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115Educação no MSTUm encontro com o ruralismo pedagógicoLuiz Bezerra Neto131O Fundo Federação Brasileira pelo Progresso FemininoUma fonte múltipla para a história da educação das mulheresNailda Marinho da Costa Bonato147Olhares sobre as Imagens da Escravidão AfricanaDos pintores viajantes aos livros didáticos de história do ensino fundamentalWarley da Costa161O Acervo de Documentos da Biblioteca Infantil de São Paulo(1936-1960)Testemunho de uma época revelando sua diversidadeAzilde L. Andreotti171O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> Vai às EscolasCláudia B. Heynemann e Vivien IshaqElaine Cristina F. Duarte e Vivian Zampa183Perfil Institucional197Bibliografia


das instituições escolares no Brasil, especialmenteaquelas que tratam da organizaçãode atividades extraclasse, a partirdo exemplo de Santa Catarina, ondediversos estabelecimentos de ensino adotarame desenvolveram esse movimento.Luiz Bezerra Neto no artigo Educação noMST: um encontro com o ruralismo pedagógicotambém se dedica ao estudo dodesenvolvimento da educação no âmbitode um determinado movimento, no casoa concepção de educação dos movimentosorganizados pelos trabalhadores ruraisno Brasil, em especial o Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST), sobre o qual se debruça no sentidode esclarecer a gênese e o desenvolvimentodas propostas educativas doMST. Trata especificamente da relaçãoentre o movimento intitulado “Ruralismopedagógico”, presente na primeira metadedo século XX, e suas proximidades ediferenças com o MST, atualmente, noque tange à concepção de educação deambos os movimentos.Nailda Marinho da Costa Bonato desenvolveo artigo O Fundo Federação Brasileirapelo Progresso Feminino: uma fontemúltipla para a história da educaçãodas mulheres. O texto analisa e discutea utilização do Fundo, que é parte doacervo do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> do Brasil,com destaque para o uso dos documentosreferentes a I Conferência pelo ProgressoFeminino, realizada em 1922, eque abordam a questão da educação e ainstrução para as mulheres, constituindoseem fonte de pesquisa para a históriada educação feminina em nível nacional.Além disso, a autora traz valiosas informaçõessobre o uso de alguns dos instrumentosde pesquisa da Sala de consultasdo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, disponíveispara o acesso presencial ao acervo daInstituição.Warley da Costa é autora do artigo Olharessobre as imagens da escravidão africana:dos pintores viajantes aos livrosdidáticos de história do ensino fundamental.O texto reflete sobre “os modos dever as imagens da escravidão africanareproduzidas nos livros didáticos do ensinofundamental e o significado desserecurso pedagógico como mediador desaberes e acervo de memórias”. A autorase debruça sobre as imagens de pintores-viajantesdo século XIX, comoDebret e Rugendas, que retrataram ocotidiano do Brasil desse período, sobretudoa realidade do negro e do índio nasociedade brasileira, procurando mostrara importância dessas “obras imagéticas”para a historiografia nacional. Nesse sentido,se analisa e se discute as imagens,leituras e escritas da escravidão,reproduzidas no livro didático de históriacomo “propagador de saberes e guardiãode memórias”.Azilde Andreotti em seu artigo O acervode documentos da Biblioteca Infantil deSão Paulo (1936-1960): testemunho deuma época revelando sua diversidadeapresenta um trabalho de organização doacervo documental da Biblioteca Infantil


de São Paulo, em meados da década de1990, denominado “Projeto Memória”,cujo objetivo era o de resgatar e reorganizaruma série de documentos acumuladosdesde 1936 e que se encontravamdispersos e mal conservados. A BibliotecaInfantil, inaugurada em 14 de abril de1936, fazia parte de um projeto consideradode vanguarda do Departamentode Cultura de São Paulo, dirigido porMário de Andrade, e que visava “proporcionaralternativas de modo a complementaro que era oferecido pelas escolasde educação oficial, acompanhandoos novos métodos pedagógicos recomendadospara a educação da criança”.Cláudia Beatriz Heynemann, VivienIshaq, Elaine Cristina Ferreira Duarte eVivian Zampa contribuem com o artigoO <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> vai às escolas ondeapresentam uma visão geral do site O<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> e a história luso-brasileira(www.arquivonacional.gov.br/historiacolonial), um dos produtos daCoordenação de Pesquisa e Difusão doAcervo do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> (COPED),com destaque especial para a seção Salade Aula, por tratar-se da base de dadosmais diretamente relacionada à área pedagógicae que tem por objetivo contribuirpara o ensino da história luso-brasileiranos níveis médio e fundamental daeducação básica.Encerrando este número, o professorJosé Claudinei Lombardi apresenta operfil institucional do Grupo <strong>Nacional</strong> deEstudos e Pesquisas “História, Sociedadee Educação no Brasil” (HISTEDBR), doqual é o coordenador executivo. Criadoem 1986 por Dermeval Saviani e algunsoutros professores e seus respectivosorientandos de mestrado e doutorado daFaculdade de Educação da Unicamp, oHISTEDBR nasceu com o objetivo inicialde propiciar o intercâmbio das pesquisasque estavam sendo desenvolvidas no cursode pós-graduação, sobretudo no âmbitoda história da educação brasileira.Posteriormente, decidiu-se pela organizaçãode um coletivo nacional, para alémdas relações entre orientandos eorientadores, constituindo-se então umnúcleo permanente de pesquisa, centralizadona Faculdade de Educação daUnicamp e articulador de Grupos de Trabalhosregionais e estaduais, tendo realizadodiversos eventos, seminários etc.em todo território nacional.Os editorditores


R V OEntrevista comDemerval SavianiOprofessor Dermeval Savianiformou-se em filosofia pelaPUC-SP. É doutor em filosofiada educação (PUC-SP, 1971) e livre-docenteem história da educação(Unicamp, 1986), tendo realizado estágiosênior (pós-doutorado) nas universidadesitalianas de Pádua, Bolonha, Ferrarae Florença, entre 1994 e 1995.De 1967 a 1970, lecionou filosofia, história,história da arte, história e filosofiada educação nos cursos colegial enormal. Desde 1967 é professor de graduaçãoe pós-graduação no ensino superior.Foi membro do Conselho Estadualde Educação de São Paulo, coordenadordo Comitê de Educação doCNPq, coordenador de pós-graduaçãona UFSCar, PUC-SP e Unicamp e, ainda,diretor associado da Faculdade de Educaçãoda Unicamp. Foi condecorado coma medalha do mérito educacional doMinistério da Educação e recebeu daUnicamp o prêmio Zeferino Vaz de produçãocientífica.Atualmente é professor emérito daUnicamp, pesquisador I-A do CNPq, coordenadorgeral do Grupo <strong>Nacional</strong> deEstudos e Pesquisas “História, Sociedadee Educação no Brasil” (HISTEDBR) eprofessor titular colaborador da USP.Autor de vasta bibliografia sobre filosofia,educação e história da educação,como Pedagogia histórico-crítica: primeirasaproximações; Educação: do sensocomum à consciência filosófica; EscolaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 5-14, jan/dez 2005 - pág. 5


R V Ocrescentes no ensino de graduação epós-graduação, na coordenação de programasde pós-graduação, na orientaçãode dissertações, teses, projetos depós-doutorado, iniciação científica, trabalhosde conclusão de curso, desenvolvimentode projetos de pesquisa,proferindo conferências em quase todosos estados do país, participando da organizaçãodo campo, sendo sócio fundadore dirigente das principais entidadesda área como ANPEd (Associação<strong>Nacional</strong> de Pós-Graduação e Pesquisaem Educação), CEDES (Centro de EstudosEducação & Sociedade), ANDE (Associação<strong>Nacional</strong> de Educação), SBHE(Sociedade Brasileira de História da Educação),na assessoria científica de órgãoscomo CNPq, INEP, FAPESP, na organizaçãoe participação em eventos científicose em intensa atividade editorialrepresentada por publicações de diversostipos.<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O que o senhor teriaa dizer sobre o trabalho de organizaçãodos acervos (arranjo, descrição,elaboração de instrumentos de pesquisa:índices, guias, repertórios, inventários,entre outras atividades), desenvolvidopelas instituições de memória, e suacontribuição para o acesso e a pesquisano campo da história da educação?Demerval Saviani. O trabalho de organizaçãodos acervos é decisivo e degrande importância para o desenvolvimentoda pesquisa. Na medida em quepudermos contar com um número crescentede instituições de memória comacervos documentais adequadamenteorganizados e dotados de instrumentosque facilitem e agilizem o acesso às fontes,o trabalho dos pesquisadores serágrandemente facilitado, com impactosignificativo na qualidade das pesquisase também em sua quantidade, uma vezque, nessas condições, o tempo de buscae de manipulação das fontes será fortementereduzido. Os pesquisadores,no entanto, devem estar atentos para ofato de que, se os instrumentos desenvolvidospelas instituições de memóriafacilitam seu trabalho, também podemfuncionar como elementos quepredeterminam os rumos de sua investigação.Por isso convém “confiar desconfiando”nos referidos instrumentos,abrindo mão deles quando isso se revelarnecessário para a preservação dosobjetivos da pesquisa.<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Qual a sua opiniãosobre os critérios de avaliação de documentostendo em vista a guarda e apreservação para a pesquisa em educação?Demerval Saviani. Do ponto de vistados pesquisadores, o ideal, obviamente,seria que fossem guardados e preservadostodos os documentos, que, assim,ficariam à disposição para as eventuaisnecessidades presentes e futurasda pesquisa em educação. Mas, é igualmenteóbvio que esse ideal éirrealizável, à vista dos altíssimos custose do grande espaço físico que issoAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 5-14, jan/dez 2005 - pág. 7


R V O<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Qual a sua posiçãosobre a constituição e consolidação dahistória da educação como um campode pesquisa no Brasil e a sua relaçãocom a “história pura”?Demerval Saviani. A história da educaçãofoi se firmando como um campode estudos próprio dos pedagogos. Defato, enquanto era comum, no caso dasoutras disciplinas da área de fundamentosda educação, como filosofia da educação,psicologia da educação e sociologiada educação, que fossem recrutadosos professores a partir de sua formaçãonos cursos respectivos de filosofia,psicologia e sociologia, no casoda história da educação isso não ocorria.Jamais se cogitava de recrutar professoresde história da educação a partirdos formados em cursos de história,mesmo porque não havia espaço, aí,para a história da educação. À vistadesses antecedentes, a história da educaçãose configurou como um campocultivado predominantemente por investigadoresoriundos da área da educação,formados nos cursos de pedagogia. Assim,os historiadores, de modo geral,acabam por não incluir a educação entreos domínios da investigação histórica.No contexto referido, a história daeducação se desenvolveu como um domíniode caráter pedagógico paralelamentee, mesmo, à margem das investigaçõespropriamente historiográficas.Entretanto, a partir da década de 1980e, principalmente, ao longo da últimadécada do século XX, os investigadoreseducadoresespecializados na históriada educação têm feito um grande esforçono sentido de adquirir competênciano âmbito historiográfico de modoa estabelecer um diálogo de igual paraigual com os historiadores. E esse diálogotem se dado por iniciativa dos educadores,num movimento que vai doshistoriadores da educação para os, digamosassim, “historiadores de ofício”e não no sentido inverso. Hoje, se podedizer que a história da educação estáconsolidada como disciplina científicaespecífica, definindo-se como um campoorganizado que articula grande númerode investigadores com vasta ediversificada produção.<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. O que motivou aconstituição do Grupo de Estudos e Pesquisas“História, Sociedade e Educaçãono Brasil” (HISTEDBR), articulado em1986, a partir de seus orientandos dedoutorado, no Programa de Pós-graduaçãoem Educação da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp)?Demerval Saviani. Desde 1978 eu vinhadesenvolvendo uma experiênciabem-sucedida de orientação coletiva noPrograma de Doutorado em Educação daPUC de São Paulo. Passando, a partirde 1980, a atuar também na Unicamp,capitalizei essa experiência no trabalhorealizado em ambas as instituições.Ocorre que, tanto na PUC como naUnicamp, à vista dos resultados positivosque vinham sendo alcançados, osAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 5-14, jan/dez 2005 - pág. 9


A C Ealunos lamentavam o fato de que, defendidaa tese, deveriam voltar parasuas instituições de origem, ficando impedidosde continuar participando daquelasatividades coletivas. Diante disso, foiamadurecendo a idéia de transformar ocoletivo de orientandos em grupo depesquisa. Isso permitiria que, mesmodepois de concluídas as respectivas teses,os novos doutores pudessem continuarparticipando do grupo, seja debatendoos projetos de tese dos novos alunos,seja colocando em discussão, nointerior do grupo, os próprios projetosde pesquisa. O primeiro passo nessadireção foi dado em 1986 quando propusna Unicamp a organização do Grupode Estudos e Pesquisas “História, Sociedadee Educação no Brasil”, aglutinandoos meus orientandos de doutorado comseus respectivos projetos de tese. Aomesmo tempo, abri a possibilidade departicipação de outros alunos que estivessemsob orientação de outros docentes.Assim, o grupo foi constituído coma participação de doze doutorandos, poisaos meus nove orientandos de então, seacrescentaram dois do professor EvaldoAmaro Vieira e uma do professor JoséLuís Sanfelice.A denominação “História, Sociedade eEducação no Brasil” foi escolhida porduas razões: de um lado, buscou-se umanomenclatura suficientementeabrangente para acolher a diversidadede temas dos projetos de tese dos alunos,não se limitando aos estudos específicostradicionalmente classificadosna disciplina história da educação; deoutro lado, procurou-se definir um eixoque sinalizava a perspectiva de análiseaglutinando investigações que estudassema educação enquanto fenômeno socialque se desenvolve no tempo. Assim,o termo “sociedade” aparecia comomediação entre “história” e “educação”sugerindo que a história da educaçãoseria entendida em termos concretos,isto é, como uma via para se compreendera inserção da educação no processoglobal de produção da existênciahumana, enquanto prática social determinadamaterialmente. Buscava-se, poresse caminho, ampliar a visão tradicionalda história da educação centradanas idéias e instituições pedagógicas.Tornou-se consensual, desse modo, nessaturma de doutorandos, que se deveriadar caráter permanente ao Grupo dePesquisas de modo que, mesmo apósconcluir suas teses e tendo regressadoa suas instituições e regiões de origem,eles pudessem continuar articulados nogrupo, desenvolvendo novos projetos deinvestigação. Tomando-se por base asdiscussões ocorridas entre 1986 e1990, o grupo confluiu para o entendimentode que a aglutinação dos integrantesatuais e futuros deveria se darem torno de um trabalho comum, decorrentede um projeto coletivo, em lugarde se partir de uma proclamaçãogeral e exigir que cada um aderissepreviamente aos termos dessa proclamação.pág. 10, jan/dez 2005


R V O<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Em 1991, oHISTEDBR foi formalizado, propondo-sedesenvolver o Projeto “Levantamento ecatalogação das fontes primárias e secundáriasda educação brasileira”, emâmbito nacional. Quais as razões da escolhadesse projeto? Por que foi consideradoprioritário naquele momento?Que balanço o senhor faz dos trabalhosdesenvolvidos pelo grupo nesses vinteanos de atividade?Demerval Saviani. Entre 1986 e1990, na medida em que os membrosdesse grupo inicial foram concluindosuas teses de doutorado, após longas eacirradas discussões, decidiu-se pelaconstituição de um “núcleo permanentede pesquisas”, com uma proposta coletivade trabalho articuladora de todosos seus membros. Para subsidiar a formaçãodo núcleo foi realizado, no transcorrerde 1991, o I Seminário <strong>Nacional</strong>de Estudos e Pesquisas “História, Sociedadee Educação no Brasil”, com otema “Perspectivas metodológicas da investigaçãoem história da educação”,operacionalizado em dois momentos:entre os dias 6 a 10 de maio de 1991foi realizada a primeira parte do seminário;nos dias 9 a 13 de setembro de1991, a segunda parte. No primeiromomento, o grupo empreendeu a análiseda produção historiográfica educacionalbrasileira. No segundo momento,dando seqüência à discussãohistoriográfica, o grupo contou com acontribuição do historiador prof. dr.Ciro Flamarion Cardoso, que proferiuconferência sobre o tema “Paradigmasrivais na historiografia atual”.Considerando que o debate sobre a produçãohistórico-educacional brasileiraevidenciou a escassez, a dispersão e aprecariedade das fontes fundamentaisà pesquisa histórico-educacional no Brasil,o grupo priorizou a realização de umamplo levantamento, organização e catalogaçãodas fontes fundamentais àpesquisa histórica na área da educação.Para tanto, durante o encontro de maiode 1991, foi iniciada a redação do Projeto“Levantamento, organização e catalogaçãodas fontes primárias e secundáriasda história da educação brasileira”,tarefa concluída na segunda partedesse I Seminário, realizada de 9 a 13de setembro de 1991. No ano seguinte,já para embasar o desenvolvimentodo projeto, foi realizado, de 6 a 10 deabril de 1992, o II Seminário <strong>Nacional</strong>do Grupo centrado no tema “Fontes primáriase secundárias em história daeducação brasileira”, no interior do qualforam previstos dois tipos de atividades:a) conferências abertas ao público, seguidasde debates; b) reunião de trabalhodo Grupo de Estudos e Pesquisas “História,Sociedade e Educação no Brasil”.Com a realização do Seminário deu-secontinuidade ao debate sobre as principaiscorrentes metodológicas da investigaçãohistórica, levando-se em contaos seus pressupostos filosóficos e assuas aplicações no âmbito daAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 5-14, jan/dez 2005 - pág. 11


A C Ehistoriografia educacional brasileira. Umoutro objetivo foi conhecer e debateras principais pesquisas e trabalhos comfontes primárias e secundárias da educaçãobrasileira, bem como os catálogose relatórios delas resultantes. Nesseevento ocorreu ainda o debate dosprincipais métodos e técnicas de pesquisahistoriográfica com fontes documentaise bibliográficas. Entre 1992 e1995, foram realizados encontros anuaiscom os coordenadores dos grupos detrabalho estaduais, geralmente no interiorde outros eventos da área. Nessesencontros foram discutidos os encaminhamentosdos Grupos de Trabalho (GTs),sobretudo quanto ao Projeto “Levantamentoe Catalogação de Fontes”.Ao lado da ampliação gradativa do coletivonacional, com a organização denovos GTs regionais ou estaduais, o projetopossibilitou não só a aglutinação depesquisadores interessados em levantare preservar a memória educacionalem diversas regiões do Brasil, mas tambémque as equipes estaduais encontrassemseus próprios caminhos, demodo especial através de pesquisasresultantes das fontes primárias locaise regionais da educação. O coletivo depesquisa buscou, respeitando a diversidadee pluralidade dos membros, encontrarseus próprios caminhos de investigaçãosobre temáticas regionais.Eis as razões pelas quais, no momentoem que se procedeu à institucionalizaçãodo Grupo de Estudos e Pesquisas,em 1991, elegeu-se como prioritário oprojeto “Levantamento e catalogaçãode fontes”.Um balanço específico e abrangente daprodução global do grupo está sendo organizadono âmbito do “Projeto 20anos”, que deverá estar disponível porocasião do VII Seminário <strong>Nacional</strong> doHISTEDBR, a realizar-se em julho desteano de 2006. À guisa de um balançosumário e geral, eu destacaria os seguintespontos: a) uma produção amplae diversificada expressa em grande númerode trabalhos apresentados emeventos científicos, dissertações e tesesconcluídas e intensa atividade editorialrepresentada pela publicação deartigos e coletâneas; b) um papel importantena organização e consolidaçãodo campo da história da educação noBrasil, seja pela articulação de gruposde pesquisa enraizados nos vários estadosdo país, seja pela participaçãonos eventos e entidades da área; c) umaposição de respeito à diversidade epluralidade mantendo, porém, uma firmezateórica que o impediu de aderircomodamente às novas orientações queprocuravam hegemonizar o campo. Essapostura do HISTEDBR foi decisiva paragarantir o debate que permitiu manteroxigenada a área de história da educaçãono Brasil, impedindo que se instituíssena disciplina uma unanimidadeartificial resultante da adesãoincontrastável a uma determinada compreensãoque procurava se impor comouma espécie de pensamento único.pág. 12, jan/dez 2005


R V O<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Qual a sua posiçãosobre o uso de “novas fontes”como, por exemplo, cadernos e manuaisescolares, que tratam do cotidianoescolar, filmes, fotos, história oraletc., na pesquisa em história da educação?Demerval Saviani. Preliminarmente,cabe considerar que, rigorosamente falando,a multidão de papéis que se acumulamnas bibliotecas e nos arquivos públicosou privados, as milhares de peçasguardadas nos museus e todos os múltiplosobjetos categorizados como novasfontes pela corrente da “Nova história”não são, em si mesmos, fontes. Com efeito,os mencionados objetos só adquiremo estatuto de fonte diante do historiadorque ao formular o seu problema de pesquisadelimitará aqueles elementos apartir dos quais serão buscadas as respostasàs questões levantadas. Em conseqüência,aqueles objetos em que realou potencialmente estariam inscritas asrespostas buscadas erigir-se-ão em fontesa partir das quais o conhecimentohistórico poderá ser produzido. Nessesentido, já que é sobre as fontes que nosapoiamos para produzir o conhecimentohistórico, uma vez formulado o problemaa ser investigado, o pesquisador seencontra autorizado a buscar todo tipode fonte que possa trazer informaçõesde alguma importância para o esclarecimentode seu problema de pesquisa.Portanto, nenhum caminho, nenhumaespécie de fonte lhe pode estar interditada,seja ela nova ou velha, antiga oumoderna. O cuidado, pois, que se deveter é não se deixar inebriar pela supostanovidade das fontes, o que levaria a inverteros termos da questão: em vez doobjeto, isto é, a natureza do problema aser investigado determinar a busca dasfontes, a própria fonte, em virtude do poderde atração a ela atribuído, é que seconverteria em objeto da pesquisa.<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>. Quais os desafiosque se impõem para a pesquisa emhistória da educação diante das novastecnologias?Demerval Saviani. Inegavelmente, asnovas tecnologias representam umgrande potencial de incremento das pesquisasem história da educação, sejapor agilizar a produção e disseminaçãodos conhecimentos, seja por ampliarconsideravelmente as fontes disponíveis,seja, enfim, por permitir oarmazenamento de dados em grandeescala, por meios virtuais, sem os inconvenientesdos enormes espaços físicosnecessários para a guarda de documentosna sua forma material. Os desafiospara a absorção dessas novastecnologias pelos pesquisadores da áreade história da educação dizem respeitoao domínio desses recursos e, principalmente,à sua rápida obsolescência.Trata-se, com efeito, de um fenômenoque poderá nos colocar diante da situaçãode dispormos de informações armazenadasem dispositivos eletrônicoscujas máquinas de leitura, entretanto,Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 5-14, jan/dez 2005 - pág. 13


A C Epor terem caído na obsolescência, jánão estariam mais disponíveis para seremoperadas. Assim, a preservação deinformações guardadas em meios virtuaisimplica a preservação dos instrumentosque permitam a sua leitura. Isso,porém, pode nos colocar, de novo, diantedo problema da limitação dos espaçosfísicos, já que a preservação detoda essa parafernália implicará a manutençãode enormes depósitos de sucataeletrônica.Entrevista realizada por Dalton JoséAlves e Nailda Marinho da CostaBonato, em Campinas, em 10 dejaneiro de 2006.pág. 14, jan/dez 2005


R V ONilda AlvesProfessora titular da Faculdadede Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.O ‘Espaço-Tempo’ Escolarcomo Artefato Cultural nasHistórias dos Fatos e das IdéiasEste texto foi escrito dentro da escolha teóricometodológicaque relaciona imagens – no casofotografias – e narrativas, aceitando queumas remetem às outras,incessantemente. A opção teóricoepistemológicase dá dentro da idéiade redes de conhecimentos que se formam noscotidianos vividos. Utilizando as fotografias doInstituto de Educação do Rio de Janeiro incluídasem um pequeno álbum, feito em 1959, tentou-seidentificar o que vamos chamar de “currículoideal” em oposição aos “currículos praticados”,narrados a partir de memórias de acontecimentosque vão marcar a formação de professoras nasredes de contextos em que se desenvolve.Palavras-chave: imagens e narrativas; redes deconhecimentos e cotidianos; ‘espaço-tempo’escolar; currículo ideal e currículos praticados.This text was written from a theoreticalmethodologicalperspective which relatesimages – specifically photographs – andnarratives, based on the assumptionthat they are permanentlyassociated to each other. Thetheoretical-methodological choice was madewithin the framework of knowledge nets producedin everyday life. By means of a small album ofphotographs taken at Rio de Janeiro Institute ofEducation, in 1959, we have tried to identify whatwe call “ideal curriculum”, in opposition to“practiced curricula”, based on narrated memoriesof “events” that would mark teachers’ preparation,in the contextual nets it is developed.Keywords: images and narratives; knowledge netsand everyday lives; school ‘spacetime’; idealcurriculum and practiced curricula.Nunca acreditei em verdades únicas.Nem nas minhas, nem nas dos outros.Acredito que todas as escolas,todas as teorias podem ser úteis emalgum lugar, num determinado momento.Mas descobri que é impossí-vel viver sem uma apaixonada e absolutaidentificação com um pontode vista.No entanto, à medida que o tempopassa, e nós mudamos, e o mundose modifica, os alvos variam e o pon-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 15


A C Eto de vista se desloca. Numretrospecto de muitos anos de ensaiospublicados e idéias proferidasem vários lugares, em tantas ocasiõesdiferentes, uma coisa me impressionapor sua consistência. Para queum ponto de vista seja útil, temosque assumi-lo totalmente e defendêloaté a morte. Mas, ao mesmo tempo,uma voz interior nos sussurra:“Não o leve muito a sério. Mantenhaofirmemente, abandone-o sem constrangimento”.1OS DIFERENTES E NECESSÁRIOSCAMINHOSOtrabalho de buscar compreendera história – de um povo, deum país, de uma instituição, deuma cultura – tem seguido múltiplos caminhos.Neste texto, vou indicar um deles:aquele que relaciona imagens, nocaso fotografias, e narrativas, aceitandoque umas remetem às outras, incessantemente.2É surpreendente como, em uma sociedadeque foi formada em torno do sentidoda visão e da perspectiva, não se teveclareza, nos caminhos da pesquisa, pormuito tempo, da importância da imagempara a compreensão e o conhecimentoda realidade, em especial porque issoexigiria, junto à crítica da mesma, a indicaçãoda possibilidade de superação daprópria lógica dominante, que tinha aquelesentido e aquele parâmetro comodefinidor da realidade e da veracidade.Ao lado do iconoclasmo de muitos, tãobem estudado por Machado, 3 vemos umasociedade que se entende e se forma,crescentemente, pelo uso das imagens.Nesse sentido, as imagens são necessáriasno mundo contemporâneo para delefalarmos do seu presente, tanto como oé para lembrar como foi ‘construído’ emseu passado, quanto se queremos pensarsuas mudanças no futuro. Assim, aprópria crítica a este estado de coisas sóserá possível na medida em que dominemos,pelo uso e pelas teorias, todo essevasto campo e não, simplesmente, porsua negativa simples ou pelo seu‘endemoniamento’.Admitindo esse ponto de partida, decidiassumir a possibilidade/necessidade defalar da escola e mais exatamente deespaços-tempos 4 escolares, a partir douso de imagens de uma série de fotografiasde um álbum do Instituto de Educaçãodo Rio de Janeiro, de 1959. Para aíchegar, parto da idéia de que se a “escola”,singularizada e concretizada em umedifício, é uma criação da burguesia ascendente(do século XV ao XVIII), suarealização só foi possível em espaços-temposmúltiplos e variados, tomando porbase concepções e ideários diferenciadose realizando práticas diversas. Dessamaneira, os processos curriculares e pedagógicosque nesses espaços-temposaconteciam foram sendo organizados, porum longo tempo, em múltiplos processosexercidos dentro de relações múltiplas,entre múltiplos sujeitos com saberesmúltiplos, que ‘aprendemensinam’, 5 opág. 16, jan/dez 2005


