a América. Serah observou de longe enquanto<br />

monstros cruéis pereciam, um por um sendo trancados em suas jaulas,<br />

mas não escapou do seu conhecimento que seu líder não estava nem<br />

perto de ser encontrado. Nenhum relato de avistamento, nem um único<br />

incidente.<br />

* * * * *<br />

Serah se trancou no Centro Comunitário abandonado de<br />

Chorizon, esperando tudo se resolver de longe. Ela esteve sozinha por<br />

uma semana, cercada pelo absoluto silêncio e quietude. Ela estava<br />

olhando pela janela para o oitavo romper da aurora, esperando que a<br />

esperança do sol conseguisse de alguma forma passar através das<br />

nuvens espessas, quando algo se mexeu na sala atrás dela.<br />

Quando ela foi virar, era tarde demais.<br />

Um braço grosso passou ao redor da sua cintura, a prendendo no<br />

lugar, enquanto uma mão subiu para tapar sua boca. Seu corpo foi<br />

violentamente puxado para trás contra um outro, um aroma vagamente<br />

familiar penetrando o seu sistema. Ela tentou lutar com o atacante,<br />

mas ainda se encontrava fraca, e ele era muito forte.<br />

— Relaxe, anjo, — uma voz suave disse. — Eu não estou aqui<br />

para te machucar.<br />

~ 132 ~


Ela lutou com mais força quando ouviu a voz, somente se<br />

soltando quando ele a deixou ir. Se virando, ela tropeçou para trás. —<br />

Satanás.<br />

Seu rosto se contorceu, seus lábios se curvando quando ele<br />

mostrou os dentes. — Eu disse a você para não me chamar assim.<br />

— É o que você é!<br />

Ele caminhou na sua direção, fazendo com que ela recuasse. Ela<br />

pressionou suas costas contra o vidro frio da janela. Ele parou,<br />

levantando as mãos defensivamente. — Olhe, eu sei que você está<br />

irritada...<br />

— Irritada? — ela assobiou. — Eu estou furiosa! Você me usou!<br />

Você sabia que isso ia acontecer!<br />

— Eu sabia, — ele admitiu, — mas não é tudo assim preto no<br />

branco.<br />

— É sim, — ela insistiu. — Eu fui uma idiota de pensar o<br />

contrário. Você, Satanás, quer acabar com o mundo.<br />

— Eu quero, — ele admitiu novamente, — mas como eu disse,<br />

não é tudo preto no branco.<br />

— Você me infectou, — ela cuspiu. — Os símbolos podem não<br />

estar marcados na minha pele, mas a marca da besta está em mim<br />

agora.<br />

— Você está sendo dramática, — ele disse. — Eu não fiz nada sem<br />

a sua permissão. Você se deu para mim.<br />

— Você me coagiu!<br />

— Besteira! — ele estalou enquanto caminhava na sua direção,<br />

sem se deter desta vez quando ela tentou escapar. Ele bateu as mãos<br />

contra o painel de vidro, seu rosto a apenas alguns centímetros do dela.<br />

— Você queria isso. Você ainda quer. Posso cheirar o seu desejo, sentilo<br />

dentro de você, implorando por mais liberação.<br />

— Você mente!<br />

— Sim, — ele disse. — Mas não sobre isso.<br />

— Eu odeio você!<br />

~ 133 ~


— Talvez, mas você ainda me quer. Você ainda precisa de mim.<br />

Eu ousaria dizer até mesmo há uma parte lá no fundo que realmente se<br />

importa comigo.<br />

— Nunca!<br />

Ele levantou uma sobrancelha. — Quem é que está mentindo<br />

agora, anjo?<br />

Lúcifer se inclinou para frente, inclinando a cabeça, se<br />

preparando para beijá-la. Serah escapou antes que seus lábios se<br />

tocassem, se esquivando por debaixo do braço dele e atravessando a<br />

sala, indo para longe do seu abraço. Lúcifer deixou sair um suspiro<br />

exasperado enquanto lentamente se virava para ela.<br />

— Eu vou chamar ele, — ela ameaçou. — Dê mais um passo e eu<br />

vou gritar por Michael.<br />

— Ele vai matar nós dois.<br />

— Ele vai, — Serah disse. — Mas pelo menos ele vai salvar o<br />

mundo de você.<br />

Ela esperava que isso o desencorajasse, mas seus lábios se<br />

curvaram em um sorriso provocador enquanto ele dava um passo<br />

calculado na sua direção.<br />

— Faça isso, — ele a provocou. — Eu te desafio.<br />

Ela olhou para ele, permanecendo em silêncio.<br />

— Foi o que eu pensei.<br />

— O que você quer de mim? — ela suspirou. — Você está livre.<br />

Você já tem o que queria.<br />

— Não tudo.<br />

— O que falta?<br />

— Você.<br />

— Você é um traidor repulsivo e egoísta, cheio de pecados<br />

imperdoáveis.<br />

— Você está recitando o meu currículo? Se for o caso, você é um<br />

anjo caído.<br />

— Eu não caí.<br />

~ 134 ~


— Ainda.<br />

— Você acha que eu não sei? — sua voz ficou mais alta. — Você<br />

roubou tudo de mim.<br />

— Eu te dei mais do que tirei, — ele olhou ao redor do quarto<br />

escuro, sua expressão suavizando enquanto seu sorriso desaparecia. —<br />

Se é algum consolo...<br />

— Não é, — ela estalou, o cortando quando lágrimas amargas<br />

escorreram dos seus olhos. Ela levantou a mão, as secando quando elas<br />

escorreram pelas bochechas. — Eu não sei o que vai acontecer comigo.<br />

— É por isso que eu estou aqui, — Lúcifer disse. — Eu quero te<br />

mostrar uma coisa.<br />

— Eu não estou interessada, então você pode ir.<br />

— Ah, você vai querer ver isso. Confie em mim.<br />

— Eu não confio em gente como você, — ela disse. — Eu fui<br />

estúpida por pensar que você era diferente. Você não é. Você não é nada<br />

além de...<br />

— Satanás, eu entendi, — ele disse, balançando a cabeça<br />

furiosamente. — Você soa como a porra de um disco quebrado. Você<br />

ainda acredita em si mesma? Você não tem que confiar em mim. Não<br />

tem que estar interessada. Mas você vai ver isso, queira ou não.<br />

Lúcifer adiantou na sua direção, tão rápido que seus sentidos<br />

diluídos não conseguiram acompanhar. Ele a atacou, a puxando contra<br />

ele, e aparatou os dois do quarto escuro no segundo em que ela tentou<br />

lutar contra. Eles apareceram na frente do jardim de uma casa no<br />

subúrbio, onde ele a soltou enquanto ela se debatia contra ele. Ela<br />

olhou ao redor, reconhecendo o lugar imediatamente, uma pitada de<br />

pânico crescendo dentro dela.<br />

A casa dos Lauer.<br />

Ela olhou para a casa modesta, uma luz suave brilhando das<br />

velas acesas no interior. A eletricidade havia sido cortada, assim como<br />

em quase todo o lugar da cidade. Apagões inesperados, eles disseram,<br />

causados por disparos da estação de energia. Eles estavam assim há<br />

quase uma semana agora, desde que Lúcifer havia se libertado.<br />

Não era coincidência.<br />

— Se você machucar essa família, então Deus me ajude...<br />

~ 135 ~


Ele bateu a mão sobre a boca dela por trás no momento em que<br />

as palavras foram ditas. — Não O evoque, — ele assobiou na sua orelha.<br />

Deus. — E eu não fiz nada com esses pequenos humanos enfadonhos.<br />

O que você acha que eu sou?<br />

— Um monstro, — ela murmurou contra a sua palma.<br />

Ele riu sombriamente. — Precisa ser um para reconhecer outro.<br />

Ele se recusou a soltá-la, a agarrando com mais força e a<br />

puxando contra ele, mas sua mão caiu da boca dela.<br />

— Por que nós estamos aqui? — ela exigiu.<br />

— Me fale sobre eles.<br />

Ela suspirou exasperada. — Os Lauers, Nicholas e Samantha.<br />

Eles têm uma filha chamada Nicki.<br />

— Você sente uma conexão especial com essa família.<br />

Não era uma pergunta. De alguma forma, ele sabia.<br />

— Três pessoas, mas ainda assim há quatro batimentos, —<br />

Lúcifer disse. — Por quê?<br />

Serah hesitou. — Samantha está grávida.<br />

— Há quanto tempo?<br />

Serah olhou para a casa, vendo sombras se mover do lado de<br />

dentro. Ela podia ouvir as risadas e brincadeiras infantis e percebeu<br />

que eles estavam tirando o melhor do apagão e brincando de escondeesconde<br />

em família.<br />

— Algumas semanas, — ela disse. — É um menino.<br />

— Cinco semanas e seis dias, para ser exato, — Lúcifer a corrigiu.<br />

— Curioso, não é? Eles estavam destinados a ter apenas uma criança.<br />

Mas ainda assim há outra, concebida na mesma tarde em que um raio<br />

cruzou o céu pela lâmina de fogo de Michael.<br />

Frieza varreu Serah e ela ficou tonta. Seu corpo pareceu<br />

desmoronar contra Lúcifer, seus braços a abraçando apertado quando<br />

uma única palavra escapou dos seus lábios. — Samuel.<br />

— Uma filha, cujo nome foi em homenagem ao pai, — ele disse. —<br />

E agora um filho, homenageando a mãe: Sam.<br />

~ 136 ~


— Meu irmão.<br />

— Não mais, — ele disse. — Ele é irmão dela agora.<br />

— Como? — ela sussurrou, sua visão nublando com as lágrimas.<br />

— Como pode ser?<br />

Suspirando, Lúcifer a puxou mais apertado conta ele, seus braços<br />

a envolvendo em um abraço forte e quente. Ele descansou o queixo no<br />

topo da sua cabeça. — Eu te disse, quando você cai, sua mortalidade é<br />

garantida. Mas o que eu não disse é que quando Michael arranca suas<br />

asas com a espada, as feridas são fatais. Um mortal não é páreo para a<br />

