Linguagem e sentido na Educação Infantil: uma ... - TV Brasil
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EDIÇÃO ESPECIAL<br />
LINGUAGEM E<br />
ISSN 1982 - 0283<br />
SENTIDO NA EDUCAÇÃO<br />
INFANTIL:<br />
UMA HOMENAGEM A<br />
BARTOLOMEU CAMPOS<br />
DE QUEIRÓS<br />
Ano XXII - Boletim 7 - Outubro 2012
Edição EspEcial:<br />
LINGUAGEM E SENTIDO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA<br />
HOMENAGEM A BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS<br />
SUMÁRIO<br />
<strong>Linguagem</strong> e <strong>sentido</strong> <strong>na</strong> <strong>Educação</strong> <strong>Infantil</strong>: <strong>uma</strong> home<strong>na</strong>gem a Bartolomeu Campos de<br />
Queirós ................................................................................................................................... 3<br />
Patrícia Corsino
Edição EspEcial<br />
LINGUAGEM E SENTIDO NA EDUCAÇÃO<br />
INFANTIL: UMA HOMENAGEM A<br />
BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS Patrícia Corsino 1<br />
Esta edição especial do programa Salto para<br />
o Futuro tem como proposta discutir lin-<br />
guagem e <strong>sentido</strong>s <strong>na</strong> <strong>Educação</strong> <strong>Infantil</strong> e,<br />
simultaneamente, fazer <strong>uma</strong> home<strong>na</strong>gem a<br />
Bartolomeu Campos de Queirós, escritor fa-<br />
lecido em janeiro de 2012, autor de diversos<br />
livros de literatura, cujos textos, com ima-<br />
gens e ritmos muito peculiares, em geral fo-<br />
ram rotulados como “literatura para crian-<br />
ças”, mas por vezes é difícil enquadrá-los em<br />
tal categorização. Em várias de suas obras,<br />
como Indez; Por Parte de Pai; Ler, escrever e fa-<br />
zer conta de cabeça; Antes do depois e Verme-<br />
lho Amargo, o autor mergulha <strong>na</strong>s suas me-<br />
mórias de infância. O vigor da/<strong>na</strong> linguagem<br />
em que ele deixa aflorar os sentimentos do<br />
menino – perso<strong>na</strong>gem que, em várias obras,<br />
assume a <strong>na</strong>rração em primeira pessoa –<br />
evidencia que as crianças, desde bem pe-<br />
que<strong>na</strong>s, são sensíveis ao mundo, percebem<br />
e significam intensamente o que está ao seu<br />
redor. Nos relatos de infância, o autor tece<br />
o que anuncia no poema Os cinco <strong>sentido</strong>s:<br />
“em cada <strong>sentido</strong> moram outros <strong>sentido</strong>s”.<br />
As memórias de menino trazem as miude-<br />
zas do cotidiano, contextos de vida de um<br />
tempo histórico situado, mas a linguagem<br />
poética que arremata as emoções ultrapas-<br />
sa tempo e espaço e toca nossas memórias,<br />
remexe e deixa transbordar o que nem sus-<br />
peitávamos por que:<br />
Memória não tem filtro e armaze<strong>na</strong><br />
tudo. Memória a gente não rasga, não<br />
joga no lixo, não lava com sabão. Me-<br />
mória é sentinela, e nos vigia sempre. A<br />
memória não vê mas não tira o olho. Vai<br />
somando vida afora. Tudo que a gente<br />
olha, ouve, toca, come, cheira, a memó-<br />
ria não esquece. E, de repente, transbor-<br />
da mais rápido que enchente. Coisas que<br />
a gente só imaginou, a memória guarda.<br />
1 Doutora em <strong>Educação</strong> pela PUC-Rio, professora adjunta da Faculdade de <strong>Educação</strong> da UFRJ, professora<br />
do Programa de Pós-Graduação em <strong>Educação</strong> da UFRJ e integrante do LEDUC (Laboratório de <strong>Linguagem</strong>, leitura,<br />
escrita e educação). Consultora da edição especial.<br />
3
E fatos que a gente nem sabia que sabia<br />
rompem sem mais nem menos no pensa-<br />
mento (...). E chegar ao mundo com 57<br />
anos é ter, desde cedo, um grande peso<br />
de memória (Queirós, 2006, p.11).<br />
Para Yunes (2012, p. 37), foi assim, alçando<br />
voo das misérias cotidia<strong>na</strong>s da infância, que<br />
lançou um olhar alto sobre a paisagem hu-<br />
ma<strong>na</strong>, para desenhá-la no marco de outros<br />
horizontes. A paisagem h<strong>uma</strong><strong>na</strong> que o autor<br />
desenhou ao longo de sua obra inclui o me-<br />
nino, suas heranças, sua infância marcada<br />
pelos afetos, mas rompe fronteiras do sin-<br />
gular pelo profundo mergulho que dá no<br />
que há de mais h<strong>uma</strong>no: os sentimentos, os<br />
assombros diante da vida, os <strong>sentido</strong>s pro-<br />
duzidos entre o doce, o salgado, o ácido e<br />
o amargo. A linguagem literária cuidadosa-<br />
mente lapidada dá a to<strong>na</strong>lidade necessária<br />
aos voos e mergulhos.<br />
É nossa intenção nesta edição especial abor-<br />
dar alg<strong>uma</strong>s questões de linguagem <strong>na</strong> Edu-<br />
cação <strong>Infantil</strong>, caminhando entre os textos<br />
de Bartolomeu Campos de Queirós, sejam<br />
literários, sejam palestras, entrevistas e ar-<br />
tigos. O trabalho foi organizado em quatro<br />
partes: a primeira traz os <strong>sentido</strong>s – tato,<br />
olfato, paladar, audição, visão –, metáfora<br />
e conteúdo presentes em muitas passagens<br />
da obra de Queirós, com as apropriações do<br />
menino reinventadas pelo autor; <strong>na</strong> segun-<br />
da, as brincadeiras, as interações e relações<br />
que elas proporcio<strong>na</strong>m <strong>na</strong> infância; a tercei-<br />
ra trata questões de leitura e escrita do me-<br />
nino que aprendeu a ler antes de ir para a<br />
escola e do autor que assi<strong>na</strong> o Manifesto por<br />
um <strong>Brasil</strong> Literário; por fim, concluímos com<br />
considerações para se pensar linguagem e<br />
<strong>sentido</strong>s no cotidiano da <strong>Educação</strong> <strong>Infantil</strong>.<br />