R V Otempo todo, múltiplos conteúdos de múltiplasmaneiras.É por isso que o uso dos plurais nos estudosdos cotidianos escolares é indispensávelao pesquisador/pesquisadora.Mostrar o que é cada escola usando imagenssignifica indicar, de saída, ‘muitasescolas’. Para começar: aquela que aautoridade, que permitiu que a fotografiafosse feita, quis mostrar e aquela outraque o fotógrafo quer e consegue mostrarcom as técnicas que possui. Em umdeterminado momento histórico, vale apena mostrar a correção, a igualdade reinante,a disciplina, a calma, a colaboração,a professora tranqüila ou cheia deautoridade. Em outros, a tristeza, a desordem,o castigo, as escaramuças ou asdisputas. Encontramos, assim, nas fotografias,tanto as crenças sobre o que é aescola, para aquela sociedade, no que dizrespeito à autoridade referida, como parao fotógrafo. Encontramos, ainda, as emoçõesvividas no momento ou aquelas lembradas,nos momentos posteriores emque são mostradas. E mais: os valores 6que esses praticantes 7 desejam ver mostradose com os quais se movem.Mas nas imagens feitas existem, ainda,os tantos sentidos dos que a vêem comsua história, suas emoções e suas memórias.No caso específico de fotografias,existem também ‘expostas’ as emoçõesdaqueles que nela foram fotografados,que ao revê-las, muitos anos depois,vão organizar narrativas sobre os quenelas estão presentes ou ausentes, sobrefatos ocorridos durante (antes oudepois) sua criação.Tudo isso nos permite afirmar, assim, asdiferenças tanto das escolas e dos processosque nela são desenvolvidos, comoentender o porquê das diversas interpretaçõespossíveis ao pesquisador que asvai usar em seu trabalho.E, nesse sentido, das tantas possibilidadesque se apresentavam para discutir osespaços-tempos de escolas, optei por trazer,nos limites deste trabalho, a memóriade uma das pessoas que se encontramfotografadas, na fotografia principal doálbum analisado. O recurso à narrativa écomum a quem tem uma imagem na mão,sob os olhos, pois esta desperta, sempre,a memória de histórias passadas, comsuas tramas e personagens, permitindoestabelecer comparações com o presentee pensando um possível futuro.Nos processos curriculares e pedagógicos,para além disto, é interessante observarque o(a) professor(a) envolvido(a), apesarde achar, muitas vezes, que está unicamenteensinando conteúdos disciplinarescom os quais lida e trabalha com seusalunos/alunas, coloca em ação processosformadores que têm a ver com crenças,valores, atitudes corporais etc. Só recentemente,os pesquisadores da área começarama compreender e a trabalharcom essas questões, 8 permitindo que compreendêssemosa influência que tantosprofessores/professoras tiveram sobreos professores/professoras de todas asgerações.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 17


A C EOs trabalhos que desenvolvi e desenvolvousando imagens, como possibilidadede discutir e melhor conhecer os cotidianosdas escolas, têm a ver com a compreensãoque sustento de que, em meioa tantas dificuldades e descrições tãosombrias sobre seu dia-a-dia, as escolase seus praticantes 9 precisam ser vistosem sua potência histórica e sua beleza,para o que pesquisas desenvolvidas comimagens e narrativas vêm contribuindo,permitindo a tessitura 10 de uma históriapara além da chamada ‘oficial’.Da mesma maneira que aquilo que ouvimosou lemos, em pesquisa, nos marcade maneira clara, do que nossos textosacadêmicos é uma prova, pelas tantasreferências que incluem, será o caso aquide buscarmos compreender como a formado que é dito deixa também suasmarcas: dirigir-se a um aluno/aluna usandodiminutivo, se enervar ou não com suamobilidade ou passividade, mover asmãos e todo o corpo de certa maneira,são ‘modos’ aprendidos tanto como certosconteúdos. E, na profissão docente,modo de ser tendo influência decisiva noseu exercício, para o bem ou para o mal.Como isso se passa na pesquisa? Os diálogosteóricos que vamos desenvolvendopara compreender aquilo que em pesquisavamos tendo que resolver, praticamentenos deixam marcas, relacionadas àsdiversas dimensões da vida e aos contextosnos quais vivemos. Bourdieu faladessa questão ao dizer quena origem, as diferentes escolhas teóricasforam certamente mais negativasdo que positivas, e é provávelque elas também tivessem por princípioa busca de soluções para problemasque se poderia considerarpessoais, como a preocupação deapreender, com rigor, problemas politicamentecandentes [...] ou essasespécies de pulsões profundas eparcialmente conscientes que noslevam a sentir afinidade ou aversãoem relação a essa ou àquela maneirade viver a vida intelectual e, portanto,a sustentar ou a combater essaou aquela tomada de posição filosóficaou científica [...]. Foi a preocupaçãode reagir contra as pretensõesda grande crítica que me levou a ‘dissolver’as grandes questões remetendo-asa objetos socialmente menoresou mesmo insignificantes, mas,em todo caso, bem circunscritos,logo, passíveis de serem apreendidosempiricamente, como as práticas fotográficas.Mas eu também reagiacontra o empirismo microfrênico deLazarsfeld e seus epígonos europeus,cuja falsa impecabilidadetecnológica escondia a ausência deuma autêntica problemática teórica,gerando erros empíricos, às vezes,absolutamente elementares. 11Por tudo o que foi exposto até aqui, comparandoe buscando aproximar práticasdiversas, entendo, com muitos companheirosde viagem, que há um modo defazer e de criar conhecimentos nos cotidianos,diferente daquele aprendido napág. 18, jan/dez 2005


R V Omodernidade, especialmente, mas nãosó, com a ciência. Se for isto, para poderestudar esses modos diferentes evariados de fazerpensar, nos quais semisturam agir, dizer, criar, sentir, lembrar,decidir, fazer, em um movimentoque venho denominando prática-teoriaprática,12 é preciso questionar os caminhosjá sabidos e indicar, todo o tempo,a possibilidade de traçar novos caminhos– até aqui só atalhos – dando conta danecessária trajetória metodológica dasidéias a serem expostas com a utilizaçãodas fontes selecionadas.Do ponto de vista teórico, essa trajetóriatem a ver com a escolha feita pelasidéias de redes de conhecimentos e detessitura do conhecimento em redes paraa compreensão dos conhecimentos criadosnos tantos cotidianos em que vivemos.É preciso que reconheçamos quesão grandes as dificuldades para identificaras origens de nossos tantos conhecimentos(de conteúdos a valores), masque eles só podem começar a serem explicadosse nos dedicarmos a perceberas intrincadas redes nas quais são verdadeiramentecriados. Isso porque, épreciso inverter o modo que aprendemoscom os setores dominantes da sociedade,durante os últimos quatro séculos,quanto à importância dos conhecimentoscriados nos cotidianos que são vistoscomo errados e precisando ser ‘superados’.Isso se traduz em uma situação naqual não os notamos, achando que é ‘assimmesmo’. Resulta que não os fixamos,não sabemos como são e, menos ainda,sabemos como analisar os processos desua criação ou como analisá-los paramelhor compreendê-los. Além disso, essesconhecimentos são criados por nósmesmos em nossas ações cotidianas oque dificulta uma compreensão de seusprocessos, pois aprendemos com a ciênciamoderna que é preciso separar, paraestudo, o sujeito do objeto. Esses conhecimentose as formas como são tecidosexigem que admitamos ser indispensável,ao contrário, mergulhar inteiramente emoutras lógicas para apreendê-los ecompreendê-los. 13Em relação ao método, reconhecendoque muitas são, ainda, asdúvidas sobre os caminhos aseguir e que o reconhecimento dos limitesexistentes para nossas ações sãoponto de partida para qualquer discussão,admito que, como a vida, os cotidianose as pesquisas nos/dos/com eles formamuma ‘tarefa’ complexa, o que exigetambém métodos complexos paraconhecê-los. Nesse sentido, é necessáriodiscutir alguns aspectos para começar acompreender essa complexidade. O primeirodesses aspectos se refere à discussãocom o modo dominante de ‘ver’o que foi chamado ‘a realidade’ pelosmodernos e que diz respeito, como bemnos alerta Latour, 14 ao mundo que hojechamaríamos ‘virtual’ do laboratório oudas criações abstratas como o Leviatã,de Hobbes, lembrados pelo referido autor.A trajetória de um trabalho nos/dos/Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 19


A C Ecom os cotidianos precisa ir além do quefoi aprendido com essas virtualidades damodernidade, na qual o sentido da visãofoi o exaltado (“ver para crer”; “é precisouma certa perspectiva” etc). É necessárioexecutar, assim, um mergulho comtodos os sentidos no que se quer estudar.O segundo movimento a ser feito éo de compreender que o conjunto de teorias,categorias, conceitos e noções queherdamos das ciências criadas e desenvolvidasna chamada modernidade, e quecontinuam sendo um recurso indispensávelao seu desenvolvimento, não é sóapoio e orientador de rota a ser trilhada,mas, também e cada vez mais, limite aoque precisa ser tecido quanto aos estudosnos/dos/com os cotidianos. Ampliandoessa idéia, o terceiro movimento necessário,incorporando a noção de complexidade,15 vai exigir, por um lado, aampliação do que é entendido como fontee, por outro, a discussão sobre osmodos de lidar com a diversidade, o diferentee o heterogêneo. Com ele é precisocompreender a necessidade de incorporaçãode fontes variadas vistas,anteriormente, como dispensáveis e mesmosuspeitas: a narrativa de quem viveu,a fotografia guardada em arquivo pessoaletc. Por fim, é preciso assumir quepara comunicar novas preocupações,novos problemas, novos fatos e novosachados, é indispensável uma nova maneirade escrever, o que remete a mudançasmuito mais profundas. Tudo isso,tendo centralmente colocada a impossibilidadede separação entre sujeito eobjeto, já que praticantes e condiçõesmateriais de uso formam uma articulaçãosempre presente nos espaços-temposcotidianos, mesmo quando aos primeirosé negado o uso direto.Dessa maneira, é preciso ampliare complexificar o que vamosconsiderar como fontes de conhecimentos.Para além daquilo quepode ser grupado e contado (no sentidode numerado), como antes aprendemos,vai interessar aquilo que é “contado”(pela voz que diz) pela memória: o casoacontecido que parece único (e que poristo o é) a quem o “conta”; os documentos(caderno de planejamento, cadernode aluno, prova ou exercício dado ou feitoetc.) raros visto que guardados quandotantos iguais foram jogados fora porque“não eram importantes” e sobre osquais se “conta” uma história diferente,dependendo do trecho que se considera;a fotografia que emociona, a cada vez queé olhada, e sobre a qual se “contam” diferenteshistórias, dos que nela aparecemou estão ausentes, da situação quemostra ou daquela que “faz lembrar”.A importância de buscar outros caminhospara compreender nos leva, obrigatoriamente,à necessidade de incorporar tantoo diverso como a totalidade de cadaexpressão individual, assumindo comdecisão o diferente e o heterogêneo. Assim,aquilo que durante tanto tempo insistimosem ver como repetição – osmesmos exercícios, os mesmos livros, asmesmas leituras –, precisa ser visto napág. 20, jan/dez 2005


R V Osua variedade de uso quanto às ordensde trabalho, aos vácuos de conteúdo, aotempo gasto, às exigências feitas à apresentaçãodo pensamento, às notas dadas,às diferentes origens, às diferentes lembrançasque trazem.Pela existência dessa variedade, é precisopensar tanto em diferentes formaspara captá-la e registrá-la, como nas diferentesmaneiras para tratar o que sevai recolhendo, com uma espécie de redede caçar borboletas, em uma linda imagemde Certeau. 16 Saber captar as diferenças,superando a indiferença (pelooutro) aprendida, exige um longo processodentro do qual cada sujeito “conta”.Assim, ao contrário do que aprendemos(nos ensinaram) na prática da ciênciadominante, precisamos entender, nosespaços-tempos cotidianos, as manutençõespara além da idéia de falta de vontadede mudar, submissão ou incapacidadede criar, como tantos fazem. É necessárioolhar/ver/sentir/tocar (e muitomais) as diferentes expressões surgidasnas inumeráveis ações que somente naaparência, muitas vezes utilizada paraimpressionar alguém postado em lugarsuperior, são iguais ou repetitivas. 17 É precisobuscar outro sentido para o que érepetição, buscando entendê-la nas suasmúltiplas justificativas e necessidades.Assim, a multiplicidade das repetiçõesvem acompanhada de atos variados.Aqueles cadernos, aqueles livros, aquelecartaz na parede, artefatos entendidoscomo sempre iguais e repetitivos, que usotiveram e que significado ganharam paracada um de seus usuários? Tanto o repetidocomo o diferente possui uma história(em cada escola e em outros espaços-temposcotidianos) que só recentementeestamos aprendendo a questionarde modos variados. Nesse sentido, é precisocolocar ‘em quarentena’ a grandemaioria das pesquisas ‘sobre’ os cotidianos– escolar e outros – que o vêem, exclusivamente,como espaço-tempo de repetiçõesequivocadas, de ritos dispensáveise de processos equivocados.Lembrando com Certeau que, nos últimostrês séculos, aprender a escrever definea iniciação por excelência em uma sociedadecapitalista e conquistadora, sendoa sua prática iniciática fundamental, 18preciso ainda perguntar, preocupada comas pesquisas nos/dos/com os cotidianos:como ir além desta prática escriturística,sabendo que está em cada um de nósque nos dedicamos à pesquisa? Esse autornos dá uma pista importante de comose poderiam desenvolver esses estudos,ao afirmar quepara explicitar a relação da teoria comos procedimentos dos quais é efeitoe com aqueles que aborda, ofereceseuma ‘possibilidade’: um discursoem histórias. A narrativização daspráticas seria uma ‘maneira de fazer’textual, com seus procedimentos etáticas próprios. A partir de Marx eFreud (para não remontar mais acima),não faltam exemplos autorizados.Foucault declara, aliás, que estáAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 21


A C Eescrevendo apenas histórias ou ‘relatos’.Por seu lado, Bourdieu tomarelatos como a vanguarda e a referênciade seu sistema. Em muitostrabalhos, a narratividade se insinuano discurso erudito como o seuindicativo geral (o título), como umade suas partes (‘análises de casos’,‘histórias de vida’ ou de grupos etc.)ou como seu contraponto (fragmentoscitados, entrevistas, ‘ditos’ etc.)[...]. Não seria necessário reconhecera legitimidade ‘científica’ supondoque em vez de ser um restoineliminável ou ainda a eliminar dodiscurso, a narratividade tem ali umafunção necessária, e supondo que‘uma teoria do relato é indissociávelde uma teoria das práticas’, como asua condição ao mesmo tempo quesua produção? 19Essas observações levam Certeau a afirmartambém que isso implicaria reconhecero valor teórico do romance, lugarpara onde foi ‘rejeitada’ a vida cotidianadesde que surgiu a ciência moderna. 20Nesse sentido, diz queisto seria sobretudo restituir importância‘científica’ ao gesto tradicional(é também uma gesta) que sempre‘narra’ as práticas. Neste caso, oconto popular fornece ao discursocientífico um modelo, e não somenteobjetos textuais a tratar. Não temmais o estatuto de um documentoque não sabe o que diz, citado à frentede e pela análise que o sabe. Pelocontrário, é um ‘saber-dizer’ exatamenteajustado a seu objeto e, aeste título, não mais o outro do saber,mas uma variante do discursoque sabe e uma autoridade em matériade teoria. Então se poderiam compreenderas alternâncias e cumplicidades,as homologias de procedimentose as imbricações sociais que ligamas ‘artes de dizer’ às ‘artes defazer’: as mesmas práticas se produziriamora num campo verbal ora numcampo gestual; elas jogariam de umao outro, igualmente táticas e sutiscá e lá; fariam uma troca entre si –do trabalho ao serão, da culinária àslendas e às conversas de comadres,das astúcias da história vivida às dahistória narrada. 21Duas são as observações, a esse respeito,necessárias. A primeira, para deixarclaro que essa narratividade, a históriacontada por alguém, não significa um retornoà descrição que marcou ahistoricidade na época clássica, pois, aocontrário dessa, não há na primeira a‘obrigação’ de se aproximar da ‘realidade’,mas sim de criar um espaço de ficção,aparentemente se subtraindo à conjunturaao dizer: “era uma vez...”. Paraajudar quanto à segunda observação,Certeau traz a seu texto o pensamentodo historiador e antropólogo MarcelDetienne, 22 que trabalha com o mundogrego, mostrando que esse autor nãoinstala as histórias gregas diante desi pra tratá-las em nome de outrapág. 22, jan/dez 2005


R V Ocoisa que não elas mesmas. Recusao corte que delas faria objetos desaber, mas também objetos a saber,cavernas onde ‘mistérios’ postos emreserva aguardariam da pesquisa científicao seu significado. Ele nãosupõe, por trás de todas essas histórias,segredos cujo progressivodesvelamento lhe daria, emcontrapartida, o seu próprio lugar, oda interpretação. Esses contos, histórias,poemas e tratados para ele jásão práticas. Dizem exatamente o quefazem. São gestos que significam.[...] Formam uma rede de operaçõesda qual mil personagens esboçam asformalidades e os bons lances. Nesteespaço de práticas textuais, comonum jogo de xadrez cujas figuras,regras e partidas teriam sido multiplicadasna escala de uma literatura,Detienne conhece, como artista, millances já executados (a memória doslances antigos é essencial a todapartida de xadrez), mas ele joga comesses lances; deles faz outros comesse repertório: ‘conta histórias’ porsua vez. Re-cita esses gestos táticos.Para dizer o que dizem, não há outrodiscurso senão eles. Alguém pergunta:mas o que “querem” dizer? Entãose responde: vou contá-los de novo.Se alguém lhe perguntasse qual erao sentido de uma sonata, Beethoven,segundo se conta, a tocava de novo.O mesmo acontece com a recitaçãoda tradição oral, assim como a analisaJ. Goody: uma maneira de repetirséries e combinações de operaçõesformais, com uma arte de “fazê-lasconcordar” com as circunstâncias ecom o público. 23Épreciso, pois, incorporar a idéiade que ao dizer uma históriacada narrador a faz e se transformaem narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos quechegaram/chegam até ele, neles inserindo,sempre, o fio do seu modo de contar.Nisso se inclui cada pesquisador/anos/dos/com os cotidianos, exercendo,assim, a arte de contar histórias, tão importantepara quem vive os cotidianos doaprender-ensinar. 24 Busca acrescentar aogrande prazer de contar histórias, o tambémprazeroso ato da pertinência do queé científico. É possível? Citando, ainda, oexemplo de Detienne, Certeau diz quesim, pois esse autorfaz todas as idas e vindas desse relato,exercendo [...] uma arte de pensar.Como o cavalo, no jogo de xadrez,atravessa o imenso tabuleiro daliteratura com as ‘curvas’ dessas histórias,fios de Ariadne, jogos formaisdas práticas. Justamente aqui, comoo pianista, ele ‘interpreta’ essas fábulas.Executa-as privilegiando duas‘figuras’ onde particularmente se exerciaa arte grega de pensar: a dança ea luta, ou seja, as próprias figurasque a escritura do relato aciona. 25Narrar histórias é, então, uma vasta experiênciahumana. Vasta tanto no tempo,pois era ass0im que os gregos conta-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 23


A C Eram a Ilíada, como no espaço, já quepode ser encontrada em todos os espaçosdeste planeta, até hoje. Mas, ela ébem mais funcional nos espaços-temposculturais cotidianos, nos quais ‘conta’ –no sentido de ter importância – tanto aoralidade como a memória. Em primeirolugar, porque como nela não é possívelgerar categorias complexas próprias, sãousadas as histórias da ação humana paraarmazenar, organizar e comunicar boaparte do que sabem. 26 Além das culturaisorais, onde já foram bem estudadaspor antropólogos de diversas correntes,essas histórias estão, também, nos cotidianos,desde sempre, sendo orepositório amplo dos saberes das açõeshumanas nesses contextos: nelas estãodesde o reconhecimento psicológico dealguém, quando se conta as respostasrápidas que tinha quando era criança,passando por um chazinho infalível paraalguma doença, que encobre um vastotratamento doméstico ao qual não faltamnem o carinho nem os doces, que curama “alma” e mostram certo conhecimentomédico, até o conserto de aparelhos domésticos,exigindo saberes mecânicos eeletrotécnicos, ou a confecção de um pratoa ser degustado em um domingo dereunião familiar, que indicam conhecimentosquímicos e estéticos. Na escola,a chamada ‘sala dos professores’ e aconhecida ‘hora do cafezinho’ exercemuma importância capital na troca de experiênciasvividas, nas salas de aula eem outros espaços-tempos, para os professores/professoras.Já o ‘portão daentrada’ da escola ou o ‘pátio de recreio’representam esse mesmo papel para osalunos/alunas.Nesses espaços-tempos cotidianos,a cultura narrativa temuma grande importância porquegarante formas, de certa maneira,duradouras aos conhecimentos, já quepodem ser repetidas. Embora, naturalmente,tenham um conteúdo que nãogarante a sua fixação, permitem umaevolução e uma história, embora diferentedas que conhecemos em relação aosconhecimentos científicos ou políticos oficiais,que são, sobretudo, escritos. Assim,por exemplo, as narrativas podemincluir dados que sem nenhuma precisãosão fixados e repetidos, tais como: uma‘pitada’ de sal, ‘algumas’ folhas, ‘certos’exercícios, uma história ‘engraçada’,uma ‘solução’ para um problema, um‘modo de fazer’ os alunos escreverem umtexto maior, uma ‘indicação’ de como lerum livro fazendo anotações e garantindoa escrita a seguir etc.Mas há uma diferença sobre a qual épreciso que nos detenhamos, pedindoajuda a Ong: é aquela que tem a ver coma relação com o enredo, nas duas formasde expressão, oral e escrita. É noenredo narrativo que os procedimentosmnemônicos, verdadeiros nós necessáriosàs redes de memória, se manifestamde modo notável. 27 No entanto, ele é diferentedo que estamos habituados emuma cultura escrita e, em especial, natipográfica. Sobre isso Ong explica:pág. 24, jan/dez 2005


R V Oas pessoas das culturas escritas e tipográficasatuais geralmente julgama narrativa conscientemente inventadaalgo tipicamente planejado em umenredo linear progressivo, muitasvezes diagramado como a ‘pirâmidede Freytag’ (isto é, um aclive seguidopor um declive): uma ação ascendenteconstrói a tensão, eleva-a a umclímax, que consiste muitas vezes emum reconhecimento ou outro incidenteque cria uma ‘peripeteia’ oureverso da ação, e é seguida por umfinal ou desenlace – pois esse padrãolinear progressivo tem sido comparadoao atar e desatar de um nó. [...]A antiga narrativa grega oral, o poemaépico, não foi construído 28 dessemodo. Em sua Arte poética,Horácio escreve que o poeta épico“acelera a ação e joga o ouvinte nomeio das coisas (vv 148-149)”.Horácio tinha em mente principalmenteo descaso do poeta épico coma seqüência temporal. O poeta irárelatar uma situação e apenas muitomais tarde explicar, muitas vezesdetalhadamente, como ela surgiu.[...] Na verdade, uma cultura oral nãoconhece um enredo linear progressivoextenso, do tamanho de um poemaépico ou de um romance. Ela nãopode organizar nem mesmo narrativasmais curtas da maneira cuidadosa,incessantemente progressiva comque os leitores de literatura, há 200anos, aprenderam cada vez mais acontar [...]. As ‘coisas’ em meio àsquais a ação deve iniciar nunca –salvo em trechos curtos – foram ordenadascronologicamente para construiro ‘enredo’. [...] Não encontramosenredos lineares progressivos jáprontos na vida das pessoas, emboraas vidas reais possam fornecermaterial com o qual tal enredo possaser construído mediante a eliminaçãobrutal de tudo o que não sejauns poucos incidentes cuidadosamentesalientados. 29Assim, trabalhar com a memória cotidianadas tantas ações desenvolvidas nosmúltiplos contextos em que vivemos, aocontrário das necessidades da narrativaescrita do romance, exige trazer à tona,de uma narrativa que não é nem linearnem progressiva, tudo o que é considerado“restos”. Por outro lado, com analogiaaos estudos de Peabody, 30 que conhecipor meio da leitura de Ong, sobre ascanções cantadas pelos bardos, de largatradição oral, ouso afirmar que a narrativaoral de ações pedagógicas múltiplasé, sempre, o resultado da interação entreo que está sendo narrado, o públicoque ouve e a memória comum que têmsobre outras ações pedagógicas. Semessas redes, não é possível narrativacompreendida e nem formulação de novosconhecimentos. Nelas, é muito comuma mudança de “rota” – de assunto,de tom e mesmo de forma. Pode-se passarda afirmação à negação, da afirmaçãoao questionamento, de um fato acontecidoontem a outro acontecido a mui-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 25


A C Etos anos, da fala pessoal à fala de alguémque se ‘introduz’na história chamadapor quem narra. Naturalmente, todaa narrativa tem um certo enredo, no entantouma história pode ser parada e ficarsem conclusão se, de repente, a lembrançade como as pessoas se vestiamou se penteavam “naquele tempo” ganhaimportância. É possível que uma afirmativade como se fazia bem a escola “naqueletempo” seja interrompida por outrahistória que mostra justamente ocontrário. 31Portelli desenvolve essa idéia ao dizer quenessa forma de fazer história a realidadevai ser compreendida não como umtabuleiro de xadrez que tem todos osquadrados iguais, mas muito mais comouma “colcha de retalhos, em que os pedaçossão diferentes, porém formam umtodo coerente depois de reunidos”. Concluindoesta aproximação, o autor dá,ainda, um grande recado: “em últimaanálise, essa também é uma representaçãomuito mais realista da sociedade,conforme a experimentamos”. 32Nesse sentido, a composição, termo ambíguoque serve também para designaros processos de tessitura das lembranças,permite compreender que só é possívelorganizar a memória utilizando aslinguagens e os sentidos que foram formandoem cada um de nós, dentro dasculturas vividas, 33 em cada trajetória pessoale profissional, o tecido memorialista.Assim, no caso do praticante da docência,cada um de nós, antes de ter o direitolegal de ser professor/professora, “aprendeo ofício” em centenas de aulas assistidasdurante toda a trajetória que noslevou a ‘escolher a profissão’, em múltiploscontextos cotidianos. Nessa trajetória,aprendemos gestos, expressões,maneiras, movimentação de corpo, comoo professor/professora deve se vestir oufalar, como encaminhar o trabalho comos alunos/alunas, como se dirigir às autoridadeseducacionais ou como receberos pais, como fazer uso de múltiplas linguagens,enfim. Nesse processo complexo,fomos compondo sentidos sobre: arelação professor-aluno; o papel do professor/professorana escola e na sociedade;como conduzir as aulas e onde procuraro melhor apoio para conduzir cadaaula e todas elas; como encontrar, emum momento inesperado, uma respostaque não sabíamos que sabíamos – tudoaquilo que Bourdieu denominou e estudoucomo sendo o habitus e que, assim,buscou explicar:a ação não é uma simples execuçãode uma regra, a obediência a umaregra. Os agentes 34 sociais, tanto nassociedades arcaicas como nas nossas,não são apenas autômatos reguladoscomo relógios, segundo leismecânicas que lhes escapam. Nosjogos mais complexos [...] eles investemos princípios incorporados deum ‘habitus’ gerador: esse sistemade disposições ‘adquiridas pela experiência’,logo, variáveis segundo olugar e o momento. Esse ‘sentido dopág. 26, jan/dez 2005