sua lâmina.<br />

Os joelhos de Serah ficaram fracos com as suas palavras. — Eu<br />

vou morrer?<br />

— Sim.<br />

Ela perdeu a batalha contra as lágrimas e então um soluço<br />

escapou do seu peito.<br />

— Samuel morreu livre de pecado, — Lúcifer disse. — Sua alma<br />

ganhou uma segunda chance. Um começo limpo.<br />

— Mas eu não.<br />

— Você não.<br />

Ela fechou os olhos, se fixando no suave batimento dentro da<br />

casa, uma vida apenas começando, o mundo ao alcance dos seus<br />

dedos.<br />

— Ele vai saber? — ela perguntou. — Ele vai saber quem é, o que<br />

ele era? Ele vai lembrar da sua outra vida? Ele vai lembrar de... mim?<br />

— A resposta curta? Não.<br />

Se não fosse pelo seu abraço forte, ela teria caído no chão.<br />

— Mas não é tudo preto no branco, — ele continuou. — Nada é.<br />

Quantas vezes eu preciso dizer? Ele não vai saber quem você é ou quem<br />

era para ele, ou quem ele era, mas cada vez que falarem o seu nome na<br />

frente dele, ele vai sentir um aperto no peito, uma familiaridade onde a<br />

alma dos dois estavam conectadas. E ele vai saber então – ele vai sentir<br />

– apenas não vai entender.<br />

Tomando uma respiração profunda para se recompor, Serah se<br />

afastou de Lúcifer e lentamente caminhou até a casa. Ela parou do lado<br />

~ 137 ~


de fora da janela que dava para a sala de estar e espiou. Apesar da<br />

escuridão, ela podia ver Nicholas e Samantha correndo pela sala,<br />

fingindo que não conseguiam ver Nicki, que estava escondida atrás de<br />

uma cortina. Serah levantou a mão e a pressionou contra o vidro frio,<br />

conjurando cada grama de energia que podia para recuperar a conexão,<br />

aquela que ela havia perdido desde o dia que Samuel caiu.<br />

Fechando os olhos, imagens passaram por ela rápida e<br />

freneticamente: um pequeno bebê tomando sua primeira respiração<br />

trêmula; uma criança de cabelos escuros com olhos brilhantes pintando<br />

uma parede em vez de uma folha de papel; um garoto indo para o<br />

jardim de infância pela primeira vez, um nome – Sammy – gravado na<br />

camisa polo azul-marinho do seu uniforme; um pré-adolescente<br />

esquisito tentando entrar no coral; um adolescente dedilhando sua<br />

guitarra nova que ganhou de Natal; um homem lindo formando uma<br />

banda com os amigos. Havia garotas, primeiros e segundos encontros,<br />

danças no Ensino Médio e um casamento. Havia uma longa vida, cheia<br />

de amigos e família, filhos e netos. Havia música e sucesso, amor e<br />

felicidade.<br />

A vida perfeita para Samuel.<br />

Serah abriu os olhos e se virou para Lúcifer. — Ele vai ficar bem.<br />

— Ele vai ficar mais do que bem.<br />

— Eu não.<br />

Ele a encarou, seus olhos marejados quando ele sussurrou, — Eu<br />

sinto muito, Serah.<br />

Serah. Ele nunca tinha lhe chamado pelo nome antes.<br />

— Eles têm um plano de saúde horrível, — ela murmurou.<br />

A risada de Lúcifer a surpreendeu. — É isso que te preocupa? Eu<br />

digo que você vai morrer, que Michael vai vir te matar, e você está<br />

preocupada com o plano de saúde dessa família? Inacreditável.<br />

Apesar da dor, ela conseguiu sorrir através das lágrimas<br />

enquanto dava outra olhada na casa. Uma responsabilidade era uma<br />

responsabilidade, não importava quão trivial parecesse.<br />

faria.<br />

— Você está levando isso muito melhor do que eu pensei que<br />

Ela suspirou. — Eu só posso culpar a mim mesma.<br />

~ 138 ~


— Você poderia culpar todo mundo, — ele disse. — Eu, Michael,<br />

até mesmo Samuel...<br />

— Eu poderia, mas é inútil, — ela disse. — Isso não vai mudar o<br />

meu destino. Além disso, como eu posso culpar eles, ou você, quando<br />

foi o meu livre arbítrio que fez isso?<br />

* * * * *<br />

Nas profundezas da floresta de uma parte remota da Europa, um<br />

castelo medieval estava vivo com atividades pela primeira vez em<br />

séculos. A meia dúzia de torres projetava cada uma dez luzes no céu, a<br />

estrutura de pedra flanqueada em todos os lados por um fosso enorme<br />

de lama tóxica. As centenas de quartos estavam cheios de figuras,<br />

algumas em sua forma normal, enquanto outras eram meras sombras<br />

monstruosas e massas dominadoras do mal solidificado.<br />

A grande sala de reuniões ocupava quase metade de todo o<br />

segundo andar da torre central, milhares de metros quadrados de<br />

mármore revestiam o piso, um tapete de veludo esfarrapado levava da<br />

porta de entrada a um magnífico trono em cima de uma plataforma. O<br />

trono dourado brilhava e reluzia sob a luz dos candelabros, o lugar<br />

ocupado outra vez por um rei.<br />

Desta vez, era o Rei do Inferno.<br />

Luce segurava uma pequena faca dourada e a girava a esmo em<br />

sua mão, correndo os dedos ao longo da lâmina afiada. Ele<br />

deliberadamente cortou sua palma, estremecendo quando sangue<br />

brotou da ferida, e observou com fascinação quando seu corpo o<br />

absorveu outra vez, a ferida se curando instantaneamente, a cicatriz<br />

desaparecendo em questão de segundos.<br />

Isso geralmente era uma merda, ser pego entre a mortalidade e a<br />

imortalidade, não ser totalmente humano nem o todo-poderoso Arcanjo,<br />

mas ele estava curtindo esse momento. Reminiscências da Graça de<br />

Serah ainda envolviam as suas células, derrubando as escalas de volta<br />

para sua metade sobrenatural e indestrutível.<br />

O demônio aos pés do trono sacudia ao falar sobre isso e aqui,<br />

mas Lúcifer não estava ouvindo nada. Legiões e confrontos,<br />

envenenamentos e infecções, desastres naturais e catástrofes<br />

ocasionadas pelo homem – tudo entrava por um ouvido e saía pelo<br />

outro enquanto ele se fixava na lâmina serrilhada. Tinha sido eras trás<br />

~ 139 ~


e levou uma semana inteira para que ele a rastreasse depois de ter se<br />

libertado. A lâmina, forjada com o mesmo material da espada de<br />

Michael, era seu único meio de proteção contra seu irmão.<br />

O demônio à sua frente continuou a falar sem parar. Todos<br />

sabiam que para estar em sua presença eles deveriam assumir sua<br />

forma humana, mas a escória perante ele não parecia ter entendido o<br />

recado. Sua forma continuava mudando, seu rosto de contorcendo de<br />

alguém desconhecido para algo saído de pesadelos.<br />

Isso inflamou a raiva de Luce.<br />

— Nukes, — Luce disse, interrompendo o idiota falante. — Você<br />

está sugerindo que eu lance bombas nucleares?<br />

— Bem, sim, — ele gaguejou. — Isso seria mais fácil, não? Se<br />

livrar deles todos com uma grande jogada.<br />

— E qual seria a vantagem? — Luce perguntou. — O que seria<br />

deixado para mim? Uma rocha radioativa com nada exceto um monte<br />

de anjos irritados e lixo como você?<br />

— Com todo o respeito...<br />

Antes que a criatura pudesse terminar, Luce girou o punho, sua<br />

faca dourada atravessando o aposento na velocidade da luz. Ela se<br />

cravou na garganta do demônio, cortando suas palavras. Ele foi tomado<br />

pelas chamas antes de explodir em fumaça negra, se desintegrando<br />

enquanto Luce balançava a cabeça, a faca voando de volta para ele. Ele<br />

a pegou no ar com a mão esquerda enquanto acenava com a direita<br />

para o próximo da fila. Dezenas esperavam para falar com ele, para vêlo,<br />

para ter a chance de ficar em sua presença e dizer seu nome.<br />

— ‗Com todo o respeito‘ é o jeito de um homem ignorante dizer ‗eu<br />

não tenho a porra de respeito nenhum por você‘. Se eu ouvir mais<br />

alguém dizer isso, vou fazer com que todos vocês se arrependam de ter<br />

aprendido a falar.<br />

Um após outro marcharam até ele, trazendo novidades,<br />

oferecendo sugestões. Ele ouviu algumas, ignorou outras, destruiu uns<br />

poucos, mas não levou ninguém muito a sério. Ele estava distraído, sua<br />

mente continuamente correndo para o anjo que o assombrava a cada<br />

momento. Os pensamentos nela alimentavam as suas frustrações.<br />

Ele não deveria dar a mínima, mas ela cavou um caminho por<br />

debaixo da sua pele. E agora ela estava metida em problemas – sérios<br />

~ 140 ~


problemas. Embora ela se culpasse, Luce sabia que era tudo por causa<br />

dele.<br />

Um demônio particularmente feio parou diante dele, falando<br />

sobre uma disputa injusta entre ele e alguns anjos. — Eles são muito<br />

fortes. Eles são muitos.<br />

Luce girou a lâmina na sua mão outra vez. — Você sabe porque<br />

eu escolhi esse castelo?<br />

A criatura hesitou. — Não.<br />

— No primeiro andar dessa torre há uma capela, — ele disse. —<br />

Esse trono está bem acima dela. Nenhum homem deveria se colocar<br />

acima de Deus. Quantas vezes nós já ouvimos isso?<br />

— Inúmeras.<br />

— E ainda assim, seja lá quem construiu esse lugar, literalmente<br />

se colocou acima de Deus. Em um tempo em que todos O temiam, esse<br />

