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VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong><br />
Et cetera<br />
Gente com Bossa<br />
Guido Sant’Anna: o jovem mestre do violino<br />
Entrevista com Aranha sobre saúde mental<br />
Timothy Wilson e a vida no espectro autista<br />
Eduardo Kobra, o homem dos murais gigantes<br />
A literatura jovem de Thalita Rebouças<br />
Angelita Habr-Gama, ícone da medicina brasileira<br />
E a versatilidade do ator Antonio Fagundes:<br />
“Não existe arrependimento,<br />
existe evolução. Os erros<br />
fazem parte do cotidiano”<br />
Distribuição gratuita
Foto: Getty Images<br />
Expediente<br />
Direção-geral Alessandra Lotufo | Direção Editorial e <strong>Edição</strong>: Daniela Macedo | Textos: Alessandra Lotufo, Daniel Motta,<br />
Daniela Macedo, Diego Braga Norte, Guilherme Dearo, Sérgio Martins e Simone Costa | Arte e Diagramação: Alessandra Lotufo<br />
Produção: Danielle Pasqualoto | Revisão: Ronaldo Barbosa | Gráfica: Elyon<br />
Et cetera é uma publicação trimestral da Bossa.etc. Entre em contato conosco pelo revista@bossa.etc.br
Sumário<br />
Capa: Antonio Fagundes<br />
Foto: Bob Sousa<br />
06 Roteiro<br />
As melhores sugestões de filmes, séries,<br />
livros, discos, espetáculos teatrais e<br />
exposições imperdíveis neste verão<br />
<strong>10</strong><br />
O X da Bossa<br />
Em seu artigo, Daniel Motta junta-se a Maurício<br />
Pontuschka, CTO do grupo BMI, para desvendar<br />
os caminhos que apontam para os novos<br />
arquétipos organizacionais<br />
20<br />
Crônicas e Tal<br />
A humanidade simplesmente se recusa<br />
a mergulhar na pós-modernidade?<br />
Romantismo é o tema da crônica de<br />
Alessandra Lotufo<br />
22<br />
Gente com Bossa<br />
Et cetera reuniu uma seleção de craques da<br />
cultura, do esporte e da ciência para celebrar a<br />
edição número <strong>10</strong>. Gente com jogo de cintura,<br />
resiliência, versatilidade e talento de sobra<br />
24<br />
Q&A Etc.<br />
O ex-goleiro Aranha fala sobre o episódio de<br />
racismo que ganhou repercussão nacional,<br />
em 2014, e a importância dos cuidados com<br />
saúde mental dentro e fora do esporte<br />
26<br />
Com a Palavra…<br />
Vencedor do prêmio de melhor ator<br />
coadjuvante no Festival do Rio, Timothy<br />
Wilson fala sobre a estreia na carreira<br />
artística e a vida no espectro autista<br />
28<br />
Guarde Este Nome<br />
De Parelheiros para o topo do mundo: aos 17<br />
anos, o violinista paulista Guido Sant’Anna<br />
venceu o prestigiado Concurso Internacional<br />
de Violino Fritz Kreisler<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Foto: Edu Rodrigues<br />
Foto: Walt Disney World Resort<br />
Foto: Silvia Machado<br />
30<br />
Antonio Fagundes<br />
A versatilidade de Antonio Fagundes transborda<br />
dos palcos e das telas para a vida pessoal: o<br />
ator ama os livros, é fã de videogame e fez sua<br />
primeira tatuagem aos 73 anos<br />
38<br />
Thalita Rebouças<br />
Com mais de 2 milhões de livros vendidos, Thalita<br />
Rebouças conquistou o público teen e se tornou um<br />
dos mais bem-sucedidos nomes do mercado literário<br />
nacional<br />
46<br />
Eduardo Kobra<br />
O muralista Eduardo Kobra já espalhou seus<br />
traços e cores por mais de 30 países, mas o duro<br />
caminho do pichador adolescente da periferia até<br />
o sucesso deixou sequelas<br />
54<br />
Angelita Habr-Gama<br />
Considerada uma das mais influentes<br />
cientistas do mundo, a cirurgiã Angelita<br />
Habr-Gama sobreviveu à Covid-19 e, aos 89<br />
anos, mantém a rotina de cirurgias e consultas<br />
Foto: Cláudia Ferreira<br />
63<br />
Uma Tendência<br />
Vem dos mares a tendência para <strong>2023</strong>: as algas<br />
marinhas são o superalimento que caiu no gosto<br />
dos millennials e da geração Z<br />
65<br />
Um Sabor<br />
A receita de Janaína Rueda, da Casa do Porco,<br />
ensina a preparar um prato do cardápio do<br />
sétimo melhor restaurante do mundo<br />
62<br />
Um Cartum<br />
A cartunista Laerte Coutinho dá uma dica de<br />
como voltar ao trabalho com energia depois da<br />
pausa de fim de ano<br />
64<br />
Uma Palavra<br />
A décima edição da Et cetera homenageia a<br />
escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da<br />
Literatura 2022, com um trecho de O Lugar<br />
66<br />
Uma Imagem<br />
O caminho da humanidade para o futuro é<br />
pavimentado por tecnologias como a inteligência<br />
artificial, autora da imagem em destaque nesta seção<br />
A revista Et cetera tem uma versão<br />
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[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Séries, filmes etc.<br />
The Last of Us<br />
Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades<br />
Onde ver: Netflix<br />
Duração: 2h39min<br />
Um diretor no espelho<br />
Felliniano e pessoal, o filme Bardo, Falsa<br />
Crônica de Algumas Verdades, do mexicano<br />
Alejandro G. Iñárritu, causou<br />
furor onde foi exibido. No Festival de<br />
Veneza, o filme saiu sem prêmios, mas<br />
foi aplaudidíssimo. Na Mostra Internacional<br />
de Cinema de São Paulo, provocou<br />
filas enormes. O buzz justifica-se:<br />
é um dos melhores filmes do diretor.<br />
E ele já fez Birdman, Babel, 21 Gramas,<br />
Amores Brutos, dentre outros. Nessa<br />
obra, a história acompanha a jornada<br />
de um cineasta e jornalista mexicano<br />
que, após vencer um importante prêmio<br />
internacional, revê sua carreira e<br />
seus traumas ao voltar para seu país de<br />
origem. As referências autobiográficas<br />
são evidentes, já que, depois de conquistar<br />
dois Oscars de melhor direção<br />
seguidos, Iñárritu volta à sua terra natal<br />
em seu primeiro filme desde O Regresso,<br />
de 2015.<br />
Onde ver: HBO Max, a partir de 15 de janeiro<br />
Duração: <strong>10</strong> episódios<br />
Dos games às telas<br />
Muitos filmes e séries de sucesso já<br />
foram transformados em jogos de videogame.<br />
Foi assim com Matrix, Mad<br />
Max e Game of Thrones, por exemplo.<br />
Nos últimos anos, esse caminho tem se<br />
invertido, como aconteceu agora com<br />
a franquia The Last of Us, que saiu dos<br />
consoles para ganhar uma versão em<br />
live action. O chileno Pedro Pascal (de<br />
Narcos e The Mandalorian) e a inglesa<br />
Bella Ramsey (de Game of Thrones) são<br />
os protagonistas da produção assinada<br />
pela HBO. Num futuro distópico, os<br />
humanos foram infectados por uma<br />
doença que os transforma em seres<br />
monstruosos e agressivos. Os sobreviventes<br />
estão confinados numa opressiva<br />
zona de quarentena, mas Joel (Pascal)<br />
e a jovem Ellie (Ramsey) resolvem<br />
fugir em busca de um local menos<br />
inóspito. Para isso, terão de atravessar<br />
os devastados EUA sozinhos.<br />
Memory Box<br />
Onde ver: Prime Video,<br />
AppleTV+ e Vivo Play<br />
Duração: 1h41min<br />
Memórias latentes<br />
Maia, uma imigrante libanesa que<br />
mora em Montreal, no Canadá, recebe<br />
pelo correio uma caixa que ela havia<br />
enviado a uma amiga na década<br />
de 1980 cheia de fotos, fitas cassete e<br />
outras recordações. Preocupada em<br />
não reviver memórias da guerra civil<br />
que devastou seu país, Maia não abre<br />
a caixa, que é descoberta por sua filha<br />
adolescente, Alex. O passado da mãe<br />
em Beirute e o presente da filha em<br />
Montreal se misturam no filme Memory<br />
Box. Com direção compartilhada entre<br />
Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, o<br />
longa será o representante do Líbano<br />
no Oscar <strong>2023</strong>, na categoria Melhor<br />
Filme Estrangeiro. Conhecida por suas<br />
técnicas experimentais, a dupla de cineastas<br />
usou o diário e fitas reais de<br />
Joana datados entre 1982 e 1988 para<br />
misturar imaginação e realidade.<br />
Para ouvir<br />
Maturidade serena<br />
Mais um craque da geração que chegou<br />
aos 80 anos <strong>–</strong> como Caetano Veloso,<br />
Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Milton<br />
Nascimento, Tom Zé e Paulinho da<br />
Viola <strong>–</strong>, o maestro Francis Hime lança<br />
um novo álbum. Com 12 faixas instrumentais<br />
inéditas, Hime usa seu piano<br />
preciso e delicado para explorar ritmos<br />
consagrados (como a valsa) com uma<br />
pegada jazzística. No disco, o maestro<br />
aproveita também para homenagear<br />
parceiros que já se foram (Canção para<br />
Raphael Rabello e Canção para Luiz Eça)<br />
e sua mulher, a cantora Olivia Hime<br />
(Para Olivia). Os solos de piano combinam<br />
muito bem com a atmosfera do<br />
disco, com músicas que remetem à<br />
natureza, como Bucólica, Alvorada, Um<br />
Rio e Riachinho. Compositor e arranjador<br />
brilhante, aos 83 anos, Francis<br />
Hime está em paz consigo mesmo e<br />
com sua música.<br />
Estuário das Canções<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
Babilônia<br />
Onde ver: nos cinemas<br />
a partir de 6 de janeiro<br />
Duração: 3h09min<br />
Hollywood em transe<br />
Com mais de três horas de duração, o<br />
novo filme de Damien Chazelle (diretor<br />
de La La Land e Whiplash), com Brad<br />
Pitt e Margot Robbie, chega aos cinemas<br />
em janeiro. No final da década de<br />
1920, Hollywood passa por mudanças<br />
profundas, com a transição do cinema<br />
mudo para os filmes falados. Em<br />
Babilônia, a atriz Nellie LaRoy (Robbie)<br />
tenta migrar de um modelo para ou-<br />
tro sem perder seu status de estrela.<br />
A reconstituição de época impecável<br />
e a fotografia caprichada garantem<br />
uma atmosfera vintage ao filme. O roteiro<br />
faz uma reflexão sincera dos<br />
primórdios de Hollywood, mostrando<br />
a ambição descomunal e excessos<br />
de alguns, com a ascensão e queda<br />
de vários personagens durante uma<br />
era de grandes transformações na<br />
indústria do cinema.<br />
Bahia maravilha<br />
Mais conhecido por seu trabalho à<br />
frente do ótimo BaianaSystem, uma<br />
das bandas nacionais mais interessantes<br />
da atualidade, o inquieto músico<br />
Russo Passapusso lança seu segundo<br />
álbum solo. Para fazer seu disco, o<br />
baiano resgatou a dupla Antonio Carlos<br />
e Jocafi, que estourou nos anos<br />
1970 com Você Abusou, Mudei de Ideia e<br />
Desacato, entre outros sambas. O resultado<br />
é excelente. Com muito afrobeat e<br />
suingue, as músicas trazem elementos<br />
de axé, forró, baião e xaxado. Algumas<br />
faixas poderiam ter sido feitas por<br />
Gilberto Gil, por isso não surpreende<br />
quando ele surge cantando junto em<br />
Mirê Mirê. Tambores, guitarras, metais<br />
e cuíca misturam-se para produzir um<br />
som dançante, poderoso e brasileiro.<br />
Alto da Maravilha<br />
Onde ouvir: Spotify, Deezer,<br />
iTunes e Tidal<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 7<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 6
[ R O T E I R O ] [ R O T E I R O ]<br />
Para ler<br />
Os Ratos<br />
192 páginas<br />
Editora Todavia<br />
64,90 reais e 44,90 (e-book)<br />
Uma vida em um dia<br />
Publicado em 1935, o romance Os Ratos,<br />
do gaúcho Dyonelio Machado, é<br />
uma pérola da literatura brasileira modernista.<br />
Escrito em uma prosa ágil e<br />
sem rodeios, o livro conta a história de<br />
Naziazeno Barbosa, um humilde funcionário<br />
público que tem apenas um<br />
dia para pagar uma dívida de 53 mil-<br />
-réis com o leiteiro. Se não pagar, terá<br />
seu fornecimento de leite cortado. Em<br />
capítulos curtos, acompanhamos a an-<br />
gústia de Naziazeno desde a hora em<br />
que ele acorda até quando vai dormir.<br />
A pé e de bonde, o anti-herói se embrenha<br />
pelo centro de Porto Alegre em<br />
busca de dinheiro, empréstimos, agiotas<br />
e eventuais bicos que podem ajudá-lo<br />
<strong>–</strong> ou atrapalhá-lo ainda mais. À<br />
medida que o dia avança, o desespero<br />
de Naziazeno aumenta e a tensão psicológica<br />
cresce. Fora do catálogo das<br />
editoras há muitos anos, a reedição do<br />
livro reforça sua potência. E está ainda<br />
mais atual.<br />
Para visitar<br />
Águas de Monet<br />
Das muitas exposições imersivas que<br />
desembarcaram em São Paulo, esta<br />
é definitivamente a mais impressionante<br />
<strong>–</strong> e impressionista <strong>–</strong> até agora.<br />
São 285 reproduções de pinturas do<br />
francês Claude Monet (1840-1926) distribuídas<br />
num espaço de 4 mil metros<br />
quadrados. Grande parte das obras,<br />
como indica o título da mostra, retrata<br />
a água (um dos temas mais fugidios e<br />
difíceis de representar em uma pintura),<br />
com margens de rios, lagos e o Mar<br />
Mediterrâneo. O chão espelhado ajuda<br />
na experiência de “entrar” nas projeções,<br />
que são exibidas ora em 2D, ora<br />
em 3D, com movimentos e profundida-<br />
de: barcos navegam, águas do mar se<br />
agitam, árvores e flores balançam ao<br />
vento. O passeio é intensificado com<br />
uma impecável trilha sonora de músicas<br />
clássicas compostas pelo maestro<br />
que dá nome ao parque que abriga a<br />
exposição. O encontro de Villa-Lobos<br />
com Monet revela-se um acerto e tanto:<br />
a composição de imagens, sons e a própria<br />
arquitetura do espaço possibilitam<br />
uma experiência sensorial e emotiva.<br />
Até março de <strong>2023</strong>, com ingressos de<br />
60 a 160 reais.<br />
Monet à Beira d’Água<br />
Parque Villa-Lobos<br />
Ingressos: monetbeiradagua.com.br<br />
Uma Breve História da Igualdade<br />
304 páginas<br />
Editora Intrínseca<br />
69,90 reais e 46,90 (e-book)<br />
Otimismo bem-vindo<br />
É consenso que os maiores problemas<br />
da atualidade são o aquecimento climático<br />
e a desigualdade. O economista<br />
francês Thomas Piketty dedica suas<br />
pesquisas ao segundo desafio. Autor<br />
do caudaloso e já clássico O Capital no<br />
Século XXI, Piketty é especialista no<br />
assunto e conseguiu levar os temas<br />
desigualdade e distribuição de renda<br />
ao centro da agenda global. Seus livros<br />
são leitura de cabeceira de Barack Obama,<br />
Angela Merkel, Emmanuel Macron<br />
e toda a turma de Davos. Neste novo<br />
ensaio, Uma Breve História da Igualdade,<br />
o pesquisador aponta que, apesar<br />
dos retrocessos, existe um movimento<br />
histórico orientado para a igualdade.<br />
Em pouco mais de 300 páginas,<br />
Piketty conduz o leitor pelos grandes<br />
movimentos que moldaram o mundo:<br />
o crescimento do capitalismo, as revoluções,<br />
o imperialismo, a escravidão,<br />
guerras e a construção do Estado de<br />
bem-estar social. Com sólidos argumentos<br />
e muitos dados, o economista<br />
mostra-se otimista em relação ao progresso<br />
humano. Nos dias atuais, o otimismo<br />
é sempre bem-vindo.<br />
No palco<br />
Arte entre irmãos<br />
Janeiro é o último mês para ver a grandiosa<br />
mostra dos irmãos Gustavo e<br />
Otávio Pandolfo, os artistas grafiteiros<br />
Osgemeos, no CCBB do Rio. Inédita, a<br />
exposição foi feita sob encomenda para<br />
celebrar os 33 anos do centro cultural.<br />
O conjunto de obras inclui telas, instalações,<br />
animações e murais em espaços<br />
urbanos, que brincam com a imaginação<br />
dos visitantes. Um dos destaques<br />
da exposição é o trabalho em parceria<br />
com Banksy, um dos artistas urbanos<br />
mais influentes do mundo. Osgemeos<br />
acrescentam um personagem em uma<br />
obra de Banksy, e o britânico adiciona<br />
um elemento em uma pintura da dupla<br />
brasileira. A troca possibilita um<br />
curioso diálogo entre os artistas e seus<br />
elementos favoritos: a crítica social do<br />
britânico e o mundo onírico dos brasileiros.<br />
Outro ponto alto da mostra é a<br />
sala de projeções com fotos de obras<br />
dos irmãos Pandolfo em diferentes locais,<br />
como no Queens, em Nova York;<br />
em Ishinomaki, no Japão; e, claro, em<br />
São Paulo, cidade natal da dupla.<br />
Nossos Segredos — Osgemeos<br />
CCBB Rio<br />
Entrada gratuita<br />
As Quatro Estações do Gato<br />
96 páginas<br />
Estação Liberdade<br />
39,90 reais<br />
Sabedoria felina<br />
A artista chinesa Kwong Kuen Shan<br />
nasceu em Hong Kong, mas reside<br />
num pequeno vilarejo no País de Gales,<br />
Abergavenny, com seu marido e<br />
seus gatos. Pintora e escritora, ela já<br />
publicou mais de dez livros, todos com<br />
aquarelas de sua autoria, muitos deles<br />
com os felinos como protagonistas.<br />
Acaba de ser lançado no Brasil seu último<br />
título, As Quatro Estações do Gato,<br />
de 2019. Com 40 delicadas aquarelas,<br />
a obra traz uma seleção de fragmentos<br />
da sabedoria milenar chinesa, indo de<br />
provérbios antigos às máximas do filósofo<br />
Confúcio. Com pitadas de bom<br />
humor tanto nos textos quanto nas<br />
imagens, a obra traz reflexões sobre o<br />
caminho percorrido durante uma vida,<br />
em uma analogia com as quatro estações<br />
do ano. Seus modelos favoritos, os<br />
inquietos e irresistíveis gatos, ilustram<br />
as aquarelas. Delicada, a obra agrada<br />
não só os amantes dos felinos. Com<br />
textos leves, mas com profundidade.<br />
Um solo de Clarice<br />
Depois de uma temporada de sucesso<br />
no Rio, a peça Um Dia a Menos desembarca<br />
em São Paulo. Baseada no conto<br />
homônimo de Clarice Lispector, com<br />
adaptação e direção de Leonardo Netto,<br />
a peça narra um dia na vida de Margarida<br />
Flores, uma mulher que, após<br />
a morte de sua mãe, vive solitária na<br />
mesma casa onde nasceu e cresceu.<br />
Cabe à atriz Ana Beatriz Nogueira interpretar<br />
a protagonista. Sozinha em<br />
casa, Margarida se prepara para mais<br />
uma jornada entediante entre afazeres<br />
cotidianos, até que o telefone toca e<br />
tudo muda. A atuação de Ana Beatriz,<br />
bastante elogiada, consegue imprimir<br />
as nuances necessárias no dia de Margarida,<br />
alternando momentos cômicos,<br />
patéticos, de solidão e euforia. O cenário<br />
minimalista <strong>–</strong> uma poltrona, uma<br />
mesinha com um telefone e um copo<br />
d’água <strong>–</strong> reforça o trabalho e a presença<br />
de palco da atriz. Assim como no<br />
conto, mesmo num dia aparentemente<br />
banal, sobressai a humanidade da personagem<br />
atravessada pelo luto e pela<br />
solidão. Até 11 de fevereiro.<br />
Um Dia a Menos<br />
Teatro Renaissance<br />
Ingressos: teatrorenaissance.com.br<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 9<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 8
[O X DA BOSSA]<br />
As<br />
organizações<br />
do futuro<br />
Por Daniel Augusto Motta <strong>–</strong> Senior Tupinambá Maverick da Bossa; e<br />
Maurício Pontuschka <strong>–</strong> Chief Technology Officer na BMI<br />
Quais são as atuais inspirações para novos<br />
arquétipos organizacionais? O paradigma<br />
Estrutura, Comportamento e Dinâmica pode<br />
ajudar a conectar os pontos entre desafios das<br />
organizações e sistemas computacionais<br />
Foto: Getty Images<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 11<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. <strong>10</strong>
Para que servem as organizações?<br />
Difícil imaginar um mundo sem organizações. Todas as dimensões de nossa vida circulam em torno de algum tipo de organização,<br />
de igrejas a governos. E isso é algo positivo para a sociedade. Ao mesmo tempo, é difícil visualizar um momento organizacional<br />
estável absoluto. As organizações também evoluem naturalmente <strong>–</strong> por vezes, com sobressaltos <strong>–</strong> em busca de<br />
sobrevivência e relevância. E três funções se destacam nesse processo:<br />
Coordenação<br />
Organizações <strong>–</strong> em especial, empresas privadas <strong>–</strong> são importantes porque criam mecanismos de gestão e estruturas capazes<br />
de processar informações e coordenar diversos agentes econômicos em escala. Diante de contextos caóticos e hostis, a capacidade<br />
de coordenação organizacional apresenta-se como grande diferencial. Ao longo do tempo, diferentes modelos de coordenação<br />
foram implementados e aperfeiçoados, enquanto outros eram descartados. No atual momento, as agendas de reconfiguração<br />
organizacional desafiam também este aspecto primordial: como otimizar a capacidade de coordenação das empresas?<br />
N<br />
Foto: Getty Images<br />
ovos modelos de negócios, novos imperativos organizacionais, novas expressões linguísticas. De inovações tecnológicas<br />
a ajustes nos padrões sociais, diversas rupturas estão nos radares executivos. Polissíndetos, metáforas e hipérboles são<br />
as figuras de linguagem corriqueiras nos tempos atuais. Ciclos de planejamento estratégico ressaltam conceitos como<br />
burning platform como ponto de partida para reflexões sobre novas possibilidades.<br />
Grandes transformações têm sido testemunhadas nos últimos tempos. Novos vetores de valor têm convivido com fundamentos<br />
consolidados, enquanto dogmas e paradigmas convencionais são postos em xeque. No entanto, as discussões sobre ruptura<br />
