Joana Lourinho - Amin Maalouf e o problema das identidades
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<strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong> e as <strong>identidades</strong> múltiplas<br />
<strong>Joana</strong> <strong>Lourinho</strong> *<br />
Resumo: O presente texto analisa o pensamento ensaístico de <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong> no que respeita às <strong>identidades</strong><br />
que existem no mundo actual. Este é mais um aspecto a ter em conta quando falamos em culturas diferentes.<br />
Palavras-chave: <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong>; <strong>identidades</strong>; globalização.<br />
Abstract: The present text analyses the thought of <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong> as regard to the actual identity which exists<br />
in the world. This is another aspect to consider when we are talking about different cultures.<br />
Key-words: <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong>; identity; globalization.<br />
Autor de numerosas obras de grande sucesso internacional, entre as quais se destacam<br />
As Identidades Assassinas, Um Mundo sem Regras, As Cruza<strong>das</strong> Vistas pelos Árabes e Origens,<br />
<strong>Maalouf</strong> interroga-se sobre questões actualmente fundamentais como a de ser imposta<br />
uma identidade única a cada pessoa e não se poder “assumir as suas múltiplas pertenças” 1 .<br />
<strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong> nasceu no seio de uma família libanesa. Apesar de os seus pais e avós<br />
terem estudos, viviam de forma humilde. A sua família tem emigrado para vários países,<br />
encontrando-se dispersa por todo o mundo. Assim aconteceu também a ele quando decidiu<br />
ir viver para a França.<br />
A sua divisão identitária entre o Ocidente e o Oriente, e que desde sempre assumiu,<br />
leva-o a confrontar-se com este <strong>problema</strong> que é cada vez mais comum dada a crescente<br />
mobilidade <strong>das</strong> pessoas. No entanto, será isto possível, ou desejável?<br />
No mundo actual há uma tendência crescente para a uniformidade dos valores culturais.<br />
Em campos diversos como o económico, político, financeiro e tecnológico, assim<br />
como o social e cultural, a globalização conduziu e conduz a esta uniformidade. Este processo<br />
evidencia o triunfo do Ocidente sobre as outras culturas. Contudo, “esta nova realidade<br />
não é vivida do mesmo modo pelos que nasceram no seio da civilização dominante e<br />
por aqueles que nasceram fora dela” 2 . Enquanto “os primeiros puderam transformar-se,<br />
1<br />
*<br />
Aluna da Licenciatura em Turismo da Universidade de Évora.<br />
1<br />
A. <strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 46.<br />
2<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 83.
avançar na vida, e adaptar-se, sem deixar de ser eles mesmos” 3 , para o resto do mundo, a<br />
receptividade à mudança e à modernidade suscita sentimentos opostos. Ao lado do entusiasmo<br />
podemos encontrar “uma certa amargura, sem um sentimento de humilhação e de<br />
renúncia” 4 . Há uma constante “interrogação sobre os perigos dessa assimilação” o que cria<br />
“uma profunda crise de identidade” 5 . Podemos verificar que “algumas minorias dominantes<br />
nas culturas não ocidentais vão de um cepticismo generalizado a uma oposição aberta a<br />
estes valores” 6 , pois vêem a cultura ocidental como um imperialismo sobre o resto do mundo.<br />
De facto, enquanto a cultura ocidental for adoptada nos países não ocidentais, estes<br />
estão sob o domínio do poder ocidental e poder-se-á considerar esta cultura superior em<br />
relação às outras. No entanto, uma vez “alcançada a independência política, as sociedades<br />
não ocidentais desejam libertar-se do domínio económico, militar e cultural.” 7 <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong><br />
analisa este fenómeno da uniformidade e chama a atenção para os riscos de hegemonia<br />
que o mundo Ocidental gera, atribuindo-lhe dois perigos eminentes. Por um lado, ela levará<br />
a que “pouco a pouco, desapareçam línguas, tradições, culturas” 8 . Posteriormente, veremos<br />
“os membros dessas culturas ameaça<strong>das</strong> adoptarem atitudes cada vez mais radicais,<br />
cada vez mais suici<strong>das</strong>” 9 . Outro autor da mesma opinião é Huntington que, embora não<br />
leve a questão ao extremo, está convicto de que “as grandes divisões existentes na humanidade<br />
e a fonte dominante de conflitos serão culturais” 10 . Considera ainda que “o conflito<br />
entre civilizações será a última fase na evolução no mundo moderno.”<br />
Vivemos numa época marcada pela convivência em simultâneo de “harmonização e<br />
da dissonância” 11 . Nunca até agora os homens tiveram tantas coisas em comum, (...) mas<br />
isso leva-os, a uns e a outros, a afirmarem mais a sua diferença”. A mesma opinião é partilhada<br />
por Hungtington, ao dizer que “as interacções entre povos de civilizações diferentes<br />
fazem aumentar a consciência civilizacional <strong>das</strong> pessoas e, por outro lado, aceleram as diferenças<br />