rei sozinho ousou desafiar Suas regras, — Luce olhou ao redor do<br />

aposento, seus olhos caindo sobre cada um dos demônios. — Vocês<br />

acham que esse rei se sentou aqui e ficou reclamando que o inimigo era<br />

muito forte? Que chegar ao topo era impossível?<br />

O demônio balançou a cabeça. — Não, Meu Senhor.<br />

— Então por que você está fazendo isso? — Luce perguntou. —<br />

Um simples rei mortal é mais corajoso que nós?<br />

— Claro que não.<br />

— Então saia da minha frente e faça o que eu digo, — ele estalou.<br />

— Eu não estou te pedindo para ganhar a guerra. Só estou pedindo<br />

para que faça a sua parte!<br />

Luce se levantou quando o demônio tropeçou para fora da sala.<br />

Ele dispensou o próximo da fila com um aceno de mão e caminhou em<br />

direção à saída, deslizando a lâmina no seu bolso.<br />

— Onde você está indo, majestade?<br />

— Pensilvânia.<br />

você.<br />

— Tão perto de casa? É perigoso lá. Eles estão procurando por<br />

— Eu não sou um covarde, — ele latiu. — Eu não vou ficar aqui<br />

sentado com esse bando de idiotas, esperando eles aparecerem. Desde<br />

~ 141 ~


que vocês são imprestáveis no campo da defesa, o mínimo que eu posso<br />

ter é um ataque forte.<br />

* * * * *<br />

Foi fácil rastrear Serah dessa vez, ainda escondida na desolada<br />

cidade de Chorizon. Ela estava sentada no campo do Centro<br />

Comunitário vazio, os joelhos puxados contra o peito, a cabeça<br />

abaixada. Luce se aproximou em silêncio, vendo os olhos dela fechados,<br />

seu peito subindo e descendo enquanto ela respirava de forma estável.<br />

Ela não se moveu do seu lugar, não reagiu à sua chegada. Ele<br />

parou na frente dela, as sobrancelhas unidas. Ela estava dormindo? Ela<br />

tinha ido tão longe assim?<br />

— Eu posso sentir o seu cheiro, — ela sussurrou.<br />

— Olha, olha... parece que o jogo virou.<br />

Ela abriu os olhos e o estudou. Sua pele estava corada, os olhos<br />

inchados e vermelhos de chorar. Ela parecia mais humana hoje.<br />

Luce não tinha certeza do que dizer. Ele se desculpou, seu<br />

arrependimento sincero. Ele não lamentava o que fez, mas sim ter sido<br />

obrigado a fazê-lo. Ela foi uma infeliz vítima de guerra, um meio para<br />

um fim. Simplesmente não podia ser evitado. Ela era seu caminho para<br />

fora do buraco. Isso acontecia o tempo todo, inocentes morriam. Ele viu<br />

muitos anjos caírem, alguns que ele havia considerado amigos em outra<br />

época, mas o pensamento desse sangrando até a morte aos seus pés<br />

despertou algo dentro dele: algo vingativo, algo perigoso. Algo que ele<br />

mal conseguia segurar.<br />

— Dance comigo, — ele disse, estendendo a mão.<br />

Serah o encarou. — Não há música.<br />

Ele estalou os dedos, a mão ainda estendida. A sala foi<br />

imediatamente preenchida com uma música clássica suave. — Agora<br />

dance comigo.<br />

— Por quê?<br />

— Porque há música, — ele disse. — Porque haveria música se<br />

não fosse para nós dançarmos?<br />

~ 142 ~


Ela não respondeu sua pergunta absurda, mas deu a ele a mão,<br />

que a puxou para ficar de pé. Ele envolveu seus braços ao redor dela,<br />

balançando-os ao ritmo da música enquanto ela descansava a cabeça<br />

no seu peito.<br />

— Eu não quero a sua pena, — ela disse. — Eu não preciso que<br />

você venha até aqui para ser a minha babá.<br />

Apesar de tudo, Luce riu disso. Mesmo que sua Graça tivesse<br />

caído, o fogo dentro dela queimava forte, sempre resoluto.<br />

— Eu não tenho mais pena de você do que você tem de mim, —<br />

ele disse. — Francamente, eu estava apenas entediado e você é uma<br />

companhia meio que decente.<br />

— Obrigada, — ela grunhiu. — O Apocalipse não está te<br />

entretendo o bastante?<br />

— Nah, — ele descansou a cabeça em cima da dela. — Está sendo<br />

um pouco decepcionante até agora. Eu esperei por esse momento por<br />

eras, e não havia nenhuma festa surpresa em minha honra. Ninguém<br />

parece interessado em celebrar a minha chegada. Acho que ninguém<br />

sentiu minha falta por aqui.<br />

Ela se afastou um pouco para olhar para ele. — Difícil de<br />

acreditar, sendo você a alma da festa e tudo mais.<br />

Ele sorriu. — Eles apenas não sabem o que estão perdendo.<br />

Antes que ela pudesse responder, a sala começou a tremer, a<br />

música sendo interrompida pelo rugido do vento.<br />

— Ou... talvez eles saibam, — Luce murmurou, se virando<br />

rapidamente. Ele empurrou Serah atrás dele, a protegendo quando<br />

meia dúzia de anjos se materializou no aposento. Ele os estudou,<br />

avaliando-os rapidamente. Todos Potestades, alguns dos melhores<br />

guerreiros de Michael, com base nos seus tamanhos. — Ah, vocês<br />

devem ser o comitê de boas-vindas.<br />

— Vamos lá, Satanás! — um deles exigiu. — Volte para a sua<br />

jaula!<br />

— E por que eu faria uma coisa dessas? — Luce perguntou,<br />

levantando as sobrancelhas. — Eu acabei de chegar aqui.<br />

— Você não é bem-vindo na Terra.<br />

~ 143 ~


— Então vocês são o comitê de não boas-vindas, — ele disse com<br />

indiferença. — Patrulha da vizinhança, talvez?<br />

— Nós somos Anjos do Senhor e...<br />

— Sim, sim, sim, — Luce disse, o cortando. — Desculpem,<br />

cavalheiros, mas vai precisar de muito mais que algumas Potestades<br />

para me trancar novamente. Então se poupem do trabalho e voltem<br />

para casa antes que vocês se machuquem.<br />

— Nós não temos medo de você, serpente.<br />

— Eu não vou avisar de novo. Deem o fora daqui, ou eu vou ser<br />

forçado a acabar com vocês na frente dessa linda criatura, — Luce<br />

apontou atrás dele para Serah, que espiou através dele, medo em seus<br />

olhos enquanto ela encarava os anjos. — E eu preferiria que ela não<br />

visse isso.<br />

— Nós exigimos que você deixe esse lugar! Você e essa traidora!<br />

Lúcifer balançou lentamente a cabeça, a raiva endurecendo seu<br />

rosto. — Vocês são os únicos que vão desocupar essas instalações hoje.<br />

Em um piscar de olhos, Luce alcançou seu bolso e puxou a faca<br />

dourada. Com um girar do punho, ela voou através da sala e cravou<br />

diretamente entre os olhos de um anjo antes que qualquer um deles<br />

tivesse tempo de reagir. O anjo piscou, sua forma mudando<br />

rapidamente entre os planos, como se estivesse ligado a uns cabos,<br />

lutando pela recepção de energia.<br />

— Proteja os olhos, anjo, — ele gritou, se abaixando quando a<br />

Potestade explodiu em uma queima de luz ardente. Luce se lançou pela<br />

sala, pegando a faca antes que ela caísse no chão, e se virou, cortando a<br />

garganta de outro anjo. A lâmina serrilhada rasgou a carne quando<br />

Luce a empurrou profundamente, quase o decapitando.<br />

Outra explosão de luz fez a sala tremer enquanto os últimos<br />

quatro anjos voaram para Luce. Ele lutou contra o ataque,<br />

violentamente se debatendo ao redor e cortando pele, acertando-os onde<br />

quer que pudesse acertar. Um dos anjos puxou uma pequena espada e<br />

a balançou contra Luce, mas não foi rápido o bastante. Luce desviou,<br />

enterrando sua faca na coxa de outro anjo, usando a distração para<br />

pegar o punho da espada celestial. Ele torceu o braço do anjo e<br />

empurrou a lâmina no seu estômago enquanto pegava sua própria faca<br />

com a mão livre, esfaqueando outro no peito.<br />

~ 144 ~


As explosões se seguiram, uma após a outra, os anjos<br />

desaparecendo quando suas Graças explodiam para fora do peito. Luce<br />

se endireitou de pé, uma espada na mão, sua faca na outra, e se virou<br />

para o último anjo. A Potestade permaneceu imóvel, os olhos<br />

estreitados, não fazendo nenhum movimento para atacar.<br />

— Você pode escolher, — Luce disse, levantando as armas. — Vai<br />

perecer pela espada do seu irmão ou pela faca do seu inimigo?<br />

Nenhuma resposta veio. O anjo desapareceu da sala<br />

imediatamente, escapando ileso. Luce balançou a cabeça enquanto<br />

gritava para o espaço vazio na sua frente. — Essa não era uma das<br />

opções, seu covarde do caralho!<br />

Ele derrubou a espada e se virou, deslizando a faca no bolso<br />

enquanto encarava Serah. Ela estava agachada contra uma parede, o<br />

encarando em choque, mas o medo tinha ido embora. — Você os matou.<br />

— Sim, — ele disse. — Eu sei que eles são a sua família e tudo<br />

mais, mas era eu ou eles, então eu vou alegar legítima defesa... ou<br />

insanidade. Os dois funcionam para mim, eu acho.<br />

— Eu sei, — ela disse. — Mas você os matou, todos eles. Sozinho.<br />

Ele se agachou na frente dela. — Eu já disse, vocês, Potestades,<br />

são um em um milhão. São uma força a ser reconhecida contra os<br />

meus capangas, capazes de acabar com milhares de demônios sem nem<br />

suar, mas não são páreo para mim. Apenas um é.<br />