SENTIDOS<br />
No poema Os cinco <strong>sentido</strong>s, Bartolomeu<br />
convoca o leitor a refletir sobre os <strong>sentido</strong>s<br />
que atribuímos ao que nos cerca. Poetica-<br />
mente, afirma: por meio dos <strong>sentido</strong>s suspei-<br />
tamos o mundo, e reitera que não há <strong>sentido</strong><br />
único e sim o plausível num dado momento.<br />
O mundo suspeitado e possível de se tradu-<br />
zir em palavras é o mundo vivido sem en-<br />
saios, onde cada acontecimento é único,<br />
irrepetível, e o acabamento necessário para<br />
sua legibilidade se dá <strong>na</strong> relação com o ou-<br />
tro (Bakhtin, 2003).<br />
<strong>Linguagem</strong> e <strong>sentido</strong>s se inter-relacio<strong>na</strong>m. É<br />
<strong>na</strong> linguagem que os <strong>sentido</strong>s são produzi-<br />
dos. Por sua vez, os cinco <strong>sentido</strong>s – tato, ol-<br />
fato, paladar, audição, visão – além de sensa-<br />
ções físicas, suscitam respostas do sujeito.<br />
Respostas e produção de <strong>sentido</strong>s, que se<br />
traduzem muitas vezes em silêncios – onde<br />
vive todo tipo de ruído (Queirós, 2006, p.19)<br />
–, mas que também se manifestam em ges-<br />
tos, palavras, traços, sons: linguagem. Sen-<br />
tir e produzir <strong>sentido</strong> estão intrinsecamente<br />
relacio<strong>na</strong>dos, porque os <strong>sentido</strong>s h<strong>uma</strong>nos<br />
captam sensações que são significadas de<br />
4
diversas formas. Conforme as situações em<br />
que acontecem, as sensações/enunciações<br />
são percebidas como agradáveis ou desagra-<br />
dáveis, acolhedoras ou repulsivas, boas ou<br />
ruins, afetas ou desafetas. A percepção se dá<br />
de forma contextual e o <strong>sentido</strong> é produzido<br />
<strong>na</strong> linguagem. É <strong>na</strong> linguagem que o sujei-<br />
to se inter-relacio<strong>na</strong> e penetra <strong>na</strong> cultura,<br />
desde que <strong>na</strong>sce. Ela o constitui, mas tam-<br />
bém se renova a cada ato enunciativo, num<br />
duplo movimento de reflexão e de refração<br />
do mundo, de conservação e criação que o<br />
coloca – desde muito cedo – num lugar ati-<br />
vo de produção de algo novo e único, <strong>na</strong>/da<br />
cultura.<br />
A literatura e as artes em geral, com suas<br />
lentes e ângulos próprios, dão visibilidade<br />
ao que, muitas vezes, o nosso olhar não al-<br />
cança, não sabe definir ou dizer. Produzem,<br />
assim, conhecimentos e reflexões sobre a<br />
realidade que se dão à interlocução com<br />
outras formas de produção do conhecimen-<br />
to. Ao longo de sua obra, Queirós trabalha<br />
a linguagem de forma poética e sensorial,<br />
reiventando o menino que foi. Parafrasean-<br />
do Manoel de Barros, a infância é inventa-<br />
da, e esta memória inventada, em diferentes<br />
passagens de sua obra, dá visibilidade aos<br />
<strong>sentido</strong>s produzidos pelo menino, nos apro-<br />
ximando não ape<strong>na</strong>s daquela infância, mas<br />
da infância de cada um de nós.<br />
Assim é que Antônio, com um ano de ida-<br />
de, <strong>na</strong>s primeiras brincadeiras com palavras,<br />
sentado no colo do avô, entende não a histó-<br />
ria por si mesma, mas o afeto e o aconche-<br />
go. A palavra brinca e abraça:<br />
O avô com Antônio sobre seus joelhos,<br />
contava peque<strong>na</strong>s histórias: “Cadê o<br />
toucinho que estava aqui? O gato co-<br />
meu. Cadê o gato...”, que, se não enten-<br />
didas pelo neto, eram lidas pelos abraços<br />
e risos trocados entre o menino e o avô<br />
(Queirós, 2004, p. 20).<br />
Para Bakhtin (1992, p. 278), “tudo o que me<br />
diz respeito, a começar por meu nome, e que<br />
penetra em minha consciência, vem-me do<br />
mundo exterior, da boca dos outros (da mãe<br />
etc.), e me é dado com a ento<strong>na</strong>ção, com<br />
o tom emotivo dos valores deles”. Portanto,<br />
<strong>na</strong> palavra que o bebê recebe da boca dos<br />
outros, forma e tom são constituintes do<br />
conteúdo. Há <strong>uma</strong> interdependência entre<br />
forma e conteúdo, estética e ética. O verbal<br />
vem acompanhado de acentos apreciativos,<br />
de expressões não verbais, de presumidos,<br />
de sentimentos, de vida. O <strong>sentido</strong> dado pela<br />
criança se relacio<strong>na</strong> ao que ela destaca do<br />
todo enunciativo. Embora possa ser parti-<br />
lhado, o <strong>sentido</strong> é singular, diferentemente<br />
do significado que é dicio<strong>na</strong>rizável.<br />
Para Bakhtin (1988), a materialidade da vida<br />
é também sígnica. Tudo pode converter-se<br />
em signo, e o discurso das coisas nos marca<br />
desde a infância. As coisas falam às crianças<br />
de muitas formas. Não só pela incli<strong>na</strong>ção<br />
5
por darem vida a elas, transformá-las pela<br />
brincadeira, se mimetizarem nelas, mas<br />
também pela capacidade que têm em estar<br />
por inteiro <strong>na</strong>s situações. A percepção do<br />
tempo cronológico (kronos) – medido e or-<br />
de<strong>na</strong>do pelo relógio – é <strong>uma</strong> construção que<br />
vai se dando aos poucos, ao longo da infân-<br />
cia. A criança peque<strong>na</strong> vive um tempo que<br />
é entrega e intensidade (aión), tempo sem<br />
pressa, sem divisões. Este tempo se abre à<br />
experiência, no <strong>sentido</strong> dado por Benjamin<br />
(1992), porque também se dá à <strong>na</strong>rrativa, à<br />
tessitura artesa<strong>na</strong>l do agir.<br />
Assim, a memória do menino guarda alguns<br />
cheiros que os objetos exalam, mas é o afeto<br />