R V Ojogo’, como dizemos em francês, éo que permite gerar uma infinidadede ‘lances’ adaptados à infinidade desituações possíveis, que nenhumaregra, por mais complexa que seja,pode prever. [...] Sendo produto daincorporação da necessidade objetiva,o ‘habitus’, necessidade tornadavirtude, produz estratégias 35 que, embora,não sejam produto de uma aspiraçãoconsciente de fins explicitamentecolocados a partir de um conhecimentoadequado das condiçõesobjetivas, nem de uma determinaçãomecânica de causas, mostram-se objetivamenteajustadas à situação. Aação comandada pelo ‘sentido dojogo’ tem toda a aparência da açãoracional que representaria um observadorimparcial, dotado de toda informaçãoútil e capaz de controlá-laracionalmente. E, no entanto, ela nãotem a razão como princípio. Bastapensar na decisão instantânea dojogador de tênis que sobe à rede forade tempo para compreender que elanão tem nada em comum com a construçãocientífica que o treinador, depoisde uma análise, elabora paraexplicá-la e para dela extrair liçõescomunicáveis. As condições para ocálculo racional praticamente nuncasão dadas na prática: o tempo é contado,a informação é limitada etc. E,no entanto, os agentes fazem, commuito mais freqüência do que se agissemao acaso, ‘a única coisa a fazer’.Isso porque, abandonando-se àsintuições de um ‘senso prático’ queé produto da exposição continuadaa condições semelhantes àquelas emque estão colocados, eles antecipama necessidade imanente aofluxo do mundo. 36Com essas idéias, podemos compreendero quanto as açõesdocentes não são, exclusivamente,racionais, no sentido de planejadase planificadas, mas correspondem a‘aprendizagens’ que em nós foram penetrandoe nos marcando em situações diferentes,em qualidade, em quantidade,em espaços-tempos de realização variados.Por outro lado, as ações que sãoproduzidas no exercício da docência,embora aprendidas socialmente, sãosempre únicas, porque organizam o todosabido de acordo com cada situação concreta.Ou seja, considerando o praticantedocente, podemos dizer que suasações invocam todas as aulas assistidase dadas – conseqüentemente vividas– e para serem ‘compreendidas’ precisamde outros que as tenham vividotambém.Além disso, como todas as ações humanas,a ação de recordá-las permite o aparecimentode tons e sons dissonantesdentro de uma história. A análise dessasdissonâncias permite detectar omissões,mudança de direções e a renovação permanentedos fatos vividos em diferentesépocas e situações, já que “a experiêncianunca termina, é constantementerelembrada e retrabalhada”. 37 Quando oAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 27


A C Eprofessor/professora decide contar umahistória a um pesquisador/pesquisadora,provavelmente já a contou a outros companheiros/companheiras:aquele contofaz parte do seu repertório pessoal, mesmoque seja um caso que se passou comoutro colega.Por tudo isso, com Thomson, entendoque tecemos “nossa identidade atravésdo processo de contar histórias paranós mesmos – como histórias secretasou fantasias – ou para outras pessoas,no convívio social. [...] Ao narrar umahistória, identificamos o que pensamosque éramos no passado, quem pensamosser no presente e o que gostaríamosde ser (no futuro)”. 38 O reconhecimento,por si mesmo e pelos outros, é,assim, o processo mobilizador de tantasmemórias tecidas, pois, sem ele, ascrises pessoais, sociais, profissionaisseriam insuportáveis. Com ele, compomos,através de imagens buscadas nopassado, e sempre retocadas pelas nossascrenças e interesses atualizados, atodo o momento, nossa realidade dehoje e nossas possibilidades futuras. Amemória ‘joga’ um importante papelnisso tudo porque, sem dúvida, cada umde nós, como pessoa e como profissional,sempre se pergunta: de onde vim?Como me tornei o que sou? Por queescolhi esta profissão? Por que estouaqui? E agora? etc.MEMÓRIAS DE ‘NORMALISTAS’:DOS CURRÍCULOS IDEALIZADOSAOS CURRÍCULOS PRATICADOSTodos os anos, as turmas se reuniamem torno de um chafariz,sem água desde sempre, nocentro do pátio central do Instituto de Educaçãodo Rio de Janeiro, belíssima construçãoanacrônica, porque de colonialespanhol construída no início do séculoXX. No centro da fotografia, um ou doisprofessores, mais ou menos ‘convidados’pela turma a ser fotografada. Cercandoos,podíamos ver as ‘representantes’ daturma.Fachada e pátio interno do Instituto de Educação do Rio de Janeiropág. 28, jan/dez 2005


R V OEm um pequeno álbum, no qual se colocoua fotografia de uma dessas turmasdo ano de 1959, encontramos 16 fotografiasde diversos espaços do Institutode Educação, em uma série organizadapelo fotógrafo e não pela autora desteartigo. Incorporando narrativas surgidasdessas imagens, na metodologia usadapor Detienne e descrita por Certeau, buscamoscompreender a importância do espaçoescolar como artefato culturaldefinidor de idéias sobre escola, a partirde um caso particular.Nesse processo, tentamos identificar oque vamos chamar de ‘currículo ideal’, apartir das pistas encontradas nessas fotografias,em oposição aos ‘currículos praticados’,narrados a partir de memóriasde ‘acontecimentos’ que vão marcar aformação de professoras nas redes decontextos em que ela se desenvolve. 39Era um tempo que foi chamado, depoisde uma novela passada na cadeia de televisãomais importante do Brasil, na décadade 1990, de os “anos dourados”,especialmente pelas professoras já aposentadase que se formavam naquele momento,que incorporaram essa denominaçãopara ‘demonstrar’ a excelência desua formação. A idéia de fundo é sempreaquela de que a ‘escola antes eramelhor’, em razão dos momentos difíceisda atualidade que enfrentam, seja pelaredução salarial, pela queda de prestígiosocial, pela deterioração das condiçõesmateriais de trabalho, frente ao desenvolvimentodas tecnologias e dos artefatosculturais possíveis de serem usadosna escola, ou pela aposentadoria e onecessário afastamento da prática pedagógica.As fotografias mostram uma idéia que seaproxima dessa de que ‘a escola antesera melhor’, indicando o ‘currículo ideal’pensado para esta escola de formação:largos corredores, laboratórios bem equipados,piscina, quadras enormes de esportes,gabinete dentário, espaços queCorredor para auditório e laboratórioAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 29


A C Eeram usados muito raramente porque: a)a passagem de alunas era interditada; b)as ‘fórmulas’ pedagógicas incluíam muitopouco os ‘experimentos’ e muito maisas aulas nas quais o professor ‘ditava oponto’ e escrevia no quadro-negro; c) ocusto de conservação era grande e jáentão a verba destinada era pequena eesporádica; d) médicos e dentistas apareciampor períodos pequenos e nuncacom freqüência.No entanto, quando a memória da antiganormalista se liga a essa série de fotografias,ela lembra, para começar, dasaulas que teve com um professor de geografiaem um desses laboratórios e quea levaram a escolher esse curso na universidade,graças à promulgação da LDBde 1961, que permitia que todos os alunosdo ‘secundário’ pudessem escolhero curso que fariam no ensino superior,longe do ‘destino’ da pedagogia que lheestava reservado pela lei anterior. E queveio a cursar, pois escolheu permanecerna docência quando todos aconselhavama pesquisa, o que veio a fazer muitosanos depois, no campo da educação.Ela lembra, também, do único período emque teve prazer nas atividades físicas,realizadas nos vastos pátios externos ouna quadra coberta, quando usava os arcos,as bolas e as fitas, ou quando, apesarde baixa, era aceita nos jogos devôlei, o único no qual sempre achava alguminteresse de ver. Ou, ainda, do prazerimenso nas idas à biblioteca, queachava enorme, porque ainda não conhecianem a Biblioteca <strong>Nacional</strong>, que só viriaa conhecer quando fez seu curso nauniversidade, nem a BibliothèqueFrançois Mitterant, que conheceu nassuas tantas viagens a Paris, muito depois.Ou as fugidas das aulas ‘curriculares’para ouvir música clássica em umasalinha no fundo da biblioteca, na qualuma professora que não lembra sequero nome a iniciava na beleza dos sons.Ou, ainda, a apertada sala, na qual, àtarde, depois das aulas, ia para fazerparte do grupo do ‘canto orfeônico’, emque fazia com mais duas colegas a raraterceira voz, ‘de belo timbre’, segundo aprofessora, que nunca mais ‘teve tempo’de usar!Piscina e gabinete dentáriopág. 30, jan/dez 2005


R V OQuando os olhos chegam ao gabinete dodiretor se desviam para a fotografia principalcom o grupo organizado em tornodo chafariz, e a memória sobre tudo oque de bom aconteceu nesses espaçostempos,com essa materialidade que buscaexpressar a idéia de excelência dessaescola, vai, ainda uma vez, ser confrontadacom um ‘currículo praticado’que indica outras coisas.No centro da fotografia, os dois professores‘escolhidos’ pela turma. Ladeandoosas ‘representantes’ que podem seridentificadas pela faixa na manga da blusado uniforme – a azul-marinho e brancaindica a titular e a azul-marinho indicaa suplente. Ao lado da primeira está aúnica aluna negra da turma, que era,também, a mais pobre. Ao lado destaestá a mais rica, cujo pai era dono dediversas companhias de ônibus no Rio deJaneiro.Sobre a professora presente um ‘acontecimento’marcante pode ser lembrado:ela chegara de volta nesse ano e só ‘pegara’uma turma: a que tinha o número1 (1.001), porque como catedrática tinhaesse direito. Como tinha passadoanos sem trabalhar e só quis essa turma,não conseguiu coordenar os professoresdas outras turmas 40 que continuarama dar o que tinham o costume deBiblioteca e ginástica no pátio externo (acima)Gabinete da direção e turma 1 normal, de 1959 (abaixo)Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 31


A C Edar, enquanto ela dava o que queria.Quando chegou o momento da primeiraprova parcial, 41 ela decidiu que organizariaa prova sozinha para todas as turmas.Nessa prova, ela colocou o que tinha dadona turma 1: as alunas desta turma sesaíram muito bem e as das outras dezoitoturmas, muito mal. Uma grande discussãona sala do diretor fez com queela tivesse que concordar que a segundaprova seria feita pelos outros professores.Mas ela continuou dando o que queria.Resultado? As alunas dessa turmaforam muito mal, enquanto as alunas dasoutras turmas se saíram dentro do esperado?Não!... As outras alunas tiveramsuas notas no tempo devido, mas as notasdessa turma não saíram. Depois dealgum tempo, a representante da turma,com uma comissão de três alunas, foiprocurar o diretor que, em tom misterioso,as mandou procurar o professor queera o presidente de uma “comissão desindicância”, cuja existência desconheciam.Esse professor, muito grosseiro comosempre, começou a falar com as alunasaos gritos dizendo que, por ele, elas “nãoserviam para serem nem lavadeiras e quedeveriam ser expulsas pelo que tinhamfeito”. Com cara de espanto, mas sempreenfrentando essas situações semmedo, a representante indagou sobre oque ele estava se referindo. O professor,sempre aos berros, disse que as provasda turma 1 tinham sido “falsificadas” eque estavam sobre perícia. As alunas iriamprestar depoimento a tal comissãoque ele presidia. A representante disse,então, que se a comissão ainda estavaapurando, ele não podia saber o resultadoe, portanto, não sabia quem era oculpado da fraude, não podendo acusaras alunas. Ela disse, ainda, que a partirdaquele momento, como todas erammenores, a comissão trataria com os paisdelas e com os advogados que trouxessem.O tom com que o professor tratavaas alunas baixou, na hora.Os pais de diversas alunas, em especialos da representante, assumiram a situaçãoa partir dali. O que acontecera? Aprofessora de química apanhara as provase completara todas as respostas queestavam em branco, fraudando, realmente,cada prova com uma letra que nadatinha a ver com a das alunas. Como asprovas eram corrigidas por dois professores,ela as passou para outro professorque denunciou a situação. Formarama tal comissão e decidiram, de início, queas alunas tinham “culpa no cartório”.Quando tudo se esclareceu, a professoranada sofreu e as alunas não receberamnenhum pedido de desculpas –repetiram as notas da primeira prova,para que a questão burocrática fosseresolvida.Lembrando isso, quem será capaz derepetir, o que tantas vezes se repete: “aescola antes era melhor”. Era mesmo?Para quem?Assim, ao lado de um ‘currículo ideal’representado por espaços estruturadosde modo excelente, desenvolvia-se um‘currículo praticado’ que não incluía, ne-pág. 32, jan/dez 2005


R V Ocessariamente, o uso da maioria dessesespaços, por longo tempo, e incluía açõespedagógicas e de outro tipo que formavam,em conjunto, nas alunas de entãoas professoras que seriam mais tarde,incluindo os valores pela sua incorporaçãoou pela negativa dos atos ‘estranhos’que presenciavam ou viviam.N O T A S1. Peter Brook, O ponto de mudança, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995, p. 15.2. Alberto Manguel, Lendo imagens, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.3. Ver Arlindo Machado, O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges, Rio de Janeiro,Marca d’Água, 2001.4. A necessidade de superar as dicotomias herdadas do desenvolvimento das ciências modernasexigiu a busca de formas de escritura que indicassem os limites que as mesmassignificam para as pesquisas que desenvolvo, bem acompanhadas por muitos colegas, etenho chamado de ‘pesquisas no/do/com o cotidiano’, e que têm indicado os caminhosteórico-metodológicos expostos neste texto.5. Ver nota anterior.6. Tenho trabalhado com a idéia de que os ‘valores’ são conhecimentos de tipo especialque nos levam a ações.7. Michel de Certau, A invenção do cotidiano: artes de fazer, Petrópolis, Vozes, 1994.8. António Nóvoa (org.), Vida de professores, Porto, Porto Editora, 1992.9. Michel de Certeau, op. cit.10. A palavra tessitura vem sendo usada por mim e outros pesquisadores (Alba Zaluar, AliceRibeiro Lopes, Walter Ong). Serve para discutir as dificuldades teórico-práticas existentespara assumir a idéia de construção, comum nas ciências, quando precisamos falarda criação de conhecimentos nos cotidianos. Tenho preferido usar, assim, os termostessitura, tecer, trançado etc. A palavra tessitura se refere à composição musical, naarticulação de sons.11. Pierre Bourdieu, Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 32.12. Ver nota 4.13. Inês Barbosa de Oliveira e Nilda Alves, Contar o passado, analisar o presente e sonhar ofuturo, in Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes, Rio de Janeiro,DP&A, 2001.14 Bruno Latour, Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1994.15 Edgar Morin, Ciência com consciência, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996.16. Michel de Certeau, op. cit.17. Remeto ao texto escrito por mim (Nilda Alves, Diários de classe, espaço de diversidade,in Ana Chrystina Mignot e Maria Teresa Cunha, Práticas de memória docente, São Paulo,Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 15-34, jan/dez 2005 - pág. 33


A C ECortez, 2003, p. 63-77), no qual trato dos modos como se deu o registro de um períodode greve de professores no Rio de Janeiro, proibida por cinco atos diferentes, masexpresso de diversas formas no diário de classe pelos professores.18. Michel de Certeau, op. cit., p. 227.19. ibidem, p. 152-153.20. Essa idéia foi, também, desenvolvida por Henri Lefebvre, em A vida cotidiana no mundomoderno, São Paulo, Ática, 1992, que começa o seu grande livro síntese sobre a vidacotidiana, trabalhando com dois importantes romances: Ulisses, de Joyce, e A estradade Flandres, de Claude Simon.21. Michel de Certeau, op. cit., p. 153.22. Cf. Marcel Detienne, Les jardins d’Adonis, Paris, Gallimard, 1972; Dionysos mis à mort,Paris, Gallimard, 1977; e Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, La cuisine du sacrificeen pays grec, Paris, Gallimard, 1979.23. Michel de Certeau, op. cit., p. 155.24. Remeto, mais uma vez, à nota 4.25. Michel de Certeau, op. cit., p. 156.26. Walter Ong, Oralidade e cultura escrita, Campinas, Papirus, 1998, p. 158.27. ibidem, p. 41-91.28. Naturalmente, eu teria dito “tecido”. A palavra “construído” vai ser usada ainda inúmerasvezes por esse autor.29. Walter Ong, op. cit., p. 160-161.30. Cf. Berkley Peabody, The winged word: a study in the technique of ancient Greek oralcomposition as seen principally through Hesiod’s works and days, Albany/New York:State University of New York Press, 1975.31. Remeto ao meu livro O espaço escolar e suas marcas: o espaço escolar como dimensãomaterial do currículo, Rio de Janeiro, DP&A, 1998, entre as páginas 118 e 126.32. Alessandro Portelli, Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a éticana história oral, in Maria Antonieta Antonacci e Daisy Perelmutter (orgs.), Projeto história:ética e história oral, São Paulo, PUC/SP, abr. 1997, n. 15, p. 17.33. Raymond Williams, Cultura, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.34. Bourdieu declara preferir o termo ‘agentes’ ao termo ‘sujeito’ por entender que sãopessoas que agem. Considera que o termo que escolheu ajuda a compreender esteestado de ‘ser em ação’, sempre. Nesse mesmo sentido, prefiro o termo ‘praticante’,usado por Certeau.35. Ao termo ‘estratégia’ aqui usado, ainda com Certeau, prefiro o termo ‘tática’, para designaras ações cotidianas dos praticantes.36. Pierre Bordieu, Coisas ditas, op. cit., p. 21-23.37. Alistair Thomson, Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história orale as memórias, in Maria Antonieta Antonacci e Daisy Perelmutter (orgs.), Projeto história:ética e história oral, op. cit., p. 63.38. ibidem, p. 57.39. Ver Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história, São Paulo, Companhiadas Letras, 1989; Alberto Manguel, op. cit.; Hans Belting, Pour une anthropologiedes images, Paris Gallimard, 2004; Inês Barbosa de Oliveira, Currículos praticados: entrea regulação e a emancipação, Rio de Janeiro, DP&A, 2003; Michel Foucault, L’ordredu discours: leçon inaugurale au Collège de France prononcé, 2 décembre 1970, Paris,Gallimard, 1971; Giles Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, 1976; Nilda Alves, Oespaço escolar e suas marcas: o espaço escolar como dimensão material do currículo,Rio de Janeiro, DP&A, 1998.40. Eram ao todo 19 turmas, com 40 alunas cada (na foto só estão 36; quem faltou nessedia?).41. Vivíamos um regime com apenas três provas parciais (não havia as mensais).pág. 34, jan/dez 2005


R V OAmarilio Ferreira Jr.Doutor em História Social pela USPe professor da Universidade Federal de São Carlos.Marisa BittarDoutora em História Social pela USPe professora da Universidade Federal de São Carlos.A Gênese das InstituiçõesEscolares no BrasilOs jesuítas e as casas de bê-á-báno século XVIEste artigo aborda as casas de bê-á-bá criadaspelos jesuítas no século XVI como a origemdas instituições escolares no Brasil. Nessaprimeira experiência educativa doscolonizadores duas concepções se opuseram:a de Nóbrega, que defendia uma base materialde auto-sustentação para as casas, e a de Luizda Grã que, amparado pelas Constituições daCompanhia de Jesus, advogava que apenas oscolégios poderiam adquirir propriedades.Palavras-chave: casas de bê-á-bá,educação jesuítica, dominação cultural,crianças indígenas.This article studies “ABC” houses (reading andwriting “schools”) built by Jesuits during theXVI century. In this first Brazilian educationalexperience Nóbrega understood that thosehouses should have economic supports. Onthe other hand, Luiz da Grã, based on theBrotherhood of Jesus’ Constitutions,believed that only theschools could have properties as lands,slaves and cattle.Keywords: “ABC” houses, jesuiticaleducation, cultural domination,indigenous children.Este artigo é resultado das pesquisasque vimos realizando háalguns anos na UniversidadeFederal de São Carlos e faz parte de umprojeto maior, que agrega estudiosos dediversas universidades brasileiras, sobreeducação e cultura no Brasil colonial(1549-1759).Nosso objetivo aqui é analisar o papeldas casas de bê-á-bá – ou confrarias demeninos – na gênese das instituições escolarese da formação societáriabrasileira, com base na propostaevangelizadora do padre Manuel daNóbrega. Essa primeira experiência pedagógicadesenvolvida pelos colonizado-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 35


A C Eres estava associada ao processo de conversãode índios e mamelucos, por meioda catequese, à fé professada pelo cristianismoapostólico romano. Para levara cabo tal projeto, e dadas as condições<strong>iniciais</strong> do processo colonizador, Nóbregapropugnava que as casas necessitavamde uma base material de auto-sustentação,divergindo do padre Luiz da Grã que,amparado pelas Constituições da Companhiade Jesus, advogava que apenas oscolégios poderiam adquirir propriedades,tais como terras, escravos e gado. Grãnão aceitava que o mesmo procedimentofosse adotado em relação às confrariasde meninos, sendo a favor de suadesativação.Com base em fontes primárias, especialmenteas cartas dos primeiros jesuítasque missionaram no Brasil, discutiremosas duas concepções em disputa, mostrandoos desdobramentos que daí advierampara a continuidade do trabalhocatequético e pedagógico dos jesuítas.AS CASAS DE BÊ-Á-BÁ E A DIFUSÃODO CRISTIANISMOOs primeiros padres jesuítas quechegaram ao Brasil, em 29 demarço de 1549, já traziam dePortugal a orientação explícita de constituíremcasas para as crianças dos “gentios”,que seriam correspondentes às “Confrariasde Meninos” existentes em Portugal.Segundo Serafim Leite, o padre “SimãoRodrigues, ao dar, em Lisboa, oabraço de despedida ao P. Nóbrega, recomendou-lheexpressamente a criaçãode meninos”. 1 Portanto, a origem dacatequese com base no ensino do bê-ábáremonta ao próprio ano da chegadados padres da Companhia de Jesus aoBrasil. Logo após o desembarque, os jesuítasiniciaram a conversão dos índiosao cristianismo ensinando os rudimentosdo ler e escrever, numa concepçãoevangelizadora que se materializaria,depois, nos famosos catecismos bilíngües,em tupi e português. SegundoRobert Southey, entre os padres jesuítasque chegaram na primeira expedição, 2“era Aspilcueta o mais hábil escolástico;foi o primeiro que compôs um catecismona língua tupi, transladando para ela orações”.3Já em abril de 1549, o padre Manuel daNóbrega, superior dos seis padres jesuítasque vieram na esquadra do governador-geralTomé de Sousa, escreveu aoprovincial de Portugal informando que oirmão Vicente Rijo (Rodrigues) ensinavaa “doutrina aos meninos cada dia, e tambémtem escola de ler e escrever”; parecendo-lheser um “bom modo” para “trazeros índios desta terra”, os quais, segundoele, mostravam “grandes desejosde aprender”. 4 Tempos depois, em maiode 1556, dirigindo-se ao padre Miguel deTorres, Nóbrega redigiu uma pequenasíntese sobre as casas de bê-á-bá, narrandoque desde a sua chegada à Baíavivia “de esmolas”. Já no ano seguintehaviam desembarcado outros padres com“sete ou oito meninos órfãos da casa deLisboa” com uma procuração do padrepág. 36, jan/dez 2005


R V OPedro Domenico, que “deles tinha cuidado”,autorizando “a fazer casas e confrariasda maneira que em Lisboa se fizeram”.Com eles “não havia nenhumaviso”, mas eram “encarregados aos padres”.Assim, ele, Nóbrega, “com os demaispadres e irmãos” que aqui se achavam,se encarregaram de “fazer-lhescasa”; além de terem pedido “terras aogovernador [Tomé de Sousa]”. Dele obtiveramtambém “alguns escravos d’el-reie umas vacas para criação”. 5Em 1561, escrevendo ao geral da Companhiade Jesus, padre Diego Laynes, 6Nóbrega retoma o tema da origem dascasas de bê-á-bá, acrescentando novasinformações:No ano de 49 fui enviado, pelo padreMestre Simão, a estas partes comos meus cinco companheiros, o qualme deu entre outros avisos este, quese nestas partes houvesse disposiçãopara haver colégios da nossaCompanhia, ou recolhimento [casa]para filhos dos gentios, que eu pedisseterras ao governador [Tomé deSousa], e escolhesse sítios, e que detudo o avisasse. No primeiro ano nãome pude resolver em nada, mas somentecorri a costa, e tomei os pulsosà terra. Logo no seguinte anomandaram quatro padres com algunsrapazes órfãos, e isto me fez crer aminha opinião, e que Nosso Senhorera servido de haver casa para rapazesdos gentios, e aqueles vinhampara dar princípio a outros muitos decá da terra, que se recolheriam comeles, e comecei a adquirir alguns commuito trabalho, por estarem naqueletempo muito indômitos, e pedi sítiospara casas e terras ao governador,e houve alguns escravos, e entreguei-osa um secular para com elesfazer mantimentos a esta gente. Logono seguinte ano vieram mais órfãoscom bulas para se ordenar confraria,o que logo se fez na Baía, e na capitaniado Espírito Santo, e nesta deSão Vicente, repartindo os rapazespor as casas, os quais eram aceitosna terra pela gente portuguesa, porcausa dos ofícios divinos e doutrina,que diziam; e com estes se juntaramoutros dos gentios e órfãos daterra, mestiços, para a todos remediare dar vida. 7A criação de novas casas de bê-á-bá,para além daquela que existia em Salvadordesde 1549, ganhou impulso, segundorelatos de Nóbrega, com a chegadada segunda leva de missionários jesuítasem 1550. 8 Para o crescimento numéricodas casas, chamam a atenção dois fatos:a vinda dos meninos órfãos de Lisboa –“com bulas para se ordenar confraria” –e a decisão de abandonar o princípioevangelizador fundado na dependência deesmolas conferidas pelos colonos. A tomadade decisão em relação ao últimofoi de exclusiva responsabilidade deNóbrega. Para ele, era impossível sustentara empresa evangelizadora com basena mendicância, pois entendia que aquestão da base material de sustentaçãoAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 37