Michael.<br />

— Anjos não suam, — ela o lembrou.<br />

Ele estendeu a mão, cobrindo a sua bochecha, sentindo a<br />

umidade da sua pele. — Você está suando.<br />

— Como eu disse, — ela sussurrou, — anjos não suam.<br />

Ele suspirou. — Quem disse o que anjos podem ou não fazer,<br />

afinal? É como dizer que os maus não podem sentir remorso, ou que<br />

pessoas virtuosas não matam.<br />

— Elas não matam.<br />

— Michael mata.<br />

— Michael só mata os maus.<br />

— Não importa, ele mata.<br />

~ 145 ~


Seus lábios se separaram como se ela estivesse planejando<br />

argumentar, mas nenhuma palavra saiu.<br />

— Nem tudo é preto no branco, — ele disse. — Se fosse, eu não<br />

estaria aqui agora, nem você. Nós estamos na zona cinzenta, anjo. Nós<br />

somos os pedaços do quebra-cabeças com os quais eles não sabem o<br />

que fazer, os pedaços que não se ajustam muito bem na sua pequena<br />

imagem perfeita, então eles escolhem nos descartar para manter sua<br />

imagem imaculada, mas só podemos ser ignorados por um tempo.<br />

Porque, eventualmente, eles queiram admitir ou não, todo seu preto e<br />

branco vai sangrar junto, de qualquer maneira.<br />

* * * * *<br />

— Pare com isso, — Serah implorou pela vigésima vez, sentada no<br />

balanço do meio do parquinho deserto, a parte inferior do seu vestido<br />

imundo arrastando no chão. Seis semanas se passaram desde que<br />

ganhou sua tarefa, e ela não estava mais perto de ter sucesso do que<br />

estava no começo de tudo. — Por favor.<br />

Lúcifer deu um passo à frente quando Serah estremeceu<br />

violentamente. — Eu não posso.<br />

— Você precisa, — ela insistiu. — Já foi longe demais.<br />

O céu vermelho e negro se agitou, gotas de chuva ácida caindo<br />

nos dois.<br />

— Lúcifer, eles vão...<br />

Eles vão te destruir. Por que isso fazia seu peito doer, seu coração<br />

apertar com força?<br />

Ele a interrompeu. — Eu sei.<br />

— Você não pode ganhar.<br />

— Eu sei disso, também.<br />

isso?<br />

— Então por quê? — ela perguntou. — Por que você está fazendo<br />

Ele deu mais um passo na sua direção, suas mãos agarrando as<br />

correntes do balanço. Se inclinando, ele pressionou sua testa contra a<br />

dela e a olhou nos olhos. Depois de um momento, ele deixou escapar<br />

~ 146 ~


um suspiro profundo e bateu os lábios nos dela, a beijando<br />

suavemente.<br />

— Eu tenho que tentar, — ele murmurou, — por você.<br />

— Não, — ela implorou. — Já chega. Por favor.<br />

Lúcifer franziu o cenho e se afastou dela. — Você não entende o<br />

que está pedindo. Você quer que eu apenas volte para aquele buraco? E<br />

então o quê? Hm?<br />

— Então as coisas vão voltar ao normal.<br />

Nem mesmo Serah acreditava nessas palavras, e Lúcifer não a<br />

deixou que ela persistisse nisso. — Que besteira. O que você acha que<br />

vai acontecer com você? Michael vai querer punir alguém. Se eu recuar,<br />

adivinhe quem vai receber toda a força da sua raiva? Você, anjo.<br />

Ninguém além de você.<br />

— Está tudo bem, — ela sussurrou, sua voz estremecendo. — Eu<br />

vou ser punida, independentemente disso. Eu vou morrer de qualquer<br />

maneira.<br />

isso?<br />

Ele estreitou os olhos. — Como você pode ser tão casual sobre<br />

— Eu não temo a morte, — ela disse. — Ela não é o fim. É apenas<br />

outro começo.<br />

— Você é irritante, — ele rosnou. — Completamente<br />

enlouquecedora.<br />

Apesar da situação, Serah sorriu disso. Ela se lembrou de um<br />

tempo não muito distante em que disse essas mesmas palavras sobre<br />

ele. O que tinha mudado?<br />

— Eu acho que você é a minha maçã, — ela disse baixinho. — Eu<br />

não me arrependo de provar você. Eu não posso. Você não é perfeito de<br />

muitas maneiras – há outras mais doces por aí, e você tem alguns<br />

pedaços podres – mas eu nunca acharia uma maçã mais saborosa em<br />

qualquer lugar do mundo.<br />

Ele suspirou, o som pesado com a derrota, mas sua expressão<br />

permaneceu inabalada. — Eu não abaixar o rabo e fugir como uma<br />

vadia. Não é assim que essa história termina.<br />

— Ela termina com você perdendo.<br />

~ 147 ~


— Eu desafiei o destino uma vez. Quem disse que não posso fazer<br />

de novo? — ele se virou para ela, levantando as mãos quando seus<br />

dentes começaram a bater, o frio penetrando nos seus ossos. A chuva<br />

estava caindo com mais força, ensopando o vestido de Serah. — Vamos<br />

lá. Vamos sair da chuva.<br />

Ela se esticou e pegou a sua mão. No momento em que a agarrou,<br />

ele a puxou para os seus pés e os dois aparataram para longe do<br />

parque. Eles apareceram no meio de uma casa nas proximidades, calma<br />

e silenciosa, nem um traço de luz em lugar algum. Lúcifer a soltou e<br />

estalou os dedos, e uma lareira ao longo da se acendeu rapidamente. O<br />

calor laranja e brilhante iluminou a sala. Serah olhou ao redor, vendo<br />

uma grande cama coberta por um edredom azul claro.<br />

— Um quarto? — ela disse divertida, passando a mão pelas<br />

cobertas, sentindo a suavidade sob seus dedos. — Você nem vai me<br />

pagar um jantar primeiro?<br />

— Nah, não há nenhum ponto nisso, — ele disse, a voz leve,<br />

quase provocando. — Você sabe, considerando que você já deu para<br />

mim antes mesmo do primeiro encontro.<br />

A cabeça dela virou na sua direção, os olhos estreitados enviando<br />

adagas para ele, mas sua irritação não durou. No momento em que viu<br />

sua expressão – seu sorriso com covinhas, as linhas de risada ao redor<br />

dos seus olhos, que brilhavam em puro azul nesse momento – ela<br />

derreteu com facilidade. — Você é muito convencido.<br />

Ele abriu a boca para responder na hora, uma gargalhada saindo<br />

no lugar. — Sem comentários.<br />

Revirando os olhos, Serah virou de costas para ele, focando de<br />

novo na cama. O calor da lareira a tomou enquanto ela caminhava pelo<br />

quarto, a aquecendo, arrepios correndo pela sua pele. — Por que eu? —<br />

ela murmurou. — Entre todos no mundo...<br />

— Você é feroz, — Lúcifer disse. — Você é teimosa e persistente e<br />

exasperante.<br />

— Isso não parecem elogios.<br />

— São, vindos de mim.<br />

— Bem, obrigada, — ela disse, parando perto dele.<br />

— Você também é corajosa, — ele disse, dando um passo para<br />

ela. Ele correu os dedos pelo seu cabelo, colocando uma mecha atrás da<br />

~ 148 ~


orelha. Seus dedos passaram pela sua mandíbula, correndo pelo<br />

pescoço e pelo seu decote. — Você tem a coragem de ficar aqui parada<br />

na minha frente.<br />

— Você não me assusta, — ela disse. — Você é um pouco idiota, e<br />

completamente egoísta, para não mencionar o excesso de confiança.<br />

— Obrigado.<br />

— Isso não são elogios, — ela disse. — Mas apesar de tudo, eu sei<br />

que você não vai me machucar.<br />

Ele sorriu, se inclinando, seus lábios perto da sua orelha quando<br />

ele sussurrou, — Quem está com excesso de confiança agora, anjo?<br />

Serah estremeceu quando ele beijou suavemente o ponto sensível<br />

abaixo da sua orelha, seus lábios correndo pelo pescoço dela. Ele<br />

alcançou a junção entre o pescoço e o ombro, seus dentes mordicando a<br />

carne macia. Um grito de surpresa escapou da sua garganta com a<br />

pontada repentina, a dor acordando seus sentidos. Ela correu as mãos<br />

pelas costas dele, por debaixo da camisa, sentindo os músculos<br />

esculpidos e as sutis elevações em suas omoplatas por causa das asas.<br />

Seu corpo estremeceu quando os dedos dela arranharam levemente sua<br />

pele.<br />

Seus lábios se encontraram quando Lúcifer agarrou suas coxas,<br />

puxando suas pernas ao redor da sua cintura. Serah o agarrou com<br />

força, se apertando em volta dele, enquanto brincava com o cabelo<br />

macio na sua nuca. Gemidos suaves escapavam do seu peito enquanto<br />

ele a colocava na cama, sua boca nunca deixando a dela enquanto<br />

subia sobre Serah.<br />

Eles tiraram as roupas lentamente, cuidadosamente, sem pressa<br />

de chegar a algum lugar, sem pressa de acabar. Ela se deitou na cama<br />

enquanto Lúcifer beijava com cuidado cada centímetro do seu corpo, a<br />

provocando, provando sua carne. Suas pernas tremeram, seu corpo se<br />

debateu quando a boca dele encontrou o ápice entre as suas coxas. Ela<br />

gritou o seu nome, agarrando com força mechas do seu cabelo<br />

enquanto arqueava as costas. Um formigamento disparou pelo seu<br />

corpo enquanto a pressão crescia dentro dela, começando no seu peito e<br />

descendo até os dedos dos pés. Ela fechou os olhos, se perdendo nas<br />

sensações enquanto era montada, ficando sem fôlego. Seu corpo<br />

aqueceu, ficando cada vez mais quente, até que ela sentiu que podia<br />

explodir em um milhão de pedacinhos. A língua dele, macia e quente,<br />