que se espalha no ar:<br />
A madrugada, ao anunciar o outro dia,<br />
chegava entre canto de galo e mugido<br />
de gado. A mãe, já <strong>na</strong> cozinha, prepara-<br />
va bolo de fubá, assado em panela com<br />
tampa em brasas. O cheiro permeava<br />
toda a casa e apressava os meninos, que<br />
imagi<strong>na</strong>vam pedaços de queijo derretido<br />
entre fatias (Queirós, 2004, p.16).<br />
Do<strong>na</strong> Maria Campos [professora do pri-<br />
meiro ano] me ensinou demais, muito<br />
além das paredes do meu avô. Ou me-<br />
lhor, me ensi<strong>na</strong>va serem muitos os lu-<br />
gares da escrita e da leitura. De suas<br />
histórias lidas no fim da aula, eu ainda<br />
guardo o cheiro do livro (Queirós, 2012,<br />
p.25).<br />
Nos relatos de Queirós, à vida do menino ca-<br />
bem sabores e dissabores. A linguagem po-<br />
ética não dilui alegrias ou tristezas próprias<br />
da vida de todos nós, em qualquer idade. Sa-<br />
bores adoçam a vida, mas também trazem<br />
as amarguras. A criança é tomada <strong>na</strong> sua<br />
competência de provar da vida, sem visão<br />
romântica ou idealizações:<br />
Para que não chorasse, a mãe enrolava<br />
lasquinhas de rapadura em retalho de<br />
pano alvejado. Ele chupava aquela trou-<br />
xinha com cara de quem estava adoçan-<br />
do a vida (Queirós, 2004, p.12).<br />
Lágrima é feita de água e sal. Isso mos-<br />
tra que existe um mar morando dentro<br />
da gente. Chorar é deixar o mar trans-<br />
bordar, eu fantasiava. Chorar é não<br />
querer morrer afogado. Chorar ajuda o<br />
mercurocromo a curar mais depressa<br />
a ferida. Nunca perguntei à professora<br />
sobre as lágrimas. Tinha medo de escu-<br />
tar que a “ciência explicava” ( Queirós,<br />
2006, p.10-11).<br />
Oito. A madrasta retalhava um tomate<br />
em fatias, assim fi<strong>na</strong>s, capaz de envene-<br />
<strong>na</strong>r a todos. Era possível entrever o arroz<br />
branco do outro lado do tomate, tama-<br />
nha a sua transparência. Com a saudade<br />
evaporando pelos olhos, eu insistia em<br />
justificar a economia que administrava<br />
seus gestos. Afiando a faca no cimento<br />
frio da pia, ela cortava o tomate verme-<br />
6
lho, sanguíneo, maduro, como se dego-<br />
lasse cada um de nós (2011, p. 9).<br />
O autor traz também os silêncios e sons ou-<br />
vidos pelo menino, com seus mistérios e pre-<br />
sumidos, evidenciando que as crianças estão<br />
atentas quando os adultos nem suspeitam:<br />
Era silencioso, mas escutava-se o amor<br />
murmurando – noite adentro – no quar-<br />
to do casal. A casa sem forro deixava<br />
vazar esse murmúrio com o aroma de<br />
fumo e canela, que invadia lençóis e dú-<br />
vidas, para depois filtrar-se por entre te-<br />
lhas (Queirós, 2004, p.25).<br />
A casa ganhou um barulho novo. Ele veio<br />
acompanhado do cheiro de salsa que in-<br />
vadia os cômodos, anunciando a canja<br />
feita de galinha gorda (...). A<strong>na</strong> <strong>na</strong>sceu<br />
em tempo certo, sem atropelar a vida de<br />
ninguém (Queirós, 2004, p.45).<br />
O menino curioso tem um olhar vagaroso<br />
que extrapola o visível. Parte do que existe<br />
diante dos seus olhos para imagi<strong>na</strong>r:<br />
Estacio<strong>na</strong>do <strong>na</strong> porta do homem da te-<br />
soura, reparava seus cortes. Tudo eu<br />
olhava devagar para bem imagi<strong>na</strong>r. Sua<br />
mão firme retalhava os caminhos risca-<br />
dos sobre a casimira ou linho. O destino<br />
da tesoura era traçado (2011, p. 29).<br />
Para Vigotski (2009), a qualidade e a am-<br />
pliação das experiências vividas são impor-<br />
tantes para a imagi<strong>na</strong>ção, pois criar o novo<br />
significa recombi<strong>na</strong>r o que existe em novas<br />
configurações. Portanto, as experiências vi-<br />
vidas e o universo conhecido são os elemen-<br />
tos fundamentais para desenvolvimento da<br />
atividade criadora. O novo <strong>na</strong>sce a partir do<br />
que já existe. Ao ler o fragmento, indagamos:<br />
para quais caminhos o homem da tesoura e<br />
seus cortes teriam levado o menino curioso?<br />
Que oportunidades podem ser oferecidas às<br />
crianças para que sejam instigadas a olhar<br />
devagar?<br />
Na passagem a seguir, Queirós traz o proces-<br />
so de criação da criança a partir da lingua-<br />
gem. Se colorir flores pouco contribui para<br />
a atividade criadora da criança, <strong>uma</strong> palavra<br />
desconhecida, ao ser decomposta, recom-<br />
bi<strong>na</strong>da n<strong>uma</strong> nova configuração, confirma<br />
o quanto esta atividade está presente <strong>na</strong>s<br />
ações cotidia<strong>na</strong>s:<br />
Na escola eu coloria flores para desen-<br />
volver a coorde<strong>na</strong>ção motora. Meu avô<br />
dizia que tudo que era demais sobra. Às<br />
vezes eu errava e derramava cores fora<br />
das flores. A professora dizia que eu era<br />
desatencioso. Ficava sem compreender<br />
se eu era desastrado ou dez vezes aten-<br />
cioso. Escolhia o que era melhor para<br />
mim (Queirós, 2006, p.25).<br />
Não é só do menino o entendimento de ser<br />
ele dez vezes atencioso. Nos relatos da in-<br />
fância inventada de Bartolomeu, o leitor se<br />
7
vê diante de protagonistas que se deixam<br />
afetar intensamente pela vida e pelo outro.<br />
A linguagem poética do autor dá relevo aos<br />
sentimentos vividos pelo menino e os senti-<br />
dos produzidos no viver. Neste relevo, vêm<br />
junto as linguagens das coisas e das pessoas<br />
que atravessam a vida do perso<strong>na</strong>gem. Na<br />
arte literária fica evidente que é <strong>na</strong> lingua-<br />