ainda superam as efetivas ações de ruptura. As intenções antecipam as realizações. Na vida prática das empresas, os processos<br />
de reconfiguração organizacional desenvolvem-se em doses homeopáticas, em modo test-drive. Conformidade, estabilidade e<br />
previsibilidade não estão fora de moda. Mas, de certo modo, estão buscando conviver com novos direcionamentos para o futuro.<br />
Sucessivas experimentações têm ocorrido em diferentes camadas das estruturas organizacionais: células ágeis, plataformas<br />
de aceleração e incubação de startups, estruturas flexíveis orientadas a projetos <strong>–</strong> desafiando, inclusive, instituições, leis e<br />
paradigmas. Há ainda certa tração na formação de holdings gestoras de portfólio de empresas. Outras experimentações estão<br />
sendo empreendidas em programas de incentivos, modelos de governança e sistemas de gestão. E também em relação a aspectos<br />
mais abstratos como linguagem e vestuário, ambiente de trabalho e proposta de valor.<br />
Bem-estar<br />
Uma organização não existe apenas para maximizar sua<br />
própria geração de resultado. Está sempre rodeada de múltiplos<br />
stakeholders, com suas diversas agendas de interesses,<br />
diferentes poderes de barganha e redes de influência. Essa<br />
tensão de forças define o potencial retorno sobre capital empregado<br />
ajustado ao nível de risco de um empreendimento. A<br />
própria existência de uma organização é, de certo modo, uma<br />
concessão da sociedade em prol de seu bem-estar. No caso<br />
de um empreendimento privado, por exemplo, o sistema de<br />
preços e o custo de capital definem sua própria viabilidade<br />
financeira. As organizações, portanto, existem para otimizar<br />
o bem-estar social dos stakeholders ao seu redor. E, por isso<br />
mesmo, desdobram-se em maximizar o retorno financeiro<br />
na perpetuidade para seus acionistas, proporcionar ambiente<br />
de trabalho favorável aos colaboradores, encantar os clientes,<br />
consolidar sua cadeia de valor, atender às expectativas gerais<br />
da sociedade. O vocabulário contemporâneo tem destacado<br />
termos como ESG, Diversidade e Inclusão, Centralidade do<br />
Cliente e Impacto. Esses e outros conceitos não são inéditos,<br />
apenas têm tracionado sua relevância na agenda organizacional<br />
inserida nesse dinâmico campo de forças.<br />
Eficiência<br />
Um verdadeiro nexus de contratos. Assim pode ser definida<br />
uma organização na visão acadêmica dos economistas. Com<br />
o objetivo de coordenar inúmeras atividades executadas por<br />
diversos agentes, uma organização gerencia infindáveis transações,<br />
cada uma delas com seus respectivos custos. Assim,<br />
minimizar custos de transação significa maximizar a eficiência<br />
organizacional. Os custos de transação agrupam o próprio<br />
ônus de coordenação das atividades produtivas e seu sistema<br />
de monitoramento, e também a observância dos direitos<br />
de propriedade e a negociação de contratos. A complexidade<br />
organizacional se relaciona com a própria incerteza e hostilidade<br />
das condições externas e com a dinâmica dos contratos<br />
subjacentes à existência de um empreendimento. A busca da<br />
eficiência, portanto, é uma jornada sem ponto de chegada.<br />
Tecnologia, processos, sistemas, pessoas e instalações podem<br />
ser otimizados em suas combinações de modo a maximizar a<br />
realização produtiva em relação ao capital empregado. Uma<br />
vez que o contexto externo está em constante transformação,<br />
a maximização de eficiência é sempre um novo desafio. Além<br />
de paradigmas produtivos e modelos operacionais, novos patamares<br />
de desempenho estão sendo desbravados.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 13<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 12
Interação entre concreto e abstrato<br />
A partir desse tripé essencial (coordenação, eficiência e bem-estar), a ambição é<br />
desenhada, combinando propósito, visão e estratégia. Mas toda ambição requer realização.<br />
O nível de potência organizacional refere-se à crítica convergência entre<br />
cultura, desenho e capacidades. Assim, o sucesso empresarial está no ajuste exato<br />
entre ambição e potência. Algo difícil de se concretizar, tanto pelos sucessivos desafios<br />
externos que impactam as diferentes camadas como pelas idiossincrasias<br />
internas que impedem o perfeito alinhamento das alavancas de potência.<br />
O processo de reconfiguração organizacional aborda diferentes aspectos. Alguns<br />
concretos, outros mais abstratos. Vale destacar a inexorável convivência entre o<br />
concreto e o abstrato. O lócus do trabalho, por exemplo, é um importante aspecto<br />
concreto da configuração organizacional, onde se manifestam as abstratas redes<br />
de influências e os concretos sistemas de gestão. Assim ocorre também em várias<br />
outras dimensões, como na combinação entre os concretos incentivos individuais e<br />
os abstratos pactos entre as equipes.<br />
Foto: Getty Images<br />
NORMAS<br />
GOVERNANÇA<br />
MAPA MENTAL<br />
SISTEMAS<br />
Linda, leve e solta<br />
TÁCITO<br />
PACTOS<br />
INFLUÊNCIA<br />
INCENTIVOS<br />
RESPONSABILIDADE<br />
PROCESSUAL<br />
A metáfora de empresas transatlânticas, com suas dificuldades de manobras súbitas em prol da consistência dos planos traçados<br />
de porto a porto, já é velha conhecida. No atual ritmo frenético e efêmero das transformações, o processo de reconfiguração<br />
organizacional reforça a importância da leveza como fator determinante de sucesso.<br />
A leveza expressa-se na própria estrutura com seus papéis e responsabilidades, regras de conduta, protocolos normativos, processos<br />
burocráticos, sistemas gerenciais e dimensionamento das equipes. Também pode ser compreendida no minimalismo da<br />
arquitetura, do vestuário, das interações sociais, do clima organizacional, da linguagem, do lócus do trabalho, dos símbolos de<br />
poder e do exercício da liderança.<br />
Mais princípios, menos protocolos. Mais compromissos, menos reportes. Mais colegiado, menos silos. Mais solto, menos sisudo.<br />
Mais admiração, menos submissão. Mais beleza, menos assédio. Mais experimentações, menos perfeição.<br />
Do ponto de vista processual, a configuração<br />
organizacional engloba a combinação<br />
das regras de governança, incentivos<br />
financeiros e não financeiros,<br />
sistemas de gestão e papéis e responsabilidades.<br />
Esses quatro conjuntos de<br />
elementos modelam a concretude das<br />
estruturas e dos fluxos diversos. Do<br />
ponto de vista tácito, ressaltam-se as<br />
normas grupais ancoradas em valores<br />
e crenças, as redes externas e internas<br />
de influência, os pactos acordados<br />
entre as equipes e os mapas mentais<br />
coletivos. São esses elementos agrupados<br />
que definem as dinâmicas e os<br />
comportamentos dos indivíduos e dos<br />
grupos pelas estruturas.<br />
As organizações navegam com mais<br />
facilidade <strong>–</strong> nem sempre com efetividade<br />
<strong>–</strong> nos aspectos processuais. Executivos<br />
e empreendedores, também<br />
colaboradores, conseguem visualizar<br />
com maior clareza a concretude em<br />
detrimento do abstrato. É muito mais<br />
fácil desenhar uma estrutura organizacional<br />
com suas caixinhas e fluxos<br />
do que compreender as normas grupais<br />
em todas as suas nuances implícitas<br />
e complexidades inconscientes.<br />
Entretanto, o concreto organizacional<br />
não se realiza sem sua contraparte<br />
abstrata. A partir das estruturas concretas,<br />
os aspectos tácitos modelam<br />
as dinâmicas e os comportamentos. A<br />
semiótica organizacional é definida em<br />
torno desses movimentos, símbolos e<br />
rituais. A capacidade organizacional<br />
em otimizar coordenação, eficiência e<br />
bem-estar também está diretamente<br />
condicionada pela integração fluida<br />
entre os aspectos processuais e tácitos.<br />
As percepções coletivas, tanto internas<br />
quanto externas, são definidas também<br />
nessa interação.<br />
O processo de reconfiguração organizacional<br />
consolida três principais<br />
imperativos para o atual e o futuro<br />
contexto dos empreendimentos relevantes:<br />
leveza, empatia e organicidade.<br />
A leveza manifestada no vestuário, na arquitetura e na linguagem também tem influenciado a horizontalização generalizada das<br />
áreas, com aumento da autonomia da linha de frente e transformação dos macro-objetivos estratégicos em objetivos microcósmicos<br />
sob gestão de equipes táticas. As organizações de vanguarda serão menos complexas e empoladas. Serão leves.<br />
Pela luz dos olhos teus<br />
Empatia é a palavra do momento no<br />
universo das empresas. O olhar cada<br />
vez mais atento para as aspirações,<br />
percepções e necessidades dos outros<br />
ao redor enfatiza a lógica de fora<br />
para dentro em curso em todas as dimensões,<br />
da centralidade do cliente<br />
à individualidade do colaborador, incluindo<br />
também a empatia nas agendas<br />
multistakeholder, com destaque<br />
para diversidade, equidade e inclusão,<br />
compromissos ambientais e sociais.<br />
Expressões como Client Success (CS),<br />
Client Experience (CX), User Experience<br />
(UX) e Customer Journey têm<br />
se proliferado como jargões contemporâneos<br />
na modelagem de negócios. A<br />
centralidade do cliente transformou-se<br />
em eixo primordial da geração de valor.<br />
De modo análogo, a escassez de capital<br />
humano especializado e a agenda<br />
latente de bem-estar no ambiente de<br />
trabalho têm direcionado abordagens<br />
empáticas nas relações trabalhistas<br />
em torno de questões coletivas e individuais.<br />
A própria saúde mental do colaborador<br />
deixou de ser temática tabu<br />
para assumir importância central nas<br />
práticas de gestão de pessoas.<br />
No âmbito mais amplo, as organizações<br />
estão acomodando as mudanças<br />
de poderes de barganha entre seus<br />
stakeholders. As recentes agendas ESG<br />
e DEI são ilustrações inequívocas de tal<br />
redistribuição de poderes, sendo que a<br />
maximização do retorno financeiro sobre<br />
capital hoje está sujeita a maiores<br />
condições de contorno.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 15<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 14
Da matemática à<br />
biologia<br />
A evolução dos sistemas computacionais<br />
sempre esteve em grande sintonia<br />
com os movimentos organizacionais<br />
ao longo de décadas. Com base em<br />
sucessivas interações e experimentações,<br />
a área da computação tem sido<br />
sempre desafiada, testando novos<br />
limites da tecnologia.<br />
O desenvolvimento de software nunca<br />
é um processo trivial. Inúmeros parâmetros,<br />
fatores e condições são relacionados<br />
de forma sistematizada para<br />
direcionamento de estrutura, comportamento<br />
e dinâmica. A própria arquitetura<br />
de software está diretamente relacionada<br />
com a forma como as equipes<br />
e os profissionais da área de computação<br />
desenvolvem suas metodologias.<br />
Os sistemas computacionais precisam<br />
estar aderentes ao contexto organizacional.<br />
Existe uma relação íntima entre<br />
método e resultado final.<br />
A área da computação nasceu a partir<br />
das áreas da Física e da Matemática,<br />
que influenciaram a maneira como<br />
as primeiras linguagens foram concebidas.<br />
Enquanto a Física forneceu<br />
o aparato tecnológico das válvulas,<br />
transistores, chips e microprocessadores,<br />
a Matemática atuou no âmbito do<br />
software com as analogias para a criação<br />
de comandos e funções, elementos<br />
básicos dessas linguagens. Agora, a<br />
Biologia tem assumido cada vez mais<br />
protagonismo em função da organicidade<br />
das infinitas conexões em sistemas<br />
abertos.<br />
Assim como na configuração dos sistemas<br />
organizacionais, a modelagem de<br />
sistemas computacionais também pode<br />
ser compreendida em três grandes<br />
blocos: Estrutura, Comportamento e<br />
Dinâmica. A estrutura identifica os elementos,<br />
suas relações e a forma como<br />
estão organizados. O comportamento<br />
está associado às ações realizadas por<br />
cada elemento ou cada conjunto de elementos,<br />
focando na produção de resultados<br />
de valor. Finalmente, a dinâmica<br />
mostra como esses elementos intera-<br />
gem de maneira a suportar os objetivos<br />
do projeto como um todo, atendendo a<br />
requisitos de escopo e escala.<br />
Embora os sistemas tenham se tornado<br />
cada vez mais complexos, os<br />
três blocos permaneceram sempre<br />
como o tripé de desenvolvimento de<br />
um sistema computacional. Modelos<br />
e metodologias evoluíram, portanto,<br />
em compasso com as crescentes complexidade<br />
e amplitude da computação.<br />
Dos monólitos binários às aplicações<br />
inteligentes integradas, esse tripé evoluiu<br />
bastante. Os primeiros sistemas<br />
computacionais nas décadas de 1980-<br />
90 eram muito similares ao próprio<br />
funcionamento dos hardwares. Ao<br />
longo do tempo, sucessivas camadas<br />
de abstração foram inseridas entre<br />
software e hardware. Nos tempos atuais,<br />
os sistemas quânticos destacam-se<br />
cada vez mais como novos paradigmas<br />
computacionais e, caso isso se confirme,<br />
terão também muita influência sobre<br />
sistemas organizacionais.<br />
Onde os novos arquétipos podem ser encontrados?<br />
Foto: Getty Images<br />
Muitos avanços, transformações e adaptações foram empreendidos nos últimos tempos. Mudanças repentinas e agudas, no entanto,<br />
estressam a adaptabilidade das organizações. As estruturas organizacionais são ainda muito tradicionais, variando entre<br />
multidivisionais e matriciais.<br />
Hoje, se discute a implantação de redes em torno de grandes organizações, integrando elos da cadeia de valor e construindo<br />
colaborativamente novas frentes. Outros estudos analisam a viabilidade do paradigma Decentralized Autonomous Organization<br />
(DAO), inspirados nos avanços dos sistemas blockchain. Também se observa a configuração de holdings gestoras de portfólio de<br />
empresas investidas em diferentes estágios de maturidade, otimizando o risco-retorno. Já a formação de biomas é algo mais raro<br />
nos diversos setores, referindo-se ao conceito mais completo de sistemas operacionais orgânicos que regem partes importantes<br />
do funcionamento da própria sociedade, muito além das fronteiras de uma empresa.<br />
Novos arquétipos, portanto, não podem ser encontrados em estruturas em vigor. E mais: a inspiração para novas configurações<br />
organizacionais talvez não seja encontrada em atuais unicórnios e ícones digitais globais. Ela pode estar na evolução dos sistemas<br />
computacionais em torno de redes em nuvem, integradas e potencializadas por inteligência artificial e, cada vez mais, por<br />
computação quântica. O caminho que já percorremos pode ajudar a desvendar os futuros paradigmas organizacionais.<br />
GRANDES ACONTECIMENTOS<br />
NA HISTÓRIA DOS SISTEMAS<br />
COMPUTACIONAIS<br />
Richard Millar Devens cria o termo Business Intelligence 1865<br />
Charles Babbage Ada Lovelace 1883<br />
Primeiro mainframe 1946<br />
MIT AI Lab 1959<br />
Arpanet 1969<br />
1981<br />
Richard Feynman propõe computação quântica em conferência no MIT 1981<br />
Macintosh 1984<br />
Windows 1 1985<br />
Howard D resner Intelligence 1989<br />
Ramnath Chellappa cria o termo Cloud Computing 1997<br />
MIT, primeiro protótipo de computador quântico 1999<br />
Eugene Goostman, bot que passou no teste de Turing 2014<br />
2000Q da D-Wave, computador quântico comercial 2017<br />
PROGRAMAÇÃO<br />
REDES DE COMPUTADORES<br />
INTERNET<br />
INTERFACES<br />
GRÁFICAS<br />
CLOUD COMPUTING<br />
BUSINESS INTELLIGENCE<br />
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL<br />
COMPUTAÇÃO QUÂNTICA<br />
MATURIDADE DA<br />
TECNOLOGIA ATÉ SUA<br />
VIABILIDADE<br />
COMERCIAL<br />
UTILIZAÇÃO<br />
COMERCIAL<br />
TRAJETÓRIA DE<br />
TECNOLOGIAS<br />
PREDOMINANTES<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 17<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 16
Revoluções não tão ágeis assim<br />
Desde seu início, a modelagem de sistemas computacionais tem se desenvolvido lado a lado com a própria trajetória evolutiva<br />
da configuração dos sistemas organizacionais. Uma é vetor transformacional da outra.<br />
Embora ainda haja surpresas com alguns avanços tecnológicos que tracionam de tempos em tempos, como também ocorre no<br />
caso específico do conhecimento científico, os sistemas computacionais evoluem ao longo de muitas décadas: desde o início da<br />
programação, em meados do século XIX, até o início da computação quântica, no início da década de 1980. Apenas um século<br />
separa os dois paradigmas!<br />
Da escalabilidade do alcance à otimização de recursos, as organizações usufruem muito dos impactos positivos dos novos sistemas<br />
computacionais, além da própria amplitude de integração de partes relacionando-se em torno de compartilhados processos<br />
de negócios, gerando ainda mais interações, aprendizagem e conexões.<br />
Há sempre um hiato temporal entre qualquer avanço tecnológico e sua incorporação efetiva pelas organizações. Além do<br />
desafio em substituir sistemas legados, destaca-se o próprio processo de aprendizado organizacional em mapear e testar<br />
tantas possibilidades.<br />
SISTEMAS<br />
MONOLÍTICOS<br />
SISTEMAS<br />
CLIENTE-SERVIDOR<br />
INTERFACES<br />
GRÁFICAS<br />
SISTEMAS INTEGRADOS<br />
VIA INTERNET<br />
SISTEMAS WEB<br />
APLICAÇÕES INTEGRADAS<br />
VIA PLATAFORMA<br />
Primeira onda de programação<br />
de apoio às atividades<br />
da operação de<br />
organizações.<br />
Com o surgimento das redes de computadores,<br />
os programas foram divididos<br />
em duas partes, uma para o lado servidor<br />
e outra para o lado cliente. Essa arquitetura<br />
permitiu o surgimento dos sistemas<br />
gerenciadores de bancos de dados.<br />
O aparecimento das interfaces gráficas<br />
veio acompanhado do movimento do<br />
paradigma de programação orientado a<br />
objetos. Isso permitiu a programação em<br />
camadas MVC Model-View-Controller.<br />
A internet permitiu que os sistemas pudessem<br />
ser integrados em escala mundial.<br />
Inicialmente ela foi vista como um<br />
importante meio de comunicações. Alguns<br />
sistemas começaram a implementar<br />
arquitetura SOA (Service Oriented<br />
Architecture) com recursos que poderiam<br />
ser reusados nas implementações<br />
dos sistemas dos servidores.<br />
O avanço da utilização da internet alinhado<br />
com a melhoria de performance permitiu<br />
que os sistemas fossem disponibilizados<br />
nos servidores e com interfaces<br />
padronizadas acessíveis nos navegadores<br />
de internet.<br />
O conjunto de microsserviços passa a ser<br />
usado em múltiplas aplicações. As aplicações<br />
passam a ser expressões de uso<br />
de uma plataforma integrada que já pode<br />
contar com recursos de inteligência artificial<br />
e análise de dados.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 19<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 18
Guerra das interfaces<br />
gráficas<br />
Catálogo de<br />
funcionalidades<br />
Sistemas monolíticos foram desenvolvidos<br />
em uma estrutura linear passo a<br />
passo. Eram compostos de algoritmos<br />
determinísticos, estrutura sequencial e<br />
armazenavam seus dados em repositórios<br />
de arquivos, entregues como sistemas<br />
do tipo caixa-preta. O foco era<br />
disponibilizar catálogo de funcionalidades<br />
em que usuários escolhiam as situações<br />
corretas para cada uma dessas<br />
funcionalidades. Eram autocontidos,<br />
possuíam baixa capacidade de integração<br />
com outros sistemas e dificilmente<br />
gerenciavam os processos de negócio.<br />
Em meados dos anos 1980-90, não havia<br />
grande preocupação em separar a<br />
modelagem dos sistemas no tripé Estrutura-Comportamento-Dinâmica,<br />
dada a simplicidade dos programas. A<br />
dinâmica nem era abordada pelo fato<br />
da certeza de que um programa de<br />
computador não seria nunca capaz de<br />
absorver um sistema organizacional.<br />
As automações eram pontuais e resolviam<br />
a operação de algumas atividades<br />
mais repetitivas, sem muita amplitude<br />
e integração no âmbito da gestão corporativa.<br />
O conhecimento dos sistemas<br />
era fragmentado entre diversos colaboradores.<br />
Os sistemas eram sequenciais<br />
e monousuários, normalmente desenvolvidos<br />
por um único programador.<br />
Arquitetura em redes<br />
O avanço das redes de computadores<br />
aumentou a relevância dos protocolos<br />
de comunicação e das topologias de<br />
rede. Modelos específicos começaram<br />
a ser utilizados para o desenvolvimento<br />