gentil e frenética, estava lhe levando cada vez mais perto da loucura<br />

absoluta.<br />

~ 149 ~


Ela agarrou os lençóis da cama, incapaz de aguantar a pressão,<br />

seus olhos se abrindo quando ela estava perto de explodir. Sua<br />

respiração ficou presa, um grito rasgou sua garganta quando ela olhou<br />

para baixo para seu corpo nu. A pele dela reluzia laranja, tão brilhante<br />

e radiante quanto o sol. A visão a pegou de surpresa, choque batendo<br />

as sensações de volta para dentro dela. Ela se afastou de Lúcifer e<br />

sentou, se curvando enquanto o encarava, os olhos arregalados. — O<br />

que foi isso?<br />

Ele levantou as sobrancelhas, sua expressão se torcendo com<br />

diversão. — Acho que os seus mortais chamam de sexo oral.<br />

— Eu sei disso, — ela estalou. — Eu sei o que é cunilingus. Eu<br />

estou falando do brilho.<br />

Lúcifer riu, agarrando as suas pernas e a puxando na sua direção<br />

outra vez. Sua pele estava de volta ao normal, um leve rubor a<br />

marcando. — Isso foi você se soltando, — ele disse, pairando sobre ela.<br />

Ele se inclinou para baixo, beijando castamente seus lábios. — Foi bom,<br />

não é?<br />

Ela sorriu timidamente. Foi.<br />

Ele beijou seu pescoço, mordiscando a pele enquanto empurrava<br />

suas pernas. Sem hesitar, sem vacilar, ele deslizou dentro dela, os dois<br />

se unindo sinuosamente como se sempre tivessem pertencido um ao<br />

outro. Foi diferente dessa vez, mais sensual, mais sedutor, menos<br />

apressado. Cada empurrão era deliberado, cada respiração medida,<br />

cada gemido e grunhido e ofego, firmes. Eles tinham se perdido em<br />

abandono da última vez, se afogando nas águas profundas da luxúria,<br />

enquanto flutuavam em algo muito, muito mais profundo agora.<br />

Amor proibido.<br />

As horas desapareceram em uma névoa úmida, palavras<br />

murmuradas entre beijos, gritos abafados pela carne, enquanto um<br />

orgasmo atrás do outro abalava os amantes. Lúcifer parou,<br />

eventualmente, ainda dentro dela, enquanto Serah respirava<br />

pesadamente contra o seu peito. As chamas ainda se agitavam na<br />

lareira, mas o quarto ficou significativamente mais escuro com o tempo.<br />

O mundo lá fora estava sendo banhando pelas sombras, chuva<br />

torrencial batendo contra o teto enquanto o céu ficava mais vermelho,<br />

se espalhando como o sangue que escorre para fora e escorre pelo<br />

assoalho de madeira.<br />

— Eu tenho que ir, — Lúcifer sussurrou, beijando o seu peito.<br />

~ 150 ~


— Não.<br />

— Eu preciso, — ele disse. — Está quase na hora.<br />

Ele saiu de dentro dela, se sentando para trás em seus joelhos,<br />

seus olhos correndo pelo corpo nu dela lenta e conscientemente. No<br />

momento em que seu olhar encontrou o de Serah outra vez, o azul<br />

havia desaparecido, a escuridão rastejando de volta para a sua alma.<br />

Serah se levantou e se vestiu, depois caminhou lentamente até a<br />

janela e olhou para fora.<br />

— Venha comigo, — Lúcifer disse, parando atrás dela. — Lute<br />

comigo.<br />

— Eu não posso, — ela disse. — Eu não posso lutar, assim como<br />

você não pode parar.<br />

voz.<br />

— Por quê? — ele pressionou, desespero se arrastando na sua<br />

— Porque essa não sou eu, — ela disse. — Eu ainda acredito.<br />

Ainda tenho esperança no mundo, e por tudo e todos nele. Eu olho pela<br />

janela, e em vez de ver feiura – em vez de ver escuridão – eu vejo dentesde-leão<br />

amarelos crescendo mais uma vez na rachadura do concreto do<br />

outro lado da rua.<br />

— Mas essas pessoas... esses mortais...<br />

— Eu passei toda a minha existência cuidando das crianças,<br />

tentando manter o mal longe delas. Eu olho para as crianças e vejo sua<br />

bondade inerente, sua inocência e compaixão. Elas nasceram assim.<br />

Elas só mudam, só dão as costas para o mundo, quando o mundo dá as<br />

costas para elas, — ela se virou, o encarando. Ficando na ponta dos<br />

pés, ela pressionou um beijo suave nos lábios dele. — Eu vejo beleza e<br />

bondade em tudo, até mesmo em você, Luce. E enquanto isso estiver lá,<br />

eu nunca vou poder me afastar.<br />

* * * * *<br />

Luce estava no alto das Montanhas de Eilat, em Israel. O arenito<br />

debaixo de seus pés havia mudado desde a última vez que ele pisou<br />

nesta região, a areia marrom-amarelada delicada se transformando em<br />

~ 151 ~


um tom escuro macabro, fluindo pelo lado da montanha como se<br />

tivessem espalhado um balde de tinta preta.<br />

Ao longe ele podia ver o Mar Vermelho, o vermelho carmesim<br />

brilhando na noite como se fosse o sangue de milhares sendo<br />

derramado pela terra e drenado pela água, a contaminando. Anjos e<br />

demônios batalhando ferozmente ao longo do sopé da montanha e em<br />

direção ao litoral, cada um deles com objetivos opostos.<br />

Os demônios, libertados para destruir a humanidade. Os anjos,<br />

que juraram defendê-la.<br />

Através do caos, houve um pequeno tempo em que os anjos se<br />

focaram em encontrar Luce, o que lhe deu uma vantagem momentânea.<br />

Ele observou de longe, aproveitando em deleite o Inferno finalmente<br />

reinar sobre a Terra.<br />

Luce tinha conseguido até agora ficar dois passos a frente do seu<br />

irmão, mas era apenas uma questão de tempo antes que Michael o<br />

pegasse. Esse era um confronto que Luce esteve esperando desde<br />

sempre, ao que parecia. E dessa vez, ele jurou, Michael não levaria a<br />

melhor. Ele tinha sido contaminado pelo orgulho em seu primeiro<br />

encontro e subestimou a força do seu irmão e a pura determinação do<br />

seu Pai. Isso não iria acontecer novamente. Agora ele tinha sido<br />

preenchido com algo muito mais poderoso – algo mais profundo, mais<br />

atraente: ódio.<br />

A única coisa que o anjo escuro tinha pensando ao longo dos<br />

anos mais do que ele mesmo e seus desejos egoístas e materialistas, era<br />

em se vingar do seu irmão. Ele o jogaria no lago de fogo e o trancaria<br />

em uma jaula pela eternidade, sem demonstrar um pingo de<br />

arrependimento.<br />

Nem que fosse a última coisa que ele fizesse, ele iria acabar com<br />

Michael, de um jeito ou de outro.<br />

— Meu Senhor...<br />

Luce não se virou ao ouvir a voz de Lire. Seus olhos<br />

permaneceram totalmente focados na batalha à sua frente. Seus<br />

capangas não eram páreo para os anjos – exceto por algumas armas<br />

celestiais que eles conseguiram roubar e contrabandear ao longo dos<br />

anos, os anjos eram invencíveis ao toque dos demônios. Somente Luce<br />

tinha o poder para massacrar a sua espécie, mas esse não era o<br />

objetivo. Ele queria destruir apenas um, e destruindo esse, esperava<br />

que os demais caíssem como peças de dominó.<br />

~ 152 ~


Uma casa só é firme na base.<br />

— Meu Senhor, eles estão se aproximando...<br />

Ele podia sentir os anjos cercando a área, tentando proteger a<br />

terra sagrada, limpar a bagunça. Fazia apenas um pouco mais de uma<br />

semana que ele tinha escapado e o mundo já estava em caos, os selos 15<br />

estalando abertos um a um, liberando a anarquia no solo de Deus. Os<br />

Cavaleiros do Apocalipse já tinham deixado as suas celas, levando<br />

destruição em massa aonde iam.<br />

— Meu Senhor, por favor. Você deve ir antes que...<br />

Tarde demais.<br />

Um violento raio sacudiu a montanha, derrubando partes dela ao<br />

redor dos pés de Luce. Ele não estremeceu, não se moveu um<br />

centímetro quando o demônio foi interrompido no meio da sua frase,<br />

um grito nauseante ecoando da sua garganta. O cheio pútrido<br />

imediatamente invadiu seu corpo, tão concentrado no ar ao seu redor<br />

que o rosto de Luce se contorceu. Lentamente ele se virou, seus olhos<br />

vermelhos se encontrando com os azuis de Michael. A espada de fogo<br />

enviava um brilho ofuscante ao rosto de Luce enquanto seu irmão a<br />

segurava, Lire empalado ao fim dela.<br />

Os olhos de Michael nunca deixaram Luce enquanto ele puxava a<br />

espada para fora do demônio, o fazendo explodir em uma mistura de<br />

fogo e fumaça preta. Ele endireitou o corpo então, apontando para Luce<br />

com a lâmina. — Satanás.<br />

— Príncipe, — Luce inclinou a cabeça casualmente em saudação.<br />

— Há quanto tempo? Seis, sete mil anos?<br />

— Não foi o suficiente.<br />

— Eu senti sua falta também, irmãozinho.<br />

Michael deu um passo à frente, a ponta da sua espada a apenas<br />

alguns centímetros do peito de Luce. — Eu não sou seu irmão.<br />

— Você tem todo o direito de pensar isso, mas isso não muda o<br />

fato de que você é.<br />

Em um piscar de olhos, Michael empurrou a espada para frente<br />

para atravessar Luce, mas não foi rápido o bastante. Luce desviou para<br />

15 É uma referência aos selos que se abrem desencadeando eventos que preconizam a<br />

