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Verão 2023 – Edição 10

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VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong><br />

Et cetera<br />

Gente com Bossa<br />

Guido Sant’Anna: o jovem mestre do violino<br />

Entrevista com Aranha sobre saúde mental<br />

Timothy Wilson e a vida no espectro autista<br />

Eduardo Kobra, o homem dos murais gigantes<br />

A literatura jovem de Thalita Rebouças<br />

Angelita Habr-Gama, ícone da medicina brasileira<br />

E a versatilidade do ator Antonio Fagundes:<br />

“Não existe arrependimento,<br />

existe evolução. Os erros<br />

fazem parte do cotidiano”<br />

Distribuição gratuita


Foto: Getty Images<br />

Expediente<br />

Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e <strong>Edição</strong>: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />

Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />

Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />

Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br


Sumário<br />

Capa: Antonio Fagundes<br />

Foto: Bob Sousa<br />

06 Roteiro<br />

As melhores sugestões de filmes, séries,<br />

livros, discos, espetáculos teatrais e<br />

exposições imperdíveis neste verão<br />

<strong>10</strong><br />

O X da Bossa<br />

Em seu artigo, Daniel Motta junta-se a Maurício<br />

Pontuschka, CTO do grupo BMI, para desvendar<br />

os caminhos que apontam para os novos<br />

arquétipos organizacionais<br />

20<br />

Crônicas e Tal<br />

A humanidade simplesmente se recusa<br />

a mergulhar na pós-modernidade?<br />

Romantismo é o tema da crônica de<br />

Alessandra Lotufo<br />

22<br />

Gente com Bossa<br />

Et cetera reuniu uma seleção de craques da<br />

cultura, do esporte e da ciência para celebrar a<br />

edição número <strong>10</strong>. Gente com jogo de cintura,<br />

resiliência, versatilidade e talento de sobra<br />

24<br />

Q&A Etc.<br />

O ex-goleiro Aranha fala sobre o episódio de<br />

racismo que ganhou repercussão nacional,<br />

em 2014, e a importância dos cuidados com<br />

saúde mental dentro e fora do esporte<br />

26<br />

Com a Palavra…<br />

Vencedor do prêmio de melhor ator<br />

coadjuvante no Festival do Rio, Timothy<br />

Wilson fala sobre a estreia na carreira<br />

artística e a vida no espectro autista<br />

28<br />

Guarde Este Nome<br />

De Parelheiros para o topo do mundo: aos 17<br />

anos, o violinista paulista Guido Sant’Anna<br />

venceu o prestigiado Concurso Internacional<br />

de Violino Fritz Kreisler<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Foto: Edu Rodrigues<br />

Foto: Walt Disney World Resort<br />

Foto: Silvia Machado<br />

30<br />

Antonio Fagundes<br />

A versatilidade de Antonio Fagundes transborda<br />

dos palcos e das telas para a vida pessoal: o<br />

ator ama os livros, é fã de videogame e fez sua<br />

primeira tatuagem aos 73 anos<br />

38<br />

Thalita Rebouças<br />

Com mais de 2 milhões de livros vendidos, Thalita<br />

Rebouças conquistou o público teen e se tornou um<br />

dos mais bem-sucedidos nomes do mercado literário<br />

nacional<br />

46<br />

Eduardo Kobra<br />

O muralista Eduardo Kobra já espalhou seus<br />

traços e cores por mais de 30 países, mas o duro<br />

caminho do pichador adolescente da periferia até<br />

o sucesso deixou sequelas<br />

54<br />

Angelita Habr-Gama<br />

Considerada uma das mais influentes<br />

cientistas do mundo, a cirurgiã Angelita<br />

Habr-Gama sobreviveu à Covid-19 e, aos 89<br />

anos, mantém a rotina de cirurgias e consultas<br />

Foto: Cláudia Ferreira<br />

63<br />

Uma Tendência<br />

Vem dos mares a tendência para <strong>2023</strong>: as algas<br />

marinhas são o superalimento que caiu no gosto<br />

dos millennials e da geração Z<br />

65<br />

Um Sabor<br />

A receita de Janaína Rueda, da Casa do Porco,<br />

ensina a preparar um prato do cardápio do<br />

sétimo melhor restaurante do mundo<br />

62<br />

Um Cartum<br />

A cartunista Laerte Coutinho dá uma dica de<br />

como voltar ao trabalho com energia depois da<br />

pausa de fim de ano<br />

64<br />

Uma Palavra<br />

A décima edição da Et cetera homenageia a<br />

escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da<br />

Literatura 2022, com um trecho de O Lugar<br />

66<br />

Uma Imagem<br />

O caminho da humanidade para o futuro é<br />

pavimentado por tecnologias como a inteligência<br />

artificial, autora da imagem em destaque nesta seção<br />

A revista Et cetera tem uma versão<br />

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notícias interessantes, fatos curiosos<br />

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[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Séries, filmes etc.<br />

The Last of Us<br />

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades<br />

Onde ver: Netflix<br />

Duração: 2h39min<br />

Um diretor no espelho<br />

Felliniano e pessoal, o filme Bardo, Falsa<br />

Crônica de Algumas Verdades, do mexicano<br />

Alejandro G. Iñárritu, causou<br />

furor onde foi exibido. No Festival de<br />

Veneza, o filme saiu sem prêmios, mas<br />

foi aplaudidíssimo. Na Mostra Internacional<br />

de Cinema de São Paulo, provocou<br />

filas enormes. O buzz justifica-se:<br />

é um dos melhores filmes do diretor.<br />

E ele já fez Birdman, Babel, 21 Gramas,<br />

Amores Brutos, dentre outros. Nessa<br />

obra, a história acompanha a jornada<br />

de um cineasta e jornalista mexicano<br />

que, após vencer um importante prêmio<br />

internacional, revê sua carreira e<br />

seus traumas ao voltar para seu país de<br />

origem. As referências autobiográficas<br />

são evidentes, já que, depois de conquistar<br />

dois Oscars de melhor direção<br />

seguidos, Iñárritu volta à sua terra natal<br />

em seu primeiro filme desde O Regresso,<br />

de 2015.<br />

Onde ver: HBO Max, a partir de 15 de janeiro<br />

Duração: <strong>10</strong> episódios<br />

Dos games às telas<br />

Muitos filmes e séries de sucesso já<br />

foram transformados em jogos de videogame.<br />

Foi assim com Matrix, Mad<br />

Max e Game of Thrones, por exemplo.<br />

Nos últimos anos, esse caminho tem se<br />

invertido, como aconteceu agora com<br />

a franquia The Last of Us, que saiu dos<br />

consoles para ganhar uma versão em<br />

live action. O chileno Pedro Pascal (de<br />

Narcos e The Mandalorian) e a inglesa<br />

Bella Ramsey (de Game of Thrones) são<br />

os protagonistas da produção assinada<br />

pela HBO. Num futuro distópico, os<br />

humanos foram infectados por uma<br />

doença que os transforma em seres<br />

monstruosos e agressivos. Os sobreviventes<br />

estão confinados numa opressiva<br />

zona de quarentena, mas Joel (Pascal)<br />

e a jovem Ellie (Ramsey) resolvem<br />

fugir em busca de um local menos<br />

inóspito. Para isso, terão de atravessar<br />

os devastados EUA sozinhos.<br />

Memory Box<br />

Onde ver: Prime Video,<br />

AppleTV+ e Vivo Play<br />

Duração: 1h41min<br />

Memórias latentes<br />

Maia, uma imigrante libanesa que<br />

mora em Montreal, no Canadá, recebe<br />

pelo correio uma caixa que ela havia<br />

enviado a uma amiga na década<br />

de 1980 cheia de fotos, fitas cassete e<br />

outras recordações. Preocupada em<br />

não reviver memórias da guerra civil<br />

que devastou seu país, Maia não abre<br />

a caixa, que é descoberta por sua filha<br />

adolescente, Alex. O passado da mãe<br />

em Beirute e o presente da filha em<br />

Montreal se misturam no filme Memory<br />

Box. Com direção compartilhada entre<br />

Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, o<br />

longa será o representante do Líbano<br />

no Oscar <strong>2023</strong>, na categoria Melhor<br />

Filme Estrangeiro. Conhecida por suas<br />

técnicas experimentais, a dupla de cineastas<br />

usou o diário e fitas reais de<br />

Joana datados entre 1982 e 1988 para<br />

misturar imaginação e realidade.<br />

Para ouvir<br />

Maturidade serena<br />

Mais um craque da geração que chegou<br />

aos 80 anos <strong>–</strong> como Caetano Veloso,<br />

Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Milton<br />

Nascimento, Tom Zé e Paulinho da<br />

Viola <strong>–</strong>, o maestro Francis Hime lança<br />

um novo álbum. Com 12 faixas instrumentais<br />

inéditas, Hime usa seu piano<br />

preciso e delicado para explorar ritmos<br />

consagrados (como a valsa) com uma<br />

pegada jazzística. No disco, o maestro<br />

aproveita também para homenagear<br />

parceiros que já se foram (Canção para<br />

Raphael Rabello e Canção para Luiz Eça)<br />

e sua mulher, a cantora Olivia Hime<br />

(Para Olivia). Os solos de piano combinam<br />

muito bem com a atmosfera do<br />

disco, com músicas que remetem à<br />

natureza, como Bucólica, Alvorada, Um<br />

Rio e Riachinho. Compositor e arranjador<br />

brilhante, aos 83 anos, Francis<br />

Hime está em paz consigo mesmo e<br />

com sua música.<br />

Estuário das Canções<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

Babilônia<br />

Onde ver: nos cinemas<br />

a partir de 6 de janeiro<br />

Duração: 3h09min<br />

Hollywood em transe<br />

Com mais de três horas de duração, o<br />

novo filme de Damien Chazelle (diretor<br />

de La La Land e Whiplash), com Brad<br />

Pitt e Margot Robbie, chega aos cinemas<br />

em janeiro. No final da década de<br />

1920, Hollywood passa por mudanças<br />

profundas, com a transição do cinema<br />

mudo para os filmes falados. Em<br />

Babilônia, a atriz Nellie LaRoy (Robbie)<br />

tenta migrar de um modelo para ou-<br />

tro sem perder seu status de estrela.<br />

A reconstituição de época impecável<br />

e a fotografia caprichada garantem<br />

uma atmosfera vintage ao filme. O roteiro<br />

faz uma reflexão sincera dos<br />

primórdios de Hollywood, mostrando<br />

a ambição descomunal e excessos<br />

de alguns, com a ascensão e queda<br />

de vários personagens durante uma<br />

era de grandes transformações na<br />

indústria do cinema.<br />

Bahia maravilha<br />

Mais conhecido por seu trabalho à<br />

frente do ótimo BaianaSystem, uma<br />

das bandas nacionais mais interessantes<br />

da atualidade, o inquieto músico<br />

Russo Passapusso lança seu segundo<br />

álbum solo. Para fazer seu disco, o<br />

baiano resgatou a dupla Antonio Carlos<br />

e Jocafi, que estourou nos anos<br />

1970 com Você Abusou, Mudei de Ideia e<br />

Desacato, entre outros sambas. O resultado<br />

é excelente. Com muito afrobeat e<br />

suingue, as músicas trazem elementos<br />

de axé, forró, baião e xaxado. Algumas<br />

faixas poderiam ter sido feitas por<br />

Gilberto Gil, por isso não surpreende<br />

quando ele surge cantando junto em<br />

Mirê Mirê. Tambores, guitarras, metais<br />

e cuíca misturam-se para produzir um<br />

som dançante, poderoso e brasileiro.<br />

Alto da Maravilha<br />

Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />

iTunes e Tidal<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 7<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 6


[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />

Para ler<br />

Os Ratos<br />

192 páginas<br />

Editora Todavia<br />

64,90 reais e 44,90 (e-book)<br />

Uma vida em um dia<br />

Publicado em 1935, o romance Os Ratos,<br />

do gaúcho Dyonelio Machado, é<br />

uma pérola da literatura brasileira modernista.<br />

Escrito em uma prosa ágil e<br />

sem rodeios, o livro conta a história de<br />

Naziazeno Barbosa, um humilde funcionário<br />

público que tem apenas um<br />

dia para pagar uma dívida de 53 mil-<br />

-réis com o leiteiro. Se não pagar, terá<br />

seu fornecimento de leite cortado. Em<br />

capítulos curtos, acompanhamos a an-<br />

gústia de Naziazeno desde a hora em<br />

que ele acorda até quando vai dormir.<br />

A pé e de bonde, o anti-herói se embrenha<br />

pelo centro de Porto Alegre em<br />

busca de dinheiro, empréstimos, agiotas<br />

e eventuais bicos que podem ajudá-lo<br />

<strong>–</strong> ou atrapalhá-lo ainda mais. À<br />

medida que o dia avança, o desespero<br />

de Naziazeno aumenta e a tensão psicológica<br />

cresce. Fora do catálogo das<br />

editoras há muitos anos, a reedição do<br />

livro reforça sua potência. E está ainda<br />

mais atual.<br />

Para visitar<br />

Águas de Monet<br />

Das muitas exposições imersivas que<br />

desembarcaram em São Paulo, esta<br />

é definitivamente a mais impressionante<br />

<strong>–</strong> e impressionista <strong>–</strong> até agora.<br />

São 285 reproduções de pinturas do<br />

francês Claude Monet (1840-1926) distribuídas<br />

num espaço de 4 mil metros<br />

quadrados. Grande parte das obras,<br />

como indica o título da mostra, retrata<br />

a água (um dos temas mais fugidios e<br />

difíceis de representar em uma pintura),<br />

com margens de rios, lagos e o Mar<br />

Mediterrâneo. O chão espelhado ajuda<br />

na experiência de “entrar” nas projeções,<br />

que são exibidas ora em 2D, ora<br />

em 3D, com movimentos e profundida-<br />

de: barcos navegam, águas do mar se<br />

agitam, árvores e flores balançam ao<br />

vento. O passeio é intensificado com<br />

uma impecável trilha sonora de músicas<br />

clássicas compostas pelo maestro<br />

que dá nome ao parque que abriga a<br />

exposição. O encontro de Villa-Lobos<br />

com Monet revela-se um acerto e tanto:<br />

a composição de imagens, sons e a própria<br />

arquitetura do espaço possibilitam<br />

uma experiência sensorial e emotiva.<br />

Até março de <strong>2023</strong>, com ingressos de<br />

60 a 160 reais.<br />

Monet à Beira d’Água<br />

Parque Villa-Lobos<br />

Ingressos: monetbeiradagua.com.br<br />

Uma Breve História da Igualdade<br />

304 páginas<br />

Editora Intrínseca<br />

69,90 reais e 46,90 (e-book)<br />

Otimismo bem-vindo<br />

É consenso que os maiores problemas<br />

da atualidade são o aquecimento climático<br />

e a desigualdade. O economista<br />

francês Thomas Piketty dedica suas<br />

pesquisas ao segundo desafio. Autor<br />

do caudaloso e já clássico O Capital no<br />

Século XXI, Piketty é especialista no<br />

assunto e conseguiu levar os temas<br />

desigualdade e distribuição de renda<br />

ao centro da agenda global. Seus livros<br />

são leitura de cabeceira de Barack Obama,<br />

Angela Merkel, Emmanuel Macron<br />

e toda a turma de Davos. Neste novo<br />

ensaio, Uma Breve História da Igualdade,<br />

o pesquisador aponta que, apesar<br />

dos retrocessos, existe um movimento<br />

histórico orientado para a igualdade.<br />

Em pouco mais de 300 páginas,<br />

Piketty conduz o leitor pelos grandes<br />

movimentos que moldaram o mundo:<br />

o crescimento do capitalismo, as revoluções,<br />

o imperialismo, a escravidão,<br />

guerras e a construção do Estado de<br />

bem-estar social. Com sólidos argumentos<br />

e muitos dados, o economista<br />

mostra-se otimista em relação ao progresso<br />

humano. Nos dias atuais, o otimismo<br />

é sempre bem-vindo.<br />

No palco<br />

Arte entre irmãos<br />

Janeiro é o último mês para ver a grandiosa<br />

mostra dos irmãos Gustavo e<br />

Otávio Pandolfo, os artistas grafiteiros<br />

Osgemeos, no CCBB do Rio. Inédita, a<br />

exposição foi feita sob encomenda para<br />

celebrar os 33 anos do centro cultural.<br />

O conjunto de obras inclui telas, instalações,<br />

animações e murais em espaços<br />

urbanos, que brincam com a imaginação<br />

dos visitantes. Um dos destaques<br />

da exposição é o trabalho em parceria<br />

com Banksy, um dos artistas urbanos<br />

mais influentes do mundo. Osgemeos<br />

acrescentam um personagem em uma<br />

obra de Banksy, e o britânico adiciona<br />

um elemento em uma pintura da dupla<br />

brasileira. A troca possibilita um<br />

curioso diálogo entre os artistas e seus<br />

elementos favoritos: a crítica social do<br />

britânico e o mundo onírico dos brasileiros.<br />

Outro ponto alto da mostra é a<br />

sala de projeções com fotos de obras<br />

dos irmãos Pandolfo em diferentes locais,<br />

como no Queens, em Nova York;<br />

em Ishinomaki, no Japão; e, claro, em<br />

São Paulo, cidade natal da dupla.<br />

Nossos Segredos — Osgemeos<br />

CCBB Rio<br />

Entrada gratuita<br />

As Quatro Estações do Gato<br />

96 páginas<br />

Estação Liberdade<br />

39,90 reais<br />

Sabedoria felina<br />

A artista chinesa Kwong Kuen Shan<br />

nasceu em Hong Kong, mas reside<br />

num pequeno vilarejo no País de Gales,<br />

Abergavenny, com seu marido e<br />

seus gatos. Pintora e escritora, ela já<br />

publicou mais de dez livros, todos com<br />

aquarelas de sua autoria, muitos deles<br />

com os felinos como protagonistas.<br />

Acaba de ser lançado no Brasil seu último<br />

título, As Quatro Estações do Gato,<br />

de 2019. Com 40 delicadas aquarelas,<br />

a obra traz uma seleção de fragmentos<br />

da sabedoria milenar chinesa, indo de<br />

provérbios antigos às máximas do filósofo<br />

Confúcio. Com pitadas de bom<br />

humor tanto nos textos quanto nas<br />

imagens, a obra traz reflexões sobre o<br />

caminho percorrido durante uma vida,<br />

em uma analogia com as quatro estações<br />

do ano. Seus modelos favoritos, os<br />

inquietos e irresistíveis gatos, ilustram<br />

as aquarelas. Delicada, a obra agrada<br />

não só os amantes dos felinos. Com<br />

textos leves, mas com profundidade.<br />

Um solo de Clarice<br />

Depois de uma temporada de sucesso<br />

no Rio, a peça Um Dia a Menos desembarca<br />

em São Paulo. Baseada no conto<br />

homônimo de Clarice Lispector, com<br />

adaptação e direção de Leonardo Netto,<br />

a peça narra um dia na vida de Margarida<br />

Flores, uma mulher que, após<br />

a morte de sua mãe, vive solitária na<br />

mesma casa onde nasceu e cresceu.<br />

Cabe à atriz Ana Beatriz Nogueira interpretar<br />

a protagonista. Sozinha em<br />

casa, Margarida se prepara para mais<br />

uma jornada entediante entre afazeres<br />

cotidianos, até que o telefone toca e<br />

tudo muda. A atuação de Ana Beatriz,<br />

bastante elogiada, consegue imprimir<br />

as nuances necessárias no dia de Margarida,<br />

alternando momentos cômicos,<br />

patéticos, de solidão e euforia. O cenário<br />

minimalista <strong>–</strong> uma poltrona, uma<br />

mesinha com um telefone e um copo<br />

d’água <strong>–</strong> reforça o trabalho e a presença<br />

de palco da atriz. Assim como no<br />

conto, mesmo num dia aparentemente<br />

banal, sobressai a humanidade da personagem<br />

atravessada pelo luto e pela<br />

solidão. Até 11 de fevereiro.<br />

Um Dia a Menos<br />

Teatro Renaissance<br />

Ingressos: teatrorenaissance.com.br<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 9<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 8


[O X DA BOSSA]<br />

As<br />

organizações<br />

do futuro<br />

Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa; e<br />

Maurício Pontuschka <strong>–</strong> Chief Technology Officer na BMI<br />

Quais são as atuais inspirações para novos<br />

arquétipos organizacionais? O paradigma<br />

Estrutura, Comportamento e Dinâmica pode<br />

ajudar a conectar os pontos entre desafios das<br />

organizações e sistemas computacionais<br />

Foto: Getty Images<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 11<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. <strong>10</strong>


Para que servem as organizações?<br />

Difícil imaginar um mundo sem organizações. Todas as dimensões de nossa vida circulam em torno de algum tipo de organização,<br />

de igrejas a governos. E isso é algo positivo para a sociedade. Ao mesmo tempo, é difícil visualizar um momento organizacional<br />

estável absoluto. As organizações também evoluem naturalmente <strong>–</strong> por vezes, com sobressaltos <strong>–</strong> em busca de<br />

sobrevivência e relevância. E três funções se destacam nesse processo:<br />

Coordenação<br />

Organizações <strong>–</strong> em especial, empresas privadas <strong>–</strong> são importantes porque criam mecanismos de gestão e estruturas capazes<br />

de processar informações e coordenar diversos agentes econômicos em escala. Diante de contextos caóticos e hostis, a capacidade<br />

de coordenação organizacional apresenta-se como grande diferencial. Ao longo do tempo, diferentes modelos de coordenação<br />

foram implementados e aperfeiçoados, enquanto outros eram descartados. No atual momento, as agendas de reconfiguração<br />

organizacional desafiam também este aspecto primordial: como otimizar a capacidade de coordenação das empresas?<br />

N<br />

Foto: Getty Images<br />

ovos modelos de negócios, novos imperativos organizacionais, novas expressões linguísticas. De inovações tecnológicas<br />

a ajustes nos padrões sociais, diversas rupturas estão nos radares executivos. Polissíndetos, metáforas e hipérboles são<br />

as figuras de linguagem corriqueiras nos tempos atuais. Ciclos de planejamento estratégico ressaltam conceitos como<br />

burning platform como ponto de partida para reflexões sobre novas possibilidades.<br />