desses sistemas. Embora ainda monolíticos<br />
em sua essência, passaram a ser<br />
multiusuários, e outros profissionais<br />
passaram a integrar equipes de desenvolvimento.<br />
Surgiram os sistemas<br />
cliente-servidor e os primeiros sistemas<br />
de bancos de dados, compartilhados<br />
por um conjunto de usuários.<br />
A aceleração da tecnologia e da capacidade<br />
de processamento de dados tam-<br />
bém motivou outra inovação relevante:<br />
a aplicação dos princípios da mecânica<br />
na Física como analogia para o desenvolvimento<br />
de metodologias voltadas<br />
para orientação a objetos e arquiteturas<br />
baseadas em serviços (SOA). Assim,<br />
a dinâmica dos negócios começou<br />
a ser automatizada e, portanto, os processos<br />
passaram a ser controlados de<br />
maneira mais efetiva e otimizada.<br />
Além disso, surgiu um conjunto muito<br />
robusto de diagramas denominado<br />
Unified Modeling Language. Isso permitiu<br />
que programadores pudessem<br />
desenhar seus sistemas de forma<br />
gráfica para que pudessem ser analisados<br />
e discutidos com equipes de<br />
outras áreas. A principal característica<br />
desses sistemas foi a união entre<br />
dados e algoritmos <strong>–</strong> algo muito importante<br />
em função da integração entre<br />
funcionalidades e objetos no mundo<br />
real das organizações. Tornou-se<br />
possível integrar diferentes objetos<br />
de forma colaborativa.<br />
Foto: Getty Images<br />
Ícones, botões, caixas de texto. Uma<br />
grande revolução foi necessária na<br />
produção dos softwares quando o processo<br />
estritamente sequencial passou a<br />
operar em módulos de gestão de eventos,<br />
controlando cliques em cada parte<br />
da tela e ativando trechos diferentes<br />
do código, com maior confiabilidade<br />
e complexidade. Com isso, aplicações<br />
e sistemas tiveram que ser reescritos<br />
para esse novo modelo, ocasionando<br />
também a obsolescência de um volume<br />
imenso de softwares baseados no paradigma<br />
textual.<br />
Os modelos gráficos demandaram uma<br />
modelagem em camadas dada a complexidade<br />
no tratamento de cada uma<br />
delas. Isso também permitiu que profissionais<br />
se especializassem em cada<br />
uma dessas camadas. Na época, o mo-<br />
Mundo em teia,<br />
múltiplas telas<br />
A internet revolucionou a Computação.<br />
Os navegadores substituíram todas as<br />
interfaces de sistemas, unificando o<br />
ponto de interação dos usuários com<br />
uma padronização em larga escala. A<br />
integração de todas as redes, em que as<br />
empresas passaram a ter contato direto<br />
com todas as outras redes do mundo,<br />
trouxe novas oportunidades, mas também<br />
muitos problemas, principalmente<br />
à segurança da informação. A ampliação<br />
do número de usuários 24x7 exigiu<br />
outros recursos mais sofisticados<br />
para sustentação de desempenho computacional.<br />
Mais uma vez, foi preciso<br />
reescrever códigos e refazer sistemas.<br />
Uma segunda onda revolucionária surgiu<br />
com os aparelhos móveis conectados<br />
à internet, com telas menores e<br />
delo de camadas mais utilizado foi o<br />
Model, View, Controller (MVC), vigente<br />
até hoje, que separa o tratamento de<br />
dados, algoritmos e interação com usuários.<br />
Com essa separação, os modelos<br />
começaram a ser categorizados entre<br />
estruturais e comportamentais.<br />
Esses sistemas caracterizam-se por<br />
reúso, adaptabilidade, alto nível de integração<br />
e camadas interdependentes<br />
(como o modelo MVC), que organizam<br />
a dinâmica (algoritmos), a estrutura<br />
(base de dados) e a interação (interfaces<br />
com usuários). Essas camadas<br />
possuem independência entre si e podem<br />
ser desenvolvidas por equipes<br />
diferentes, inclusive designers. Surgiram<br />
os profissionais especialistas na<br />
produção de interfaces de altíssimo<br />
nível (UI e UX).<br />
grande capacidade de processamento.<br />
Os sistemas precisaram se adequar à<br />
multiplicidade de novas telas e, assim,<br />
a responsividade tornou-se crítica.<br />
Novas camadas, como rede e segurança,<br />
foram incluídas no desenvolvimento.<br />
Naquele momento, a modelagem<br />
de negócio tornou-se imprescindível,<br />
pois os grandes frameworks de gestão<br />
corporativa já possuíam a capacidade<br />
computacional para processamento de<br />
todas as informações circulantes em<br />
uma organização, como sistemas ERP<br />
e CRM. Apenas alguns anos depois, a<br />
computação em nuvem conseguiu otimizar<br />
recursos alocados em sofisticadas<br />
CPDs e datacenters proprietários,<br />
que migraram para sistemas compartilhados<br />
em nuvem.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 21<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 20
Conectados e<br />
inteligentes<br />
Faces da mesma (cripto)moeda<br />
Mais recentemente, inteligência artificial<br />
e business intelligence tornaram-se<br />
protagonistas na arena dos sistemas<br />
computacionais como expressões das<br />
capacidades dos atuais frameworks em<br />
disponibilizar recursos de processamento<br />
de dados, além da hospedagem.<br />
Novamente, o tripé Estrutura-Comportamento-Dinâmica<br />
direcionou o<br />
movimento: mapas de processos e<br />
modelos organizacionais interativos<br />
com usuários e outras organizações<br />
passam a ser críticos. Sistemas reativos<br />
e processuais foram se tornando<br />
mais ativos ao incorporarem gestão<br />
de dados, correlações e processamento.<br />
Tornaram-se capazes de encontrar<br />
oportunidades, resolver questões com-<br />
plexas, sistematizar atividades e automatizar<br />
rotinas inerentes ao cotidiano<br />
de seres humanos.<br />
A utilização de grandes plataformas de<br />
desenvolvimento viabilizou a atuação<br />
de vários perfis profissionais técnicos<br />
sem que precisassem conhecer minuciosamente<br />
cada um dos milhões de<br />
algoritmos presentes nos atuais sistemas<br />
computacionais corporativos. Foi<br />
a divisão do trabalho digital.<br />
Hoje, observamos a computação quântica<br />
como a nova fronteira. Tais sistemas<br />
possuem hardwares que romperam<br />
com a lógica binária para utilizar<br />
átomos de alumínio como base para o<br />
seu funcionamento.<br />
Como os sistemas computacionais podem inspirar a reconfiguração organizacional?<br />
No atual contexto dos biomas sintéticos baseados em grandes frameworks digitais,<br />
vale a pena refletir sobre a camada organizacional latente que está em xeque. Em<br />
vez do lócus estrutural interno, os novos arquétipos parecem sugerir a camada societária<br />
como protagonista da nova era contemporânea.<br />
As matrizes permanecem válidas como formas internas de organização, sendo refinadas<br />
para ser cada vez mais leves, empáticas e orgânicas. Enquanto isso, nas camadas<br />
societárias, as organizações estão cada vez mais caracterizadas como gestoras<br />
de portfólios distribuídos em biomas com infindáveis conexões e relações. O<br />
paradigma Decentralized Autonomous Organization (DAO) ainda parece ser muito<br />
hiperbólico, embora indique, tal como nos biomas sintéticos da computação, a direção<br />
do movimento de descentralização generalizada de atividades e recursos para<br />
organizações conectadas.<br />
PRINCIPAIS CONFIGURAÇÕES ORGANIZACIONAIS<br />
AO LONGO DO TEMPO<br />
Times<br />
Ágeis<br />
Adhocracia<br />
Holocracia<br />
Biomas<br />
Organizacionais<br />
Biomas sintéticos redefinindo paisagens<br />
Estruturas<br />
Verticais<br />
Estruturas<br />
Multidivisionais<br />
Estruturas<br />
Matriciais<br />
Iniciativas<br />
Experimentais (*)<br />
Na evolução contínua da computação, a Biologia tem se fundido cada vez mais com a Matemática e a Física. Os denominados<br />
biomas sistêmicos romperam fronteiras e se organizam de maneira diferenciada e abrangente: cada uma das partes comporta-se<br />
além de meras peças relacionadas, apresentando sua própria trajetória de concepção, evolução, amadurecimento e morte.<br />
Um bioma é muito interativo. De um lado, algoritmos especializados e altamente integráveis podem ser incorporados em soluções<br />
específicas das organizações. Do outro, grandes frameworks consolidados globalmente têm absorvido cada vez mais<br />
requisitos não funcionais a exemplo de armazenagem, desempenho, segurança e usabilidade, sem custos para baixo volume de<br />
transações. Assim, a maioria dos projetos empresariais pode se dedicar a requisitos funcionais.<br />
Quanto mais o sistema é operado, melhor será a maturidade de seus módulos. O aprendizado de máquina é um recurso da inteligência<br />
artificial que permite ao sistema aumentar o conhecimento do contexto de negócio ao qual está submetido. Tal evolução<br />
está menos relacionada a novas programações, e mais ao volume de dados acumulados ao longo do tempo, em conjunto com<br />
parâmetros e algoritmos estabelecidos para realizar tal busca por correlações existentes. Esse conjunto de informações, que<br />
originalmente era composto de números e textos, agora também engloba outros tipos de mídia, como processamento de imagens<br />
e de linguagem natural, aferição de emoções e sentimentos dos usuários, biometria, entre outros.<br />
As organizações são<br />
centralizadas em funções<br />
corporativas<br />
Programas<br />
Monolíticos<br />
Células de<br />
Produção<br />
Redes de<br />
Computadores<br />
Conglomerados<br />
Industriais<br />
As organizações relacionam<br />
suas funções corporativas<br />
com divisões focadas em<br />
regiões e segmentos<br />
Interfaces<br />
Gráficas<br />
Rede Mundial<br />
Internet<br />
Corporate<br />
Ventura<br />
Capital<br />
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS EM ESTRUTURA, COMPORTAMENTO E DINÂMICA<br />
PRINCIPAIS MOVIMENTOS DA COMPUTAÇÃO AO LONGO DO TEMPO<br />
As organizações mantêm funções<br />
corporativas cruzadas matricialmente<br />
com suas unidades de negócio,<br />
compartilhando responsabilidades<br />
Computação<br />
Móvel<br />
Sistemas em<br />
Nuvem<br />
Inteligência<br />
Artificial<br />
Decentralized Autonomous<br />
Organization (DAO)<br />
Várias proposições<br />
direcionadas para<br />
descentralização<br />
TEMPO<br />
Computação<br />
Quântica<br />
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS COMPUTACIONAIS EM ESTRUTURA, COMPORTAMENTO E DINÂMICA<br />
Os modelos utilizados para<br />
construção de softwares<br />
possuíam elementos estruturais e<br />
comportamentais misturados<br />
Utilização de modelos em<br />
camadas e com a separação<br />
de modelos estruturais e<br />
comportamentais<br />
Foco essencial na modelagem<br />
dinâmica dos processos de negócio<br />
e suas interações com outros<br />
elementos externos<br />
Admirável<br />
mundo novo<br />
(*) Diferentes estruturas organizacionais em fase de experimentação, ainda em fase inclusiva<br />
A transformação digital (high-tech) convive com a humanização das relações<br />
(high-touch) nos ambientes de trabalho. A transição energética tem sido impulsionada<br />
por um protagonismo colaborativo multistakeholder. A abundância<br />
de capital e tecnologia redefine preços, premissas e perspectivas. Rupturas,<br />
experimentações e polissemia.<br />
A reconfiguração das organizações não encontrará fórmulas de prateleira. Ao menos<br />
por enquanto. Mas isso não deveria impedir o movimento. As organizações de<br />
vanguarda do futuro não serão apenas operadoras de processos e recursos, mas<br />
sim de movimentos em redes, portfólios e biomas. Os novos paradigmas organizacionais<br />
já surgiram... apenas precisamos ajustar as nossas lentes.<br />
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Foto: Getty Images
[CRÔNICAS E TAL]<br />
amar é...<br />
Em 1975, Kim e Roberto planejavam ter o terceiro filho quando ele descobriu um<br />
câncer de testículo. Faleceu um ano depois, mas, assim que recebeu o diagnóstico,<br />
decidiu congelar o sêmen. A perda do marido não impediu Kim de dar continuidade<br />
ao projeto do novo bebê e, 16 meses depois da partida de Roberto, Stefano e Dario<br />
ganharam a companhia do caçula, Milo.<br />
A inseminação artificial bem-sucedida causou polêmica <strong>–</strong> e ainda nem existiam as<br />
redes sociais! Enquanto uns aplaudiam a coragem de Kim e consideravam o feito<br />
um milagre (lembre-se de que estamos falando da ciência dos anos de 1970), outros<br />
chamavam o ato de heresia. À época, a Igreja Católica comentou, em nota, que o<br />
caso era “uma afronta à moral do Evangelho”.<br />
Em resposta às críticas, Kim fez o seguinte pronunciamento: “Milo está aqui por<br />
causa do amor entre sua mãe e seu pai. Se isso for julgado como errado, o mundo<br />
perdeu o senso de proporção. Nós tentamos ter um bebê por inseminação artificial<br />
antes de o Roberto morrer. Se tivéssemos obtido sucesso, ele teria sido concebido<br />
ainda durante o matrimônio. Que diferença faz se a concepção ocorreu após a<br />
morte de Roberto?”<br />
Livro publicado em<br />
31 de maio de 1971<br />
Vestígios do romantismo<br />
Quem não se lembra com ternura do casal fofo da série<br />
Amar é..., febre entre os românticos na década de 1980? Os<br />
peladinhos começaram a explicar ao mundo o que é o amor<br />
em 5 de janeiro de 1970, estreando nas páginas do jornal Los<br />
Angeles Times. Logo as tirinhas ganharam o mundo, e chegaram<br />
a ser publicadas em mais de 60 países.<br />
Os cartuns de Amar é… embalaram um romance digno de<br />
cinema, e ainda hoje têm o poder de desnudar não só os personagens<br />
mas também questões contemporâneas de relevância<br />
impressionante.<br />
A neozelandesa Kim Grove começou a desenhar os personagens<br />
ao lado de frases românticas sem nenhuma pretensão<br />
comercial. Eram recadinhos estrategicamente escondidos<br />
para que seu então namorado, Roberto Casali, os encontrasse<br />
nos momentos mais inusitados. O romance deu certo, e os<br />
dois se casaram e tiveram dois filhos. Final feliz? Senta que<br />
lá vem história!<br />
Kim Grove com Stefano, Dario e Milo<br />
Primeiro cartão-postal enviado a Roberto<br />
Kim Grove e Roberto Casali<br />
E aí, caro leitor, faz diferença?<br />
Quase cinco décadas depois, nossa<br />
agenda não mudou muito. Inseminações<br />
artificiais que coroam o amor ainda<br />
são alvos de críticas mundo afora,<br />
agora em outros contextos, claro! A<br />
discussão sobre casais homoafetivos<br />
gerarem crianças, por exemplo, tira o<br />
sono de muita gente.<br />
A sociedade não parece dar sinais de<br />
uma virada de chave na mentalidade,<br />
mesmo com a modernidade batendo à<br />
nossa porta há tantos anos. E as tirinhas<br />
de Kim estão apenas no meio de<br />
um longo caminho que começou com<br />
outro romantismo <strong>–</strong> não o dos peladinhos,<br />
mas sim o movimento filosófico-cultural<br />
surgido no final do século<br />
XVIII. Aqueles românticos se incomodavam<br />
com a modernidade. Criticavam<br />
a destruição dos vínculos familiares e<br />
achavam que nada mais estava no lugar<br />
certo. Pregavam que tinham que<br />
ser fiéis ao que sentiam, e não ao que<br />
a sociedade ditava. Morrer de amor era<br />
sinônimo de autenticidade. Viviam em<br />
suas “bolhas”.<br />
Esse mal-estar romântico ainda dá as<br />
caras em pleno século XXI, agora com<br />
roupas diferentes. E acrescido de um<br />
celular com internet. Portanto, qualquer<br />
semelhança com os dias de hoje<br />
pode não ser mera coincidência.<br />
Sim, os românticos do século XVIII foram<br />
rebeldes e desbravaram fronteiras<br />
da sociedade, que, no período pós-Revolução<br />
Industrial, era muito careta<br />
e covarde (viva Cazuza!). Mas seria<br />
possível dizer que alguns sintomas românticos<br />
persistiram, agora com tintas<br />
conservadoras? O ressentimento com<br />
aspectos da modernidade, tão presente<br />
em parte da sociedade de hoje,<br />
gera saudosismo e acaba por produzir<br />
mal-estar. No entanto, diferentemente<br />
dos românticos de outrora, não estamos<br />
nos rebelando contra um modelo<br />
burguês de sociedade, apenas nos tornando<br />
saudosistas contumazes.<br />
Estamos andando para trás? Ou em<br />
círculos? Presenciamos rupturas importantes,<br />
mas o ritmo da transição<br />
segue preguiçoso, lutando contra uma<br />
onda conservadora que parece resistir<br />
ao inevitável. A pós-modernidade<br />
nos chama diariamente, mas será<br />
que teremos coragem para mergulhar<br />
na desorganização subjetiva do<br />
mundo de hoje?<br />
Os românticos do século XVIII acertaram<br />
no diagnóstico: a modernização de<br />
fato causou perda de vínculos, destruição<br />
de instituições, liberdade que não<br />
liberta e felicidade que não faz sorrir.<br />
Mas uma coisa é certa: teremos que solucionar<br />
essa charada, pois retroceder<br />
não é uma opção. Quem dera os peladinhos<br />
de Kim Grove pudessem nos ajudar<br />
a encontrar uma saída. Amar é…?<br />
Alessandra Lotufo é diretora de<br />
comunicação e inovação da Bossa.etc<br />
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[GENTE COM BOSSA]<br />
A bossa<br />
dos bambas<br />
A revista Et cetera chega à sua décima edição promovendo<br />
um desfile de camisas <strong>10</strong>. E o país abençoado por Deus não<br />
produz talentos apenas no futebol. Da bossa brasileira saem<br />
notáveis nas artes cênicas, na literatura, na música, nas artes<br />
plásticas. Nos esportes, individuais e coletivos. Nas ciências<br />
exatas, humanas e biológicas. Somos um povo que esbanja<br />
versatilidade, espírito inovador e resiliência, a tríade do sucesso.<br />
A capa da décima edição estampa, claro, um ator nota<br />
<strong>10</strong>. Antonio Fagundes abusa da versatilidade ao transitar do<br />
drama à comédia, de Macbeth a Rei do Gado, do caminhoneiro<br />
Pedro a... Deus. No teatro, assume também o papel de<br />
produtor, bancando os espetáculos que encena. O ator de 73<br />
anos ainda leva o ecletismo para fora dos palcos e das telas<br />
com seu amor declarado pelos livros e pelos videogames.<br />
Ao longo de seis décadas de carreira, a médica Angelita<br />
Habr-Gama abriu muitas portas. Foi a primeira mulher cirurgiã<br />
do Hospital das Clínicas e a primeira a chefiar o departamento<br />
de cirurgia da Faculdade de Medicina na USP. Criou<br />
um protocolo de tratamento para o câncer do reto usado hoje<br />
no mundo todo. Mas a realização profissional veio da união<br />
da medicina com a docência. “Sou apaixonada por dar aulas.<br />
Gosto de transmitir meus conhecimentos, não guardo o que<br />
aprendo só pra mim”, diz. Prestes a completar 90 anos, mantém<br />
uma rotina de cirurgias, atendimentos e participação em<br />
congressos com a vitalidade dos alunos e sobrinhos que a<br />
cercam. “A convivência com os jovens nos rejuvenesce.”<br />
Thalita Rebouças também aposta no diálogo com os jovens.<br />
Com mais de 2 milhões de livros vendidos, a escritora de 48<br />
anos já dava passos firmes no jornalismo quando decidiu arriscar<br />
uma virada na carreira em busca do sonho. Com suas<br />
histórias povoadas por personagens que ressoam os típicos<br />
problemas de seus leitores, Thalita estabeleceu uma forte co-<br />
nexão com o público adolescente. “Eu não julgo, não dou lição<br />
de moral. Eles se veem nas histórias”, explica uma das mais<br />
bem-sucedidas escritoras brasileiras.<br />
O muralista Eduardo Kobra, que manifestava a verve artística<br />
pichando muros da periferia, passou a adolescência<br />
sob constantes olhares julgadores. Era visto como o garoto<br />
perdido, mas encontrou seu caminho no grafite e se tornou<br />
um ícone mundial da street art. Depois de anos vandalizando<br />
construções urbanas, passou a defender a preservação do<br />
patrimônio histórico, colecionando livros de história antiga<br />
de São Paulo e de outras cidades, e concretizou sua arte com<br />
propósito ao fundar o Instituto Kobra, entidade que investe na<br />
cultura como instrumento de transformação social de adolescentes<br />
e jovens. Hoje, ele prega que “a arte pode servir como<br />
um antídoto contra muitos males”.<br />
À seção Gente com Bossa juntam-se o ator Timothy Wilson e o<br />
violonista Guido Sant’Anna. Diagnosticado com autismo, Timothy<br />
estreou na carreira artística com uma interpretação<br />
premiada: saiu do festival de cinema do Rio com o troféu de<br />
melhor ator coadjuvante por sua atuação como o personagem<br />
Ezequiel no filme Fogaréu. Aos 17 anos, Guido Sant’Anna<br />
gravou seu nome na história da música clássica ao vencer o<br />
prestigiado Concurso Internacional de Violino Fritz Kreisler<br />
com uma apresentação impecável do Concerto para Violino<br />
em Ré Maior, op. 77, de Johannes Brahms. Abrindo a seção, o<br />
ex-goleiro Aranha, que traz no currículo o reconhecimento<br />
como melhor goleiro do Campeonato Paulista em 2008 e o<br />
