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Ansiedade

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ansiedade



Rita Lino



fotografia de

Pedro Tomás Silva (Tofu)




Tentar explicar o que acontece comigo, o que vai dentro da minha cabeça,

tudo isso parece impossível. Como é que se explica algo que nem nós próprios

compreendemos? Como é que se explica algo que nos faz perder o controlo? Por

onde começamos, quando nos sentimos perdidos, sufocados, amarrados?

Perder o controlo: é isso que a ansiedade faz a alguém. E, ironicamente, o

maior medo de alguém ansioso é… de perder o controlo. Não sei se é irónico ou

não. Talvez não tenha escolhido a palavra correta, mas, hoje, não vou submeter-me

ao perfeccionismo que a ansiedade impõe.

Explicar isto a alguém é demasiado difícil. Percebê-lo também. Não há

nenhuma parte fácil neste processo. Até o simples “deixar acontecer” é difícil,

porque, só o facto de saber como me vou sentir depois, faz com que fique ansiosa

e não queira que aconteça (e, esse estado faz com que a intensidade aumente e é

ainda pior).




A primeira vez que falei abertamente sobre isto (não tão abertamente, porque

estava a morrer de vergonha) foi com uma profissional de saúde (que era minha

professora e foi notando os sinais ao longo do tempo). Foi difícil falar, por vergonha,

mas não tão difícil, porque não havia necessidade de explicar tudo - afinal, ela via

casos destes todos os dias e já sabia o que era.

Depois tive de explicar à minha psicóloga. Foi um desafio, porque, ela sabe o

que é, mas faz de conta que não só para me obrigar a falar. Não adianta ser

teimosa com ela. Ela é ainda mais e não vou sair dali sem falar. Novamente, veio a

vergonha. Contar a vida a uma estranha. E se ela for contar a alguém? E se me

julgar? E se achar que sou doida? E se…? E se…? Ansiedade no seu melhor.

Depois de ser tranquilizada um milhão de vezes (exagerando, mas não tanto

quanto isso), entrei na fase “mas para quê?”, “Ela não sabe o que sinto.”, “Por mais

que tente explicar, ela não está dentro de mim e não vai compreender, mesmo que

diga que compreende, esse é o trabalho dela”. Então, talvez deva contar só para eu

me sentir melhor, mais leve, aliviada, não sei o nome disso também.


Tenho a dizer que aprendi muitas coisas nas consultas. Elas não servem para

sair mais aliviada. Não servem para estar só a desabafar. São, antes, formas de me

abalar, sacudir, agitar. Percebi que é doloroso, mas necessário. E acabei por gostar,

porque os benefícios chegam com o tempo e dependem do meu empenho a fazer o

“trabalho de casa”.

Sim, às vezes, é preciso que os momentos de terapia sirvam de porto seguro,

refúgio e espaço para respirar. E, sim, isso também acontece. Mas as mudanças só

são possíveis com o resto.

Confiança, ingrediente principal para que resulte. Posso não acreditar em mim,

mas já aprendi a acreditar na minha psicóloga. Geralmente, ela tem razão (só

porque não quero dizer que tem sempre razão). Mesmo que eu seja teimosa e tente

mostrar-lhe que ela está errada, ela mostra-me e eu mostro a mim mesma que ela

está certa. Acho que isso é importante e ajuda-me a crescer e a lidar com os

problemas.




Não sei.

É esse o estado. Não sei. Estado de indefinição. Não sei o que sinto. Mas

sinto demasiado.

Não sei o que penso. Mas penso demasiado. E em demasiadas coisas. Posso

desligar um bocadinho? Por favor?

Queria ter um botão. Só para fazer uma pausa.

Às vezes, o Pedro consegue fazer-me entrar em pausa. É bom. São minutos

que me fazem respirar e querer viver. Às vezes, viver é bom. Nesses momentos, é

muito bom. E são esses momentos que ajudam a aguentar o caos dos outros

momentos.

Há pessoas que seguram as nossas paredes quando está tudo a ruir. Quando,

por dentro, já está tudo corroído.

(será que tenho mais radicais livres do que as outras pessoas e, por isso, já

estou mais oxidada no meu interior?)

E há pessoas, que, além de segurarem as nossas paredes, vão apanhando os

nossos pedacinhos.