A C Edas casas seria um fator fundamentalpara que a iniciativa catequética lograsseêxito. Nos primeiros anos, quando ospadres jesuítas ainda dependiam de esmolas,Nóbrega descreveu como funcionava,por exemplo, a casa de Piratininga,mencionando que o principal trabalho demanutenção era de um “irmão ferreiro”que, “por consertar ferramentas dos índios”,recebia “mantimentos” em troca.Além das “esmolas que alguns fazem àcasa” e a que “el-rei dá”, “a boa indústria”de um homem leigo “com três ouquatro escravos da casa e outros tantosseus”, e umas “poucas vacas” doadas “aosmeninos” consistiam no seu mantimento.9Para a magnitude da tarefa evangelizadoraque a Companhia de Jesus se propunharealizar em terras brasílicas, a manutençãodas casas de bê-á-bá com basenas esmolas era um grande obstáculo. Acasa de São Vicente, por exemplo, mantinha,no máximo, três padres jesuítas,conforme a carta citada. Por isso, desdeo início da iniciativa pedagógica fundamentadana organização das casas, Nóbregademonstrou preocupação com a forma desua sustentação, dado o papel estratégicoque ocupavam no projeto catequéticojesuítico. Em carta datada de 1552, aopadre Simão Rodrigues, provincial dePortugal, sustentava que ascasas de meninos nestas partes sãomuito necessárias: não se podem tersem bens temporais e da maneira queesta casa está fundada, e sendo assimhá de haver estes e outros escândalos.Para a Companhia se lançarde todo disto, não se podem sustentarestas casas, nem há zelo nemvirtude, nem homens para isso queabaste; podem-se reger no temporalpor homens leigos com ser ha superioridadede tudo da Companhia e dopadre [que] dos meninos no espiritualtiver cuidado. Se lá houvesse homensou padres do espírito e virtudeA expansão ultramarina portuguesa sob os auspícios da Companhia de Jesus. Roberto Gambini,Espelho índio: a formação da alma brasileira, São Paulo, Axis Mundi/Terceiro Nome, 2000, 191 p.pág. 38, jan/dez 2005


R V Odo padre Domenico, a quem isto tudoencarregassem, tudo estaria em seulugar. 10Para atingir os seus propósitosevangelizadores, Nóbrega assumiu posturapragmática em relação aos valoresdo seu tempo, principalmente se considerarmoso fato de que ele vivia as profundastransformações geradas pelasreformas religiosas que marcaram a cristandadena época moderna. Para alcançarsucesso no campo espiritual, segundoele, era necessário se imiscuir nascoisas do mundo temporal. No universodos negócios, regido pelo princípio da circulaçãodas mercadorias, não havia “virtudes”,mas, sim, “escândalos” produzidospelo poder corruptor do vil metal.Apesar de Nóbrega demonstrar conhecerperfeitamente bem o perigo que o temporalrepresentava para o espiritual,conclamava, em seguida, que “agora vejaV. R. [padre Simão Rodrigues] e dê contadisto mui larga a Nosso Senhor [SantoInácio de Loyola] e mande-nos o que façamosdesta casa e das outras”. E, assim,lentamente foi se construindo todaa infra-estrutura econômica de sustentaçãoda ação evangelizadora da Companhiade Jesus no Brasil colonial.As casas de bê-á-bá, nos primórdios damissão evangelizadora, eram rústicas.De modo geral, guardavam similitudecom as próprias condições econômicasem que viviam os primeiros colonizadoresportugueses no Brasil, notadamentena capitania de São Vicente. Nóbrega, emcarta de setembro de 1557, ao padreMiguel de Torres, detalhou a organizaçãode uma delas:as casas que agora temos são estas,uma casa grande de setenta e novepalmos de comprimento e vinte enove de largo. Fizemos nela as seguintesrepartições, um estudo e umdormitório e um corredor, e uma sacristiapor razão que outra casa queestá no mesmo andar e da mesmagrandura nos serve de igreja por nuncadepois que estamos nesta terrasermos poderosos para a fazer, o quefoi de sempre dizermos missas emnossas casas. Neste dormitório dormimostodos assim padres como irmãosassaz apertados. Fizemos umacozinha e um refeitório e uma despensaque serve a nós e aos moços.Da outra parte está outro lanço decasas da mesma compridão, e umadelas dormem os moços, em outrase lê gramática, em outra se ensinaa ler e escrever; todas estas casasassim umas como outras são térreas;tudo isto está em quadra. O chãoque fica entre nós e os moços não ébastante para que repartindo-se elese nós fiquemos agasalhados,maiormente se nele lhes houvessemde fazer refeitório, despensa e cozinhacomo será necessário. 11Igreja, sacristia, sala de estudo (ensinode ler, escrever e gramática), dormitório,despensa, cozinha e refeitório. Eis comose estruturava uma casa de bê-á-bá noAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 39


A C EBrasil do século XVI. No relato deNóbrega fica claro que as casas (ou confrariade meninos) se transformaram numverdadeiro locus de imbricação entrecatequese e escolarização elementar doschamados “gentios”. Para tal finalidade,elas eram “completas”, pois estavam organizadasde modo que a vida espiritual,que requer a existência de tempo livrepara a sua plena manifestação, gozassede condições necessárias produzidas poruma base material mínima que garantissea existência temporal daqueles homense meninos. A despensa e a cozinhaeram abastecidas, em geral,pelo trabalho escravo de negrosdesafricanizados, tal como mais uma vezdescreveu, em carta de julho de 1552, opróprio Nóbrega, observando que, dosescravos que tinham, um morrera logo,como morreram “outros muitos” que vinham“já doentes do mar. Além deles,tomei doze vaquinhas” para criação epara “os meninos terem leite”. 12 Assim,para ele, era improvável a manutençãodas casas de bê-á-bá sem o concurso dobraço escravo, que no início não foi apenasnegro, mas também indígena.Tal como descritas, as casas de bê-á-bálembram um pouco a cultura hebraica dese construir nos fundos da sinagoga umasala de aula onde se ensinavam os rudimentosde ler e escrever para os meninos.Os jesuítas recuperavam, assim,elementos da tradição hebraico-cristã,que perdurou no período da chamadaigreja primitiva, de processar a conversãodos ditos “gentios” com base na leiturade textos religiosos, que no Brasildo século XVI foram os catecismos bilíngües(tupi e português). 13 Aliás, o maisfamoso catecismo de doutrina cristã daépoca foi escrito pelo irmão José deAnchieta, que, anteriormente, havia elaboradouma gramática da própria línguatupi. Ele desenvolveu uma didática daeducação elementar que utilizava o teatrocomo instrumento lúdico da aprendizagem,mesmo que fundamentada numaconcepção mnemônica do ensino. 14Anchieta fez a seguinte descrição do funcionamentopedagógico das casas de bêá-báao padre Inácio de Loyola:Estes, entre os quais vivemos [índiosde Piratininga], entregam-nos deboa vontade os filhos para seremensinados, os quais depois, sucedendoa seus pais, poderão constituirnum povo agradável a Cristo. Na escola,muito bem ensinados pelo mestreAntônio Rodrigues, encontram-se15 já batizados e outros, em maiornúmero, ainda catecúmenos. Osquais, depois de rezarem de manhãas ladainhas em coro na Igreja, aseguir à lição, e de cantarem à tardea Salve Rainha, são mandados parasuas casas; e todas as sextas-feirasfazem procissões com grande devoção,disciplinando-se até o sangue. 15Em outra carta, datada de agosto de1556, endereçada ao mesmo Inácio deLoyola, Anchieta descreveu mais uma vezo cotidiano das atividades desenvolvidaspág. 40, jan/dez 2005


R V Opelos meninos indígenas e mamelucos nascasas de bê-á-bá:Expliquei suficientemente na carta anteriorcomo se faz a doutrina dosmeninos: quase todos vêm duas vezespor dia à escola, sobretudo demanhã; pois de tarde todos se dão àcaça ou à pesca para procurarem osustento; se não trabalham, não comem.Mas o principal cuidado quetemos deles está em lhes declararmosos rudimentos da fé, sem descuidaro ensino das letras; estimamnotanto que, se não fosse esta atração,talvez nem os pudéssemos levara mais nada. Dão conta das coisasda fé por um formulário de perguntas,e alguns mesmo sem ele.Muitos confessaram-se este ano, efizeram-no em muitas outras ocasiõesdo que não tivemos pouca alegria;pois alguns confessam-se comtal pureza e distinção, e sem deixaremsequer as mais mínimas coisas,que facilmente deixam atrás os filhosdos cristãos: recomendando-lhes euque se preparassem para este sacramento,disse um: é tão grande a forçada confissão que, a seguir a ela,nos parece que queremos voar parao céu com grande velocidade. 16Pela sua narrativa fica muito claro queos jesuítas não separavam a educaçãoescolar das primeiras letras do processocatequético que convertia os filhos dos“gentios” à fé cristã. Assim, as casas debê-á-bá se transformaram, juntamentecom as igrejas, nas primeiras instituiçõeseducacionais letradas do Brasil colonialque difundiram de forma efetiva os valoresda “civilização ocidental cristã”. Paraatingir tal objetivo, os jesuítas utilizaramuma pedagogia fundamentada nos seguinteselementos: bilingüismo (preferencial-Jesuítas catequizando índios do litoral no século XVI. Roberto Gambini, op. cit.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 41


A C Emente português e tupi); método de ensinomnemônico; catecismo com os principaisdogmas cristãos; desmoralizaçãodos mitos indígenas; e atividades lúdicas(música e teatro). O uso sistemático dessapedagogia no âmbito das casas de bêá-bápode ser considerado a primeiragrande ação ideológica de afirmação dosvalores europeus quinhentistas no Brasilcolonial.Foram essas escolas de ler, escrever econtar, inicialmente destinadas às criançasindígenas e mamelucas com o objetivode convertê-las ao cristianismo, quese transformaram, no decorrer do séculoXVI, nos colégios jesuíticos para os filhosdos colonos, ou seja, “os filhos defuncionários públicos, de senhores deengenho, de criadores de gado e oficiaismecânicos”. 17 Em síntese: na mesma proporçãoem que os índios do litoral atlânticoiam sendo exterminados ou convertidose o modelo colonizador portuguêsse consolidava, as casas de bê-á-bá desapareciame davam lugar aos colégiosdestinados às crianças brancas filhas doscolonos.AS DIVERGÊNCIAS ENTRE MANUELDA NÓBREGA E LUIZ DA GRÃOBrasil foi transformado em umaprovíncia da Companhia de Jesusem decorrência das profundasdivergências entre os padres jesuítase o bispo Sardinha, ao qual eram subordinadospela hierarquia eclesiástica.Eles discordavam da proposta evangelizadoraque o primeiro bispo do Brasiltentou implementar, pois não consideravama sua conduta moral e, sobretudo,a dos padres seculares, a mais apropriadapara a envergadura da empresamissionária. Por sua vez, o bispo Sardinhanão só abominava como ridicularizavaos métodos catequéticos empregadospelos jesuítas e, por conseqüência, osproibia de praticá-los. 18 O impasse só foiresolvido porque o padre Inácio deLoyola, fundador e primeiro geral da Companhiade Jesus, por meio da influênciaque exercia no âmbito da Santa Sé, determinoua criação da província do Brasil,em 1555. A partir de então, o bispoperdeu totalmente o controle eclesiásticosobre os “soldados de Cristo”, umavez que estes passaram a dever obediênciaexclusivamente a Roma.Foi nesse contexto que o padre Manuelda Nóbrega se transformou, primeiro, emvice-provincial (1553-1555) e, depois, emprovincial da Companhia de Jesus no Brasil(1555-1559). No interregno de 1549a 1559, ele lançou os fundamentos doprojeto educativo jesuítico do século XVIestabelecendo a síntese entre base materialde financiamento (terras, escravose produção agropecuária pertencentes àprópria Companhia de Jesus) e as duasprincipais instituições educacionais: ascasas de bê-á-bá e os colégios. Ambaspodem ser consideradas os primeiroscentros irradiadores da cultura ocidentalcristã em terras brasílicas. Mas a empresaevangelizadora concebida epág. 42, jan/dez 2005


R V Oimplementada por Nóbrega não foi isentade críticas. Depois de se livrar da obediênciaao bispo Sardinha, ele passou aenfrentar oposição entre os seus próprioscompanheiros.O padre Luiz da Grã foi o seu maior oponente.Quando chegou ao Brasil, na terceiraleva de padres jesuítas (1553), 19já trazia de Portugal uma nova orientaçãopara a catequese com as criançasórfãs, indígenas e mamelucas, que entravaem conflito com aquela implementadadesde 1549. Poucos anos depois, transformou-seele mesmo no provincial(1559-1571), em substituição a Nóbrega,e, utilizando-se da posição hierárquicaque o cargo lhe conferia, passou a fazerobjeção explícita ao seu projetocatequético.Em carta de 12 de junho de 1561 para ogeral da Companhia, padre Diego Laynes,Nóbrega fez um relato circunstanciadosobre as dissensões entre ele e seuopositor:E desta maneira caminhamos até avinda do padre Luís da Grã, do qualsoube como em Portugal não se aprovavatermos nós o assunto destesrapazes [órfãos, indígenas emamelucos], e menos ordenar assuas confrarias. E com isto me veiouma carta de António de Quadros,escrita por comissão do provincial,que naquele tempo era em Portugal,em que me avisava não se dever adquirirnada para rapazes, nem fazerdeles tanto caso. Como na verdadeo que se adquiriu, assim de terrascomo de vacas, não era minha intenção,ser somente para rapazes, maspara que a Companhia dispusessedisso, como lhe parecesse mais glóriado Senhor, quer fosse nos nossoscolégios, quer em casas de rapazes,quer em tudo junto; e, por nãohaver estudantes nossos, se gastavacom os rapazes assim da terra,como com os que enviaram de Portugal.E, como eu tinha contráriaopinião e me parecia que as causas,por onde em Portugal se deixavam osrapazes, não tinha cá tanto lugar,contudo comecei a desandar a rodaque tinha andado, e a diminuir os meninose a tirar confrarias, quandopude, sem escândalo, mormente depoisque vieram as Constituições, asquais, nas regras do reitor, diziamque não se recebessem em casa nemmesmo infiéis para doutrinar, e pareceuao padre Luís da Grã, que naqueletempo era meu colateral, e todosos mais padres, que aquilo tambémtinha cá lugar. 20Assim, no dizer de Nóbrega, no tempoem que Grã foi provincial do Brasil, amissão evangelizadora jesuítica nos trópicoscomeçou a “desandar a roda quetinha andado” até então, já que não erapossível manter em pleno funcionamentoas casas de bê-á-bá e os colégios semuma fonte de financiamento permanenteoriginária das terras, gado e escravosadquiridos por meio da Coroa portugue-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 43


A C Esa. Submetido à disciplina férrea da Companhia,Nóbrega, “sem escândalo”, começouo processo de desativação das casas,tal como determinavam as ordensemanadas de Portugal. A exceção, segundoele, teria sido o caso da capitania doEspírito Santo. Lá ocorreu que as confrariasde meninos “por devoção da gente asustentaram, dizendo as missas seu vigáriohomem devoto, e os moradores ossustentaram com esmolas, dando cargodeles a um homem. Mas isto tambémdurou pouco”. 21 O exemplo sucedido noEspírito Santo reforçava a tese deNóbrega: era impossível manter a açãoevangelizadora por meio de doações espontâneasdos colonos. A Companhia deJesus precisava administrar os seus própriosnegócios para gerar financiamentopermanente das casas e dos colégios quedelas nasceram, nem que para isso fossenecessário lançar mão do própriotrabalho escravo, pois a missãoevangelizadora, para atingir o seu intento,precisava, antes de tudo, de umaempresa econômica que a sustentasse.Os jesuítas se consideravam os instrumentos da fé católica para salvar as almas dos índios.Roberto Gambini, op. cit.pág. 44, jan/dez 2005


R V OPortanto, os negócios da Companhia deJesus no Brasil, iniciados por inspiraçãodo padre Manuel da Nóbrega, não fugiramà regra geral do período colonial: ouso da mão-de-obra escrava no âmbitodas relações sociais de produção, talcomo indica a carta datada de agosto de1552, ao provincial de Portugal, que forneceindícios da prática da escravidão naspropriedades dos padres jesuítas. Ele contaque “depois que vieram escravos d’elreide Guiné a esta terra”, os padres tomaramtrês “fiado por dois anos” e fizeram“mercar” outros, alguns dos quais“eram fêmeas” que fizeram casarem-se“com os machos” e estavam “nas roças”.A causa de terem “tomado fêmeas”, explicaele, era porque de outra maneiranão teriam “roças nesta terra, porque asfêmeas fazem a farinha e todo o principalserviço e trabalho é delas, os machossomente roçam, pescam e caçam”. Prosseguindo,informa que, por não absolveremos demais homens “desta terra”, queeram solteiros e tinham “escravas comquem pecavam”, eles procuravam padresseculares e não perdiam ocasião de retrucaremque também os jesuítas tinhamescravas. 22Além dos escravos desafricanizados, osjesuítas também utilizaram os índioscomo mão-de-obra cativa nas suas propriedades,que, lentamente, foram setransformando em fazendas de gado ecana-de-açúcar, tal como as outras daColônia. A grande divergência do padreLuiz da Grã com Nóbrega era justamenteo fato de que os jesuítas estavam setransformando em proprietários de bensmateriais que os igualavam aos grandessenhores de terras e escravos do litoralatlântico. Quanto à defesa de Nóbregasobre a necessidade dos colégios possuíremuma fonte própria de financiamento,fica muito evidente numa carta datadade 12 de junho de 1561. Nela, a ligaçãoorgânica que os jesuítas fizeram entrecolégios e fazendas ficou descrita daseguinte maneira:Esqueceu-me de avisar a V. R. queme parecia que o melhor dote quese pode juntar nestas partes para oscolégios é grande criação de vacas,porque nesta terra custa pouco criálase multiplicam muito. Este colégiotem cem cabeças agora, de seteou oito, que houve, e muitas maispoderia haver, se o padre Luiz da Grãme não fora sempre à mão a isso. Ocolégio da Baía terá outras tantas, deseis novilhas, que lá tomei, das queel-rei mandou. Esta é a melhor fazendasem trabalho, que cá há, e dãocarnes e couros e leite e queijos, quesendo muitas poderão abastar a muitagente. Se a mim derem licença quetome a esmola de el-rei em gado estesanos que se dará, elas multiplicarãotanto que baste a prover o colégio,ainda que não haja outra coisade el-rei; mas eu não sei o quefaça, porque conheço da vontade demeu superior, o padre Luiz da Grã,não ser esta, posto que também meparece que lá vossas R. R. serão contentes.Em tudo provarão, e decla-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 45


A C Erem de lá com suavidade. E o mesmose pode fazer na Baía, posto quelá não as darão de tão boa vontade,mas podem para lá haver provisãopara que se pague a esmola dosdízimos, das vacas, posto que tambémisto não sei se pode ser, porqueo bispo e cabido têm dízimosda Baía, de que pagam seus ordenados.Os rendeiros de cá folgarãode nos pagarem nisso, porque vaimultiplicando o gado muito, nestacapitania, mas bastará lembrar aopadre Luiz da Grã, que deve de sepagar nisso, se for possível, ouhavê-lo por todas as vias lícitas,que se ofereceram. 23O padre Manuel da Nóbrega era um políticoardiloso. Ele conspirava contra asdiretrizes determinadas pelo provincial daCompanhia de Jesus no Brasil, padre Luizda Grã, enviando cartas diretamente aRoma sem que o mesmo conhecesse osseus respectivos conteúdos e solapandoa sua autoridade no que dizia respeito àdeterminação de fechar as confrarias demeninos. Além disso, insinuava às autoridadeseclesiásticas até mesmo comodeveriam proceder em relação ao provincial,ou seja, teriam que se “declarar delá com suavidade” para não dar a entenderque ele estava, na prática, governandoa província do Brasil.A resistência de Grã ao processo econômicoque estava transformando os jesuítasem missionários-fazendeiros partia dopressuposto de que havia incompatibilidadeentre as coisas terrenas e espirituais.Influenciado, possivelmente mais queos outros, pelas conseqüências oriundasdas reformas religiosas que cindiram ocristianismo na primeira metade do séculoXVI, o padre Luiz da Grã era umreligioso zeloso das virtudes morais quedeviam nortear a vida espiritual dos colonizadorescristãos da Terra dos Papagaios.Segundo Nóbrega, Grã queria“edificar a gente portuguesa destas partespor via da pobreza”, ou ainda, almejava“converter essa gente da mesmamaneira que S. Pedro e os apóstolos fizeram,e com S. Francisco [de Assis] ganhoua muitos por penitência e exemplode pobreza”. 24 Os escrúpulos espirituaisde Grã frente aos bens materiais que aCompanhia estava amealhando encontravamno padre Manuel da Nóbrega o seumaior crítico. Para Nóbrega, os pendoresfranciscanos do provincial não faziamdele um bom jesuíta no contexto doBrasil colonial, ou seja, ele não deveriamedir as próprias conseqüências espirituaise materiais na batalha pela conquistade novas almas para o rebanho daSanta Madre Igreja Católica ApostólicaRomana.Mas o padre Luiz da Grã pensava diferente.Considerava que o preço moral apagar era muito alto e, portanto, comprometedorda eficácia evangelizadorapraticada pelos inacianos, pois a promiscuidadegerada pelos negóciosconcernentes ao mundo secular poderiase transformar numa fonte de corrupçãopág. 46, jan/dez 2005


R V Odas virtudes morais. Além disso, Grã chegouao Brasil já conhecedor da primeiraversão das Constituições da Companhiade Jesus 25 que, por sua vez, entravamem contradição com as práticas adotadaspelos primeiros padres que chegaram aoBrasil. Em 1556, em plena fase de divergênciascom Grã, Nóbrega declaravaao provincial de Portugal, padre Miguelde Torres, que “saberá V. P. como a estaspartes me mandarão os padres e irmãosque viemos, e até agora vivemossem lei nem regra, mais que trabalharemosde nos conforme com o que havíamosvisto no colégio [Coimbra] e, comonele havíamos estado pouco, sabíamospouco”. 26 As Constituições tinham estabelecidoprincípios que entravam em confrontodireto com os procedimentosadotados pelos comandados de Nóbrega.O principal deles era a proibição de “osirmãos ter bens temporais nenhuns, senão for colégio”, 27 ou seja, elas estabeleciamo voto de pobreza para os padrese irmãos da Companhia de Jesus.Por outro lado, o padre Luiz da Grã eraciente do quanto custava manter as casasde bê-á-bá em pleno funcionamentoe, ao mesmo tempo, da impossibilidadedos padres jesuítas de gerenciá-las como próprio labor. Dada a dimensão da tarefamissionária propugnada pela Companhiade Jesus na vastidão do sistemacolonial português (América, África eÁsia), era impossível, a um só tempo,evangelizar e trabalhar para sustentar aação catequética. Em carta endereçadaao padre Diogo Mirón, de 27 de dezembrode 1554, Grã argumentava que “estacasa” era muito “trabalhosa de sustentar”,porque não havia na terra “esmolasque chegassem mais que um pouco deMissa jesuítica no Brasil do século XVI. Roberto Gambini, op. cit.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 47


A C Efarinha”, e as que provinham do governadore de outras pessoas não “bastavampara comer”. Dizia, ainda, que a casatinha “algumas terras”, mas os padresnão tinham forças para “as aproveitar”,além da “muita ocupação que isto daria”.Dois escravos e duas escravas lhes haviammorrido naquele ano, dizia ele, citandoas “dívidas” que estavam pagando com“as provisões” que haviam recebido. Porfim, as casas que haviam construído “porduas vezes caíram” e “quase tudo estavacoberto de terra”. 28Entretanto, deparando-se com asantinomias que se estabeleceram entre a prática evangelizadorados jesuítas do Brasil e os preceitosfirmados nas Constituições, o padreLuiz da Grã não tardou a notificar ogeral da Companhia de Jesus em Roma.Em carta dirigida ao padre Inácio deLoyola, datada de 8 de junho de 1556,expressou claramente a sua contrariedadecom o fato de os padres da Companhiaestarem adquirindo bens materiaispara dar suporte econômico ao processode conversão dos “infiéis”. O excerto quese segue é esclarecedor:Desde o princípio há uma casa emSão Vicente onde recolhem os muitosmamelucos e os filhos dos índios,dos quais havia mais de 50. [...]Um irmão que se dizia Pero Correia,[...] doou os seus bens à Confrariados Meninos de São Vicente, entreos quais umas terras onde se podeproduzir mantimentos e certas vacasque se vão multiplicando. De maneiraque agora estamos de posse delas,e de seu leite se mantêm osirmãos de Piratininga [...], e com oque o rei dá de mantimentos evestimentas aos dez que primeirovieram ao Brasil [...]. Outra dúvida ésobre se ofício de ferreiro do irmãoNogueira, fazendo obras aos índiosem troca dos seus mantimentos é repugnanteàs Constituições, dos quaistodavia usufruímos até vir a resposta.[...] Quanto às vacas, de seu leitese mantêm os irmãos até que venharesposta de Portugal sobre o quese fará delas [...]. Acerca disso opadre Nóbrega muito deseja que estacasa de Piratininga seja colégio daCompanhia, por ser aqui escala paramuitas nações de índios. Obsta a istonão haver com que se possa manter,pois as vacas são das crianças daterra, entre os quais estavam os quePedro Domenico aqui mandou [meninosórfãos de Lisboa].[...]. Aqui emPiratininga por obedecermos às Constituiçõesdesistimos de todo o modode granjear obtendo o pão da casapor meio de esmolas. Algum outromodo buscaremos para a carne epescado. Entre os índios não se podeintroduzir a prática de pedir esmola,que é gente muito pobre e pouco industriosapara possuí-la; é necessárioajuntá-las entre os brancos. 29Mas Nóbrega divergia da posição de seefetivar a conversão dos chamados “gen-pág. 48, jan/dez 2005