título da Copa Libertadores da América de 2011, fala sobre<br />
racismo e saúde mental, temas atualíssimos dentro e fora dos<br />
esportes. Como se vê, uma seleção de craques para celebrar<br />
a edição <strong>10</strong>.<br />
Foto: Getty Images<br />
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[Q&A ETC.]<br />
Quando você era jogador, como lidava com a questão da saúde mental?<br />
Olha, no futebol esse assunto é um tabu enorme. Todo jogador tem medo de falar<br />
sobre saúde mental e acabar sendo tachado como “pipoqueiro”, “amarelão”. Mas a<br />
pressão era enorme e vinha de muitos lados. Uma única partida ruim, ou até mesmo<br />
um único lance infeliz, pode arruinar uma carreira. Imagine essa situação martelando<br />
na cabeça de um jovem de origem pobre, sem muita instrução e preparo<br />
psicológico. O medo é constante. E todo mundo falha, somos humanos. Eu sempre<br />
procurei me cuidar, conversava bastante com psicólogos, tentava separar o futebol<br />
da vida pessoal, mas muitas vezes não dava.<br />
Como a constante pressão afeta os atletas?<br />
Desde o primeiro dia que um garoto entra nas categorias de base de um clube, ele<br />
sofre pressão. Jogadores de futebol são, em sua maioria, de origem humilde, e entrar<br />
em um clube grande representa uma oportunidade única. É como ganhar na<br />
loteria. Mas há a pressão para se manter no clube, para jogar bem, para virar profissional.<br />
Depois, quando o jogador já é profissional, o nível de cobrança aumenta<br />
muito. Poucos se abrem sobre isso, mas, muitas vezes, a maior pressão que os jogadores<br />
sofrem vem da própria família. Comprar casa para a mãe, ajudar os irmãos, os<br />
parentes. Isso sem falar na cobrança por resultados <strong>–</strong> do clube, da torcida.<br />
Você é um ex-atleta que se<br />
tornou escritor e milita por uma<br />
sociedade mais justa. Como vê<br />
seu papel hoje?<br />
Eu sigo meu trabalho de conscientizar<br />
os mais jovens. Meus livros são para jovens<br />
e crianças aprenderem um pouco<br />
de história de maneira honesta e saudável.<br />
Brasil Tumbeiro é sobre a escravidão<br />
e grandes homens negros, como<br />
Teodoro Sampaio e os irmãos André e<br />
Antônio Rebouças. Já Patrocínio é sobre<br />
o jornalista, político e abolicionista<br />
José do Patrocínio. Os jovens negros<br />
precisam de referências, personagens<br />
históricos, precisam ver que podem ser<br />
outra coisa além de jogador de futebol.<br />
Agora que você se aposentou do<br />
esporte profissional, como lida<br />
com sua saúde mental?<br />
“O futebol reflete<br />
a sociedade”<br />
Foto: reprodução Instagram<br />
Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido como Aranha, foi considerado o melhor<br />
goleiro do Campeonato Paulista em 2008 e integrava a equipe santista que venceu a<br />
Copa Libertadores da América em 2011. Além de seus títulos e grandes defesas, sua<br />
carreira no futebol também ficou marcada por um caso de racismo que ganhou repercussão<br />
nacional: em 2014, durante uma partida entre Grêmio e Santos, realizada<br />
em Porto Alegre, Aranha foi xingado de “macaco” por torcedores do time gaúcho.<br />
Nesta entrevista à Et cetera, Aranha, que hoje é escritor, palestrante e ativista, fala<br />
sobre a importância da saúde mental, tanto no esporte como na sociedade, e como o<br />
racismo afeta o lado psicológico das vítimas de preconceito.<br />
Você disse que conversava com<br />
psicólogos. Como era a relação<br />
dos psicólogos dos clubes com<br />
você e os demais jogadores?<br />
Em minha carreira, eu atravessei três<br />
gerações. Quando comecei, convivi<br />
com os mais velhos, que eram meus<br />
ídolos, depois tinha o pessoal da minha<br />
geração, e, no final da carreira, joguei<br />
com a garotada que estava subindo<br />
para o profissional. Essa relação com os<br />
psicólogos mudou muito de uma geração<br />
para outra. No início, lá na década<br />
de 1990, o pessoal mais velho não gostava.<br />
Tinha o receio de ser visto como<br />
“mentalmente fraco”, “covarde”, essas<br />
coisas. Hoje existe um acompanhamento<br />
psicológico desde a base. Muitos<br />
jogadores que foram formados assim<br />
já reconhecem a importância de cuidar<br />
da saúde mental, respeitam o trabalho<br />
psicológico dos clubes.<br />
Sua carreira ficou marcada<br />
pelo episódio do racismo, em<br />
2014. Como você lidou com<br />
isso na época?<br />
Desde os 14 anos eu já estudo e milito<br />
pelo movimento negro, contra o racismo<br />
na sociedade. Esse episódio acabou<br />
revelando esse meu lado que pouca<br />
gente conhecia. Mas é claro que fiquei<br />
chateado, uma mistura de tristeza e<br />
decepção. Na época, tive muito apoio,<br />
até torcedores de outros clubes gritavam<br />
meu nome para me apoiar. Acabei<br />
usando a experiência para crescer<br />
como jogador e como pessoa negra. Saí<br />
fortalecido, energizado.<br />
As ofensas racistas ainda são<br />
comuns no futebol. Como<br />
isso afeta a saúde mental<br />
dos jogadores?<br />
É horrível, afeta muito. Quem diz que<br />
não se abala com isso está mentindo.<br />
Todo mundo fica triste, com a cabeça<br />
quente, perde o sono, a concentração.<br />
Mas tem um problema dos próprios<br />
jogadores. Não emitem opinião sobre<br />
racismo, principalmente os mais famosos<br />
e influentes. Eu entendo um pouco,<br />
pois já foi uma batalha grande para os<br />
caras conquistarem o que eles conseguiram,<br />
e eles têm medo de perder<br />
isso. Eu, com minha militância, fiquei<br />
marcado como um “jogador problemático”.<br />
Os jogadores têm medo de falar<br />
para não prejudicar a carreira, mas isso<br />
é um erro.<br />
Ter parado de jogar profissionalmente<br />
me trouxe benefícios enormes. Foi<br />
quase automático. Hoje sou uma pessoa<br />
mais tranquila, serena mesmo. Não<br />
preciso mais conviver com tensões,<br />
cobranças injustas. Torcedor brasileiro<br />
ama jogador quando ganha, mas odeia<br />
quando perde. Xingam, humilham,<br />
ameaçam. Com as redes sociais, esse<br />
assédio ficou bem visível. Foi ótimo me<br />
afastar disso. Tem uma cultura do ódio<br />
enorme no futebol, muita violência no<br />
estádio. Uma criança que for a um estádio<br />
vai aprender injúria racial, cantos<br />
homofóbicos, palavrões, baixarias contra<br />
mulheres, vai ver brigas de torcidas,<br />
objetos jogados no campo... Minha<br />
filha aprendeu palavrões no estádio.<br />
Como mudar essa cultura<br />
do ódio?<br />
O futebol reflete a sociedade, não tem<br />
jeito. Se na sociedade tem ódio, racismo,<br />
violência e falta de respeito, no<br />
futebol vai ter tudo isso também. A<br />
mudança que precisa ser feita é na<br />
sociedade, com mais educação, mais<br />
oportunidades, mais igualdade. E é claro<br />
que uma melhora impactaria a saúde<br />
mental de todo mundo, da torcida e<br />
dos jogadores. Se a sociedade melhorar,<br />
o futebol melhora junto.<br />
Entrevista concedida a Diego Braga Norte<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 29<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 28
[COM A PALAVRA…]<br />
“Não tenham medo de ser<br />
vocês mesmos”<br />
O ator autista Timothy Wilson guarda na mente uma profusão de nomes<br />
de atores, diretores, filmes e séries graças à sua excelente memória. Ele<br />
estreou na carreira em grande estilo, interpretando Ezequiel no filme<br />
Fogaréu, de Flávia Neves. Sua atuação segura e comovente rendeu-lhe<br />
o prêmio de melhor ator coadjuvante no último Festival do Rio. Neste<br />
depoimento à Et cetera, Tim, como prefere ser chamado, fala sobre<br />
a relação com o cinema, os bastidores das gravações e a vida no<br />
espectro do autismo.<br />
Nasci em Nova York por acaso. Meus<br />
pais estavam trabalhando lá, e acabei<br />
ficando na cidade até meus 12 anos.<br />
Em 2008, mudei com minha mãe para<br />
o Rio de Janeiro. Ela me criou assistindo<br />
a séries e filmes, desde muito<br />
novo. Quando eu era adolescente, já<br />
tinha um grande interesse pelo cinema<br />
e pela televisão, mas não pensava<br />
em ser ator. Assistia a muitas comédias<br />
e seriados cômicos, meu sonho<br />
era ser comediante.<br />
Aqui no Rio eu completei o ensino médio<br />
junto com um curso técnico em hotelaria.<br />
Como sou bilíngue, fui chamado<br />
para trabalhar no Hilton, mas não<br />
deu certo porque era na Barra da Tijuca,<br />
muito longe para mim. Não gosto de<br />
andar sozinho em lugares que não conheço,<br />
fico com medo. Moro no Catete<br />
com a minha avó, então sei andar por<br />
aqui e no Flamengo. Sei onde estão os<br />
locais que frequento, a loja que vende<br />
meu biscoito preferido, restaurantes,<br />
cinema. Por aqui, saio e volto para casa<br />
sem problemas.<br />
coisas, é uma das características do<br />
meu autismo. Fiz o teste e ela me disse<br />
que o papel era meu! Virei ator no<br />
meu primeiro teste.<br />
Durante as gravações, no interior de<br />
Goiás, me senti extremamente acolhido.<br />
Todos me ajudaram porque eu não<br />
consigo andar sozinho numa cidade<br />
nova, me perco. E também sou muito<br />
branquelo, então eles ficavam de olho<br />
em mim para eu não me queimar porque<br />
estava muito calor lá. O pessoal da<br />
produção fazia chá-mate para mim.<br />
Aqui no Rio, tomo muito chá-mate gelado,<br />
uma garrafa grande por dia, eu<br />
adoro. Na hora das gravações, a diretora<br />
ou seu marido sempre me ajudavam<br />
a olhar para os pontos certos. Isso foi<br />
um desafio pra mim porque tenho dificuldade<br />
em manter contato visual, mas<br />
deu tudo certo. Muita gente me pergunta<br />
qual foi minha inspiração para<br />
fazer o Ezequiel, mas não consigo dar<br />
a resposta, não consigo identificar uma<br />
inspiração. Falam que ele faz piadinhas<br />
no filme, mas eu o acho sério.<br />
devo ficar quieto.<br />
Eu nem sabia que o Festival de Cinema<br />
do Rio tinha prêmio, pensava que<br />
fosse apenas uma mostra com vários<br />
filmes. No dia da festa da premiação,<br />
quando anunciaram meu nome e me<br />
chamaram no palco, foi uma surpresa<br />
enorme. Logo no meu primeiro filme,<br />
ganhei um prêmio. Nem acreditava! Foi<br />
o único prêmio que o nosso filme recebeu,<br />
foi uma honra. Depois me perguntaram<br />
se eu tinha ensaiado o discurso.<br />
Como iria ensaiar se eu nem sabia que<br />
ia ganhar? Foi tudo improviso.<br />
Acho que esse prêmio abre oportunidades<br />
para outros autistas. Não tem<br />
atores autistas. Nem fazendo eles mesmos,<br />
personagens autistas. É sempre<br />
um ator fingindo ser autista, como Tom<br />
Hanks, em Forrest Gump, que, apesar<br />
disso, é meu filme preferido. São vários<br />
momentos importantes da história<br />
vistos por um autista. Mostra que os<br />
autistas podem participar de grandes<br />
momentos, podem fazer parte da história<br />
também.<br />
Ao lado de Samantha Schmütz, recebendo o prêmio no Festival do Rio 2022 | foto: Eny Miranda/Reprodução<br />
Não sei direito quando me descobri<br />
como autista. Fiz uns testes quando<br />
era criança, só que eles não indicaram<br />
diagnóstico de autismo, era outra coisa.<br />
Acho que foi na adolescência que<br />
me deram um laudo informando que<br />
eu era autista. Esse papel me serviu<br />
depois, na época que tive de me alistar<br />
no Exército. O laudo acabou me<br />
dispensando, e foi bom, eu não queria<br />
servir. Eu não ia sobreviver lá.<br />
Um dia, por acaso, minha avó leu no<br />
jornal um anúncio sobre uma oficina de<br />
teatro para autistas. Eu me inscrevi e<br />
comecei a frequentar o curso. A Flávia<br />
[Neves, diretora do longa Fogaréu] foi um<br />
dia assistir à oficina e me viu improvisando<br />
piadas, fazendo trocadilhos.<br />
Ela gostou do meu humor e me convidou<br />
para fazer um teste. Na terceira<br />
vez que li o texto do teste, já decorei.<br />
Tenho muita facilidade para decorar<br />
No dia da estreia do filme no festival<br />
[de cinema do Rio de Janeiro, em outubro], a<br />
Flávia me deu os convites e fiz questão<br />
de chamar uma amiga minha, a Bel. Eu<br />
queria muito que minha melhor amiga<br />
estivesse presente. Ela é filha de uma<br />
amiga da minha mãe, nos conhecemos<br />
desde a infância, e ela é autista como<br />
eu. Minha mãe e minha avó já viram o<br />
filme, mas meu pai ainda não. Espero<br />
que passe nos Estados Unidos para<br />
ele e minha irmã poderem ver também.<br />
Meus amigos de lá ficaram felizes<br />
quando viram nas redes sociais que<br />
me tornei ator, mandaram mensagens<br />
bacanas, mas não consigo me comunicar<br />
por Facebook. Não sou muito bom<br />
de puxar assunto a distância, só consigo<br />
conversar pessoalmente. Sou o<br />
contrário do que as pessoas acham do<br />
autista, sou muito social, consigo interagir<br />
bem. Mas tenho que prestar atenção<br />
porque falo muito, não sei quando<br />
O prêmio mudou minha vida. Faço<br />
entrevistas toda semana, recebo convites.<br />
Fui até chamado para fazer um<br />
cadastro e um teste na Globo. Não tenho<br />
certeza se vou trabalhar lá, mas<br />
pode acontecer. Uma produtora entrou<br />
em contato comigo e mandou um texto<br />
para eu fazer um teste. Li três ou quatro<br />
vezes e já decorei. Tenho sorte de<br />
ter uma memória boa, muitos autistas<br />
têm facilidade em memorizar muitas<br />
coisas, essa é outra vantagem do autismo.<br />
Minha avó me ajuda, ela imprime<br />
os textos com letras grandes para facilitar<br />
para mim.<br />
Sei que é um privilégio poder realizar<br />
meu sonho, sei o que isso representa<br />
para autistas como eu. Gostaria de finalizar<br />
deixando um recado para outros<br />
autistas: não tenham medo de ser<br />
vocês mesmos. Não tentem mudar por<br />
causa dos outros, sejam apenas vocês.<br />
Depoimento dado a Diego Braga Norte<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 31<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 30
[GUARDE ESTE NOME]<br />
Guido Sant’Anna:<br />
o melhor violinista do mundo<br />
Por Sérgio Martins<br />
Foto: Caue Diniz<br />
No início de 2013, Reynaldo Boury, diretor<br />
do SBT, pediu ao amigo e maestro<br />
Julio Medaglia que reunisse um time<br />
de pequenos instrumentistas eruditos<br />
para a gravação de uma cena da novela<br />
Carrossel. Medaglia garimpou entre os<br />
alunos da violinista Elisa Fukuda e se<br />
encantou com um instrumentista chamado<br />
Guido Sant’Anna. “Ele puxava o<br />
arco do violino com segurança e tinha<br />
um som belíssimo. Era um talento explícito”,<br />
lembra o regente, que passou<br />
por movimentos como a Tropicália e<br />
tem obras gravadas pela Filarmônica<br />
de Berlim. Em setembro deste ano, o jovem<br />
de 17 anos alcançou um feito épico:<br />
foi o vencedor do prestigiado Concurso<br />
Internacional de Violino Fritz Kreisler,<br />
cuja etapa final foi realizada na Sala<br />
Dourada da Musikverein, uma das<br />
mais históricas casas de concerto de<br />
Viena, na Áustria. Guido, que executou<br />
o Concerto para Violino em Ré Maior, op.<br />
77, de Johannes Brahms, recebeu um<br />
prêmio de 20 mil euros, um disco a ser<br />
lançado pelo selo Naxos e uma série de<br />
concertos como solista, entre eles uma<br />
turnê pela Ásia em <strong>2023</strong>. “O prêmio<br />
irá ajudar na manutenção da minha<br />
carreira”, diz.<br />
Guido Sant’Anna foi criado em Parelheiros,<br />
na zona sul de São Paulo. Caçula<br />
dos três filhos de um funcionário<br />
público e uma dona de casa, ele se encantou<br />
pelo violino ao assistir ao irmão<br />
mais velho praticar o instrumento.<br />
“Pensei que ele podia ter escolhido um<br />
pandeiro, um chocalho... Violino é tão<br />
caro”, diz Silvano Sant’Anna, pai do rapaz.<br />
Coube ao avô paterno de Guido o<br />
presentear com seu primeiro violino.<br />
O jovem prodígio tinha 9 anos quando<br />
passou a tomar aulas com Elisa Fukuda.<br />
“Eu normalmente não trabalho com<br />
alunos tão pequenos, mas ele se mostrou<br />
precoce demais para a idade que<br />
tinha”, diz ela. “Guido tem a maturidade<br />
de um veterano de 30 anos.”<br />
O sucesso de Guido Sant’Anna é um<br />
fato isolado num país em que a educação<br />
musical se mostra precária. O violinista,<br />
assim como o pianista Cristian<br />
Budu (vencedor do Concurso de Piano<br />
Clara Haskil), do também violinista<br />
Luiz Filipe Coelho (atual integrante da<br />
prestigiada Filarmônica de Berlim) e<br />
até mesmo do inigualável Nelson Freire<br />
(1944-2021), aliou talento, trabalho<br />
e força de vontade para vencer muitas<br />
dificuldades que surgiram no caminho.<br />
“O Brasil não possui escolas para acolher<br />
jovens como Guido. Precisamos<br />
de mais recursos para oferecer prédios<br />
melhores, com mais infraestrutura,<br />
instrumentos de qualidade, salários<br />
melhores para atrair grandes professores”,<br />
diz Claudia Toni, especialista em<br />
políticas culturais. “Falta um mercado<br />
estruturado para a música clássica,<br />
cujo coração seja a música de câmara,<br />
e não a sinfônica. Temos poucas séries<br />
de concertos e excesso de música popular<br />
de péssima qualidade.”<br />
Quando criança, Guido Sant’Anna<br />
participou do Prelúdio, programa da<br />
TV Cultura dedicado à revelação de<br />
jovens talentos eruditos. Ficou entre<br />
os finalistas. No Brasil, sagrou-se vencedor<br />
do concurso Jovens Solistas, da<br />
Orquestra Sinfônica do Estado de São<br />
Paulo (Osesp). Elisa Fukuda encorajou<br />
o aluno a participar de pelejas internacionais,<br />
e, mais do que incentivo, ela<br />
emprestou também ao jovem solista<br />
um violino profissional para que seu<br />
pupilo participasse da Competição Internacional<br />
Yehudi Menuhin, em 2020.<br />
Guido chegou aos estágios finais do<br />
concurso, mas acabou perdendo para<br />
candidatos que tinham instrumentos<br />
de melhor qualidade. Encantada com a<br />
destreza do jovem, a Fundação Yehudi<br />
Menuhin lhe cedeu temporariamente<br />
um violino Vincenzo Jorio do século<br />
XIX. Para a final do Fritz Kreisler,<br />
contudo, ele tomou emprestado um<br />
Stradivarius, Ferrari do instrumento.<br />
“Eu não precisei tocar tão forte, principalmente<br />
nos momentos mais suaves”,<br />
comenta Guido.<br />
“Talento é importante, mas tem muitos<br />
por aí. O caso do Guido tem uma questão<br />
de talento, mas ele estuda e estuda<br />
e estuda”, diz Frederico Lohmann,<br />
superintendente da Fundação Cultura<br />
Artística. Dez anos atrás, a entidade<br />
encampou o Programa de Bolsa de Estudos<br />
Magda Tagliaferro, que presta<br />
assistência a jovens talentos eruditos.<br />
Guido não apenas tem aulas com Elisa<br />
Fukuda como estuda línguas e recebe<br />
ajuda em passagens e hospedagens.<br />
Outra preocupação do Cultura Artística<br />
está justamente na manutenção da<br />
carreira dos bolsistas. “A nossa intenção<br />
é que ele aprimore os estudos no<br />
exterior”, completa Lohmann, que vê<br />
na boa estrutura familiar do violinista<br />
uma vantagem na carreira. “Ele tem<br />
uma cabeça boa.”<br />
Guido Sant’Anna é fã de violinistas<br />
mais tradicionais, como o israelense<br />
Isaac Stern e o russo David Oistrakh.<br />
Em agosto passado, foi assistir ao<br />
americano Joshua Bell tocar seu violino<br />
e conduzir a tradicional orquestra<br />
St. Martin In-the-Fields em São Paulo.<br />
Na ocasião, tirou uma foto ao lado de<br />
Bell, um superstar do violino. “Quando<br />
Guido venceu o concurso, avisei o<br />
Joshua que hoje é ele quem tirou uma<br />
foto ao lado de Guido Sant’Anna”, brinca<br />
Lohmann, do Cultura Artística. O<br />
prêmio é uma etapa importante de um<br />
longo caminho. Mas Guido tem mostrado<br />
personalidade para ir da jovem<br />
promessa ao solista consagrado. No<br />
final de outubro, substituiu o alemão<br />
Christian Tetzlaff nos recitais da Filarmônica<br />
de Câmara Alemã de Bremen<br />
no Brasil. No repertório, o dificílimo<br />
Concerto para Violino em Ré Maior, op.<br />
77, de Brahms, a mesma peça que lhe<br />
garantiu a vitória no Concurso Internacional<br />
de Violino Fritz Kreisler.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 33<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 32
Nome: Antonio José da Silva Fagundes Filho<br />
Idade: 73 anos<br />
Profissão: ator<br />
Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />
Um ator<br />
divino<br />
Por Sérgio Martins<br />
Antonio Fagundes transita do drama<br />
à comédia com a mesma naturalidade<br />
com que interpreta mocinhos, vilões e<br />
Deus. Sua versatilidade manifesta-se<br />
também fora de cena: é leitor voraz e<br />
fã de videogame<br />
Foto: Daniel Teixeira /Estadão Conteúdo<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 35<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 34
C<br />
Bastidores do filme Deus Ainda É Brasileiro | foto: reprodução Instagram<br />