Grandes transformações têm sido testemunhadas nos últimos tempos. Novos vetores de valor têm convivido com fundamentos<br />

consolidados, enquanto dogmas e paradigmas convencionais são postos em xeque. No entanto, as discussões sobre ruptura<br />

ainda superam as efetivas ações de ruptura. As intenções antecipam as realizações. Na vida prática das empresas, os processos<br />

de reconfiguração organizacional desenvolvem-se em doses homeopáticas, em modo test-drive. Conformidade, estabilidade e<br />

previsibilidade não estão fora de moda. Mas, de certo modo, estão buscando conviver com novos direcionamentos para o futuro.<br />

Sucessivas experimentações têm ocorrido em diferentes camadas das estruturas organizacionais: células ágeis, plataformas<br />

de aceleração e incubação de startups, estruturas flexíveis orientadas a projetos <strong>–</strong> desafiando, inclusive, instituições, leis e<br />

paradigmas. Há ainda certa tração na formação de holdings gestoras de portfólio de empresas. Outras experimentações estão<br />

sendo empreendidas em programas de incentivos, modelos de governança e sistemas de gestão. E também em relação a aspectos<br />

mais abstratos como linguagem e vestuário, ambiente de trabalho e proposta de valor.<br />

Bem-estar<br />

Uma organização não existe apenas para maximizar sua<br />

própria geração de resultado. Está sempre rodeada de múltiplos<br />

stakeholders, com suas diversas agendas de interesses,<br />

diferentes poderes de barganha e redes de influência. Essa<br />

tensão de forças define o potencial retorno sobre capital empregado<br />

ajustado ao nível de risco de um empreendimento. A<br />

própria existência de uma organização é, de certo modo, uma<br />

concessão da sociedade em prol de seu bem-estar. No caso<br />

de um empreendimento privado, por exemplo, o sistema de<br />

preços e o custo de capital definem sua própria viabilidade<br />

financeira. As organizações, portanto, existem para otimizar<br />

o bem-estar social dos stakeholders ao seu redor. E, por isso<br />

mesmo, desdobram-se em maximizar o retorno financeiro<br />

na perpetuidade para seus acionistas, proporcionar ambiente<br />

de trabalho favorável aos colaboradores, encantar os clientes,<br />

consolidar sua cadeia de valor, atender às expectativas gerais<br />

da sociedade. O vocabulário contemporâneo tem destacado<br />

termos como ESG, Diversidade e Inclusão, Centralidade do<br />

Cliente e Impacto. Esses e outros conceitos não são inéditos,<br />

apenas têm tracionado sua relevância na agenda organizacional<br />

inserida nesse dinâmico campo de forças.<br />

Eficiência<br />

Um verdadeiro nexus de contratos. Assim pode ser definida<br />

uma organização na visão acadêmica dos economistas. Com<br />

o objetivo de coordenar inúmeras atividades executadas por<br />

diversos agentes, uma organização gerencia infindáveis transações,<br />

cada uma delas com seus respectivos custos. Assim,<br />

minimizar custos de transação significa maximizar a eficiência<br />

organizacional. Os custos de transação agrupam o próprio<br />

ônus de coordenação das atividades produtivas e seu sistema<br />

de monitoramento, e também a observância dos direitos<br />

de propriedade e a negociação de contratos. A complexidade<br />

organizacional se relaciona com a própria incerteza e hostilidade<br />

das condições externas e com a dinâmica dos contratos<br />

subjacentes à existência de um empreendimento. A busca da<br />

eficiência, portanto, é uma jornada sem ponto de chegada.<br />

Tecnologia, processos, sistemas, pessoas e instalações podem<br />

ser otimizados em suas combinações de modo a maximizar a<br />

realização produtiva em relação ao capital empregado. Uma<br />

vez que o contexto externo está em constante transformação,<br />

a maximização de eficiência é sempre um novo desafio. Além<br />

de paradigmas produtivos e modelos operacionais, novos patamares<br />

de desempenho estão sendo desbravados.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 13<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 12


Interação entre concreto e abstrato<br />

A partir desse tripé essencial (coordenação, eficiência e bem-estar), a ambição é<br />

desenhada, combinando propósito, visão e estratégia. Mas toda ambição requer realização.<br />

O nível de potência organizacional refere-se à crítica convergência entre<br />

cultura, desenho e capacidades. Assim, o sucesso empresarial está no ajuste exato<br />

entre ambição e potência. Algo difícil de se concretizar, tanto pelos sucessivos desafios<br />

externos que impactam as diferentes camadas como pelas idiossincrasias<br />

internas que impedem o perfeito alinhamento das alavancas de potência.<br />

O processo de reconfiguração organizacional aborda diferentes aspectos. Alguns<br />

concretos, outros mais abstratos. Vale destacar a inexorável convivência entre o<br />

concreto e o abstrato. O lócus do trabalho, por exemplo, é um importante aspecto<br />

concreto da configuração organizacional, onde se manifestam as abstratas redes<br />

de influências e os concretos sistemas de gestão. Assim ocorre também em várias<br />

outras dimensões, como na combinação entre os concretos incentivos individuais e<br />

os abstratos pactos entre as equipes.<br />

Foto: Getty Images<br />

NORMAS<br />

GOVERNANÇA<br />

MAPA MENTAL<br />

SISTEMAS<br />

Linda, leve e solta<br />

TÁCITO<br />

PACTOS<br />

INFLUÊNCIA<br />

INCENTIVOS<br />

RESPONSABILIDADE<br />

PROCESSUAL<br />

A metáfora de empresas transatlânticas, com suas dificuldades de manobras súbitas em prol da consistência dos planos traçados<br />

de porto a porto, já é velha conhecida. No atual ritmo frenético e efêmero das transformações, o processo de reconfiguração<br />

organizacional reforça a importância da leveza como fator determinante de sucesso.<br />

A leveza expressa-se na própria estrutura com seus papéis e responsabilidades, regras de conduta, protocolos normativos, processos<br />

burocráticos, sistemas gerenciais e dimensionamento das equipes. Também pode ser compreendida no minimalismo da<br />

arquitetura, do vestuário, das interações sociais, do clima organizacional, da linguagem, do lócus do trabalho, dos símbolos de<br />

poder e do exercício da liderança.<br />

Mais princípios, menos protocolos. Mais compromissos, menos reportes. Mais colegiado, menos silos. Mais solto, menos sisudo.<br />

Mais admiração, menos submissão. Mais beleza, menos assédio. Mais experimentações, menos perfeição.<br />

Do ponto de vista processual, a configuração<br />

organizacional engloba a combinação<br />

das regras de governança, incentivos<br />

financeiros e não financeiros,<br />

sistemas de gestão e papéis e responsabilidades.<br />

Esses quatro conjuntos de<br />

elementos modelam a concretude das<br />

estruturas e dos fluxos diversos. Do<br />

ponto de vista tácito, ressaltam-se as<br />

normas grupais ancoradas em valores<br />

e crenças, as redes externas e internas<br />

de influência, os pactos acordados<br />

entre as equipes e os mapas mentais<br />

coletivos. São esses elementos agrupados<br />

que definem as dinâmicas e os<br />

comportamentos dos indivíduos e dos<br />

grupos pelas estruturas.<br />

As organizações navegam com mais<br />

facilidade <strong>–</strong> nem sempre com efetividade<br />

<strong>–</strong> nos aspectos processuais. Executivos<br />

e empreendedores, também<br />

colaboradores, conseguem visualizar<br />

com maior clareza a concretude em<br />

detrimento do abstrato. É muito mais<br />

fácil desenhar uma estrutura organizacional<br />

com suas caixinhas e fluxos<br />

do que compreender as normas grupais<br />

em todas as suas nuances implícitas<br />

e complexidades inconscientes.<br />

Entretanto, o concreto organizacional<br />

não se realiza sem sua contraparte<br />

abstrata. A partir das estruturas concretas,<br />

os aspectos tácitos modelam<br />

as dinâmicas e os comportamentos. A<br />

semiótica organizacional é definida em<br />

torno desses movimentos, símbolos e<br />

rituais. A capacidade organizacional<br />

em otimizar coordenação, eficiência e<br />

bem-estar também está diretamente<br />

condicionada pela integração fluida<br />

entre os aspectos processuais e tácitos.<br />

As percepções coletivas, tanto internas<br />

quanto externas, são definidas também<br />

nessa interação.<br />

O processo de reconfiguração organizacional<br />

consolida três principais<br />

imperativos para o atual e o futuro<br />

contexto dos empreendimentos relevantes:<br />

leveza, empatia e organicidade.<br />

A leveza manifestada no vestuário, na arquitetura e na linguagem também tem influenciado a horizontalização generalizada das<br />

áreas, com aumento da autonomia da linha de frente e transformação dos macro-objetivos estratégicos em objetivos microcósmicos<br />

sob gestão de equipes táticas. As organizações de vanguarda serão menos complexas e empoladas. Serão leves.<br />

Pela luz dos olhos teus<br />

Empatia é a palavra do momento no<br />

universo das empresas. O olhar cada<br />

vez mais atento para as aspirações,<br />

percepções e necessidades dos outros<br />

ao redor enfatiza a lógica de fora<br />

para dentro em curso em todas as dimensões,<br />

da centralidade do cliente<br />

à individualidade do colaborador, incluindo<br />

também a empatia nas agendas<br />

multistakeholder, com destaque<br />

para diversidade, equidade e inclusão,<br />

compromissos ambientais e sociais.<br />

Expressões como Client Success (CS),<br />

Client Experience (CX), User Experience<br />

(UX) e Customer Journey têm<br />

se proliferado como jargões contemporâneos<br />

na modelagem de negócios. A<br />

centralidade do cliente transformou-se<br />

em eixo primordial da geração de valor.<br />

De modo análogo, a escassez de capital<br />

humano especializado e a agenda<br />

latente de bem-estar no ambiente de<br />

trabalho têm direcionado abordagens<br />

empáticas nas relações trabalhistas<br />

em torno de questões coletivas e individuais.<br />

A própria saúde mental do colaborador<br />

deixou de ser temática tabu<br />

para assumir importância central nas<br />

práticas de gestão de pessoas.<br />

No âmbito mais amplo, as organizações<br />

estão acomodando as mudanças<br />

de poderes de barganha entre seus<br />

stakeholders. As recentes agendas ESG<br />

e DEI são ilustrações inequívocas de tal<br />

redistribuição de poderes, sendo que a<br />

maximização do retorno financeiro sobre<br />

capital hoje está sujeita a maiores<br />

condições de contorno.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 15<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 14


Da matemática à<br />

biologia<br />

A evolução dos sistemas computacionais<br />

sempre esteve em grande sintonia<br />

com os movimentos organizacionais<br />

ao longo de décadas. Com base em<br />

sucessivas interações e experimentações,<br />

a área da computação tem sido<br />

sempre desafiada, testando novos<br />

limites da tecnologia.<br />

O desenvolvimento de software nunca<br />

é um processo trivial. Inúmeros parâmetros,<br />

fatores e condições são relacionados<br />

de forma sistematizada para<br />

direcionamento de estrutura, comportamento<br />

e dinâmica. A própria arquitetura<br />

de software está diretamente relacionada<br />

com a forma como as equipes<br />

e os profissionais da área de computação<br />

desenvolvem suas metodologias.<br />

Os sistemas computacionais precisam<br />

estar aderentes ao contexto organizacional.<br />

Existe uma relação íntima entre<br />

método e resultado final.<br />

A área da computação nasceu a partir<br />

das áreas da Física e da Matemática,<br />

que influenciaram a maneira como<br />

as primeiras linguagens foram concebidas.<br />

Enquanto a Física forneceu<br />

o aparato tecnológico das válvulas,<br />

transistores, chips e microprocessadores,<br />

a Matemática atuou no âmbito do<br />

software com as analogias para a criação<br />

de comandos e funções, elementos<br />

básicos dessas linguagens. Agora, a<br />

Biologia tem assumido cada vez mais<br />

protagonismo em função da organicidade<br />

das infinitas conexões em sistemas<br />

abertos.<br />

Assim como na configuração dos sistemas<br />

organizacionais, a modelagem de<br />

sistemas computacionais também pode<br />

ser compreendida em três grandes<br />

blocos: Estrutura, Comportamento e<br />

Dinâmica. A estrutura identifica os elementos,<br />

suas relações e a forma como<br />

estão organizados. O comportamento<br />

está associado às ações realizadas por<br />

cada elemento ou cada conjunto de elementos,<br />

focando na produção de resultados<br />

de valor. Finalmente, a dinâmica<br />

mostra como esses elementos intera-<br />

gem de maneira a suportar os objetivos<br />

do projeto como um todo, atendendo a<br />

requisitos de escopo e escala.<br />

Embora os sistemas tenham se tornado<br />

cada vez mais complexos, os<br />

três blocos permaneceram sempre<br />

como o tripé de desenvolvimento de<br />

um sistema computacional. Modelos<br />

e metodologias evoluíram, portanto,<br />

em compasso com as crescentes complexidade<br />

e amplitude da computação.<br />

Dos monólitos binários às aplicações<br />

inteligentes integradas, esse tripé evoluiu<br />

bastante. Os primeiros sistemas<br />

computacionais nas décadas de 1980-<br />

90 eram muito similares ao próprio<br />

funcionamento dos hardwares. Ao<br />

longo do tempo, sucessivas camadas<br />

de abstração foram inseridas entre<br />

software e hardware. Nos tempos atuais,<br />

os sistemas quânticos destacam-se<br />

cada vez mais como novos paradigmas<br />

computacionais e, caso isso se confirme,<br />

terão também muita influência sobre<br />

sistemas organizacionais.<br />

Onde os novos arquétipos podem ser encontrados?<br />

Foto: Getty Images<br />

Muitos avanços, transformações e adaptações foram empreendidos nos últimos tempos. Mudanças repentinas e agudas, no entanto,<br />

estressam a adaptabilidade das organizações. As estruturas organizacionais são ainda muito tradicionais, variando entre<br />

multidivisionais e matriciais.<br />

Hoje, se discute a implantação de redes em torno de grandes organizações, integrando elos da cadeia de valor e construindo<br />

colaborativamente novas frentes. Outros estudos analisam a viabilidade do paradigma Decentralized Autonomous Organization<br />

(DAO), inspirados nos avanços dos sistemas blockchain. Também se observa a configuração de holdings gestoras de portfólio de<br />

empresas investidas em diferentes estágios de maturidade, otimizando o risco-retorno. Já a formação de biomas é algo mais raro<br />

nos diversos setores, referindo-se ao conceito mais completo de sistemas operacionais orgânicos que regem partes importantes<br />

do funcionamento da própria sociedade, muito além das fronteiras de uma empresa.<br />

Novos arquétipos, portanto, não podem ser encontrados em estruturas em vigor. E mais: a inspiração para novas configurações<br />

organizacionais talvez não seja encontrada em atuais unicórnios e ícones digitais globais. Ela pode estar na evolução dos sistemas<br />

computacionais em torno de redes em nuvem, integradas e potencializadas por inteligência artificial e, cada vez mais, por<br />

computação quântica. O caminho que já percorremos pode ajudar a desvendar os futuros paradigmas organizacionais.<br />

GRANDES ACONTECIMENTOS<br />

NA HISTÓRIA DOS SISTEMAS<br />

COMPUTACIONAIS<br />

Richard Millar Devens cria o termo Business Intelligence 1865<br />

Charles Babbage Ada Lovelace 1883<br />

Primeiro mainframe 1946<br />

MIT AI Lab 1959<br />

Arpanet 1969<br />

1981<br />

Richard Feynman propõe computação quântica em conferência no MIT 1981<br />

Macintosh 1984<br />

Windows 1 1985<br />

Howard D resner Intelligence 1989<br />

Ramnath Chellappa cria o termo Cloud Computing 1997<br />

MIT, primeiro protótipo de computador quântico 1999<br />

Eugene Goostman, bot que passou no teste de Turing 2014<br />

2000Q da D-Wave, computador quântico comercial 2017<br />

PROGRAMAÇÃO<br />

REDES DE COMPUTADORES<br />

INTERNET<br />

INTERFACES<br />

GRÁFICAS<br />

CLOUD COMPUTING<br />

BUSINESS INTELLIGENCE<br />

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL<br />

COMPUTAÇÃO QUÂNTICA<br />

MATURIDADE DA<br />

TECNOLOGIA ATÉ SUA<br />

VIABILIDADE<br />

COMERCIAL<br />

UTILIZAÇÃO<br />

COMERCIAL<br />

TRAJETÓRIA DE<br />

TECNOLOGIAS<br />

PREDOMINANTES<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 17<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 16


Revoluções não tão ágeis assim<br />

Desde seu início, a modelagem de sistemas computacionais tem se desenvolvido lado a lado com a própria trajetória evolutiva<br />

da configuração dos sistemas organizacionais. Uma é vetor transformacional da outra.<br />

Embora ainda haja surpresas com alguns avanços tecnológicos que tracionam de tempos em tempos, como também ocorre no<br />

caso específico do conhecimento científico, os sistemas computacionais evoluem ao longo de muitas décadas: desde o início da<br />

programação, em meados do século XIX, até o início da computação quântica, no início da década de 1980. Apenas um século<br />

separa os dois paradigmas!<br />

Da escalabilidade do alcance à otimização de recursos, as organizações usufruem muito dos impactos positivos dos novos sistemas<br />

computacionais, além da própria amplitude de integração de partes relacionando-se em torno de compartilhados processos<br />

de negócios, gerando ainda mais interações, aprendizagem e conexões.<br />

Há sempre um hiato temporal entre qualquer avanço tecnológico e sua incorporação efetiva pelas organizações. Além do<br />

desafio em substituir sistemas legados, destaca-se o próprio processo de aprendizado organizacional em mapear e testar<br />

tantas possibilidades.<br />

SISTEMAS<br />

MONOLÍTICOS<br />

SISTEMAS<br />

CLIENTE-SERVIDOR<br />

INTERFACES<br />

GRÁFICAS<br />

SISTEMAS INTEGRADOS<br />

VIA INTERNET<br />

SISTEMAS WEB<br />

APLICAÇÕES INTEGRADAS<br />

VIA PLATAFORMA<br />

Primeira onda de programação<br />

de apoio às atividades<br />

da operação de<br />

organizações.<br />

Com o surgimento das redes de computadores,<br />

os programas foram divididos<br />

em duas partes, uma para o lado servidor<br />

e outra para o lado cliente. Essa arquitetura<br />

permitiu o surgimento dos sistemas<br />

gerenciadores de bancos de dados.<br />

O aparecimento das interfaces gráficas<br />

veio acompanhado do movimento do<br />

paradigma de programação orientado a<br />

objetos. Isso permitiu a programação em<br />

camadas MVC Model-View-Controller.<br />

A internet permitiu que os sistemas pudessem<br />

ser integrados em escala mundial.<br />

Inicialmente ela foi vista como um<br />

importante meio de comunicações. Alguns<br />

sistemas começaram a implementar<br />

arquitetura SOA (Service Oriented<br />

Architecture) com recursos que poderiam<br />

ser reusados nas implementações<br />

dos sistemas dos servidores.<br />

O avanço da utilização da internet alinhado<br />

com a melhoria de performance permitiu<br />

que os sistemas fossem disponibilizados<br />

nos servidores e com interfaces<br />

padronizadas acessíveis nos navegadores<br />

de internet.<br />

O conjunto de microsserviços passa a ser<br />

usado em múltiplas aplicações. As aplicações<br />

passam a ser expressões de uso<br />

de uma plataforma integrada que já pode<br />

contar com recursos de inteligência artificial<br />

e análise de dados.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 19<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 18