chegada dos Cavaleiros do Apocalipse.<br />

~ 153 ~


o lado, agarrando ao mesmo tempo o braço do seu irmão e o punho da<br />

espada, violentamente o empurrando para frente. Ele jogou Michael<br />

direto pelo lado da montanha, sem hesitar um momento antes de pular<br />

atrás dele. As asas de Michael se abriram, o parando no ar, mas Luce o<br />

alcançou antes que ele pudesse voar. A força da colisão fez com que os<br />

dois caíssem no chão, lutando por controle. Michael balançou a espada,<br />

tentando atravessar Luce com a lâmina ardente, mas a força de Luce se<br />

igualava a dele. Raiva brotou debaixo da sua pele, pura adrenalina<br />

correndo por ele, se misturando com o sangue em seu sistema e o<br />

incendiando. Ele lutou com tudo que tinha, agarrando e arranhando,<br />

tentando pôr as mãos na espada celestial.<br />

Os dois bateram no chão com força, a terra abaixo deles cedendo.<br />

Anos e demônios próximos foram pegos no meio da batalha, caindo no<br />

cânion que foi criado com a força do impacto. A água do Mar Vermelho<br />

veio em correnteza, preenchendo a fissura, o vermelho sujo os cobrindo.<br />

As chamas da espada se extinguiram momentaneamente, reacendendo<br />

quando Michael se empurrou para longe de Luce e a levantou, um raio<br />

explodindo no céu.<br />

— Desista, — Michael estalou. — Volte para o Inferno.<br />

Um sorriso lento se espalhou pelos lábios de Luce. — Eu ainda<br />

estou lá. Eu apenas trouxe você até ele.<br />

Michael se lançou sobre ele, os dois lutando debaixo da água,<br />

batalhando pelo controle novamente. Luce puxou sua faca dourada e<br />

atacou Michael, cortando suas roupas, mas não conseguiu acertar a<br />

pele. Uma batalha após a outra se seguiu, os dois presos em um teste<br />

de vontades e forças. Assim que um ganhava alguma vantagem – a<br />

chance de enfiar a lâmina no peito do outro, de aniquilar a força de vida<br />

dentro dele – o outro queimava sua força e o jogo virava.<br />

Os dois eram igualmente habilidosos, igualmente dirigidos por<br />

suas motivações.<br />

Uma batalha que tinha durado apenas algumas horas da primeira<br />

vez – a batalha entre dois irmãos, dois Arcanjos: um era escuridão, o<br />

outro luz – continuou sem parar por dias. Não havia final à vista,<br />

nenhum dos dois dispostos a desistir, enquanto a batalha maior<br />

continuava ao redor deles. Incontáveis humanos foram abatidos, alguns<br />

pelos demônios, outros pelos anjos, que exorcizavam os maus espíritos<br />

dos seus corpos através da força física. Através de tudo isso, o poder de<br />

Luce prosperou, cada vítima inocente provocando algo dentro dele, o<br />

monstro crescendo e assumindo o controle.<br />

~ 154 ~


Michael finalmente conseguiu empurrar Luce para longe, o<br />

enviando a alguns metros de distância e direto contra outro anjo. O<br />

anjo tentou pôr as mãos em Luce, mas ele o apunhalou com a faca<br />

dourada antes que isso acontecesse. Uma grande explosão ocorreu<br />

quando a Graça saiu do seu peito, cobrindo brevemente Luce como se<br />

fosse um cobertor.<br />

Ele fechou os olhos, aproveitando a sensação. Ah, como ele amava<br />

essa sensação...<br />

— Eu te exorcizo, ó Criatura da Água, por Aquele que te criou...<br />

Luce abriu os olhos, olhando para Michael instantaneamente. —<br />

Água benta? Sério?<br />

— ...e nos reuniremos juntos em um só lugar para que a terra<br />

seca apareça, para que descubras todos os enganos no Inimigo, e para<br />

que sejam expulsas todas as impurezas...<br />

— Isso não vai funcionar, — Luce estalou. — Caso você não tenha<br />

notado, Príncipe, o seu mar está envenenando com sangue. Não é mais<br />

água.<br />

Michael parou sua benção. Ele pairou a mão livre sobre a<br />

superfície da água, um brilho emanando dele e se espalhando pelo mar<br />

ao seu redor. O vermelho espesso cedeu, clareando até o ponto de ser<br />

azul cristalino.<br />

Uma risada amarga rasgou o peito de Luce. Ele estreitou os olhos,<br />

a raiva correndo por seu corpo. O mar ao seu redor se mexeu e<br />

começou a borbulhar, engrossando e fervendo enquanto vapor subia na<br />

direção do céu. Assim que Michael purificou uma parte, Luce a<br />

transformou de volta na lama contaminada.<br />

— Você tirou tudo de mim, — Luce fervia. — Então agora, eu vou<br />

tirar tudo de você. Sua terra, seu mar, seus humanos... sua amante.<br />

Pela primeira vez em sua existência, os olhos de Michael se<br />

nublaram com raiva, escurecendo como tinta. Luce ficou parado<br />

imponente de pé, as sobrancelhas se levantando em desafio enquanto<br />

ele sorria provocativamente.<br />

Estamos no jogo, seu filho da puta.<br />

Ele esperou que seu irmão o atacasse de novo para acalmar sua<br />

raiva e sucumbir à vingança, superando os seus pecados, mas os olhos<br />

dele se iluminaram quase que imediatamente.<br />

~ 155 ~


Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Michael sumiu de<br />

vista.<br />

Chocado, Luce olhou para a água vazia na sua frente, se<br />

esforçando para sentir Michael na atmosfera. Era fraco, mas ele podia<br />

sentir seu irmão se afastando, ainda dentro da Terra.<br />

Luce o seguiu imediatamente. Assim que ele se materializou na<br />

frente de Michael, Michael desapareceu de novo com um estalo de<br />

eletricidade. Luce continuou a segui-lo, o perseguindo de um lugar para<br />

outro, mal conseguindo um vislumbre antes que ele partisse para outro<br />

lugar. Confusão correu por Luce enquanto ele tentava dar algum<br />

sentido para o ato aparentemente covarde do seu irmão – correndo do<br />

inimigo, evitando o confronto – quando ele aparatou em um lugar que<br />

respondeu tudo.<br />

Chorizon.<br />

* * * * *<br />

Serah aproveitou o ar gelado, passeando tranquilamente do lado<br />

de fora do Centro Comunitário abandonado. O céu negro se agitou, as<br />

nuvens vermelhas mais espessas que antes, mais imponentes. Estava<br />

piorando, ela sabia. O mundo estava morrendo ao seu redor e ela não<br />

podia fazer nada para detê-lo.<br />

Ela pisou na rua, indo na direção do parquinho, quando um alto<br />

estalo de eletricidade veio detrás dela.<br />

— Luce... — ela se virou, parando na metade da declaração<br />

quando seus olhos caíram sobre o brilho da espada de fogo. — Michael.<br />

Ele se lançou sobre ela, sua expressão dura enquanto balançava<br />

a espada. Ela instantaneamente recuou alguns passos, seu coração<br />

parando algumas batidas enquanto ela olhava a lâmina mortal.<br />

— Eu, hm...<br />

— Não fale nada, — ele ordenou, andando na sua direção quando<br />

ela recuou mais. — Nada do que disser vai absolver a sua<br />

responsabilidade. Você se envergonhou. Você envergonhou o mundo.<br />

Você me envergonhou. E por isso, você deve ser punida.<br />

~ 156 ~


Outro estalo ecoou na rua. Os olhos de Serah correram nessa<br />

direção, seu olhar caindo sobre Lúcifer. Antes que ela pudesse olhar<br />

novamente para Michael, em pânico, ela foi subjugada, violentamente<br />

jogada no asfalto duro. O pé de Michael bateu no seu peito, tirando o ar<br />

dos seus pulmões. Ela ofegou, as lágrimas escorrendo dos seus olhos,<br />

quando a lâmina da espada pressionou contra a sua garganta. Ela<br />

engoliu em seco, sentindo que a pele estava quase sendo rasgada.<br />

— Você veio olhar, Satanás? — o olhar de Michael continuou em<br />

Serah enquanto ele falava com seu irmão. — Veio se beneficiar do brilho<br />

da sua Graça pela última vez?<br />

— E eles dizem que eu sou cruel, — Lúcifer disse. — Você deveria<br />

ser piedoso ao arrancar as suas asas.<br />

— Ah, eu não tenho a intenção de arrancar as asas dela, —<br />

Michael disse.<br />

Lúcifer franziu o cenho. — Não?<br />

Michael balançou a cabeça. — Não.<br />

Esperança correu por Serah, a energizando, mas desapareceu<br />

rapidamente quando a espada de Michael viajou pela sua pele, se<br />

afastando da garganta. Ele a pressionou contra o seu peito, bem acima<br />

do coração, a lâmina ardente cortando levemente a sua carne.<br />

— Não faça isso! — Lúcifer gritou, sua voz lívida fazendo as<br />

estruturas ao seu redor vibrarem. — Pare!<br />

Serah gritou e arqueou as costas quando as chamas se<br />