omo é ser Deus? A primeira pergunta da equipe da Et cetera pega Antonio<br />
Fagundes de surpresa, mas é oportuna. Vinte anos depois do lançamento de<br />
Deus É Brasileiro, o ator volta a encarar o papel do Criador na continuação do<br />
filme do cineasta Cacá Diegues. Faz pelo menos cinco décadas que Antonio José da<br />
Silva Fagundes Filho, nascido há 73 anos na cidade do Rio de Janeiro, está presente<br />
no cotidiano dos brasileiros interpretando, além de entidades divinas, os mais variados<br />
perfis de mortais, do mais ético dos mocinhos a vilões que o público ama odiar.<br />
“O fazer teatral é<br />
uma jornada de<br />
afeto e encontro”<br />
<strong>–</strong> Bruno Fagundes<br />
Trabalho em família<br />
Baixa Terapia, de 2018, é a mais recente<br />
incursão de Fagundes pelo tablado. O<br />
espetáculo, que foi encenado 490 vezes<br />
desde a estreia e chega aos palcos<br />
do Rio em janeiro de <strong>2023</strong>, amplifica<br />
a ideia do teatro em família. Fagundes<br />
atua ao lado de Alexandra Martins, sua<br />
atual mulher, e da ex Mara Carvalho,<br />
mãe de Bruno. A tradução é de Clarisse<br />
Abujamra, primeira esposa do ator.<br />
E o próprio Bruno participou da temporada<br />
inicial, mas largou o elenco em<br />
função de outros compromissos profissionais<br />
<strong>–</strong> foi substituído por Guilherme<br />
Magon. Baixa Terapia é um texto do<br />
argentino Matias del Federico que fala<br />
de três casais que não se conhecem e<br />
que se cruzam no consultório de uma<br />
terapeuta. Mas, como ela não se encontra<br />
no local, eles passam a relatar<br />
suas queixas, confissões, verdades e<br />
mentiras. As gargalhadas do público<br />
vão ficando mais espaçadas à medida<br />
que a trama assume uma narrativa séria.<br />
“O espetáculo tem uma reviravolta<br />
que faz o público repensar sobre tudo<br />
o que riu”, diz Fagundes. Em todas as<br />
sessões, os atores permanecem no teatro<br />
após o encerramento da peça e<br />
conversam com o público sobre o que<br />
acabou de ser apresentado.<br />
A encenação marca a terceira parceria<br />
do ator com Bruno. Os dois atuaram<br />
anteriormente em Vermelho e Tribos.<br />
Como é então separar o pai do ator?<br />
“Os dois ‘Antonios’ são indissociáveis.<br />
Não dá para ter um sem o outro. O<br />
trabalho nos ajudou pessoalmente, e<br />
nossa boa relação pessoal nos ajudou<br />
a trabalhar juntos. Então, foi um bom<br />
combinado de afetos: nós construímos<br />
uma trajetória de quase nove anos trabalhando<br />
ininterruptamente e isso só<br />
aprofundou e elaborou nossa relação<br />
de pai/filho”, diz Bruno. E trabalhar<br />
com o progenitor teria efeitos terapêuticos?<br />
“Não, porque sou ‘terapeutizado’<br />
fora dos palcos. E as situações ali colocadas<br />
nesses trabalhos não tinham nenhuma<br />
relação com nossa vida pessoal.<br />
O fazer teatral é uma jornada de afeto<br />
e encontro. Quando se forma uma dupla<br />
em cena, você tem que desenvolver<br />
uma escuta extremamente ativa com<br />
seu colega, e tive <strong>–</strong> repetidas vezes <strong>–</strong><br />
o prazer de ter meu pai como parceiro.<br />
Então isso, definitivamente, nos aproximou<br />
muito, talvez de uma forma que<br />
pais e filhos em outros empregos não<br />
experimentem. O que só deixa o poder<br />
do teatro mais latente”, completa.<br />
Boa parte da população o conhece das novelas, mas um dos maiores atores do país<br />
também mostrou sua versatilidade no mundo do cinema, onde passou pelo terreno<br />
da pornochanchada (Elas São do Baralho, de 1977, que tinha como diretor o então<br />
iniciante Silvio de Abreu) e viveu tipos criados por Ariano Suassuna e Nelson Rodrigues,<br />
entre outros autores, além de projetos pessoais de João Batista de Andrade,<br />
Guilherme de Almeida Prado e Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida. Mas, para<br />
amigos e parceiros, é no teatro onde ele se realiza. “Fagundes é o teatro. É grande<br />
em tudo o que faz, mas é ali onde respira, se alimenta, onde trabalha, onde nasceu<br />
e vive”, diz Jorge Takla, que recentemente o dirigiu em Vermelho, de 2016, peça em<br />
que o ator atuou ao lado do filho Bruno Fagundes. “Trabalhar com eles foi emocionante<br />
porque a peça falava do conflito de gerações a partir da relação de um pintor<br />
veterano com seu pupilo”, completa o diretor.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 37<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 36<br />
Bastidores da peça Baixa Terapia, com o filho Bruno | foto: reprodução Instagram
Fora de cena, produtor<br />
Registro da história<br />
Fagundes descobriu o teatro aos 16 anos. Ou melhor, foi descoberto.<br />
Um professor do Colégio Rio Branco, de São Paulo<br />
(para onde a família havia se mudado na segunda metade<br />
dos anos 1950), o intimou para atuar na montagem escolar de<br />
A Ceia dos Cardeais. Trabalhou em outras montagens amadoras,<br />
mas só quatro anos depois da estreia forçada é que decidiu<br />
seguir a carreira de ator. “Eu iria fazer engenharia civil,<br />
mas passei por um período de estudo, de busca, até descobrir<br />
o que queria de verdade. Hoje posso dizer que o país perdeu<br />
um péssimo engenheiro civil”, diverte-se.<br />
Uma das características principais de sua trajetória é a de,<br />
muitas vezes, contar a história de seu tempo por meio do<br />
trabalho <strong>–</strong> seja na televisão, no teatro, seja no cinema. Salta<br />
aos olhos, por exemplo, sua atuação no filme A Próxima Vítima<br />
(1983), thriller do cineasta João Batista de Andrade no qual<br />
vivia um repórter que cobria o assassinato de prostitutas na<br />
região central de São Paulo. O enredo e a situação de insegurança<br />
mostrada na tela iam ao encontro do clima angustiante<br />
do país naquele período: os últimos suspiros da ditadura<br />
e a criação de um serial killer para desviar a atenção do povo<br />
para o processo democrático. O mesmo se pode dizer de seu<br />
Macbeth, encenado em 1992, espetáculo que trazia um clima<br />
No Theatro Circo, na cidade de Braga, em Portugal | foto: arquivo pessoal<br />
soturno e ameaçador. “Macbeth vem de uma época em que<br />
politicamente as coisas estavam mais para o terror do que<br />
para a confusão”, justifica ele, lembrando que a encenação se<br />
deu nos anos em que Fernando Collor de Mello estava a um<br />
passo de sofrer o processo de impeachment. “Muito legal usar<br />
um texto para retratar um momento histórico e político.”<br />
Os retratos desses momentos passaram, inclusive, pela contracultura.<br />
O ator encenou Hair e Godspell, dois musicais que<br />
trouxeram o universo hippie do final dos anos 60 para o cotidiano.<br />
“Naquela época, não precisava ser cantor; hoje a gente<br />
tem que se preparar mais”, brinca. Por vezes, a presença de<br />
Fagundes foi além das dimensões do palco. Durante anos, trabalhou<br />
nas bilheterias das peças nas quais atuou. A função<br />
extra ajudou a “sentir o clima da plateia” para as apresentações<br />
que seu grupo teatral iria fazer. “A grande mágica do<br />
teatro é que existem diferentes tipos de plateia a cada dia”,<br />
diz. O hábito há tempos foi substituído por outro tipo de interação:<br />
ao final de cada peça, ele e o elenco entabulam uma<br />
conversa com o público. “Teatro é uma arte viva. Falo com os<br />
espectadores que se voltarem no dia seguinte, sentarem na<br />
mesma cadeira, terão uma experiência diferente da vivida no<br />
dia anterior”, conta.<br />
Antonio Fagundes não faz teatro. Ele<br />
vive o teatro na pele. Aliás, literalmente<br />
<strong>–</strong> em 2022, tatuou no pé um crânio<br />
com uma rosa, referência a uma das<br />
cenas clássicas de Hamlet, obra-prima<br />
de William Shakespeare. Banca suas<br />
próprias produções e aprendeu a conviver<br />
com os riscos, já que um texto<br />
mal escolhido é sinônimo de prejuízo.<br />
“Não existe arrependimento, existe<br />
evolução. Os erros fazem parte do cotidiano.<br />
O teatro te obriga a repeti-los<br />
diariamente. Ficar dois, três meses errando.<br />
É algo que nenhuma outra profissão<br />
te permite”, justifica. A ameaça<br />
do erro, contudo, nunca o impediu de<br />
tomar atitudes ousadas. Na década de<br />
1980, ele criou a Companhia Estável de<br />
Repertório, onde aliou obras de público<br />
garantido (por exemplo, Cyrano de Bergerac<br />
e Nostradamus, respectivamente<br />
de 1985 e 1986) com outras obras de<br />
risco certo. “O público tinha de reconhecer<br />
o teatro, não gêneros teatrais.<br />
Eu não queria que eles gostassem de<br />
comédias ou gêneros brasileiros. Eu<br />
queria que eles gostassem de teatro.<br />
Fiz dez espetáculos, totalmente diferentes”,<br />
explica Fagundes. Um desses<br />
espetáculos diferentes foi Fragmentos<br />
de um Discurso Amoroso, adaptação dos<br />
escritos de Roland Barthes, que marcou<br />
a parceria dele com o diretor Ulysses<br />
Cruz. “Um dia, eu estava ensaiando<br />
com o grupo de teatro Boi Voador,<br />
quando me falaram que o Fagundes<br />
queria ver um ensaio. Tempos depois,<br />
ele me ligou e me chamou para trabalhar<br />
na companhia dele em Fragmentos,<br />
que era então um projeto paralelo”, diz<br />
Cruz. “Um Fagundes vale pelo elenco<br />
inteiro, ele sabe preencher os vazios<br />
do texto. Como respirar e fazer o coração<br />
da plateia bater com ele”, completa.<br />
Fragmentos chegou a levar 180 mil pessoas<br />
ao teatro.<br />
O ator e produtor é pouco afeito à Lei<br />
Rouanet, criada para fundear espetáculos<br />
culturais. Mas seus motivos em<br />
nada coincidem com os do grupo que<br />
acusa os adeptos da Rouanet de corrupção<br />
<strong>–</strong> sem provas, diga-se. “O patrocínio<br />
é necessário e primordial para<br />
que você conquiste novas posturas artísticas.<br />
Sem ele, não existiria Bach ou<br />
Beethoven”, declarou certa vez. O queixume<br />
de Fagundes é que muitas vezes<br />
esse incentivo seja decidido pelos departamentos<br />
de marketing das empresas,<br />
que privilegiam determinado tipo<br />
de espetáculo em detrimento de outras<br />
obras. “Você acaba não crescendo, não<br />
se modificando. Você acaba falando<br />
para a sua bolha”, explicou, à ocasião.<br />
O fato de ser o mecenas de seus próprios<br />
espetáculos fez com que Antonio<br />
Fagundes criasse dois personagens<br />
com os quais ele tem necessidade de<br />
dialogar. “Ele quer fazer a peça para<br />
o Seu Zé e a Dona Maria. Quando ele<br />
identificava [no texto] alguma coisa que<br />
esses dois não iriam entender, a gente<br />
debatia”, diz Ulysses Cruz. “Para Fagundes,<br />
é necessário que a gente dê a<br />
chave para que o público possa abrir a<br />
porta”, complementa. Jorge Takla, por<br />
seu turno, enxerga outra qualidade.<br />
“O Fagundes escolhe os textos que tenham<br />
a ver com o que ele quer dizer<br />
naquele momento. Ele os utiliza para<br />
expressar o processo em que ele quer<br />
estar. Se está no processo de transformação,<br />
utiliza a redação para que possa<br />
fazer de uma maneira mais suave e<br />
profissional. É uma pessoa muito bem<br />
resolvida pessoalmente, politicamente<br />
e profissionalmente. E acaba passando<br />
os benefícios dessa terapia para<br />
o público”, diz. “Uma das funções sociais<br />
da cultura é retratar um momento”,<br />
completa o ator. “Estou fazendo<br />
uma peça que discute as relações familiares<br />
porque elas são necessárias<br />
nos dias de hoje.”<br />
“O teatro te obriga a repetir [os erros]<br />
diariamente. Ficar dois, três meses<br />
errando. É algo que nenhuma outra<br />
profissão te permite”<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 39<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 38
Mocinhos e vilões na TV<br />
Em 2021, Antonio Fagundes encerrou um contrato de 44<br />
anos com a Rede Globo de Televisão. Um dos motivos foi que<br />
a emissora quis modificar a cláusula do contrato que especificava<br />
que ele trabalharia apenas três dias por semana <strong>–</strong> o<br />
tempo restante é utilizado para seu trabalho em teatro. Fagundes<br />
revelou até que seria o Velho do Rio, mítico personagem<br />
da novela Pantanal, mas recusou o papel justamente<br />
por não concordar com a proposta da Rede Globo. O ator<br />
chegou em 1974 à emissora carioca, vindo de uma temporada<br />
de sucesso na extinta TV Tupi. Eternizou tipos célebres,<br />
como o Cacá, de Dancin’ Days, o canalha Felipe Barreto, de<br />
O Dono do Mundo (ambas de Gilberto Braga), José Inocêncio<br />
e Bruno Mezenga (de Renascer e O Rei do Gado, de Benedito<br />
Ruy Barbosa) e o caminhoneiro Pedro, parceiro de Bino (Stênio<br />
Garcia) no seriado Carga Pesada. Em Dancin’ Days, aliás,<br />
o personagem Cacá, alma gêmea de Júlia Matos, vivida pela<br />
estonteante Sonia Braga, era um diplomata fã das sinfonias<br />
de Gustav Mahler, frequentador assíduo de sessões de terapia<br />
e que vivia em constante choque com a mãe. “Cacá era<br />
o Gilberto Braga”, revela o ator. “Ele me dizia: ‘Fagundes, eu<br />
gosto de você porque eu posso escrever o homossexual que<br />
eu quiser, que você faz macho’”, conta.<br />
Mais recentemente, Antonio Fagundes foi visto em Independências,<br />
minissérie de Luiz Fernando de Carvalho, exibida<br />
na TV Cultura. Ele interpretou o rei português dom João VI<br />
de uma maneira diferente do que é visto em cinebiografias e<br />
novelas. “Uma das propostas da versão do Carvalho era perceber<br />
outras narrativas. Particularmente a dom João VI, que<br />
sempre era visto como uma figura caricata. Mas no fundo<br />
foi um grande estadista e impediu que Napoleão Bonaparte<br />
conquistasse a Europa”, diz. “João pedia pareceres de seus<br />
ministros por escrito. A partir dessas visões, ele tomava as<br />
decisões dele... Tinha doze, quinze pareceres. Não era indeciso,<br />
embora levasse um tempo para tomar as decisões certas”,<br />
comenta o ator, que leu algumas biografias do monarca para<br />
encarná-lo na televisão. “Mas foi um homem de seu tempo:<br />
escravocrata, machista, ditatorial...”<br />
Com Stênio Garcia, no seriado Carga Pesada | foto: reprodução Instagram<br />
“Um Fagundes vale pelo elenco<br />
inteiro, ele sabe preencher os vazios<br />
do texto. Como respirar e fazer o<br />
coração da plateia bater com ele”<br />
<strong>–</strong> Ulysses Cruz<br />
Fã de livros e games<br />
A leitura, aliás, é um de seus passatempos<br />
prediletos. “Ele está sempre<br />
com um livro debaixo do braço”, diz<br />
Tuna Dwek, atriz que contracenou<br />
com Fagundes no teatro e na televisão.<br />
A paixão foi, inclusive, importada para<br />
a ficção em 2019, quando viveu um<br />
editor literário na novela Bom Sucesso,<br />
de Rosane Svartman e Paulo Halm. De<br />
tanto dar dicas de leitura ao elenco, o<br />
ator criou o podcast chamado Clube<br />
do Livro por Antonio Fagundes. Pouco<br />
mais de um ano depois da estreia nas<br />
plataformas de streaming de áudio, o<br />
programa se tornou, ele próprio, um livro:<br />
Tem um Livro Aqui Que Você Vai Gostar,<br />
da editora Sextante, traz comentários<br />
sobre 150 obras. Fagundes divide<br />
a paixão pelas letras com os jogos de<br />
videogame. “Mas aqueles que têm historinha”,<br />
adianta. Um dos personagens<br />
favoritos do ator no mundo dos games<br />
é Kratos, guerreiro que enfrenta a ira<br />
dos deuses gregos no jogo God of War.<br />
O ator já revelou em entrevistas que,<br />
no auge do “vício”, passou uma semana<br />
praticamente sem dormir jogando God<br />
of War. Hoje, ele se contenta em jogar<br />
uma vez a cada 15 dias.<br />
Fagundes é ator de outros tempos,<br />
quando o país parava para assistir a<br />
um capítulo decisivo das novelas que<br />
todo mundo acompanhava. Hoje, sua<br />
geração se vê diante do streaming e do<br />
esfacelamento dos canais de TV abertos.<br />
“A gente está num período de transição.<br />
Podem acontecer coisas terríveis,<br />
de os streamings acharem que não<br />
vale a pena [financeiramente] e parar.<br />
Ficamos sem o videocassete, o DVD<br />
e podemos ficar sem streaming”, diz.<br />
“A internet veio para ficar, é um processo<br />
maravilhoso de conquista, Mas<br />
acoplada a pouca educação pode criar<br />
um problema”, lamenta. Embora tenha<br />
suas ressalvas, o ator é um ávido consumidor<br />
dessa tecnologia <strong>–</strong> e consome<br />
diferentes tipos de produção. “Sempre<br />
brinco falando que tem um japonês dizendo<br />
o que você deve assistir. O meu<br />
deve estar até meio maluco.”<br />
Fagundes recorre ao bom humor para<br />
responder à pergunta sobre como é<br />
ser Deus. “É divertido porque se trata<br />
de um personagem que não tem muitos<br />
elementos de comparação”, brinca.<br />
E emenda com um revés: “Um amigo<br />
meu, super-religioso, diz que eu trouxe<br />
um grande problema para ele porque<br />
toda vez que ele vai rezar acaba<br />
pensando em mim”. As filmagens de<br />
Deus Ainda É Brasileiro foram realizadas<br />
no finalzinho de 2022. E agora, para<br />
onde vai o fã do jogo God of War (Deus<br />
da Guerra) depois de interpretar Deus?<br />
Ulysses Cruz, seu antigo colaborador,<br />
faz uma proposta. “Estou escrevendo<br />
uma peça sobre Procópio Ferreira e<br />
adoraria que o Fagundes vivesse esse<br />
personagem.” Um convite oportuno.<br />
Afinal, nada mais natural que encarnar<br />
um dos deuses do teatro brasileiro depois<br />
da divina missão no cinema.<br />
Que conselho<br />
daria ao jovem<br />
Antonio?<br />
“Faça exatamente<br />
o que você fez”<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 41<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 40
Nome: Thalita Rebouças Teixeira<br />
Idade: 48 anos<br />
Profissão: escritora<br />
Cidade onde nasceu: Rio de Janeiro/RJ<br />
Conexão<br />
teen<br />
Por Guilherme Dearo<br />
A escritora Thalita Rebouças conquistou o<br />
público jovem com sua habilidade para dialogar<br />
com as novas gerações. Há 20 anos, as histórias<br />
dessa carioca tão apaixonada pela praia quanto<br />
pela literatura fazem imenso sucesso nas<br />
livrarias, nos cinemas e na TV<br />
Foto: Edu Rodrigues<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 43<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 42
Praia, cidade e<br />
literatura<br />
Essa carioca da gema, filha única de<br />
pai dentista e mãe dona de casa, nasceu<br />
em <strong>10</strong> de novembro de 1974. Cresceu<br />
no bairro de Copacabana, zona sul<br />
do Rio, e da infância que ela define<br />
como “alegre e de paz” guarda ótimas<br />
lembranças de seu avô Nininho, que<br />
a levava e buscava na escola todos os<br />
dias. Vem desse tempo a paixão pela<br />
cidade e pela praia. “Meu pai e meu<br />
avô me levavam para cima e para baixo.<br />
Conheci o Rio todo ainda criança.<br />
O Rio antigo, a Praça XV, o Paço Imperial,<br />
a Cinelândia.” Foi na infância também<br />
que nasceu a paixão pela leitura.<br />
Os preferidos eram Marcelo, Marmelo,<br />
Martelo, de Ruth Rocha, e O Menino<br />
Maluquinho, de Ziraldo. Mais tarde, pegou<br />
gosto pelos livros de mistério de<br />
Agatha Christie e pelas obras das coleções<br />
Inspetora e Vaga-Lume.<br />
O hábito da leitura arrefeceu durante a<br />
adolescência, talvez por ter tido muito<br />
contato com leituras obrigatórias no<br />
colégio, acredita. Ou porque não encontrava<br />
eco de seus dilemas na lite-<br />
ratura, como seu público encontrou em<br />
seus livros. Mas, mesmo nesse período,<br />
já era uma pessoa “de humanas”. “Só<br />
sei contar nos dedos”, brinca. Foi um<br />
autor em especial que a fez retomar o<br />
amor pela literatura. “Feliz Ano Velho, do<br />
Marcelo Rubens Paiva, mudou a minha<br />
vida. O jeito leve dele, despretensioso,<br />
mas jamais sendo bobo ou sem profundidade,<br />
me inspirou a escrever”, revela.<br />
Os pais também deram um empurrão<br />
no interesse pelos livros. “Cresci lendo<br />
Fernando Sabino, João Ubaldo Ribeiro<br />
e Luis Fernando Verissimo porque<br />
eles recortavam as crônicas que saíam<br />
nos jornais e guardavam pra eu ler.”<br />
Hoje, José Saramago e Mario Vargas<br />
Llosa estão entre suas maiores referências<br />
literárias. “E, dos mais atuais,<br />
estou adorando a Giovana Madalosso,<br />
a Paula Gicovate. E eu amo o Raphael<br />
Montes, é um amigo muito querido.<br />
Ele é um gênio, os livros dele são incríveis.<br />
Resgato o gosto da infância de ler<br />
mistérios com ele.”<br />
Com o pai, Willian, o avô José e a avó Maura | foto: arquivo pessoal<br />
A<br />
carioca Thalita Rebouças traz nas costas a tatuagem de<br />
uma gaivota solitária porque “escrever é assim”. E ela<br />
sabe do que está falando. Com mais de 2,3 milhões de<br />
livros vendidos <strong>–</strong> um feito e tanto em um país onde apenas<br />
metade (52%) da população cultiva o hábito da leitura e tem<br />