Tenho medo, medo que as pessoas se cortem nos meus pedacinhos partidos.

Não quero magoar ninguém. Se eu te magoar, se te cortares com os meus

pedaços, vais continuar a lutar por mim? Desculpa se te magoar, não quero que

isso aconteça.

Como é que se protege alguém que amamos de nós mesmos? Talvez saindo

da vida dessas pessoas? Mas temos o direito de sair da vida delas, sem lhes

perguntar o que querem? Sem sabermos se elas querem correr o risco de se

magoarem, para estarem ao nosso lado?

Já o tentei fazer. Várias vezes. O Pedro ensinou-me que não tenho esse

direito. Não tenho o direito de me ausentar da vida das pessoas para as proteger,

porque elas preferem ter-me e correr o risco, do que me perderem sem poderem

fazer nada.

A nossa vida não é só nossa. É, também, um pedacinho de cada pessoa que

amamos. Eu não pertenço só a mim. E isso faz-me parar sempre que quero fugir

disto tudo. Porque, não estou só a matar-me a mim na minha solidão. Estou,

também, a matar cada pedaço de mim que habita em corpos diferentes - um

pedaço em cada pessoa que amo.




Tenho medo. Tenho tanto medo.

Posso fugir hoje? Fico no teu coração. Fico sempre viva, aí. Para sempre, num

cantinho guardada. Num cantinho pequenino com uma mantinha quentinha.

- 6 dezembro 2019 -


Houve uma altura em que eu achava que tudo iria passar e eu iria esquecer.

Como aquela vez em que estive constipada no 8º ano (não me lembro se isso

aconteceu, mas é provável que tenha acontecido, visto ficar constipada quase

todos os invernos). Achei mesmo que era possível esquecer tudo isto. Mas não é.

Andei a enganar-me a mim mesma. Enganei-me por uma boa causa. Se eu

não tivesse mesmo acreditado nisso, não teria feito todo o esforço que fiz e que, de

algum modo, continuo a fazer (lá no fundo, tenho sempre a esperança de que, um

dia, eu vá esquecer tudo isto).

Isto não passa. Não vai embora. Simplesmente, aprendemos a lidar melhor

com isto. Eventualmente, um dia, direi “Olá! Tudo bem? Ficas um pouco e depois

vais embora, porque tenho mais coisas para fazer”.

Aprendi que isto é daquelas coisas que se ofende e fica agressiva se

tentarmos ignorar e fugir. É melhor reparar nela, darmos espaço a nós próprios para

vivermos um bocadinho com ela e depois deixá-la ir (geralmente, quando caímos

para o lado de exaustão).




Cair para o lado de exaustão depois de chorar duas horas seguidas é como

desmaiar. Parece que a luz falhou e apagou-se tudo. Geralmente, não sei quanto

tempo fico apagada. Posso ficar trinta minutos ou horas (depende do nível de

exaustão).

Quando se vai embora, ficam sempre efeitos secundários: a minha memória

parece uma pintura impressionista: algo está lá, mas é tudo vago, coberto de

nevoeiro. Às vezes, lembro-me de falar com alguém, mas não sei com quem.

Também perco a noção do tempo. Mas isso não é só em relação ao momento em

si. É em relação a toda a minha vida. Não consigo ter a noção do tempo nem de

como este passa. Não me lembro da ordem cronológica dos eventos e tenho de

fazer um esforço extra quando algo fora da minha rotina acontece, porque quebra a

minha tentativa de controlar minimamente o tempo. Por isso é que gosto tanto de

rotinas. Sinto-me segura, consigo controlar o que acontece e consigo alocar as

memórias aos eventos.


Ler um livro tornou-se uma tarefa difícil (e eu adoro ler. Antes, era capaz de ler

mil páginas em três dias). Agora, tenho de lidar com a minha memória e

concentração variáveis. Às vezes, não me lembro do que a frase anterior dizia e

tenho de reler vezes sem conta a mesma página. Isso faz com que ler uma página

possa demorar eternidades e eu fique frustrada comigo mesma. Não posso exigir

demasiado de mim e tenho de me contentar com o que consigo fazer, dentro das

minhas capacidades atuais.

Percebi que vou ter sempre estes pensamentos dentro de mim. Nem que seja

na forma de recordações dos meus planos.

