DOSSIER Maio de 68 14 | PRAXIS MAG
Da crise estudantil à crise política | João Moreira e Pierre Marie As longas semanas de Maio de 1968 constituíram a maior crise revolucionária vivida na Europa capitalista entre o fim da II Guerra Mundial e o golpe militar de 25 de Abril de 1974. Tenha sido um “psicodrama”[1] ou um mero “regresso às ideologias utópicas”[2], facto é que a crise de Maio de 68 ofereceu à sociedade francesa um empenho político e ideológico que não se lhe reconhecia desde 1945. Apesar das narrativas que visam “recalcar o trauma representado pela aliança operário-estudantil” - presentes na extensa “miríade de ensaios” e livros de vária ordem - o processo hoje comumente conhecido como Maio de 68 não deixa de representar “a maior greve geral da história europeia”[3] assumida por 10 milhões de trabalhadores. A “rutura pessoal coletivamente partilhada com as esferas do poder, do país e do passado”, que tinha como objetivo “subverter a sociedade, e não fugir-lhe ou pô-la apenas de lado”[4], encontraria eco nas respostas de Daniel Cohn-Bendit, principal dirigente estudantil, a Jean-Paul Sartre numa entrevista a 13 de maio daquele ano: “Neste momento o objetivo é derrubar o governo. […] O importante não é elaborar uma reforma na sociedade capitalista mas lançar uma experiência em rutura completa com essa sociedade”. A vontade de transformação do antigo eurodeputado e da grande massa de estudantes e trabalhadores franceses era inequívoca. Cohn-Bendit diria ainda ao filósofo francês: “Podemos imaginar um outro sistema no qual toda a gente trabalha nas tarefas de produção – reduzidas ao mínimo graças aos progressos técnicos – e em que cada um tenha a possibilidade de prosseguir, paralelamente, estudos contínuos”. Note-se que a predisposição revolucionária e anti-burocrática presente nos manifestantes de Paris e das maiores cidades francesas – das primeiras greves em Caen em Janeiro até a efêmera “Comuna de Nantes”– não estava isolada no plano internacional. Uma série de revoltas e processos revolucionários em todo o mundo - da Re- volução na China, em 1949, à Revolução Cubana, em 1959; da Revolução Húngara em 1956, à Primavera de Praga, naquele ano, das lutas de libertação nacional à Guerra do Vietname – contribuíram para influenciar a juventude e os trabalhadores franceses e para a formação deum espectro-vaga que, em larga medida, confirmava a atualidade da revolução internacional proclamada pelos clássicos do marxismo. Mesmo a leste, em Praga, a revolução tendia a aprofundar a rutura com a burocracia e não com o socialismo, ao contrário do que afirma a historiografia dominante. Jiris Hochman, comunista checo, diría: “Não pomos em perigo o socialismo, pelo contrário. Quem ameaçamos na realidade é a burocracia que, de forma lenta mas segura, está a enterrar o socialismo à escala mundial. Esta é a razão porque não podemos aspirar a uma cooperação e a uma fraternal compreensão por parte da burocracia”[5]. As três crises de Maio-Junho de 1968 Em França, o primeiro pólo de contestação nasceu no meio estudantil, crescendo progressivamente nas escolas secundárias e sobretudo nas Universidades. Note-se que grande parte da juventude francesa encontrava-se em rutura com a sociedade do pós-guerra, dominada “A tentativa quase permanente de associar o processo insurrecional de Maio a qualquer devaneio coletivo e estudante-juvenil (...) não sobrevive à prova dos factos” [1]Aron, Raymond (2018). Memórias. Lisboa: Guerra e Paz, p. 480. [2] Hobsbawm, Eric (2005). Tempos Interessantes – Uma Vida no Século XX. Porto: Campo das Letras, p. 31. [3] Braga, Ruy e Bianchi, Álvaro (2008). «1968 e depois: os estudantes e a condição proletária» in Outubro, V. 17, pp. 15-40, p. 17-20. [4] Hobsbawn, idem, p. 330. PRAXIS MAG | 15