gem que nos constituímos.<br />
BRINCADEIRAS<br />
Muitas são as passagens em que as brinca-<br />
deiras aparecem <strong>na</strong>s ações das perso<strong>na</strong>gens<br />
de Queirós. No fragmento a seguir, chama<br />
atenção a forma como o autor trata a não<br />
divisão entre o mundo dos adultos e o das<br />
crianças. A partilha do mesmo espaço, onde<br />
havia atividades para todos os grupos, era<br />
também <strong>uma</strong> comunhão de emoções, n<strong>uma</strong><br />
sociabilidade que unia as gerações:<br />
A infância brincava de boca de forno,<br />
chicotinho-queimado, passar anel, ou<br />
corria da cabra-cega. Nossos pais, nessa<br />
hora preguiçosa, liam o destino do tem-<br />
po escrito no movimento das estrelas,<br />
<strong>na</strong> cor das nuvens, no tamanho da Lua,<br />
<strong>na</strong> direção dos ventos. (...) O mundo não<br />
estava dividido em dois, um para as pes-<br />
soas grandes, outro para os miúdos. As<br />
emoções eram de todos. Todos ficavam<br />
felizes <strong>na</strong> festa de casamento, nos bailes<br />
juninos, nos almoços de batizados (Quei-<br />
rós, 2004, p. 8).<br />
Diante do mundo contemporâneo, urbano,<br />
perguntamos: se hoje são outros os festejos,<br />
são outras as festas e talvez também sejam<br />
outras as emoções, quais seriam os espaços<br />
compartilhados por crianças e adultos? Onde<br />
adultos e crianças comungam suas emoções?<br />
Onde se dão os encontros de gerações?<br />
Não se pretende, neste texto, responder às<br />
questões, mas sim abrir alg<strong>uma</strong>s reflexões<br />
sobre o lugar que ocupam as crianças <strong>na</strong><br />
sociedade, nos grupos sociais e <strong>na</strong>s famílias<br />
contemporâneas. É notório que há grandes<br />
diferenças entre a vida retratada nos textos<br />
de Queirós e a vida de alguns grupos urba-<br />
nos hoje. Em que pesem as conquistas legais<br />
– <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is – que conferem<br />
direitos fundamentais às crianças, não se<br />
conseguiu ainda superar os paradoxos que<br />
envolvem as infâncias: sabe-se e pensa-se<br />
muito mais sobre as crianças, do que efetiva-<br />
mente se consegue fazer por elas em relação<br />
à superação das desigualdades, à escuta de<br />
suas vozes, à sua efetiva participação, entre<br />
outros aspectos. Como explicitam Sarmento<br />
e Pinto (1997, p. 12), pensa-se a criança tan-<br />
to como alguém dotado de competências e<br />
capacidades, como alguém em falta; discu-<br />
te-se a autonomia da criança e, ao mesmo<br />
tempo, criam-se instrumentos de controle<br />
e tutela cada vez mais sofisticados; sabe-<br />
se da necessidade de atenção que a criança<br />
peque<strong>na</strong> necessita e nunca os pais tiveram<br />
tão pouco tempo de convivência com os fi-<br />
lhos; conde<strong>na</strong>-se o trabalho e a prostituição<br />
8
infantis e, a cada dia, o número de crian-<br />
ças vivendo em absoluta pobreza aumenta<br />
e não se consegue tirá-las das situações de<br />
risco e violência; discutem-se os direitos da<br />
criança, mas não se criam condições para as<br />
suas garantias. E assim se continua olhan-<br />
do a criança como o futuro do mundo, num<br />
presente de opressão.<br />
Para Sarmento (In: Delgado e Muller, 2006,<br />
p.19) “a criança está no ‘entre-lugar’ de <strong>uma</strong><br />
condição geracio<strong>na</strong>l em transformação,<br />
combi<strong>na</strong>ndo em cada momento concreto<br />
um passado e um futuro que se fundem, por<br />
vezes de forma caótica e através de impul-<br />
sos contraditórios”. Nesta perspectiva, não<br />
cabe mais pensar a criança em preparação<br />
para o futuro, mas como um lugar de fusão<br />
de tempos – um entre-lugar. O que significa<br />
problematizar o seu lugar <strong>na</strong> sociedade e as<br />
relações que se estabelecem entre adultos e<br />
crianças. A ideia de entre-lugar destaca a im-<br />
portância do presente e do que faz <strong>sentido</strong><br />
para as crianças hoje, à qualidade das inte-<br />
rações que se estabelecem no aqui e agora.<br />
Bartolomeu traz memórias de <strong>uma</strong> mãe<br />
sensível às especificidades das crianças, que<br />
brincava com os filhos, seja para encurtar<br />
caminhos, correndo <strong>na</strong> frente; seja fazendo<br />
biscoitos, assando as formas dadas pelas<br />
crianças. Assim, num domingo entediado, a<br />
mãe inventa de pintar as galinhas para ima-<br />
gi<strong>na</strong>r castelos, <strong>na</strong> falta de carne faz do arroz<br />
com ovo e chuchu a bandeira do <strong>Brasil</strong>:<br />
Com anili<strong>na</strong> para doces a mãe coloria as<br />
águas do tanque, <strong>uma</strong> cor de cada vez,<br />
e mergulhava as alvas galinhas legornes<br />
em banho colorido: azul, verde, amare-<br />
lo, vermelho, roxo. Em pouco tempo o<br />
quintal, como por milagre, era pátio de<br />
castelo, povoado de aves-legornes ago-<br />
ra raras-desenhadas em livro de fadas.<br />
Ficava tudo encantamento. Não havia<br />
livro, mesmo aqueles vindos de muito<br />
longe, com histórias mais bonitas do<br />
que as que a mãe sabia fazer. Não era<br />
difícil para Antônio imagi<strong>na</strong>r-se príncipe<br />
e filho de mágicos (Queirós, 2004, p. 52).<br />
Foi assim brincando que ela ensinou os<br />
meninos a fazer e a comer a Bandeira<br />
Nacio<strong>na</strong>l, quando faltava carne. Ela ser-<br />
via pratos com chuchu verdinho – afoga-<br />
do com água de mi<strong>na</strong> – arroz e mais ovo<br />
frito, enquanto recomendava: está no<br />
prato o verde das montanhas. Se mistu-<br />
