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Praxis Magazine | Edição 0

Maio 2018

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A Rua como<br />

espaço comum<br />

insurreccionário<br />

| Inês Almeida<br />

“Utopia? Ora, ora! Que fungadelas condescendentes são essas?”<br />

Raoul Vaneigem, Arte de Viver para a Geração Nova<br />

“Le système se nourrit de sa contestation, digère ses oppositions, se régénère de ses<br />

contradictions”<br />

Daniel Bensaïd e Alain Krivine, 1968 – fins et suites<br />

I<br />

Os processos de construção da memória como instrumento político<br />

são omnipresentes na herança histórica colectiva, quer ela esteja anotada<br />

por estudiosos ou percorra uma narrativa popular maioritária,<br />

reactiva às propostas de selecção do que aconteceu pelos instrumentos<br />

de poder. O caso do Maio de ’68 constitui um paradigma de absoluta<br />

distorção da memória (já o seria de qualquer forma, bem o sabemos),<br />

desta feita apresentando um acentuado nevoeiro de testemunhos, que<br />

transformam aquela mobilização num mito inesquecível, mas também<br />

num lugar-comum. Esta banalização[1], embelezada pela estereotipização<br />

do revolucionário-modelo e da insurreição-tipo, trivializada<br />

pela abundância de escritos, molda um dos traços da inércia política.<br />

A descrição exaustiva dos acontecimentos é acompanhada de lições<br />

moralistas a retirar dos passos e contra-passos desta dança de espontaneidade<br />

que encontrou em si espaço público para a absoluta inovação,<br />

como para a ausência de estruturas que sustentassem o começo<br />

da sua queda. A apropriação da esquerda partidária da responsabilidade<br />

pelo movimento civil, em todos os seus quadrantes, em nome das<br />

massas e da rebelião contra o Estado é contraposta pelo monopólio<br />

da legitimidade exigido pelos seus participantes activos da época, depois<br />

desiludidos e transformados em narradores da democracia liberal.<br />

O excesso cansa o leitor e recondu-lo aos tópicos de base: o ideal<br />

para a esquerda, um capricho rebelde de jovens e trabalhadores ingénuos<br />

para a direita. A simplificação termina a busca do interessado.<br />

A solução parece ser tentar recuperar algumas constituintes<br />

da insurreição e os vagos contornos da sua memória<br />

(contribuindo, sem dúvida, para a análise transbordante).<br />

18 | PRAXIS MAG<br />

Os critérios descritivos do Maio de ’68 que utilizarei<br />

são os sucintos quatro vectores de Alain Badiou:<br />

1) a revolta estudantil e liceal, aliás em curso a nível mundial,<br />

baseada na ideologia, de vocabulário marxista, com a noção<br />

de Revolução profundamente presente e com a legitimação<br />

da violência em pleno, cujo símbolo máximo é a Sorbonne;<br />

2) a acção operária desses anos e, sobretudo, de Maio e Junho, que<br />

torna a saída à rua a maior greve geral da História de França, ultrapassando<br />

as estruturas sindicais, cruzando múltiplos sectores de indústria, com<br />

muitos operários jovens a ocupar os locais de trabalho e a recusar a negociação<br />

– o seu expoente máximo no caso da fábrica Renault-Billancourt;<br />

3) o Maio libertário é o da transformação de costumes, revolução<br />

sexual e implantação da semente feminista e o começo da luta pelos<br />

direitos das várias identidades e orientações sexuais, acompanhadas de<br />

uma valorização individual que será a grande sobrevivente do movimento.<br />

Pelas suas vozes múltiplas sem unificação possível ou desejável,<br />

o símbolo deste tipo de Maio é o teatro de Odéon e a sua invasão;<br />

4) Há ainda um último tipo de caminho percorrido em ’68<br />

e até ao fim da década seguinte, o da procura de uma nova concepção<br />

política, diminuído o prestígio da via eleitoral, descredibilizados<br />

os grupos partidários que se diziam representantes do caminho<br />

revolucionário. Apresenta-se, assim, um agente passível de<br />

se insurgir a qualquer momento, sob que formas queira agir; a via<br />

eleitoral perde muito do seu prestígio, pois que a democracia que<br />

não representa as rupturas e reconhece os movimentos civis que se<br />

[1] Ross, Kristin, May ’68 and Itis Afterlives, London, Chicago Press, 2002.

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