Às vezes, não sei por que é que aparecem. Surgem sem eu estar à espera (a

minha cabeça é mais rápida do que o meu “eu” consciente).

É estar à espera do comboio, olhar para a linha e, de repente, lá está a ideia e

a recordação dos planos.

É pegar nas caixas dos medicamentos e fazer cálculos sobre a dose que me

faria dormir para sempre.




É não poder ter um x-ato no meu estojo e evitar materiais cortantes.

É percorrer o caminho mais longo para evitar aquela árvore especifica.

É não usar uma combinação de roupa específica, porque é a roupa do meu

“último dia”.

É ter uma sensação de paz e calma perturbadora sempre que estou perto de

uma ponte. É estranho como esse é o sítio onde parece que respiro melhor, sendo

que é um dos sítios onde tentei respirar pela última vez. Talvez seja o sítio onde me

encontro a mim mesma. Talvez uma parte de mim tenha ficado nesses sítios e eu

decida voltar para me reunir com eles. A Dra. Liliana diz que é uma forma de me

sentir segura, porque sei que tenho sempre essa opção e que cabe a mim ter a

força suficiente para não a escolher. É, também, o sítio onde me lembro com mais

intensidade das pessoas que fazem parte da minha vida e relembro os momentos

que passamos juntos.

Ver a vida em revista tem os seus impactos. Ver o que fizemos e o que ficou

por fazer. Ver as pessoas com quem falamos. Ouvir a voz delas pela última vez.


O Pedro diz que as pessoas não são indispensáveis. Eu discordo. Todas as

vezes, eu fiquei, não por coisas, não por experiências, não por mim. Mas sim, pelas

pessoas. Se elas fossem dispensáveis, não teria motivos para ficar. Nem as

palavras delas teriam impacto na minha decisão.

A minha cabeça é um lugar perigoso no qual não confio para estar. Às vezes,

entro em piloto-automático e deixo-me levar, porque estou cansada de lutar contra

mim mesma.

Hoje o Pedro parou-me. Entrei em piloto-automático e ele foi atrás de mim.

Parou-me. Aquela não era a Rita em que ele podia confiar.

É difícil ouvir que alguém não consegue confiar em nós. Mas, nem eu própria

confiaria, se gostasse de mim. Se gostasse de mim, não me deixaria entregue a

mim mesma. Foi o que ele fez e, por mais que doa saber que não é possível confiar

em mim neste momento, foi a melhor coisa que ele fez. Tomou conta de mim e

agora continuo aqui.




Tenho medo. Tenho medo de mim mesma. Quando ele não estiver aqui, quem

me vai salvar de mim mesma? Quem vai perceber que eu não estou segura comigo

mesma?

Acho que, a maioria das pessoas não tem a noção do caos dentro de alguém,

aparentemente, tão calmo.

Posso gritar e pedir que não me deixem sozinha? Por favor?

Hoje não me deixes sozinha comigo mesma, por favor.

Hoje, abraça-me, diz o quanto gostas de mim, como se fosse a última vez que

me visses, como se a minha vida dependesse disso.

Ajuda a salvar-me.

- 9 dezembro 2019 -



agradecimentos

Obrigada, Pedro, por me protegeres de mim mesma, por me tornares mais

forte e por tornares o mundo num lugar mais bonito para eu viver. Obrigada por me

apoiares e estares sempre ao meu lado. Obrigada, também, por seres o fotógrafo

que trouxe a minha ideia para a realidade. Amo-te.

Obrigada, Diogo, por acreditares (e fazeres-me acreditar) que escrever pode

ajudar a melhorar o mundo. Obrigada por ouvires as minhas ideias fora de horas.

Obrigada pela amizade verdadeira.

Obrigada, Nuno, por acreditares que sou a melhor madrinha do mundo,

mesmo quando és tu a tomar conta de mim. Obrigada por me apoiares e

acreditares que consigo percorrer este caminho, por mais difícil que seja.

Obrigada, Dra. Liliana, por me mostrar que posso dar mais tempo a mim

mesma e que posso acreditar na felicidade. Obrigada por ter sido a primeira a

acreditar em mim e a ensinar-me a acreditar em mim mesma.


2019-2020



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