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a questão<br />
criminal <strong>no</strong> brasil<br />
contemporâneo<br />
vera<br />
malaguti<br />
batista
a questão<br />
criminal <strong>no</strong> brasil<br />
contemporâneo<br />
vera malaguti batista
A questão criminal tem ocupado uma centralidade absoluta <strong>no</strong> cenário político<br />
brasileiro. A expansão exacerbada do sistema penal, sem paralelo em <strong>no</strong>ssa<br />
história, implica em que essa centralidade não seja apenas política mas também<br />
social e econômica. Pretendemos recorrer primeiramente à história para que<br />
tenhamos uma visão em perspectiva que pode <strong>no</strong>s ajudar a desnaturalizar o<br />
contexto em que vivemos, conjuntura que talvez fique conhecida <strong>no</strong> futuro como<br />
O Grande Encarceramento.<br />
Para encararmos essa questão precisamos primeiro, entender a questão<br />
criminal a partir da história, do “curso dos discursos sobre a questão<br />
criminal” como <strong>no</strong>s ensina Raúl Zaffaroni 1 . A história da configuração do<br />
poder punitivo para a neutralização da conflitividade social estaria associada<br />
à formação do Estado e ao processo de acumulação de capital. O crime e seus<br />
tratamentos não constituem categorias ontológicas, morais ou “da natureza”.<br />
O sistema penal aparece então como constructo ou dispositivo, relacionado<br />
à realidade econômica e social e às relações de força presentes <strong>no</strong> modo de<br />
produção capitalista.<br />
Zaffaroni, a partir de Foucault, localiza <strong>no</strong> século XIII o primeiro discurso<br />
integrado entre política criminal, direito penal e crimi<strong>no</strong>logia, através do<br />
aparecimento da estrutura da Inquisição. As mudanças nas relações de poder<br />
confiscariam às vítimas o conflito criminalizado, que passa a ser administrado<br />
de forma centralizada entre a Igreja e as primeiras formas de Estado, para<br />
gerir a conflitividade e a violência e garantir uma determinada idéia de ordem.<br />
Surge então uma <strong>no</strong>va atitude para determinar a verdade: a busca da verdade<br />
3<br />
* Comunicação apresentada <strong>no</strong> 2º Fórum<br />
Nacional de Alternativas Penais: “Audiências<br />
de Custódia e a Desconstrução da Cultura<br />
do Encarceramento em Massa”, realizado<br />
entre os dias 24 e 27 de fevereiro de 2016 –<br />
Salvador/BA.<br />
1. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El curso de la<br />
Crimi<strong>no</strong>logia. In: Revista de Derecho Penal y<br />
Crimi<strong>no</strong>logía, n. 69. Madrid: UNED, 2002.
4<br />
“crimi<strong>no</strong>sa” era o método da Inquisição. Institui-se então uma averiguação<br />
realizada pelo que exerce o poder sobre o objeto estudado, a partir de uma<br />
posição privilegiada, sem diálogo com “o outro”. Os discursos sobre a questão<br />
criminal, ou a crimi<strong>no</strong>logia, se ancoraram nesse saber/poder e se intensificaram<br />
com as crescentes possibilidades técnicas de domínio da natureza, transladada<br />
nas relações com “os outros”, como aponta Marildo Menegat 2 .<br />
Na segunda metade do século XX dois livros produziram rupturas <strong>no</strong> curso<br />
desses discursos: Punição e Estrutura Social e Vigiar e Punir. O primeiro,<br />
escrito em 1939 <strong>no</strong> contexto da Escola de Frankfurt por Georg Rusche, perdeuse<br />
na Europa conturbada daquele momento e veio a ser atualizado por Otto<br />
Kirchheimer e publicado <strong>no</strong>s Estados Unidos dos a<strong>no</strong>s sessenta. Rusche é o<br />
primeiro a analisar historicamente as relações entre condições sociais, mercado<br />
de trabalho e sistemas penais. O poder punitivo oscilaria então entre um direito<br />
penal de execuções, mutilações, açoitamento e encerramento e discursos mais<br />
liberais, de acordo com a abundância ou falta de mão-de-obra. Esse movimento<br />
pendular vai do século XV ao XIX, quando a Revolução Industrial consolida a<br />
prisão como a principal pena do Ocidente, completamente associada à fábrica.<br />
Os trabalhadores que não estivessem sendo explorados sem limites nas fábricas,<br />
estariam exercendo suas penas através do trabalho forçado, lucrativo e funcional<br />
à ordem capitalista industrial 3 .<br />
Na mesma década quente em Paris, Michel Foucault escreve Vigiar e Punir,<br />
a partir da obra de Rusche. Ele avança na análise do simbolismo do poder<br />
punitivo, suas funções jurídico-políticas <strong>no</strong> cerimonial de reconstituição da<br />
soberania lesada <strong>no</strong> absolutismo. Os rituais organizados, o suplício como técnica<br />
2. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do<br />
mundo: a crise da modernidade e a barbárie.<br />
Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumará, 2003.<br />
3. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto.<br />
Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de<br />
Janeiro: Instituto Carioca de Crimi<strong>no</strong>logia/<br />
Revan, 2004.