e as animosidades que estão radica<strong>das</strong>, ou assim se pensa, bem fundo na história” 12 .<br />
Em termos nacionais, verificamos este fenómeno através de acções tão simples como a promoção<br />
da semana da gastronomia alentejana. Estas acções não teriam o mínimo sentido se<br />
fossem realiza<strong>das</strong> há cinquenta anos atrás, mas hoje representam um “reforço do sentido de<br />
identidade” 13 . Pode-se assim tirar a conclusão de que apesar de o “Ocidente estar no auge<br />
do poder, (...) está a ocorrer ao mesmo tempo, um fenómeno de retorno às origens entre as<br />
civilizações não ocidentais” 14 . Apesar de existirem opiniões convergentes entre estes autores,<br />
2<br />
3<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 84<br />
4<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 84.<br />
5<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 84.<br />
6<br />
S. P. Huntington, O choque <strong>das</strong> civilizações, p. 214.<br />
7<br />
S. P. Huntington, ibid.,p. 215.<br />
8<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 128.<br />
9<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 128.<br />
10<br />
Huntington, in AA.VV., in O debate sobre a tese de S. P. Huntington, “O choque <strong>das</strong> civilizações?”, pp. 7 e<br />
8.<br />
11<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 105.<br />
12<br />
Huntington, in O debate sobre a tese de S. P. Huntington, “O choque <strong>das</strong> civilizações?”, p. 10.<br />
13<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 105.<br />
14<br />
Huntington in AA.VV., in O debate sobre a tese de P. Samuel Huntington, “O choque <strong>das</strong> civilizações?”, p.<br />
11.
em relação a este ponto eles apresentam resultados diferentes nas conclusões <strong>das</strong> suas teses.<br />
Em <strong>Maalouf</strong>, deve haver inter-relação entre as civilizações para que se chegue a uma convivência<br />
pacífica entre elas; ao invés, Huntington defende que cada civilização tem uma evolução<br />
independente <strong>das</strong> outras.<br />
A globalização é, deste modo, um fenómeno marcado positiva e negativamente. No<br />
primeiro aspecto, podemos assinalar o acesso fácil à informação, à tecnologia e aos meios de<br />
comunicação; no segundo aspecto, existe a tendência para a uniformidade cultural entre os<br />
Estados, que cria nos indivíduos crises de identidade, que só deixam de existir se forem<br />
revivi<strong>das</strong> as suas tradições. O valor cultural tem uma função estruturante e identitária porque<br />
ajuda a perceber melhor quem somos, quem fomos e como chegámos até aqui. Ajudanos<br />
a projectar melhor a nossa evolução futura.<br />
A identidade é formada por aspectos que nos são transmitidos pela nossa família,<br />
educação, mas também pelas cultura e sociedade onde estamos inseridos. Por isso, “não é<br />
algo que nos seja entregue na sua forma inteira e definitiva; ela constrói-se e transforma-se<br />
ao longo da nossa existência” 15 . Com a abertura dos mercados e a livre circulação de pessoas,<br />
a identidade da cada pessoa é cada vez mais “complexa, única, insubstituível” 16 , ao<br />
ponto de ser difícil afirmar simplesmente: eu sou português.<br />
A identidade é assim, algo de pessoal, intransmissível e insubstituível na vida de<br />
cada indivíduo. É também “uma questão de símbolos e de aparências” 17 , na qual cada um<br />
deveria poder “assumir, sem medo e sem rancor, as suas pertenças” 18 .<br />
A cultura ocidental é hoje a cultura dominante, não deixando espaço às outras.<br />
Aquilo que este autor propõe face a isto é o “princípio-chave da ‘reciprocidade’”. De modo<br />
a minimizar os impactos negativos da mundialização onde “cada um de nós tem necessariamente<br />
de adoptar inúmeros elementos vindos de outras culturas mais poderosas, é essencial<br />
que cada um possa verificar também que certos elementos da sua própria cultura são<br />
adoptados em todos os continentes” 19 .<br />
O mundo actual aberto a inter-relações não deve comportar a adopção de uma única<br />
cultura, mas sim do maior número possível para que cada cidadão se possa reconhecer e<br />
identificar globalmente, pois “uma sociedade que vê na modernidade ‘a mão do estrangeiro’<br />
tem tendência a rejeitá-la e a proteger-se dela” 20 . Contudo, para Fouad Ajami, “as civilizações<br />
não controlam os Estados, são estes que controlam as civilizações (...), pois só vêem<br />
irmandade, fé e parentesco quando é do seu interesse.” 21<br />
Também no “seio da comunidade nacional reconhecer um certo número de pertenças<br />
―linguísticas, religiosas, regionais― pode atenuar e sanear as relações entre os diferen-<br />
3<br />
15<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 33.<br />
16<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., pp.29-30.<br />
17<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 134.<br />
18<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 136.<br />
19<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 134.<br />
20<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 133.<br />
21<br />
F. Ajami, in AA.VV., in O debate sobre a tese de P. Samuel Huntington, “O choque <strong>das</strong> civilizações?”, p. 41.