R V Otios” com base numa militância apostólicadesprovida de quaisquer bens temporais,tais como estipêndios reais, terras,escravos, vacas etc. Ao contrário de Grã,acreditava que não seria possível edificara fé cristã na terra brasílica exclusivamentecom esmolas e sem o concurso dosnegócios atinentes ao mundo secular. Emcarta ao sucessor de Loyola, de 12 dejunho de 1561, Nóbrega explicou ao padreDiego Laynes o cerne das suas discrepânciaspolíticas com o segundo provincialdo Brasil, o padre Luiz da Grã.Para ele:Esta opinião do padre (Luiz da Grã)me fez muito tempo não firmar bemo pé nestas coisas, até que me resolvie sou de opinião (salva semprea determinação da santa obediência)de tudo o contrário, e me parece quea Companhia deve ter e adquirir justamentepor meios, que as Constituiçõespermitem, quanto puder paranossos colégios e casas de rapazes;[...]. E não devemos de querer quesempre el-rei nos proveja, que nãosabemos quanto isto durará, mas portodas as vias se perpetue a Companhianestas partes [...]. E temo quefosse esta grande invenção do inimigovestir-se de santa pobreza paraimpedir a salvação de muitas almas. 30É claro que, na questão da “salvação demuitas almas”, o grande “inimigo” era opróprio demônio, e Nóbrega, espertamente,lança uma suspeita sobre a posturafranciscana do provincial da Companhiade Jesus: estaria ele seduzido pela “invençãodo inimigo”, que se vestia da “santapobreza para impedir a salvação dasalmas”? Em síntese: para Nóbrega, a tesedefendida por Grã, alicerçada no voto depobreza dos padres jesuítas, era tudoaquilo que o “inimigo” da fé cristã queriaque prevalecesse na Terra de Santa Cruz.A divergência entre os dois jesuítas, entretanto,não podia paralisar o processode evangelização em curso. Nesse caso,a última palavra coube ao geral da Companhiade Jesus, Diego Laynes, que, dacidade de Trento, em 16 de dezembrode 1562, endereçou uma carta a Nóbregadesautorizando as teses defendidas peloprovincial Luiz da Grã. Parecia-lhe “bem”que buscassem “meios de manter” ascasas. Para tanto, não lhe soava “inconveniente”ter “escravos para tratar dafazenda de gado, ou pescar para os demais”,desde que fossem “justamenteadquiridos”, pois alguns eram “escravosinjustamente”. 31Foi com base nessa carta que a utilizaçãodas relações escravistas de produçãonas propriedades mantidas pelospadres da Companhia de Jesus no Brasilcolonial ficou definitivamente liberada e,portanto, constituindo-se na principal fontede riqueza material que deu suportepara a ação missionária cristã. A anuênciapara o uso da escravidão veio daqueleque foi considerado o maior teólogo dasteses aprovadas no Concílio de Trento eque tinha plena consciência de que, paraatingir os objetivos da Companhia de Je-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 49


A C Esus, na sua luta contra a reforma protestante,era necessário lançar mão de “escravosconquistados justamente”. Pois,uns padeceriam no “inferno” gerado pelomundo do trabalho escravo e outros, combase no sofrimento alheio, alcançariamo “paraíso celestial” pela via da conversãoà fé cristã. Assim, os padres jesuítas,de contradição em contradição, iamtranspondo os principais traços do edifíciocultural europeu ocidental cristão paraas terras brasílicas.A posição assumida pelo geral da Companhiade Jesus, padre Diego Laynes,colocava fim à disputa entre Nóbrega eGrã, vencendo o primeiro. Assim, ao longodo século XVI, os jesuítas foram setransformando, lentamente, em grandesproprietários de fazendas de gado e canade-açúcarque operavam com base nasrelações escravistas de produção. A diferençaentre os colonos portugueses eos padres jesuítas consistia em que osúltimos colocavam a fé e os negócios geradospelo mundo temporal a serviço daconversão dos chamados “infiéis” e, porconseguinte, da propagação do cristianismocatólico apostólico romano, mesmoque para isso fosse necessário “escravizaralguns injustamente”, tal como asseverouo sucessor de Santo Inácio deLoyola no comando da Companhia deJesus. Fé cristã, casas de bê-á-bá, colégios,catequese, conversão, terras, escravos(índios e negros), gado, açúcar... Eisos elementos constitutivos da sociedadebrasileira do século XVI.ConclusãoAs casas de bê-á-bá cumpriram, nointerregno do século XVI, uma dupla função:num primeiro momento, foram instrumentosvaliosos no processo deconversão dos chamados “bárbarosbrasílicos” e, num segundo, constituíramsenas matrizes dos principais colégiosjesuíticos do Brasil colonial.O seu êxito, nos primeiros tempos da colonização,deve-se, em parte, ao padreManuel da Nóbrega, que pode ser consideradoo grande arquiteto da edificaçãodas bases da cultura cristã na formaçãosocial brasileira. Para atingir suas metas,o primeiro provincial da Companhia deJesus no Brasil travou todas as lutas possíveisde serem travadas, até mesmoaquela em que derrotou, com a ajuda daSanta Sé, o padre Luiz da Grã, tergiversandocom as próprias virtudes moraisque deveriam reger a vida dos cristãosapós as reformas religiosas do século XVI.O plano de Nóbrega, fundado na combinaçãoentre casas de bê-á-bá ecatequese, resultou na conversão de todosos índios do litoral que sobreviveramao extermínio do colonizador europeu.Segundo Robert Shouthey, o projeto colonizadorque saiu da sua práxisevangelizadora pode ser considerado umsucesso do ponto de vista da afirmaçãodos valores da “civilização ocidental cristã”nas terras brasílicas, pois:Tão bem tinha o sistema de Nóbregasido seguido por Anchieta e seus discípulos,que no fim de meio séculopág. 50, jan/dez 2005


R V Oestavam todos os naturais ao longoda costa do Brasil, até onde se estendiamos estabelecimentos portugueses,reunidos em aldeias debaixoda superintendência dos padresda Companhia. Verdade é que o trabalholho haviam facilitado os senhoresde escravos, consumindo tãodepressa as suas vítimas, que emmuitas partes do país pouco restavaaos missionários que fazer. 32A evangelização dos povos que habitavamo mundo colonial ibérico contou com obeneplácito direto do próprio Inácio deLoyola, fundador da Companhia de Jesus,que era sistematicamente informado dasbatalhas que os seus “soldados de Cristo”travavam nas possessões metropolitanassituadas além-mar. O seu conhecimentosobre a missão jesuítica de “povoara terra de boa gente” pode ser constatado,por exemplo, numa carta de marçode 1555 que Nóbrega, provincial doBrasil, lhe enviou, explicando que:estas partes são muito apropriadaspara se fazerem colégios da Companhiae se sustentarem mais facilmenteque em nenhuma parte muitos irmãospela bondade da terra e ser muisã; e ao menos deviam fazer aquicolégios que servissem de enfermariasde todas as casas da Companhia,e isto se a terra se povoar de boagente, como esperamos que será,pois Nosso Senhor nela descobremetais, como todos afirmam. 33Os jesuítas como missionários colonizadores no Brasil do século XVI. Roberto Gambini, op. cit.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 51


A C EA concepção geral do plano colonizadorlusitano, nos seus traços mais distintivos,pode ser atribuída ao padre Manuel daNóbrega que, após a morte do primeirobispo do Brasil, d. Pedro Fernandes Sardinha(1552-1556), 34 escreveu aqueleque seria um dos mais importantes documentosdo período colonial brasileiro:a carta de 8 de maio de 1558, ao padreMiguel de Torres, provincial de Portugal. 35Nela encontramos o seguinte excerto sobrecomo a Coroa portuguesa deveria seposicionar em relação aos índios que seopunham ao processo colonizador:A lei, que lhes hão de dar, é defender-lhescomer carne humana e guerrearsem licença do governador; fazer-lhester uma só mulher, vestiremsepois têm muito algodão, ao menosdepois de cristãos, tirar-lhes osfeiticeiros, mantê-los em justiça entresi e para com os cristãos; fazê-losviver quietos sem se mudarem paraoutra parte, se não for para entre cristãos,tendo terras repartidas que lhebastem, e com estes padres da Companhiapara os doutrinarem. 36Nesta mesma carta, invocando a necessidadeda chamada “guerra justa”, escreveu:Os que mataram a gente da nau dobispo se podem logo castigar e sujeitare todos os que estão apregoadospor inimigos dos cristãos e osque querem quebrantar as pazes eos que têm os escravos dos cristãose não os querem dar e todos os maisque não quiserem sofrer o jugo justoque lhes derem e por isso sealevantarem contra os cristãos. 37A missão evangelizadora jesuítica no Brasildo século XVI, por meio da catequesede índios e mestiços, foi baseada numaimbricação entre teologia tridentina enegócios mundanos, particularmente emrelação à propriedade de terras e escravos.Para manterem em pleno funcionamentoas casas de bê-á-bá, os maiorescentros irradiadores da fé católica apostólicaromana no primeiro século da formaçãoda sociedade brasileira, os padresjesuítas praticaram um verdadeiropragmatismo com os cânones da teologiamoral. O mundo da fé andava de braçosdados com o mundo secular fazendocom que os jesuítas logo se transformassemem missionários-fazendeiros, ouseja, em padres que não estavam somentepreocupados em lutar pela fé, mas emparticipar também dos negócios produzidospelo mundo temporal como forma degarantir a sobrevivência da ordem quefoi fundada como o novo baluarte da cristandadecatólica.Assim, a experiência pedagógica das casasde bê-á-bá no Brasil colonial do séculoXVI não só se constituiu num instrumentoda conversão ao cristianismo dosditos “gentios”, mas possibilitou unir osinteresses da fé cristã com as relaçõeseconômicas que marcaram a história dasociedade brasileira após a própria expulsãodos jesuítas em 1759. Essa foitambém a outra grande conseqüência doplano colonizador formulado e executadopelo padre Manuel da Nóbrega.pág. 52, jan/dez 2005


R V ON O T A S1. J. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa, Livraria Portugália;Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1938, t. I, p. 32.2. A primeira expedição (1549) de padres jesuítas era composta pelos seguintes membros:os padres Manuel da Nóbrega, António Pires, Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarroe os irmãos Vicente Rodrigues [Rijo] e Jácome Diogo (ibidem, p. 560).3. Robert Southey, História do Brasil, 3ª ed., São Paulo, Obelisco, 1965, v. I, p. 255.4. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, 10 de abril de 1549), inCartas do Brasil e mais escritos, introdução e notas históricas e críticas: S. J. SerafimLeite, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1955, p. 20.5. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Miguel de Torres, Lisboa (São Vicente, maio de 1556), inCartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 209.6. O padre Diego Laynes sucedeu a Inácio de Loyola na condição de prepósito-geral daCompanhia de Jesus (1558-1565). Além disso, esteve por três vezes no Concílio deTrento (1545-1564), como teólogo do Papa (papas Paulo III, Júlio III e Pio IV).7. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Diego Laynes, Roma (São Vicente, 12 de junho de1561), in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 384-385.8. A segunda expedição (1550) de padres jesuítas era composta pelos seguintes membros:os padres Afonso Braz, Francisco Pires, Manuel Paiva e Salvador Rodrigues (S. J. SerafimLeite, op. cit., p. 560).9. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Miguel de Torres, Lisboa (São Vicente, maio de 1556), inCartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 211.10. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, fins de agosto de 1552),in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 143.11. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Miguel de Torres, Lisboa (Bahia, 2 de setembro de1557), in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 263-264.12. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, fins de julho de 1552),in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 131.13. José de Anchieta, escrevendo ao padre Inácio de Loyola, afirmava que, em Piratininga,“foram admitidos para o catecismo 130 e para o batismo 36, de toda a idade e de ambosos sexos. Ensina-se-lhes todos os dias duas vezes a doutrina cristã, e aprendem asorações em português e na língua própria deles”. (José de Anchieta, Carta ao padreInácio de Loyola, Roma (São Paulo de Piratininga, 1º de setembro de 1554), in S. J.Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, Coimbra, Tipografia da Atlântida,1957, v. II, p. 106).14. A concepção mnemônica do ensino – isto é, baseada na memorização do conhecimento– também gerava o sadismo pedagógico, tal como o próprio Anchieta descreveu: “oensino dos meninos aumenta dia-a-dia e é o que mais nos consola; os quais vêm comgosto à escola, sofrem os açoites e têm emulação entre si“. (José de Anchieta, Carta aopadre Inácio de Loyola, Roma (São Vicente, março de 1555), in S. J. Serafim Leite,Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, op. cit., v. II, p. 194).15. José de Anchieta, Carta ao padre Inácio de Loyola, Roma (São Paulo de Piratininga, 1ºde setembro de 1554), in S. J. Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil,Coimbra, Tipografia da Atlântida, 1957, v. II, p. 106.16. José de Anchieta, Carta ao padre Inácio de Loyola, Roma (São Paulo de Piratininga,agosto de 1556), in op. cit., p 308.17. S. J. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro, Instituto<strong>Nacional</strong> do Livro, 1949, t. VII, p. 143.18. Uma panorâmica das divergências evangelizadoras entre os jesuítas e o bispo Sardinhapode ser encontrada, por exemplo, nas seguintes cartas: carta de Manuel da Nóbrega aop. Simão Rodrigues, de julho de 1552; carta de Manuel da Nóbrega ao p. Luís Gonçalvesda Câmara, de 15 de junho de 1553; carta de Manuel da Nóbrega a Tomé de Sousa, de5 de julho de 1559 (Manoel da Nóbrega, op. cit., Cartas do Brasil e mais escritos, op.cit., p. 133-134; p. 178; p. 319).Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 35-54, jan/dez 2005 - pág. 53


A C E19. A terceira expedição (1553) de padres jesuítas era composta pelos seguintes membros:os padres Luiz da Grã, Braz Lourenço, Ambrósio Pires e os irmãos José de Anchieta,João Gonçalves, António Blasques e Gregório Serrão. (S. J. Serafim Leite, op. cit., t. I,p. 561).20. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Diego Laynes, Roma (São Vicente, 12 de junho de1561), in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 385-386.21. Manuel da Nóbrega, op. cit., in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 386.22. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Simão Rodrigues, Lisboa (Bahia, fins de agosto de 1552),in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 140-141.23. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Francisco Henriques (S. Vicente, 12 de junho de 1561),in S. J. Serafim Leite, Novas cartas jesuíticas: de Nóbrega a Vieira, São Paulo, CompanhiaEditora <strong>Nacional</strong>, 1940, p. 96-97.24. Manuel da Nóbrega, op. cit., in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 391.25. A primeira versão das Constituições da Companhia de Jesus foi enviada para Portugalem 1553 e somente chegou ao Brasil em 1556. Entretanto, as Constituições só foramaprovadas definitivamente durante a realização da I Congregação Geral da Companhia deJesus, em 1558. (S. J. Serafim Leite, op. cit., t. II, p. 416).26. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Miguel de Torres, Lisboa (São Vicente, maio de 1556), inCartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 208.27. O art. 5º do capítulo II da quarta parte das Constituições estabelece que: “A Companhiareceberá a propriedade dos colégios com os bens temporais que lhes pertencem, e nomearápara eles um reitor que tenha o talento mais apropriado ao ofício. Esse assumiráa responsabilidade da conservação e administração dos bens temporais [...]”. (Companhiade Jesus, Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares, SãoPaulo, Edições Loyola, 1997. p. 122.).28. Luiz da Grã, Carta ao padre Diego Mirón, Lisboa (Bahia, 27 de dezembro de 1554), in S.J. Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, Coimbra, Tipografia da Atlântida,1957, v. II, p. 145.29. Ibidem, p. 289-292 (Luiz da Grã, Carta ao padre Inácio de Loyola, Roma (Piratininga, 8de junho de 1556).30.Manuel da Nóbrega, op. cit., in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 393.31. Diego Laynes, Carta ao p. Manuel da Nóbrega, Brasil (Trento, 16 de dezembro de 1562),in S. J. Serafim Leite, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, op. cit., v. III, p. 513-514.32. Robert Southey, op. cit., v. II, p. 45.33. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Inácio de Loyola, Roma (São Vicente, 25 de março de1555), in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 195.34. O bispo Pedro Fernandes Sardinha foi devorado pelos índios Caetés (15-16/6/1556),num ritual de antropofagia, após o seu navio ter naufragado ao norte da Bahia.35. O padre Miguel de Torres, nascido no reino de Aragão, foi provincial de Portugal de 1555a 1561.36. Manuel da Nóbrega, Carta ao p. Miguel de Torres, Lisboa (Bahia, 8 de maio de 1558), inCartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 282-283.37. Manuel da Nóbrega, op. cit., in Cartas do Brasil e mais escritos, op. cit., p. 281-282.pág. 54, jan/dez 2005


R V OMarcos A. de O. GomesDoutorando em Educaçãono Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp.A Gênese da EducaçãoBrasileira Contemporâneae a Lei n o 4.024/61Este estudo procura refletir sobre o conceitode escola pública e privada nasrepresentações construídas ao longo dodebate sobre o papel do Estado na educação,durante os anos de 1930 e 1960. Ainda quecatólicos e liberais tivessem perspectivasdiferenciadas acerca do modelo de escola aser implantado, minha abordagem procura relacionara convergência de interesses na defesa da ordempelos grupos em conflito. Os debates políticosdessa época nos permitem refletir sobre o conflitoentre público e privado na educação, ainda presente,como uma manifestação concreta das relaçõesmateriais de uma sociedade marcada peloantagonismo de classes.Palavras-chave: escola privada,escola pública, educação.This research seeks to reflect about theconcept of public and private schools atthe representations built along the debateabout the role of the state in educationduring the 30’s and 60’s of the 20 thcentury. Even if catholics and liberals haddifferent perspectives about the schoolmodel to be implemented, my approach seeks torelate the convergence of interests in the orderdefence by groups in conflit. The political debatesof this time allow us to reflect about the publicand private conflict in education. This conflict isstill present as a concret manifestation of thematerial relationships of a society marked byclass antagonism.Keywords: private school, publicschool, education.Aqueda da Monarquia e a proclamaçãoda República não representaramum rompimentocom o passado “aristocrático”, mas aemergência econômica de novos gruposque pretendiam a reorganização políticado Estado como forma de consolidar suasaspirações econômicas. O latifúndio continuavaabsoluto e as relações de dependênciaem relação ao capital externo permaneceraminalteradas. Assim, o Estadorepublicano configurou-se dentro deAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 55


A C Eum contexto caracterizado por uma ordemmarcada pela “legitimidade” dasfraudes eleitorais, além do predomíniode uma economia primária e exportadorae do privatismo sobre o espíritopúblico.[...] a Primeira República preservouas condições que permitiram, sob oImpério, a coexistência de “duas nações”,a que se incorporava à ordemcivil (a rala minoria, que realmenteconstituía uma ‘nação de maisiguais’), e a que estava dela excluída,de modo parcial ou total (a grandemaioria, de quatro quintos oumais, que constituía a ‘nação real’).As representações ideais da burguesiavaliam para ela própria e definiamum modo de ser que se esgotavadentro de um circuito fechado. Maisque uma compensação e que umaconsciência falsa, eram um adorno,um objeto de ostentação, umsímbolo de modernidade e de civilização.1Embora o Brasil se constituísse nitidamentecomo um país de economia agrária, aprosperidade econômica, motivada, sobretudo,pela economia cafeeira de exportação,incentivou o crescimento urbanoe da indústria, que ampliava, por suavez, a diferenciação da sociedade brasileiraem classes e camadas sociais. Porém,é necessário que se diga que o desenvolvimentoeconômico do Brasil seforjava de forma desigual, típico do modode produção capitalista, onde quer queele exista. Mas, no caso da economiabrasileira, que se edificava em função dosinteresses dos grupos capitalistashegemônicos internacionais, essa desigualdadepossuía algumas particularidades,que não descaracterizavam o modeloagroexportador dependente.Assim, a concentração regional de rendafoi uma marca do desenvolvimento capitalistano Brasil. O processo aceleradode urbanização, de diversificação da economiae a formação de uma classe operária,ainda que reduzida numericamente,foram características marcantes, principalmenteda região Sudeste.Outro aspecto a ser salientado do desenvolvimentodesigual e dependente relaciona-seumbilicalmente com a subordinaçãoeconômica: uma fatia estimável doslucros do capital era apropriada peloscapitalistas estrangeiros (bancos, firmasde importação e exportação etc.). Dessaforma, limitava-se a ampliação da economiabrasileira, uma vez que parte significativada acumulação de capital sefazia fora das fronteiras nacionais. Segundoos apontamentos de MariaElizabete Sampaio Prado Xavier:O processo brasileiro de industrializaçãonão resultou de um avançotécnico propiciado pelo desenvolvimentocientífico e tecnológico dopaís. O processo de produção etransmissão do saber não constituiuno Brasil, uma base ou um elementopropulsor da mudança nas relaçõesde produção. Essa é uma das facetaspág. 56, jan/dez 2005


R V Otípicas do capitalismo que no processoda reprodução do capital em escalamundial se instala e avança emformações sociais “atrasadas” nasquais nem todas as condições internasnecessárias foram aqui absorvidascomo parte do movimento deexpansão da moderna civilização ocidental,que consolidou o avanço dasrelações capitalistas em nível internacional.2Cabe ressaltar, ainda, que a modernizaçãoocorrida dispensou, como salientaXavier, “a transformação da produçãocultural e tecnológica como parte e suportedo processo de transformação capitalista”.3 Nesse sentido, os rumos tomadospela educação no Brasil da RepúblicaVelha não implicaram uma rupturacom o passado. O que ocorreu, de fato,foi o surgimento de novas demandas “apartir da emergência do processo de industrialização,acompanhado pelamobilização das elites intelectuais emtorno da reforma e da expansão do sistemaeducacional vigente”. 4Ainda segundo Xavier, a evolução dasaspirações educacionais e do próprio sistemaeducacional brasileiro atravessoutrês momentos distintos: a fase da expansãoda demanda social e da gestaçãodas idéias reformistas; a reformulaçãoefetiva do sistema educacional pelo Estado,consubstanciando na Reforma FranciscoCampos (1931-1932) e nas leisorgânicas de ensino (1942-1946); e orenascimento dos debates pós-1946.A GESTAÇÃO DO IDEÁRIOESCOLANOVISTA NACIONALOs anos de 1920 e 1930, emnosso país, foram marcadospor uma grande turbulência doponto de vista político-social e, em certossetores nacionais, tal inquietação chegoua toda vida cultural. É o momentoem que o mundo assiste à grande crisedo capitalismo mundial, caracterizadapelo questionamento da ordem liberal epela ascensão do nazi-fascismo na Europa.O Brasil, por sua vez, não esteveimune à crise. Segundo Ianni: “por dentroe por fora dos interesses liberais epatrimoniais, predominantes dos governosrepublicanos, surgiram novas propostas,outras idéias”. 5As crises periódicas da economia, osobstáculos internos e externos à industrialização,a exclusão de diferentes setoressociais e uma administração estataldistante dos interesses populares geraramnovas propostas, com ampla fermentaçãode idéias e movimentos sociais.Ressalte-se também que o processode industrialização e urbanização gerounovos segmentos sociais. O conflito dasforças emergentes produziu inúmerosmovimentos que questionavam direta ouindiretamente o domínio oligárquico. Defato, a burguesia que encampou o discursooposicionista não tinha em seu horizontea transformação radical da sociedade,mas sim algumas reformas queatendessem suas expectativas. 6Nesse contexto, antes mesmo da quebraAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 57


A C Eda Bolsa de Nova York e da crise final daRepública Velha, que levou Getúlio Vargasao poder, emergiu o movimento da EscolaNova no Brasil como expressão dastransformações que ocorriam no interiorda sociedade brasileira. Assim, o “entusiasmopela educação” e o “otimismopedagógico” devem ser compreendidoscomo manifestações dos setores emergentesque buscam na ideologia liberal ajustificação de uma nova ordem social. Éo momento da criação da Associação Brasileirade Educação (ABE), fundada porHeitor Lira, mais especificamente em1924, que se constituiu em um grandefórum dedicado aos debates, cursos, conferênciassobre temas educacionais, políticose sociais, do qual participavamprofessores e eminentes intelectuais. AsConferências Nacionais de Educaçãoconstituíram-se no principal instrumentode difusão dos propósitos da ABE.Muitas idéias surgidas durante os debatesforam levadas adiante por meiode reformas estaduais e, depois, a partirde 1930, através do próprio governofederal. 7A análise da composição dos intelectuaisque participaram do movimento revelasua heterogeneidade, mas eles tinham emcomum a crítica à escola existente, umavez que esta se caracterizava pelaseletividade social do grupo ao qual sedirigia, além de significar uma educaçãode caráter formalista. 8 Para os renovadores,a educação seria um instrumentode democratização das relações sociais,na medida em que neutralizaria as desigualdadeseconômicas e proporcionariaa todos a mesma formação. Dentro desseraciocínio, a educação laica voltadapara o desenvolvimento da ciência e condizentecom a industrialização seria asolução para os grandes problemas contemporâneos,além de significar o desenvolvimentoeconômico e a democratizaçãodas relações sociais. 9Esse posicionamento político, típico representantedo liberalismo burguês,alicerçava-se na crença em um Estado“neutro”, além de ser uma concepção nãoideológica da ciência e da técnica, o quenão passa de um idealismo em uma sociedadedividida em classes antagônicas.Na verdade, ao transformar a educaçãono único e grave problema do Brasil, poissua deficiência seria o motivo de nossoatraso, o discurso dos renovadores colaboravapara a ocultação das origensmateriais das desigualdes sociais. Ressalte-seque no período anterior, a educaçãonão era sentida como prioridade nointerior da sociedade civil e muito menospelas autoridades políticas.Com a Revolução de 1930, alguns dosreformadores educacionais da décadaanterior passaram a ocupar cargos importantesna administração do ensino.Segundo os apontamentos de Buffa eNosella, os educadores identificados como movimento escolanovista foram convocadospelas autoridades que assumiramo novo governo a definirem os rumos daeducação no Brasil. Porém, caíram napág. 58, jan/dez 2005


R V Oarmadilha do Estado, que utilizou a presençados educadores como um dos instrumentosde legitimação da nova ordem.Vejamos seus apontamentos:A relação do Manifesto com a Revoluçãode 1930 se evidencia tanto nonível de conteúdo quanto no nível dearticulação política. De fato, a IVConferência <strong>Nacional</strong> de Educação“sob a presidência do próprio chefedo governo provisório, e do ministroda Educação, Francisco Campos.[sic] Os educadores presentes foramconvocados por estas autoridades adefinirem o ‘sentido pedagógico’ daRevolução de 1930, o qual se comprometiama adotar na obra de reorganizaçãodo país, em que estavamempenhados, no tocante aos problemasde educação e ensino”.(Lemme).Clássica cilada política que o Estadobrasileiro arma para os educadores:aparenta solicitar direção da políticaeducacional, quando, na verdade,visa, assim, impedir a organizaçãoautônoma e de base da categoria doseducadores. Nesse caso, observa-seque o Estado, antes da solicitaçãoreferida, já havia decidido, através deimportantes medidas educacionaisao longo de 1931, sua política educacionalconsoante sua política geralpopulista. 10No entanto, não entendemos que tais intelectuaisforam presas da armadilha armadapelo Estado, mesmo porque haviaconvergência de interesses na propostaeducacional, e os mesmos expressavamnas propostas educacionais os projetosdas classes emergentes, que no passadocriticaram o monopólio político das oligarquias.Cabe ressaltar, ainda, que entreos chamados renovadores encontramosintelectuais com propostas claramenteautoritárias. Nesse sentido, procuraramcolocar em prática as idéias quedefendiam. Por outro lado, a Igreja Católica,excluída da ordem republicana, vinhaarticulando-se em busca da ampliaçãodo espaço de manobra no interior dasociedade civil. Assim, a educação ocupavaum lugar de destaque nas propostascatólicas. Afinal, a escola era vistacomo um instrumento de cristianizaçãoda sociedade marcada pelas crises, cujaorigem seria a ausência da religião. Comoresultado de tais conflitos e da correlaçãode forças que se estabeleceu no períodoimediatamente após a Revolução de1930, o sistema escolar brasileiro sofreutransformações importantes, que começarama dar-lhe a feição de um sistemaarticulado, segundo normas do governofederal.Acompanhando as mudanças do período,o ensino superior passou também poruma série de alterações no transcorrerda década de 1930. As universidadesbrasileiras foram sendo criadas, começandoa funcionar de fato. É o momentoda busca de novos parâmetros para explicara sociedade. O pensamento socialdefrontava-se com novas realidades. AAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 59