para impor as marcas do poder <strong>no</strong> corpo, estariam traduzindo relações de força<br />
e não de justiça. Ele mostra como, a partir do século XVIII, essas cerimônias<br />
se tornam perigosas <strong>no</strong>s embates entre as classes empobrecidas e o poder<br />
absolutista 4 . É a partir dos medos das elites do momento que a Reforma das<br />
Luzes aparece como <strong>no</strong>va estratégia política; punir e não vingar. A punição e<br />
a repressão passam a ser funções regulares através de uma <strong>no</strong>va eco<strong>no</strong>mia e<br />
uma <strong>no</strong>va tec<strong>no</strong>logia. Junto com as demais “disciplinas”, essas fórmulas gerais<br />
de dominação irão produzir uma tec<strong>no</strong>logia minuciosa e calculada de sujeição<br />
e controle dos corpos dóceis. A crítica da prisão, que é contemporânea à sua<br />
consolidação, demonstra que o aparente e crônico fracasso dos objetivos do<br />
sistema penal esconde a sua principal função: realizar o controle diferencial e<br />
seletivo das ilegalidades populares, neutralizar as resistências a uma <strong>no</strong>va ordem<br />
que se impunha contra o <strong>no</strong>vo sujeito político do século XVIII, a multidão.<br />
Cabe a nós, que pensamos a questão criminal contemporânea, entender as<br />
<strong>no</strong>vas funções da prisão e do poder punitivo <strong>no</strong> neoliberalismo, ou capitalismo<br />
de barbárie.<br />
A esse respeito, Loïc Wacquant propõe a idéia do paradigma <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong><br />
de incremento do Estado Penal em contraposição à dissolução do Estado<br />
Previdenciário: a <strong>no</strong>va gestão da miséria se daria pela criminalização da<br />
pobreza, <strong>no</strong>s discursos e nas práticas 5 . A hegemonia deste modelo produziu<br />
o que Wacquant de<strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u de onda punitiva, produzindo um processo de<br />
encarceramento em larga escala nunca visto na história da humanidade, hoje já<br />
questionado pela esquerda e até pela direita estadunidense.<br />
Trabalhando a história ideológica do controle social <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> de hoje,<br />
Neder aponta o arbítrio das fantasias absolutistas de controle social policial<br />
5<br />
4. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o<br />
nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.<br />
5. WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a <strong>no</strong>va<br />
gestão da miséria <strong>no</strong>s Estados Unidos. Rio<br />
de Janeiro: Instituto Carioca de Crimi<strong>no</strong>logia/<br />
Revan, 2003.
