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REVISTA COLETIVA - março abril_2017 WEB

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crônica |<br />

59<br />

A semente do inesperado<br />

Por Solimar Moisés<br />

Aconchegada naquele sofá,<br />

acompanhada somente<br />

de sua fiel cadelinha Marilyn,<br />

Fátima comemorava sozinha<br />

seus sessenta anos, sentindo<br />

os primeiros bafejos impiedosos<br />

do inverno que se aproximava na<br />

forma da pele, há um certo tempo,<br />

viciada em rugas, nos cabelos que<br />

só possuíam o acaju como único<br />

refúgio, na osteoporose que teimava<br />

em lhe proporcionar dores,<br />

como se tivessem livre acesso ao<br />

seu já castigado corpo. Para aquela<br />

filha única, órfã dos pais havia<br />

vários anos, um diploma de médica<br />

trazia pouco consolo naquele<br />

momento. Que ironia ter entrado<br />

na terceira idade, aquela que os<br />

sádicos jovens, ignorantes de toda<br />

a ignomínia que a velhice forçosamente<br />

aplica a todos, resolveram<br />

apelidar de melhor, justamente no<br />

período cuja única recompensa é<br />

uma fila que ninguém respeita.<br />

A solidão, com toda a crueza<br />

reconhecida entre quatro paredes,<br />

não lhe atemorizava, pois havia se<br />

tornado sua companheira inseparável<br />

de cela, tampouco a morte<br />

a assustava. Era sábia o suficiente<br />

para reconhecer que todos os<br />

seres animados possuem um ciclo<br />

vital. Se havia recompensas<br />

religiosas ou não após o fim, era<br />

uma coisa que não estava muito<br />

afim de discutir com o pastor ou<br />

o bispo. O que realmente a petrificava<br />

eram as memórias daqueles<br />

tempos alegres de faculdade em<br />

que os sorrisos andavam de mãos<br />

dadas com a alegria, e a esperança<br />

de dias melhores valia muito mais<br />

do que qualquer propriedade na<br />

Riviera Francesa.<br />

O amor imenso pela profissão<br />

lhe cobrou o preço de ter pouco<br />

tempo para os amores carnais. Em<br />

que pese ter sido atraente, seu temperamento explosivo de não aceitar injustiças<br />

ditadas pela hipocrisia sociocristã era suficiente para afastar possíveis<br />

interessados. Talvez lhe tivesse faltado dotes artísticos para representar<br />

bem o papel de fêmea submissa de um macho poderoso, designado por<br />

duas famílias para comandar o destino de seu útero. Se lhe faltava romantismo,<br />

o mesmo não acontecia com o idealismo, via em cada paciente uma<br />

semente de amor pronta para ser fertilizada pelo dom da cura.<br />

Era incapaz de transformar a dor lancinante dos pacientes mais humildes<br />

no diagnóstico servil de um tratamento burocrático. Seu senso<br />

de coerência, honestidade e integridade lhe amealhou várias inimizades,<br />

simplesmente porque era incapaz de comercializar seu caráter. Fizera<br />

clínica geral e pediatria, e com ela o duro sacerdócio de tratar do<br />

tesouro de cada família enquanto era continuamente infernizada pelo<br />

flagelo das avós. Sim, não havia sido uma existência fácil, como se não<br />

bastasse, ainda foi conselheira do CRM, pagando o alto preço de livrar a<br />

classe da maçã podre. Mesmo com todos percalços, a medicina era forte<br />

demais para não ser sua única religião. Erros existiram, mas, quando<br />

errou, o fez seguindo o caminho reto das boas intenções. E naquele momento<br />

de profunda reflexão, o telefone toca:<br />

— Doutora Fátima, aqui é do gabinete do governador, e ele gostaria de<br />

falar com a senhora na próxima semana, pode ser?<br />

— Sim, claro! - respondeu pensando que diabos o governador queria<br />

de um ser tão simples como ela.<br />

Na semana seguinte, ao adentrar no gabinete, foi recebida com um<br />

caloroso abraço do governante e de três outros desconhecidos. Ainda<br />

aturdida com a situação, ela vê um dos presentes se levantar.<br />

— Doutora, meu nome é Roberto, eu era aquele mendigo de vinte<br />

anos atrás que foi atingido por uma facada e não quiseram me atender<br />

no Cais porque eu não tinha documentos. Graças à senhora, que brigou<br />

com todos e cuidou tão bem de mim, tive a oportunidade de voltar a<br />

estudar e me tornei presidente de uma multinacional.<br />

— Eu sou Luiza – levantou-se a segunda pessoa –, sou aquela que<br />

você teve de mover céus e terras para conseguir uma vaga na UTI, devo<br />

minha vida à senhora, a Deus e ao destino que me ajudou a me tornar<br />

uma conselheira da ONU.<br />

— Eu sou Ricardo, aquele menino soro positivo que só você me estendeu<br />

a mão no momento que todos recolheram as suas. Curei-me e me tornei um<br />

empresário bem-sucedido, e hoje possuo centenas de lojas pelo país!<br />

— Tudo bem! Fico feliz por vocês, mas por que me chamaram aqui?<br />

— Chamamos porque ao longo de todos esses anos, silenciosamente,<br />

você deu lições de amor a todos que passaram pela sua mão, e gostaríamos<br />

que fosse a diretora vitalícia do novo hospital que será o maior da<br />

América Latina para crianças com câncer!<br />

Com os olhos inundados de lágrimas e o coração se evaporando de<br />

felicidade, e antes mesmo que pudesse entender um centésimo do que<br />

estava acontecendo, sentiu a voz confortante de um deles:<br />

— Doutora, algumas vezes você pode ter se esquecido de Deus, mas<br />

ele jamais se esqueceu de você.<br />

Coletiva | <strong>março</strong> • <strong>abril</strong>/<strong>2017</strong>

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