A C Eindustrialização incipiente e a urbanizaçãocriavam novos horizontes para o debatepolítico e cultural.No Brasil, entretanto, os limites darealidade concreta, expressos na parcadiversidade da atividade econômicanacional, na simplicidade das formasde produção exigidas pelas formasde dominação capitalistas vigentese na extremada concentração deprivilégios, parecem ter-se interpostosobre as ilusões de ascensãoocupacional via ascensão escolar. Eas idéias liberais da escola “redentora”,promotora de progresso individuale social, móvel do desenvolvimentoeconômico, acabaram por setraduzir na acanhada defesa da ampliaçãodo sistema tradicional queproduzia elites dominantes. 11Nesse sentido, a pregação liberal legitimouo novo rearranjo político que sematerializou após a Revolução de 1930.As reformas empreendidas na chamada“Era Vargas” expressaram os pressupostoseducacionais defendidos pelo movimentoda Escola Nova, que cumpria afunção ideológica de mistificar a origemdas desigualdades, além de legitimar asreformas que ocorreram no período quese sucede.Uma análise criteriosa do Manifesto dosPioneiros da Educação Nova, de 1932,revela-nos um texto permeado por umaperspectiva liberal, e, ao mesmo tempo,com imprecisões conceituais. Vejamosalguns de seus trechos:Na hierarquia dos problemas nacionais,nenhum sobreleva em importânciae gravidade ao da educação. Nemmesmo os de caráter econômico lhepodem disputar a primazia nos planosde reconstrução nacional. Pois,se a evolução orgânica do sistemacultural de um país depende de suascondições econômicas, é impossíveldesenvolver as forças econômicas oua produção sem o preparo intensivodas forças culturais e o desenvolvimentodas aptidões à invenção e àiniciativa que são os fatores fundamentaisdo acréscimo da riqueza deuma sociedade. 12Na verdade, o Manifesto revela as contradiçõese insuficiências do discurso liberal.Não existe ao longo do texto umpropósito de rompimento radical com aordem aristocrática, mas sim vagas idéiasde reformas da sociedade pela educação– intenção, aliás, que não se podeesperar de um movimento que não questionavaas origens materiais da desigualdade.Obviamente, tratava-se de integraros excluídos, mas para isso era necessárioreformar a escola. Vejamos:Por que os nossos programas se haviamainda de fixar nos quadros dasegregação social, em que os encerroua República, há 43 anos, enquantonossos meios de locomoção e osprocessos de indústria centuplicaramde eficácia, em pouco mais de umquartel de século? Por que a escolahavia de permanecer entre nós, iso-pág. 60, jan/dez 2005


R V Olada do ambiente, como uma instituiçãoenquistada no meio social,sem meios de influir sobre ele, quando,por toda a parte, rompendo abarreira das tradições, a açãoeducativa já desbordava a escola,ariticulando-se com as outras instituiçõessociais para estender o seuraio de influência e de ação? 13 (Manifestodos Pioneiros da EducaçãoNova)Assim, suas propostas iam ao encontrodo chamado jusnaturalismo, que tem,como espinha dorsal, o entendimento deque os homens como indivíduos possuem“direitos naturais”. Ora, ao transformaros direitos em algo inerente à naturezado homem, o liberalismo nega ahistoricidade dos mesmos e a possibilidadede transformação. Em outras palavras,nada pode ser modificado. Dessemodo, cabe à educação corrigir os “desvios”e enquadrar os indivíduos na ordemsocial.A educação nova, alargando a sua finalidadepara além dos limites de classes,assume, com uma feição maishumana, a sua verdadeira funçãosocial, preparando-se para formar a‘hierarquia social’ pela ‘hierarquia dascapacidades’, recrutada em todos osgrupos sociais, a que se abrem asmesmas oportunidades de educação.14 (Manifesto dos Pioneiros daEducação Nova)Como se percebe, o Manifesto procuraresolver um problema trágico na sociedadebrasileira: incorporar as massasurbanas, em crescimento, ao processopolítico e econômico, pela participação daescola. Portanto, nossos problemas poderiamser resolvidos através de umacultura científica, cuja introdução caberiaà educação. Xavier ressalta que talpostura revela a preocupação do movimentocom o desenvolvimento científicoe tecnológico, além de definir as funçõeseducativas a partir de concepções universaisde homem. Dessa forma, a educaçãoestaria acima das classes sociais ese constituiria em um instrumento demobilidade social. Em outras palavras, asportas da ascensão social estariam abertasa todos que tivessem mérito. Nessesentido, caberiaao Estado a organização dos meiosde tratar efetivo [...], por um planogeral de educação, de estrutura orgânica,que torne a escola acessível,em todos os seus graus, aos cidadãosa quem a estrutura social dopaís mantém em condições de inferioridadeeconômica para obter o máximode desenvolvimento de acordocom as suas aptidões vitais. 15 (Manifestodos Pioneiros da EducaçãoNova)Dessa forma, os pioneiros da educaçãonova defendem a “escola única”, comume para todos, mas, paradoxalmente, admitema presença da iniciativa privada,em uma clara atitude de conciliação deinteresses. Afinal,afastada a idéia de monopólio da edu-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 61


A C Ecação pelo Estado, num país em queo Estado, pela situação financeira,não está ainda em condições de assumira sua responsabilidade exclusiva,e que, portanto, se torna necessárioestimular, sob sua vigilânciaas instituições privadas idôneas[...]. 16 (Manifesto dos Pioneiros daEducação Nova)Assim, o Manifesto jogava para o futuroa defesa da escola única e universal, oque expressava os limites do liberalismomanifestado pelas elites intelectuais comprometidascom a ordem social. Estáaqui, aliás, a essência da conciliação entreos privatistas, que tinham os católicoscomo ponta de lança de seus interesses,e os renovadores. Ao lado daquestão da defesa dos ideais de umaeducação liberal, havia interesses divergentesquanto à condução dos rumos daeducação no Brasil. Nesse quadro, nãodevemos nos esquecer da ofensiva católicaque defendia o ensino confessionalalicerçado na idéia de liberdade de escolhapor parte da família.Cabe enfatizar, aqui, que a Igreja Católicaencontrada pela Revolução de 1930diferia muito daquela com a qual o Estadorepublicano se deparara quatro décadasantes. Era uma Igreja disposta a negociarseu apoio e reivindicar de formacontundente seu espaço político na “novaordem”. Segundo Schwartzman, durantea inauguração da imagem do Cristo noCorcovado, em 1931, o cardeal Lemeafirmou que “ou o Estado reconhece oDeus do povo, ou o povo não reconheceo Estado”. 17 Dentro dessa perspectiva, oprojeto católico representou a reação daIgreja contra o que considerava o mundomoderno, identificado com o liberalismoe a sociedade urbana e industrial. A legitimidadedo Estado exige, para a Igreja,o respeito a determinadas prerrogativaseclesiásticas.No ambiente político em que se forjou achamada Revolução de 1930, havia iden-Escola Pública no Rio de Janeiro, 22/04/60 (<strong>Arquivo</strong> do Estado de São Paulo/Fundo Última Hora)pág. 62, jan/dez 2005


R V Otidade de pontos de vista quanto à falênciado regime liberal e à “sacralizaçãoda política”, que conferia ao Estado umalegitimidade alicerçada em pressupostosmais edificantes que os tirados da ordempolítica.Os fatos demonstram que a estratégiacatólica revelou-se extremamente eficiente,pois havia disposição da Igreja emcolaborar com o Estado na manutençãoda ordem pública. E a doutrina católicaseria para o Estado não apenas um instrumentocapaz de garantir a preservaçãoda ordem e de legitimação doautoritarismo, mas também um instrumentoindispensável de transmissão devalores. Que tipo de valores? Aqueles ligadosà religião, à grandeza da pátria, àfamília, à moralização dos costumes, queserviam de subsídio aos discursosanticomunistas. Em outras palavras, nãobasta a coerção, é necessário uma direçãocultural, isto é, a obtenção do consenso.Alcir Lenharo, em trabalho sobreo Estado Novo, demonstrou como os projetostotalitários e fascistas utilizavam,em diferentes gradações, conteúdos teológicoscom vistas à sua operacionalizaçãopara solucionar questões sociaise políticas existentes. 18Retomando o Manifesto dos Pioneiros,verificamos algumas aproximações comos propósitos católicos, em que pese suasdiferenças. Em primeiro lugar, as duascorrentes pretendem manter a ordemsocial pelos caminhos da educação. Paraos pioneiros, a educação é o instrumentode difusão de uma cultura científica ede construção de uma ordem democráticaalicerçada nos méritos; para os católicos,a escola constituía-se no instrumentode difusão do antídoto contra as crisesgeradas pela ausência da fé. Nessecaso, permitam-me algumas observações:a defesa do ideal de educação liberalnão é contraditória com a defesado privatismo. Antes de qualquer coisa,o liberalismo é fundamentalmente econômico.Sua oposição, em suas origens,era contra o mercantilismo em uma claraexpressão dos interesses burgueses.Assim, reivindicava-se a “liberdade deescolha” como um direito natural do indivíduo.Nesse sentido, antes mesmo do atendimentoàs reivindicações católicas, o entãoministro Francisco Campos sugeriaconcessões explícitas à Igreja, em cartade 18 de abril de 1931, ao então presidenteGetúlio Vargas:Meu caro presidente.Afetuosa visita.Envio-lhe o decreto, que submeto aoseu exame e aprovação. Como verá,o decreto não estabelece a obrigatoriedadedo ensino religioso, que seráfacultativo para os alunos, na conformidadeda vontade dos pais ou tutores.Não restringe, igualmente, o decretoo ensino religioso ao da religião católica,pois permite que o ensino sejaministrado desde que exista um gru-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 63


A C Epo de pelo menos vinte alunos quedesejam recebê-lo.O decreto institui, portanto, o ensinoreligioso facultativo, não fazendoviolência à consciência de ninguém,nem violando, assim, o princípiode neutralidade do Estado emmatéria de crenças religiosas.Assinando-o, terá V. Excia. praticadotalvez o ato de maior alcance políticodo seu governo, sem contar osbenefícios que da sua aplicação decorrerãopara a educação da juventudebrasileira.Pode estar certo de que a Igreja Católicasaberá agradecer a V. Excia.esse ato, que não representa paraninguém a limitação da liberdade,antes uma importante garantia à liberdadede consciência e de crençasreligiosas. 19Deixando de lado a conciliação verificadaentre católicos e liberais, é importanteressaltar que a preocupação presente noManifesto estava em adequar a escola aomodelo econômico, porém, como salientaXavier, “o Manifesto não chega a apontarlinhas concretas de ação para a consecuçãodessa proposta”. 20 Ora, comoelucidar questões que nem sequer eramclaramente formuladas? Assim, as propostaspermanecem generalizadas e inconsistentes.Vejamos os apontamentosde Xavier:Por outro lado, não podemos considerarirrelevante o fato de que a criaçãode escolas superiores de “culturaespecializada”, relacionadas às“profissões industriais e mercantis”,apareça mais como um enunciado doque como uma proposta integradanum plano de ação. Sequer a delimitaçãodessas novas áreas de especializaçãocientífica e profissional élevada a cabo, como se fez de formagenérica com os ramos do ensinosecundário. Não é por acaso que asamplas tarefas culturais da universidadevenham tão claramente definidase tão veementemente enfatizadas.Cuidava-se de priorizar o caráter“humanista” da Educação Nova, reforçandoa exigência da cultura geral,tanto no ensino secundário quantono superior, como se a vaga propostade especialização apresentadapudesse vir a se constituir numaameaça à “formação integral”, dentrode um contexto cultural no qualas resistências à especialização eramprevisíveis e inevitáveis. Resulta excessivamentetímida ou cautelosa aproposta do “novo”, num Manifestoque pretendia desencadear a revoluçãono ensino tradicional. Isso poderialevar a supor, também aqui,uma transigência “tática” ao “espíritotradicionalista”. 21Portanto, percebemos a conciliação entreo “arcaico” e “novo” nas novas propostasatravés da “importação” de umaperspectiva liberal que se moldava aosinteresses hegemônicos e, que, ao mes-pág. 64, jan/dez 2005


R V Omo tempo, não rompia com o tão criticado“dualismo” na educação. Os propósitos“democráticos” dos renovadores efetivaram-secom a chamada Reforma FranciscoCampos, 22 que relegou para um segundoplano a expansão da rede públicade educação.Fiel à ótica valorativa do movimentorenovador, centrava-se no ensino secundário,“ponto nevrálgico” do sistemaeducacional, e no ensino superior,“ápice das instituiçõeseducativas”, “forja das elites redentorasda nação”. Na exposição demotivos do decreto que dispõe sobreo ensino secundário, encontramosnão apenas a profissão de fé dopoder público aos princípiosescolanovistas, mas a ponte necessáriaà compreensão da passagem dopensamento renovador nacional àação governamental consubstanciadanas medidas legais adotadas. Refletea mesma preocupação predominanteregeneradora dos pioneiros,assim como o seu cuidado especialcom a “solidez” e a “substância” da“autêntica cultura geral”, contra todaa espécie de “utilitarismos oupragmatismos”, em ambos os níveis“nobres” do ensino. 23Ainda segundo Xavier, o então ministroFrancisco Campos expressou naefetivação da reforma que leva seu nomeas propostas que já estavam presentesno Movimento da Escola Nova, ou seja, aidéia de seleção e da desigualdade justa,com base na hierarquia de capacidades.24 Dessa forma, nem o Manifesto de1932 ou a Reforma Francisco Camposrompiam com o dualismo educacional,pois eram expressões do elitismo quepermeava as relações sociais no Brasil,apesar do “credo” democrático que professavam.25Quanto à Exposição de Motivos da ReformaFrancisco Campos, cabe enfatizarque prioriza a questão do novo métodode aprendizagem, fundamentando-o, adequadamente,nas concepções de JohnDewey. No entanto, Xavier salienta que,para Francisco Campos, “a implantaçãodesses novos métodos ultrapassa o âmbitoda legislação educacional”. 26 Assim,fica por conta da “boa vontade” dos professoresa verdadeira mudança. E, paragarantir a formação adequada do corpode professores, o ministro sugeria a criaçãoda Faculdade de Educação, Ciênciase Letras. 27 Evidentemente, as novasdiretrizes não excluíram o espírito conciliadorcom a chamada “escola tradicional”.Consolidou-se o enciclopedismo dosprogramas de ensino, além de oficializara dualidade dentro do próprio sistemaeducacional, como demonstra a organizaçãodo ensino técnico comercial em umramo especial do ensino médio, desarticuladocom o ramo secundário e o ensinosuperior em geral.Na mesma direção se encaminhou atão esperada reforma do ensino superior.Partindo da proposta de implantaçãoda “Universidade Moderna”Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 65


A C Eno país, acabou por acomodar asinovações ao tradicional, esvaziandoasdo seu caráter culturalmentetransformador. A Exposição de Motivosmais promete do que os decretosdispõem e, tal como no plano pioneiropara o ensino superior, as diretrizesfixadas não fazem jus às amplasfinalidades enunciadas. [...].Mas a simples leitura dos decretosnos revela que também aqui a investigação,a produção e a formação científico-tecnológica,na sua acepçãomoderna, não têm as suas condiçõesde efetivação legalmente garantidas.E o propósito de adequar o ensinosuperior brasileiro aos padrões dauniversidade moderna cai por terrano primeiro parágrafo do artigo quedispõe sobre as exigências legais paraa sua constituição: “[...] congregarem unidade universitária pelo menostrês dos seguintes institutos de ensinosuperior: Faculdade de Direito,Faculdade de Medicina, Escola deEngenharia e Faculdade de Educação,Ciências e Letras [...]”.As novas áreas de especialização científicae profissional, sequer delimitadas,e os novos cursos sugeridos,mas não implantados, não poderiamintegrar as exigências legaispara a constituição da “Nova Universidade”.28Nesse sentido, a inovação ficou por contada criação da Faculdade de Educação,Ciências e Letras, cujo objetivo era aformação de professores, requisito importantepara a garantia da reforma do ensinosecundário. Assim, o problema centralera a ausência de professores, semos quais “torna-se impossível elevar osandares superiores da grande, autênticae alta cultura”. Porém, tal qual no Manifestodos Pioneiros, a função primordialdo ensino universitário constituía-se naformação das elites condutoras.De fato, a universidade, que se encontrano ápice de todas as instituiçõeseducativas, está destinada, nassociedades modernas, a desenvolverum papel cada vez mais importantena formação das elites de pensadores,sábios, cientistas, técnicos, eeducadores, que elas precisam parao estudo e solução de suas questõescientíficas, morais, intelectuais, políticase econômicas. Se o problemafundamental das democracias é aeducação das massas populares, osmelhores e os mais capazes, por seleção,devem formar o vértice de umapirâmide de base imensa. Certamente,o novo conceito de educação repeleas elites formadas artificialmente“por diferenciação econômica” ousob o critério da independência econômica,que não é nem pode serhoje elemento necessário para fazerparte delas. A primeira condição queuma elite desempenhe a sua missãoe cumpra o seu dever é de ser “inteiramenteaberta” e não somente deadmitir todas as capacidades novas,pág. 66, jan/dez 2005


R V Ocomo também de rejeitar implacavelmentede seu seio todos os indivíduosque não desempenhem a funçãosocial que lhes é atribuída nointeresse da coletividade. 29 (Manifestodos Pioneiros da Educação Nova)Ressalte-se o elitismo presente no Manifestodos Pioneiros e na raiz do pensamentoliberal, já que a ascensão prometidapela via educacional é de naturezaabstrata e puramente formal. Ignora-se,por exemplo, as condições materiais deexistência, ao mesmo tempo em queapresenta o indivíduo como um ser livredas determinações sociais. Nesse cenárioconservador, a defesa da formaçãotécnico-profissional pela escola assumiaum papel importante: amortecer as lutasde classes por meio da “habilitação” dosindivíduos ao mercado de trabalho. Emoutras palavras, tratava-se de enquadraros setores emergentes e as “massas” nodiscurso da ascensão social pela educaçãoembasada em novos métodos, o queautonomizava e supervalorizava o papelda escola no processo de desenvolvimentoeconômico e social.No que diz respeito ao carátercentralizador do Estatuto das Universidades,ou “autoritário”, segundo a ótica liberal,Xavier esclarece que tal orientaçãonão era tão divergente das propostasdos pioneiros, como alguns queremcrer. Afinal, os renovadores propugnavampor diretrizes gerais “que unificassem aselites intelectuais do país em torno devalores e metas comuns e nacionais”. 30Areforma levada adiante nagestão de Capanema, 31 frenteao Ministério da Educação eSaúde, não constituiu uma negação domovimento renovador. A idéia de formaçãoda “consciência patriótica e a consciênciahumanística”, contida no projeto,expressava o ideal de “nação” típico dodiscurso ideológico que dissimula, sob omanto das generalidades, os interessesparticulares. Nesse sentido, nada existede contraditório com o movimento doescolanovismo, afinal “o ensino secundáriose destina à preparação da individualidadecondutora, isto é, dos homens quedeverão assumir as responsabilidadesmaiores dentro da sociedade e da nação”.Na verdade, a idéia de nação dissimulava,e ainda dissimula, a existência de interessesantagônicos existentes na sociedade.Objetivando formar “elitescondutoras”, o ensino secundário foi organizadocom um vasto currículo, com afinalidade de proporcionar sólida culturahumanística e, ao mesmo tempo, formaro cidadão patriota. De fato, não podemosnegar que tais pressupostos pedagógicosestivessem muito distantes doescolanovismo.As idéias introduzidas porCapanema, portanto, não constituíamnovidades nem representavamafronta ao pensamento progressistanacional, mas a radicalização de algumasde suas tendências, fruto dasinjunções políticas internas e externasque o país sofria e que se refle-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 67


A C Etiam na ambigüidade de um governoeconomicamente progressista e politicamenteautoritário. Não há dúvidade que o nacionalismo esteve presenteno movimento pioneiro,radicalizou-se devido à conjunturaeconômica e política interna e aosreflexos da conjuntura política internacional.O nacionalismo tem se prestado,historicamente, a instrumentode legitimação do poder em regimesautoritários que muitas vezes se impõemno avanço do capitalismo emnome de interesses supraclasses ounacionais, como sucedia com a ditaduraVargas e as ditaduras nazista efascista. 32Assim, o sistema público de educaçãonão rompia com o passado, pois ofereciaum programa para os alunos provenientesdas classes trabalhadoras e outropara os filhos das camadas mais ricas.Dessa forma, para os filhos das camadaseconomicamente hegemônicas, o caminhoera simples: primário, ginásio,colégio e, posteriormente, a opção porqualquer curso superior. 33 Para os alunosdas camadas trabalhadoras, se conseguissemfreqüentar a escola, o caminhoia do primário aos diversos cursosprofissionalizantes. Porém, cabe ressaltarque cada curso profissionalizante sópermitia o acesso aos cursos superioresda mesma área. Desse modo, não hácomo negar a permanência do dualismoeducacional tão combatido pelos renovadores,mas preservado por uma ordemsocial que muitos apoiaram.No âmbito do ensino técnico-profissional,a reforma levada adiante por Capanemanão garantiu a infra-estrutura necessáriapara a organização das escolas e preparaçãoda mão-de-obra. Obviamente, talpostura contribuiu para inviabilizar o ensinotécnico-profissionalizante, que nãoatraía os elementos das camadas populares,uma vez que a necessidade de sobrevivênciapelo trabalho impedia quemuitos pudessem freqüentar um curso delonga duração.A solução para esse problema, aparentementegerado pela necessidadede responder a pressões político-ideológicas,que induziram à criação deum sistema público de formação profissional,inadequado em relação àdemanda social e ineficiente no atendimentodas exigências econômicasde formação técnica, foi garantidapela própria legislação. A mesma reformajá criara, em decreto anterior,o Serviço <strong>Nacional</strong> de AprendizagemComercial, organismos que responderiamefetivamente às exigênciasimediatas do mercado de trabalho. Acriação simultânea do SENAI e doensino técnico industrial oficial sugerea intenção original do poderpúblico de deixar a cargo das empresasos cursos de aprendizagem, destinadosao treinamento rápido e àreciclagem. Isso explica o ambíguoatrelamento legal das escolas deaprendizagem oficiais às indústrias,pág. 68, jan/dez 2005


R V Odisposto na Lei Orgânica do EnsinoIndustrial, e o papel secundário queessas escolas ocuparam nas realizaçõeseducacionais do governo. 34Nesse aspecto, não podemos nos esquecerque a intervenção nas questões dotrabalho se acentuou durante o EstadoNovo. Assim, o sistema de ensinoprofissionalizante instituído pela ReformaCapanema deve ser entendido dentro deum quadro político maior, em que o Estadoprocurava enquadrar os trabalhadoresdentro da perspectiva de colaboraçãode classes. 35 No entanto, cabe ressaltarque as chamadas classes médiasnão alimentavam interesse pelaprofissionalização precoce de seus filhos.O caminho trilhado pelos filhos das camadasmédias passava, preferencialmente,pelo ensino secundário ao ensino superior.Quanto ao ensino primário e ao ensinonormal, Xavier nos informa que foramrelegados a um segundo plano dentro daReforma Capanema. 36 Contudo, em funçãodas reformas operadas no âmbito daescola primária pelos estados durante osanos de 1920, que não atingiram os objetivospropostos pela carência de recursosmateriais e humanos, coube à ReformaCapanema apresentar as diretrizesgerais norteadoras para esses segmentos.Mesmo sendo promulgada no períodopós-ditadura do Estado Novo, os elementosautoritários dos decretos anteriorespermanecem presentes na Lei Orgânicado Ensino Primário. 37 Quanto aoconteúdo, não houve qualquer tipo dealteração, mantendo-se os pressupostosmetodológicos presentes do período anterior.Além desse aspecto, manteve-sea descentralização administrativa, que,diga-se de passagem, não se constituíaem novidade na história da educaçãoem nosso país. Na verdade, adescentralização era a marca reveladorado desinteresse do poder central peloensino primário. Em outras palavras, aostrabalhadores destinava-se uma educaçãorudimentar com o propósito de oferecer“a iniciação ao trabalho”. Por certo, nesteparticular, explicita-se mais umafaceta daquilo que era apresentado como“renovação”, mas que era dissimulaçãoideológica do discurso dominante.O FIM DO ESTADO NOVOE OS CONFLITOS EM TORNO DA LEIDE DIRETRIZES E BASESDA EDUCAÇÃO NACIONALUma leitura mais atenta do processode redemocratizaçãoocorrido no período pós-1945revela-nos os limites da democracia. Afinal,o fim do Estado Novo trazia a marcada conciliação entre as classes dirigentese a continuidade de esquemas organizadosdurante a ditadura. Nesse cenário,não podemos nos esquecer de quena “democracia liberal” emergente nãohavia liberdade de organização para todasas correntes ideológicas (leia-se, oscomunistas), e a legislação trabalhistacom ranço fascista permanecia intacta. 38Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 69


A C EAo tratar do embate ideológico sobreo sistema escolar, nos anos queprecederam a nossa primeira LDB:Lei 4.024/61, e mesmo as discussõesrealizadas após sua promulgação,é possível constatar que os diferentesgrupos de intelectuaisconceituaram a educação de diferentesformas e atribuíram a ela objetivosdiversos, em função de seus interessesde classe. Naquele contextohistórico, a educação surgia napena de muitos intelectuais comouma instituição capaz de formaçãodo homem e de superação das nossasdificuldades econômicas, emuma perspectiva desvinculada dasrelações materiais estabelecidas nasociedade.Nesses termos, por maiores que fossemas diferenças entre os grupos emconflito ou as mudanças por elesdefendidas, as propostas sugeridaseram superficiais, pois não questionavamou desconheciam as relaçõesmateriais socialmente estabelecidas.Difundia-se a idéia da escola comofator de redução das diferenças entreos indivíduos, pois não havia, nagrande maioria dos intelectuais, umcritério de análise que levasse emconta as determinações, em últimainstância, das relações de produção.Para a corrente majoritária dos intelectuaisrepresentantes da Igreja,escola confessional seria o resgatedas “tradições católicas de nossoApesar das posições divergentes dosgrupos em conflito, pode-se afirmarque esses objetivos possuíam genericamenteuma característica “comum”:constituíam-se em propostasque consideravam a educação comoum instrumento capaz de atuar deforma significativa sobre os homense a esfera social, provocando mudançasprofundas ou evitando-as, alémde significar o aperfeiçoamento dasociedade. Em outras palavras, oseducadores envolvidos no debate,com raras exceções, não percebiamque o problema educacional era umamanifestação no nível escolar, dosproblemas sociais, políticos e econômicos.passado”, o que significaria, em últimaanálise, a superação de nossacrise moral; por outro lado, a escolana perspectiva dos liberais seria achave da emancipação nacional, tale qual era apresentada nos anos 30.Dessa forma, os grupos em conflitoelaboraram seus respectivos discursosem consonância com seus interessesde classe, procurando associarseus objetivos com os interessesde todo o “povo brasileiro”, comose fossem, em todos os aspectos,uma coisa só. Portanto, a escola quese configurou a partir deste debate edos movimentos relacionados não seestabeleceu de um momento para ooutro, mas se constituiu em projetosde classe historicamente deter-pág. 70, jan/dez 2005