6<br />
absoluto <strong>no</strong> imaginário brasileiro, a partir das suas matrizes (<strong>no</strong> sentido de uma<br />
permanência cultural) ibéricas.<br />
A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em<br />
Portugal, instaura-se um processo de modernização que conjuga a incorporação<br />
de <strong>no</strong>vos pressupostos teóricos e ideológicos cuidando de que a base de<br />
sustentação da hierarquização não fosse afetada. Esta ambigüidade revela-se <strong>no</strong><br />
desdobramento deste processo para o <strong>Brasil</strong>. A discussão em tor<strong>no</strong> da redação<br />
do código penal de 1830 articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de<br />
controle e punição da escravidão.<br />
No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de polícia Eusébio de Queiroz<br />
apontava a escravidão como limite à adoção de políticas mais modernas de<br />
policiamento urba<strong>no</strong>. Propõe então o confinamento dos escravos nas fazendas e<br />
o rígido controle de seus deslocamentos 6 . Para Neder, nem o fim da escravidão<br />
e nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle<br />
social, da obediência cadavérica. A atuação da polícia nas favelas brasileiras <strong>no</strong>s<br />
dias de hoje é a prova viva deste legado.<br />
O período pós-emancipação <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> é marcado por profundas inquietações.<br />
A independência inspirava vários projetos para a nação que lutavam por<br />
hegemonia. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente,<br />
era a convivência do liberalismo com o sistema escravista.<br />
Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> 7 ,<br />
gostaríamos de refletir sobre o que Gizlene Neder de<strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u “iluminismo<br />
jurídico-penal luso brasileiro” 8 . A autora trabalha as transformações do <strong>Brasil</strong><br />
6. Cf. NEDER, Gizlene. Absolutismo e<br />
punição. In: Discursos Sediciosos - Crime,<br />
Direito e Sociedade, a<strong>no</strong> 1, n.º 1. Rio de<br />
Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 132.<br />
7. Robert Schwarz analisando Machado de<br />
Assis trabalha o liberalismo <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> como as<br />
“idéias fora do lugar”.<br />
8. NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal<br />
luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio<br />
de Janeiro: Instituto Carioca de Crimi<strong>no</strong>logia/<br />
Freitas Bastos, 2000.
colônia em Império Luso-<strong>Brasil</strong>eiro, a partir das Reformas Pombalinas em<br />
Portugal na passagem do século XVIII para o XIX. Compreendendo que os<br />
atores <strong>no</strong> poder eram bacharéis, ela trabalha a influência da reforma de Coimbra<br />
em 1772 e a criação dos cursos jurídicos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> em 1827.<br />
A idéia central de sua tese está baseada nas permanências históricoculturais<br />
de uma maneira de incorporar o liberalismo europeu sem rupturas<br />
com o tomismo, o militarismo e a religiosidade de <strong>no</strong>ssas matrizes ibéricas.<br />
Assim, busca-se sempre uma fórmula jurídica-ideológica que assimile uma<br />
hierarquização absolutista, que preserve as estratégias de suspeição e culpa do<br />
direito canônico e que mantenha vivos o arbítrio e as fantasias absolutistas de<br />
controle total.<br />
A herança jurídico-penal da inquisição ibérica é uma das marcas de um<br />
modelo de Estado que vinca a história do <strong>Brasil</strong> até os dias de hoje. “O discurso<br />
do direito penal, que tem a pretensão de exercer-se como locução legítima,<br />
numa língua oficial, está permanentemente produzindo sentidos que viabilizem<br />
a expansão do sistema penal, expansão que também se orienta na direção das<br />
mentalidades e da vida privada” 9 .<br />
Nesta herança, o dogmatismo legal se contrapõe ao pluralismo jurídico,<br />
o diferente é criminalizado, há uma coercitividade do consenso e uma<br />
manipulação dos sentimentos ativados pelo episódio judicial 10 . Para Batista,<br />
esses mecanismos sobrevivem e se agudizam em determinadas conjunturas<br />
políticas, reproduzindo o tratamento dispensado ao herege: o princípio da<br />
oposição entre uma ordem jurídica virtuosa e o caos infracional; a matriz do<br />
combate ao crime é feita como cruzada, com o extermínio como método contra o<br />
7<br />
9. BATISTA, Nilo. Os sistemas penais<br />
brasileiros. Aula inaugural dos cursos da<br />
Universidade Candido Mendes, proferida em<br />
12 de março de 2001, Rio de Janeiro.<br />
10. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do<br />
sistema penal brasileiro - vol. I. Rio de Janeiro:<br />
Instituto Carioca de Crimi<strong>no</strong>logia/Freitas<br />
Bastos, 2000.
