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<strong>TRANSE</strong> EM TRÓPICO<br />
OBJETO PARA ENTERRO . OBJETO PARA DESTRUIÇÃO<br />
adriane de luca<br />
Logo que li o e-mail com os pedidos sobre os objetos e o alerta sobre a “irreversibilidade” do processo proposto,<br />
juntei a negação ao questionamento interno sobre os limites da minha participação, que já tinham sussurrado,<br />
desde quando falou-se em substâncias psicoativas. Guardados a ansiedade, o exagero e essa tendência à<br />
sabotagem, tentei entender, reduzir, enumerar algumas questões.<br />
Não há qualquer objeto-afetivo que eu desejaria ver no meu enterro. Não há qualquer objeto-afetivo que eu<br />
desejaria me ver destruindo.<br />
A morte se aproximou íntima e bruscamente para a minha criança aos sete anos. Irreversível nunca, delicada<br />
sempre. Meu devir é de (re)construir, não destruir.<br />
As metáforas sempre explicam melhor a vida. Ajudaram a redirecionar a energia e encarar o exercício. Escolhi<br />
para destruir um objeto-memória de viagem. Um presente que ele menosprezara e eu guardei. O massageador.<br />
Metálico e pontiagudo. Agora que estava envolvida, tinha a certeza que direcionando a intenção, poderia ter até<br />
um certo prazer nessa ação. Pensava em esfregar no asfalto, desfigurar. Talvez até ver saírem faíscas. Mas<br />
choveu e a ação teria que se dar na sala. Tive que pensar outra estratégia para os 10 rounds. Então, com a<br />
mesma eficiência do fazer uma prova de vestibular, escolhi as questões mais fáceis para começar e garantir o<br />
desempenho minimamente satisfatório. Tirei a corda de fecho e arrebentei as costuras do saquinho de tecido<br />
que o guardava, desfiei tudo ao máximo que pude até ter de enfrentar o objeto em si. Comecei a girar uma das<br />
hastes metálicas e me surpreendi com a facilidade com que ela soltou da pega de madeira, depois torci ela<br />
deformando, de forma a que não voltaria a ficar reta. Fiquei motivada com essa sacada e repeti o mesmo com<br />
todas as hastes. O objeto já tinha ficado inútil, mas eu queria ver tudo em pedaços. Virou um desafio. A pega<br />
de madeira não seria fácil destruir. Tentei raspar com as pontas metálicas das hastes, mas mal afetou o verniz.<br />
Tentei roer, também em vão. Com a boca é ação é visceral. Gostei. O tempo acabou.<br />
O cortejo devia ter durado muito mais. Tempo para o ritual se instaurar. Conexão ao novo estado dos objetos e<br />
do grupo. No altar resgatei meu repertório-conforto: construímos.<br />
Para o enterro - que não vou ter pois quero ser cremada - busquei o objeto mais antigo que consegui que elas<br />
guardassem, mesmo com todas as mudanças de casa, de estado, de continente: ‘Arca de noé’. Que me traria<br />
alegria, sem dúvida. Vou saber todas as músicas quando esse vinil cor-de-rosa começar a tocar. Vinícius,<br />
bichos e cantores incríveis giravam na minha vitrolinha vermelha, eu cantava tudo de cor (di cuore). Misturamos<br />
às cartas, em que eu não matava nada em mim, ‘cala a boca já morreu’. E o exercício da cabeça. Tão difícil<br />
soltar tendo o corpo vivo, pronto para o movimento. O peso todo morto é um estado mais fácil de entrega, mas<br />
só a cervical dissociada me deixa confusa. Descoordenada.<br />
#morte, #irreversivel, #devir, #rounds, #desafio, #visceral, #cortejo, #estado, #dissociada, #descoordenada,<br />
#TransEmTropico