Guerra das interfaces<br />

gráficas<br />

Catálogo de<br />

funcionalidades<br />

Sistemas monolíticos foram desenvolvidos<br />

em uma estrutura linear passo a<br />

passo. Eram compostos de algoritmos<br />

determinísticos, estrutura sequencial e<br />

armazenavam seus dados em repositórios<br />

de arquivos, entregues como sistemas<br />

do tipo caixa-preta. O foco era<br />

disponibilizar catálogo de funcionalidades<br />

em que usuários escolhiam as situações<br />

corretas para cada uma dessas<br />

funcionalidades. Eram autocontidos,<br />

possuíam baixa capacidade de integração<br />

com outros sistemas e dificilmente<br />

gerenciavam os processos de negócio.<br />

Em meados dos anos 1980-90, não havia<br />

grande preocupação em separar a<br />

modelagem dos sistemas no tripé Estrutura-Comportamento-Dinâmica,<br />

dada a simplicidade dos programas. A<br />

dinâmica nem era abordada pelo fato<br />

da certeza de que um programa de<br />

computador não seria nunca capaz de<br />

absorver um sistema organizacional.<br />

As automações eram pontuais e resolviam<br />

a operação de algumas atividades<br />

mais repetitivas, sem muita amplitude<br />

e integração no âmbito da gestão corporativa.<br />

O conhecimento dos sistemas<br />

era fragmentado entre diversos colaboradores.<br />

Os sistemas eram sequenciais<br />

e monousuários, normalmente desenvolvidos<br />

por um único programador.<br />

Arquitetura em redes<br />

O avanço das redes de computadores<br />

aumentou a relevância dos protocolos<br />

de comunicação e das topologias de<br />

rede. Modelos específicos começaram<br />

a ser utilizados para o desenvolvimento<br />

desses sistemas. Embora ainda monolíticos<br />

em sua essência, passaram a ser<br />

multiusuários, e outros profissionais<br />

passaram a integrar equipes de desenvolvimento.<br />

Surgiram os sistemas<br />

cliente-servidor e os primeiros sistemas<br />

de bancos de dados, compartilhados<br />

por um conjunto de usuários.<br />

A aceleração da tecnologia e da capacidade<br />

de processamento de dados tam-<br />

bém motivou outra inovação relevante:<br />

a aplicação dos princípios da mecânica<br />

na Física como analogia para o desenvolvimento<br />

de metodologias voltadas<br />

para orientação a objetos e arquiteturas<br />

baseadas em serviços (SOA). Assim,<br />

a dinâmica dos negócios começou<br />

a ser automatizada e, portanto, os processos<br />

passaram a ser controlados de<br />

maneira mais efetiva e otimizada.<br />

Além disso, surgiu um conjunto muito<br />

robusto de diagramas denominado<br />

Unified Modeling Language. Isso permitiu<br />

que programadores pudessem<br />

desenhar seus sistemas de forma<br />

gráfica para que pudessem ser analisados<br />

e discutidos com equipes de<br />

outras áreas. A principal característica<br />

desses sistemas foi a união entre<br />

dados e algoritmos <strong>–</strong> algo muito importante<br />

em função da integração entre<br />

funcionalidades e objetos no mundo<br />

real das organizações. Tornou-se<br />

possível integrar diferentes objetos<br />

de forma colaborativa.<br />

Foto: Getty Images<br />

Ícones, botões, caixas de texto. Uma<br />

grande revolução foi necessária na<br />

produção dos softwares quando o processo<br />

estritamente sequencial passou a<br />

operar em módulos de gestão de eventos,<br />

controlando cliques em cada parte<br />

da tela e ativando trechos diferentes<br />

do código, com maior confiabilidade<br />

e complexidade. Com isso, aplicações<br />

e sistemas tiveram que ser reescritos<br />

para esse novo modelo, ocasionando<br />

também a obsolescência de um volume<br />

imenso de softwares baseados no paradigma<br />

textual.<br />

Os modelos gráficos demandaram uma<br />

modelagem em camadas dada a complexidade<br />

no tratamento de cada uma<br />

delas. Isso também permitiu que profissionais<br />

se especializassem em cada<br />

uma dessas camadas. Na época, o mo-<br />

Mundo em teia,<br />

múltiplas telas<br />

A internet revolucionou a Computação.<br />

Os navegadores substituíram todas as<br />

interfaces de sistemas, unificando o<br />

ponto de interação dos usuários com<br />

uma padronização em larga escala. A<br />

integração de todas as redes, em que as<br />

empresas passaram a ter contato direto<br />

com todas as outras redes do mundo,<br />

trouxe novas oportunidades, mas também<br />

muitos problemas, principalmente<br />

à segurança da informação. A ampliação<br />

do número de usuários 24x7 exigiu<br />

outros recursos mais sofisticados<br />

para sustentação de desempenho computacional.<br />

Mais uma vez, foi preciso<br />

reescrever códigos e refazer sistemas.<br />

Uma segunda onda revolucionária surgiu<br />

com os aparelhos móveis conectados<br />

à internet, com telas menores e<br />

delo de camadas mais utilizado foi o<br />

Model, View, Controller (MVC), vigente<br />

até hoje, que separa o tratamento de<br />

dados, algoritmos e interação com usuários.<br />

Com essa separação, os modelos<br />

começaram a ser categorizados entre<br />

estruturais e comportamentais.<br />

Esses sistemas caracterizam-se por<br />

reúso, adaptabilidade, alto nível de integração<br />

e camadas interdependentes<br />

(como o modelo MVC), que organizam<br />

a dinâmica (algoritmos), a estrutura<br />

(base de dados) e a interação (interfaces<br />

com usuários). Essas camadas<br />

possuem independência entre si e podem<br />

ser desenvolvidas por equipes<br />

diferentes, inclusive designers. Surgiram<br />

os profissionais especialistas na<br />

produção de interfaces de altíssimo<br />

nível (UI e UX).<br />

grande capacidade de processamento.<br />

Os sistemas precisaram se adequar à<br />

multiplicidade de novas telas e, assim,<br />

a responsividade tornou-se crítica.<br />

Novas camadas, como rede e segurança,<br />

foram incluídas no desenvolvimento.<br />

Naquele momento, a modelagem<br />

de negócio tornou-se imprescindível,<br />

pois os grandes frameworks de gestão<br />

corporativa já possuíam a capacidade<br />

computacional para processamento de<br />

todas as informações circulantes em<br />

uma organização, como sistemas ERP<br />

e CRM. Apenas alguns anos depois, a<br />

computação em nuvem conseguiu otimizar<br />

recursos alocados em sofisticadas<br />

CPDs e datacenters proprietários,<br />

que migraram para sistemas compartilhados<br />

em nuvem.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 21<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 20


Conectados e<br />

inteligentes<br />

Faces da mesma (cripto)moeda<br />

Mais recentemente, inteligência artificial<br />

e business intelligence tornaram-se<br />

protagonistas na arena dos sistemas<br />

computacionais como expressões das<br />

capacidades dos atuais frameworks em<br />

disponibilizar recursos de processamento<br />

de dados, além da hospedagem.<br />

Novamente, o tripé Estrutura-Comportamento-Dinâmica<br />

direcionou o<br />

movimento: mapas de processos e<br />

modelos organizacionais interativos<br />

com usuários e outras organizações<br />

passam a ser críticos. Sistemas reativos<br />

e processuais foram se tornando<br />

mais ativos ao incorporarem gestão<br />

de dados, correlações e processamento.<br />

Tornaram-se capazes de encontrar<br />

oportunidades, resolver questões com-<br />

plexas, sistematizar atividades e automatizar<br />

rotinas inerentes ao cotidiano<br />

de seres humanos.<br />

A utilização de grandes plataformas de<br />

desenvolvimento viabilizou a atuação<br />

de vários perfis profissionais técnicos<br />

sem que precisassem conhecer minuciosamente<br />

cada um dos milhões de<br />

algoritmos presentes nos atuais sistemas<br />

computacionais corporativos. Foi<br />

a divisão do trabalho digital.<br />

Hoje, observamos a computação quântica<br />

como a nova fronteira. Tais sistemas<br />

possuem hardwares que romperam<br />

com a lógica binária para utilizar<br />

átomos de alumínio como base para o<br />

seu funcionamento.<br />

Como os sistemas computacionais podem inspirar a reconfiguração organizacional?<br />

No atual contexto dos biomas sintéticos baseados em grandes frameworks digitais,<br />

vale a pena refletir sobre a camada organizacional latente que está em xeque. Em<br />

vez do lócus estrutural interno, os novos arquétipos parecem sugerir a camada societária<br />

como protagonista da nova era contemporânea.<br />

As matrizes permanecem válidas como formas internas de organização, sendo refinadas<br />

para ser cada vez mais leves, empáticas e orgânicas. Enquanto isso, nas camadas<br />

societárias, as organizações estão cada vez mais caracterizadas como gestoras<br />

de portfólios distribuídos em biomas com infindáveis conexões e relações. O<br />

paradigma Decentralized Autonomous Organization (DAO) ainda parece ser muito<br />

hiperbólico, embora indique, tal como nos biomas sintéticos da computação, a direção<br />

do movimento de descentralização generalizada de atividades e recursos para<br />

organizações conectadas.<br />

PRINCIPAIS CONFIGURAÇÕES ORGANIZACIONAIS<br />

AO LONGO DO TEMPO<br />

Times<br />

Ágeis<br />

Adhocracia<br />

Holocracia<br />

Biomas<br />

Organizacionais<br />

Biomas sintéticos redefinindo paisagens<br />

Estruturas<br />

Verticais<br />

Estruturas<br />

Multidivisionais<br />

Estruturas<br />

Matriciais<br />

Iniciativas<br />

Experimentais (*)<br />

Na evolução contínua da computação, a Biologia tem se fundido cada vez mais com a Matemática e a Física. Os denominados<br />

biomas sistêmicos romperam fronteiras e se organizam de maneira diferenciada e abrangente: cada uma das partes comporta-se<br />

além de meras peças relacionadas, apresentando sua própria trajetória de concepção, evolução, amadurecimento e morte.<br />

Um bioma é muito interativo. De um lado, algoritmos especializados e altamente integráveis podem ser incorporados em soluções<br />

específicas das organizações. Do outro, grandes frameworks consolidados globalmente têm absorvido cada vez mais<br />

requisitos não funcionais a exemplo de armazenagem, desempenho, segurança e usabilidade, sem custos para baixo volume de<br />

transações. Assim, a maioria dos projetos empresariais pode se dedicar a requisitos funcionais.<br />

Quanto mais o sistema é operado, melhor será a maturidade de seus módulos. O aprendizado de máquina é um recurso da inteligência<br />

artificial que permite ao sistema aumentar o conhecimento do contexto de negócio ao qual está submetido. Tal evolução<br />

está menos relacionada a novas programações, e mais ao volume de dados acumulados ao longo do tempo, em conjunto com<br />

parâmetros e algoritmos estabelecidos para realizar tal busca por correlações existentes. Esse conjunto de informações, que<br />

originalmente era composto de números e textos, agora também engloba outros tipos de mídia, como processamento de imagens<br />

e de linguagem natural, aferição de emoções e sentimentos dos usuários, biometria, entre outros.<br />

As organizações são<br />

centralizadas em funções<br />

corporativas<br />

Programas<br />

Monolíticos<br />

Células de<br />

Produção<br />

Redes de<br />

Computadores<br />

Conglomerados<br />

Industriais<br />

As organizações relacionam<br />

suas funções corporativas<br />

com divisões focadas em<br />

regiões e segmentos<br />

Interfaces<br />

Gráficas<br />

Rede Mundial<br />

Internet<br />

Corporate<br />

Ventura<br />

Capital<br />

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS EM ESTRUTURA, COMPORTAMENTO E DINÂMICA<br />

PRINCIPAIS MOVIMENTOS DA COMPUTAÇÃO AO LONGO DO TEMPO<br />

As organizações mantêm funções<br />

corporativas cruzadas matricialmente<br />

com suas unidades de negócio,<br />

compartilhando responsabilidades<br />

Computação<br />

Móvel<br />

Sistemas em<br />

Nuvem<br />

Inteligência<br />

Artificial<br />

Decentralized Autonomous<br />

Organization (DAO)<br />

Várias proposições<br />

direcionadas para<br />

descentralização<br />

TEMPO<br />

Computação<br />

Quântica<br />

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS COMPUTACIONAIS EM ESTRUTURA, COMPORTAMENTO E DINÂMICA<br />

Os modelos utilizados para<br />

construção de softwares<br />

possuíam elementos estruturais e<br />

comportamentais misturados<br />

Utilização de modelos em<br />

camadas e com a separação<br />

de modelos estruturais e<br />

comportamentais<br />

Foco essencial na modelagem<br />

dinâmica dos processos de negócio<br />

e suas interações com outros<br />

elementos externos<br />

Admirável<br />

mundo novo<br />

(*) Diferentes estruturas organizacionais em fase de experimentação, ainda em fase inclusiva<br />

A transformação digital (high-tech) convive com a humanização das relações<br />

(high-touch) nos ambientes de trabalho. A transição energética tem sido impulsionada<br />

por um protagonismo colaborativo multistakeholder. A abundância<br />

de capital e tecnologia redefine preços, premissas e perspectivas. Rupturas,<br />

experimentações e polissemia.<br />

A reconfiguração das organizações não encontrará fórmulas de prateleira. Ao menos<br />

por enquanto. Mas isso não deveria impedir o movimento. As organizações de<br />

vanguarda do futuro não serão apenas operadoras de processos e recursos, mas<br />

sim de movimentos em redes, portfólios e biomas. Os novos paradigmas organizacionais<br />

já surgiram... apenas precisamos ajustar as nossas lentes.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 23<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 22<br />

Foto: Getty Images


[CRÔNICAS E TAL]<br />

amar é...<br />

Em 1975, Kim e Roberto planejavam ter o terceiro filho quando ele descobriu um<br />

câncer de testículo. Faleceu um ano depois, mas, assim que recebeu o diagnóstico,<br />

decidiu congelar o sêmen. A perda do marido não impediu Kim de dar continuidade<br />

ao projeto do novo bebê e, 16 meses depois da partida de Roberto, Stefano e Dario<br />

ganharam a companhia do caçula, Milo.<br />

A inseminação artificial bem-sucedida causou polêmica <strong>–</strong> e ainda nem existiam as<br />

redes sociais! Enquanto uns aplaudiam a coragem de Kim e consideravam o feito<br />

um milagre (lembre-se de que estamos falando da ciência dos anos de 1970), outros<br />

chamavam o ato de heresia. À época, a Igreja Católica comentou, em nota, que o<br />

caso era “uma afronta à moral do Evangelho”.<br />

Em resposta às críticas, Kim fez o seguinte pronunciamento: “Milo está aqui por<br />

causa do amor entre sua mãe e seu pai. Se isso for julgado como errado, o mundo<br />

perdeu o senso de proporção. Nós tentamos ter um bebê por inseminação artificial<br />

antes de o Roberto morrer. Se tivéssemos obtido sucesso, ele teria sido concebido<br />

ainda durante o matrimônio. Que diferença faz se a concepção ocorreu após a<br />

morte de Roberto?”<br />

Livro publicado em<br />

31 de maio de 1971<br />

Vestígios do romantismo<br />

Quem não se lembra com ternura do casal fofo da série<br />

Amar é..., febre entre os românticos na década de 1980? Os<br />

peladinhos começaram a explicar ao mundo o que é o amor<br />

em 5 de janeiro de 1970, estreando nas páginas do jornal Los<br />

Angeles Times. Logo as tirinhas ganharam o mundo, e chegaram<br />

a ser publicadas em mais de 60 países.<br />

Os cartuns de Amar é… embalaram um romance digno de<br />

cinema, e ainda hoje têm o poder de desnudar não só os personagens<br />

mas também questões contemporâneas de relevância<br />

impressionante.<br />

A neozelandesa Kim Grove começou a desenhar os personagens<br />

ao lado de frases românticas sem nenhuma pretensão<br />

comercial. Eram recadinhos estrategicamente escondidos<br />

para que seu então namorado, Roberto Casali, os encontrasse<br />

nos momentos mais inusitados. O romance deu certo, e os<br />

dois se casaram e tiveram dois filhos. Final feliz? Senta que<br />

lá vem história!<br />

Kim Grove com Stefano, Dario e Milo<br />

Primeiro cartão-postal enviado a Roberto<br />

Kim Grove e Roberto Casali<br />

E aí, caro leitor, faz diferença?<br />

Quase cinco décadas depois, nossa<br />

agenda não mudou muito. Inseminações<br />

artificiais que coroam o amor ainda<br />

são alvos de críticas mundo afora,<br />

agora em outros contextos, claro! A<br />

discussão sobre casais homoafetivos<br />

gerarem crianças, por exemplo, tira o<br />

sono de muita gente.<br />

A sociedade não parece dar sinais de<br />

uma virada de chave na mentalidade,<br />

mesmo com a modernidade batendo à<br />

nossa porta há tantos anos. E as tirinhas<br />

de Kim estão apenas no meio de<br />

um longo caminho que começou com<br />

outro romantismo <strong>–</strong> não o dos peladinhos,<br />

mas sim o movimento filosófico-cultural<br />

surgido no final do século<br />

XVIII. Aqueles românticos se incomodavam<br />

com a modernidade. Criticavam<br />

a destruição dos vínculos familiares e<br />

achavam que nada mais estava no lugar<br />

certo. Pregavam que tinham que<br />

ser fiéis ao que sentiam, e não ao que<br />

a sociedade ditava. Morrer de amor era<br />

sinônimo de autenticidade. Viviam em<br />

suas “bolhas”.<br />

Esse mal-estar romântico ainda dá as<br />

caras em pleno século XXI, agora com<br />

roupas diferentes. E acrescido de um<br />

celular com internet. Portanto, qualquer<br />

semelhança com os dias de hoje<br />

pode não ser mera coincidência.<br />

Sim, os românticos do século XVIII foram<br />

rebeldes e desbravaram fronteiras<br />

da sociedade, que, no período pós-Revolução<br />

Industrial, era muito careta<br />

e covarde (viva Cazuza!). Mas seria<br />

possível dizer que alguns sintomas românticos<br />

persistiram, agora com tintas<br />

conservadoras? O ressentimento com<br />

aspectos da modernidade, tão presente<br />

em parte da sociedade de hoje,<br />

gera saudosismo e acaba por produzir<br />

mal-estar. No entanto, diferentemente<br />

dos românticos de outrora, não estamos<br />

nos rebelando contra um modelo<br />

burguês de sociedade, apenas nos tornando<br />

saudosistas contumazes.<br />

Estamos andando para trás? Ou em<br />

círculos? Presenciamos rupturas importantes,<br />

mas o ritmo da transição<br />

segue preguiçoso, lutando contra uma<br />

onda conservadora que parece resistir<br />

ao inevitável. A pós-modernidade<br />

nos chama diariamente, mas será<br />

que teremos coragem para mergulhar<br />

na desorganização subjetiva do<br />

mundo de hoje?<br />

Os românticos do século XVIII acertaram<br />

no diagnóstico: a modernização de<br />

fato causou perda de vínculos, destruição<br />

de instituições, liberdade que não<br />

liberta e felicidade que não faz sorrir.<br />

Mas uma coisa é certa: teremos que solucionar<br />

essa charada, pois retroceder<br />

não é uma opção. Quem dera os peladinhos<br />

de Kim Grove pudessem nos ajudar<br />

a encontrar uma saída. Amar é…?<br />

Alessandra Lotufo é diretora de<br />

comunicação e inovação da Bossa.etc<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 25<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 24


[GENTE COM BOSSA]<br />

A bossa<br />

dos bambas<br />

A revista Et cetera chega à sua décima edição promovendo<br />

um desfile de camisas <strong>10</strong>. E o país abençoado por Deus não<br />

produz talentos apenas no futebol. Da bossa brasileira saem<br />

notáveis nas artes cênicas, na literatura, na música, nas artes<br />

plásticas. Nos esportes, individuais e coletivos. Nas ciências<br />

exatas, humanas e biológicas. Somos um povo que esbanja<br />

versatilidade, espírito inovador e resiliência, a tríade do sucesso.<br />

A capa da décima edição estampa, claro, um ator nota<br />

<strong>10</strong>. Antonio Fagundes abusa da versatilidade ao transitar do<br />

drama à comédia, de Macbeth a Rei do Gado, do caminhoneiro<br />

Pedro a... Deus. No teatro, assume também o papel de<br />

produtor, bancando os espetáculos que encena. O ator de 73<br />

anos ainda leva o ecletismo para fora dos palcos e das telas<br />

com seu amor declarado pelos livros e pelos videogames.<br />

Ao longo de seis décadas de carreira, a médica Angelita<br />

Habr-Gama abriu muitas portas. Foi a primeira mulher cirurgiã<br />

do Hospital das Clínicas e a primeira a chefiar o departamento<br />

de cirurgia da Faculdade de Medicina na USP. Criou<br />

um protocolo de tratamento para o câncer do reto usado hoje<br />

no mundo todo. Mas a realização profissional veio da união<br />

da medicina com a docência. “Sou apaixonada por dar aulas.<br />

Gosto de transmitir meus conhecimentos, não guardo o que<br />

aprendo só pra mim”, diz. Prestes a completar 90 anos, mantém<br />

uma rotina de cirurgias, atendimentos e participação em<br />

congressos com a vitalidade dos alunos e sobrinhos que a<br />

cercam. “A convivência com os jovens nos rejuvenesce.”<br />

Thalita Rebouças também aposta no diálogo com os jovens.<br />

Com mais de 2 milhões de livros vendidos, a escritora de 48<br />

anos já dava passos firmes no jornalismo quando decidiu arriscar<br />

uma virada na carreira em busca do sonho. Com suas<br />

histórias povoadas por personagens que ressoam os típicos<br />

problemas de seus leitores, Thalita estabeleceu uma forte co-<br />

nexão com o público adolescente. “Eu não julgo, não dou lição<br />

de moral. Eles se veem nas histórias”, explica uma das mais<br />

bem-sucedidas escritoras brasileiras.<br />

O muralista Eduardo Kobra, que manifestava a verve artística<br />

pichando muros da periferia, passou a adolescência<br />

sob constantes olhares julgadores. Era visto como o garoto<br />

perdido, mas encontrou seu caminho no grafite e se tornou<br />

um ícone mundial da street art. Depois de anos vandalizando<br />

construções urbanas, passou a defender a preservação do<br />

patrimônio histórico, colecionando livros de história antiga<br />

de São Paulo e de outras cidades, e concretizou sua arte com<br />

propósito ao fundar o Instituto Kobra, entidade que investe na<br />

cultura como instrumento de transformação social de adolescentes<br />

e jovens. Hoje, ele prega que “a arte pode servir como<br />

um antídoto contra muitos males”.<br />

À seção Gente com Bossa juntam-se o ator Timothy Wilson e o<br />

violonista Guido Sant’Anna. Diagnosticado com autismo, Timothy<br />

estreou na carreira artística com uma interpretação<br />

premiada: saiu do festival de cinema do Rio com o troféu de<br />

melhor ator coadjuvante por sua atuação como o personagem<br />

Ezequiel no filme Fogaréu. Aos 17 anos, Guido Sant’Anna<br />

gravou seu nome na história da música clássica ao vencer o<br />

prestigiado Concurso Internacional de Violino Fritz Kreisler<br />

com uma apresentação impecável do Concerto para Violino<br />

em Ré Maior, op. 77, de Johannes Brahms. Abrindo a seção, o<br />

ex-goleiro Aranha, que traz no currículo o reconhecimento<br />

como melhor goleiro do Campeonato Paulista em 2008 e o<br />

título da Copa Libertadores da América de 2011, fala sobre<br />

racismo e saúde mental, temas atualíssimos dentro e fora dos<br />

esportes. Como se vê, uma seleção de craques para celebrar<br />

a edição <strong>10</strong>.<br />

Foto: Getty Images<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 27<br />

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[Q&A ETC.]<br />

Quando você era jogador, como lidava com a questão da saúde mental?<br />

Olha, no futebol esse assunto é um tabu enorme. Todo jogador tem medo de falar<br />

sobre saúde mental e acabar sendo tachado como “pipoqueiro”, “amarelão”. Mas a<br />

pressão era enorme e vinha de muitos lados. Uma única partida ruim, ou até mesmo<br />

um único lance infeliz, pode arruinar uma carreira. Imagine essa situação martelando<br />

na cabeça de um jovem de origem pobre, sem muita instrução e preparo<br />

psicológico. O medo é constante. E todo mundo falha, somos humanos. Eu sempre<br />

procurei me cuidar, conversava bastante com psicólogos, tentava separar o futebol<br />

da vida pessoal, mas muitas vezes não dava.<br />

Como a constante pressão afeta os atletas?<br />

Desde o primeiro dia que um garoto entra nas categorias de base de um clube, ele<br />

sofre pressão. Jogadores de futebol são, em sua maioria, de origem humilde, e entrar<br />

em um clube grande representa uma oportunidade única. É como ganhar na<br />

loteria. Mas há a pressão para se manter no clube, para jogar bem, para virar profissional.<br />

Depois, quando o jogador já é profissional, o nível de cobrança aumenta<br />

muito. Poucos se abrem sobre isso, mas, muitas vezes, a maior pressão que os jogadores<br />

sofrem vem da própria família. Comprar casa para a mãe, ajudar os irmãos, os<br />

parentes. Isso sem falar na cobrança por resultados <strong>–</strong> do clube, da torcida.<br />

