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Terra Sonambula - Mia Couto

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espinhos que pétalas. Os capins já lhe chegam pelos ombros. Ela nem repara a urgência de<br />

aparar o capinzal.<br />

— Não é a relva que cresceu. Fui eu que adimininuí.<br />

Também a casa lhe parece maior. Agora, ela quase se perde no inaposento. A cama de<br />

casal é uma extensão muito enorme, acrescentando solidão na viuvice dela. Seu marido, Romão<br />

Pinto, se retirou da vida vai fazer dez anos. Do defunto esposo ela não guarda senão o inverso da<br />

saudade. Um pressentimento que ele haverá ainda de chegar, fosse o falecido não um ente do<br />

passado mas do porvir. Os vizinhos se admiram com essa falha em sua lembrança. No princípio,<br />

acreditavam ser desbotura da memória dela. Coitada, o hoje é para ela mais antigo que o<br />

anteontem, diziam. Mas, depois, se convenceram de que outro problema se tratava. Porque<br />

Virgínia seguia teimando na ideia de um noivado ainda por estrear. No lugar do suspiro saudoso<br />

ela punha a ânsia do há-de vir.<br />

— Quando eu for da idade de casar esse homem me vai chegar.<br />

Os vizinhos não variavam: a velha durava mais que a validade de seu corpo. Deixassem seu<br />

sonho enlouquecer. E perguntavam, entre risos: o grilo, quando nasce, já tem a toca feita? É assim<br />

a velhice. Virginha que trocasse passado por futuro, sonhasse não com o fim da vida mas com as<br />

nascenças que lhe faltavam. Tudo isso que importava?<br />

— Sabem o motivo das orações dela? A gaja reza para não continuar a diminuir de tamanho.<br />

E reproduziam as longas-lengas dela: Santíssimo Padre, se eu continuar a minguar, nem o<br />

cavaleiro Romão me notará quando passar por estas bandas. E repetia, de si para si,<br />

desencostadas frases: ontem, quando eu morrer. Virgínia, Virginha, Virginhinha: o povo lhe<br />

indistinguia variedades do nome. E todos se condoíam de sua velhice como de uma orfandade se<br />

tratasse.<br />

Uma ocupação lhe dava fazer: criava sapos no quintal. De dia deixava as moscas<br />

patinharem os vidros das janelas. À tarde, juntava-as numa caixa e lhes tirava as asas, uma a<br />

uma. Chegada a noitinha ela saía de casa e espalhava as desasadas moscas pela relva. Chamava<br />

os batráquios por nomes, sortidos de sua autoria.<br />

— Que vai ser deles quando eu morrer?<br />

Fosse, quem sabe, essa a ideia dela: haver alguém neste mundo que lhe desse falta. O sol se<br />

vai devagarinhando, parece uma das moscas a quem a velha cortara as asas subindo pelas horas<br />

do dia. A velha se deixa ficar, misturando a sua sombra com a do velho muro, olhando a vida<br />

como um lugar que já foi seu. O certo é sabido: na seguinte manhã os meninos regressam,<br />

subitamente calados, e se envoltam nela.<br />

— Cuidado, crianças. Não me pisem os sapos.<br />

Uns lhe penteiam as névoas, outros lhe cortam as unhas, outros ainda lhe corrigem os cuspos<br />

no queixo. Ela se deixa, dissolvida, sonambulada num fecha-te sésamo. Os meninos lhe pedem:<br />

avó, conta estória. Virgínia sorri. Eles lhe chamam de avó. Como ela se embeleza com aquela<br />

palavrinha: avó!<br />

— Qual querem, meus filhos?<br />

— Conta aquela do pai de seu pai.<br />

Virginha sorri, grata dos meninos se introduzirem em sua família como se eles fossem tão<br />

antigos como ela. Depois, vai soltando lembranças que escorrem como lento óleo. Saltita do<br />

português para o makwa, já não distingue sua original versão.<br />

— Como chamava o mucunha, quem lembra?<br />

— Mucunha Curucho, responde a miudagem numa só voz.<br />

Ela acena, em festa: isso, o senhor Cruz, seu avô, homem frequente em terras do outro lado

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