intensificaram, queimando a sua pele. Dor pura correu pelo seu corpo,<br />

como se lava corresse em suas veias, em vez de sangue. Sua pele fez<br />

bolhas e brilhou vermelha onde a marca negra se formou, o símbolo<br />

ritualístico esculpido em seu peito.<br />

Ela se contorcia no chão, a picada feroz crescendo dentro dela,<br />

nublando os seus sentidos. Sua visão borrou, lágrimas escorrendo pelas<br />

bochechas e caindo no asfalto frio. Seu peito parecia que ia explodir, luz<br />

saindo da área onde a ferida estava e se espalhando pela pele, a marca<br />

pulsando na batida do coração.<br />

Lúcifer estava sobre ela em um piscar de olhos, agachado ao seu<br />

lado no chão. Ele a puxou em seus braços, a abraçando. Seus polegares<br />

escovaram as bochechas, secando as lágrimas. Quando ele tirou as<br />

mãos, ela viu que estavam cobertas de vermelho.<br />

~ 157 ~


Ela estava chorando sangue.<br />

— Eu estou morrendo? — ela perguntou, suas palavras quase<br />

inaudíveis. Ela olhou para o céu quando uma nuvem vermelha foi<br />

engolida pela pura escuridão.<br />

Um ceifador, ela percebeu.<br />

— Conserte isso! — Lúcifer exigiu. — Conserte isso agora!<br />

— É hora de você ter uma lição de humildade, — Michael disse. —<br />

Você não manda em mim. Você não tem poder sobre mim. Você não é<br />

nada para mim. Nada.<br />

— Pode ser verdade, Príncipe, mas isso não é por mim. Faça isso<br />

por ela.<br />

— Por quê?<br />

— Porque ela não é nada para você! Você a ama!<br />

— Não mais.<br />

— Você pode mentir para si mesmo e todos os outros, mas não<br />

pode mentir para mim, Michael, — Lúcifer bufou. — Nós estamos<br />

conectados – sempre estivemos, sempre vamos estar. E eu sei que você<br />

a ama, irmão, porque eu posso sentir. Sinto isso em cada batida do meu<br />

maldito coração. Eu sinto cada vez que olho para ela, ou sinto o seu<br />

cheiro ou estou a vinte metros de distância dela.<br />

— Você está enganado, — Michael insistiu.<br />

— Pare com isso! — Lúcifer gritou. — Não puna ela por algo que<br />

eu fiz!<br />

— Por quê?<br />

— Porque... — um rosnado escapou do peito de Lúcifer. — Porra,<br />

porque talvez eu a ame, ok?<br />

— Impossível, — Michael disse. — Você é incapaz de amar.<br />

— E você é cego pra caralho, — Lúcifer estalou. — Como você<br />

muda rápido de opinião. Eu posso aceitar que você se vire contra mim,<br />

mas ela? Ela não fez nada além de mostrar compaixão por todos!<br />

— Ela sucumbiu ao seu mal!<br />

~ 158 ~


— Não, ela viu além dele, — ele rosnou. — Ela achou algo em<br />

mim, algo que mais ninguém conseguiu ver. Ela se importou quando<br />

ninguém deu a mínima. Ela tentou, quando todos disseram que era<br />

inútil. E você a descarta! A condena a uma eternidade no Inferno por<br />

isso!<br />

— Você a quer, Satanás? Pode ficar com ela, — nem uma pontada<br />

de emoção podia ser ouvida na voz de Michael. — Deixe que ela exista<br />

para sempre no lago de fogo, presa entre os vivos e os mortos como<br />

você.<br />

Michael deu um passo para trás, dando a ela um olhar demorado<br />

antes de lentamente fechar os olhos e se virar. Ele desapareceu com o<br />

estalo de um trovão.<br />

— Michael! — Lúcifer gritou, sua voz se quebrando quando<br />

emoção se derramou do seu peito. — Volte já aqui!<br />

— Eu estou morrendo, — Serah sussurrou quando mais<br />

escuridão cobriu o céu. — Os ceifeiros estão vindo.<br />

Lúcifer rosnou, antes de gritar de novo. — Eu sei que você pode<br />

me ouvir! Não me ignore!<br />

— Está tudo bem, — Serah disse, virando um pouco a cabeça<br />

para olhar para Lúcifer. Ele estava com o rosto inclinado para o céu,<br />

bloqueando a sua visão. — Olhe para mim, Luce. Está tudo bem.<br />

Lúcifer olhou para baixo. Choque correu por Serah em ondas<br />

quando ela viu seus olhos marejados. Sua expressão contradizia a<br />

tristeza em seus olhos, os lábios se curvando para mostrar os dentes. —<br />

Não está tudo bem! — ele focou sua atenção no céu novamente, e o<br />

olhar de Serah o seguiu. Os ceifeiros haviam se quadriplicado em<br />

questão de segundos. — Michael! Apareça aqui, porra!<br />

Através de sua visão embaçada, ela pôde ver alguns flocos<br />

brancos e fofos começando a cair do céu, como pequenas bolas de<br />

algodão. Neve.<br />

Você tem até a neve cair para estabelecer a trégua.<br />

— É tarde demais, — Serah sussurrou. O vento soprou com força.<br />

Gritos cortaram o ar quando a escuridão girou descontroladamente,<br />

ameaçadora e inflexível. Milhares de ceifeiros estavam acima deles<br />

agora. Eles giravam, se movendo cada vez mais perto, descendo em um<br />

ciclone de morte. Serah os observou, seu corpo tremendo enquanto<br />

seus dentes batiam. — Acabou.<br />

~ 159 ~


— Não, — Lúcifer grunhiu. — Ainda não.<br />

— Eu estou morrendo.<br />

— Não está, — ele disse, parando antes de adicionar, — mas vai.<br />

Lúcifer pegou sua faca dourada e a segurou com força, seu rosto<br />

torcido em agonia. O olhar de Serah se voltou para ele, mas ela não teve<br />

tempo de dar sentido à qualquer coisa. Ele fechou os olhos,<br />

murmurando baixinho, — Deus, me ajude, — antes de enterrar a<br />

lâmina com força no seu peito.<br />

De repente a dor eclodiu dentro de Serah, uma vibrante bola de<br />

luz queimando no seu peito. Tudo ao seu redor explodiu em chamas.<br />

Cada partícula de cor começou a rodar, se misturando, transformando<br />

tudo em uma massa cinza. Ela desapareceu em dor branca escaldante<br />

antes de ser invadida pela dormência negra que engoliu Serah por<br />

inteiro.<br />

A última coisa que ela ouviu, antes de deslizar na escuridão, foi o<br />

estouro revelador de um trovão cruzando o céu, avisando ao mundo:<br />

Outro anjo tinha caído hoje.<br />

* * * * *<br />

Luce se sentou no meio da rua vazia, a cabeça baixa, suas pernas<br />

esticadas à sua frente. Serah estava deitada ao seu lado, a cabeça<br />

apoiada em seu colo, a faca ainda cravada no peito. Faíscas de luz<br />

cintilavam ao redor dele como pequenas estrelas, o brilho dourado da<br />

sua Graça sendo absorvido pela atmosfera. Isso dançou pela pele de<br />

Luce, mas em vez de se deleitar, ele não sentiu nada que não fosse<br />

aversão pela sensação.<br />

Uma poça de sangue manchava a rua, molhando as calças de<br />

Luce. Ele não ligou para isso enquanto acariciava o seu cabelo castanho<br />

macio. Ela parecia tão em paz, os olhos fechados enquanto dormia<br />

profundamente pela primeira vez.<br />

Inconsciente.<br />

O ar à sua frente estalou, o cheiro repulsivo enchendo os pulmões<br />

de Luce quando ele inalou. Era um cheiro de água parada, mofo e<br />

~ 160 ~


poluição. Era um cheiro que tinha frequentemente contaminado a luz<br />

do sol na pele de Serah.<br />

— O que você fez?<br />

Luce riu sombriamente para a pergunta do seu irmão. — Eu fiz o<br />

que você estava muito amargurado para fazer.<br />

Luce alcançou a sua faca, agarrando o punhal, mas não teve a<br />

chance de puxar. Michael reagiu defensivamente quando Luce tocou a<br />

arma. Puxando sua espada, ele a apontou para a testa de Luce,<br />

fechando a distância entre eles. — Desista, Satanás!<br />

A voz de Luce foi baixa. — Eu já desisti.<br />

A lâmina se moveu levemente, baixando do rosto de Luce,<br />

enquanto Michael a guardava com suspeita nos olhos.<br />

— Eu queria que você sofresse, — Luce explicou. — Eu queria te<br />

machucar, tirar tudo de você, mas percebo agora que é impossível. Eu<br />

não posso esperar que você sinta algo quando você não sente nada,<br />

irmão. Não posso esperar que você seja nada além de insensível quando<br />

você tem um coração que não bate.<br />

— Eu não sou insensível.<br />

— Você está aí parado enquanto ela sangra!<br />

— O que você espera de mim?<br />

— Mais nada, — o ar ao redor de Luce parecia brilhar mais forte<br />

quando ele falava. — Eu não espero nada de ninguém. Lutar com você<br />

já não vale mais a pena. Tudo que eu senti, tudo pelo que eu passei,<br />

não se compara ao que ela me deu.<br />

— E o que foi?<br />

Amor.<br />

Ele não disse isso, mas não precisou. Michael ouviu sua<br />

declaração ainda assim.<br />

— Você a ama de verdade.<br />

— Eu disse a você que sim.<br />