Você é um ex-atleta que se<br />

tornou escritor e milita por uma<br />

sociedade mais justa. Como vê<br />

seu papel hoje?<br />

Eu sigo meu trabalho de conscientizar<br />

os mais jovens. Meus livros são para jovens<br />

e crianças aprenderem um pouco<br />

de história de maneira honesta e saudável.<br />

Brasil Tumbeiro é sobre a escravidão<br />

e grandes homens negros, como<br />

Teodoro Sampaio e os irmãos André e<br />

Antônio Rebouças. Já Patrocínio é sobre<br />

o jornalista, político e abolicionista<br />

José do Patrocínio. Os jovens negros<br />

precisam de referências, personagens<br />

históricos, precisam ver que podem ser<br />

outra coisa além de jogador de futebol.<br />

Agora que você se aposentou do<br />

esporte profissional, como lida<br />

com sua saúde mental?<br />

“O futebol reflete<br />

a sociedade”<br />

Foto: reprodução Instagram<br />

Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido como Aranha, foi considerado o melhor<br />

goleiro do Campeonato Paulista em 2008 e integrava a equipe santista que venceu a<br />

Copa Libertadores da América em 2011. Além de seus títulos e grandes defesas, sua<br />

carreira no futebol também ficou marcada por um caso de racismo que ganhou repercussão<br />

nacional: em 2014, durante uma partida entre Grêmio e Santos, realizada<br />

em Porto Alegre, Aranha foi xingado de “macaco” por torcedores do time gaúcho.<br />

Nesta entrevista à Et cetera, Aranha, que hoje é escritor, palestrante e ativista, fala<br />

sobre a importância da saúde mental, tanto no esporte como na sociedade, e como o<br />

racismo afeta o lado psicológico das vítimas de preconceito.<br />

Você disse que conversava com<br />

psicólogos. Como era a relação<br />

dos psicólogos dos clubes com<br />

você e os demais jogadores?<br />

Em minha carreira, eu atravessei três<br />

gerações. Quando comecei, convivi<br />

com os mais velhos, que eram meus<br />

ídolos, depois tinha o pessoal da minha<br />

geração, e, no final da carreira, joguei<br />

com a garotada que estava subindo<br />

para o profissional. Essa relação com os<br />

psicólogos mudou muito de uma geração<br />

para outra. No início, lá na década<br />

de 1990, o pessoal mais velho não gostava.<br />

Tinha o receio de ser visto como<br />

“mentalmente fraco”, “covarde”, essas<br />

coisas. Hoje existe um acompanhamento<br />

psicológico desde a base. Muitos<br />

jogadores que foram formados assim<br />

já reconhecem a importância de cuidar<br />

da saúde mental, respeitam o trabalho<br />

psicológico dos clubes.<br />

Sua carreira ficou marcada<br />

pelo episódio do racismo, em<br />

2014. Como você lidou com<br />

isso na época?<br />

Desde os 14 anos eu já estudo e milito<br />

pelo movimento negro, contra o racismo<br />

na sociedade. Esse episódio acabou<br />

revelando esse meu lado que pouca<br />

gente conhecia. Mas é claro que fiquei<br />

chateado, uma mistura de tristeza e<br />

decepção. Na época, tive muito apoio,<br />

até torcedores de outros clubes gritavam<br />

meu nome para me apoiar. Acabei<br />

usando a experiência para crescer<br />

como jogador e como pessoa negra. Saí<br />

fortalecido, energizado.<br />

As ofensas racistas ainda são<br />

comuns no futebol. Como<br />

isso afeta a saúde mental<br />

dos jogadores?<br />

É horrível, afeta muito. Quem diz que<br />

não se abala com isso está mentindo.<br />

Todo mundo fica triste, com a cabeça<br />

quente, perde o sono, a concentração.<br />

Mas tem um problema dos próprios<br />

jogadores. Não emitem opinião sobre<br />

racismo, principalmente os mais famosos<br />

e influentes. Eu entendo um pouco,<br />

pois já foi uma batalha grande para os<br />

caras conquistarem o que eles conseguiram,<br />

e eles têm medo de perder<br />

isso. Eu, com minha militância, fiquei<br />

marcado como um “jogador problemático”.<br />

Os jogadores têm medo de falar<br />

para não prejudicar a carreira, mas isso<br />

é um erro.<br />

Ter parado de jogar profissionalmente<br />

me trouxe benefícios enormes. Foi<br />

quase automático. Hoje sou uma pessoa<br />

mais tranquila, serena mesmo. Não<br />

preciso mais conviver com tensões,<br />

cobranças injustas. Torcedor brasileiro<br />

ama jogador quando ganha, mas odeia<br />

quando perde. Xingam, humilham,<br />

ameaçam. Com as redes sociais, esse<br />

assédio ficou bem visível. Foi ótimo me<br />

afastar disso. Tem uma cultura do ódio<br />

enorme no futebol, muita violência no<br />

estádio. Uma criança que for a um estádio<br />

vai aprender injúria racial, cantos<br />

homofóbicos, palavrões, baixarias contra<br />

mulheres, vai ver brigas de torcidas,<br />

objetos jogados no campo... Minha<br />

filha aprendeu palavrões no estádio.<br />

Como mudar essa cultura<br />

do ódio?<br />

O futebol reflete a sociedade, não tem<br />

jeito. Se na sociedade tem ódio, racismo,<br />

violência e falta de respeito, no<br />

futebol vai ter tudo isso também. A<br />

mudança que precisa ser feita é na<br />

sociedade, com mais educação, mais<br />

oportunidades, mais igualdade. E é claro<br />

que uma melhora impactaria a saúde<br />

mental de todo mundo, da torcida e<br />

dos jogadores. Se a sociedade melhorar,<br />

o futebol melhora junto.<br />

Entrevista concedida a Diego Braga Norte<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 29<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 28


[COM A PALAVRA…]<br />

“Não tenham medo de ser<br />

vocês mesmos”<br />

O ator autista Timothy Wilson guarda na mente uma profusão de nomes<br />

de atores, diretores, filmes e séries graças à sua excelente memória. Ele<br />

estreou na carreira em grande estilo, interpretando Ezequiel no filme<br />

Fogaréu, de Flávia Neves. Sua atuação segura e comovente rendeu-lhe<br />

o prêmio de melhor ator coadjuvante no último Festival do Rio. Neste<br />

depoimento à Et cetera, Tim, como prefere ser chamado, fala sobre<br />

a relação com o cinema, os bastidores das gravações e a vida no<br />

espectro do autismo.<br />

Nasci em Nova York por acaso. Meus<br />

pais estavam trabalhando lá, e acabei<br />

ficando na cidade até meus 12 anos.<br />

Em 2008, mudei com minha mãe para<br />

o Rio de Janeiro. Ela me criou assistindo<br />

a séries e filmes, desde muito<br />

novo. Quando eu era adolescente, já<br />

tinha um grande interesse pelo cinema<br />

e pela televisão, mas não pensava<br />

em ser ator. Assistia a muitas comédias<br />

e seriados cômicos, meu sonho<br />

era ser comediante.<br />

Aqui no Rio eu completei o ensino médio<br />

junto com um curso técnico em hotelaria.<br />

Como sou bilíngue, fui chamado<br />

para trabalhar no Hilton, mas não<br />

deu certo porque era na Barra da Tijuca,<br />

muito longe para mim. Não gosto de<br />

andar sozinho em lugares que não conheço,<br />

fico com medo. Moro no Catete<br />

com a minha avó, então sei andar por<br />

aqui e no Flamengo. Sei onde estão os<br />

locais que frequento, a loja que vende<br />

meu biscoito preferido, restaurantes,<br />

cinema. Por aqui, saio e volto para casa<br />

sem problemas.<br />

coisas, é uma das características do<br />

meu autismo. Fiz o teste e ela me disse<br />

que o papel era meu! Virei ator no<br />

meu primeiro teste.<br />

Durante as gravações, no interior de<br />

Goiás, me senti extremamente acolhido.<br />

Todos me ajudaram porque eu não<br />

consigo andar sozinho numa cidade<br />

nova, me perco. E também sou muito<br />

branquelo, então eles ficavam de olho<br />

em mim para eu não me queimar porque<br />

estava muito calor lá. O pessoal da<br />

produção fazia chá-mate para mim.<br />

Aqui no Rio, tomo muito chá-mate gelado,<br />

uma garrafa grande por dia, eu<br />

adoro. Na hora das gravações, a diretora<br />

ou seu marido sempre me ajudavam<br />

a olhar para os pontos certos. Isso foi<br />

um desafio pra mim porque tenho dificuldade<br />

em manter contato visual, mas<br />

deu tudo certo. Muita gente me pergunta<br />

qual foi minha inspiração para<br />

fazer o Ezequiel, mas não consigo dar<br />

a resposta, não consigo identificar uma<br />

inspiração. Falam que ele faz piadinhas<br />

no filme, mas eu o acho sério.<br />

devo ficar quieto.<br />

Eu nem sabia que o Festival de Cinema<br />

do Rio tinha prêmio, pensava que<br />

fosse apenas uma mostra com vários<br />

filmes. No dia da festa da premiação,<br />

quando anunciaram meu nome e me<br />

chamaram no palco, foi uma surpresa<br />

enorme. Logo no meu primeiro filme,<br />

ganhei um prêmio. Nem acreditava! Foi<br />

o único prêmio que o nosso filme recebeu,<br />

foi uma honra. Depois me perguntaram<br />

se eu tinha ensaiado o discurso.<br />

Como iria ensaiar se eu nem sabia que<br />

ia ganhar? Foi tudo improviso.<br />

Acho que esse prêmio abre oportunidades<br />

para outros autistas. Não tem<br />

atores autistas. Nem fazendo eles mesmos,<br />

personagens autistas. É sempre<br />

um ator fingindo ser autista, como Tom<br />

Hanks, em Forrest Gump, que, apesar<br />

disso, é meu filme preferido. São vários<br />

momentos importantes da história<br />

vistos por um autista. Mostra que os<br />

autistas podem participar de grandes<br />

momentos, podem fazer parte da história<br />

também.<br />

Ao lado de Samantha Schmütz, recebendo o prêmio no Festival do Rio 2022 | foto: Eny Miranda/Reprodução<br />

Não sei direito quando me descobri<br />

como autista. Fiz uns testes quando<br />

era criança, só que eles não indicaram<br />

diagnóstico de autismo, era outra coisa.<br />

Acho que foi na adolescência que<br />

me deram um laudo informando que<br />

eu era autista. Esse papel me serviu<br />

depois, na época que tive de me alistar<br />

no Exército. O laudo acabou me<br />

dispensando, e foi bom, eu não queria<br />

servir. Eu não ia sobreviver lá.<br />

Um dia, por acaso, minha avó leu no<br />

jornal um anúncio sobre uma oficina de<br />

teatro para autistas. Eu me inscrevi e<br />

comecei a frequentar o curso. A Flávia<br />

[Neves, diretora do longa Fogaréu] foi um<br />

dia assistir à oficina e me viu improvisando<br />

piadas, fazendo trocadilhos.<br />

Ela gostou do meu humor e me convidou<br />

para fazer um teste. Na terceira<br />

vez que li o texto do teste, já decorei.<br />

Tenho muita facilidade para decorar<br />

No dia da estreia do filme no festival<br />

[de cinema do Rio de Janeiro, em outubro], a<br />

Flávia me deu os convites e fiz questão<br />

de chamar uma amiga minha, a Bel. Eu<br />

queria muito que minha melhor amiga<br />

estivesse presente. Ela é filha de uma<br />

amiga da minha mãe, nos conhecemos<br />

desde a infância, e ela é autista como<br />

eu. Minha mãe e minha avó já viram o<br />

filme, mas meu pai ainda não. Espero<br />

que passe nos Estados Unidos para<br />

ele e minha irmã poderem ver também.<br />

Meus amigos de lá ficaram felizes<br />

quando viram nas redes sociais que<br />

me tornei ator, mandaram mensagens<br />

bacanas, mas não consigo me comunicar<br />

por Facebook. Não sou muito bom<br />

de puxar assunto a distância, só consigo<br />

conversar pessoalmente. Sou o<br />

contrário do que as pessoas acham do<br />

autista, sou muito social, consigo interagir<br />

bem. Mas tenho que prestar atenção<br />

porque falo muito, não sei quando<br />

O prêmio mudou minha vida. Faço<br />

entrevistas toda semana, recebo convites.<br />

Fui até chamado para fazer um<br />

cadastro e um teste na Globo. Não tenho<br />

certeza se vou trabalhar lá, mas<br />

pode acontecer. Uma produtora entrou<br />

em contato comigo e mandou um texto<br />

para eu fazer um teste. Li três ou quatro<br />

vezes e já decorei. Tenho sorte de<br />

ter uma memória boa, muitos autistas<br />

têm facilidade em memorizar muitas<br />

coisas, essa é outra vantagem do autismo.<br />

Minha avó me ajuda, ela imprime<br />

os textos com letras grandes para facilitar<br />

para mim.<br />

Sei que é um privilégio poder realizar<br />

meu sonho, sei o que isso representa<br />

para autistas como eu. Gostaria de finalizar<br />

deixando um recado para outros<br />

autistas: não tenham medo de ser<br />

vocês mesmos. Não tentem mudar por<br />

causa dos outros, sejam apenas vocês.<br />

Depoimento dado a Diego Braga Norte<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 31<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 30


[GUARDE ESTE NOME]<br />

Guido Sant’Anna:<br />

o melhor violinista do mundo<br />

Por Sérgio Martins<br />

Foto: Caue Diniz<br />

No início de 2013, Reynaldo Boury, diretor<br />

do SBT, pediu ao amigo e maestro<br />

Julio Medaglia que reunisse um time<br />

de pequenos instrumentistas eruditos<br />

para a gravação de uma cena da novela<br />

Carrossel. Medaglia garimpou entre os<br />

alunos da violinista Elisa Fukuda e se<br />

encantou com um instrumentista chamado<br />

Guido Sant’Anna. “Ele puxava o<br />

arco do violino com segurança e tinha<br />

um som belíssimo. Era um talento explícito”,<br />

lembra o regente, que passou<br />

por movimentos como a Tropicália e<br />

tem obras gravadas pela Filarmônica<br />

de Berlim. Em setembro deste ano, o jovem<br />

de 17 anos alcançou um feito épico:<br />

foi o vencedor do prestigiado Concurso<br />

Internacional de Violino Fritz Kreisler,<br />

cuja etapa final foi realizada na Sala<br />

Dourada da Musikverein, uma das<br />

mais históricas casas de concerto de<br />

Viena, na Áustria. Guido, que executou<br />

o Concerto para Violino em Ré Maior, op.<br />

77, de Johannes Brahms, recebeu um<br />

prêmio de 20 mil euros, um disco a ser<br />

lançado pelo selo Naxos e uma série de<br />

concertos como solista, entre eles uma<br />

turnê pela Ásia em <strong>2023</strong>. “O prêmio<br />

irá ajudar na manutenção da minha<br />

carreira”, diz.<br />

Guido Sant’Anna foi criado em Parelheiros,<br />

na zona sul de São Paulo. Caçula<br />

dos três filhos de um funcionário<br />

público e uma dona de casa, ele se encantou<br />

pelo violino ao assistir ao irmão<br />

mais velho praticar o instrumento.<br />

“Pensei que ele podia ter escolhido um<br />

pandeiro, um chocalho... Violino é tão<br />

caro”, diz Silvano Sant’Anna, pai do rapaz.<br />

Coube ao avô paterno de Guido o<br />

presentear com seu primeiro violino.<br />

O jovem prodígio tinha 9 anos quando<br />

passou a tomar aulas com Elisa Fukuda.<br />

“Eu normalmente não trabalho com<br />

alunos tão pequenos, mas ele se mostrou<br />

precoce demais para a idade que<br />

tinha”, diz ela. “Guido tem a maturidade<br />

de um veterano de 30 anos.”<br />

O sucesso de Guido Sant’Anna é um<br />

fato isolado num país em que a educação<br />

musical se mostra precária. O violinista,<br />

assim como o pianista Cristian<br />

Budu (vencedor do Concurso de Piano<br />

Clara Haskil), do também violinista<br />

Luiz Filipe Coelho (atual integrante da<br />

prestigiada Filarmônica de Berlim) e<br />

até mesmo do inigualável Nelson Freire<br />

(1944-2021), aliou talento, trabalho<br />

e força de vontade para vencer muitas<br />

dificuldades que surgiram no caminho.<br />

“O Brasil não possui escolas para acolher<br />

jovens como Guido. Precisamos<br />

de mais recursos para oferecer prédios<br />

melhores, com mais infraestrutura,<br />

instrumentos de qualidade, salários<br />

melhores para atrair grandes professores”,<br />

diz Claudia Toni, especialista em<br />

políticas culturais. “Falta um mercado<br />

estruturado para a música clássica,<br />

cujo coração seja a música de câmara,<br />

e não a sinfônica. Temos poucas séries<br />

de concertos e excesso de música popular<br />

de péssima qualidade.”<br />

Quando criança, Guido Sant’Anna<br />

participou do Prelúdio, programa da<br />

TV Cultura dedicado à revelação de<br />

jovens talentos eruditos. Ficou entre<br />

os finalistas. No Brasil, sagrou-se vencedor<br />

do concurso Jovens Solistas, da<br />

Orquestra Sinfônica do Estado de São<br />

Paulo (Osesp). Elisa Fukuda encorajou<br />

o aluno a participar de pelejas internacionais,<br />

e, mais do que incentivo, ela<br />

emprestou também ao jovem solista<br />

um violino profissional para que seu<br />

pupilo participasse da Competição Internacional<br />

Yehudi Menuhin, em 2020.<br />

Guido chegou aos estágios finais do<br />

concurso, mas acabou perdendo para<br />

candidatos que tinham instrumentos<br />

de melhor qualidade. Encantada com a<br />

destreza do jovem, a Fundação Yehudi<br />

Menuhin lhe cedeu temporariamente<br />

um violino Vincenzo Jorio do século<br />

XIX. Para a final do Fritz Kreisler,<br />

contudo, ele tomou emprestado um<br />

Stradivarius, Ferrari do instrumento.<br />

“Eu não precisei tocar tão forte, principalmente<br />

nos momentos mais suaves”,<br />

comenta Guido.<br />

“Talento é importante, mas tem muitos<br />

por aí. O caso do Guido tem uma questão<br />

de talento, mas ele estuda e estuda<br />

e estuda”, diz Frederico Lohmann,<br />

superintendente da Fundação Cultura<br />

Artística. Dez anos atrás, a entidade<br />

encampou o Programa de Bolsa de Estudos<br />

Magda Tagliaferro, que presta<br />

assistência a jovens talentos eruditos.<br />

Guido não apenas tem aulas com Elisa<br />

Fukuda como estuda línguas e recebe<br />

ajuda em passagens e hospedagens.<br />

Outra preocupação do Cultura Artística<br />

está justamente na manutenção da<br />

carreira dos bolsistas. “A nossa intenção<br />

é que ele aprimore os estudos no<br />

exterior”, completa Lohmann, que vê<br />

na boa estrutura familiar do violinista<br />

uma vantagem na carreira. “Ele tem<br />

uma cabeça boa.”<br />

Guido Sant’Anna é fã de violinistas<br />

mais tradicionais, como o israelense<br />

Isaac Stern e o russo David Oistrakh.<br />

Em agosto passado, foi assistir ao<br />

americano Joshua Bell tocar seu violino<br />

e conduzir a tradicional orquestra<br />

St. Martin In-the-Fields em São Paulo.<br />

Na ocasião, tirou uma foto ao lado de<br />

Bell, um superstar do violino. “Quando<br />

Guido venceu o concurso, avisei o<br />

Joshua que hoje é ele quem tirou uma<br />

foto ao lado de Guido Sant’Anna”, brinca<br />

Lohmann, do Cultura Artística. O<br />

prêmio é uma etapa importante de um<br />

longo caminho. Mas Guido tem mostrado<br />

personalidade para ir da jovem<br />

promessa ao solista consagrado. No<br />

final de outubro, substituiu o alemão<br />

Christian Tetzlaff nos recitais da Filarmônica<br />

de Câmara Alemã de Bremen<br />

no Brasil. No repertório, o dificílimo<br />

Concerto para Violino em Ré Maior, op.<br />

77, de Brahms, a mesma peça que lhe<br />

garantiu a vitória no Concurso Internacional<br />

de Violino Fritz Kreisler.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 33<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 32


Nome: Antonio José da Silva Fagundes Filho<br />

Idade: 73 anos<br />

Profissão: ator<br />

Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />

Um ator<br />

divino<br />

Por Sérgio Martins<br />

Antonio Fagundes transita do drama<br />

à comédia com a mesma naturalidade<br />

com que interpreta mocinhos, vilões e<br />

Deus. Sua versatilidade manifesta-se<br />

também fora de cena: é leitor voraz e<br />

fã de videogame<br />

Foto: Daniel Teixeira /Estadão Conteúdo<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 35<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 34


C<br />

Bastidores do filme Deus Ainda É Brasileiro | foto: reprodução Instagram<br />

omo é ser Deus? A primeira pergunta da equipe da Et cetera pega Antonio<br />

Fagundes de surpresa, mas é oportuna. Vinte anos depois do lançamento de<br />

Deus É Brasileiro, o ator volta a encarar o papel do Criador na continuação do<br />

filme do cineasta Cacá Diegues. Faz pelo menos cinco décadas que Antonio José da<br />

Silva Fagundes Filho, nascido há 73 anos na cidade do Rio de Janeiro, está presente<br />

no cotidiano dos brasileiros interpretando, além de entidades divinas, os mais variados<br />

perfis de mortais, do mais ético dos mocinhos a vilões que o público ama odiar.<br />