8<br />
injusto que ameaça; é produzido um direito penal de intervenção moral baseado<br />
na confissão e <strong>no</strong> dogma da pena. Essa ordem jurídica intolerante e autoritária<br />
não suporta limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a<br />
tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como espetáculo.<br />
No processo que intitulam de história da programação criminalizante <strong>no</strong><br />
<strong>Brasil</strong>, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo<br />
praticados <strong>no</strong> corpo do suspeito ou condenado <strong>no</strong> âmbito privado vão dando<br />
sinais de anacronismo depois da independência e na constituição do capitalismo<br />
<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. As permanências, <strong>no</strong> entanto, são muitas: “a alçada criminal abrangia<br />
a pena de morte natural inclusive em escravos, gentios e peões homens livres,<br />
sem apelação nem agravo, salvo quanto às pessoas de mor qualidade, quando se<br />
restringiria a degredo por dez a<strong>no</strong>s e multa até<br />
cem cruzados” 11 .<br />
Do ponto de vista jurídico, do império das leis, as Ordenações Filipinas, que<br />
constituíram o eixo da programação criminalizante do <strong>Brasil</strong>-colônia, regeram<br />
o direito penal até a promulgação do código criminal de 1830. É importante<br />
frisar que <strong>no</strong> direito privado várias disposições das Ordenações Filipinas<br />
regeram até 1917! 12<br />
As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema<br />
penal são permanências históricas. Mas, a partir das contradições que<br />
surgem entre o sistema colonial-mercantilista e o capitalismo industrial que<br />
se configurava já na segunda metade do século XVIII, vai-se esboçando uma<br />
outra conjuntura. No bojo da Independência, a Constituição de 1824 produz<br />
algumas rupturas, ma <strong>no</strong>n troppo, que fazem parte do universo liberal <strong>no</strong><br />
conjunto das idéias fora do lugar da modernização à brasileira. Surgem as<br />
11. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio<br />
Raúl. Direito Penal <strong>Brasil</strong>eiro - I. Rio de<br />
Janeiro: Revan, 2003.<br />
12. Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio<br />
Raúl. Op. cit.
garantias individuais: “liberdade de manifestação do pensamento, proscrição<br />
de perseguições religiosas, liberdade de locomoção, inviolabilidade do domicílio<br />
e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o<br />
devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade<br />
das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado” 13 . É<br />
lógico que tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda<br />
a sua plenitude” que, mantendo a escravidão sem uma só letra da lei, instituiria<br />
a cilada da cidadania <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, digamos a ciladania, que pontua até hoje os<br />
discursos do liberalismo <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Como assinalou Machado Neto a cidadania<br />
<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> nasce restrita aos homens brancos e proprietários 14 .<br />
Essa <strong>no</strong>ssa história faz com que <strong>no</strong>sso sistema penal e <strong>no</strong>ssa maneira de<br />
pensar e sentir a questão criminal sejam marcados por práticas de extermínio,<br />
aniquilação e desqualificação jurídica do povo brasileiro advindas da predação<br />
colonial contra os povos originários e os afrodescendentes.<br />
Pensando então, na longa duração do autoritarismo <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, <strong>no</strong>s demos<br />
conta de que a “democracia” é um intervalo da <strong>no</strong>ssa história; na verdade, essa<br />
maneira de pensar e sentir a questão criminal é a grande permanência que<br />
atravessa o sentido do <strong>no</strong>sso sistema jurídico-penal. Para pensarmos <strong>no</strong>ssa<br />
“torturante contemporaneidade” <strong>no</strong>s remetemos ao momento de transição da<br />
ditadura civil-militar quando estava disseminada uma resistência às práticas do<br />
Estado de exceção. Foi naquele momento histórico que os meios de comunicação<br />
começaram a esculpir cotidianamente o <strong>no</strong>vo inimigo público, aquele que vai<br />
ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer com isso que a política<br />
criminal de drogas que <strong>no</strong>s é imposta <strong>no</strong> auge da ditadura pelos estadunidenses<br />
seria o grande vetor de extermínio e encarceramento <strong>no</strong> período democrático.<br />
9<br />
13. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio<br />
Raúl. Op. cit. p. 39.<br />
14. MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal<br />
e Estrutura Social: comentário sociológico ao<br />
Código <strong>Criminal</strong> de 1830. São Paulo: Edusp/<br />
Saraiva, 1977.
