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Terra Sonambula - Mia Couto

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Chegara ao pátio da velha casa. As árvores se sujeitavam às mágoas da ventania, que o<br />

vento nunca se levanta contente. Os cães uivaram, o administrador estremeceu. Por que razão<br />

aqueles bichos se intransigem em noites que tais? Será que o cão escuta um outro uivo na lua?<br />

Estêvão Jonas tossiu alto, mais para se confirmar, esmaltado por fora mas alcatifado de medo<br />

por dentro. Naquele instante, ele tinha mais freios que dentes. Avançava colado nas paredes,<br />

forrado nelas como o deslizar de uma sombra. Num repente, saltou em danado susto. De dentro<br />

do casarão chegaram estrondos de madeira, caixas batendo em todos os sons. Havia alguém<br />

roubando as heranças do malvado colono?<br />

Por momentos, pensou que o atinado seria chamar o seu miliciano. Não por motivo de<br />

medo mas derivado da conceituada importância da sua sobrevivência. Nesse vai-que-vai<br />

reconsiderou. Afinal, o mensageiro tinha sido claro: ele teria que se apresentar sozinho, mais<br />

ninguém deveria saber.<br />

Estava na soleira de um adiado passo quando as portas se abriram de chofre e eis que, visão<br />

dos infernos, apareceu o falecido Romão Pinto carregando às costas o seu próprio caixão. O<br />

administrador disparou numa correria, trepando arbustos, galgando pedras, para além das<br />

humanas velocidades. Estrumando-se numa valeta próxima ele se extinguiu, escuro no escuro. O<br />

defunto se aproximou e não esteve com medidas:<br />

— Levanta-te e ajuda-me a carregar esta merda deste caixão.<br />

Estêvão não tinha boca para tanto espanto. Porém, ainda acumulou força para responder:<br />

— Não sou um qualquer de carregar.<br />

— Não és o quê? Deixa-te de calcinhices e agarra mas é desse lado. Vá!<br />

Estêvão mediu as condições, aplicou as mais dialécticas análises, segundo os sábios<br />

ensinamentos do materialismo. Podia ele enfrentar um fantasma? O melhor seria aceitar o semremédio<br />

da circunstância. E oferecendo as costas, levantou a caixa. O colono, enquanto<br />

caminhava, lhe explicava: o caixão era para oferecer ao povo. Todos dão donativos aos pobres.<br />

Aquela era a sua solidariedade. Desperdício seria a coisa ficar ali, simples caixão-de-correio<br />

entre vida e morte.<br />

Arrumaram o desocupado féretro na arrecadação. Com um empurrão o antigo colono fez<br />

sentar o administrador. E conversaram até madrugada. Que falaram? Ninguém sabe o certo.<br />

Mas parece que o Romão deitou muita dúvida sobre o futuro de Estêvão. Naquele regime que<br />

segurança tinha o futuro? Amanhã ele recebia o devido pontapé nas partes adequadas e ninguém<br />

mais se lembraria dele. O moçambicano ripostou, quisesse o estrangeiro ensinar o Padre-Nosso<br />

ao vigarista.<br />

— Eu tenho os meus esquemas, Romão. Não pense que somos burros, como sempre vocês<br />

insistiram.<br />

Esquemas, qual o quê. Uns negócios de tigela furada, coisa de pouco brilho. Umas<br />

cervejitas de lata amontoadas no passeio? O colono roubava o lustro da iniciativa do<br />

administrador. Naquele solene assento, o português lhe prometia coisa grossa, choruda. A ideia<br />

sendo a seguinte: que ele mesmo, óbito reconhecido, ainda por cima carregado de raça e<br />

nacionalidade, não mais podia reaver seus antigos negócios.<br />

— Já bastava ser branco, ainda por cima portuga. Agora, tudo isso e falecido é que não vale<br />

a pena.<br />

Necessário seria que Estêvão despachasse assinatura mais seu rosto devidamente originário<br />

à frente do empreendimento e os cordéis correriam que nem saliva em boca gulosa.<br />

— Mas e o capital?, se entusiasmava o administrador.<br />

Esse o problema. Havia dinheiro, fora e dentro. Bastante, mais até que bastante. Mas do<br />

falecimento em diante, tudo passara para o nome de Virgínia, a tonta viuvinha. Estêvão Jonas

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