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A Rua como<br />
espaço comum<br />
insurreccionário<br />
| Inês Almeida<br />
“Utopia? Ora, ora! Que fungadelas condescendentes são essas?”<br />
Raoul Vaneigem, Arte de Viver para a Geração Nova<br />
“Le système se nourrit de sa contestation, digère ses oppositions, se régénère de ses<br />
contradictions”<br />
Daniel Bensaïd e Alain Krivine, 1968 – fins et suites<br />
I<br />
Os processos de construção da memória como instrumento político<br />
são omnipresentes na herança histórica colectiva, quer ela esteja anotada<br />
por estudiosos ou percorra uma narrativa popular maioritária,<br />
reactiva às propostas de selecção do que aconteceu pelos instrumentos<br />
de poder. O caso do Maio de ’68 constitui um paradigma de absoluta<br />
distorção da memória (já o seria de qualquer forma, bem o sabemos),<br />
desta feita apresentando um acentuado nevoeiro de testemunhos, que<br />
transformam aquela mobilização num mito inesquecível, mas também<br />
num lugar-comum. Esta banalização[1], embelezada pela estereotipização<br />
do revolucionário-modelo e da insurreição-tipo, trivializada<br />
pela abundância de escritos, molda um dos traços da inércia política.<br />
A descrição exaustiva dos acontecimentos é acompanhada de lições<br />
moralistas a retirar dos passos e contra-passos desta dança de espontaneidade<br />
que encontrou em si espaço público para a absoluta inovação,<br />
como para a ausência de estruturas que sustentassem o começo<br />
da sua queda. A apropriação da esquerda partidária da responsabilidade<br />
pelo movimento civil, em todos os seus quadrantes, em nome das<br />
massas e da rebelião contra o Estado é contraposta pelo monopólio<br />
da legitimidade exigido pelos seus participantes activos da época, depois<br />
desiludidos e transformados em narradores da democracia liberal.<br />
O excesso cansa o leitor e recondu-lo aos tópicos de base: o ideal<br />
para a esquerda, um capricho rebelde de jovens e trabalhadores ingénuos<br />
para a direita. A simplificação termina a busca do interessado.<br />
A solução parece ser tentar recuperar algumas constituintes<br />
da insurreição e os vagos contornos da sua memória<br />
(contribuindo, sem dúvida, para a análise transbordante).<br />
18 | PRAXIS MAG<br />
Os critérios descritivos do Maio de ’68 que utilizarei<br />
são os sucintos quatro vectores de Alain Badiou:<br />
1) a revolta estudantil e liceal, aliás em curso a nível mundial,<br />
baseada na ideologia, de vocabulário marxista, com a noção<br />
de Revolução profundamente presente e com a legitimação<br />
da violência em pleno, cujo símbolo máximo é a Sorbonne;<br />
2) a acção operária desses anos e, sobretudo, de Maio e Junho, que<br />
torna a saída à rua a maior greve geral da História de França, ultrapassando<br />
as estruturas sindicais, cruzando múltiplos sectores de indústria, com<br />
muitos operários jovens a ocupar os locais de trabalho e a recusar a negociação<br />
– o seu expoente máximo no caso da fábrica Renault-Billancourt;<br />
3) o Maio libertário é o da transformação de costumes, revolução<br />
sexual e implantação da semente feminista e o começo da luta pelos<br />
direitos das várias identidades e orientações sexuais, acompanhadas de<br />
uma valorização individual que será a grande sobrevivente do movimento.<br />
Pelas suas vozes múltiplas sem unificação possível ou desejável,<br />
o símbolo deste tipo de Maio é o teatro de Odéon e a sua invasão;<br />
4) Há ainda um último tipo de caminho percorrido em ’68<br />
e até ao fim da década seguinte, o da procura de uma nova concepção<br />
política, diminuído o prestígio da via eleitoral, descredibilizados<br />
os grupos partidários que se diziam representantes do caminho<br />
revolucionário. Apresenta-se, assim, um agente passível de<br />
se insurgir a qualquer momento, sob que formas queira agir; a via<br />
eleitoral perde muito do seu prestígio, pois que a democracia que<br />
não representa as rupturas e reconhece os movimentos civis que se<br />
[1] Ross, Kristin, May ’68 and Itis Afterlives, London, Chicago Press, 2002.