tes grupos de cidadãos” 22 . Só assim “cada um dos cidadãos será tratado como um cidadão<br />
de corpo inteiro, quaisquer que sejam as suas pertenças” 23 .<br />
A existência de vários conflitos de <strong>identidades</strong> ao longo dos tempos permitiu que os<br />
Estados adoptassem vários modos de resolução, como a laicização e o regime democrático.<br />
Contudo, estes revelaram-se insuficientes com o tempo. Para haver coexistência harmoniosa,<br />
<strong>Maalouf</strong> propõe “mecanismos de salvaguarda dos valores” 24 . Estes mecanismos são realizados<br />
através do “voto de opinião, o único que terá uma expressão livre” 25 , substituindo-o<br />
por todos os outros tipos de voto maioritários, pois estes não fazem “respeitar os direitos<br />
dos oprimidos” 26 .<br />
Na opinião de <strong>Amin</strong> <strong>Maalouf</strong>, na sociedade actual em que “cada cultura é quotidianamente<br />
confrontada com as outras, em que cada identidade sente a necessidade de se afirmar<br />
com virulência, em que cada país, cada cidade, deve organizar no seu seio uma delicada<br />
coabitação, a questão não consiste em saber se os nossos preconceitos religiosos, étnicos e<br />
culturais são mais fortes ou mais fracos do que os <strong>das</strong> gerações precedentes, mas sim em<br />
saber se conseguiremos impedir as nossas sociedades de derivar para a violência, o fanatismo<br />
e o caos” 27 .<br />
É a nossa evolução moral que deve ser acelerada ao ritmo da evolução material, o que<br />
exige uma verdadeira revolução nos comportamentos, como sugere <strong>Maalouf</strong>. Talvez por<br />
isso, existam ainda limites à possibilidade de existirem “múltiplas pertenças” 28 . A humanidade<br />
ainda não avançou moralmente o suficiente para aceitar o facto de um indivíduo ter<br />
direito a reclamar que pertence a duas culturas distintas. Quando isto é assumido, não se faz<br />
discriminações de uma em relação à outra pelo facto de ser mais ou menos avançada.<br />
A “revolução moral nos comportamentos” 29 e modos de pensar, principalmente no<br />
mundo Ocidental, levarão a que o mundo Oriental se sinta mais integrado e mais aceite,<br />
evitando conflitos e guerras.<br />
4<br />
Referências Bibliográficas:<br />
HUNTINGTON, S. P., “O choque <strong>das</strong> civilizações?”, in AA.VV. (1999) O debate sobre a<br />
tese de Samuel P. Huntington, Lisboa, Gradiva.<br />
22<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 165.<br />
23<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 166.<br />
24<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 169.<br />
25<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 169.<br />
26<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 169.<br />
27<br />
<strong>Maalouf</strong>, O mundo sem regras, p. 73.<br />
28<br />
<strong>Maalouf</strong>, As <strong>identidades</strong> assassinas, p. 13.<br />
29<br />
<strong>Maalouf</strong>, ibid., p. 169.
HUNTINGTON, S. P., (1999) O choque <strong>das</strong> civilizações, Lisboa, Gradiva.<br />
MAALOUF, A., (2002) As <strong>identidades</strong> assassinas, Lisboa, Difel.<br />
MAALOUF, A., (2009) O mundo sem regras, Lisboa, Difel.<br />
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