“O fazer teatral é<br />

uma jornada de<br />

afeto e encontro”<br />

<strong>–</strong> Bruno Fagundes<br />

Trabalho em família<br />

Baixa Terapia, de 2018, é a mais recente<br />

incursão de Fagundes pelo tablado. O<br />

espetáculo, que foi encenado 490 vezes<br />

desde a estreia e chega aos palcos<br />

do Rio em janeiro de <strong>2023</strong>, amplifica<br />

a ideia do teatro em família. Fagundes<br />

atua ao lado de Alexandra Martins, sua<br />

atual mulher, e da ex Mara Carvalho,<br />

mãe de Bruno. A tradução é de Clarisse<br />

Abujamra, primeira esposa do ator.<br />

E o próprio Bruno participou da temporada<br />

inicial, mas largou o elenco em<br />

função de outros compromissos profissionais<br />

<strong>–</strong> foi substituído por Guilherme<br />

Magon. Baixa Terapia é um texto do<br />

argentino Matias del Federico que fala<br />

de três casais que não se conhecem e<br />

que se cruzam no consultório de uma<br />

terapeuta. Mas, como ela não se encontra<br />

no local, eles passam a relatar<br />

suas queixas, confissões, verdades e<br />

mentiras. As gargalhadas do público<br />

vão ficando mais espaçadas à medida<br />

que a trama assume uma narrativa séria.<br />

“O espetáculo tem uma reviravolta<br />

que faz o público repensar sobre tudo<br />

o que riu”, diz Fagundes. Em todas as<br />

sessões, os atores permanecem no teatro<br />

após o encerramento da peça e<br />

conversam com o público sobre o que<br />

acabou de ser apresentado.<br />

A encenação marca a terceira parceria<br />

do ator com Bruno. Os dois atuaram<br />

anteriormente em Vermelho e Tribos.<br />

Como é então separar o pai do ator?<br />

“Os dois ‘Antonios’ são indissociáveis.<br />

Não dá para ter um sem o outro. O<br />

trabalho nos ajudou pessoalmente, e<br />

nossa boa relação pessoal nos ajudou<br />

a trabalhar juntos. Então, foi um bom<br />

combinado de afetos: nós construímos<br />

uma trajetória de quase nove anos trabalhando<br />

ininterruptamente e isso só<br />

aprofundou e elaborou nossa relação<br />

de pai/filho”, diz Bruno. E trabalhar<br />

com o progenitor teria efeitos terapêuticos?<br />

“Não, porque sou ‘terapeutizado’<br />

fora dos palcos. E as situações ali colocadas<br />

nesses trabalhos não tinham nenhuma<br />

relação com nossa vida pessoal.<br />

O fazer teatral é uma jornada de afeto<br />

e encontro. Quando se forma uma dupla<br />

em cena, você tem que desenvolver<br />

uma escuta extremamente ativa com<br />

seu colega, e tive <strong>–</strong> repetidas vezes <strong>–</strong><br />

o prazer de ter meu pai como parceiro.<br />

Então isso, definitivamente, nos aproximou<br />

muito, talvez de uma forma que<br />

pais e filhos em outros empregos não<br />

experimentem. O que só deixa o poder<br />

do teatro mais latente”, completa.<br />

Boa parte da população o conhece das novelas, mas um dos maiores atores do país<br />

também mostrou sua versatilidade no mundo do cinema, onde passou pelo terreno<br />

da pornochanchada (Elas São do Baralho, de 1977, que tinha como diretor o então<br />

iniciante Silvio de Abreu) e viveu tipos criados por Ariano Suassuna e Nelson Rodrigues,<br />

entre outros autores, além de projetos pessoais de João Batista de Andrade,<br />

Guilherme de Almeida Prado e Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida. Mas, para<br />

amigos e parceiros, é no teatro onde ele se realiza. “Fagundes é o teatro. É grande<br />

em tudo o que faz, mas é ali onde respira, se alimenta, onde trabalha, onde nasceu<br />

e vive”, diz Jorge Takla, que recentemente o dirigiu em Vermelho, de 2016, peça em<br />

que o ator atuou ao lado do filho Bruno Fagundes. “Trabalhar com eles foi emocionante<br />

porque a peça falava do conflito de gerações a partir da relação de um pintor<br />

veterano com seu pupilo”, completa o diretor.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 37<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 36<br />

Bastidores da peça Baixa Terapia, com o filho Bruno | foto: reprodução Instagram


Fora de cena, produtor<br />

Registro da história<br />

Fagundes descobriu o teatro aos 16 anos. Ou melhor, foi descoberto.<br />

Um professor do Colégio Rio Branco, de São Paulo<br />

(para onde a família havia se mudado na segunda metade<br />

dos anos 1950), o intimou para atuar na montagem escolar de<br />

A Ceia dos Cardeais. Trabalhou em outras montagens amadoras,<br />

mas só quatro anos depois da estreia forçada é que decidiu<br />

seguir a carreira de ator. “Eu iria fazer engenharia civil,<br />

mas passei por um período de estudo, de busca, até descobrir<br />

o que queria de verdade. Hoje posso dizer que o país perdeu<br />

um péssimo engenheiro civil”, diverte-se.<br />

Uma das características principais de sua trajetória é a de,<br />

muitas vezes, contar a história de seu tempo por meio do<br />

trabalho <strong>–</strong> seja na televisão, no teatro, seja no cinema. Salta<br />

aos olhos, por exemplo, sua atuação no filme A Próxima Vítima<br />

(1983), thriller do cineasta João Batista de Andrade no qual<br />

vivia um repórter que cobria o assassinato de prostitutas na<br />

região central de São Paulo. O enredo e a situação de insegurança<br />

mostrada na tela iam ao encontro do clima angustiante<br />

do país naquele período: os últimos suspiros da ditadura<br />

e a criação de um serial killer para desviar a atenção do povo<br />

para o processo democrático. O mesmo se pode dizer de seu<br />

Macbeth, encenado em 1992, espetáculo que trazia um clima<br />

No Theatro Circo, na cidade de Braga, em Portugal | foto: arquivo pessoal<br />

soturno e ameaçador. “Macbeth vem de uma época em que<br />

politicamente as coisas estavam mais para o terror do que<br />

para a confusão”, justifica ele, lembrando que a encenação se<br />

deu nos anos em que Fernando Collor de Mello estava a um<br />

passo de sofrer o processo de impeachment. “Muito legal usar<br />

um texto para retratar um momento histórico e político.”<br />

Os retratos desses momentos passaram, inclusive, pela contracultura.<br />

O ator encenou Hair e Godspell, dois musicais que<br />

trouxeram o universo hippie do final dos anos 60 para o cotidiano.<br />

“Naquela época, não precisava ser cantor; hoje a gente<br />

tem que se preparar mais”, brinca. Por vezes, a presença de<br />

Fagundes foi além das dimensões do palco. Durante anos, trabalhou<br />

nas bilheterias das peças nas quais atuou. A função<br />

extra ajudou a “sentir o clima da plateia” para as apresentações<br />

que seu grupo teatral iria fazer. “A grande mágica do<br />

teatro é que existem diferentes tipos de plateia a cada dia”,<br />

diz. O hábito há tempos foi substituído por outro tipo de interação:<br />

ao final de cada peça, ele e o elenco entabulam uma<br />

conversa com o público. “Teatro é uma arte viva. Falo com os<br />

espectadores que se voltarem no dia seguinte, sentarem na<br />

mesma cadeira, terão uma experiência diferente da vivida no<br />

dia anterior”, conta.<br />

Antonio Fagundes não faz teatro. Ele<br />

vive o teatro na pele. Aliás, literalmente<br />

<strong>–</strong> em 2022, tatuou no pé um crânio<br />

com uma rosa, referência a uma das<br />

cenas clássicas de Hamlet, obra-prima<br />

de William Shakespeare. Banca suas<br />

próprias produções e aprendeu a conviver<br />

com os riscos, já que um texto<br />

mal escolhido é sinônimo de prejuízo.<br />

“Não existe arrependimento, existe<br />

evolução. Os erros fazem parte do cotidiano.<br />

O teatro te obriga a repeti-los<br />

diariamente. Ficar dois, três meses errando.<br />

É algo que nenhuma outra profissão<br />

te permite”, justifica. A ameaça<br />

do erro, contudo, nunca o impediu de<br />

tomar atitudes ousadas. Na década de<br />

1980, ele criou a Companhia Estável de<br />

Repertório, onde aliou obras de público<br />

garantido (por exemplo, Cyrano de Bergerac<br />

e Nostradamus, respectivamente<br />

de 1985 e 1986) com outras obras de<br />

risco certo. “O público tinha de reconhecer<br />

o teatro, não gêneros teatrais.<br />

Eu não queria que eles gostassem de<br />

comédias ou gêneros brasileiros. Eu<br />

queria que eles gostassem de teatro.<br />

Fiz dez espetáculos, totalmente diferentes”,<br />

explica Fagundes. Um desses<br />

espetáculos diferentes foi Fragmentos<br />

de um Discurso Amoroso, adaptação dos<br />

escritos de Roland Barthes, que marcou<br />

a parceria dele com o diretor Ulysses<br />

Cruz. “Um dia, eu estava ensaiando<br />

com o grupo de teatro Boi Voador,<br />

quando me falaram que o Fagundes<br />

queria ver um ensaio. Tempos depois,<br />

ele me ligou e me chamou para trabalhar<br />

na companhia dele em Fragmentos,<br />

que era então um projeto paralelo”, diz<br />

Cruz. “Um Fagundes vale pelo elenco<br />

inteiro, ele sabe preencher os vazios<br />

do texto. Como respirar e fazer o coração<br />

da plateia bater com ele”, completa.<br />

Fragmentos chegou a levar 180 mil pessoas<br />

ao teatro.<br />

O ator e produtor é pouco afeito à Lei<br />

Rouanet, criada para fundear espetáculos<br />

culturais. Mas seus motivos em<br />

nada coincidem com os do grupo que<br />

acusa os adeptos da Rouanet de corrupção<br />

<strong>–</strong> sem provas, diga-se. “O patrocínio<br />

é necessário e primordial para<br />

que você conquiste novas posturas artísticas.<br />

Sem ele, não existiria Bach ou<br />

Beethoven”, declarou certa vez. O queixume<br />

de Fagundes é que muitas vezes<br />

esse incentivo seja decidido pelos departamentos<br />

de marketing das empresas,<br />

que privilegiam determinado tipo<br />

de espetáculo em detrimento de outras<br />

obras. “Você acaba não crescendo, não<br />

se modificando. Você acaba falando<br />

para a sua bolha”, explicou, à ocasião.<br />

O fato de ser o mecenas de seus próprios<br />

espetáculos fez com que Antonio<br />

Fagundes criasse dois personagens<br />

com os quais ele tem necessidade de<br />

dialogar. “Ele quer fazer a peça para<br />

o Seu Zé e a Dona Maria. Quando ele<br />

identificava [no texto] alguma coisa que<br />

esses dois não iriam entender, a gente<br />

debatia”, diz Ulysses Cruz. “Para Fagundes,<br />

é necessário que a gente dê a<br />

chave para que o público possa abrir a<br />

porta”, complementa. Jorge Takla, por<br />

seu turno, enxerga outra qualidade.<br />

“O Fagundes escolhe os textos que tenham<br />

a ver com o que ele quer dizer<br />

naquele momento. Ele os utiliza para<br />

expressar o processo em que ele quer<br />

estar. Se está no processo de transformação,<br />

utiliza a redação para que possa<br />

fazer de uma maneira mais suave e<br />

profissional. É uma pessoa muito bem<br />

resolvida pessoalmente, politicamente<br />

e profissionalmente. E acaba passando<br />

os benefícios dessa terapia para<br />

o público”, diz. “Uma das funções sociais<br />

da cultura é retratar um momento”,<br />

completa o ator. “Estou fazendo<br />

uma peça que discute as relações familiares<br />

porque elas são necessárias<br />

nos dias de hoje.”<br />

“O teatro te obriga a repetir [os erros]<br />

diariamente. Ficar dois, três meses<br />

errando. É algo que nenhuma outra<br />

profissão te permite”<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 39<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 38


Mocinhos e vilões na TV<br />

Em 2021, Antonio Fagundes encerrou um contrato de 44<br />

anos com a Rede Globo de Televisão. Um dos motivos foi que<br />

a emissora quis modificar a cláusula do contrato que especificava<br />

que ele trabalharia apenas três dias por semana <strong>–</strong> o<br />

tempo restante é utilizado para seu trabalho em teatro. Fagundes<br />

revelou até que seria o Velho do Rio, mítico personagem<br />

da novela Pantanal, mas recusou o papel justamente<br />

por não concordar com a proposta da Rede Globo. O ator<br />

chegou em 1974 à emissora carioca, vindo de uma temporada<br />

de sucesso na extinta TV Tupi. Eternizou tipos célebres,<br />

como o Cacá, de Dancin’ Days, o canalha Felipe Barreto, de<br />

O Dono do Mundo (ambas de Gilberto Braga), José Inocêncio<br />

e Bruno Mezenga (de Renascer e O Rei do Gado, de Benedito<br />

Ruy Barbosa) e o caminhoneiro Pedro, parceiro de Bino (Stênio<br />

Garcia) no seriado Carga Pesada. Em Dancin’ Days, aliás,<br />

o personagem Cacá, alma gêmea de Júlia Matos, vivida pela<br />

estonteante Sonia Braga, era um diplomata fã das sinfonias<br />

de Gustav Mahler, frequentador assíduo de sessões de terapia<br />

e que vivia em constante choque com a mãe. “Cacá era<br />

o Gilberto Braga”, revela o ator. “Ele me dizia: ‘Fagundes, eu<br />

gosto de você porque eu posso escrever o homossexual que<br />

eu quiser, que você faz macho’”, conta.<br />

Mais recentemente, Antonio Fagundes foi visto em Independências,<br />

minissérie de Luiz Fernando de Carvalho, exibida<br />

na TV Cultura. Ele interpretou o rei português dom João VI<br />

de uma maneira diferente do que é visto em cinebiografias e<br />

novelas. “Uma das propostas da versão do Carvalho era perceber<br />

outras narrativas. Particularmente a dom João VI, que<br />

sempre era visto como uma figura caricata. Mas no fundo<br />

foi um grande estadista e impediu que Napoleão Bonaparte<br />

conquistasse a Europa”, diz. “João pedia pareceres de seus<br />

ministros por escrito. A partir dessas visões, ele tomava as<br />

decisões dele... Tinha doze, quinze pareceres. Não era indeciso,<br />

embora levasse um tempo para tomar as decisões certas”,<br />

comenta o ator, que leu algumas biografias do monarca para<br />

encarná-lo na televisão. “Mas foi um homem de seu tempo:<br />

escravocrata, machista, ditatorial...”<br />

Com Stênio Garcia, no seriado Carga Pesada | foto: reprodução Instagram<br />

“Um Fagundes vale pelo elenco<br />

inteiro, ele sabe preencher os vazios<br />

do texto. Como respirar e fazer o<br />

coração da plateia bater com ele”<br />

<strong>–</strong> Ulysses Cruz<br />

Fã de livros e games<br />

A leitura, aliás, é um de seus passatempos<br />

prediletos. “Ele está sempre<br />

com um livro debaixo do braço”, diz<br />

Tuna Dwek, atriz que contracenou<br />

com Fagundes no teatro e na televisão.<br />

A paixão foi, inclusive, importada para<br />

a ficção em 2019, quando viveu um<br />

editor literário na novela Bom Sucesso,<br />

de Rosane Svartman e Paulo Halm. De<br />

tanto dar dicas de leitura ao elenco, o<br />

ator criou o podcast chamado Clube<br />

do Livro por Antonio Fagundes. Pouco<br />

mais de um ano depois da estreia nas<br />

plataformas de streaming de áudio, o<br />

programa se tornou, ele próprio, um livro:<br />

Tem um Livro Aqui Que Você Vai Gostar,<br />

da editora Sextante, traz comentários<br />

sobre 150 obras. Fagundes divide<br />

a paixão pelas letras com os jogos de<br />

videogame. “Mas aqueles que têm historinha”,<br />

adianta. Um dos personagens<br />

favoritos do ator no mundo dos games<br />

é Kratos, guerreiro que enfrenta a ira<br />

dos deuses gregos no jogo God of War.<br />

O ator já revelou em entrevistas que,<br />

no auge do “vício”, passou uma semana<br />

praticamente sem dormir jogando God<br />

of War. Hoje, ele se contenta em jogar<br />

uma vez a cada 15 dias.<br />

Fagundes é ator de outros tempos,<br />

quando o país parava para assistir a<br />

um capítulo decisivo das novelas que<br />

todo mundo acompanhava. Hoje, sua<br />

geração se vê diante do streaming e do<br />

esfacelamento dos canais de TV abertos.<br />

“A gente está num período de transição.<br />

Podem acontecer coisas terríveis,<br />

de os streamings acharem que não<br />

vale a pena [financeiramente] e parar.<br />

Ficamos sem o videocassete, o DVD<br />

e podemos ficar sem streaming”, diz.<br />

“A internet veio para ficar, é um processo<br />

maravilhoso de conquista, Mas<br />

acoplada a pouca educação pode criar<br />

um problema”, lamenta. Embora tenha<br />

suas ressalvas, o ator é um ávido consumidor<br />

dessa tecnologia <strong>–</strong> e consome<br />

diferentes tipos de produção. “Sempre<br />

brinco falando que tem um japonês dizendo<br />

o que você deve assistir. O meu<br />

deve estar até meio maluco.”<br />

Fagundes recorre ao bom humor para<br />

responder à pergunta sobre como é<br />

ser Deus. “É divertido porque se trata<br />

de um personagem que não tem muitos<br />

elementos de comparação”, brinca.<br />

E emenda com um revés: “Um amigo<br />

meu, super-religioso, diz que eu trouxe<br />

um grande problema para ele porque<br />

toda vez que ele vai rezar acaba<br />

pensando em mim”. As filmagens de<br />

Deus Ainda É Brasileiro foram realizadas<br />

no finalzinho de 2022. E agora, para<br />

onde vai o fã do jogo God of War (Deus<br />

da Guerra) depois de interpretar Deus?<br />

Ulysses Cruz, seu antigo colaborador,<br />

faz uma proposta. “Estou escrevendo<br />

uma peça sobre Procópio Ferreira e<br />

adoraria que o Fagundes vivesse esse<br />

personagem.” Um convite oportuno.<br />

Afinal, nada mais natural que encarnar<br />

um dos deuses do teatro brasileiro depois<br />

da divina missão no cinema.<br />

Que conselho<br />

daria ao jovem<br />

Antonio?<br />

“Faça exatamente<br />

o que você fez”<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 41<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 40


Nome: Thalita Rebouças Teixeira<br />

Idade: 48 anos<br />

Profissão: escritora<br />

Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />

Conexão<br />

teen<br />

Por Guilherme Dearo<br />

A escritora Thalita Rebouças conquistou o<br />

público jovem com sua habilidade para dialogar<br />

com as novas gerações. Há 20 anos, as histórias<br />

dessa carioca tão apaixonada pela praia quanto<br />

pela literatura fazem imenso sucesso nas<br />

livrarias, nos cinemas e na TV<br />

Foto: Edu Rodrigues<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 43<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 42


Praia, cidade e<br />

literatura<br />

Essa carioca da gema, filha única de<br />

pai dentista e mãe dona de casa, nasceu<br />

em <strong>10</strong> de novembro de 1974. Cresceu<br />

no bairro de Copacabana, zona sul<br />

do Rio, e da infância que ela define<br />

como “alegre e de paz” guarda ótimas<br />

lembranças de seu avô Nininho, que<br />

a levava e buscava na escola todos os<br />

dias. Vem desse tempo a paixão pela<br />

cidade e pela praia. “Meu pai e meu<br />

avô me levavam para cima e para baixo.<br />

Conheci o Rio todo ainda criança.<br />

O Rio antigo, a Praça XV, o Paço Imperial,<br />

a Cinelândia.” Foi na infância também<br />

que nasceu a paixão pela leitura.<br />

Os preferidos eram Marcelo, Marmelo,<br />

Martelo, de Ruth Rocha, e O Menino<br />

Maluquinho, de Ziraldo. Mais tarde, pegou<br />

gosto pelos livros de mistério de<br />

Agatha Christie e pelas obras das coleções<br />

Inspetora e Vaga-Lume.<br />

O hábito da leitura arrefeceu durante a<br />

adolescência, talvez por ter tido muito<br />

contato com leituras obrigatórias no<br />

colégio, acredita. Ou porque não encontrava<br />

eco de seus dilemas na lite-<br />

ratura, como seu público encontrou em<br />

seus livros. Mas, mesmo nesse período,<br />

já era uma pessoa “de humanas”. “Só<br />

sei contar nos dedos”, brinca. Foi um<br />

autor em especial que a fez retomar o<br />

amor pela literatura. “Feliz Ano Velho, do<br />

Marcelo Rubens Paiva, mudou a minha<br />

vida. O jeito leve dele, despretensioso,<br />

mas jamais sendo bobo ou sem profundidade,<br />

me inspirou a escrever”, revela.<br />

Os pais também deram um empurrão<br />

no interesse pelos livros. “Cresci lendo<br />

Fernando Sabino, João Ubaldo Ribeiro<br />

e Luis Fernando Verissimo porque<br />

eles recortavam as crônicas que saíam<br />

nos jornais e guardavam pra eu ler.”<br />

Hoje, José Saramago e Mario Vargas<br />

Llosa estão entre suas maiores referências<br />

literárias. “E, dos mais atuais,<br />

estou adorando a Giovana Madalosso,<br />

a Paula Gicovate. E eu amo o Raphael<br />

Montes, é um amigo muito querido.<br />

Ele é um gênio, os livros dele são incríveis.<br />

Resgato o gosto da infância de ler<br />

mistérios com ele.”<br />

Com o pai, Willian, o avô José e a avó Maura | foto: arquivo pessoal<br />

A<br />

carioca Thalita Rebouças traz nas costas a tatuagem de<br />

uma gaivota solitária porque “escrever é assim”. E ela<br />

sabe do que está falando. Com mais de 2,3 milhões de<br />

livros vendidos <strong>–</strong> um feito e tanto em um país onde apenas<br />

metade (52%) da população cultiva o hábito da leitura e tem<br />

como preferências a Bíblia e livros com temáticas religiosas<br />

<strong>–</strong>, ela é uma das escritoras mais bem-sucedidas do mercado<br />

literário brasileiro. Thalita conquistou o público adolescente<br />

com seus 26 livros publicados, vencendo uma disputa acirrada<br />

pela atenção dos jovens. Enquanto ela começava a se dedicar<br />

ao solitário processo da escrita, seu público descobria um<br />

novo mundo proporcionado pela internet. Chats, programas<br />

de mensagem instantânea, blogs, Orkut. Isso sem falar no<br />

boom da TV a cabo e os irresistíveis videogames. Qualquer<br />

pai e mãe de adolescente sabe que a concorrência é dura.<br />

No entanto, ao falar de igual para igual com seus leitores,<br />

Thalita conseguiu tirá-los da frente das telas para que mer-<br />

gulhassem em seu universo literário. Ali, eles encontraram<br />

personagens que enfrentavam os mesmos problemas com os<br />

quais eles lidavam no dia a dia: sofrer pelo primeiro amor, lutar<br />

por uma amizade, encarar descobertas sexuais e relacionar-se<br />

com pais e professores. A escritora atribui o sucesso<br />

de seus livros à sua honestidade e ao fato de escrever o que<br />

gostaria de ter lido quando era adolescente. “Eu não julgo, não<br />

dou lição de moral. Eles se veem nas histórias”, diz. Mais do<br />

que entreter, a escritora estabeleceu uma forte conexão com<br />

os jovens. Já recebeu mensagens de leitores dizendo que determinado<br />

livro ajudou em um momento de depressão e de<br />

jovens contando que procuraram ajuda motivados por uma<br />

obra dela. Em pouco mais de duas décadas de carreira, a escritora<br />

teve <strong>–</strong> e tem <strong>–</strong> um importante papel na formação de<br />

jovens leitores no Brasil. “Já perdi a conta de quantas pessoas<br />

falaram que começaram a ler mais por minha causa ou que<br />

viraram escritores depois de me conhecer.”<br />

Com os atores Larissa Manoela e Sérgio Malheiros | foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 45<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 44