como preferências a Bíblia e livros com temáticas religiosas<br />
<strong>–</strong>, ela é uma das escritoras mais bem-sucedidas do mercado<br />
literário brasileiro. Thalita conquistou o público adolescente<br />
com seus 26 livros publicados, vencendo uma disputa acirrada<br />
pela atenção dos jovens. Enquanto ela começava a se dedicar<br />
ao solitário processo da escrita, seu público descobria um<br />
novo mundo proporcionado pela internet. Chats, programas<br />
de mensagem instantânea, blogs, Orkut. Isso sem falar no<br />
boom da TV a cabo e os irresistíveis videogames. Qualquer<br />
pai e mãe de adolescente sabe que a concorrência é dura.<br />
No entanto, ao falar de igual para igual com seus leitores,<br />
Thalita conseguiu tirá-los da frente das telas para que mer-<br />
gulhassem em seu universo literário. Ali, eles encontraram<br />
personagens que enfrentavam os mesmos problemas com os<br />
quais eles lidavam no dia a dia: sofrer pelo primeiro amor, lutar<br />
por uma amizade, encarar descobertas sexuais e relacionar-se<br />
com pais e professores. A escritora atribui o sucesso<br />
de seus livros à sua honestidade e ao fato de escrever o que<br />
gostaria de ter lido quando era adolescente. “Eu não julgo, não<br />
dou lição de moral. Eles se veem nas histórias”, diz. Mais do<br />
que entreter, a escritora estabeleceu uma forte conexão com<br />
os jovens. Já recebeu mensagens de leitores dizendo que determinado<br />
livro ajudou em um momento de depressão e de<br />
jovens contando que procuraram ajuda motivados por uma<br />
obra dela. Em pouco mais de duas décadas de carreira, a escritora<br />
teve <strong>–</strong> e tem <strong>–</strong> um importante papel na formação de<br />
jovens leitores no Brasil. “Já perdi a conta de quantas pessoas<br />
falaram que começaram a ler mais por minha causa ou que<br />
viraram escritores depois de me conhecer.”<br />
Com os atores Larissa Manoela e Sérgio Malheiros | foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 45<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 44
Copo meio cheio<br />
Assim como os personagens de seus livros, Thalita foi uma<br />
adolescente intensa e cheia de dramas. “Tive momentos de<br />
não me sentir amada, de me sentir excluída. Acho que todo<br />
adolescente passa por isso”, lembra. E, também como toda garota,<br />
teve várias facetas. “Sempre fui leve, otimista, vi o copo<br />
meio cheio.” Se hoje é extremamente extrovertida, sempre<br />
disposta a interagir com fãs em palestras e sessões de autógrafos,<br />
os primeiros anos da adolescência foram marcados<br />
pela timidez. “Não fui nada rebelde. Era muito tímida! Isso só<br />
mudou quando, aos 14 anos, comecei a fazer aulas de teatro.<br />
Fiz até os 19, e isso me transformou. Ali você aprende a criar,<br />
a realizar, a ter empatia”, ensina.<br />
O pai queria que Thalita seguisse seus passos na odontologia,<br />
enquanto a mãe sonhava em ver a filha advogada. Acabou<br />
escolhendo direito. Fez dois anos do curso, na Universidade<br />
Candido Mendes, mas se desencantou com a área. Optou pelo<br />
jornalismo, agora na Faculdade da Cidade, e desta vez foi até<br />
o fim. Trabalhou por alguns anos em redações jornalísticas e<br />
assessorias de imprensa. “Passei por muitos lugares legais,<br />
como Lance!, O Globo, Gazeta Mercantil. Gostava muito, mas<br />
sentia que faltava algo.” Aos 25 anos, veio um clique. “Pensei:<br />
‘Se eu não tentar ser escritora agora, vou virar uma pessoa<br />
frustrada lá na frente’. Eu precisava tentar.”<br />
Dividia o tempo entre a vida como jornalista freelancer e aspirante<br />
a escritora, afinal precisava pagar as contas. Em 1999,<br />
publicou o primeiro livro, Um Caso de Cativeiro, escrito a quatro<br />
mãos com Carlos Luz, seu marido na época. O livro quase<br />
passou despercebido. Quase, porque motivou uma editora<br />
No The Voice Kids | foto: arquivo pessoal<br />
pequena a encomendar a Thalita um livro “bem mulherzinha,<br />
no estilo revista Nova <strong>–</strong> foi exatamente esse o briefing que<br />
me deram”, explica a autora de Traição entre Amigas (2000),<br />
que vendeu 4 mil exemplares e lhe trouxe certo reconhecimento<br />
no meio editorial. E mostrou que ela estava certa em<br />
seguir aquele caminho: “Escrevi de maneira muito intuitiva,<br />
foi natural”.<br />
Apesar do impulso inicial, o sucesso na literatura ainda não<br />
estava garantido, mas Thalita não esperaria sentada. A divulgação<br />
de Traição entre Amigas na Bienal do Livro no Rio, por<br />
exemplo, quase foi um fiasco. De novo, quase. No estande da<br />
editora, ninguém apareceu para assistir à palestra da autora.<br />
Inconformada, Thalita vestiu uma peruca rosa, subiu numa<br />
cadeira e começou a chamar o público que passava pelo local.<br />
“O 6 sempre foi meu número da sorte. Então eu me dei seis<br />
anos para fazer dar certo nesse mundo. Se não virasse autora<br />
depois de seis anos, pensaria em desistir”, conta.<br />
Traição entre Amigas era voltado para um público mais velho,<br />
mas caiu nas graças dos jovens. A escritora percebeu que<br />
havia criado uma conexão com essa turma e decidiu investir<br />
no universo infantojuvenil. Mantendo a fé no número 6,<br />
enviou o original de Tudo por um Popstar para seis editoras. Só<br />
uma respondeu. O livro, publicado em 2003 pela Rocco, foi<br />
um sucesso explosivo entre as garotas e virou best-seller. O<br />
primeiro cheque recebido por seu trabalho como coautora de<br />
Um Caso de Cativeiro, no valor de 11 reais, ficou no passado. “No<br />
meu sexto ano como escritora, comecei a pagar as contas com<br />
tranquilidade”, diz.<br />
“Pensei: ‘Se eu não tentar<br />
ser escritora agora,<br />
vou virar uma pessoa<br />
frustrada lá na frente’.<br />
Eu precisava tentar”<br />
Foto: Edu Rodrigues<br />
Foco e disciplina<br />
O método de Thalita para ser uma escritora tão profícua é... não ter método. “Escrevo<br />
em qualquer lugar, com barulho ou em silêncio. Até na área de embarque do<br />
aeroporto eu já escrevi. E meu processo criativo não é nada doloroso”, garante. “Sou<br />
megaorganizada e já tenho toda a história na cabeça, nem preciso ficar pendurando<br />
papéis na parede.” Ela acredita que escritores precisam ter disciplina e foco para<br />
escrever todos os dias. “Depois do almoço, lá pelas 2 da tarde, começo a escrever e<br />
vou embora. Pode ser até as 8 da noite, pode ser até de madrugada.” Poucas pessoas<br />
podem ler o original antes da publicação. Além de sua agente literária, só o marido,<br />
Renato Caminha, ganha acesso ao manuscrito que sai do forno. “Aprendi que não<br />
adianta mostrar pros amigos porque eles nunca criticam.”<br />
Depois da cena com a peruca rosa na<br />
Bienal do Rio, Thalita produziu sucesso<br />
atrás de sucesso, como os livros da<br />
série Fala Sério e títulos como Uma Fada<br />
Veio Me Visitar (2007) e Ela Disse, Ele Disse<br />
(2011). Ao longo da carreira, passou<br />
de temas leves para assuntos mais sérios,<br />
com o cuidado de nunca se desviar<br />
de seu público. Falou sobre transtorno<br />
alimentar, relações abusivas com os<br />
pais, automutilação e suicídio, além de<br />
trazer a diversidade às obras, com mais<br />
protagonistas gays e fora dos padrões<br />
normativos. “Não que eu não me sentisse<br />
livre para falar disso antes, porque<br />
nunca sofri censura, mas os temas<br />
foram ficando mais relevantes. E eu<br />
estou em um aprendizado constante.<br />
Quero contribuir para esses debates,<br />
falar de preconceito, de gordofobia, de<br />
autoaceitação. Quero pregar o amor”,<br />
fala. Nunca recebeu queixas dos pais<br />
sobre os temas que aborda. Pelo contrário.<br />
“Eles acabam entendendo mais<br />
os filhos por meio das minhas histórias<br />
e até me agradecem depois.” Ela<br />
também não reluta em mudar algo em<br />
livros já publicados. “Usei ‘pulga epiléptica’<br />
em um livro para falar de uma<br />
personagem, em tom de piada, e uma<br />
mãe veio me falar que não tinha gostado<br />
porque a filha tinha epilepsia. Eu entendi,<br />
claro, e na hora falei com a minha<br />
editora para mudar o termo”, conta.<br />
Enquanto passeia por temas do universo<br />
teen em suas obras, a escritora<br />
também abre sua própria história para<br />
mostrar aos leitores que é “igual a eles”.<br />
Em sua autobiografia, Fala Sério, Thalita!,<br />
lançada em 2020 pela editora Pixel,<br />
é franca e não se furta a contar detalhes<br />
de momentos marcantes da adolescência,<br />
como o primeiro beijo, aos 12<br />
anos, e a perda da virgindade, aos 18.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 47<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 46
Viva o amor<br />
A autobiografia saiu no ano em que Thalita conheceu o psicólogo<br />
Renato Caminha, seu atual marido, durante uma festa<br />
na casa de uma amiga. “Começamos a conversar e não desgrudamos<br />
mais. Foi muito arrebatador. O foco dele na psicologia<br />
são crianças e adolescentes. Então, claro, temos muito<br />
em comum”, conta. O trabalho de pesquisa para escrever os<br />
livros Confissões de um Garoto Talentoso, Purpurinado e (Intimamente)<br />
Discriminado e Natali e Sua Vontade Idiota de Agradar Todo<br />
Mundo, lançados este ano, contou com a ajuda do parceiro.<br />
“Ambos trazem protagonistas gays, e ele me ajudou muito<br />
a falar sobre isso. Eu ia dialogando com ele enquanto escrevia<br />
as cenas.” Em janeiro de 2022, o casal celebrou a união<br />
em uma cerimônia intimista. À época, em sua conta no Instagram,<br />
a noiva escreveu “É pra ficar junto por pelo menos<br />
uns 40 anos. Pelo menos. Viva o amor”. Atualmente, o casal<br />
vive em São Conrado. “Ter a chance de encontrar uma paixão<br />
dessa na maturidade é muito bacana. As duas pessoas ficam<br />
mais confortáveis na própria pele, não tem aquela urgência<br />
e ansiedade que atrapalha. Sou muito fã do amor maduro. E<br />
nos conhecemos na hora certa. Se esse encontro tivesse sido<br />
antes, não sei se teríamos tamanha conexão”, diz.<br />
As perguntas sobre maternidade são inevitáveis. “Eu lido<br />
superbem com o fato de não ter tido filhos, quem não lida<br />
bem são os outros”, diz, sem perder o bom humor. Em entrevista<br />
ao jornal O Globo, publicada em 2021, ela conta que<br />
tomou a decisão de não ter filhos aos 27, 28 anos, e que já<br />
sofreu muita pressão e ouviu comentários maldosos. “É um<br />
assunto que precisa ser falado. Já refleti abertamente sobre<br />
maternidade compulsória nas redes sociais e abordei o assunto<br />
no livro Natali e Sua Vontade Idiota de Agradar Todo Mundo.<br />
Muitas mulheres se tornam mães por pressão, sem questionar<br />
essa falsa necessidade. Nunca me bateu essa vontade<br />
de ter filhos”, conta. Thalita ressalta que os homens não são<br />
pressionados sobre paternidade. “Nenhuma mulher pode se<br />
sentir culpada por não ter filhos, mas a sociedade quer criar<br />
essa culpa. Eu falo isso abertamente com mulheres na faixa<br />
dos 30 anos: ‘Tudo bem se não quiser filhos, não tem nada<br />
de errado com você’.”<br />
“Eles [os pais]<br />
acabam entendendo<br />
mais os filhos por<br />
meio das minhas<br />
histórias e até me<br />
agradecem depois”<br />
Com o marido, o psicólogo Renato Caminha | foto: arquivo pessoal<br />
Com Maisa Silva e Eduardo Moscovis | foto: arquivo pessoal<br />
Versatilidade<br />
As histórias criadas por Thalita transbordaram<br />
as prateleiras das livrarias e<br />
foram parar nas telas da TV e do cinema.<br />
Em 2016, o livro Uma Fada Veio Me<br />
Visitar virou o filme É Fada, estrelado<br />
por Kéfera Buchmann e Klara Castanho.<br />
Nas adaptações de Fala Sério, Mãe!<br />
e Ela Disse, Ele Disse, fez questão de participar<br />
da criação do roteiro para “manter<br />
a fidelidade ao livro”. A experiência<br />
como roteirista colaborou para inverter<br />
a ordem dos sucessos da escritora: o<br />
filme original Pai em Dobro, produção<br />
da Netflix com os atores Maisa Silva e<br />
Eduardo Moscovis no elenco, veio antes<br />
do livro. “Gosto de ser parceira dos<br />
atores. Ser uma roteirista e autora que<br />
está presente em todas as etapas, de<br />
escolher locação à parte do figurino.<br />
Sou uma autora controladora nesse<br />
sentido. E sempre fico amiga do elenco”,<br />
garante.<br />
Desde 2017, Thalita também atua em<br />
frente às câmeras, como apresentadora<br />
de bastidores do reality show global<br />
The Voice Kids. Quando não está trabalhando,<br />
gosta de ir à praia, dançar pela<br />
casa, sair com os amigos e viajar. “Eu<br />
amo praia, sou daquelas cariocas que<br />
aproveitam a praia da cidade. Se deixar,<br />
vou todos os dias”, diz. E não abre<br />
mão de se cuidar. “Malho todos os dias,<br />
faço ioga. Deixo a manhã para cuidar<br />
de mim e ficar gostosa.” Aos 48 anos,<br />
a escritora e roteirista se sente no melhor<br />
momento de sua vida. “Depois dos<br />
45 anos, virei a chave em matéria de<br />
criatividade, inspiração e beleza. A idade<br />
só melhora a gente”, diz, mostrando<br />
que o etarismo não tem espaço em sua<br />
rotina. “Acho que, quando você tem 20<br />
anos, não tem noção do tanto de coisa<br />
que ainda não sabe. É muita autocrítica,<br />
muita autocobrança. Quando você<br />
fica mais velha, entende que seu corpo<br />
é o que te mantém viva, que você<br />
é aquele corpo e ele te mantém pensante,<br />
criativo, feliz. Isso é muito bonito”,<br />
diz, mostrando que tem talento<br />
e versatilidade para se conectar com<br />
diferentes gerações.<br />
Que conselho daria<br />
à jovem Thalita?<br />
“Fique calma, vai dar<br />
tudo certo. Vai ser<br />
difícil, mas você vai<br />
conseguir. Não desista!”<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 49<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 48
Nome: Carlos Eduardo Fernandes Léo (Kobra)<br />
Idade: 47 anos<br />
Profissão: muralista<br />
Cidade onde nasceu: São Paulo/SP<br />
O gigante<br />
dos murais<br />
Por Simone Costa<br />
Na adolescência, Eduardo Kobra pichava muros<br />
da periferia sem incentivo para desenvolver seu<br />
talento artístico. Mas o garoto rebelde conheceu o<br />
grafite e se tornou um dos maiores expoentes da<br />
street art no mundo<br />
Foto: Alan Teixeira<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 51<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 50
Herdeiro da pichação<br />
O Kobra que hoje circula pelos quatro cantos do planeta não<br />
esquece suas origens. Nasceu no Jardim Martinica, no Campo<br />
Limpo, zona sul da capital paulista, filho de um tapeceiro e<br />
uma dona de casa. Estudante da escola pública Maurício Simão,<br />
recheava os cadernos com desenhos que fazia durante<br />
as aulas. Em pouco tempo, migrou do papel para as paredes<br />
e muros da escola. Era considerado mau aluno e colecionava<br />
advertências. Anos mais tarde, na cerimônia de entrega<br />
da Medalha Anchieta e do Diploma de Gratidão da Cidade de<br />
São Paulo, homenagens da Câmara Municipal ao artista, um<br />
professor e alunos da antiga escola lhe entregaram uma lembrança:<br />
uma advertência daquele tempo. O texto foi lido entre<br />
risos para a plateia presente: “Confessou que o seu apelido é<br />
Cobra [o K viria anos mais tarde] e que escreveu seu nome no<br />
teto da classe”. A bronca informava ainda que o aluno “foi<br />
chamado à direção e se prontificou a limpar a parede”.<br />
E<br />
Foto: Patricia Pontes<br />
m 1992, Eduardo Kobra encarou uma maratona de três dias e três noites dentro<br />
do Playcenter, na Marginal Tietê, zona norte de São Paulo. Enquanto o<br />
público brincava no parque de diversões, o jovem de 17 anos trabalhava. À<br />
noite, solitário, cochilava ao pé da roda-gigante ou na base da recém-inaugurada<br />
montanha-russa Tornado. Aquela era a primeira vez que o artista recebia dinheiro<br />
por suas pinturas, e o prazo para finalizar o trabalho era curto. “Dormia ali mesmo<br />
no chão porque não podia perder tempo indo pra casa”, diz.<br />
O convite para pintar seus desenhos em placas e brinquedos do extinto parque de<br />
diversões veio por acaso. “Eu estava pintando um grafite na rua quando um cara<br />
de uma agência de publicidade me abordou e contou que nos parques do exterior<br />
havia muitos desenhos como aquele”, lembra o artista. O tal sujeito estava criando<br />
um projeto para o Playcenter e reconheceu o talento do jovem grafiteiro. Pediu dois<br />
esboços de Kobra para que a agência apresentasse ao cliente, mas o entusiasmo do<br />
rapaz foi tanto que ele entregou 40.<br />
Naquele momento, a situação financeira ia de mal a pior. “Eu fazia bicos e pequenos<br />
trabalhos, mas não tinha dinheiro para pagar aluguel [por causa da relação conflituosa<br />
com a família, ele já morava sozinho], água, luz, nem almoço”, conta. As pinturas<br />
no Playcenter, que se estenderam pelos anos seguintes, não aliviavam o rombo na<br />
carteira, mas a visibilidade trouxe outro trabalho publicitário. E esse, sim, rendeu<br />
uma boa grana, que poderia garantir um pé-de-meia. Poderia. Depois de pagar as<br />
contas atrasadas, Kobra entrou em uma concessionária e comprou um Mustang<br />
0km. O artista chama de “coisa de moleque” a ideia de comprar um carro esportivo<br />
enquanto vive em uma “casa caindo aos pedaços”. Mas o moleque cresceu, evoluiu e<br />
se tornou o Eduardo Kobra que o mundo conhece hoje, ícone da street art, com mais<br />
de 3 mil murais produzidos em pelo menos 35 países.<br />
Ninguém na família ou na escola percebia que naquele “mau<br />
aluno” havia um artista em formação. Quando começou a pichar<br />
as paredes de casa, os muros do colégio e as ruas do<br />
bairro, com apenas 12 anos, ouvia que aquilo era vandalismo.<br />
“Não tive nenhum tipo de apoio ou incentivo, só preconceito,<br />
palavras negativas, xingamentos. E ainda faltava dinheiro<br />
para comprar material para pintar. Ou seja, não tive nada nem<br />
ninguém que me apontasse que aquele caminho poderia ser<br />
o certo”, diz.<br />
O adolescente perdido em seu ímpeto artístico se encontrou<br />
no hip hop nos anos 1980. Saía com os amigos do Campo Limpo<br />
e percorria mais de 20 quilômetros para chegar ao Largo<br />
São Bento, no centro da cidade, onde a turma do movimento<br />
se reunia para dançar break. “O hip hop me deu uma boa<br />
dose de consciência do que é ser da periferia”, conta. Nessa<br />
época, quando começou a pichar mais longe de casa, descobriu<br />
que alguém já usava sua assinatura e decidiu adotar o<br />
Kobra com K. “O apelido veio dos colegas que gostavam dos<br />
meus desenhos. Eles diziam ‘Você é cobra’ no sentido de<br />
‘Você é fera’”, explica.<br />
Enquanto davam status ao garoto, as pichações também rendiam<br />
detenções por crime ambiental. Foi assim, indo buscar<br />
o filho na delegacia, na primeira das três vezes em que Kobra<br />
foi levado pelos policiais, que os pais descobriram no que ele<br />
estava metido. “Não sei como é hoje, mas, naquela época, o<br />
movimento dos pichadores era muito violento. Havia várias<br />
pessoas envolvidas com o crime, drogas, todo tipo de violência.<br />
Os pichadores morriam não só porque tomavam tiro,<br />
mas porque caíam dos prédios. Havia gangues rivais”, conta<br />
o artista. “Eu estava inserido nisso, mas não me envolvia com<br />
drogas nem crime. Só queria pintar. Mas era difícil pros meus<br />
pais, e eles queriam me tirar daquilo.”<br />
Foto: Alan Teixeira<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 53<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 52
Orgulho de pai<br />
Hoje, Kobra se define como muralista. O mural é um grafite<br />
autorizado e, muitas vezes, remunerado. Embora tenha passado<br />
de pichador a grafiteiro, e, posteriormente, a muralista,<br />
o artista explica que não se trata de uma linha evolutiva. “Tem<br />
gente que confunde e diz: ‘Por que o cara não deixa de ser<br />
pichador para ser grafiteiro e muralista?’ Essa não é uma realidade<br />
que funciona para todos. Além disso, são linguagens<br />
diferentes de street art”, afirma.<br />
Com o tempo, a família percebeu o dom artístico de Kobra.<br />
Depois de um período de afastamento, a relação com a mãe<br />
melhorou. “Meu pai era duro na queda, não era de demonstrar<br />
afeto, dar um abraço”, diz. O muralista guarda na memória<br />
com carinho o dia em que encontrou, na gaveta da cômoda<br />
do pai, recortes de jornais com matérias sobre seus trabalhos<br />
espalhados pelo mundo. “Quando achei as reportagens, entendi<br />
que ele tinha orgulho, sim. Creio que sabia que eu tinha<br />
seguido o caminho certo”, emociona-se.<br />
O pai faleceu antes de ver o filho entrar no Guinness com Etnias,<br />
o maior grafite do mundo, e bater seu próprio recorde<br />
com o mural em homenagem ao chocolate, às margens da<br />
Rodovia Castello Branco. Em 2022, Kobra pintou a fachada<br />