rar o arroz e a gema, vira ouro. O prato<br />
é esmaltado de azul. Está tudo pronto.<br />
(...) Então aquela bandeira fria passava<br />
a ser a coisa mais saborosa de todas as<br />
comidas. Saber e comer eram coisas jun-<br />
tas (Queirós, 2004, p. 57-58).<br />
A mãe que ficou <strong>na</strong> memória do menino é a<br />
que entra <strong>na</strong> brincadeira e brinca também,<br />
a mãe molhada da chuva que se deixou mo-<br />
lhar. Os episódios ressaltam o lugar ativo,<br />
participativo, do adulto em interação com<br />
as crianças; evidenciam a entrega do adul-<br />
9
to às relações, a inteireza no compartilhar<br />
a brincadeira com as crianças. A mediação,<br />
nesta perspectiva, não significa estar entre<br />
a criança e o brinquedo, entre a criança e<br />
o livro, entre a criança e o conhecimento, e<br />
sim estar com a criança em diferentes situa-<br />
ções. As preposições – entre, com, para – de-<br />
termi<strong>na</strong>m movimentos distintos das ações<br />
e esta diferença dá o tom das relações de<br />
adultos e crianças. O movimento dialógico<br />
que esta perspectiva conduz se efetiva em<br />
ações como escutar, acolher, sugerir, proble-<br />
matizar, devolver, entre outras. Ainda que o<br />
tamanho e a posição hierárquica do adulto<br />
em relação às crianças determinem <strong>uma</strong><br />
verticalidade, cabe a ele se abaixar para pos-<br />
sibilitar o encontro do outro-criança no seu<br />
aqui e agora, no seu “entre-lugar”.<br />
Queirós apresenta também situações em<br />
que as crianças brincam entre si. Destaca-<br />
mos <strong>uma</strong> passagem em que traz a repetição<br />
tão característica das brincadeiras infantis:<br />
Dentro da bolsa (...) havia o olho de vi-<br />
dro verde do avô morto (...). Os meninos<br />
olhavam o olho. Possuídos pelo medo<br />
corriam até a cozinha. Deitavam-se no<br />
colo da mãe. (...) ficavam com a respi-<br />
ração curta até o medo sumir. Assim,<br />
começavam tudo de novo. Pé ante pé,<br />
corpo contido devagarinho. Entravam<br />
pelo quarto da mãe, sem o menor ruído.<br />
Abriam a bolsa. Tiraram o envelope. O<br />
olho de vidro verde do avô estava aber-<br />
to, sem dormir, olhando sem piscar. Os<br />
meninos que buscavam o medo, de novo<br />
se amedrontavam (Queirós, 2004, p. 32).<br />
O jogo das crianças <strong>na</strong> busca do medo para<br />
se amedrontar e melhor entender o senti-<br />
mento tor<strong>na</strong>-se a brincadeira. Para Benjamin<br />
(1992), <strong>na</strong>da dá tanto prazer à criança como<br />
brincar outra vez. “Com efeito, toda experi-<br />
ência profunda deseja, incansavelmente, até<br />
o fim das coisas, repetição e retorno, res-<br />
tauração de <strong>uma</strong> situação origi<strong>na</strong>l, que foi<br />
seu ponto de partida (…). Trata-se também<br />
de saborear repetidamente, do modo mais<br />
intenso, as mesmas vitórias e triunfos” (p.<br />
253). As crianças recriam suas experiências<br />
no brincar. Começam o movimento de novo,<br />
desde o início, já que nem sempre é possível<br />
expressar em palavras. A brincadeira é tam-<br />
bém <strong>uma</strong> forma de as crianças se colocarem<br />
no mundo, de corpo todo e com toda a sua<br />
emoção.<br />
Mas a brincadeira <strong>na</strong> vida da criança, de<br />
acordo com os estudos de Vygotsky (1991), é<br />
muito mais do que fonte de prazer. A brinca-<br />
deira preenche <strong>uma</strong> necessidade, entendida<br />
como tudo o que é motivo para a ação. As ne-<br />
cessidades das crianças e seus motivos para<br />
a ação vão variando ao longo do desenvolvi-<br />
mento, mas a intervenção ativa da criança,<br />
explorando possibilidades de objetos e rela-<br />
cio<strong>na</strong>mentos, está sempre presente, no mo-<br />
vimento de constituir significados sobre eles<br />
e com eles. Na brincadeira, a criança coloca-<br />
10
se ativamente <strong>na</strong> relação com a realidade,<br />
recriando-a, construindo <strong>sentido</strong> sobre ela.<br />
A brincadeira é um espaço onde a criança<br />
pode agir por conta própria, tomar decisões,<br />
transgredir, reverter a ordem e dar novo sen-<br />
tido às coisas. Para o autor, <strong>na</strong> brincadeira<br />
os objetos perdem sua força determi<strong>na</strong>dora<br />
(p.110), pois a criança age sobre eles dife-<br />
rente daquilo que ela vê, ressignificando-os<br />
através de seus gestos, que ganham função<br />
de signo. Pelo gesto, transforma os objetos,<br />
indicando os novos significados atribuídos.<br />
A brincadeira supõe um sujeito que brin-<br />
ca, um “objeto”, um tempo, um espaço e<br />
um conjunto de mecanismos que regulam<br />
as ações. Quando a criança toma o lugar<br />
de mãe n<strong>uma</strong> brincadeira de casinha, por<br />
exemplo, age a partir de um conjunto de<br />
comportamentos aprendidos no cotidiano.<br />
Embora alguns autores atribuam à brinca-<br />
deira <strong>uma</strong> liberdade total de regras e ausên-<br />
cia de objetivos fora da atividade em si, não<br />
há brincadeira sem regras. As brincadeiras<br />
são orientadas por regras que vão sendo es-<br />
tabelecidas e negociadas enquanto se brin-<br />
ca, seguindo o rumo da fantasia. Mas para<br />
exercer um determi<strong>na</strong>do papel social é ne-<br />
cessário que a criança aja de acordo com o<br />
que se espera do exercício daquele papel.<br />
Portanto, faz uso de regras sociais, assumin-<br />
do discursos e posturas. Vygotsky (idem)<br />
considera a brincadeira <strong>uma</strong> grande fonte<br />
de desenvolvimento pois, ao separar obje-<br />
to e significado, a criança comporta-se de<br />