R V Ominados pela correlação de forçasdos grupos políticos envolvidos. 39Diante do processo de restauração da“democracia”, o debate sobre as diretrizese bases possibilitou o retorno dosintelectuais que nos anos anteriorespropugnaram pelas reformas educacionais.Contudo, não devemos nos esquecerda linguagem da Guerra Fria que impregnouo discurso político de diferentesintelectuais no Brasil. Desse modo, nãopoderia o debate educacional ficar imune.Embora os pressupostos de defesada educação fossem dados em nome dademocracia, seus limites e contornoseram dados pelo anticomunismo, além derefletir as posições partidárias no Congresso<strong>Nacional</strong>, que se constituiu ao longoda história em uma instituição queexpressou diferentes projetos sociais emdebates políticos. Portanto, é necessárioanalisar as vinculações político-partidáriasdos principais atores envolvidospara a compreensão dos debates e projetosem disputa na arena do Congresso<strong>Nacional</strong>.Cumpre esclarecer, no entanto, que o significadoda palavra “partido” designa uma“associação de pessoas unidas pelosmesmos interesses, ideais, objetivos”,conforme definição do Dicionário Aurélio.Acrescentaríamos que um partido envolveuma “parte” da sociedade que objetivaa conquista do poder, como instrumentode defesa de uma determinada ordempolítica, econômica e social. Poderíamos,também, dentro de uma perspectiva maisampla, caracterizar como um partido,uma revista, um jornal, as instituiçõesreligiosas, educativas etc. Em uma perspectivagramsciana, tais organizaçõesconstituem a sociedade civil, e buscamem suas respectivas atividades a construçãoda hegemonia de classe. Terrenode conflitos ideológicos, de concepçõesantagônicas, mas também de busca doconsenso, a sociedade civil em Gramscié uma categoria dinâmica onde se definea política e a busca pela hegemonia declasse. No livro Política e educação noBrasil (1997), Demerval Saviani esclareceessa diferenciação tratando os partidosnesse período sob duas perspectivas:partido político e partido ideológico, esteúltimo composto por setores da sociedadecivil com participação ativa no processode discussão política (associações,igreja, imprensa etc.).Como se sabe, a crise do Estado Novo eo processo de redemocratização possibilitaramo surgimento de novos partidos.Assim, os partidos que exerceram maiorinfluência foram o Partido TrabalhistaBrasileiro (PTB), o Partido Social Democrático(PSD), ambos com raízesgetulistas, a União Democrática <strong>Nacional</strong>(UDN), além do PCB, que teve um brevemomento de legalidade. 40 Portanto, édentro desse quadro que devemos buscara compreensão dos debates e conflitosque se travaram em torno da configuraçãoda educação no Brasil. Tal qualno período que é inaugurado com a Revoluçãode 1930, o desenvolvimento in-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 71


A C Edustrial era apresentado como o fio condutorda história: a mobilidade, a participação,a igualdade de oportunidades,entre outros, eram valores apresentadoscomo inerentes à política desenvolvimentista.A industrialização era apresentadanos discursos hegemônicos como apeça fundamental da emancipação da“nação”.Em 1948, o ministro ClementeMariani apresentou o anteprojetoda LDB, baseado em um trabalhoorientado por educadores, sob adireção de Lourenço Filho. A longa trajetóriapercorrida pelo projeto até sua aprovação,em 1961, expressou os conflitosno interior do Congresso e da sociedadecivil. Conforme Xavier, na Exposição demotivos apresentada pelo ministroMariani, membro da UDN, encontrávamosa condenação explícita do Estado Novo. 41No diagnóstico apresentado, havia o reconhecimentodo dualismo presente nasreformas anteriores marcadas pela “divisãode oportunidades educacionais porum critério econômico de todo o pontoinjustificado sob o aspecto social, eatentatório, no plano político aos ideaisde vida democrática”. Dessa forma, aproposta encaminhada visava “corrigir” asdistorções do passado e renovava seucompromisso com os princípios da democracialiberal. Afinal, o propósito da educaçãoera “facilitar a qualquer brasileiro,pobre ou rico, das cidades ou do campo,a possibilidade de subir o que osanglo-saxões chamam a ‘escada educacional’,até o último degrau, com a únicalimitação dos seus talentos e dotes pessoais”.Em outras palavras, a situação demiséria e de exclusão não vinculava-se àrealidade material que a produziu, massim à falta de capacidade do indivíduo.Ao lado do discurso de enaltecimento dademocracia liberal, o documento expressavaa intenção de ruptura com o regimeautoritário do período anterior. Nadamais patético. Afinal, entre os setoresque compunham o novo regime que sepropunha a redemocratizar a “nação”,encontramos as mesmas forças que ajudarama sustentar o Estado Novo. O própriopresidente Eurico Dutra pertenceuao corpo de ministros do governo Vargas.Nesse sentido, a exposição do ministroMariani dissimulava as relações de continuidadecom o passado: “o regime instituídono projeto, portanto, como eu oanunciava, sob este e muitos outros aspectos,era menos uma reforma do queuma revolução. Mas uma revolução quenos integra nas fortes e vivas tradiçõesde que fomos arrancados pela melancólicaexperiência da ditadura”. 42Assim, essa nova política expressava umprojeto maior, cujo objetivo de democratizaçãoda educação seria encampadopelo PSD e UDN, que sustentavam o novoregime. Ora, quais as origens do PSD eUDN? Não foi exatamente o PSD o partidofundado por Vargas alguns anos antes?E a UDN? Em suas fileiras encontramoselementos representantes da velhaoligarquia combatida em nome dos prin-pág. 72, jan/dez 2005


R V Ocípios liberais. Evidentemente, tratava-sede um projeto de conciliação. Ressalteseque a comissão que participou da elaboraçãodo projeto foi constituída pordiferentes educadores, entre os quaiscolaboradores do Estado Novo, católicosetc.No entanto, em que pese o tom de conciliaçãorenovado pelo discurso democráticoe crítico da ditadura, o projeto sofreucerrada oposição no Congresso emfunção dos interesses partidários. O deputadoGustavo Capanema, do PSD, partidode sustentação do então governoDutra, assim se manifestou:Não se iniciou ela (a proposta de lei)com intenções pedagógicas, como eratão natural que a nação desejasse eesperasse. É infeliz o projeto, porque,nele não se contém apenas matériade educação mas uma atitudepolítica. Foi lançado num certo diade 29 de outubro quando o entãoministro da Educação, o então eminente,o ilustre Clemente Mariani reuniu,no Palácio do Catete, os festejosdo governo federal, com os aparelhosde propaganda, com os ruídosdo civismo e da política de então,para comemorar, com a apresentaçãodeste projeto, a queda do PresidenteGetúlio Vargas. 43O discurso de Capanema transcrito porSaviani expressa os conflitos de interessespartidários presentes na discussão doprojeto, mas que não apontavam de formasignificativa para a superação dospressupostos liberais e privatizantes.Nesse sentido, a oposição se justificavapor dissimulações que escondiam os interessespartidários, uma vez que o projetonão expressava no entender deCapanema as intenções pedagógicas “quea nação” desejava, pois “nele não se contémapenas matéria de educação, masuma atitude política”. Dentro da perspectivaexposta, cabe questionarmos: as reformasintroduzidas durante o EstadoNovo não continham uma intenção política?Quais as diferenças de intençõesentre a Reforma Capanema e as propostasdo ministro Mariani?Embora houvesse divergências, a oposiçãoao projeto não questionava o incentivodado à iniciativa privada, em funçãoda carência de recursos públicos para aeducação. No mais, cabe salientar queno ensino primário era mantida a tônicapatriótica introduzida pela ReformaCapanema. No âmbito do secundário, as“inovações” propostas reforçam a tradiçãodualista. Segundo Xavier:Permanece a formação dual e, portanto,discriminatória, apesar da referênciaàs novas elites e da flexibilidadeaparente que abria às camadasdesfavorecidas o acesso ao ensinosuperior. A longa duração e aineficiência prática dos cursos técnico-profissionais,características queafastavam as camadas potencialmenteinteressadas nessa espécie de ensino,permanecem. A flexibilidade ea equivalência concedidas entre osAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 73


A C Eramos técnico e o secundário acabariampor atrair as camadas interessadasem utilizá-los como via de acessoao ensino superior, ou seja, ascamadas médias em ascensão que aprecária oferta de ensino secundárionão conseguia atender. Não se eliminava,assim, a barreira educacionalentre classes sociais, mas ampliavasea oferta de oportunidades educacionaispara uma classe média emrápida expansão, foco central daspressões sociais e das políticas“democratizadoras”, na sociedadebrasileira em transição. A conquistade legitimidade política pela mediaçãodo apoio dessas camadas eracrucial para a estabilidade do novoregime que destituíra a ditadura e seimplantara “em nome das liberdadesdemocráticas”. 44Quanto às diretrizes propostas para oensino superior, a Exposição aponta claramentepara o caráter elitista, ao afirmarque a natureza do mesmo não sedestina a todos, mas apenas aos “melhorese mais esforçados”. Dessa forma,“salvo as inovações retóricas”, foi mantidoo caráter elitista das reformas anteriores.No entanto, remetido ao Congresso<strong>Nacional</strong> em 1948, o projeto foi arquivadoem 1949 em virtude da oposiçãoliderada por Capanema. Após doisanos, em 1951, foi proposto o desarquivamentodo projeto, mas o Senado informouque se encontrava extraviado. SegundoSaviani, somente em 14 de novembrode 1956 foi apresentado o relatórioda subcomissão encarregada de estudaro projeto das Diretrizes e Bases. 45 A discussãodo projeto, que fora iniciada noplenário da Câmara em maio de 1957,chegara em uma nova versão, sem aorganicidade e coerência inicial.O projeto supra durou pouco em plenário.Já na sessão de 31-5-57Abguar Bastos pede que o projetovolte à Comissão de Educação e Culturae seja totalmente refeito. Defato, após receber cinco emendas,conforme registra o Diário do Congresso<strong>Nacional</strong>, S. I., de 8-6-57, aproposição retorna para exame da Comissãode Educação e Cultura em 8-11-58. Em 4-12-58, Coelho de Souza,presidente da Comissão de Educaçãoe Cultura, solicita prazo de 24horas para que a subcomissãorelatora possa se pronunciar sobreas emendas em 9-12 do mesmo ano,por falta de tempo e por não teremsido publicadas as emendas, pede aretirada do projeto da ordem do dia.Apesar da tentativa de Aurélio Vianna,na sessão de 10-12, de impedir aretira do projeto da ordem do dia, oprojeto é retirado, medida que o deputadopadre Fonseca e Silva agradee justifica.Na verdade, como denunciara AurélioVianna na referida sessão de 10-12-58, a retirada do projeto da ordemdo dia, embora contra o regimentoda Câmara, se deveu à apresenta-pág. 74, jan/dez 2005


R V Oção à subcomissão relatora, atravésde um de seus membros, dosubstitutivo Carlos Lacerda. 46De fato, o substitutivo do deputado CarlosLacerda, membro da UDN, alicerçava-senas teses do III Congresso <strong>Nacional</strong> dosEstabelecimentos Particulares de Ensino,ocorrido em 1948. Nesse sentido, osubstitutivo apresentado trouxe amaterialização dos interesses privatistaspara o debate que se seguiu em torno daLDB. Conforme Saviani, o interesse deLacerda na apresentação do substitutivoera tipicamente partidário: “tais medidaseram tomadas, ao que parece, porqueLacerda via no projeto das Diretrizes eBases da Educação um instrumento útil,fustigar as posições do bloco no poder”. 47Nesse sentido, o substitutivo Lacerdarepresentou os interesses das escolasparticulares, cuja liderança coube aoscatólicos, que forneceram a retórica dedefesa da “liberdade de ensino” contra o“monopólio totalitário” nas mãos do Estado.Porém, é importante ressaltar quemesmo entre os liberais não havia a defesaintransigente da escola pública únicae estatal.Não advogamos o monopólio da educaçãopelo Estado, mas julgamos quetodos têm direito à educação pública,e somente os que quiserem é quepoderão procurar a educação privada.[...].Na escola pública, como sucede noExército, desaparecerão as diferençasde classe e nela todos os brasileirosse encontrarão, para uma formaçãocomum, sem os preconceitos contracertas formas de trabalho essenciaisà democracia. 48E o que seria a escola pública para AnísioTeixeira? “É um dos singelos e esquecidospostulados da sociedade capitalistado século XIX”. 49 A referência explícitaao capitalismo funciona como um avalao posicionamento liberal em defesa daescola pública, que em última instânciaseria o antídoto contra as ameaças desubversão da ordem.Comentando as condições do presente,disse o dr. Anísio Teixeira que, “senão quiser o caminho de Cuba, a AméricaLatina deve fazer dentro de seuspróprios países sua própria revoluçãosocial democrática. Este é o problemado momento. Os Estados Unidos estãodispostos a ajudar a América Latinaa ajudar-se a si mesma. Porém, paraisto, a América Latina deve fazer asmudanças e os sacrifícios que se tornaremnecessários”. 50Como se vê, o debate extrapolou as fronteirasdo Congresso. Diferentes partidosideológicos, como a imprensa, instituiçõesda sociedade civil, a Igreja, entreoutros, se envolveram no debate. Nas fileirasdo catolicismo e do privatismo, insistia-seque a educação era de responsabilidadeda família, um grupo “natural”anterior ao Estado. Nesse contexto, éinteressante observar a manifestação dodeputado Ataliba Nogueira (PSD-SP), umardoroso defensor do ensino religioso,Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 75


A C Econforme transcrição de Romualdo Oliveira:[...] estamos trabalhando, há 16 ou17 anos, por uma tendência totalitáriado ensino e, mais largamente,da educação. Quando possível, procuramospara os nossos filhos colégiosparticulares; às vezes com verdadeirosacrifício. Entretanto nem alise foge à ação tentacular do Estadoque na organização do ensino atingeaté as minúcias, abolindo iniciativas,a liberdade de ação dos particulares.A imprensa e o próprio episcopadoreclamaram contra o fato das alunasde estabelecimentos públicos ou particulares,serem obrigadas, pela educaçãoque o Estado ministra, a tomarparte em desfiles, seminuas,passando pelas ruas das principaiscidades do Brasil, aos olhos de todos,fixados em fotografias e filmescinematográficos. [...].A democracia deseja este dispositivo.Por quê? Porque diz que a educaçãocompete, em primeiro lugar, àfamília.Não só por direito; é em primeiro lugar,o dever da família.É dever dos pais educar os filhos. Efoi a natureza que lhes deu esse direito.Tudo demonstra que é natural que opai eduque os filhos.Chamo a atenção para o espírito queestá sendo inoculado em nosso meioeducacional de uns 16 anos para cá.[...] O Estado não pode substituir-seaos pais de família na educação dosfilhos. A tendência veio exatamentedos Estados antidemocráticos, queprocuram modelar a infância à suafeição, ao passo que os pais perturbamtal modelação. [...].Se desejo dar a meu filho tal educação,não pode o Estado de maneiranenhuma impor que ele seja educadode outra forma. O mesmo deveacontecer com a instrução. 51Caracterizar o totalitarismo com o monopólioda educação pelo Estado foium dos instrumentos utilizados pelaintelectualidade católica para justificarseus interesses. Das representações enumeradaspor Nogueira, note-se o silênciosobre a colaboração da Igreja com osregimes totalitários e com o Estado Novono Brasil. Qual a razão desse silêncio? Ahistória da educação – como qualqueroutra história – é um terreno de conflitoentre diversas interpretações, cada umadelas associada a uma determinada propostade classe. Dessa forma, faz partedo exercício do poder ocultar as diferençase determinados fatos, decidindo o quedeve ser relembrado. O silêncio sobre acolaboração do catolicismo com os regimestotalitários foi parte de uma estratégiada hierarquia católica, que procuravadistanciar-se dessas experiênciasnos anos de 1950. Tratava-se, dessa forma,de escrever a história com outraspág. 76, jan/dez 2005


R V Otintas, apagando assim a memória dacolaboração.Nesse sentido, a questão política, emsentido estrito, passa a prevalecer sobrea questão educacional, conformea avaliação, com a qual concordamos,de Xavier. A discussão sobre a LDB assumiacom toda força o seu caráterideológico:Pela primeira vez na história dosdebates educacionais no Brasil aquestão crucial da função e dadestinação do sistema educacional nopaís veio à tona para além dasidealizações doutrinárias e da retóricademagógica. Parece que de maneiranua e crua a realidade dos fatosse impôs sobre o “idealismo prático”dos renovadores e revelou aos nossos“educadores profissionais” a faláciado “poder da educação”. O rumotomado pelas discussões contextuaisdo sistema escolar, denunciando oequívoco da concepção de uma “revoluçãoeducacional” à revelia deuma radical transformação da ordemeconômico-social. Evidenciou aindao engano da crença na “vocação parao bem coletivo” das elites cultas, produzidaspor um sistema de ensinocuidadosamente remodelado paracumprir a função de formar dirigentes“progressistas” que conduzissema reconstrução social do país. Apesardisso, o fato de o texto final aprovadoe transformado em lei ter-serevelado o fruto da conciliação entreas propostas em confronto, confirmoua presença ainda predominante,das preocupações político-partidárias,a fragilidade das oposiçõesideológicas entre as elites dirigentese a importância secundária realmenteatribuída por elas ao sistema educacionalem si, para a solução dosproblemas que as afligiam. O significadodo embate ideológico queensejou, contudo, não pode ser menosprezado,não apenas por razõesjá apontadas, mas também por terexpressado de maneira privilegiada ascontradições e as ambigüidades dopensamento liberal nacional. Comexceção da Igreja Católica, parte integrantede um dos pólos em conflito,as personalidades do mundo políticoe intelectual envolvidas definiam-secomo liberais e respaldavamnesse ideário as suas argumentações.52Desse modo, em que pese a presença deintelectuais como Florestan Fernandesna Campanha em Defesa da Escola Pública,desencadeada na fase final datramitação do projeto da LDB, prevaleceuentre os renovadores o discurso liberal,que mascarava a divisão de classesna sociedade e justificava as desigualdadessociais, metamorfoseadas emdiferenças individuais. Segundo muitos intelectuaisligados ao movimento da escolanova, a difusão da ciência por meio daescola resolveria as contradições sociais,incrementando a produção e solucionan-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 77


A C Edo os problemas do desenvolvimentodesigual. Nesses termos, o critério deseleção segundo o liberalismo educacionalseria a “natureza individual”, que, trabalhadapela escola, desenvolveria aspotencialidades de cada um, e alimentariao bem-estar social. Assim, a educaçãoera entendida como panacéia paratodos os males do país.Isso posto, é importante enfatizar que odiscurso liberal também legitimou a defesada escola privada, sendo utilizadoinclusive pela corrente conservadora doclero católico. Em diferentes momentosdo confronto, os intelectuais católicoslevantavam a necessidade de assegurara “liberdade de escolha” ou a economiapara os cofres públicos através da expansãoda rede privada de ensino. Naverdade, muitos intelectuais, ligados porlaços umbilicais aos interesses das classesdominantes, abordaram a questãoeducacional como princípio necessáriopara a formação dos indivíduos e suaadequação à ordem social.Nesse sentido, as propostas presentes noconflito vão ao encontro dos interessesburgueses, pois entre os objetivos políticosexplícitos nos discursos hegemônicossobre a educação versavam a adequaçãodo indivíduo à ordem. Ainda que os intelectuaiscatólicos criticassem o liberalismopelo excesso de liberdade, o que teriasido a causa da crise moral, a argumentaçãoem defesa do privatismo ia aoencontro de uma perspectiva individualistae liberal, embora possuísse umaconotação diferente das posições políticasdefendidas pelos chamados renovadores.Mesmo constituindo-se em instituiçõesprivadas, as escolas católicas eramapresentadas como “escolas do povo”.A respeito do tema, é oportuno saber oque diz um dos articulistas da RCV,Abelardo Ramos:Dinheiro público, só para a escolapública. – A frase só é verdadeira, setraduzida: dinheiro do povo, só paraescola do povo. Criou-se uma idéiafalsa, a respeito do termo ‘público’.É como se dissessem: dinheiro oficial,só para escola oficial. Entretanto,não há dinheiro do Estado, poisjá passou o tempo do absolutismomonárquico. O dinheiro é do povo,que o entrega ao Estado, para quereverta a favor do povo. Assim escolapública é a escola que o Estadotem que abrir ao povo. No dia emque o Estado possua o seu própriodinheiro, está certo que faça com eleo que entender. Por enquanto, nãopode apossar-se do que pertence aosoutros. Se a escola particular foraberta ao povo, é tão pública quantoa escola oficial. E é isto que queremos:multiplicar as escolas dopovo. Para que se julgue da exataaplicação do vocábulo ‘público’ vejamestas expressões: ‘lugar abertoao culto público’ (será o ‘culto oficial’?)e ‘mulher pública’ (será ‘mulheroficial’?). 53Proposta mais explícita é impossível. Opág. 78, jan/dez 2005


R V OEstado teria apenas função suplementar.Com efeito, apesar da abertura políticaverificada após a queda do Estado Novo,os trabalhadores enquanto classe estiveramausentes da chamada democracia.Portanto, em que pese os projetos alternativos,não tiveram visibilidade. Nãodevemos estranhar a configuração deum sistema escolar marcado pela conciliaçãoentre os diferentes setores daselites, além da exclusão sistemática damaioria.Diante das reflexões apresentadasno presente artigo, nãonos parece novidade o receituárioapresentado pelos “profetas” doevangelho neoliberal, recomendando políticasde controle dos gastos públicos,as quais significam, entre outras coisas,a necessidade da contenção de gastoscom as chamadas políticas sociais, desaúde, trabalho, previdência e educação.Tais políticas têm representado em nossopaís, e também no continente latinoamericano,o aumento da dívida social.Na verdade, a defesa do privatismo emeducação no Brasil possui uma históriamarcada pelas contradições inerentesaos conflitos e projetos de classes, asquais ultrapassam as fronteiras temporaisda atual hegemonia neoliberal. Frenteao engodo representado por tal ideologia,que apresenta a educação comosolução para as mazelas sociais,Sanfelice tece as seguintes considerações:as teses neoliberais têm sido tambémpródigas em propor argumentos favoráveisà privatização da educação,entendida como formadora das elitesou para dar a cada um o que suafunção social exige, e que não podeser obtido através de uma educaçãopública comum. Além disso, o sistemapúblico oneraria duas vezesaquele que não necessita se utilizardele, porque paga impostos epaga as escolas onde coloca osseus filhos. [...].Veja-se como que, concomitantementea estas propostas, ganha tambémforça o argumento de que o Estado,em educação, deve subsidiaro setor privado, estimular a ofertadiferenciada e a concorrência generalizada.No fundo, é a concepçãoindividualista que se está difundindo,a concepção oposta aos setoresprogressistas, que continuamclamando pela solidariedade. No fundo,é ainda a lógica da natureza quese pretende impor: vence o maisforte. 54Por isso mesmo, o estudioso da históriada educação não pode ignorar a presençado privatismo na política educacional,que também faz parte do exercício dopoder. Afinal, as relações de dominaçãoe subordinação estão presentes em todasas dimensões do social, e a educaçãoescolar, como qualquer outra instituiçãocriada pelo homem, não é obra doacaso, mas uma construção social, produtode uma determinada correlação deforças na sociedade.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 79


A C EN O T A S1. Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica,Rio de Janeiro, Guanabara, 1987, p. 206.2. Maria Elizabete S. P. Xavier, Capitalismo e escola no Brasil, Campinas, Papirus, 1990,p. 57.3. Ibidem, p. 58.4. Ibidem, p. 59.5. Octavio Ianni, A idéia de Brasil moderno, Resgate – Revista Interdisciplinar de Culturado Centro de Memória da Unicamp, Campinas, Papirus, 1990, p. 26.6. No campo cultural, a Semana de Arte Moderna de 1922 reúne representantes das diferentesmanifestações artísticas, que propugnavam por uma nova estética afastada dasinfluências européias.7. Em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde, órgão para o planejamento dasreformas em âmbito nacional e para a estruturação da Universidade.8. Na verdade, o escolanovismo foi um movimento mundial, com forte acento pedagógico.A face mais “política” do movimento deveu-se, sobretudo, ao norte-americano JohnDewey.9. Em 1932, é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, encabeçado porFernando de Azevedo e assinado por 26 educadores. O manifesto fez a defesa daeducação obrigatória, pública, gratuita e leiga como um dever do Estado, a ser implantadaem programa de âmbito nacional. Por outro lado, o documento criticava o dualismoeducacional, que destinava uma escola para ricos e outra para pobres, reivindicando aescola básica e única, considerada o ponto de partida comum para todos.10. Éster Buffa e Paolo Nosella, A educação negada: introdução ao estudo da educaçãobrasileira contemporânea, São Paulo, Cortez, 1997, p. 67.11. Maria Elizabete S. P. Xavier, Capitalismo e escola no Brasil, op. cit., p. 57.12. Paulo Ghiraldelli Jr., História da educação, São Paulo, Cortez, 2001.13. Idem.14. Idem.15. Idem.16. Idem.17. Simon Schwartzman, Tempos de Capanema, São Paulo, Paz e Terra/EDUSP, 1984, p.55.18. Alcir Lenharo, Sacralização da política, Campinas, Papirus, 1989.19. Campos apud Simon Schwartzman, op. cit., p. 292-293.20. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 75.21. Ibidem, p. 78.22. Francisco Campos foi um dos mais importantes intelectuais da direita no Brasil. Com aposse de Getúlio Vargas, assumiu a direção do recém-criado Ministério da Educação eSaúde, cargo em que permaneceu até setembro de 1932. Cabe ressaltar que se tornouum dos elementos centrais, junto com Vargas e a cúpula das Forças Armadas, dospreparativos que levariam à ditadura do Estado Novo, instalada por um golpe de estadodecretado em novembro de 1937. Nomeado ministro da Justiça dias antes do golpe,foi, então, encarregado por Vargas de elaborar a nova Constituição do país, marcadapor características corporativistas e pela proeminência do poder central sobre os estadose do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário.23. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 84-85.24. Ibidem, p. 87.25. O ensino secundário foi reformado pelo decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Noque diz respeito aos objetivos, o ensino secundário passou a ter dupla finalidade:formação geral e preparação para o ensino superior.pág. 80, jan/dez 2005