— Se você tirar a faca, ela vai desaparecer do mundo para<br />

sempre.<br />

~ 161 ~


— Mesmo que eu não faça isso, ela já se foi, — ele disse. — Ela<br />

está sangrando. Seu coração já está parando.<br />

— Eu te dei o que você queria, — Michael disse. — Eu não<br />

entendo. Você preferiria que ela estivesse morta?<br />

— Porra, você está certo, eu preferiria! — Luce olhou para longe<br />

de Serah para encontrar os olhos de Michael. — A morte seria melhor<br />

que isso. A morte seria melhor do que lembrar de mim.<br />

Luce puxou a faca justo quando Michael largou a espada, um<br />

olhar perplexo no rosto. Ele se ajoelhou ao lado de Serah quando Luce<br />

tirou a faca do seu peito. A mão de Michael imediatamente cobriu a<br />

ferida que sangrava. Luz irradiou da ponta dos dedos dele e correu pelo<br />

corpo dela, sua pele brilhando laranja, contendo a força vital no seu<br />

corpo ferido.<br />

Quando Michael tirou a mão, o ferimento tinha sido fechado,<br />

somente uma leve cicatriz circular permanecia onde a marca tinha<br />

estado. — Por ela, então, — Michael disse.<br />

Luce suspirou. — Por ela.<br />

~ 162 ~


Epílogo<br />

SEIS MESES DEPOIS<br />

(Exatamente... nem um momento mais cedo, nem um segundo mais tarde)<br />

O ar estava parado e quente, luz solar fluía através dos ramos do<br />

grande carvalho e se refletia nas exuberantes folhas verdes. Alguns<br />

raios salpicavam a mulher encostada no tronco da árvore, os pés<br />

descalços plantados cada um de um lado de uma rachadura na<br />

calçada. Seu olhar estava fixado diretamente à sua frente, os olhos<br />

digitalizando o nome recém pintado no prédio do outro lado da rua.<br />

Centro Comunitário de Chorizon.<br />

Um apito estridente ecoou da escola primária atrás dela, seguido<br />

por risadas e a marcha de dezenas de pés correndo para a liberdade. O<br />

último dia da escola tinha chegado ao fim, os estudantes saindo para as<br />

férias de verão. Crianças passaram correndo por ela sem nem olhar<br />

duas vezes, ansiosas para chegar em casa e brincar.<br />

Nicki Lauer, de oito anos de idade, veio caminhando pela calçada<br />

ao final do bando agitado, sua melhor amiga Emily ao seu lado. As duas<br />

garotas pulavam de braços dados, sem pressa alguma, e cantavam<br />

alegremente uma canção.<br />

Ele tem o mundo todo nas mãos,<br />

Ele tem o mundo todo nas mãos,<br />

Ele tem o mundo todo nas mãos,<br />

Ele tem o mundo todo nas mãos!<br />

Elas pararam quando chegaram perto do grande carvalho. Emily<br />

pulou por cima da rachadura, cuidando para não pisar em cima. Nicki<br />

fez o mesmo antes de puxar o braço da amiga, fazendo-a parar, seu<br />

olhar se virando para a árvore. Cuidadosamente ela soltou Emily, uma<br />

expressão curiosa no rosto.<br />

~ 163 ~


— Senhora? — ela chamou. — Você está perdida?<br />

Um par de quentes olhos castanhos se moveram do outro lado da<br />

rua para a criança à sua frente. Lentamente ela balançou a cabeça. —<br />

Não, eu acho que não.<br />

— Meu nome é Nicki, — ela disse. — Qual o seu nome?<br />

A mulher franziu levemente o cenho com a pergunta. — Eu não<br />

tenho certeza.<br />

Nicki fez uma careta. — Você não sabe o seu nome?<br />

— Não, — um suspiro suave escapou dos seus lábios. — Não<br />

consigo me lembrar.<br />

— Eu recebi meu nome por causa do meu pai. Seu apelido é Nick,<br />

porque ele se chama Nicholas. Todo mundo acha que engraçado,<br />

porque eu sou menina e ele é menino, mas eu gosto do meu nome, —<br />

Nicki se aproximou timidamente. — Ei! Talvez esse seja o seu nome<br />

também!<br />

Ela balançou a cabeça. — Eu acho que não.<br />

— Talvez seja Sam, — Nicki disse. — É o nome da minha mãe.<br />

Parece um nome de menino, mas seu nome de verdade é Samantha. Ela<br />

vai ter um bebê logo. Ele vai se chamar Sam, também, mas seu nome<br />

vai ser Samuel e não Samantha, porque esse com certeza é um nome de<br />

menina.<br />

— Sam, — um sorriso suave apareceu nos lábios da mulher<br />

quando algo apertou em seu peito, como se reconhecendo a palavra. —<br />

Samuel.<br />

— Esse poderia ser o seu nome? Sam?<br />

— Talvez, — a mulher disse. — No entanto, eu acho que pode ser<br />

Sarah.<br />

Serah.<br />

— Nicki, — Emily assobiou, puxando o braço da amiga, seu rosto<br />

apertado com preocupação. — Você sabe que não deve falar com<br />

estranhos.<br />

— Está tudo bem, — Nicki insistiu. — Ela não é uma estranha...<br />

não de verdade. E, além disso, a Sra. Mallory disse que nós deveríamos<br />

ajudar as pessoas, lembra?<br />

~ 164 ~


A garotinha revirou os olhos e se virou, começando a caminhar<br />

para longe.<br />

— Então, como você não sabe o seu nome? — Nicki perguntou,<br />

não ligando para a brusca partida da sua amiga. — Todos sabem seus<br />

nomes, até mesmo Johnny Lee, e ele não sabe nada. Ele é tão idiota.<br />

— Os médicos dizem que eu tenho amnésia.<br />

— Minha mãe tem isso! — Nicki declarou. — Ela foi ao médico<br />

porque estava fraca, e ele tiraram seu sangue com uma agulha e<br />

disseram que ela tinha amnesia. Mas ela não esqueceu o nome dela.<br />

Serah sorriu suavemente. — Acho que você quer dizer anemia.<br />

— Ah, — Nicki deu de ombros com uma risada. — Como você teve<br />

amnésia?<br />

— Eu tive um acidente alguns meses atrás, — Serah gesticulou<br />

na direção da rua cheia à frente delas. — Acordei no meio dessa rua,<br />

bem nesse lugar. Eu não tinha nenhuma memória de antes desse<br />

momento. Minha primeira lembrança é um par de olhos azuis pairando<br />

acima de mim.<br />

— Foi quando estava chovendo? — Nicki perguntou. — Porque<br />

muitas pessoas se machucaram naquele dia. O pai de Emily se<br />

machucou também, mas está bem agora. Ele ainda sabe o nome dele.<br />

— Sim, eu acho que sim, — Serah respondeu. — Eles disseram<br />

que eu acordei quando acabou.<br />

— Nicki! — Emily gritou do fim da rua, as mãos em seus quadris<br />

e os olhos estreitados. — Vamos!<br />

Nicki suspirou dramaticamente para sua amiga antes de voltar a<br />

se focar em Serah. — Você tem certeza que não está perdida? Eu sou<br />

boa com direções. Eu nem preciso de um mapa!<br />

— Tenho certeza, — Serah respondeu, voltando sua atenção para<br />

o Centro Comunitário. — Acho que estou exatamente onde deveria<br />

estar.<br />

Nicki saiu correndo para se juntar à sua amiga, lhe dando um<br />

breve adeus, enquanto o olhar de Serah corria para o outro lado da rua.<br />

Havia um tráfico intenso pela tarde, uma linha de ônibus escolares<br />

bloqueando a sua visão do Centro Comunitário. Quando tudo ficou<br />

vazio novamente, seu olhar caiu para uma forma parada do lado de fora<br />

~ 165 ~


do prédio. Ele estava vestido todo de preto, olhos azuis intensos<br />

comparados ao seu cabelo escuro e pele bronzeada. Ele ficou parado<br />

nas sombras, escondido dela, a escuridão o rodeando. Serah encarou<br />

seus olhos penetrantes, se perdendo neles, sentindo como se estivesse<br />

voando nas nuvens, literalmente tirando os pés do chão. Ela deixou<br />

escapar uma respiração instável, seu nome na ponta da língua, mas ele<br />

não veio, não importava o quanto ela lutasse para se lembrar.<br />

Em uma piscar de olhos ele tinha ido, desaparecendo como uma<br />

aparição, uma vaga memória fora do seu alcance. Ela o via em todos os<br />

lugares: às vezes acordada, às vezes dormindo. Ele falou uma vez, seus<br />

lábios se moveram, sua voz baixa sussurrando o que ela acreditava ser<br />

o seu nome.<br />

Suspirando, ela se virou e pegou os sapatos jogados no chão, os<br />

carregando na mão enquanto caminhava de pés descalços pelo parque<br />

da escola. Ela passou pelos balanços, não parando para olhá-los<br />

quando eles sacudiram levemente com uma brisa inexistente.<br />

Um dia ela ia lembrar, ela jurou. Um dia ela saberia o nome dele.<br />

Um dia ela saberia o seu próprio nome. E, um dia, ela saberia o porquê:<br />

porque ele a perseguia em todos os seus pensamentos, porque, quando<br />

ela olhava em sus olhos, se sentia em casa.<br />

Porque o tempo passa e memórias se apagam, mas um coração<br />

que bate de verdade nunca esquece nada.<br />

Nunca.<br />

Continua...<br />

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