10<br />
Na geopolítica das drogas a América Latina foi transformada em campo de<br />
batalha. Produtora de maconha e cocaína, abalada por uma crise econômica<br />
que produziu, <strong>no</strong>s oitenta e <strong>no</strong>s <strong>no</strong>venta, multidões de camponeses sem<br />
terra e trabalhadores urba<strong>no</strong>s informais ou desempregados, <strong>no</strong>ssa parte da<br />
América inscreveu-se duplamente <strong>no</strong> mundo: através de <strong>no</strong>ssa inserção na<br />
divisão internacional do trabalho e <strong>no</strong> estereótipo pejorativo que acompanha a<br />
expressão “traficante”.<br />
Para enfrentar esta política criminal em forma de guerra, temos que<br />
desconstruí-la e para isso devemos romper com o discurso moral. Como disse<br />
Massimo Pavarini, mais moralidade como mais penalidade é o trágico equívoco<br />
de todas as campanhas punitivas 15 . As cruzadas contra as drogas, essa<br />
combinação de elementos morais, religiosos e de confronto, produziram, em<br />
muitos países da América Latina, um direito penal sem fronteiras, forjando em<br />
certas prisões federais algo que aspira a ser muito parecido com as imagens<br />
sinistras dos prisioneiros de Guantánamo.<br />
A ditadura, com suas campanhas de lei e ordem e sua política de segurança<br />
nacional, construiu assim o estereótipo político criminal do <strong>no</strong>vo inimigo<br />
inter<strong>no</strong>: o traficante. A guerra contra as drogas pôde assim garantir a<br />
permanência do aparato repressivo, aprofundando seu caráter autoritário e<br />
assegurando investimentos crescentes para o controle social e a segurança<br />
pública. Não foi só a infraestrutura que se manteve após o período militar: o<br />
<strong>no</strong>vo inimigo propiciou também a re<strong>no</strong>vação dos argumentos exterminadores, o<br />
aumento explosivo das execuções policiais e a naturalização da tortura. Tudo é<br />
<strong>no</strong>rmal se o alvo é o traficante nas favelas. Tivemos <strong>no</strong> Rio de Janeiro um projeto<br />
de ocupação militar nas áreas de pobreza em <strong>no</strong>me dessa guerra.<br />
15. PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso<br />
italia<strong>no</strong>. In: Revista Discursos Sediciosos:<br />
crime, direito e sociedade, nº 2. Rio de<br />
Janeiro: ICC, 1996. pp. 67-76.
Podemos, através dessa reflexão, pensar que talvez essa eco<strong>no</strong>mia de guerra seja<br />
o principal sentido da Guerra às Drogas, já que todos os seus objetivos explícitos<br />
configuram um retumbante fracasso. A produção, a comercialização e o consumo<br />
daquelas substâncias alcançadas pelo proibicionismo só aumentaram junto com<br />
as maiores taxas de encarceramento da história da humanidade e a violência<br />
disseminada pelas cidades e campos. Salo de Carvalho, na mais atual e completa<br />
obra sobre a questão das drogas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, critica “aquelas ideologias ocultadas<br />
pelos Aparelhos de Estado que inviabilizam a otimização dos Direitos Huma<strong>no</strong>s,<br />
demonstrando a diafonia existente entre o discurso oficial e a funcionabilidade do<br />
sistema de drogas fundados em legislações penais do terror” 16 .<br />
Salo critica historicamente a legislação penal sobre drogas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> com<br />
dispositivos vagos e indeterminados e uso abusivo de <strong>no</strong>rmas penais em<br />
branco, que “acabaram por legitimar sistemas de total violação das garantias<br />
individuais” 17 . O autor demonstra também o alinhamento legal do <strong>Brasil</strong><br />
à política estadunidense, a partir dos a<strong>no</strong>s setenta, através da absorção do<br />
discurso central em que o inimigo inter<strong>no</strong> seria o produtor e o traficante. Para<br />
ele o ápice do modelo jurídico-político ocorre ao final da década de setenta<br />
e início da década de oitenta, “com a total incorporação dos postulados da<br />
Doutrina de Segurança Nacional na concepção de seguridade pública”, dentro<br />
das categorias desenvolvidas pelos teóricos da ditadura militar (geopolítica,<br />
bipolaridade, guerra total e inimigo inter<strong>no</strong>).<br />
Esta conjuntura produziu o que de<strong>no</strong>minei de adesão subjetiva à barbárie<br />
que constitui a crescente demanda coletiva por castigo e punição 18. Nas sendas<br />
11<br />
16. CARVALHO, Salo de. A Política <strong>Criminal</strong><br />
de Drogas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Rio de Janeiro. Ed.<br />
Luam, 1996, p. 10.<br />
17. Op. cit., p. 27.18. Cf. BATISTA, <strong>Vera</strong><br />
<strong>Malaguti</strong>. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc<br />
Wacquant e a questão penal <strong>no</strong> capitalismo<br />
neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.<br />
18. Cf. BATISTA, <strong>Vera</strong> <strong>Malaguti</strong>. Adesão<br />
Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a<br />
questão penal <strong>no</strong> capitalismo neoliberal. Rio<br />
de Janeiro: Revan, 2012.