da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova<br />
York, e retratou a história e a lenda de formação de San Marino,<br />
na Europa, que se tornou atração turística e ganhou até<br />
uma passarela para que as pessoas possam ver mais de perto<br />
a obra. Em novembro, o artista inaugurou ainda um mural de<br />
84 metros quadrados numa escola em São Paulo retratando<br />
o inglês Lewis Hamilton, heptacampeão da Fórmula 1. Fã de<br />
Ayrton Senna, o piloto compareceu ao evento e pediu uma<br />
lata de spray para assinar seu nome na pintura. “Espero que<br />
traga motivação e cor para os alunos daqui”, disse Hamilton.<br />
De pichador a grafiteiro<br />
Com a expansão de horizontes proporcionada pelo movimento<br />
hip hop, Kobra descobriu o universo do grafite e nomes<br />
como o do britânico Banksy. Até aquele momento, o que ele<br />
pintava nos muros da cidade se resumia a pichação, caligrafias<br />
estilizadas feitas, muitas vezes, com o objetivo de registrar<br />
que o autor conseguiu atingir locais inalcançáveis, como<br />
o ponto mai alto das fachadas dos prédios, sem equipamento<br />
de segurança. O que conta, nesses casos, é muito mais a<br />
adrenalina e o status que o pichador ganha entre os pares ao<br />
deixar sua assinatura nesses espaços de difícil acesso. Já o<br />
grafite é representado por desenhos mais elaborados. “De<br />
forma geral, tudo pode ser enquadrado como street art, pois<br />
os dois utilizam a cidade como suporte, mas a pichação é considerada<br />
um crime ambiental”, explica Kobra, lembrando que<br />
o grafite também é ilegal quando feito sem autorização.<br />
Assim como acontece em outras manifestações artísticas, a<br />
intenção com uma obra de arte de rua é individual, seja ela<br />
pichação, grafite ou mural. “Tem grafiteiro que produz só<br />
por questões estéticas, outros trazem um protesto. O mesmo<br />
acontece com a pichação, que para muitos é um jeito de chamar<br />
a atenção para um tema ou apenas a busca da adrenalina.<br />
Para quem está na periferia, a pichação é, muitas vezes,<br />
um refúgio”, diz.<br />
Depressão e noites em claro<br />
Em 2022, o artista que veio da periferia virou personagem central de um documentário. O filme Kobra <strong>–</strong> Auto Retrato, da diretora<br />
e roteirista Lina Chamie, foi exibido em importantes eventos, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do<br />
Rio e o DOC NYC, maior e mais relevante festival de documentários dos Estados Unidos. “Ter recebido o convite para fazer esse<br />
documentário foi, no mínimo, inusitado. Mas é tanta coisa inusitada que tem acontecido comigo!”, revela o muralista. “Eu sonhei<br />
fazer um mural nos Estados Unidos, mas jamais imaginei que teria 50 obras lá, no país da street art. E ainda chegar à Europa, à<br />
Ásia e à África. Sigo trabalhando e mantendo o pé no chão, sabendo que essas portas foram abertas pela arte e por Deus.”<br />
No longa-metragem, Kobra abre o jogo sobre as várias crises de depressão contra as quais lutou ao longo da vida <strong>–</strong> o artista<br />
chegou a tomar 12 remédios tarja preta por dia. Em 84 minutos de filme, é possível enxergar o ser humano por trás do artista e<br />
vislumbrar a mente inquieta de alguém que dorme apenas duas horas por noite.<br />
Por causa da insônia crônica, Kobra passa as madrugadas zapeando a TV enquanto sua mente planeja cores e linhas. Encontra<br />
inspiração em tudo que vê. Autodidata, buscou referências da street art em artistas como o grafiteiro pop americano Keith Haring<br />
(1958-1990) e o muralista mexicano Diego Rivera (1886-1957). “Ser autodidata fez com que eu desenvolvesse algo único, inusitado.<br />
Talvez por isso tenha conseguido criar um trabalho sem nenhum tipo de amarra. Eu não conhecia, então era tudo muito<br />
espontâneo, natural”, avalia.<br />
“Fui um cara que vandalizou<br />
o patrimônio por muitos<br />
anos, mas que também<br />
colecionava livros de história<br />
antiga de São Paulo e de<br />
outras cidades”<br />
Ciência e Fé - mural no Hospital das Clínicas,<br />
em São Paulo | foto: drone.cyrillo<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 55<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 54<br />
Mural na sede da ONU, NY | foto: Ben Lau
Evolução artística<br />
O divisor de águas na carreira é o projeto Muro das Memórias,<br />
criado há cerca de dez anos, em que registrou uma série de<br />
fotos antigas da São Paulo da primeira metade do século XX.<br />
“Eu vinha, durante anos, num aperfeiçoamento da minha<br />
obra. No começo, eu não tinha uma linguagem estética nem<br />
habilidade para pintar tudo o que eu gostaria. Copiei muitos<br />
grafiteiros que eu admirava”, revela, ao explicar como encontrou<br />
seu estilo. “Me inspirei em muralistas tradicionais, como<br />
o Diego Rivera, que faziam aqueles murais chamados engana-o-olho<br />
[trompe-l’oeil], com cenários e dimensões 3D, e fiz<br />
uma fusão com o que conhecia do grafite e da street art. Surgiu<br />
algo novo, que me deu uma identidade visual e me permitiu<br />
falar de algo que eu queria, que era a preservação do patrimônio<br />
histórico”, conta. “Ou seja, fui um cara que vandalizou<br />
o patrimônio por muitos anos, mas que também colecionava<br />
livros de história antiga de São Paulo e de outras cidades e<br />
passei a reproduzir isso nos murais.”<br />
Outro impulso na evolução de sua arte veio de trabalhos lo-<br />
cais, como murais em pátio de escolas e pinturas que remetessem<br />
a um pequeno negócio, como a fachada de uma pet shop.<br />
Kobra garante que esses eram os clientes mais exigentes, que<br />
não hesitavam em dizer “Está feio, tem que melhorar”.<br />
Com a maturidade e a visibilidade, veio, em 2011, o primeiro<br />
convite de projeto fora do Brasil. Kobra integrou o grupo<br />
de artistas que transformou um bairro da cidade de Lyon, na<br />
França, em galeria de arte a céu aberto, pintando imagens que<br />
valorizavam a história local. Aquela foi, inclusive, a primeira<br />
das centenas de viagens que já fez ao exterior. “Ao longo desses<br />
35 anos de carreira, aprendi a dormir no chão e a trabalhar<br />
com os piores materiais, mas também tive a oportunidade<br />
de viajar de primeira classe, me hospedar nos hotéis mais<br />
caros e comer nos melhores restaurantes. Sei conviver com<br />
os dois mundos. Aprendi ainda que tudo é importante, admiro<br />
os diferentes povos, culturas, tradições e religiões. Meu trabalho<br />
me possibilita um aprendizado eterno”, afirma.<br />
“No começo, eu não tinha uma linguagem estética nem<br />
habilidade para pintar tudo o que eu gostaria. Copiei muitos<br />
grafiteiros que eu admirava”<br />
Com a obra Respirar | foto: Alan Teixeira<br />
Arte com propósito<br />
O artista que vive de suas pinturas já<br />
recebeu dos médicos um ultimato para<br />
parar de pintar. Carrega sérios problemas<br />
de saúde, como a insônia e distúrbios<br />
alimentares e digestivos, causados<br />
pela intoxicação por metais pesados<br />
das tintas e solventes, principalmente<br />
do tempo em que utilizava os materiais<br />
mais baratos para trabalhar. Mas<br />
a aposentadoria está fora de cogitação.<br />
“Meu plano é pintar até o final da vida.<br />
Não tem plano B”, garante.<br />
A paixão inabalável pela pintura vem<br />
acompanhada de propósito. Kobra já<br />
recusou propostas para criar murais<br />
de políticos e até de artistas com os<br />
quais não se identifica. Em Amsterdã,<br />
na Holanda, também se negou a retratar<br />
o filósofo Espinosa (1632-1677)<br />
depois de descobrir que ele havia sido<br />
expulso da comunidade judaica por<br />
questionar aspectos da ortodoxia da<br />
religião. “Além disso, li alguns textos<br />
dele e percebi que não gostava do que<br />
escreveu. Seus valores, a forma como<br />
ele falava de Deus, isso não me agradou.<br />
Sou um homem muito temente a<br />
Deus”, explica, ao falar da decisão. Mas<br />
a cidade não ficou sem um mural do artista<br />
brasileiro. Kobra conseguiu negociar<br />
com as autoridades e pintou Anne<br />
Frank, a garota judia cujo diário escrito<br />
durante a ocupação nazista na cidade<br />
se tornou best-seller.<br />
As mensagens que Kobra quer transmitir<br />
refletem as questões que inquietam<br />
sua mente, como racismo, problemas<br />
ambientais, falta de cuidado com<br />
o patrimônio histórico e as diferenças<br />
e riquezas dos povos. “São temas que<br />
me tocam. E o que aprendo quando me<br />
aprofundo no assunto para pintar algo<br />
acaba me transformando. Meu trabalho<br />
é uma extensão daquilo que vivo,<br />
daquilo em que acredito, daquilo que<br />
sou e penso”, afirma.<br />
Em 2021, o propósito ganhou corpo<br />
fora dos murais com a fundação<br />
do Instituto Kobra, entidade que visa<br />
promover a inclusão social de adolescentes<br />
e jovens carentes por meio de<br />
atividades culturais. Em sua primeira<br />
ação, a instituição doou 700 mil reais<br />
para a construção de duas usinas<br />
de oxigênio hospitalar no Amazonas,<br />
cada uma com capacidade para produzir<br />
48 cilindros por dia. A ideia surgiu<br />
quando o estado sofria com a falta de<br />
oxigênio nos hospitais durante a pan-<br />
demia. A captação do dinheiro veio<br />
com a produção e venda da obra de arte<br />
Respirar, um cilindro pintado por Kobra,<br />
que simula uma planta dentro de uma<br />
redoma. “O instituto é a materialização<br />
do que tenho como princípio de vida.<br />
A arte pode servir como um antídoto<br />
contra muitos males. Pode significar<br />
humanidade, consciência e até tirar<br />
tantos meninos das drogas e do crime<br />
ao dar uma oportunidade de trabalho e<br />
de sonhar”, diz.<br />
Exatos 30 anos depois das noites maldormidas<br />
no chão do Playcenter <strong>–</strong> foi<br />
também lá, em 1995, que ele conheceu<br />
a esposa, Andressa <strong>–</strong>, Kobra encara<br />
mais um dia de trabalho em um parque<br />
de diversões. Desta vez, o cenário é o<br />
Walt Disney World Resort, em Orlando,<br />
Estados Unidos. O muralista aproveita<br />
os últimos raios de sol para guardar<br />
parte dos equipamentos antes de voltar<br />
para o conforto do hotel. No caminho, é<br />
abordado por um fã brasileiro que o reconhece<br />
e pede para tirar uma foto. A<br />
obra, um mural de 29 metros de comprimento<br />
e 5 metros de altura, mostra<br />
rostos de crianças de diferentes partes<br />
do mundo, um deles inspirado em Pedro,<br />
6 anos, filho do artista. “Eu sonhava<br />
em pintar na Disney, mas confesso<br />
que não imaginava que seria o primeiro<br />
brasileiro a receber esse convite. É fantástico<br />
estar aqui, num lugar repleto de<br />
personagens criados pelo gênio da arte<br />
que foi Walt Disney”, diz o artista à reportagem<br />
da Et cetera, por videoconferência.<br />
Quando foi inaugurado, em<br />
1973, o Playcenter trazia o slogan “O<br />
lugar onde tudo acontece”. Na vida de<br />
Kobra, o bordão ganhou novo sentido.<br />
Que conselho daria ao<br />
jovem Eduardo?<br />
“Afaste-se de convites<br />
que levem à bebida,<br />
às drogas ou a atalhos<br />
porque, na vida, o<br />
percurso é longo e difícil.<br />
Erga a cabeça e siga com<br />
fé em Deus porque Ele<br />
nunca erra. E valorize<br />
muito seus pais”<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 57<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 56<br />
Mural na Av. 23 de Maio, SP | foto: divulgação
Nome: Angelita Habr-Gama<br />
Idade: 89 anos<br />
Profissão: médica especialista em coloproctologia<br />
Cidade onde nasceu: Cachoeira do Arari, Ilha de Marajó/PA<br />
Pioneira<br />
do bisturi<br />
Por Daniela Macedo<br />
Reconhecida pela Universidade Stanford como<br />
uma das cientistas mais influentes do mundo,<br />
a cirurgiã Angelita Habr-Gama se recusou<br />
a ser barrada pelo machismo e abriu portas<br />
para as mulheres na medicina<br />
Foto: Jairo Goldflus<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 59<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 58
“Cirurgia não é coisa<br />
de mulher”<br />
O<br />
mundo ainda assistia perplexo à Organização Mundial<br />
da Saúde declarar o início da pandemia de Covid-19<br />
quando a médica Angelita Habr-Gama, então com 87<br />
anos, começou a sentir os primeiros sintomas da doença. Ela<br />
havia acabado de participar do lançamento de sua biografia,<br />
Não, Não É Resposta, escrita pelo romancista Ignácio de Loyola<br />
Brandão, em um coquetel realizado no dia 8 de março de<br />
2020, dias depois de retornar de um congresso em Israel.<br />
Primeiro, vieram a tosse e o cansaço. O quadro evoluiu para<br />
dores no corpo e falta de ar, e ela teve que ser internada. Não<br />
era assim que Angelita estava acostumada a entrar no hospital,<br />
praticamente sua segunda casa <strong>–</strong> a cirurgiã é referência<br />
mundial em coloproctologia, especialidade que cuida das doenças<br />
dos intestinos grosso e delgado, reto e ânus. No papel<br />
de paciente, viu sua tomografia mostrar os pulmões tomados<br />
pela Covid-19 e ouviu o trecho de um diálogo entre colegas de<br />
profissão que resumia a gravidade da situação: “Não sei se ela<br />
escapa dessa”.<br />
“Sabia que ser intubada era o único jeito de salvar minha vida.<br />
Como eu tenho uma grande capacidade de adaptação e resiliência,<br />
aceitei bem. O colega que ia fazer a traqueostomia [procedimento<br />
que realiza a abertura na traqueia para inserção do tubo]<br />
estava mais nervoso que eu. Agradeci e não vi mais nada”,<br />
conta. Foram 50 dias sedada e intubada na UTI do Hospital<br />
Alemão Oswaldo Cruz. Nesse período, durante uma entrevista<br />
coletiva, o então ministro Luiz Henrique Mandetta recebeu<br />
uma informação errada e lamentou a morte do “ícone da medicina<br />
brasileira”, erro corrigido logo depois por meio de um<br />
vídeo postado nas redes sociais do Ministério da Saúde.<br />
Reconhecida em 2022 pela Universidade Stanford como uma<br />
das cientistas mais influentes do mundo, é autora de uma estratégia<br />
revolucionária de tratamento para o câncer de reto.<br />
Seu nome consta como membro honorário em diversas sociedades<br />
científicas internacionais, entre elas American Surgical<br />
Association, Royal College of Surgeons, European Society<br />
of Coloproctology e International Society of University Colon<br />
and Rectal Surgeons, além das sociedades de coloproctologia<br />
de Brasil, Chile, Paraguai e Equador e da Academia Nacional<br />
de Medicina da Argentina. Os números impressionam: publicou<br />
mais de 200 capítulos em livros e 300 artigos em periódicos<br />
científicos, apresentou 2.400 trabalhos em congressos,<br />
organizou uma centena de eventos científicos e conquistou<br />
mais de 50 prêmios nacionais e internacionais.<br />
O período na UTI por causa do coronavírus foi a segunda vez<br />
em mais de seis décadas de carreira que Angelita passou<br />
tanto tempo fora do centro cirúrgico <strong>–</strong> em 1996, ela se afastou<br />
após quebrar o fêmur em uma queda, e poucas semanas<br />
depois já comandava procedimentos cirúrgicos, sentada em<br />
um banquinho. “Meu grande hobby na vida é operar”, resume.<br />
“Hobby” que ela conserva até hoje. A rotina dessa profissional<br />
incansável de 89 anos é agitada: às terças, quintas<br />
e sábados, faz cirurgias logo cedo e, se der tempo, preenche<br />
a tarde com atendimentos no consultório. As manhãs das<br />
segundas, quartas e sextas são dedicadas às visitas aos pacientes<br />
no pós-operatório. À tarde, mais consultas. Isso tudo<br />
quando não viaja para participar de congressos no Brasil e<br />
no exterior. “Sempre fui e vou a todos os congressos na minha<br />
especialidade. É lá que a gente compartilha e adquire<br />
conhecimentos. E faz amigos pro resto da vida”, diz. Até o<br />
final da década de 1990, ainda encontrava espaço na agenda<br />
para praticar seus esportes favoritos. Nas quadras de vôlei,<br />
na posição de levantadora, foi campeã do estado em 1951 com<br />
o time Adamus, fundado pela turma do colégio. Como tenista,<br />
venceu o campeonato estadual de tênis para principiantes.<br />
Se resiliência e capacidade de adaptação<br />
foram cruciais para driblar a<br />
morte, a vida dessa brasileira nascida<br />
na Ilha de Marajó, no Pará, é marcada<br />
pelo pioneirismo. Filha de imigrantes<br />
libaneses, mudou-se com a família<br />
para São Paulo aos 7 anos. Da infância<br />
na pequena Cachoeira do Arari, traz<br />
recordações das “exuberantes” vitórias-régias.<br />
“Nosso meio de transporte<br />
era a canoa. Eu botava a mão na água<br />
porque gostava de mexer na vitória-<br />
-régia. Minha mãe brigava, dizia que<br />
tinha piranha na água, mas eu colocava<br />
mesmo assim.” A troca das vitórias-<br />
-régias pelos arranha-céus que começavam<br />
a pipocar na capital paulista no<br />
início da década de 1940 deu um novo<br />
rumo à vida da paraense. Por influência<br />
das amigas do colégio, decidiu<br />
prestar vestibular para medicina. Enfrentou<br />
a primeira resistência em casa:<br />
“Meus pais não queriam que eu fosse<br />
médica. Minhas irmãs mais velhas<br />
eram professoras, todas as minhas<br />
tias eram professoras. Minha família<br />
queria que eu seguisse o mesmo caminho”.<br />
A determinação de Angelita<br />
prevaleceu. O anúncio dos aprovados<br />
no vestibular na Faculdade de Medicina<br />
da Universidade de São Paulo<br />
era feito com pompa e circunstância,<br />
como se dizia à época. Os candidatos<br />
e suas famílias se reuniam no pátio<br />
do prédio na Avenida Doutor Arnaldo<br />
para ouvir o secretário da faculdade<br />
ler a relação dos aprovados. Em oitavo<br />
lugar, com uma nota altíssima, veio o<br />
nome de Angelita.<br />
Em 1952, aos 19 anos, foi a primeira<br />
mulher da família a ingressar no curso<br />
de medicina. Dois grandes professores<br />
e sumidades em cirurgia, Alípio<br />
Correia Netto e Arrigo Antonio Raia,<br />
despertaram na estudante a paixão<br />
pelos bisturis. Só havia um problema:<br />
as poucas mulheres que seguiam<br />
carreira na medicina nem cogitavam<br />
optar por outras áreas além de ginecologia,<br />
obstetrícia ou clínica. Quando<br />
manifestou interesse em se candidatar<br />
a uma das oito vagas na residência em<br />
cirurgia, Angelita ouviu do chefe do<br />
setor que “cirurgia não é coisa de mulher”<br />
e que ela deveria desistir “para<br />
não tirar a vaga de um homem”. “Respondi<br />
que tinha todas as habilidades<br />
para ser cirurgiã: ‘Não tenho medo de<br />
nada, sou supertranquila, tenho bom<br />
físico, coluna boa, enxergo bem, minhas<br />
mãos nunca tremeram. Não posso<br />
ser cirurgiã só porque sou mulher?<br />
Não!’”, conta. Mergulhou nos estudos<br />
e passou em primeiro lugar, deixando<br />
para trás os sete homens aprovados.<br />
No dia 15 de janeiro de 1958, se tornou<br />
a primeira mulher cirurgiã residente<br />
do Hospital das Clínicas.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 61<br />
Formatura na FMUSP | foto: arquivo pessoal<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 60
A different woman<br />
Em 1960, São Paulo recebeu o Congresso<br />
Internacional da Associação<br />
Latino-Americana de Coloproctologia.<br />
Grandes especialistas da área vieram<br />
de vários cantos do mundo para participar.<br />
Um dos principais nomes do<br />
congresso era Basil Morson, famoso<br />
patologista do St Mark’s Hospital, único<br />
do mundo dedicado às doenças intestinais,<br />
localizado em Londres. As palestras<br />
do então diretor acadêmico do<br />
hospital entusiasmaram Angelita, e ela<br />
decidiu tentar um estágio na instituição.<br />
Mais uma vez, teve que desbravar<br />
o terreno. O primeiro contato foi respondido<br />
com uma frase nada promissora:<br />
“This is a hospital for men, not for<br />
women [Este é um hospital para homens,<br />
não para mulheres]”, dizia a carta. “But I<br />
am a different woman [Mas eu sou uma<br />
mulher diferente]”, respondeu a médica<br />
no primeiro dos vários pedidos que<br />
se seguiram, todos recheados de argumentos<br />
para que a aceitassem. Deu<br />
certo. Em 1961, com bolsa de estudo da<br />
instituição British Council e da Capes,<br />
Angelita embarcou para a Inglaterra<br />
e se tornou a primeira médica mulher<br />
no renomado hospital <strong>–</strong> que, naquele<br />
tempo, contava apenas com vestiários<br />
masculinos para a equipe médica. “Se<br />
eu falhasse, nenhuma outra mulher<br />
conseguiria. Ao longo de toda a minha<br />
carreira, trabalhei muito, ainda mais<br />
que os colegas homens. Pra vencer na<br />
vida, a mulher tem que ser igual ou melhor<br />
que eles.”<br />
Angelita trouxe conhecimento de sobra<br />
que aprendeu nos quase dois anos<br />
em Londres, convivendo com os melhores<br />
cirurgiões do aparelho digestivo.<br />
