<strong>VIP</strong> | Crônica Por uma mãe boa o suficiente John Everett Millais, Ophelia Luciana Lhullier Mestre em Teoria Literária pela PUCRS, a autora dos livros No Coração da Floresta e A Casa <strong>de</strong> Dentro e Outras Loucuras foi professora, tradutora e intérprete. Atualmente é editora-chefe da Editora Desdêmona.” Ophelia é uma das personagens secundárias da peça Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, <strong>de</strong> William Shakespeare. Na peça, a personagem morre afogada, num provável suicídio. Ela, que amava Hamlet, vê-se privada <strong>de</strong> seu amor e passa a dar mostras <strong>de</strong> loucura após a morte do pai, Polônio, que fora assassinado pelo próprio Hamlet. Enquanto a ruptura <strong>de</strong> Ophelia com a realida<strong>de</strong> acontece <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, Hamlet apenas finge per<strong>de</strong>r o juízo para conseguir saber <strong>de</strong>talhes acerca da morte do falecido Rei Hamlet, seu pai, e vingá-lo. Ao longo dos tempos, o interesse <strong>de</strong> diversos artistas recaiu sobre Ophelia, mais precisamente sobre sua loucura e morte nas águas. Não há outra personagem <strong>de</strong> Shakespeare que tenha sido mais retratada na pintura. Talvez a obra mais lembrada <strong>de</strong>sse grupo seja a <strong>de</strong> Millais, em que o corpo <strong>de</strong> Ophelia boia nas águas do riacho, com uma expressão serena, os olhos abertos, e ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> flores. Representando o tipo feminino da noiva ou amada morta em plena juventu<strong>de</strong> – tipo favorito dos poetas românticos – constituía-se em um mo<strong>de</strong>lo melancólico e inatingígel <strong>de</strong> mulher. Sem qualquer menção da existência <strong>de</strong> uma mãe ou figura materna, sequer <strong>de</strong> uma ama, e completamente circunscrita aos homens que a ro<strong>de</strong>iam, Ophelia foi criada para agir em conformida<strong>de</strong> com as exigências do meio, para refletir os <strong>de</strong>sejos dos outros. Ela sofre <strong>de</strong> uma falta <strong>de</strong> tradições femininas – não apenas a ausência <strong>de</strong> mulheres em sua história pessoal, mas também a ausência <strong>de</strong> qualquer influência feminina estável e duradoura em sua vida, o que seria tradicionalmente o papel materno. A ausência inexplicada e inexplicável <strong>de</strong> uma mãe para Ophelia na história torna Polônio, seu pai, o único e altamente precário mo<strong>de</strong>lo a seguir. Ophelia não tem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria por conta <strong>de</strong> seu pai querer moldá-la para seus (<strong>de</strong> Polônio) propósitos. Ele acredita que os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> Ophelia <strong>de</strong>vem ser os mesmos seus. Como Ophelia não conhece nenhuma influência mais significativa além do pai e do irmão Laertes, acaba por per<strong>de</strong>r a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> feminina, <strong>de</strong>ixando-se moldar pelos <strong>de</strong>sejos da figura masculina. Na primeira aparição <strong>de</strong> Ophelia em Hamlet, Laertes a acompanha e a aconselha em relação ao relacionamento com Hamlet. Des<strong>de</strong> o início, Laertes e Polônio tratam a vida particular e amorosa <strong>de</strong> Ophelia como se fosse um assunto <strong>de</strong> negócios familiares. Ambos acreditam ser incumbência sua (<strong>de</strong>les) dizer a Ophelia como ela <strong>de</strong>ve se comportar. Na ausência <strong>de</strong> Laertes, Polônio assume a tarefa <strong>de</strong> controlar o relacionamento <strong>de</strong> Ophelia com Hamlet, dizendo à filha que ela não conhece a si mesma, insultando sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o que se passa e também revelando sua possessivida<strong>de</strong> e sua preocupação <strong>de</strong> que ela sirva a seus propósitos gananciosos. O principal interesse <strong>de</strong> Polônio em relação a Ophelia é o <strong>de</strong> que ela aja <strong>de</strong> acordo com o padrão social, mantendo as aparências, pois, no entendimento do pai, o comportamento da filha é resultado direto <strong>de</strong> seu sucesso como oficial público e como progenitor. Shakespeare propositadamente mostra Ophelia como inferior às personagens masculinas, particularmente Polônio e Laertes. Ela é tão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sse relacionamento que, fora <strong>de</strong>le, não sabe pensar ou agir por conta própria. Ophelia não tem um propósito por si só na historia; ela é o joguete <strong>de</strong> Polônio, a irmã casta <strong>de</strong> Laerte e a amante <strong>de</strong> Hamlet. Quando essas influências masculinas <strong>de</strong>saparecem e essas <strong>de</strong>scrições não se aplicam mais a ela, Ophelia per<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e enlouquece. Paradoxalmente, é na loucura que Ophelia se liberta. O suicídio <strong>de</strong> Ophelia é sua primeira e última “escolha autônoma”. Enquanto a noção mórbida <strong>de</strong> que o suicídio se torna a única rota possível para autonomia nos golpeia no estômago, pensamos na coragem <strong>de</strong> Shakespeare <strong>de</strong> mostrar o mal que se po<strong>de</strong> fazer a uma mulher, quando se lhe roubam todas as referências femininas. A maior injustiça que se po<strong>de</strong> cometer com uma menina é negar-lhe uma boa mãe. 82 | contatovip.com.br
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