12<br />
de Foucault, Edson Lopes <strong>no</strong>s demonstra as afinidades entre os assujeitamentos<br />
e a subjetividade imposta pela cultura punitiva, que tem na figura da vítima<br />
seu principal dispositivo, e <strong>no</strong> medo sua mais potente metodologia. No<br />
próprio campo do marxismo, Melossi já anunciara o deslocamento entre o<br />
poder punitivo e as condições objetivas, através da constituição dessa colossal<br />
demanda por pena.<br />
Na virada do século XX o neoliberalismo produziu uma perda geral de<br />
intensidade do trabalho: o capital é agora vídeo-financeiro 19 . A <strong>no</strong>va demanda<br />
por ordem vai exigir o controle do tempo livre. A prisão não é mais lucrativa pelo<br />
trabalho dos presos, mas pela sua gestão, a ser terceirizada e privatizada, pela<br />
sua simbiose com as periferias urbanas e pelo seu capital simbólico. A indústria<br />
do controle do crime vai gerar uma <strong>no</strong>va eco<strong>no</strong>mia, com seus medos, suas<br />
blindagens, suas câmeras, suas vigilâncias, sua arquitetura. A segurança privada<br />
vai substituir a construção civil como grande absorvedora de mão de obra<br />
desqualificada. Nesta <strong>no</strong>va configuração, a prisão não só não desapareceu como<br />
se expandiu como nunca. Expandiu-se e articulou-se para fora dos seus limites<br />
com dispositivos de vigilância, com as medidas fora da prisão, e também com o<br />
controle pela medicação.<br />
Neste cenário surgem as penas alternativas, numa perspectiva de alternativas<br />
à pena, como a partir de Radbruch diria Alessandro Baratta. Pensadas como<br />
estratégias de desafogamento da justiça penal, elas podem acabar por impor um<br />
controle social mais capilarizado, mais minucioso, que vai estender os tentáculos<br />
do poder punitivo aos peque<strong>no</strong>s conflitos do cotidia<strong>no</strong>, bem <strong>no</strong> espírito da<br />
devassa inquisitorial que o fundou. A juridicização do cotidia<strong>no</strong> vai criar um<br />
19. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O<br />
Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro: Espaço<br />
e Tempo, 1997; e As Ruínas do Pós-Real.<br />
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995.
conjunto de dispositivos biopolíticos: o controle dos conflitos privados vai<br />
demandar juristas e demais especialistas para se tornar o centro da vida política.<br />
As estratégias de mediação e restauração aparecem como alternativas à<br />
pena na conjuntura dos a<strong>no</strong>s setenta e oitenta. Seu maior risco é, ao invés de<br />
desjudicializar os procedimentos, expandir a mentalidade judicial para os<br />
“<strong>no</strong>vos operadores”. Observemos o caso do júri, dispositivo jurídico nascido<br />
historicamente da pretensão política de ser o sujeito julgado por seus pares,<br />
por seus iguais. Na tradição brasileira, as sentenças populares costumavam ser<br />
mais generosas do que aquelas geradas pelo saber dogmático penal. Hoje dá-se<br />
o contrário: o senso comum crimi<strong>no</strong>lógico punitivo inculcado pela grande mídia<br />
produziu uma ferocidade crescente na mentalidade dos jurados brasileiros. A<br />
tradição garantista do pensamento jurídico, antes considerada conservadora,<br />
vai ser lembrada saudosamente e vai tornar-se vanguarda se comparada<br />
à sanha punitiva alimentada pelas coberturas midiáticas espetaculares.<br />
Pensemos também em alguns fatos <strong>no</strong>ticiados, <strong>no</strong>s quais os Conselhos Tutelares,<br />
concebidos para democratizar a justiça dirigida a crianças e adolescentes,<br />
transformam-se em dispositivos policialescos, prontos a penalizar e criminalizar<br />
as relações familiares, principalmente as dos pobres.<br />
O principal poder decantado desse conjunto de movimentos punitivos vai<br />
ser a legitimação da intervenção moral, da invasividade do Estado penal nas<br />
relações familiares e de vizinhança. Quanto maior a conflitividade social<br />
decorrente da devastação promovida pelo capital, maior deve ser a legitimidade<br />
da pena. O que vai articular essa <strong>no</strong>va eco<strong>no</strong>mia política é a constituição de uma<br />
cultura punitiva. A indústria cultural e a grande mídia vão tratar de inculcar<br />
diariamente o dogma da pena e o respectivo modelão penal já decadente <strong>no</strong>s<br />
Estados Unidos: das bugigangas eletrônicas à prisão supermax privatizada.<br />
O importante é punir mais, melhor e por muito tempo: o negócio dos cárceres<br />
precisa de muitos hóspedes e de longas estadias... É aquele processo que<br />