Copo meio cheio<br />

Assim como os personagens de seus livros, Thalita foi uma<br />

adolescente intensa e cheia de dramas. “Tive momentos de<br />

não me sentir amada, de me sentir excluída. Acho que todo<br />

adolescente passa por isso”, lembra. E, também como toda garota,<br />

teve várias facetas. “Sempre fui leve, otimista, vi o copo<br />

meio cheio.” Se hoje é extremamente extrovertida, sempre<br />

disposta a interagir com fãs em palestras e sessões de autógrafos,<br />

os primeiros anos da adolescência foram marcados<br />

pela timidez. “Não fui nada rebelde. Era muito tímida! Isso só<br />

mudou quando, aos 14 anos, comecei a fazer aulas de teatro.<br />

Fiz até os 19, e isso me transformou. Ali você aprende a criar,<br />

a realizar, a ter empatia”, ensina.<br />

O pai queria que Thalita seguisse seus passos na odontologia,<br />

enquanto a mãe sonhava em ver a filha advogada. Acabou<br />

escolhendo direito. Fez dois anos do curso, na Universidade<br />

Candido Mendes, mas se desencantou com a área. Optou pelo<br />

jornalismo, agora na Faculdade da Cidade, e desta vez foi até<br />

o fim. Trabalhou por alguns anos em redações jornalísticas e<br />

assessorias de imprensa. “Passei por muitos lugares legais,<br />

como Lance!, O Globo, Gazeta Mercantil. Gostava muito, mas<br />

sentia que faltava algo.” Aos 25 anos, veio um clique. “Pensei:<br />

‘Se eu não tentar ser escritora agora, vou virar uma pessoa<br />

frustrada lá na frente’. Eu precisava tentar.”<br />

Dividia o tempo entre a vida como jornalista freelancer e aspirante<br />

a escritora, afinal precisava pagar as contas. Em 1999,<br />

publicou o primeiro livro, Um Caso de Cativeiro, escrito a quatro<br />

mãos com Carlos Luz, seu marido na época. O livro quase<br />

passou despercebido. Quase, porque motivou uma editora<br />

No The Voice Kids | foto: arquivo pessoal<br />

pequena a encomendar a Thalita um livro “bem mulherzinha,<br />

no estilo revista Nova <strong>–</strong> foi exatamente esse o briefing que<br />

me deram”, explica a autora de Traição entre Amigas (2000),<br />

que vendeu 4 mil exemplares e lhe trouxe certo reconhecimento<br />

no meio editorial. E mostrou que ela estava certa em<br />

seguir aquele caminho: “Escrevi de maneira muito intuitiva,<br />

foi natural”.<br />

Apesar do impulso inicial, o sucesso na literatura ainda não<br />

estava garantido, mas Thalita não esperaria sentada. A divulgação<br />

de Traição entre Amigas na Bienal do Livro no Rio, por<br />

exemplo, quase foi um fiasco. De novo, quase. No estande da<br />

editora, ninguém apareceu para assistir à palestra da autora.<br />

Inconformada, Thalita vestiu uma peruca rosa, subiu numa<br />

cadeira e começou a chamar o público que passava pelo local.<br />

“O 6 sempre foi meu número da sorte. Então eu me dei seis<br />

anos para fazer dar certo nesse mundo. Se não virasse autora<br />

depois de seis anos, pensaria em desistir”, conta.<br />

Traição entre Amigas era voltado para um público mais velho,<br />

mas caiu nas graças dos jovens. A escritora percebeu que<br />

havia criado uma conexão com essa turma e decidiu investir<br />

no universo infantojuvenil. Mantendo a fé no número 6,<br />

enviou o original de Tudo por um Popstar para seis editoras. Só<br />

uma respondeu. O livro, publicado em 2003 pela Rocco, foi<br />

um sucesso explosivo entre as garotas e virou best-seller. O<br />

primeiro cheque recebido por seu trabalho como coautora de<br />

Um Caso de Cativeiro, no valor de 11 reais, ficou no passado. “No<br />

meu sexto ano como escritora, comecei a pagar as contas com<br />

tranquilidade”, diz.<br />

“Pensei: ‘Se eu não tentar<br />

ser escritora agora,<br />

vou virar uma pessoa<br />

frustrada lá na frente’.<br />

Eu precisava tentar”<br />

Foto: Edu Rodrigues<br />

Foco e disciplina<br />

O método de Thalita para ser uma escritora tão profícua é... não ter método. “Escrevo<br />

em qualquer lugar, com barulho ou em silêncio. Até na área de embarque do<br />

aeroporto eu já escrevi. E meu processo criativo não é nada doloroso”, garante. “Sou<br />

megaorganizada e já tenho toda a história na cabeça, nem preciso ficar pendurando<br />

papéis na parede.” Ela acredita que escritores precisam ter disciplina e foco para<br />

escrever todos os dias. “Depois do almoço, lá pelas 2 da tarde, começo a escrever e<br />

vou embora. Pode ser até as 8 da noite, pode ser até de madrugada.” Poucas pessoas<br />

podem ler o original antes da publicação. Além de sua agente literária, só o marido,<br />

Renato Caminha, ganha acesso ao manuscrito que sai do forno. “Aprendi que não<br />

adianta mostrar pros amigos porque eles nunca criticam.”<br />

Depois da cena com a peruca rosa na<br />

Bienal do Rio, Thalita produziu sucesso<br />

atrás de sucesso, como os livros da<br />

série Fala Sério e títulos como Uma Fada<br />

Veio Me Visitar (2007) e Ela Disse, Ele Disse<br />

(2011). Ao longo da carreira, passou<br />

de temas leves para assuntos mais sérios,<br />

com o cuidado de nunca se desviar<br />

de seu público. Falou sobre transtorno<br />

alimentar, relações abusivas com os<br />

pais, automutilação e suicídio, além de<br />

trazer a diversidade às obras, com mais<br />

protagonistas gays e fora dos padrões<br />

normativos. “Não que eu não me sentisse<br />

livre para falar disso antes, porque<br />

nunca sofri censura, mas os temas<br />

foram ficando mais relevantes. E eu<br />

estou em um aprendizado constante.<br />

Quero contribuir para esses debates,<br />

falar de preconceito, de gordofobia, de<br />

autoaceitação. Quero pregar o amor”,<br />

fala. Nunca recebeu queixas dos pais<br />

sobre os temas que aborda. Pelo contrário.<br />

“Eles acabam entendendo mais<br />

os filhos por meio das minhas histórias<br />

e até me agradecem depois.” Ela<br />

também não reluta em mudar algo em<br />

livros já publicados. “Usei ‘pulga epiléptica’<br />

em um livro para falar de uma<br />

personagem, em tom de piada, e uma<br />

mãe veio me falar que não tinha gostado<br />

porque a filha tinha epilepsia. Eu entendi,<br />

claro, e na hora falei com a minha<br />

editora para mudar o termo”, conta.<br />

Enquanto passeia por temas do universo<br />

teen em suas obras, a escritora<br />

também abre sua própria história para<br />

mostrar aos leitores que é “igual a eles”.<br />

Em sua autobiografia, Fala Sério, Thalita!,<br />

lançada em 2020 pela editora Pixel,<br />

é franca e não se furta a contar detalhes<br />

de momentos marcantes da adolescência,<br />

como o primeiro beijo, aos 12<br />

anos, e a perda da virgindade, aos 18.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 47<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 46


Viva o amor<br />

A autobiografia saiu no ano em que Thalita conheceu o psicólogo<br />

Renato Caminha, seu atual marido, durante uma festa<br />

na casa de uma amiga. “Começamos a conversar e não desgrudamos<br />

mais. Foi muito arrebatador. O foco dele na psicologia<br />

são crianças e adolescentes. Então, claro, temos muito<br />

em comum”, conta. O trabalho de pesquisa para escrever os<br />

livros Confissões de um Garoto Talentoso, Purpurinado e (Intimamente)<br />

Discriminado e Natali e Sua Vontade Idiota de Agradar Todo<br />

Mundo, lançados este ano, contou com a ajuda do parceiro.<br />

“Ambos trazem protagonistas gays, e ele me ajudou muito<br />

a falar sobre isso. Eu ia dialogando com ele enquanto escrevia<br />

as cenas.” Em janeiro de 2022, o casal celebrou a união<br />

em uma cerimônia intimista. À época, em sua conta no Instagram,<br />

a noiva escreveu “É pra ficar junto por pelo menos<br />

uns 40 anos. Pelo menos. Viva o amor”. Atualmente, o casal<br />

vive em São Conrado. “Ter a chance de encontrar uma paixão<br />

dessa na maturidade é muito bacana. As duas pessoas ficam<br />

mais confortáveis na própria pele, não tem aquela urgência<br />

e ansiedade que atrapalha. Sou muito fã do amor maduro. E<br />

nos conhecemos na hora certa. Se esse encontro tivesse sido<br />

antes, não sei se teríamos tamanha conexão”, diz.<br />

As perguntas sobre maternidade são inevitáveis. “Eu lido<br />

superbem com o fato de não ter tido filhos, quem não lida<br />

bem são os outros”, diz, sem perder o bom humor. Em entrevista<br />

ao jornal O Globo, publicada em 2021, ela conta que<br />

tomou a decisão de não ter filhos aos 27, 28 anos, e que já<br />

sofreu muita pressão e ouviu comentários maldosos. “É um<br />

assunto que precisa ser falado. Já refleti abertamente sobre<br />

maternidade compulsória nas redes sociais e abordei o assunto<br />

no livro Natali e Sua Vontade Idiota de Agradar Todo Mundo.<br />

Muitas mulheres se tornam mães por pressão, sem questionar<br />

essa falsa necessidade. Nunca me bateu essa vontade<br />

de ter filhos”, conta. Thalita ressalta que os homens não são<br />

pressionados sobre paternidade. “Nenhuma mulher pode se<br />

sentir culpada por não ter filhos, mas a sociedade quer criar<br />

essa culpa. Eu falo isso abertamente com mulheres na faixa<br />

dos 30 anos: ‘Tudo bem se não quiser filhos, não tem nada<br />

de errado com você’.”<br />

“Eles [os pais]<br />

acabam entendendo<br />

mais os filhos por<br />

meio das minhas<br />

histórias e até me<br />

agradecem depois”<br />

Com o marido, o psicólogo Renato Caminha | foto: arquivo pessoal<br />

Com Maisa Silva e Eduardo Moscovis | foto: arquivo pessoal<br />

Versatilidade<br />

As histórias criadas por Thalita transbordaram<br />

as prateleiras das livrarias e<br />

foram parar nas telas da TV e do cinema.<br />

Em 2016, o livro Uma Fada Veio Me<br />

Visitar virou o filme É Fada, estrelado<br />

por Kéfera Buchmann e Klara Castanho.<br />

Nas adaptações de Fala Sério, Mãe!<br />

e Ela Disse, Ele Disse, fez questão de participar<br />

da criação do roteiro para “manter<br />

a fidelidade ao livro”. A experiência<br />

como roteirista colaborou para inverter<br />

a ordem dos sucessos da escritora: o<br />

filme original Pai em Dobro, produção<br />

da Netflix com os atores Maisa Silva e<br />

Eduardo Moscovis no elenco, veio antes<br />

do livro. “Gosto de ser parceira dos<br />

atores. Ser uma roteirista e autora que<br />

está presente em todas as etapas, de<br />

escolher locação à parte do figurino.<br />

Sou uma autora controladora nesse<br />

sentido. E sempre fico amiga do elenco”,<br />

garante.<br />

Desde 2017, Thalita também atua em<br />

frente às câmeras, como apresentadora<br />

de bastidores do reality show global<br />

The Voice Kids. Quando não está trabalhando,<br />

gosta de ir à praia, dançar pela<br />

casa, sair com os amigos e viajar. “Eu<br />

amo praia, sou daquelas cariocas que<br />

aproveitam a praia da cidade. Se deixar,<br />

vou todos os dias”, diz. E não abre<br />

mão de se cuidar. “Malho todos os dias,<br />

faço ioga. Deixo a manhã para cuidar<br />

de mim e ficar gostosa.” Aos 48 anos,<br />

a escritora e roteirista se sente no melhor<br />

momento de sua vida. “Depois dos<br />

45 anos, virei a chave em matéria de<br />

criatividade, inspiração e beleza. A idade<br />

só melhora a gente”, diz, mostrando<br />

que o etarismo não tem espaço em sua<br />

rotina. “Acho que, quando você tem 20<br />

anos, não tem noção do tanto de coisa<br />

que ainda não sabe. É muita autocrítica,<br />

muita autocobrança. Quando você<br />

fica mais velha, entende que seu corpo<br />

é o que te mantém viva, que você<br />

é aquele corpo e ele te mantém pensante,<br />

criativo, feliz. Isso é muito bonito”,<br />

diz, mostrando que tem talento<br />

e versatilidade para se conectar com<br />

diferentes gerações.<br />

Que conselho daria<br />

à jovem Thalita?<br />

“Fique calma, vai dar<br />

tudo certo. Vai ser<br />

difícil, mas você vai<br />

conseguir. Não desista!”<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 49<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 48


Nome: Carlos Eduardo Fernandes Léo (Kobra)<br />

Idade: 47 anos<br />

Profissão: muralista<br />

Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />

O gigante<br />

dos murais<br />

Por Simone Costa<br />

Na adolescência, Eduardo Kobra pichava muros<br />

da periferia sem incentivo para desenvolver seu<br />

talento artístico. Mas o garoto rebelde conheceu o<br />

grafite e se tornou um dos maiores expoentes da<br />

street art no mundo<br />

Foto: Alan Teixeira<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 51<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 50


Herdeiro da pichação<br />

O Kobra que hoje circula pelos quatro cantos do planeta não<br />

esquece suas origens. Nasceu no Jardim Martinica, no Campo<br />

Limpo, zona sul da capital paulista, filho de um tapeceiro e<br />

uma dona de casa. Estudante da escola pública Maurício Simão,<br />

recheava os cadernos com desenhos que fazia durante<br />

as aulas. Em pouco tempo, migrou do papel para as paredes<br />

e muros da escola. Era considerado mau aluno e colecionava<br />

advertências. Anos mais tarde, na cerimônia de entrega<br />

da Medalha Anchieta e do Diploma de Gratidão da Cidade de<br />

São Paulo, homenagens da Câmara Municipal ao artista, um<br />

professor e alunos da antiga escola lhe entregaram uma lembrança:<br />

uma advertência daquele tempo. O texto foi lido entre<br />

risos para a plateia presente: “Confessou que o seu apelido é<br />

Cobra [o K viria anos mais tarde] e que escreveu seu nome no<br />

teto da classe”. A bronca informava ainda que o aluno “foi<br />

chamado à direção e se prontificou a limpar a parede”.<br />

E<br />

Foto: Patricia Pontes<br />

m 1992, Eduardo Kobra encarou uma maratona de três dias e três noites dentro<br />

do Playcenter, na Marginal Tietê, zona norte de São Paulo. Enquanto o<br />

público brincava no parque de diversões, o jovem de 17 anos trabalhava. À<br />

noite, solitário, cochilava ao pé da roda-gigante ou na base da recém-inaugurada<br />

montanha-russa Tornado. Aquela era a primeira vez que o artista recebia dinheiro<br />

por suas pinturas, e o prazo para finalizar o trabalho era curto. “Dormia ali mesmo<br />

no chão porque não podia perder tempo indo pra casa”, diz.<br />

O convite para pintar seus desenhos em placas e brinquedos do extinto parque de<br />

diversões veio por acaso. “Eu estava pintando um grafite na rua quando um cara<br />

de uma agência de publicidade me abordou e contou que nos parques do exterior<br />

havia muitos desenhos como aquele”, lembra o artista. O tal sujeito estava criando<br />

um projeto para o Playcenter e reconheceu o talento do jovem grafiteiro. Pediu dois<br />

esboços de Kobra para que a agência apresentasse ao cliente, mas o entusiasmo do<br />

rapaz foi tanto que ele entregou 40.<br />

Naquele momento, a situação financeira ia de mal a pior. “Eu fazia bicos e pequenos<br />

trabalhos, mas não tinha dinheiro para pagar aluguel [por causa da relação conflituosa<br />

com a família, ele já morava sozinho], água, luz, nem almoço”, conta. As pinturas<br />

no Playcenter, que se estenderam pelos anos seguintes, não aliviavam o rombo na<br />

carteira, mas a visibilidade trouxe outro trabalho publicitário. E esse, sim, rendeu<br />

uma boa grana, que poderia garantir um pé-de-meia. Poderia. Depois de pagar as<br />

contas atrasadas, Kobra entrou em uma concessionária e comprou um Mustang<br />

0km. O artista chama de “coisa de moleque” a ideia de comprar um carro esportivo<br />

enquanto vive em uma “casa caindo aos pedaços”. Mas o moleque cresceu, evoluiu e<br />

se tornou o Eduardo Kobra que o mundo conhece hoje, ícone da street art, com mais<br />

de 3 mil murais produzidos em pelo menos 35 países.<br />

Ninguém na família ou na escola percebia que naquele “mau<br />

aluno” havia um artista em formação. Quando começou a pichar<br />

as paredes de casa, os muros do colégio e as ruas do<br />

bairro, com apenas 12 anos, ouvia que aquilo era vandalismo.<br />

“Não tive nenhum tipo de apoio ou incentivo, só preconceito,<br />

palavras negativas, xingamentos. E ainda faltava dinheiro<br />

para comprar material para pintar. Ou seja, não tive nada nem<br />

ninguém que me apontasse que aquele caminho poderia ser<br />

o certo”, diz.<br />

O adolescente perdido em seu ímpeto artístico se encontrou<br />

no hip hop nos anos 1980. Saía com os amigos do Campo Limpo<br />

e percorria mais de 20 quilômetros para chegar ao Largo<br />

São Bento, no centro da cidade, onde a turma do movimento<br />

se reunia para dançar break. “O hip hop me deu uma boa<br />

dose de consciência do que é ser da periferia”, conta. Nessa<br />

época, quando começou a pichar mais longe de casa, descobriu<br />

que alguém já usava sua assinatura e decidiu adotar o<br />

Kobra com K. “O apelido veio dos colegas que gostavam dos<br />

meus desenhos. Eles diziam ‘Você é cobra’ no sentido de<br />

‘Você é fera’”, explica.<br />

Enquanto davam status ao garoto, as pichações também rendiam<br />

detenções por crime ambiental. Foi assim, indo buscar<br />

o filho na delegacia, na primeira das três vezes em que Kobra<br />

foi levado pelos policiais, que os pais descobriram no que ele<br />

estava metido. “Não sei como é hoje, mas, naquela época, o<br />

movimento dos pichadores era muito violento. Havia várias<br />

pessoas envolvidas com o crime, drogas, todo tipo de violência.<br />

Os pichadores morriam não só porque tomavam tiro,<br />

mas porque caíam dos prédios. Havia gangues rivais”, conta<br />

o artista. “Eu estava inserido nisso, mas não me envolvia com<br />

drogas nem crime. Só queria pintar. Mas era difícil pros meus<br />

pais, e eles queriam me tirar daquilo.”<br />

Foto: Alan Teixeira<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 53<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 52


