Contato VIP - Agosto de 2019 - Passo Fundo
Edição da Revista Contato VIP do mês de Agosto de 2019, com a capa de circulação da cidade de Passo Fundo/RS
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<strong>VIP</strong> | Crônica<br />
Por uma<br />
mãe boa o<br />
suficiente<br />
John Everett<br />
Millais, Ophelia<br />
Luciana Lhullier<br />
Mestre em Teoria<br />
Literária pela<br />
PUCRS, a autora dos<br />
livros No Coração<br />
da Floresta e A<br />
Casa <strong>de</strong> Dentro e<br />
Outras Loucuras foi<br />
professora, tradutora<br />
e intérprete.<br />
Atualmente é<br />
editora-chefe da<br />
Editora Desdêmona.”<br />
Ophelia é uma das personagens secundárias<br />
da peça Hamlet, o Príncipe da<br />
Dinamarca, <strong>de</strong> William Shakespeare.<br />
Na peça, a personagem morre afogada,<br />
num provável suicídio. Ela, que amava Hamlet, vê-se<br />
privada <strong>de</strong> seu amor e passa a dar mostras <strong>de</strong> loucura<br />
após a morte do pai, Polônio, que fora assassinado pelo<br />
próprio Hamlet. Enquanto a ruptura <strong>de</strong> Ophelia com<br />
a realida<strong>de</strong> acontece <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, Hamlet apenas finge<br />
per<strong>de</strong>r o juízo para conseguir saber <strong>de</strong>talhes acerca da<br />
morte do falecido Rei Hamlet, seu pai, e vingá-lo.<br />
Ao longo dos tempos, o interesse <strong>de</strong> diversos artistas<br />
recaiu sobre Ophelia, mais precisamente sobre sua<br />
loucura e morte nas águas. Não há outra personagem<br />
<strong>de</strong> Shakespeare que tenha sido mais retratada na<br />
pintura. Talvez a obra mais lembrada <strong>de</strong>sse grupo seja<br />
a <strong>de</strong> Millais, em que o corpo <strong>de</strong> Ophelia boia nas águas<br />
do riacho, com uma expressão serena, os olhos abertos,<br />
e ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> flores. Representando o tipo feminino<br />
da noiva ou amada morta em plena juventu<strong>de</strong> – tipo<br />
favorito dos poetas românticos – constituía-se em um<br />
mo<strong>de</strong>lo melancólico e inatingígel <strong>de</strong> mulher.<br />
Sem qualquer menção da existência <strong>de</strong> uma mãe ou<br />
figura materna, sequer <strong>de</strong> uma ama, e completamente<br />
circunscrita aos homens que a ro<strong>de</strong>iam, Ophelia foi<br />
criada para agir em conformida<strong>de</strong> com as exigências<br />
do meio, para refletir os <strong>de</strong>sejos dos outros.<br />
Ela sofre <strong>de</strong> uma falta <strong>de</strong> tradições femininas – não<br />
apenas a ausência <strong>de</strong> mulheres em sua história pessoal,<br />
mas também a ausência <strong>de</strong> qualquer influência feminina<br />
estável e duradoura em sua vida, o que seria tradicionalmente<br />
o papel materno. A ausência inexplicada<br />
e inexplicável <strong>de</strong> uma mãe para Ophelia na história<br />
torna Polônio, seu pai, o único e altamente precário<br />
mo<strong>de</strong>lo a seguir.<br />
Ophelia não tem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria por conta <strong>de</strong> seu<br />
pai querer moldá-la para seus (<strong>de</strong> Polônio) propósitos.<br />
Ele acredita que os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> Ophelia <strong>de</strong>vem ser os<br />
mesmos seus. Como Ophelia não conhece nenhuma<br />
influência mais significativa além do pai e do irmão Laertes,<br />
acaba por per<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina, <strong>de</strong>ixando-se<br />
moldar pelos <strong>de</strong>sejos da figura masculina.<br />
Na primeira aparição <strong>de</strong> Ophelia em Hamlet, Laertes a<br />
acompanha e a aconselha em relação ao relacionamento<br />
com Hamlet. Des<strong>de</strong> o início, Laertes e Polônio tratam a<br />
vida particular e amorosa <strong>de</strong> Ophelia como se fosse um<br />
assunto <strong>de</strong> negócios familiares. Ambos acreditam ser<br />
incumbência sua (<strong>de</strong>les) dizer a Ophelia como ela <strong>de</strong>ve se<br />
comportar.<br />
Na ausência <strong>de</strong> Laertes, Polônio assume a tarefa <strong>de</strong> controlar<br />
o relacionamento <strong>de</strong> Ophelia com Hamlet, dizendo<br />
à filha que ela não conhece a si mesma, insultando sua<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o que se passa e também<br />
revelando sua possessivida<strong>de</strong> e sua preocupação <strong>de</strong> que ela<br />
sirva a seus propósitos gananciosos.<br />
O principal interesse <strong>de</strong> Polônio em relação a Ophelia é o<br />
<strong>de</strong> que ela aja <strong>de</strong> acordo com o padrão social, mantendo<br />
as aparências, pois, no entendimento do pai, o comportamento<br />
da filha é resultado direto <strong>de</strong> seu sucesso como<br />
oficial público e como progenitor.<br />
Shakespeare propositadamente mostra Ophelia como inferior<br />
às personagens masculinas, particularmente Polônio<br />
e Laertes. Ela é tão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sse relacionamento que,<br />
fora <strong>de</strong>le, não sabe pensar ou agir por conta própria.<br />
Ophelia não tem um propósito por si só na historia; ela é<br />
o joguete <strong>de</strong> Polônio, a irmã casta <strong>de</strong> Laerte e a amante <strong>de</strong><br />
Hamlet. Quando essas influências masculinas <strong>de</strong>saparecem<br />
e essas <strong>de</strong>scrições não se aplicam mais a ela, Ophelia<br />
per<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e enlouquece.<br />
Paradoxalmente, é na loucura que Ophelia se liberta. O<br />
suicídio <strong>de</strong> Ophelia é sua primeira e última “escolha autônoma”.<br />
Enquanto a noção mórbida <strong>de</strong> que o suicídio se<br />
torna a única rota possível para autonomia nos golpeia no<br />
estômago, pensamos na coragem <strong>de</strong> Shakespeare <strong>de</strong> mostrar<br />
o mal que se po<strong>de</strong> fazer a uma mulher, quando se lhe<br />
roubam todas as referências femininas. A maior injustiça<br />
que se po<strong>de</strong> cometer com uma menina é negar-lhe uma<br />
boa mãe.<br />
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