Mas foi o avô quem, involuntariamente,<br />
lhe ensinou uma técnica que se<br />
revelaria valiosa no centro cirúrgico.<br />
Na infância, Angelita ficava fascinada<br />
com a habilidade dele para manipular<br />
as cédulas de dinheiro, descolando rapidamente<br />
as notas com uma das mãos<br />
enquanto “contava o dinheirinho”,<br />
como dizia. O avô nem desconfiava que<br />
a neta recorreria anos depois à “manobra<br />
do dinheirinho”, como ela diz, para<br />
descolar alças do intestino quando um<br />
paciente apresenta aderência intestinal.<br />
Nesses casos, o cirurgião precisa<br />
soltar, com muita delicadeza, as alças<br />
coladas umas às outras, sem usar o bisturi<br />
para não perfurar o órgão.<br />
Outro hábito que Angelita leva da vida<br />
pessoal para o centro cirúrgico e que se<br />
tornou uma de suas marcas registradas:<br />
o apreço pelo silêncio. Ela não admite<br />
música na sala de operações, nem<br />
mesmo conversas entre os integrantes<br />
de sua equipe durante os procedimentos.<br />
“Isso tira o foco da cirurgia, tira o<br />
foco do abdômen do doente. Por isso<br />
gosto de operar calada e não gosto que<br />
falem”, explica.<br />
“Eu tinha que provar que mulher<br />
pode ser cirurgiã. E provei”<br />
Filme de espionagem<br />
O colonoscópio é um aparelho que conta com um tubo fino e flexível dotado de uma<br />
câmera na ponta. Permite examinar as paredes internas do intestino grosso e parte<br />
do intestino delgado e detectar, sem necessidade de cirurgia, a presença de pólipos,<br />
tumores e doenças inflamatórias. Em muitos casos, é possível remover e tratar o<br />
problema durante o próprio exame. Começou a ser comercializado no começo da<br />
década de 1970, quando as importações no Brasil estavam bastante restritas. Angelita<br />
conheceu o aparelho durante um congresso no México e, claro, entendeu sua<br />
importância. Decidida a trazer o primeiro colonoscópio ao Brasil, aceitou participar<br />
de um esquema digno de filme de espionagem: na volta a São Paulo, faria escala em<br />
Miami, onde encontraria um representante do fabricante para pegar o equipamento<br />
antes de embarcar no segundo voo. Como precisava de <strong>10</strong> mil dólares em dinheiro<br />
para fazer o pagamento, uma amiga que viajaria ao México naqueles dias levou a<br />
quantia dentro de uma bolsinha colada ao corpo. Angelita encontrou o sujeito no<br />
estacionamento do aeroporto, entregou o envelope com o dinheiro e pegou as três<br />
maletas que ele trazia no porta-malas.<br />
Foto: arquivo pessoal<br />
Durante muito tempo, viajou a outras<br />
cidades e estados para apresentar a<br />
novidade aos médicos e fazer procedimentos<br />
onde não havia o equipamento.<br />
Foi assim que ela conheceu o presidente<br />
Tancredo Neves (19<strong>10</strong>-1985).<br />
“Um dia, recebi uma ligação do doutor<br />
Ulysses Guimarães [(1916-1992), então<br />
presidente da Câmara dos Deputados]. Ele<br />
disse: ‘Dra. Angelita, a senhora precisa<br />
vir a Brasília para fazer uma colonoscopia<br />
no dr. Tancredo’.” Ela sabia<br />
apenas as informações desencontradas<br />
que a imprensa veiculava sobre a<br />
saúde do primeiro presidente civil pós-<br />
-ditadura militar. Pegou as maletas do<br />
colonoscópio e correu para o aeroporto.<br />
“Foi uma satisfação enorme conhecer<br />
Tancredo. Que homem extraordinário!<br />
Simples, educado, atencioso”, lembra<br />
a médica. Mas o quadro já era muito<br />
grave. Angelita recomendou sua<br />
transferência para o Instituto do Coração<br />
(InCor) do Hospital das Clínicas,<br />
em São Paulo, onde Tancredo acabou<br />
falecendo, em 21 de abril de 1985, em<br />
decorrência de insuficiência respiratória.<br />
“Ele era obeso e estava com os pulmões<br />
totalmente comprometidos”, diz<br />
Angelita. Integrante do corpo clínico<br />
que cuidou do presidente, teve a difícil<br />
missão de informar Risoleta Neves que<br />
não havia mais esperança, seu marido<br />
estava morrendo.<br />
Angelita é autora do protocolo de tratamento<br />
para câncer de reto mais usado<br />
pelos médicos no mundo atualmente.<br />
Batizado de Wait and Watch, consiste<br />
em submeter o paciente a sessões de<br />
quimioterapia e radioterapia e “esperar<br />
e observar” por alguns meses. Muitas<br />
vezes, o tumor desaparece por completo<br />
durante essa espera, poupando o doente<br />
da cirurgia radical para remoção<br />
do câncer. A princípio, a comunidade<br />
médica rejeitou a ideia, mas Angelita<br />
continuou defendendo sua abordagem<br />
em congressos e acabou por convencer<br />
os colegas de sua eficácia.<br />
Capa da revista científica da Sociedade Americana<br />
de Cirurgiões Colorretais, em 2018<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 63<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 62
Médica e professora<br />
União duradoura<br />
Angelita fez muitos amigos nos tempos de faculdade. Um deles, Joaquim Gama, se apaixonou por ela no primeiro dia. Mas Angelita<br />
estava focada nos estudos, e o relacionamento só engrenou depois que ela voltou do estágio em Londres. Por causa da<br />
dedicação do casal à medicina, o namoro de dez meses somou mais encontros no centro cirúrgico do que no cinema. Casaram-se<br />
em dezembro de 1964, em cerimônia que fugiu às tradições: o vestido de Angelita tinha pala bordada com pétalas verdes, além<br />
de chapéu e véu também verdes. Quem substituiu o pai, já falecido à época, no caminho ao altar foi o professor Alípio Netto <strong>–</strong><br />
Arrigo Raia, outro professor influente na vida da médica, foi padrinho no casamento civil.<br />
O casal atende na mesma clínica. Ela cuida do trato intestinal,<br />
ele trata do estômago. O marido não poupa elogios à companheira<br />
de seis décadas: “Angelita tem autoconfiança, sinceridade,<br />
perseverança, acentuado bom senso, espírito científico<br />
à flor da pele, desapego material e valoriza todas as formas<br />
de progresso que beneficiem o ser humano”. E emenda outra<br />
característica: “A sincera alegria de viver”.<br />
O casal optou por não ter filhos, e se a decisão ainda provoca<br />
alvoroço familiar nos dias de hoje, causava terremoto na<br />
Com o marido, Joaquim Gama | foto: arquivo pessoal<br />
década de 1960. Tanto a família dela como a dele demoraram<br />
a aceitar, mas todos acabaram entendendo. “Nunca me arrependi<br />
dessa decisão. Não teria conseguido me dedicar à<br />
medicina, à cirurgia, à coloproctologia se tivesse filhos. Maternidade<br />
é profissão, exige dedicação completa”, explica Angelita.<br />
“Eu tinha que provar que mulher pode ser cirurgiã. E<br />
provei. Hoje, quando elas querem seguir a carreira na cirurgia,<br />
ainda ouvem que não é profissão para mulher. E dizem<br />
‘Tem uma cirurgiã muito boa e quero seguir o exemplo dela’.<br />
É muito gratificante ter aberto essas portas.”<br />
Quando voltou do estágio no hospital St Mark’s, Angelita finalmente<br />
abraçou a profissão sonhada pelos pais: começou<br />
a dar aulas na USP, alcançando o posto de professora titular<br />
emérita da instituição. “Sou apaixonada por dar aulas. Gosto<br />
de transmitir meus conhecimentos, e a medicina me permitiu<br />
essa realização. Não guardo o que aprendo só pra mim.<br />
Viajo, aprendo novas técnicas e procedimentos e ensino não<br />
só pra minha equipe, mas pra quem quiser aprender.” Além<br />
de lecionar, criou a disciplina de coloproctologia e desbravou<br />
um novo terreno ao tornar-se a primeira mulher a chefiar o<br />
departamento de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP.<br />
O hábito de conviver com a juventude nos hospitais, nas salas<br />
de aula e no ambiente familiar, ao lado de sobrinhos e<br />
sobrinhos-netos, foi sempre cultivado. “A convivência com<br />
os jovens nos rejuvenesce. Eles têm ideias próprias, a gente<br />
aprende demais com eles. Gosto dos jovens.” O sentimento<br />
é recíproco. “A doutora Angelita tem grande capacidade<br />
de liderança, de apoiar e acreditar nos jovens ao redor dela.<br />
Sempre apoiou estudantes e residentes de forma construtiva,<br />
quase como uma mãe apoia um filho”, diz Rodrigo Perez, cirurgião<br />
do aparelho digestivo no Hospital Oswaldo Cruz. “Ela<br />
sempre carregou um número enorme de pessoas atrás dela,<br />
como se fosse um cometa com uma grande cauda. São características<br />
que a tornam uma pessoa tão especial”, completa<br />
o médico, que trabalha com Angelita há quase três décadas.<br />
Fundadora da Associação Brasileira de Prevenção do Câncer<br />
de Intestino (Abrapreci), Angelita tem o radar ligado quando<br />
se trata da saúde de jovens e crianças. Em certa ocasião,<br />
interrompeu a festa de aniversário de uma sobrinha-neta<br />
quando viu a criançada comendo algodão-doce colorido. Pegou<br />
o microfone das mãos do palhaço e pediu: “Parem já de<br />
comer o algodão-doce verde! Joguem fora!” Ela ressalta que<br />
não é contra guloseimas, mas insiste nos malefícios de colorir<br />
balas e doces artificialmente. “O corante artificial age na produção<br />
de carcinogênicos nas células intestinais, e as crianças<br />
ainda estão na fase de mutação, por isso sempre peço às<br />
mães que não deem corantes aos filhos”, explica. E não perde<br />
o bom humor: “Já o velho pode comer o que quiser. Outro dia,<br />
uma paciente de 90 anos perguntou o que pode comer. Respondi<br />
‘Minha amiga, nessa idade a gente come o que apetecer,<br />
até linguiça’”.<br />
Depois de quase morrer em decorrência de uma doença que<br />
já matou cerca de 700 mil brasileiros, Angelita renasceu,<br />
como costuma dizer. Ressalta a importância de seguir as<br />
orientações médicas e confiar na ciência <strong>–</strong> foi tratada com<br />
antibióticos e nunca recorreu a medicamentos sem eficácia<br />
comprovada. Depois de quase dois meses sedada, acordou<br />
“ótima”. “Fui bem tratada e tinha muita vontade de viver”, diz.<br />
“Só vive muito quem gosta de viver. E eu amo a vida.”<br />
Que dica conselho daria à<br />
jovem Angelita?<br />
“Tenha autoestima. Goste<br />
de si mesma, reconheça sua<br />
capacitação e suas limitações,<br />
para procurar vencê-las, e<br />
compartilhe o que sabe. E leve<br />
a vida com alegria”<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 65<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 64
Um cartum<br />
Cultivo de algas | foto: Getty Images<br />
Algas no cardápio<br />
Uma tendência<br />
Açaí, goji berry, quinoa, matcha. Muitos<br />
alimentos já ocuparam o posto de<br />
queridinho dos a deptos do estilo de<br />
vida saudável, mas o superalimento<br />
da vez vem dos oceanos. Segundo o<br />
relatório Pinterest Predicts <strong>2023</strong>, são<br />
as algas marinhas que estão caindo<br />
no gosto dos millennials e da geração<br />
Z como superfoods, alimentos ricos em<br />
nutrientes e compostos bioativos, que<br />
atuam como agentes preventivos e<br />
complementação a tratamentos de certas<br />
doenças crônicas. E a previsão da<br />
rede social não traz nenhuma novidade<br />
no cardápio da humanidade. Pelo contrário.<br />
As plantas marinhas são consumidas<br />
pelas populações litorâneas de<br />
países da Ásia Oriental há milênios.<br />
Nori (folhas usadas para enrolar sushi),<br />
wakame e kombu, além das microalgas<br />
chlorella e spirulina, são exemplos<br />
de variedades comestíveis. “As algas<br />
são ricas em compostos bioativos e<br />
nutrientes como proteínas, fibras,<br />
ômega 3, vitaminas do complexo B,<br />
cálcio, magnésio e iodo. Elas também<br />
possuem propriedades antioxidantes,<br />
prebióticas, neuroprotetoras e anti-inflamatórias”,<br />
explica a nutricionista clínica<br />
Haydée Borges, do Rio de Janeiro.<br />
A saúde do planeta agradece. Com a<br />
estimativa de uma população mundial<br />
perto dos <strong>10</strong> bilhões de habitantes em<br />
2050, as algas podem ser o caminho<br />
para suprir a necessidade de alimentos<br />
sem ampliar os problemas ambientais.<br />
Elas também têm uma função<br />
crucial na preservação e restauração<br />
de ecossistemas marinhos. E mais:<br />
seu crescimento dispensa o uso de<br />
fertilizantes e pesticidas.<br />
Para os céticos em relação às previsões<br />
do Pinterest, vale lembrar que, nos últimos<br />
três anos, 80% das tendências<br />
apontadas pela rede social se tornaram<br />
realidade. Mas como incluir as algas<br />
no cardápio diário sem passar pela<br />
culinária japonesa? A nutricionista<br />
dá algumas dicas: “Algas como a nori<br />
podem ser consumidas em saladas e,<br />
quando temperadas e assadas rapidamente<br />
em forno baixo, ficam crocantes<br />
e se tornam um ótimo snack. As algas<br />
wakame e kombu entram no preparo<br />
de caldos e ensopados, sopas e pratos<br />
com frutos do mar, enquanto chlorella<br />
e spirulina podem ser usadas para enriquecer<br />
bebidas como vitaminas com<br />
frutas ou ainda em preparações como<br />
muffins e biscoitos”. A resposta também<br />
pode estar no próprio Pinterest,<br />
uma vez que a rede social prevê um<br />
aumento de 245% nas buscas por receitas<br />
de lanches de algas.<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 67<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 66
Um sabor<br />
Uma palavra<br />
Para tirar o certificado de aptidão ao cargo de professora<br />
do ensino médio, precisei fazer uma prova<br />
didática em uma escola em Lyon, no bairro da<br />
Croix-Rousse. Era uma escola nova, com plantas<br />
nos espaços reservados à administração e ao corpo<br />
docente, uma biblioteca com carpete cor de areia no<br />
térreo. Ali fiquei aguardando me buscarem para fazer<br />
a prova, que consistia em dar uma aula na frente<br />
de um inspetor e de dois assistentes, professores<br />
de letras muito renomados. Uma mulher corrigia as<br />
provas com um ar de superioridade, sem nenhum<br />
tipo de hesitação. Bastaria cumprir, na próxima<br />
hora, todas as regras para conseguir o certificado<br />
que me faria ser como ela pelo resto da minha vida.<br />
Diante de uma turma de segundo ano científico,<br />
analisei 25 linhas <strong>–</strong> que deviam estar numeradas<br />
<strong>–</strong> de O Pai Goriot, de Balzac. Logo em seguida, já na<br />
sala da direção, o inspetor me recriminou: “Sua aula<br />
foi muito arrastada”. Ele estava sentado entre os<br />
dois assistentes, um homem e uma mulher míope<br />
de sapatos cor-de-rosa. E eu na frente deles. Durante<br />
quinze minutos, o inspetor misturou críticas,<br />
elogios e conselhos que eu mal conseguia ouvir, me<br />
perguntando se tudo aquilo significava uma reprovação.<br />
De repente, os três se levantaram ao mesmo<br />
tempo com um ar grave. Também me levantei rápido.<br />
O inspetor estendeu a mão. Depois, olhando-me<br />
nos olhos: “Meus parabéns, minha senhora”. Os outros<br />
repetiram “Parabéns” e me apertaram a mão, a<br />
mulher sorria.<br />
Annie Ernaux<br />
Trecho do livro Um Lugar<br />
Tradução de Marília Garcia<br />
Editora Fósforo<br />
Foto: Mauro Holanda<br />
As festas de fim de ano são uma ótima oportunidade para impressionar os amigos<br />
com uma receita do sétimo melhor restaurante do mundo. Criada pelos chefs<br />
Janaína e Jefferson Rueda, a Casa do Porco fez bonito no The World’s 50 Best Restaurants,<br />
tradicional ranking anual de melhores do mundo feito pela revista britânica<br />
Restaurant. Janaína inspira-se na culinária japonesa para criar um prato inusitado e<br />
delicioso, com diferentes texturas e sabores. A receita é quase um desafio gourmet:<br />
requer tempo e planejamento <strong>–</strong> os picles devem ser preparados com cinco dias de<br />
antecedência <strong>–</strong>, mas promete um almoço/jantar inesquecível.<br />
PORCOYAKI<br />
Chef Janaína Rueda<br />
INGREDIENTES DOS<br />
PICLES DE CENOURA<br />
• 150 ml de vinagre de álcool<br />
• 200 ml de água<br />
• 22 g de sal refinado<br />
• 17 g de açúcar<br />
• 3 unidades de pimenta-do-reino (grão)<br />
• 2 cenouras<br />
Modo de preparo: descasque a cenoura e<br />
modele flores em rodelas (podem ser feitas<br />
com um aro ou com a faca). Coloque<br />
as flores em um pote fechado com o restante<br />
dos ingredientes. Deixe descansar<br />
por, pelo menos, 5 dias.<br />
INGREDIENTES DA<br />
COUVE-FLOR<br />
FERMENTADA<br />
• 120 g de couve-flor<br />
• 2,5 g de sal refinado<br />
Modo de preparo: corte a couve-flor em<br />
floretes médios. Coloque em um saco<br />
de vácuo com o sal e deixe em tempe-<br />
ratura ambiente até que o saco comece<br />
a inflar (quando o clima está bem<br />
quente, em um dia está bom). Guarde<br />
na geladeira.<br />
INGREDIENTES DO<br />
CALDO DASHI<br />
• 1 kg de osso de porco com carne<br />
• 300 g de pé de porco<br />
• 50 g de cebola branca<br />
• 20 g de alho<br />
• <strong>10</strong>0 g de gengibre<br />
• 60 ml de saquê mirin<br />
• 3 l de água<br />
• Sal a gosto<br />
• <strong>10</strong> g de shiitake seco<br />
• <strong>10</strong> g de kombu (algas marinhas)<br />
• 1,5 g de katsuobushi (lascas de peixe<br />
desidratado)<br />
Modo de preparo: cozinhe todos os ingredientes,<br />
com exceção do kombu e<br />
do katsuobushi. Quando a água estiver<br />
fervendo, retire 2 xícaras para fazer<br />
uma infusão com o kombu (cortado) e<br />
o katsuobushi. Depois de extrair todo o<br />
sabor, devolva a infusão à panela usando<br />
uma peneira para separar os ingredientes<br />
sólidos. Deixe cozinhar em<br />
fogo baixo por cerca de 8 horas. Coe e<br />
deixe esfriar. Retire o excesso de gordura<br />
e aqueça o caldo na hora de servir.<br />
INGREDIENTES DOS<br />
PICLES DE NABO<br />
• 3 g de pimenta dedo-de-moça<br />
• 4 g de alho inteiro<br />
• 2 g de açúcar cristal<br />
• 200 ml de água<br />
• 150 ml de shoyu<br />
• 150 ml de vinagre de arroz<br />
• 50 g de nabo<br />
Modo de preparo: misture os ingredientes<br />
líquidos e aqueça. Em seguida,<br />
acrescente os outros itens, coloque em<br />
um saco de vácuo e armazene na geladeira.<br />
Utilize após 5 dias.<br />
MONTAGEM<br />
• 400 ml de caldo dashi<br />
• 60 g de lardo Porco Real<br />
• 16 unidades de picles de cenoura<br />
• 4 unidades de picles de nabo<br />
• 4 floretes de couve-flor fermentada<br />
• 40 g de espinafre refogado<br />
• 60 g de brócolis<br />
• 4 unidades de cogumelo shiitake<br />
pequeno grelhado<br />
• 2 unidades de ovo de codorna cozido<br />
• Azeite a gosto<br />
• Flor de sal a gosto<br />
• Pimenta-do-reino a gosto<br />
Modo de preparo: refogue o espinafre<br />
com azeite e sal e reserve. Cozinhe os<br />
brócolis (apenas os floretes com água<br />
e sal, rapidamente) e, em seguida, coloque<br />
em água com gelo para interromper<br />
a cocção. Tempere com sal e azeite.<br />
Grelhe os cogumelos em churrasqueira<br />
ou frigideira com azeite e sal. Em um<br />
prato fundo redondo, disponha os legumes<br />
em formato de círculo, com o<br />
lardo cortado em finas fatias (como um<br />
espaguete, enrolado) no final, fechando<br />
o círculo. Coloque metade de um ovo<br />
com a gema para cima. Finalize com<br />
flor de sal e pimenta-do-reino. Sirva<br />
o caldo bem quente em cima do lardo,<br />
cobrindo o restante dos ingredientes.<br />
Rendimento: 4 porções<br />
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Uma imagem<br />
Dall-E 2/OpenAI<br />
O que o futuro nos reserva? Difícil acreditar que, um século<br />
atrás, uma única mente entre o 1,8 bilhão de habitantes no<br />
planeta tenha vislumbrado a transformação que viria pela<br />
frente. A humanidade passou de uma realidade analógica, em<br />
que artistas como o pintor francês Henri Matisse coloriam o<br />
mundo com suas caprichosas pinceladas em tela, para uma<br />
sociedade digital que quer tudo a um clique de distância. O<br />
que haverá no próximo salto de um século é uma incógnita,<br />
mas é certo que ela, a tecnologia, continuará a desempenhar<br />
um papel decisivo no caminho até lá. E a inteligência artificial<br />
terá um espaço crucial na evolução dos novos humanos.<br />
A imagem acima foi gerada por IA, pouco mais de um século<br />
depois de Matisse nos brindar com A Dança. O software<br />
Dall-E cria os traços e cores com um empurrãozinho humano:<br />
basta digitar uma breve descrição do que se quer retratar,<br />
acompanhada do estilo de preferência, que o programa responde<br />
ao pedido, em poucos segundos, com algumas opções<br />
de imagem. O nome Dall-E vem de uma brincadeira com o<br />
título da animação da Pixar protagonizada por um simpático<br />
robô, Wall-E, e com o sobrenome do pintor surrealista Salvador<br />
Dalí. Em tempo: a “obra de arte” futurista que ilustra esta<br />
seção foi criada a partir da descrição “An oil painting by Matisse<br />
of a humanoid robot playing chess” (Uma pintura a óleo<br />
de Matisse de um robô humanoide jogando xadrez).<br />
VERÃO <strong>2023</strong> | EDIÇÃO <strong>10</strong> • PÁG. 70