forma mais avançada do que <strong>na</strong>s atividades<br />
da vida real. Brincar é <strong>uma</strong> atividade funda-<br />
mental <strong>na</strong> vida das crianças.<br />
LEITURA E ESCRITA<br />
Bartolomeu Campos de Queirós, defensor<br />
da leitura literária <strong>na</strong> escola, nos seus tex-<br />
tos literários memorialísticos traz a leitura<br />
e a escrita como <strong>uma</strong> experiência marcan-<br />
te <strong>na</strong> infância. Experiência que remonta à<br />
primeira infância, antes da entrada para a<br />
escola que, à época, se fazia aos sete anos<br />
de idade. Aquele olhar devagar do menino<br />
curioso mirava o entorno e via os pais, len-<br />
do e escrevendo. Eram três os cadernos da<br />
mãe, eram poucos os livros do pai, ainda as-<br />
sim era visível a leitura e a escrita. A cultura<br />
escrita, assim como as brincadeiras, faziam<br />
parte das práticas sociais da família. Ler e<br />
escrever faziam <strong>sentido</strong> para o menino:<br />
Minha mãe guardava com cuidado de<br />
sete chaves, sobre a cômoda do quarto,<br />
três cadernos. No primeiro ela copiava<br />
receitas de amorosos doces: suspiros,<br />
amor em pedaços, baba de moça, casa-<br />
dinho, e fazia olho de sogra de cor. No<br />
segundo caderno, ela anotava riscos de<br />
bordado, com nomes camuflados em<br />
pesares: ponto-atrás, ponto de sombra,<br />
ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas<br />
e nós. No terceiro, ela escondia longas<br />
poesias, boiando em sofrimentos (...). Eu<br />
reparava seus cadernos, encardidos pelo<br />
11
tempo e pelo uso, admirava sua letra re-<br />
donda e grande, com caneta de molhar,<br />
sem ainda desconfiar das palavras. Eu<br />
sabia do todo, sem suspeitar das partes.<br />
Durante muitas tardes, com o pensa-<br />
mento enfastiado de passado, ela passa-<br />
va as pági<strong>na</strong>s lentamente (...) (Queirós,<br />
2012, p.17).<br />
A curiosidade frente à escrita era saciada<br />
pelo pai que, mesmo em silêncio, dialogava<br />
<strong>na</strong> ação de repetir a escrita dos nomes solici-<br />
tados. O menino curioso dobrava a atenção<br />
para aprender:<br />
Ele [o pai] tinha alguns livros velhos, que<br />
relia sempre. Eram histórias de grandes<br />
homens. Outras vezes, usando da pe<strong>na</strong><br />
e do tinteiro, escrevia com letra bonita<br />
o nome dele, dos filhos, da mulher. An-<br />
tônio, sem saber ler, ficava curioso para<br />
saber onde estava o seu nome. Se perto<br />
ou longe do nome do pai. Sem arriscar a<br />
perguntar muito, pedia ao pai que escre-<br />
vesse de novo. Ele cumpria a curiosidade<br />
do menino, caprichando ainda mais a le-<br />
tra. Antônio dobrava a atenção (Queirós,<br />
2004, p. 39).<br />
A leitura e a escrita – embora esparsas – ti-<br />
nham um lugar <strong>na</strong> família e <strong>na</strong> vida do me-<br />
nino. Mas é <strong>na</strong> relação entre o neto e o avô<br />
que o autor nos presenteia com <strong>uma</strong> inte-<br />
ressante passagem: o avô, que escrevia <strong>na</strong>s<br />
paredes da casa todos os acontecimentos da<br />
cidade, foi também quem teve a sensibilida-<br />
de de ensi<strong>na</strong>r o neto a ler brincando. O me-<br />
nino desejava ler os textos das paredes e o<br />
avô lia para ele. Mais <strong>uma</strong> vez se apresenta<br />
o respeito do adulto à curiosidade infantil.<br />
O ensino partia da pergunta de quem queria<br />
aprender:<br />
Meu avô, arrastando solidão, escrevia<br />
<strong>na</strong>s paredes da casa. As palavras abran-<br />
davam sua tristeza, organizam sua<br />
curiosidade silenciosamente (...). A cida-<br />
de era seu assunto: amores desfeitos, ma-<br />
drugadas e fugas, casamentos e traições,<br />
velórios e heranças (...). Eu, devagarinho,<br />
fui decifrando sua letra, amarrando as<br />
palavras e amando seus significados (...).<br />
Eu restava horas sem fim, de coração<br />
aflito, seduzido pelas histórias de amor,<br />
de desafeto, de ingratidão, de mentiras<br />
do meu primeiro livro – as paredes da<br />
casa de meu avô. Assim percebi o serviço<br />
das palavras – faca de dois gumes. Meu<br />
avô desdizia verdades eter<strong>na</strong>s com as<br />
mesmas palavras com que escreveram a<br />
Bíblia Sagrada. (...). Meu avô escancara-<br />
va o mundo com letra bonita e me dei-<br />
xava livre para desvendar sua escritura.<br />
(...) Eu decorava tudo e repetia timida-<br />
mente. Eram tranquilas suas aulas, e o<br />
maior encanto estava em meu avô culti-<br />
var dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é<br />
<strong>uma</strong> bola besta sem eira nem beira”, eu<br />
desconfiava se estava dizendo ser a Ter-<br />
ra redonda ou se a Terra era <strong>uma</strong> piada<br />
12
sem tamanho. Eu concluía ser as duas<br />
coisas. (2012, p. 19-20).<br />
O avô escancarava o mundo à criança. As pa-<br />
redes abriram-se em janelas para o menino<br />
se debruçar e desvendar a escrita, livremen-<br />
te, mas com um leitor experiente fazendo as<br />
mediações. Este episódio sintetiza os concei-<br />
tos de letramento e alfabetização de Soares<br />
(1998). A autora define alfabetização como a<br />
ação de ensi<strong>na</strong>r/aprender a ler e a escrever<br />
e letramento como o estado ou condição de<br />
quem não ape<strong>na</strong>s sabe ler e escrever, mas<br />
cultiva (dedica-se à atividade de leitura e<br />
escrita) e exerce (responde às demandas so-<br />
ciais de leitura e escrita) as práticas sociais<br />
que usam a escrita. Assim, teríamos alfabe-<br />
tizar e letrar como duas ações distintas, mas<br />