13
14<br />
Wacquant chama de remasculinização do Estado, que produz um giro do social<br />
para o penal e que terá efeitos tanto <strong>no</strong>s orçamentos públicos como na prioridade<br />
discursiva, colonizando a assistência social pela “lógica punitiva e panóptica<br />
característica da burocracia penal pósreabilitação” 20 .<br />
O livro de <strong>Vera</strong> Andrade, A Ilusão de Segurança Jurídica, traz uma profunda<br />
reflexão sobre as promessas não cumpridas do sistema penal e seu afastamento<br />
de análises empíricas sobre seu real funcionamento 21 . Afinal, o Direito Penal<br />
surge na Europa revolucionária do século XVIII para conter a barbárie do poder<br />
punitivo do absolutismo.<br />
Se o positivismo surge na Europa na ambiência dos medos pósrevolucionários,<br />
suas verdades científicas ajudaram a desqualificar as utopias de<br />
igualdade, demonstrando uma hierarquia de raças que legitimava o colonialismo<br />
em curso. Quando falamos do positivismo como cultura e sua recepção nas<br />
colônias queremos afirmar que essa cultura, de longa duração, produziu não só<br />
uma maneira de pensar a questão criminal, mas principalmente uma maneira de<br />
senti-la: afetividades punitivas que naturalizam a truculência e cultuam a pena<br />
como solução mágica e restauradora de todos os conflitos.<br />
Ao começar a escrever uma história da crimi<strong>no</strong>logia na América Latina, Rosa<br />
del Olmo estudou a importação de saberes e pautas vindos do Hemisfério Norte<br />
produzindo uma verdadeira ocupação estratégica que tomava corpo em cátedras,<br />
seminários e publicações. Na virada do XIX para o XX (transição da escravidão e<br />
da República) o positivismo se torna o saber/poder hegemônico na compreensão<br />
da complexa questão criminal. Nessa conjuntura o positivismo crimi<strong>no</strong>lógico<br />
ajudava a neutralizar a potência dos desejos de nação “mestiços” e “degenerados”.<br />
20. WACQUANT, Loïc. Loïc Wacquant e a<br />
questão penal <strong>no</strong> capitalismo neoliberal. <strong>Vera</strong><br />
<strong>Malaguti</strong> Batista (organizadora). Rio de Janeiro:<br />
Revan, 2012.<br />
21. ANDRADE, <strong>Vera</strong> Regina Pereira de. A<br />
ilusão da segurança jurídica: do controle da<br />
violência à violência do controle penal. Porto<br />
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
A auto-patologização aprofundava os fossos construídos entre os homens<br />
brancos e proprietários e o resto do <strong>no</strong>sso povo.<br />
Tendo como objetivo maior a manutenção da ordem social projetada da<br />
escravidão para a República, o positivismo crimi<strong>no</strong>lógico se travestia de técnica,<br />
encobrindo com o fetiche criminal sua natureza política. É Nilo Batista quem<br />
<strong>no</strong>s assevera dessa função encobridora dos conflitos sociais que é o dispositivo<br />
crime. No <strong>Brasil</strong> republica<strong>no</strong> o desenvolvimento das instituições policiais estarão<br />
participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medicina<br />
social, muito mais abrangente. Flamínio Fávero afirma que “...a medicina legal<br />
deve agir, de preferência na elaboração e execução de certas leis que demandam<br />
conhecimentos de ordem biológica a fim de que a ordem social permaneça” 22 .<br />
Aquele paradoxo da introdução do cartesianismo em Portugal acompanha essa<br />
<strong>no</strong>va estratégia de dotar a fé na ciência de uma reedição racional do salvacionismo.<br />
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente<br />
enraizada na intelligentzia e nas práticas sociais e políticas brasileiras, ele<br />
foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado,<br />
patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcio<strong>no</strong>u, e funciona,<br />
como um grande catalizador da violência e da desigualdade características do<br />
processo de incorporação da <strong>no</strong>ssa margem ao capitalismo central.<br />
Descolonizar <strong>no</strong>ssa elaboração da questão criminal impõe uma ruptura<br />
radical com aquela objetificação e hierarquização das <strong>no</strong>ssas matrizes<br />
inquisitoriais. A consolidação da mentalidade obsidional europeia produziu<br />
uma máquina de classificação e seletividade para lidar com o seu grande Outro.<br />
Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramática. Como diz<br />
Zaffaroni, nascemos como um continente que é instituição de sequestro e na<br />
15<br />
22. Correa, Mariza. (1998). As Ilusões da<br />
Liberdade. Bragança Paulista: Edusf, p. 224.