Orgulho de pai<br />

Hoje, Kobra se define como muralista. O mural é um grafite<br />

autorizado e, muitas vezes, remunerado. Embora tenha passado<br />

de pichador a grafiteiro, e, posteriormente, a muralista,<br />

o artista explica que não se trata de uma linha evolutiva. “Tem<br />

gente que confunde e diz: ‘Por que o cara não deixa de ser<br />

pichador para ser grafiteiro e muralista?’ Essa não é uma realidade<br />

que funciona para todos. Além disso, são linguagens<br />

diferentes de street art”, afirma.<br />

Com o tempo, a família percebeu o dom artístico de Kobra.<br />

Depois de um período de afastamento, a relação com a mãe<br />

melhorou. “Meu pai era duro na queda, não era de demonstrar<br />

afeto, dar um abraço”, diz. O muralista guarda na memória<br />

com carinho o dia em que encontrou, na gaveta da cômoda<br />

do pai, recortes de jornais com matérias sobre seus trabalhos<br />

espalhados pelo mundo. “Quando achei as reportagens, entendi<br />

que ele tinha orgulho, sim. Creio que sabia que eu tinha<br />

seguido o caminho certo”, emociona-se.<br />

O pai faleceu antes de ver o filho entrar no Guinness com Etnias,<br />

o maior grafite do mundo, e bater seu próprio recorde<br />

com o mural em homenagem ao chocolate, às margens da<br />

Rodovia Castello Branco. Em 2022, Kobra pintou a fachada<br />

da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova<br />

York, e retratou a história e a lenda de formação de San Marino,<br />

na Europa, que se tornou atração turística e ganhou até<br />

uma passarela para que as pessoas possam ver mais de perto<br />

a obra. Em novembro, o artista inaugurou ainda um mural de<br />

84 metros quadrados numa escola em São Paulo retratando<br />

o inglês Lewis Hamilton, heptacampeão da Fórmula 1. Fã de<br />

Ayrton Senna, o piloto compareceu ao evento e pediu uma<br />

lata de spray para assinar seu nome na pintura. “Espero que<br />

traga motivação e cor para os alunos daqui”, disse Hamilton.<br />

De pichador a grafiteiro<br />

Com a expansão de horizontes proporcionada pelo movimento<br />

hip hop, Kobra descobriu o universo do grafite e nomes<br />

como o do britânico Banksy. Até aquele momento, o que ele<br />

pintava nos muros da cidade se resumia a pichação, caligrafias<br />

estilizadas feitas, muitas vezes, com o objetivo de registrar<br />

que o autor conseguiu atingir locais inalcançáveis, como<br />

o ponto mai alto das fachadas dos prédios, sem equipamento<br />

de segurança. O que conta, nesses casos, é muito mais a<br />

adrenalina e o status que o pichador ganha entre os pares ao<br />

deixar sua assinatura nesses espaços de difícil acesso. Já o<br />

grafite é representado por desenhos mais elaborados. “De<br />

forma geral, tudo pode ser enquadrado como street art, pois<br />

os dois utilizam a cidade como suporte, mas a pichação é considerada<br />

um crime ambiental”, explica Kobra, lembrando que<br />

o grafite também é ilegal quando feito sem autorização.<br />

Assim como acontece em outras manifestações artísticas, a<br />

intenção com uma obra de arte de rua é individual, seja ela<br />

pichação, grafite ou mural. “Tem grafiteiro que produz só<br />

por questões estéticas, outros trazem um protesto. O mesmo<br />

acontece com a pichação, que para muitos é um jeito de chamar<br />

a atenção para um tema ou apenas a busca da adrenalina.<br />

Para quem está na periferia, a pichação é, muitas vezes,<br />

um refúgio”, diz.<br />

Depressão e noites em claro<br />

Em 2022, o artista que veio da periferia virou personagem central de um documentário. O filme Kobra <strong>–</strong> Auto Retrato, da diretora<br />

e roteirista Lina Chamie, foi exibido em importantes eventos, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do<br />

Rio e o DOC NYC, maior e mais relevante festival de documentários dos Estados Unidos. “Ter recebido o convite para fazer esse<br />

documentário foi, no mínimo, inusitado. Mas é tanta coisa inusitada que tem acontecido comigo!”, revela o muralista. “Eu sonhei<br />

fazer um mural nos Estados Unidos, mas jamais imaginei que teria 50 obras lá, no país da street art. E ainda chegar à Europa, à<br />

Ásia e à África. Sigo trabalhando e mantendo o pé no chão, sabendo que essas portas foram abertas pela arte e por Deus.”<br />

No longa-metragem, Kobra abre o jogo sobre as várias crises de depressão contra as quais lutou ao longo da vida <strong>–</strong> o artista<br />

chegou a tomar 12 remédios tarja preta por dia. Em 84 minutos de filme, é possível enxergar o ser humano por trás do artista e<br />

vislumbrar a mente inquieta de alguém que dorme apenas duas horas por noite.<br />

Por causa da insônia crônica, Kobra passa as madrugadas zapeando a TV enquanto sua mente planeja cores e linhas. Encontra<br />

inspiração em tudo que vê. Autodidata, buscou referências da street art em artistas como o grafiteiro pop americano Keith Haring<br />

(1958-1990) e o muralista mexicano Diego Rivera (1886-1957). “Ser autodidata fez com que eu desenvolvesse algo único, inusitado.<br />

Talvez por isso tenha conseguido criar um trabalho sem nenhum tipo de amarra. Eu não conhecia, então era tudo muito<br />

espontâneo, natural”, avalia.<br />

“Fui um cara que vandalizou<br />

o patrimônio por muitos<br />

anos, mas que também<br />

colecionava livros de história<br />

antiga de São Paulo e de<br />

outras cidades”<br />

Ciência e Fé - mural no Hospital das Clínicas,<br />

em São Paulo | foto: drone.cyrillo<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 55<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 54<br />

Mural na sede da ONU, NY | foto: Ben Lau


Evolução artística<br />

O divisor de águas na carreira é o projeto Muro das Memórias,<br />

criado há cerca de dez anos, em que registrou uma série de<br />

fotos antigas da São Paulo da primeira metade do século XX.<br />

“Eu vinha, durante anos, num aperfeiçoamento da minha<br />

obra. No começo, eu não tinha uma linguagem estética nem<br />

habilidade para pintar tudo o que eu gostaria. Copiei muitos<br />

grafiteiros que eu admirava”, revela, ao explicar como encontrou<br />

seu estilo. “Me inspirei em muralistas tradicionais, como<br />

o Diego Rivera, que faziam aqueles murais chamados engana-o-olho<br />

[trompe-l’oeil], com cenários e dimensões 3D, e fiz<br />

uma fusão com o que conhecia do grafite e da street art. Surgiu<br />

algo novo, que me deu uma identidade visual e me permitiu<br />

falar de algo que eu queria, que era a preservação do patrimônio<br />

histórico”, conta. “Ou seja, fui um cara que vandalizou<br />

o patrimônio por muitos anos, mas que também colecionava<br />

livros de história antiga de São Paulo e de outras cidades e<br />

passei a reproduzir isso nos murais.”<br />

Outro impulso na evolução de sua arte veio de trabalhos lo-<br />

cais, como murais em pátio de escolas e pinturas que remetessem<br />

a um pequeno negócio, como a fachada de uma pet shop.<br />

Kobra garante que esses eram os clientes mais exigentes, que<br />

não hesitavam em dizer “Está feio, tem que melhorar”.<br />

Com a maturidade e a visibilidade, veio, em 2011, o primeiro<br />

convite de projeto fora do Brasil. Kobra integrou o grupo<br />

de artistas que transformou um bairro da cidade de Lyon, na<br />

França, em galeria de arte a céu aberto, pintando imagens que<br />

valorizavam a história local. Aquela foi, inclusive, a primeira<br />

das centenas de viagens que já fez ao exterior. “Ao longo desses<br />

35 anos de carreira, aprendi a dormir no chão e a trabalhar<br />

com os piores materiais, mas também tive a oportunidade<br />

de viajar de primeira classe, me hospedar nos hotéis mais<br />

caros e comer nos melhores restaurantes. Sei conviver com<br />

os dois mundos. Aprendi ainda que tudo é importante, admiro<br />

os diferentes povos, culturas, tradições e religiões. Meu trabalho<br />

me possibilita um aprendizado eterno”, afirma.<br />

“No começo, eu não tinha uma linguagem estética nem<br />

habilidade para pintar tudo o que eu gostaria. Copiei muitos<br />

grafiteiros que eu admirava”<br />

Com a obra Respirar | foto: Alan Teixeira<br />

Arte com propósito<br />

O artista que vive de suas pinturas já<br />

recebeu dos médicos um ultimato para<br />

parar de pintar. Carrega sérios problemas<br />

de saúde, como a insônia e distúrbios<br />

alimentares e digestivos, causados<br />

pela intoxicação por metais pesados<br />

das tintas e solventes, principalmente<br />

do tempo em que utilizava os materiais<br />

mais baratos para trabalhar. Mas<br />

a aposentadoria está fora de cogitação.<br />

“Meu plano é pintar até o final da vida.<br />

Não tem plano B”, garante.<br />

A paixão inabalável pela pintura vem<br />

acompanhada de propósito. Kobra já<br />

recusou propostas para criar murais<br />

de políticos e até de artistas com os<br />

quais não se identifica. Em Amsterdã,<br />

na Holanda, também se negou a retratar<br />

o filósofo Espinosa (1632-1677)<br />

depois de descobrir que ele havia sido<br />

expulso da comunidade judaica por<br />

questionar aspectos da ortodoxia da<br />

religião. “Além disso, li alguns textos<br />

dele e percebi que não gostava do que<br />

escreveu. Seus valores, a forma como<br />

ele falava de Deus, isso não me agradou.<br />

Sou um homem muito temente a<br />

Deus”, explica, ao falar da decisão. Mas<br />

a cidade não ficou sem um mural do artista<br />

brasileiro. Kobra conseguiu negociar<br />

com as autoridades e pintou Anne<br />

Frank, a garota judia cujo diário escrito<br />

durante a ocupação nazista na cidade<br />

se tornou best-seller.<br />

As mensagens que Kobra quer transmitir<br />

refletem as questões que inquietam<br />

sua mente, como racismo, problemas<br />

ambientais, falta de cuidado com<br />

o patrimônio histórico e as diferenças<br />

e riquezas dos povos. “São temas que<br />

me tocam. E o que aprendo quando me<br />

aprofundo no assunto para pintar algo<br />

acaba me transformando. Meu trabalho<br />

é uma extensão daquilo que vivo,<br />

daquilo em que acredito, daquilo que<br />

sou e penso”, afirma.<br />

Em 2021, o propósito ganhou corpo<br />

fora dos murais com a fundação<br />

do Instituto Kobra, entidade que visa<br />

promover a inclusão social de adolescentes<br />

e jovens carentes por meio de<br />

atividades culturais. Em sua primeira<br />

ação, a instituição doou 700 mil reais<br />

para a construção de duas usinas<br />

de oxigênio hospitalar no Amazonas,<br />

cada uma com capacidade para produzir<br />

48 cilindros por dia. A ideia surgiu<br />

quando o estado sofria com a falta de<br />

oxigênio nos hospitais durante a pan-<br />

demia. A captação do dinheiro veio<br />

com a produção e venda da obra de arte<br />

Respirar, um cilindro pintado por Kobra,<br />

que simula uma planta dentro de uma<br />

redoma. “O instituto é a materialização<br />

do que tenho como princípio de vida.<br />

A arte pode servir como um antídoto<br />

contra muitos males. Pode significar<br />

humanidade, consciência e até tirar<br />

tantos meninos das drogas e do crime<br />

ao dar uma oportunidade de trabalho e<br />

de sonhar”, diz.<br />

Exatos 30 anos depois das noites maldormidas<br />

no chão do Playcenter <strong>–</strong> foi<br />

também lá, em 1995, que ele conheceu<br />

a esposa, Andressa <strong>–</strong>, Kobra encara<br />

mais um dia de trabalho em um parque<br />

de diversões. Desta vez, o cenário é o<br />

Walt Disney World Resort, em Orlando,<br />

Estados Unidos. O muralista aproveita<br />

os últimos raios de sol para guardar<br />

parte dos equipamentos antes de voltar<br />

para o conforto do hotel. No caminho, é<br />

abordado por um fã brasileiro que o reconhece<br />

e pede para tirar uma foto. A<br />

obra, um mural de 29 metros de comprimento<br />

e 5 metros de altura, mostra<br />

rostos de crianças de diferentes partes<br />

do mundo, um deles inspirado em Pedro,<br />

6 anos, filho do artista. “Eu sonhava<br />

em pintar na Disney, mas confesso<br />

que não imaginava que seria o primeiro<br />

brasileiro a receber esse convite. É fantástico<br />

estar aqui, num lugar repleto de<br />

personagens criados pelo gênio da arte<br />

que foi Walt Disney”, diz o artista à reportagem<br />

da Et cetera, por videoconferência.<br />

Quando foi inaugurado, em<br />

1973, o Playcenter trazia o slogan “O<br />

lugar onde tudo acontece”. Na vida de<br />

Kobra, o bordão ganhou novo sentido.<br />

Que conselho daria ao<br />

jovem Eduardo?<br />

“Afaste-se de convites<br />

que levem à bebida,<br />

às drogas ou a atalhos<br />

porque, na vida, o<br />

percurso é longo e difícil.<br />

Erga a cabeça e siga com<br />

fé em Deus porque Ele<br />

nunca erra. E valorize<br />

muito seus pais”<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 57<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 56<br />

Mural na Av. 23 de Maio, SP | foto: divulgação


Nome: Angelita Habr-Gama<br />

Idade: 89 anos<br />

Profissão: médica especialista em coloproctologia<br />

Cidade onde nasceu: Cachoeira do Arari, Ilha de Marajó/PA<br />

Pioneira<br />

do bisturi<br />

Por Daniela Macedo<br />

Reconhecida pela Universidade Stanford como<br />

uma das cientistas mais influentes do mundo,<br />

a cirurgiã Angelita Habr-Gama se recusou<br />

a ser barrada pelo machismo e abriu portas<br />

para as mulheres na medicina<br />

Foto: Jairo Goldflus<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 59<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 58


“Cirurgia não é coisa<br />

de mulher”<br />

O<br />

mundo ainda assistia perplexo à Organização Mundial<br />

da Saúde declarar o início da pandemia de Covid-19<br />

quando a médica Angelita Habr-Gama, então com 87<br />

anos, começou a sentir os primeiros sintomas da doença. Ela<br />

havia acabado de participar do lançamento de sua biografia,<br />

Não, Não É Resposta, escrita pelo romancista Ignácio de Loyola<br />

Brandão, em um coquetel realizado no dia 8 de março de<br />

2020, dias depois de retornar de um congresso em Israel.<br />

Primeiro, vieram a tosse e o cansaço. O quadro evoluiu para<br />

dores no corpo e falta de ar, e ela teve que ser internada. Não<br />

era assim que Angelita estava acostumada a entrar no hospital,<br />

praticamente sua segunda casa <strong>–</strong> a cirurgiã é referência<br />

mundial em coloproctologia, especialidade que cuida das doenças<br />

dos intestinos grosso e delgado, reto e ânus. No papel<br />

de paciente, viu sua tomografia mostrar os pulmões tomados<br />

pela Covid-19 e ouviu o trecho de um diálogo entre colegas de<br />

profissão que resumia a gravidade da situação: “Não sei se ela<br />

escapa dessa”.<br />

“Sabia que ser intubada era o único jeito de salvar minha vida.<br />

Como eu tenho uma grande capacidade de adaptação e resiliência,<br />

aceitei bem. O colega que ia fazer a traqueostomia [procedimento<br />

que realiza a abertura na traqueia para inserção do tubo]<br />

estava mais nervoso que eu. Agradeci e não vi mais nada”,<br />

conta. Foram 50 dias sedada e intubada na UTI do Hospital<br />

Alemão Oswaldo Cruz. Nesse período, durante uma entrevista<br />

coletiva, o então ministro Luiz Henrique Mandetta recebeu<br />

uma informação errada e lamentou a morte do “ícone da medicina<br />

brasileira”, erro corrigido logo depois por meio de um<br />

vídeo postado nas redes sociais do Ministério da Saúde.<br />

Reconhecida em 2022 pela Universidade Stanford como uma<br />

das cientistas mais influentes do mundo, é autora de uma estratégia<br />

revolucionária de tratamento para o câncer de reto.<br />

Seu nome consta como membro honorário em diversas sociedades<br />

científicas internacionais, entre elas American Surgical<br />

Association, Royal College of Surgeons, European Society<br />

of Coloproctology e International Society of University Colon<br />

and Rectal Surgeons, além das sociedades de coloproctologia<br />

de Brasil, Chile, Paraguai e Equador e da Academia Nacional<br />

de Medicina da Argentina. Os números impressionam: publicou<br />

mais de 200 capítulos em livros e 300 artigos em periódicos<br />

científicos, apresentou 2.400 trabalhos em congressos,<br />

organizou uma centena de eventos científicos e conquistou<br />

mais de 50 prêmios nacionais e internacionais.<br />

O período na UTI por causa do coronavírus foi a segunda vez<br />

em mais de seis décadas de carreira que Angelita passou<br />

tanto tempo fora do centro cirúrgico <strong>–</strong> em 1996, ela se afastou<br />

após quebrar o fêmur em uma queda, e poucas semanas<br />

depois já comandava procedimentos cirúrgicos, sentada em<br />

um banquinho. “Meu grande hobby na vida é operar”, resume.<br />

“Hobby” que ela conserva até hoje. A rotina dessa profissional<br />

incansável de 89 anos é agitada: às terças, quintas<br />

e sábados, faz cirurgias logo cedo e, se der tempo, preenche<br />

a tarde com atendimentos no consultório. As manhãs das<br />

segundas, quartas e sextas são dedicadas às visitas aos pacientes<br />

no pós-operatório. À tarde, mais consultas. Isso tudo<br />

quando não viaja para participar de congressos no Brasil e<br />

no exterior. “Sempre fui e vou a todos os congressos na minha<br />

especialidade. É lá que a gente compartilha e adquire<br />

conhecimentos. E faz amigos pro resto da vida”, diz. Até o<br />

final da década de 1990, ainda encontrava espaço na agenda<br />

para praticar seus esportes favoritos. Nas quadras de vôlei,<br />

na posição de levantadora, foi campeã do estado em 1951 com<br />

o time Adamus, fundado pela turma do colégio. Como tenista,<br />

venceu o campeonato estadual de tênis para principiantes.<br />

Se resiliência e capacidade de adaptação<br />

foram cruciais para driblar a<br />

morte, a vida dessa brasileira nascida<br />

na Ilha de Marajó, no Pará, é marcada<br />

pelo pioneirismo. Filha de imigrantes<br />

libaneses, mudou-se com a família<br />

para São Paulo aos 7 anos. Da infância<br />

na pequena Cachoeira do Arari, traz<br />

recordações das “exuberantes” vitórias-régias.<br />

“Nosso meio de transporte<br />

era a canoa. Eu botava a mão na água<br />

porque gostava de mexer na vitória-<br />

-régia. Minha mãe brigava, dizia que<br />

tinha piranha na água, mas eu colocava<br />

mesmo assim.” A troca das vitórias-<br />

-régias pelos arranha-céus que começavam<br />

a pipocar na capital paulista no<br />

início da década de 1940 deu um novo<br />

rumo à vida da paraense. Por influência<br />

das amigas do colégio, decidiu<br />

prestar vestibular para medicina. Enfrentou<br />

a primeira resistência em casa:<br />

“Meus pais não queriam que eu fosse<br />

médica. Minhas irmãs mais velhas<br />

eram professoras, todas as minhas<br />

tias eram professoras. Minha família<br />

queria que eu seguisse o mesmo caminho”.<br />

A determinação de Angelita<br />

prevaleceu. O anúncio dos aprovados<br />

no vestibular na Faculdade de Medicina<br />

da Universidade de São Paulo<br />

era feito com pompa e circunstância,<br />

como se dizia à época. Os candidatos<br />

e suas famílias se reuniam no pátio<br />

do prédio na Avenida Doutor Arnaldo<br />

para ouvir o secretário da faculdade<br />

ler a relação dos aprovados. Em oitavo<br />

lugar, com uma nota altíssima, veio o<br />

nome de Angelita.<br />

Em 1952, aos 19 anos, foi a primeira<br />

mulher da família a ingressar no curso<br />

de medicina. Dois grandes professores<br />

e sumidades em cirurgia, Alípio<br />

Correia Netto e Arrigo Antonio Raia,<br />

despertaram na estudante a paixão<br />

pelos bisturis. Só havia um problema:<br />

as poucas mulheres que seguiam<br />

carreira na medicina nem cogitavam<br />

optar por outras áreas além de ginecologia,<br />

obstetrícia ou clínica. Quando<br />

manifestou interesse em se candidatar<br />

a uma das oito vagas na residência em<br />

cirurgia, Angelita ouviu do chefe do<br />

setor que “cirurgia não é coisa de mulher”<br />

e que ela deveria desistir “para<br />

não tirar a vaga de um homem”. “Respondi<br />

que tinha todas as habilidades<br />

para ser cirurgiã: ‘Não tenho medo de<br />

nada, sou supertranquila, tenho bom<br />

físico, coluna boa, enxergo bem, minhas<br />

mãos nunca tremeram. Não posso<br />

ser cirurgiã só porque sou mulher?<br />

Não!’”, conta. Mergulhou nos estudos<br />

e passou em primeiro lugar, deixando<br />

para trás os sete homens aprovados.<br />

No dia 15 de janeiro de 1958, se tornou<br />

a primeira mulher cirurgiã residente<br />

do Hospital das Clínicas.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 61<br />

Formatura na FMUSP | foto: arquivo pessoal<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 60


A different woman<br />

Em 1960, São Paulo recebeu o Congresso<br />

Internacional da Associação<br />

Latino-Americana de Coloproctologia.<br />

Grandes especialistas da área vieram<br />

de vários cantos do mundo para participar.<br />

Um dos principais nomes do<br />

congresso era Basil Morson, famoso<br />

patologista do St Mark’s Hospital, único<br />

do mundo dedicado às doenças intestinais,<br />

localizado em Londres. As palestras<br />

do então diretor acadêmico do<br />

hospital entusiasmaram Angelita, e ela<br />

decidiu tentar um estágio na instituição.<br />

Mais uma vez, teve que desbravar<br />

o terreno. O primeiro contato foi respondido<br />

com uma frase nada promissora:<br />

“This is a hospital for men, not for<br />

women [Este é um hospital para homens,<br />

não para mulheres]”, dizia a carta. “But I<br />

am a different woman [Mas eu sou uma<br />

mulher diferente]”, respondeu a médica<br />

no primeiro dos vários pedidos que<br />

se seguiram, todos recheados de argumentos<br />

para que a aceitassem. Deu<br />

certo. Em 1961, com bolsa de estudo da<br />

instituição British Council e da Capes,<br />

Angelita embarcou para a Inglaterra<br />

e se tornou a primeira médica mulher<br />

no renomado hospital <strong>–</strong> que, naquele<br />

tempo, contava apenas com vestiários<br />

masculinos para a equipe médica. “Se<br />

eu falhasse, nenhuma outra mulher<br />

conseguiria. Ao longo de toda a minha<br />

carreira, trabalhei muito, ainda mais<br />

que os colegas homens. Pra vencer na<br />

vida, a mulher tem que ser igual ou melhor<br />

que eles.”<br />

Angelita trouxe conhecimento de sobra<br />

que aprendeu nos quase dois anos<br />

em Londres, convivendo com os melhores<br />

cirurgiões do aparelho digestivo.<br />

Mas foi o avô quem, involuntariamente,<br />

lhe ensinou uma técnica que se<br />

revelaria valiosa no centro cirúrgico.<br />

Na infância, Angelita ficava fascinada<br />

com a habilidade dele para manipular<br />

as cédulas de dinheiro, descolando rapidamente<br />

as notas com uma das mãos<br />

enquanto “contava o dinheirinho”,<br />

como dizia. O avô nem desconfiava que<br />

a neta recorreria anos depois à “manobra<br />

do dinheirinho”, como ela diz, para<br />

descolar alças do intestino quando um<br />

paciente apresenta aderência intestinal.<br />

Nesses casos, o cirurgião precisa<br />

soltar, com muita delicadeza, as alças<br />

coladas umas às outras, sem usar o bisturi<br />

para não perfurar o órgão.<br />

Outro hábito que Angelita leva da vida<br />

pessoal para o centro cirúrgico e que se<br />

tornou uma de suas marcas registradas:<br />

o apreço pelo silêncio. Ela não admite<br />

música na sala de operações, nem<br />

mesmo conversas entre os integrantes<br />

de sua equipe durante os procedimentos.<br />

“Isso tira o foco da cirurgia, tira o<br />

foco do abdômen do doente. Por isso<br />

gosto de operar calada e não gosto que<br />

falem”, explica.<br />

“Eu tinha que provar que mulher<br />

pode ser cirurgiã. E provei”<br />

Filme de espionagem<br />

O colonoscópio é um aparelho que conta com um tubo fino e flexível dotado de uma<br />

câmera na ponta. Permite examinar as paredes internas do intestino grosso e parte<br />

do intestino delgado e detectar, sem necessidade de cirurgia, a presença de pólipos,<br />

tumores e doenças inflamatórias. Em muitos casos, é possível remover e tratar o<br />

problema durante o próprio exame. Começou a ser comercializado no começo da<br />

década de 1970, quando as importações no Brasil estavam bastante restritas. Angelita<br />

conheceu o aparelho durante um congresso no México e, claro, entendeu sua<br />

importância. Decidida a trazer o primeiro colonoscópio ao Brasil, aceitou participar<br />

de um esquema digno de filme de espionagem: na volta a São Paulo, faria escala em<br />

