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Quarto caderno de Kindzu<br />
A FILHA DO CÉU<br />
Me chamo Farida, começou a mulher o seu relato. Falava com voz baixa, em rouquidão que<br />
vinha da timidez. Conservei-me afastado, de olhos no chão. Durante a sua longa fala me calei<br />
como uma sombra para lhe dar coragem. A mulher se trocou por palavra até quase ser manhã.<br />
Farida era filha do Céu, estava condenada a não poder nunca olhar o arco-íris. Não lhe<br />
apresentaram à lua como fazem com todos os nascidos da sua terra. Cumpria um castigo ditado<br />
pelos milénios: era filha-gémea, tinha nascido de uma morte. Na crença da sua gente,<br />
nascimento de gémeos é sinal de grande desgraça. No dia seguinte a ela ter nascido, foi<br />
declarado chimussi: a todos estava interdito lavrar o chão. Caso uma enxada, nesse tempo, ferisse<br />
a terra, as chuvas deixariam de cair para sempre.<br />
Dias depois, sua irmã morreu. Deixaram-na morrer com fome. Fizeram isso por bondade:<br />
para aliviar a maldição. Enterraram a menina no pequeno bosque sagrado onde dormem as<br />
crianças falecidas. Meteram-lhe numa panela de barro quebrada. Foi semeada sem quase<br />
nenhuma terra lhe cobrir. Destinaram-lhe um lugar perto do rio, onde o chão nunca seca. Assim<br />
as nuvens lembrar-se-iam sempre da obrigação de molhar a terra.<br />
A mãe de Farida nunca mais teve filhos. Dizem que ela não foi capaz de apagar a sua<br />
impureza após o nascimento. Fizeram as cerimónias: não resultou. Queimaram a palhota,<br />
juntaram todas suas coisas numa grande fogueira. A mãe ficou ali, sofrendo culpas por ter subido<br />
ao Céu, único lugar onde se pode encontrar meninos gémeos. Chorou então o que ela não pôde<br />
chorar no enterro da filha. A tradição ordena: ninguém chore em luto, o lamento não pode senão<br />
chamar mais desgraça. Para Farida, a morte da gémea não foi nunca mencionada: tua irmã? Foi<br />
na casa da avó, ficou lá viver. Assim se murmurava.<br />
Depois das cerimónias, mandaram que a mãe saísse da aldeia. Junto com a filha foram<br />
morar num mato próximo, de verdes desleixados. Ali viveram sem nunca receber visitas:<br />
vinham os da família mas ficavam longe, escondidos. Receavam o contágio. Gritavam dali suas<br />
mensagens. A única que lhes trazia comida era tia Euzinha, mulher larga, de muito assento. Ela<br />
conversava com elas, trazia notícias dos outros. Também Euzinha conhecia os modos de estar só,<br />
seu marido partira para a guerra, moribundando em parte incerta. Certo dia ela trançava os<br />
cabelos da sobrinha, seus dedos contando estórias de embalar, quando sua voz despertou a<br />
menina:<br />
— Sua irmã, sabe ela está onde?<br />
— Minha irmã morreu, tia.<br />
— Mentira! Sua irmã está muito viva, a morte nem lhe arranhou.<br />
Foram suas palavras. Farida sentiu lágrimas nascerem dentro de si mas fechou-lhes