não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria<br />
alfabetizar letrando, ou seja: ensi<strong>na</strong>r a ler e<br />
a escrever no contexto das práticas sociais<br />
da leitura e da escrita, de modo que o indiví-<br />
duo se tor<strong>na</strong>sse, ao mesmo tempo, alfabeti-<br />
zado e letrado (p.47).<br />
De acordo com as práticas sociais, vão se<br />
construindo historicamente os <strong>sentido</strong>s da<br />
leitura para cada sujeito e para cada grupo<br />
social. Também evidencia que a alfabetiza-<br />
ção – a ação de ensi<strong>na</strong>r e aprender a ler – é<br />
parte deste processo amplo de inserção no<br />
mundo da cultura escrita. O menino subia<br />
em bancos e mesas para ler as paredes. Ria<br />
com o avô que desdizia verdades eter<strong>na</strong>s<br />
com as mesmas palavras com que escreve-<br />
ram a Bíblia Sagrada. Nas paredes, as pala-<br />
vras dessacralizadas ganhavam força enun-<br />
ciativa. O menino aprendia com o avô forma<br />
e conteúdo, simultaneamente.<br />
Mas era a escola que legitimava o aprendi-<br />
zado da leitura e da escrita e o menino que<br />
aprendeu a ler e a escrever <strong>na</strong>s práticas so-<br />
ciais, <strong>na</strong>s interações dialógicas com o avô,<br />
não era levado a sério <strong>na</strong>s suas leituras an-<br />
tes de ir à escola:<br />
Em minha casa ninguém atribuía im-<br />
portância às minhas leituras. Eu apro-<br />
veitava pedaços de jor<strong>na</strong>is que vinham<br />
embrulhando coisas e lia em voz alta,<br />
procurando atenções e reconhecimen-<br />
tos. Meu pai me olhava e repetia sempre:<br />
“Menino, deixa de inventar histórias,<br />
você não sabe ler, nunca foi à escola” ou<br />
“ Menino, deixe este papel e vá procurar<br />
serviço melhor pra fazer” (Queirós, 2012,<br />
p. 21).<br />
Para agradar à professora, o menino fingia<br />
não saber ler. Mas a leitura inserida <strong>na</strong> vida,<br />
enraizada <strong>na</strong>s práticas sociais cotidia<strong>na</strong>s,<br />
traz surpresas. As palavras são carregadas<br />
de um conteúdo ideológico e vivencial. Mor-<br />
fi<strong>na</strong> – mor do altar mor, fi<strong>na</strong> do cigarro mis-<br />
tura fi<strong>na</strong> – soa no menino com toda dor da<br />
mãe doente.<br />
Entrei para a escola já sabendo ler, mais<br />
ou menos. A primeira palavra soletrada,<br />
13
inteirinha, foi morfi<strong>na</strong>. A dor da minha<br />
mãe aumentava sempre e muito. Dia e<br />
noite ela gemia ou cantava. Vivia entre o<br />
medo e a esperança. Vinham da capital<br />
alg<strong>uma</strong>s ampolas. (...). Um dia, muito de<br />
repente, abri o embrulho. Olhei e li, len-<br />
tamente, morfi<strong>na</strong>. Um pavor frio tomou<br />
conta da minha barriga inteira (Quei-<br />
rós, 1999, p.35).<br />
Para Vygotsky (1989), a escrita não é somen-<br />
te um conjunto complexo de técnicas que<br />
devem ser impostas à criança, mas “um sis-<br />
tema particular de signos e símbolos cuja<br />
domi<strong>na</strong>ção prenuncia um ponto crítico em<br />
todo o desenvolvimento cultural da crian-<br />
ça” (p.120).<br />
CONSIDERAÇÕES PARA A<br />
EDUCAÇÃO INFANTIL<br />
Um pensar estrangeiro andou atordo-<br />
ando meu pouco entendimento. Ir para<br />
a escola era abando<strong>na</strong>r as brincadeiras<br />
sob a sombra antiga da mangueira; era<br />
renunciar o debaixo da mesa resmun-<br />
gando mentiras com o silêncio; era não<br />
mais vistoriar o atrás da casa buscan-<br />
do novas surpresas e outros convites.<br />
Contrapondo-se a essas perdas, havia<br />
a vontade de desamarrar os nós, entrar<br />
em acordo com o desconhecido, abrir o<br />
caderno limpo e batizar as folhas com<br />
a sabedoria da professora; diminuir o<br />
tamanho do mistério, abrir portas para<br />
receber novas lições, destramelar as ja-<br />
nelas e espiar mais longe. Tudo isso me<br />
encantava (Queirós, 1999, p.8).<br />
A obra de Queirós evidencia a linguagem <strong>na</strong><br />
concepção de Vigotski, Benjamin e Bakhtin.<br />
Para Souza (1994), <strong>na</strong>s teorias desses au-<br />
tores, a linguagem funcio<strong>na</strong> como desvio<br />
paradigmático. Suas concepções deslocam<br />
a linguagem de <strong>uma</strong> perspectiva centrada<br />
<strong>na</strong> informação, <strong>na</strong> técnica ou conjunto de<br />
regras, para ganhar o espaço dialógico, de<br />
concretização da vida social, cotejo de pon-<br />
tos de vista, de expressão, lugar onde o sin-<br />
gular e o coletivo se encontram, onde se dá<br />
a apropriação e reinvenção da cultura. Lin-<br />
guagem como organizadora da realidade,<br />
lugar de formação h<strong>uma</strong><strong>na</strong>, constituída e<br />
constituinte da ação e do pensamento, es-<br />
paço dialógico, de troca social e de produ-<br />
ção de <strong>sentido</strong>.<br />
Para Bakhtin (2003), a linguagem atravessa<br />
a vida e a vida é atravessada pela lingua-<br />
gem. <strong>Linguagem</strong> e vida são indissociáveis.<br />
<strong>Linguagem</strong> entendida como Geraldi (2003,<br />
p. 20), como sendo “trabalho e produto do<br />
trabalho e, enquanto tal, cada expressão<br />
carrega a história de sua construção e de<br />
seus usos”. Nas palavras e contrapalavras,<br />
nos ditos, presumidos, silêncios, imagens,<br />
gestos e expressões. Seus autores escutam e<br />
organizam as respostas possíveis, conforme<br />
as condições que cada contexto enunciativo<br />
dispõe. É ainda Bakhtin (2003) quem afir-<br />
14
ma que ciência, arte e vida são campos da<br />
cultura h<strong>uma</strong><strong>na</strong> que se articulam, mas tan-<br />
to podem adquirir unidade no indivíduo que<br />