Miami, onde encontraria um representante do fabricante para pegar o equipamento<br />

antes de embarcar no segundo voo. Como precisava de <strong>10</strong> mil dólares em dinheiro<br />

para fazer o pagamento, uma amiga que viajaria ao México naqueles dias levou a<br />

quantia dentro de uma bolsinha colada ao corpo. Angelita encontrou o sujeito no<br />

estacionamento do aeroporto, entregou o envelope com o dinheiro e pegou as três<br />

maletas que ele trazia no porta-malas.<br />

Foto: arquivo pessoal<br />

Durante muito tempo, viajou a outras<br />

cidades e estados para apresentar a<br />

novidade aos médicos e fazer procedimentos<br />

onde não havia o equipamento.<br />

Foi assim que ela conheceu o presidente<br />

Tancredo Neves (19<strong>10</strong>-1985).<br />

“Um dia, recebi uma ligação do doutor<br />

Ulysses Guimarães [(1916-1992), então<br />

presidente da Câmara dos Deputados]. Ele<br />

disse: ‘Dra. Angelita, a senhora precisa<br />

vir a Brasília para fazer uma colonoscopia<br />

no dr. Tancredo’.” Ela sabia<br />

apenas as informações desencontradas<br />

que a imprensa veiculava sobre a<br />

saúde do primeiro presidente civil pós-<br />

-ditadura militar. Pegou as maletas do<br />

colonoscópio e correu para o aeroporto.<br />

“Foi uma satisfação enorme conhecer<br />

Tancredo. Que homem extraordinário!<br />

Simples, educado, atencioso”, lembra<br />

a médica. Mas o quadro já era muito<br />

grave. Angelita recomendou sua<br />

transferência para o Instituto do Coração<br />

(InCor) do Hospital das Clínicas,<br />

em São Paulo, onde Tancredo acabou<br />

falecendo, em 21 de abril de 1985, em<br />

decorrência de insuficiência respiratória.<br />

“Ele era obeso e estava com os pulmões<br />

totalmente comprometidos”, diz<br />

Angelita. Integrante do corpo clínico<br />

que cuidou do presidente, teve a difícil<br />

missão de informar Risoleta Neves que<br />

não havia mais esperança, seu marido<br />

estava morrendo.<br />

Angelita é autora do protocolo de tratamento<br />

para câncer de reto mais usado<br />

pelos médicos no mundo atualmente.<br />

Batizado de Wait and Watch, consiste<br />

em submeter o paciente a sessões de<br />

quimioterapia e radioterapia e “esperar<br />

e observar” por alguns meses. Muitas<br />

vezes, o tumor desaparece por completo<br />

durante essa espera, poupando o doente<br />

da cirurgia radical para remoção<br />

do câncer. A princípio, a comunidade<br />

médica rejeitou a ideia, mas Angelita<br />

continuou defendendo sua abordagem<br />

em congressos e acabou por convencer<br />

os colegas de sua eficácia.<br />

Capa da revista científica da Sociedade Americana<br />

de Cirurgiões Colorretais, em 2018<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 63<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 62


Médica e professora<br />

União duradoura<br />

Angelita fez muitos amigos nos tempos de faculdade. Um deles, Joaquim Gama, se apaixonou por ela no primeiro dia. Mas Angelita<br />

estava focada nos estudos, e o relacionamento só engrenou depois que ela voltou do estágio em Londres. Por causa da<br />

dedicação do casal à medicina, o namoro de dez meses somou mais encontros no centro cirúrgico do que no cinema. Casaram-se<br />

em dezembro de 1964, em cerimônia que fugiu às tradições: o vestido de Angelita tinha pala bordada com pétalas verdes, além<br />

de chapéu e véu também verdes. Quem substituiu o pai, já falecido à época, no caminho ao altar foi o professor Alípio Netto <strong>–</strong><br />

Arrigo Raia, outro professor influente na vida da médica, foi padrinho no casamento civil.<br />

O casal atende na mesma clínica. Ela cuida do trato intestinal,<br />

ele trata do estômago. O marido não poupa elogios à companheira<br />

de seis décadas: “Angelita tem autoconfiança, sinceridade,<br />

perseverança, acentuado bom senso, espírito científico<br />

à flor da pele, desapego material e valoriza todas as formas<br />

de progresso que beneficiem o ser humano”. E emenda outra<br />

característica: “A sincera alegria de viver”.<br />

O casal optou por não ter filhos, e se a decisão ainda provoca<br />

alvoroço familiar nos dias de hoje, causava terremoto na<br />

Com o marido, Joaquim Gama | foto: arquivo pessoal<br />

década de 1960. Tanto a família dela como a dele demoraram<br />

a aceitar, mas todos acabaram entendendo. “Nunca me arrependi<br />

dessa decisão. Não teria conseguido me dedicar à<br />

medicina, à cirurgia, à coloproctologia se tivesse filhos. Maternidade<br />

é profissão, exige dedicação completa”, explica Angelita.<br />

“Eu tinha que provar que mulher pode ser cirurgiã. E<br />

provei. Hoje, quando elas querem seguir a carreira na cirurgia,<br />

ainda ouvem que não é profissão para mulher. E dizem<br />

‘Tem uma cirurgiã muito boa e quero seguir o exemplo dela’.<br />

É muito gratificante ter aberto essas portas.”<br />

Quando voltou do estágio no hospital St Mark’s, Angelita finalmente<br />

abraçou a profissão sonhada pelos pais: começou<br />

a dar aulas na USP, alcançando o posto de professora titular<br />

emérita da instituição. “Sou apaixonada por dar aulas. Gosto<br />

de transmitir meus conhecimentos, e a medicina me permitiu<br />

essa realização. Não guardo o que aprendo só pra mim.<br />

Viajo, aprendo novas técnicas e procedimentos e ensino não<br />

só pra minha equipe, mas pra quem quiser aprender.” Além<br />

de lecionar, criou a disciplina de coloproctologia e desbravou<br />

um novo terreno ao tornar-se a primeira mulher a chefiar o<br />

departamento de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP.<br />

O hábito de conviver com a juventude nos hospitais, nas salas<br />

de aula e no ambiente familiar, ao lado de sobrinhos e<br />

sobrinhos-netos, foi sempre cultivado. “A convivência com<br />

os jovens nos rejuvenesce. Eles têm ideias próprias, a gente<br />

aprende demais com eles. Gosto dos jovens.” O sentimento<br />

é recíproco. “A doutora Angelita tem grande capacidade<br />

de liderança, de apoiar e acreditar nos jovens ao redor dela.<br />

Sempre apoiou estudantes e residentes de forma construtiva,<br />

quase como uma mãe apoia um filho”, diz Rodrigo Perez, cirurgião<br />

do aparelho digestivo no Hospital Oswaldo Cruz. “Ela<br />

sempre carregou um número enorme de pessoas atrás dela,<br />

como se fosse um cometa com uma grande cauda. São características<br />

que a tornam uma pessoa tão especial”, completa<br />

o médico, que trabalha com Angelita há quase três décadas.<br />

Fundadora da Associação Brasileira de Prevenção do Câncer<br />

de Intestino (Abrapreci), Angelita tem o radar ligado quando<br />

se trata da saúde de jovens e crianças. Em certa ocasião,<br />

interrompeu a festa de aniversário de uma sobrinha-neta<br />

quando viu a criançada comendo algodão-doce colorido. Pegou<br />

o microfone das mãos do palhaço e pediu: “Parem já de<br />

comer o algodão-doce verde! Joguem fora!” Ela ressalta que<br />

não é contra guloseimas, mas insiste nos malefícios de colorir<br />

balas e doces artificialmente. “O corante artificial age na produção<br />

de carcinogênicos nas células intestinais, e as crianças<br />

ainda estão na fase de mutação, por isso sempre peço às<br />

mães que não deem corantes aos filhos”, explica. E não perde<br />

o bom humor: “Já o velho pode comer o que quiser. Outro dia,<br />

uma paciente de 90 anos perguntou o que pode comer. Respondi<br />

‘Minha amiga, nessa idade a gente come o que apetecer,<br />

até linguiça’”.<br />

Depois de quase morrer em decorrência de uma doença que<br />

já matou cerca de 700 mil brasileiros, Angelita renasceu,<br />

como costuma dizer. Ressalta a importância de seguir as<br />

orientações médicas e confiar na ciência <strong>–</strong> foi tratada com<br />

antibióticos e nunca recorreu a medicamentos sem eficácia<br />

comprovada. Depois de quase dois meses sedada, acordou<br />

“ótima”. “Fui bem tratada e tinha muita vontade de viver”, diz.<br />

“Só vive muito quem gosta de viver. E eu amo a vida.”<br />

Que dica conselho daria à<br />

jovem Angelita?<br />

“Tenha autoestima. Goste<br />

de si mesma, reconheça sua<br />

capacitação e suas limitações,<br />

para procurar vencê-las, e<br />

compartilhe o que sabe. E leve<br />

a vida com alegria”<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 65<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 64


Um cartum<br />

Cultivo de algas | foto: Getty Images<br />

Algas no cardápio<br />

Uma tendência<br />

Açaí, goji berry, quinoa, matcha. Muitos<br />

alimentos já ocuparam o posto de<br />

queridinho dos a deptos do estilo de<br />

vida saudável, mas o superalimento<br />

da vez vem dos oceanos. Segundo o<br />

relatório Pinterest Predicts <strong>2023</strong>, são<br />

as algas marinhas que estão caindo<br />

no gosto dos millennials e da geração<br />

Z como superfoods, alimentos ricos em<br />

nutrientes e compostos bioativos, que<br />

atuam como agentes preventivos e<br />

complementação a tratamentos de certas<br />

doenças crônicas. E a previsão da<br />

rede social não traz nenhuma novidade<br />

no cardápio da humanidade. Pelo contrário.<br />

As plantas marinhas são consumidas<br />

pelas populações litorâneas de<br />

países da Ásia Oriental há milênios.<br />

Nori (folhas usadas para enrolar sushi),<br />

wakame e kombu, além das microalgas<br />

chlorella e spirulina, são exemplos<br />

de variedades comestíveis. “As algas<br />

são ricas em compostos bioativos e<br />

nutrientes como proteínas, fibras,<br />

ômega 3, vitaminas do complexo B,<br />

cálcio, magnésio e iodo. Elas também<br />

possuem propriedades antioxidantes,<br />

prebióticas, neuroprotetoras e anti-inflamatórias”,<br />

explica a nutricionista clínica<br />

Haydée Borges, do Rio de Janeiro.<br />

A saúde do planeta agradece. Com a<br />

estimativa de uma população mundial<br />

perto dos <strong>10</strong> bilhões de habitantes em<br />

2050, as algas podem ser o caminho<br />

para suprir a necessidade de alimentos<br />

sem ampliar os problemas ambientais.<br />

Elas também têm uma função<br />

crucial na preservação e restauração<br />

de ecossistemas marinhos. E mais:<br />

seu crescimento dispensa o uso de<br />

fertilizantes e pesticidas.<br />

Para os céticos em relação às previsões<br />

do Pinterest, vale lembrar que, nos últimos<br />

três anos, 80% das tendências<br />

apontadas pela rede social se tornaram<br />

realidade. Mas como incluir as algas<br />

no cardápio diário sem passar pela<br />

culinária japonesa? A nutricionista<br />

dá algumas dicas: “Algas como a nori<br />

podem ser consumidas em saladas e,<br />

quando temperadas e assadas rapidamente<br />

em forno baixo, ficam crocantes<br />

e se tornam um ótimo snack. As algas<br />

wakame e kombu entram no preparo<br />

de caldos e ensopados, sopas e pratos<br />

com frutos do mar, enquanto chlorella<br />

e spirulina podem ser usadas para enriquecer<br />

bebidas como vitaminas com<br />

frutas ou ainda em preparações como<br />

muffins e biscoitos”. A resposta também<br />

pode estar no próprio Pinterest,<br />

uma vez que a rede social prevê um<br />

aumento de 245% nas buscas por receitas<br />

de lanches de algas.<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 67<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 66


Um sabor<br />

Uma palavra<br />

Para tirar o certificado de aptidão ao cargo de professora<br />

do ensino médio, precisei fazer uma prova<br />

didática em uma escola em Lyon, no bairro da<br />

Croix-Rousse. Era uma escola nova, com plantas<br />

nos espaços reservados à administração e ao corpo<br />

docente, uma biblioteca com carpete cor de areia no<br />

térreo. Ali fiquei aguardando me buscarem para fazer<br />

a prova, que consistia em dar uma aula na frente<br />

de um inspetor e de dois assistentes, professores<br />

de letras muito renomados. Uma mulher corrigia as<br />

provas com um ar de superioridade, sem nenhum<br />

tipo de hesitação. Bastaria cumprir, na próxima<br />

hora, todas as regras para conseguir o certificado<br />

que me faria ser como ela pelo resto da minha vida.<br />

Diante de uma turma de segundo ano científico,<br />

analisei 25 linhas <strong>–</strong> que deviam estar numeradas<br />

<strong>–</strong> de O Pai Goriot, de Balzac. Logo em seguida, já na<br />

sala da direção, o inspetor me recriminou: “Sua aula<br />

foi muito arrastada”. Ele estava sentado entre os<br />

dois assistentes, um homem e uma mulher míope<br />

de sapatos cor-de-rosa. E eu na frente deles. Durante<br />

quinze minutos, o inspetor misturou críticas,<br />

elogios e conselhos que eu mal conseguia ouvir, me<br />

perguntando se tudo aquilo significava uma reprovação.<br />

De repente, os três se levantaram ao mesmo<br />

tempo com um ar grave. Também me levantei rápido.<br />

O inspetor estendeu a mão. Depois, olhando-me<br />

nos olhos: “Meus parabéns, minha senhora”. Os outros<br />

repetiram “Parabéns” e me apertaram a mão, a<br />

mulher sorria.<br />

Annie Ernaux<br />

Trecho do livro Um Lugar<br />

Tradução de Marília Garcia<br />

Editora Fósforo<br />

Foto: Mauro Holanda<br />

As festas de fim de ano são uma ótima oportunidade para impressionar os amigos<br />

com uma receita do sétimo melhor restaurante do mundo. Criada pelos chefs<br />

Janaína e Jefferson Rueda, a Casa do Porco fez bonito no The World’s 50 Best Restaurants,<br />

tradicional ranking anual de melhores do mundo feito pela revista britânica<br />

Restaurant. Janaína inspira-se na culinária japonesa para criar um prato inusitado e<br />

delicioso, com diferentes texturas e sabores. A receita é quase um desafio gourmet:<br />

requer tempo e planejamento <strong>–</strong> os picles devem ser preparados com cinco dias de<br />

antecedência <strong>–</strong>, mas promete um almoço/jantar inesquecível.<br />

PORCOYAKI<br />

Chef Janaína Rueda<br />

INGREDIENTES DOS<br />

PICLES DE CENOURA<br />

• 150 ml de vinagre de álcool<br />

• 200 ml de água<br />

• 22 g de sal refinado<br />

• 17 g de açúcar<br />

• 3 unidades de pimenta-do-reino (grão)<br />

• 2 cenouras<br />

Modo de preparo: descasque a cenoura e<br />

modele flores em rodelas (podem ser feitas<br />

com um aro ou com a faca). Coloque<br />

as flores em um pote fechado com o restante<br />

dos ingredientes. Deixe descansar<br />

por, pelo menos, 5 dias.<br />

INGREDIENTES DA<br />

COUVE-FLOR<br />

FERMENTADA<br />

• 120 g de couve-flor<br />

• 2,5 g de sal refinado<br />

Modo de preparo: corte a couve-flor em<br />

floretes médios. Coloque em um saco<br />

de vácuo com o sal e deixe em tempe-<br />

ratura ambiente até que o saco comece<br />

a inflar (quando o clima está bem<br />

quente, em um dia está bom). Guarde<br />

na geladeira.<br />

INGREDIENTES DO<br />

CALDO DASHI<br />

• 1 kg de osso de porco com carne<br />

• 300 g de pé de porco<br />

• 50 g de cebola branca<br />

• 20 g de alho<br />

• <strong>10</strong>0 g de gengibre<br />

• 60 ml de saquê mirin<br />

• 3 l de água<br />

• Sal a gosto<br />

• <strong>10</strong> g de shiitake seco<br />

• <strong>10</strong> g de kombu (algas marinhas)<br />

• 1,5 g de katsuobushi (lascas de peixe<br />

desidratado)<br />

Modo de preparo: cozinhe todos os ingredientes,<br />

com exceção do kombu e<br />

do katsuobushi. Quando a água estiver<br />

fervendo, retire 2 xícaras para fazer<br />

uma infusão com o kombu (cortado) e<br />

o katsuobushi. Depois de extrair todo o<br />

sabor, devolva a infusão à panela usando<br />

uma peneira para separar os ingredientes<br />

sólidos. Deixe cozinhar em<br />

fogo baixo por cerca de 8 horas. Coe e<br />

deixe esfriar. Retire o excesso de gordura<br />

e aqueça o caldo na hora de servir.<br />

INGREDIENTES DOS<br />

PICLES DE NABO<br />

• 3 g de pimenta dedo-de-moça<br />

• 4 g de alho inteiro<br />

• 2 g de açúcar cristal<br />

• 200 ml de água<br />

• 150 ml de shoyu<br />

• 150 ml de vinagre de arroz<br />

• 50 g de nabo<br />

Modo de preparo: misture os ingredientes<br />

líquidos e aqueça. Em seguida,<br />

acrescente os outros itens, coloque em<br />

um saco de vácuo e armazene na geladeira.<br />

Utilize após 5 dias.<br />

MONTAGEM<br />

• 400 ml de caldo dashi<br />

• 60 g de lardo Porco Real<br />

• 16 unidades de picles de cenoura<br />

• 4 unidades de picles de nabo<br />

• 4 floretes de couve-flor fermentada<br />

• 40 g de espinafre refogado<br />

• 60 g de brócolis<br />

• 4 unidades de cogumelo shiitake<br />

pequeno grelhado<br />

• 2 unidades de ovo de codorna cozido<br />

• Azeite a gosto<br />

• Flor de sal a gosto<br />

• Pimenta-do-reino a gosto<br />

Modo de preparo: refogue o espinafre<br />

com azeite e sal e reserve. Cozinhe os<br />

brócolis (apenas os floretes com água<br />

e sal, rapidamente) e, em seguida, coloque<br />

em água com gelo para interromper<br />

a cocção. Tempere com sal e azeite.<br />

Grelhe os cogumelos em churrasqueira<br />

ou frigideira com azeite e sal. Em um<br />

prato fundo redondo, disponha os legumes<br />

em formato de círculo, com o<br />

lardo cortado em finas fatias (como um<br />

espaguete, enrolado) no final, fechando<br />

o círculo. Coloque metade de um ovo<br />

com a gema para cima. Finalize com<br />

flor de sal e pimenta-do-reino. Sirva<br />

o caldo bem quente em cima do lardo,<br />

cobrindo o restante dos ingredientes.<br />

Rendimento: 4 porções<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 69<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 68


Uma imagem<br />

Dall-E 2/OpenAI<br />

O que o futuro nos reserva? Difícil acreditar que, um século<br />

atrás, uma única mente entre o 1,8 bilhão de habitantes no<br />

planeta tenha vislumbrado a transformação que viria pela<br />

frente. A humanidade passou de uma realidade analógica, em<br />

que artistas como o pintor francês Henri Matisse coloriam o<br />

mundo com suas caprichosas pinceladas em tela, para uma<br />

sociedade digital que quer tudo a um clique de distância. O<br />

que haverá no próximo salto de um século é uma incógnita,<br />

mas é certo que ela, a tecnologia, continuará a desempenhar<br />

um papel decisivo no caminho até lá. E a inteligência artificial<br />

terá um espaço crucial na evolução dos novos humanos.<br />

A imagem acima foi gerada por IA, pouco mais de um século<br />

depois de Matisse nos brindar com A Dança. O software<br />

Dall-E cria os traços e cores com um empurrãozinho humano:<br />

basta digitar uma breve descrição do que se quer retratar,<br />

acompanhada do estilo de preferência, que o programa responde<br />

ao pedido, em poucos segundos, com algumas opções<br />

de imagem. O nome Dall-E vem de uma brincadeira com o<br />

título da animação da Pixar protagonizada por um simpático<br />

robô, Wall-E, e com o sobrenome do pintor surrealista Salvador<br />

Dalí. Em tempo: a “obra de arte” futurista que ilustra esta<br />

seção foi criada a partir da descrição “An oil painting by Matisse<br />

of a humanoid robot playing chess” (Uma pintura a óleo<br />

de Matisse de um robô humanoide jogando xadrez).<br />

VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 70

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