16<br />
atualidade essa vocação se aprimorou. Milhões de lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>s apodrecem<br />
em prisões abaixo de todos os padrões de dignidade. A intensidade dos conflitos<br />
sociais e sua leitura penal positivista produziu o maior encarceramento da<br />
<strong>no</strong>ssa história, e a política criminal de drogas prestou grande contribuição<br />
neste processo. Quanto mais prendemos e matamos pior ficamos e os meios de<br />
comunicação vão produzindo um discurso tautológico que gera adesão subjetiva<br />
à barbárie: demanda por mais pena e mais severidade penal.<br />
O pensamento crimi<strong>no</strong>lógico em <strong>no</strong>ssa margem precisa mergulhar na<br />
<strong>no</strong>ssa história. Nem os povos originários do <strong>Brasil</strong> e nem os africa<strong>no</strong>s que <strong>no</strong>s<br />
povoaram tinham a necessidade de polícia ou de sistema penal para resolver<br />
seus conflitos. A justiça de transição da África do Sul contemporânea é um<br />
exemplo disso. Há alguns meses atrás, <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, uma nação indígena não aceitou<br />
o resultado de um júri considerando aquela cerimônia como brutal. Nós, que<br />
naturalizamos as violências e o caráter ge<strong>no</strong>cida de <strong>no</strong>sso sistema penal, estamos<br />
numa encruzilhada ética e civilizacional: ou aprofundamos radicalmente <strong>no</strong>ssa<br />
crítica ao poder punitivo ou estaremos eternizando ad infinitum <strong>no</strong>ssa autocolonização.<br />
É esse o sentido de estarmos discutindo aqui alternativas penais,<br />
elaborando coletivamente, a partir da <strong>no</strong>ssa realidade, <strong>no</strong>vos caminhos para a<br />
administração de <strong>no</strong>ssa conflitividade social.
17
#Publicação comissionada pela<br />
Fundação Bienal de São Paulo<br />
em ocasião da 32a Bienal de São<br />
Paulo - Incerteza Viva.<br />
#Publication commissioned by<br />
Fundação Bienal de São Paulo on<br />
the occasion of the 32a Bienal of<br />
São Paulo - Incerteza Viva.
oficina<br />
imaginação<br />
política<br />
lugar de agência e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar<br />
intervenção <strong>no</strong>s sistemas de (re-)produção e invenção de mundos<br />
implicação ética nas contradições e paradoxos das coletividades<br />
OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos<br />
de pesquisa, leituras públicas, apresentações, oficinas,<br />
intervenções, instalações, escrita, tradução e produção de<br />
publicações como esta. <strong>no</strong> contexto da 32a bienal de são<br />
paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboração<br />
entre jota mombaça, rita natálio, thiago de paula, valentina<br />
desideri, diego ribeiro e amilcar packer.<br />
FANPAGE OIP<br />
FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS
<strong>Vera</strong> <strong>Malaguti</strong> Batista<br />
é Professora Adjunta<br />
de Crimi<strong>no</strong>logia da<br />
Universidade do Estado<br />
do Rio de Janeiro e<br />
Secretária-Geral do<br />
Instituto Carioca de<br />
Crimi<strong>no</strong>logia.