as incorpora, como permanecer cindidas e<br />
manter entre si ape<strong>na</strong>s <strong>uma</strong> relação mecâ-<br />
nica e exter<strong>na</strong>. Se a cisão acontece, a arte<br />
ou a ciência passam a ser entendidas de for-<br />
ma autônoma, autossuficientes, isoladas da<br />
vida. Essa postura mecânica tem consequên-<br />
cias éticas que empobrecem culturalmente<br />
o homem<br />
Kramer (2011) aponta que, para Bakhtin,<br />
conhecimento/ciência, arte/estética e vida/<br />
agir ético constituem dimensões da vida hu-<br />
ma<strong>na</strong> em que circulam conceitos e valores,<br />
em duas direções: dos sistemas ideológicos<br />
(ciência, cultura, religião, política, arte) para<br />
o cotidiano (as práticas) e da ideologia do<br />
cotidiano para os sistemas ideológicos; as<br />
influências são recíprocas.<br />
A linguagem é um instrumento de ação no<br />
mundo, sobre o outro, com o outro e com os<br />
muitos outros que constituem o nosso pen-<br />
samento e a nossa consciência. No agir no<br />
mundo produzimos discursos e também so-<br />
mos por eles produzidos. É com a linguagem<br />
que nos relacio<strong>na</strong>mos com a cultura a que<br />
pertencemos, que vamos produzindo signi-<br />
ficados <strong>na</strong>s interações que estabelecemos<br />
com as pessoas e com as produções culturais<br />
que nos cercam, que criamos e re-criamos<br />
o que está à nossa volta. Nossas falas estão<br />
impreg<strong>na</strong>das de marcas dos nossos grupos<br />
sociais de origem, valores e conhecimentos.<br />
Nossos modos de falar e de agir fazem parte<br />
de nossas bagagens culturais, de vida – são<br />
modos de ler a realidade.<br />
Assumir <strong>uma</strong> concepção de linguagem é<br />
assumir <strong>uma</strong> concepção de sujeito. Este<br />
princípio é que sustenta o processo de hu-<br />
manização, socialização e subjetivação que<br />
objetiva a <strong>Educação</strong>. Gestos, expressões,<br />
olhares, palavras, imagens, silêncios, bur-<br />
burinho, conversas, perguntas, respostas,<br />
vozes permeiam o cotidiano escolar. Mas<br />
quanto disso tudo se constitui como espa-<br />
ços enunciativos, réplicas, interlocuções?<br />
É fundamental que as práticas pedagógi-<br />
cas possibilitem a escuta, as expressões por<br />
meio de várias linguagens, a <strong>na</strong>rração de<br />
histórias, o registro e memória do grupo, a<br />
interlocução com diferentes gêneros discur-<br />
sivos em situações reais e significativas, a<br />
abertura de espaços discursivos capazes de<br />
favorecer ações e reflexões com a própria<br />
linguagem, a leitura e a escrita como expe-<br />
riência e formação, a apreciação estética de<br />
diferentes produções artístico-culturais.<br />
15
EDIÇÃO ESPECIAL – LINGUAGEM E SENTIDO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:<br />
UMA HOMENAGEM A BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS<br />
Esta edição especial, com veiculação no programa Salto para o Futuro/<strong>TV</strong> Escola no dia 26 de outu-<br />
bro de 2012, se propõe a discutir questões de linguagem <strong>na</strong> <strong>Educação</strong> <strong>Infantil</strong>. Aborda a linguagem<br />
<strong>na</strong> perspectiva das teorias de Vigotski, Benjamin e Bakhtin, como organizadora da realidade, lugar<br />
de formação h<strong>uma</strong><strong>na</strong>, constituída e constituinte da ação e do pensamento, espaço dialógico, de<br />
troca social e de produção de <strong>sentido</strong>. A home<strong>na</strong>gem a Bartolomeu Campos de Queirós se dá pelas<br />
inúmeras possibilidades de compreensão e reinvenção da realidade que a sua obra oferece. Sua lite-<br />
ratura é convite à reflexão sobre o <strong>sentido</strong> da vida individual e coletiva, seus textos autobiográficos<br />
trazem não ape<strong>na</strong>s a vida do menino, mas a construção de <strong>sentido</strong> do mundo pelo olhar da criança.<br />
A proposta é trazer questões de linguagem e produção de <strong>sentido</strong> para dialogar com sua obra, ver o<br />
menino e (re)pensar a escola de <strong>Educação</strong> <strong>Infantil</strong>.<br />
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ta responsável: apontamentos sobre o outro<br />
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Fora, 2011. mimeo.<br />
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zonte: Miguilim, 1999.<br />
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Os cinco<br />
16
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jetividade ferida. São Leopoldo, RS: Editora da<br />
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2002.<br />
17
Presidência da República<br />
Ministério da <strong>Educação</strong><br />
Secretaria de <strong>Educação</strong> Básica<br />
<strong>TV</strong> ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO<br />
Supervisão Pedagógica<br />
Rosa Hele<strong>na</strong> Mendonça<br />
Acompanhamento pedagógico<br />
Luís Paulo Borges<br />
Coorde<strong>na</strong>ção de Utilização e Avaliação<br />
Mônica Mufarrej<br />
Fer<strong>na</strong>nda Braga<br />
Copidesque e Revisão<br />
Magda Frediani Martins<br />
Diagramação e Editoração<br />
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – <strong>TV</strong> <strong>Brasil</strong><br />
Gerência de Criação e Produção de Arte<br />
Consultora especialmente convidada<br />
Patricia Corsino<br />
E-mail: salto@mec.gov.br<br />
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto<br />
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.<br />
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)<br />
Outubro 2012<br />
18