R V O26. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 89.27. O ensino superior foi reformado com a promulgação dos Estatutos das UniversidadesBrasileiras (decreto nº 19.851, de 14 de abril de 1931).28. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 92-93.29. Paulo Ghiraldelli Jr., História da educação, op. cit.30. Ibidem, p. 102.31. Gustavo Capanema Filho nasceu em Pitangui (MG), em 1900. Advogado, formou-sepela Faculdade de Direito de Minas Gerais, em 1923. Durante seus tempos de universitário,vinculou-se, em Belo Horizonte, ao grupo de “intelectuais da rua da Bahia”, doqual também faziam parte Mario Casassanta, Abgard Renault, Milton Campos, CarlosDrumonnd de Andrade e outras futuras personalidades das letras e da política no Brasil.Em 1927, iniciou sua vida política ao eleger-se vereador em sua cidade natal.Nas eleições presidenciais realizadas em março de 1930, deu apoio à candidatura presidencialde Getúlio Vargas, lançado pela Aliança Liberal – coligação que reunia oslíderes políticos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. No entanto, Vargas foiderrotado pelo candidato situacionista, o paulista Júlio Prestes. Nessa mesma ocasião,porém, o primo de Capanema, Olegário Maciel, que então já contava com mais de70 anos, elegeu-se para o governo de Minas. Após a posse de Olegário, Capanema foiimediatamente nomeado seu oficial-de-gabinete e, logo em seguida, secretário do Interiore Justiça.Partidário decidido do movimento revolucionário que depôs o presidente WashingtonLuís e conduziu Vargas ao poder em novembro de 1930, em fevereiro de 1931, juntocom Francisco Campos e Amaro Lanari, liderou a formação da Legião de Outubro,organização política criada em Minas Gerais com a finalidade de oferecer apoio aoregime surgido da Revolução de 30. A Legião de Outubro, que teve uma existênciabreve, apresentava traços programáticos e organizativos semelhantes aos movimentosfascistas. [...].Capanema foi designado pelo presidente para dirigir o Ministério da Educação e Saúde.Nomeado em julho de 1934, permaneceria no cargo até o fim do Estado Novo, emoutubro de 1945.Sua gestão no ministério foi marcada pela centralização, a nível federal, das iniciativasno campo da educação e saúde pública no Brasil. Na área educacional, tomou parte doacirrado debate então travado entre o grupo “renovador”, que defendia um ensinolaico e universalizante, sob a responsabilidade do Estado, e o grupo “católico”, queadvogava um ensino livre da interferência estatal, e que acabou conquistando maioresespaços na política ministerial. Em 1937, foi criada a Universidade do Brasil, a partirda estrutura da antiga Universidade do Rio de Janeiro.Imbuído de ideais nacionalistas, Capanema promoveu a nacionalização de cerca deduas mil escolas localizadas nos núcleos de colonização do sul do país, medida intensificadaapós a decretação de guerra do Brasil contra a Alemanha, em 1942. No campodo ensino profissionalizante foi criado, através de convênio com o empresariado, oServiço <strong>Nacional</strong> de Aprendizagem Industrial (SENAI). Na área de saúde, foram criadosserviços de profilaxia de diversas doenças. Outra importante iniciativa do ministériofoi a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico <strong>Nacional</strong> (SPHAN). Capanemabuscou, como ministro, estabelecer um bom relacionamento com os intelectuais brasileiros,tendo sido auxiliado nessa tarefa pelo poeta Carlos Drumond de Andrade, seuchefe de gabinete. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm.32. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 108.33. Ensino primário (fundamental, 4 anos); ensino secundário (1º ciclo, 4 anos – ginásio)e (2º ciclo, 3 anos – colégio clássico ou científico).34. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 114.35. Inspirado na Carta del Lavoro do regime fascista italiano, o governo buscou reorganizaro movimento operário brasileiro, procurando transformar as organizações sindicaisem órgãos de colaboração de classe.36. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 116.37. Decreto-lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946.38. Cabe ressaltar que o Brasil sofreu os reflexos da Guerra Fria, como, por exemplo,Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 55-82, jan/dez 2005 - pág. 81


A C Equando os comunistas que participaram da Assembléia Constituinte, em 1947, sãoafastados e o Partido Comunista é colocado na clandestinidade.39. Marco Antonio de Oliveira Gomes, Vozes em defesa da ordem: o debate entre o públicoe o privado na educação (1945-1968), Dissertação de mestrado, Campinas, Unicamp,FE, 2001, p. 117-118.40. O PSD tinha entre os seus quadros os elementos da burocracia governamental do EstadoNovo. Já o PTB, igualmente criado por Vargas, emergiu da burocracia sindical criadapelo Ministério do Trabalho com a finalidade de afastar os trabalhadores da influênciacomunista. No caso da UDN, suas origens devem ser buscadas nas antigas oligarquiasdestronadas com a Revolução de 1930, e nos antigos aliados de Vargas marginalizadosdepois de 1930 ou em 1937, ou que romperam com Vargas no decorrer do EstadoNovo. Nesse sentido, a UDN nunca empunhou a bandeira do nacionalismo, mas sim adefesa do liberalismo e da associação ao capital estrangeiro. No caso do PCB, sua vidalegal foi extremamente breve: de 1945 a 1947. Segundo Leôncio Basbaum, em 1946, oPCB atingiu o maior crescimento de sua história, com cerca de 180 mil militantes, oque era extraordinário para um partido recém-saído da clandestinidade. No Brasil, nalinguagem ideológica conservadora, a associação do PCB com a URSS começou a serfeita desde 1946, quando entrou em discussão a Lei de Segurança que autorizavareformar compulsoriamente qualquer militar “que pertença a partidos antidemocráticos”.Nesse ambiente, os comunistas eram qualificados como “agentes de Moscou”, “partidáriosde uma forma de vida incompatível” etc. Leôncio Basbaum, História sincera daRepública: de 1930 a 1960, 6. ed., São Paulo, Alfa-Omega, 1991, p. 187.41. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 120.42. Diário do Congresso <strong>Nacional</strong> apud Demerval Saviani, Política e educação no Brasil,São Paulo, Cortez, 1988, p. 48.43. Idem.44. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 126.45. Diário do Congresso <strong>Nacional</strong> apud Demerval Saviani, Política e educação no Brasil,op. cit., p. 51.46. Ibidem, p. 52.47. Ibidem, p. 53.48. Anísio Teixeira, Educação não é privilégio, Rio de Janeiro, UFRJ, 1999, p. 101.49. Ibidem, p. 99.50. Correio Braziliense, Brasília, 18 de novembro de 1961.51. Nogueira apud Romualdo Portela Oliveira, A educação na Assembléia Constituinte de1946, in Osmar Fávero (org.), A educação nas constituintes brasileiras: 1823-1988,Campinas, Autores Associados, 1996, p. 175-176.52. Maria Elizabete S. P. Xavier, op. cit., p. 135.53. Abelardo Ramos em RCV, nº 4, ano 55, abr. 1961, p. 198.54. José Luís Sanfelice, O modelo econômico, educação, trabalho e deficiência, in JoséClaudinei Lombardi, Pesquisa em educação: história, filosofia e temas transversais, Campinas,Autores Associados, 1999, p. 154-155.pág. 82, jan/dez 2005


R V OLígia Martha Coimbra da Costa CoelhoDoutora em Educação e Professora Adjunta da UNIRIO.Educação Integral e IntegralismoFontes impressas e história(s)Este artigo é fruto de pesquisa sobre aeducação integral, no contexto da história daeducação brasileira. Centrando o foco deanálise no movimento integralista, ainvestigação busca fontes primárias emmunicípios do estado do Rio de Janeiro e aanálise dessas fontes, no tocante aos aspectosrelativos à concepção de educação e implantaçãode escolas pelos adeptos do integralismo. Assim,realizamos as primeiras atividades de campo nomunicípio de Teresópolis onde, na sede de jornaldo mesmo nome, encontramos todo o acervodeste periódico, desde a década de 1920, até osdias de hoje. É importante destacar que o jornalO Therezopolis assumiu feição integralista nadécada de 1930.Palavras-chave: educação integral, integralismo,história da educação.This article is part of the research aboutintegral education in the Brazilian’s historyeducation. It analyses the integralismmovement and works with primary sourcesand documents at the Rio de Janeiro’smunicipalities in order to identify aspectsrelated to education’s concepts and implantationof the schools by the integralism’s followers.Our practice activities are situated on Teresópolis,a municipality at the Rio de Janeiro’s state. Inthis region, there is a newspaper – O Therezopolis– which published many articles and noticesabout the movement, because this periodicwas sympathizing with the integralism, in1930´s decade.Keywords: integral education, integralism, historyof education.UM TEMA, UM MOMENTONA HISTÓRIARefletir sobre educação integral,mais precisamente sobresua presença na educação brasileira,não é atividade das mais fáceis.Esse é um tema pouco estudado pelospesquisadores brasileiros. Se a essetema acrescentarmos movimentos político-ideológicoscomo o integralismo daprimeira metade do século XX, mais difícilainda será a tarefa.Nesse sentido, buscamos, como diz o ditadopopular, agulha em palheiro, ou seja,este artigo constitui-se enquanto fruto depesquisa que tem a educação integral comoAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 83


A C Eobjeto de estudo e que privilegia, em umaprimeira fase, as décadas de 1920 e 1930,procurando centrar nosso foco de análiseno movimento integralista, devido à suaperformance política na década de 1930,à reflexão que empreendeu sobre educação,em geral, e à implantação de escolasintegralistas, em particular. 1Metodologicamente, a investigação buscafontes documentais em municípios do atualestado do Rio de Janeiro e a conseqüenteanálise dessas fontes, no tocante aosaspectos especificamente relativos à concepçãode educação e implantação de escolaspor aquele movimento. Por enquanto,centramos nossa atividade de campo nomunicípio de Teresópolis onde, na sede dejornal do mesmo nome, encontramos todoo acervo deste periódico, desde sua criação,na década de 1920, até os dias dehoje. É importante destacar que o jornal OTherezopolis assumiu feição integralistadurante a década de 1930. 2Durante a pesquisa de campo, foramcoletadas passagens significativas, comopropagandas do movimento; atas dos encontrosmensais realizados nos núcleos daprovíncia; artigos ou editoriais de personalidadesrepresentativas do integralismo,desde que houvesse alusão à educação.Também foram selecionadas notícias quecomprovaram a implantação de escolas dealfabetização naquele município.Neste artigo, procedemos à análise qualitativadesses dados, ou seja, a uma análisecrítica de seu conteúdo, 3 optando porconstituir categorias de análise que dessemconta do material arrolado e selecionado.O objetivo principal da reflexão que aquiempreendemos é, partindo de fonte impressaencontrada em um município do estadodo Rio de Janeiro, verificar apermeabilidade dos fundamentos e práticasdos integralistas, em relação ao campoeducacional também em pequenos municípios,e não apenas nos grandes centrose capitais do país.EDUCAÇÃO INTEGRAL,INTEGRALISMO: UMA EXPRESSÃOE SEUS LIMITESInicialmente, é preciso registrar quea década de 1930 empresta à educaçãoum valor agregado de esperança,de salvacionismo. Como afirma Carvalho,a partir de meados dos anos de 1920ocorre uma “repolitização do campo educacional,expresso num ambicioso projetode reforma moral e intelectual” 4 que, acreditamos,forja campos de consenso e deconflito na sociedade brasileira. A educaçãotorna-se, assim, ponto de confluênciae, ao mesmo tempo, um diferencial dosprojetos político-ideológicos em seus embates.Nesse emaranhado social, o integralismoaparece como mais uma possibilidade. E,dentro desse movimento, a escola emergecomo locus de consolidação de seus fundamentospara a educação. É significativaa fala de Belisário Penna, em artigo publicadona Enciclopédia do integralismo: “aescola deve ser um prolongamento ou umaexpressão da vida familiar, pelas ativida-pág. 84, jan/dez 2005


R V Odes comuns a uma e outra, tais as formasde cooperação, a autoridade, a disciplina,a obediência e o respeito mútuo”. 5A afirmação anterior, de reconhecidointegralista, institui a escola como “prolongamentodo lar”, ou seja, alicerçado emum dos pilares da tríade Deus, Pátria, Família,o movimento construía a imagem dainstituição educativa ideal. Essa imagemtambém parte de uma concepção de educaçãointegral, visto que “a idéia de educaçãointegral para o homem integral era umaconstante do discurso integralista”, 6 comoafirma Cavalari. Podemos constatar essatendência, ainda, dando voz aos adeptosdo Sigma, como eram denominados osmembros do movimento:O verdadeiro ideal educativo é o quese propõe a educar o homem todo.E o homem todo é o conjunto dohomem físico, do homem intelectual,do homem cívico e do homemespiritual. 7A educação integral [...] não pode sedespreocupar de nenhuma de suasfacetas; deve ser física, científica, artística,econômica, social, política ereligiosa. 8Como podemos verificar, as falas apresentadas,além de representativas das trêscategorias que conformam o pensamentointegralista – a tríade Deus, Pátria e Família–, também nos informam uma práticade educação integral, por meio da utilizaçãode expressões como homem espiritual,homem cívico, homem intelectual, homemfísico, dimensões que compõem umtodo orgânico, formador do ser humano emsuas potencialidades.Sintetizando, podemos afirmar que havia,no movimento integralista, um cuidado especialcom a educação, vista como possibilidadede transformação de mentes e corpos.E esse cuidado traduzia-se em umaconcepção integral, expressão que se fundao próprio movimento e que constitui-setambém como natureza das práticas que oconsolidam.Partindo tanto das premissas sobre as quaisrefletimos até este momento, quanto dasafirmações de Cavalari sobre a existênciade periódicos integralistas em vários estadose municípios do país, perseguimos evidênciasdaquela educação integral nos locaisonde esses jornais eram impressos.Segundo a autora, em jornais integralistasdo eixo Rio de Janeiro e São Paulo “publicavam-senotícias sobre a abertura de escolas,em destaque, em qualquer ponto dosjornais, sob o título Mais uma escolaintegralista. Segundo os dados obtidos, em1937 o número dessas escolas era bastantesignificativo [...] já atinge a 3.000”. 9No anexo II da obra de Cavalari, há umalistagem dos periódicos integralistas e, emrelação ao estado do Rio de Janeiro, nossocampo de pesquisa, foram arroladosdezessete jornais e revistas, encontradosem onze municípios, incluindo-se os quecircularam apenas na capital. Nessa etapada investigação, nos perguntamos sobre aexistência documental daquele materialimpresso, sobre sua periodicidade e asAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 85


A C Enotícias que veiculavam.Essas questões nos levaram à hipótese deque os periódicos municipais, provavelmente,encerrariam notícias e informações tãoimportantes quanto as evidenciadas emjornais de cidades de grande porte, ou capitais.Essa hipótese levantou outrosquestionamentos: que subsídios para nossainvestigação poderiam conter esses periódicos?Como o movimento integralista,por meio de suas idéias sobre educação,estaria representado naqueles municípios?Que surpresas estariam contidas nessesperiódicos?Nesse sentido, nosso primeiro movimentofoi em direção a Teresópolis, cidade serranado estado do Rio de Janeiro, onde o periódicodo mesmo nome fora arrolado comointegralista, no período em que o movimentose expandiu (1932-1937), visando responderàquelas questões <strong>iniciais</strong>. O frutodesse trabalho é o que apresentamos noitem a seguir.EDUCAÇÃO INTEGRAL,INTEGRALISMO: O QUE DIZEMOS PERIÓDICOS?Após contato com o grupo queelabora, atualmente, o jornalO Therezopolis, foram realizadasseis visitas oficiais à sua sede,totalizando, aproximadamente, trinta horasde pesquisa documental. Concentrandonossos esforços nos primeiros resultadosalcançados com a pesquisa documental,destacamos, em periódico de 9 de setembrode 1934, a nota que transcrevemos aseguir:Campanha de Alfabetização – O DepartamentoMunicipal de Estudos daAção Integralista Brasileira está elaborandoum programa de ensino, afim de iniciar a obra de alfabetização.A recomendação que temos doDepartamento Provincial de Estudosé o seguinte: 1 º Aceitam-se alunos dequalquer credo político ou religioso.2 º Não se fará pregação doutrinária,Alunos de uma escola integralista em Sapucaia, município do Rio de Janeiropág. 86, jan/dez 2005


R V Omas a orientação geral será:espiritualizada rumo a DEUS, PÁTRIAE FAMÍLIA. 3 º Não se provocarão discussõescom alunos, nem se permitirãodebates entre eles. 4 º Não seforçarão os alunos ao comparecimentodas reuniões do Núcleo. 5 º Faça aobra de alfabetização com a maiorelevação “pelo bem do Brasil”, e queninguém possa vir atacar-nos, alegandoque a escola é, para nós, umaarma de propaganda da doutrina. DepartamentoM. de Estudos. 10A nota coletada é significativa para nossainvestigação, uma vez que confirma o objetivodo movimento de abrir escolas dealfabetização pelo país afora, “a fim de iniciara obra de alfabetização”. Podemosvisualizar, ainda, nas cinco recomendaçõeselencadas, pressupostos norteadores dosfundamentos integralistas em relação àeducação, ou seja, a pretensa democratizaçãodo ensino, calcada na primeira recomendação;a conformação desse ensino pormeio da tríade que respalda a natureza domovimento (segunda recomendação); a presençada metodologia tradicional de ensino(terceira recomendação), bem comouma novamente pretensa neutralidade comrelação às atividades educativas (quarta equinta recomendações).Ao afirmarmos que a primeira, quarta equinta recomendações expõem umapretensa democratização e neutralidade daeducação/ensino em relação ao movimento,calcamo-nos nas evidências do discursoapresentado. Nesse sentido, como entenderque “não se fará pregação doutrinária,mas a orientação geral” estará baseada natríade Deus, Pátria e Família, exatamenteos três pilares de sustentação ideológicado integralismo? Como dizer que a educaçãonão é, para o movimento, “uma armade propaganda da doutrina”?A nota compilada – esclarecedora do quepodíamos encontrar no periódico examinado,bem como outras notas, citações e trechosencontrados, após uma leitura/interpretaçãocuidadosa de seu conteúdo – possibilitou-nosconstituir três categorias deanálise, a saber:Existência de instituiçõesescolares integralistasA nota que transcrevemos é igualmentereveladora em relação à existência de escolasintegralistas. Se não houvesse intençãode implantá-las, por que apresentarrecomendações à sua efetivação?Ainda nesse sentido, outras três notas encontradasnos periódicos dos anos de 1934e 1935 declararam a existência de trêsescolas de cunho integralista, disseminadaspelos distritos que compunham o municípiode mesmo nome:Escola Alberto Torres – Mantida peloNúcleo Integralista de Teresópolis –Começará a funcionar no próximo dia1 º , a escola mantida pela AçãoIntregralista Brasileira, na sede donúcleo, à praça 3 de Outubro s/n. Ohorário para o funcionamento dasaulas será das 18h às 19.30h. Asmatrículas estarão abertas desde oAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 87


A C Ecomeço das aulas, sendo as mesmasfrancas a qualquer pessoa. Secretáriodo D.E.D. José FernandesCosta. 11Escola Jayme Guimarães – O núcleodistrital de Vieira acaba de fundar aprimeira escola integralista do 3 º distrito,que funciona com a denominaçãode “Jayme Guimarães”, em homenagema um dos mártires doSigma. 12Integralismo – Escola ProfissionalMaria José – Prestando umajustíssima homenagem à saudosacompanheira Maria José Leite Pereira,o Departamento Feminino da AçãoIntegralista Brasileira desta cidadesolicitou da Chefia, para que a escolaprofissional inaugurada no dia 29do corrente fosse denominada “EscolaProfissional Maria José”. 13Ao iniciarmos nossa análise, é importantedestacar que a escola Alberto Torres foifundada em 1 o de outubro de 1934, comoafirma a primeira nota, e que a nota anteriordata de setembro do mesmo ano. Essefato permite inferir que o núcleo integralistade Teresópolis estava bem organizado, oque possibilitou a criação – em menos deum mês – da primeira instituição escolarda Ação Integralista Brasileira (AIB) nomunicípio.Um segundo ponto a apresentar refere-seao nível e/ou modalidade de ensinoimplementado pelos integralistas no municípiode Teresópolis. O teor das três notasmencionadas não nos permite afirmar queas instituições escolares Alberto Torres,Jayme Guimarães e Maria José destinavamseà alfabetização. Na verdade, apenas aúltima nota apresenta a modalidade deensino a que a escola se destinava, enquantoa segunda não faz referência alguma aessa questão.A primeira nota, no entanto, fornece doisdados interessantes. Em primeiro lugar, aescola Alberto Torres funcionaria diariamente,durante uma hora e meia, o quenão caracteriza um ensino regular. Em segundolugar, as aulas seriam franqueadas“a qualquer pessoa”, o que denota um trabalhoeducativo de conhecimentos básicosou, ainda, de habilidades profissionais quedispensariam, supomos, quaisquer “uniformidadespedagógicas”.Sintetizando, o periódico O Therezopolisaborda três escolas integralistas, fundadasentre 1934 e 1935. No entanto, não hádetalhamento que nos permita inferir quetipo de instituição estava sendo implantada,nem qual modalidade/nível de ensinoestaria sendo privilegiado. Contudo, há umaoutra nota, que apresentaremos mais adiante,confirmando uma escola de alfabetizaçãono núcleo de Vieira. Nesse sentido,fica-nos a dúvida: existiram tais instituiçõesescolares? Alguma delas seria, realmente,uma escola de alfabetização? Em caso afirmativo,como funcionariam?Funcionamento das instituiçõesescolares integralistasNossa análise em relação a este ponto foiaprofundada a partir de nota encontradapág. 88, jan/dez 2005


R V Ono jornal O Therezopolis, datada de abrilde 1936:Integralismo – Aos chefes dos núcleosdistritais – Tendo chegado ao conhecimentoda chefia municipal quealgumas escolas não estão funcionando,essa chefia lembra aos chefesdistritais, que todas as oito (8)escolas de alfabetização disseminadasno município, devem funcionartodos os dias úteis, sem interrupção.O integralista que concorrer para asua paralisação está se afastando dadoutrina integral. Nilo Tavares –S.M.E. 14Analisando o teor da nota, percebemos quehá um descompasso entre o discurso queassinalava a fundação de escolas, seu funcionamentoe a prática desenvolvida pelosadeptos do Sigma. Conforme o secretáriomunicipal de Estudos (SME) da AIB emTeresópolis, Nilo Tavares, “algumas escolasnão estão funcionando”. No entanto, aexpressão não está clara: esse não funcionamentorefere-se a alguns dias na semana?A um não funcionamento geral? Emoutro momento da nota, Nilo Tavares afirmaque as escolas “devem funcionar todosos dias úteis, sem interrupção”, expressãoque ainda mantém a dubiedade da situaçãoapresentada.De qualquer forma, fica-nos a constataçãode que alguns chefes distritais relegavama segundo plano seu compromisso com aeducação nos núcleos distritais que coordenavam.Nesse sentido, acreditamos que,ao apresentar uma punição de ordem ético-moralaos chefes distritais do movimento– “O integralista que concorrer para asua paralisação, está se afastando da doutrinaintegral”–, Nilo Tavares pretendia,possivelmente, regularizar a freqüência dostrabalhos educacionais desenvolvidos nasunidades escolares implantadas pela AIB,no município de Teresópolis.Em relação ao funcionamento de escolas,não foram encontrados documentos maissignificativos no periódico pesquisado. Noentanto, a mesma nota citada deixa claraa existência de oito instituiçõesalfabetizadoras naquele município. Essequantitativo entra em choque com informaçõesdetectadas ao longo dos anos de 1934e 1935, quando o periódico destacou apenasa implantação das escolas Alberto Torres,Jayme Guimarães e Maria José, a queanteriormente nos referimos.Nesse sentido, questionamo-nos novamente:existiram, realmente, essas oito escolasde alfabetização no município deTeresópolis? Em caso afirmativo, por queo periódico, simpatizante do movimentointegralista, não as citou, da mesma formaque publicou a fundação das escolasAlberto Torres, Jayme Guimarães e MariaJosé?Relação público-privado nasinstituições escolares integralistasde TeresópolisIniciando a análise desta terceiracategorização, destacamos duas notas presentesem edições de 1937 de OTherezopolis:Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 89


A C EO vereador integralista protesta, juntoà Câmara Municipal, contra a falta deassistência aos pobres e combate àmá vontade do Legislativo, que continuano firme propósito de negarinstrução aos munícipes. 15Pelo Integralismo – O núcleo deVieira, atendendo à impossibilidadeda escola municipal de Vieira aceitar[...] do que só atenderia até 40 alunos,reabriu na sede distrital a suaescola de alfabetização, a fim deatender às necessidades da mesmalocalidade, tendo matriculado 30alunos. 16As referidas notas evidenciam as relaçõesexistentes entre o governo e o movimentopolítico integralista na década de 1930,notadamente no município de Teresópolis.Conforme podemos verificar pelo primeirotrecho, o embate entre as forçaslegislativas se fazia presente, na medidaem que um vereador adepto do Sigma protesta,junto a seus pares, contra o “firmepropósito de negar instrução aosmunícipes”. Dois meses depois, outra notaconfirma que, pela “impossibilidade da escolamunicipal de Vieira aceitar” mais alunos,o núcleo integralista daquele distrito“reabriu a sua escola de alfabetização, afim de atender às necessidades da mesmalocalidade, tendo matriculado 30alunos”.Uma leitura atenta do conteúdo dessas duasnotas permite inferir o papel desempenhadopor essa escola integralista de alfabetização,no município de Teresópolis, emrelação à democratização do acesso aoensino primário. Em outras palavras, umavez que a escola pública municipal não atendiaa todos aqueles que a ela recorriam,era na instituição privada que esse atendimentopoderia ser buscado. É claro queessa reflexão parte da visão de público enquantoestatal, ou seja, de acordo comSeverino deslizamos de uma significaçãode cunho social, em que a categoria públicocorresponde aos interesses coletivos,para uma concepção mais burocrática,em que o termo “passa a significar[estatal]”. 17Em que pese a avaliação de Severino, queconsidera essa opção empobrecedora,acreditamos que esta é, ainda, uma dasformulações mais difundidas no âmbito dahistoriografia da educação brasileira, possibilitando-nos,portanto, garimpar em suaságuas. Nesse sentido, podemos argumentarque as notas recortadas do semanárioO Therezopolis, além de apresentar os conflitosexistentes entre as forças antagônicasno Legislativo daquele município serrano,possibilitam-nos, de certo modo, refletirsobre o possível afastamento do Executivodas políticas públicas relativas à educação.Dessa forma, estamos levando em conta ofato de que nossa análise parte tão-somentede um lado da questão, ou seja, épermeada por uma fala unilateral, o que,sabemos, compromete as reflexões realizadas.Por outro lado, não realizá-las significaesconder conflitos que podem ter exis-pág. 90, jan/dez 2005


R V Otido, sobretudo se levarmos em consideraçãoas precárias condições objetivas deorganização do sistema de ensino primáriodo país, à época.Assim, acreditamos que discutir esses conflitospossibilita visualizar vínculos políticosmuito fortes entre o que aqui denominamospúblico e privado. Em outras palavras,se o poder público, entendido como estatal,dispersa sua energia político-social,cabe ao interesse privado, neste caso representadopelo movimento integralista,mostrar essa capacidade, ampliando seuraio de ação. Ao angariar a simpatia daspessoas mais humildes pelo movimentoque, de certa forma, prestava a assistênciaque lhes era negada pelo Estado, osintegralistas somam pontos para o alcancede sua meta – arregimentar adeptos portodas as localidades e, dessa forma, difundirsua missão, sua bandeira: Deus, Pátriae Família.Nesse contexto, a categorização do movimentointegralista como privado refere-seà dicotomia que apresentamos anteriormente– público como estatal. Em outraspalavras, se entendemos por públicas aquelasações realizadas pelo poder estatal,compreendemos como privadas as quebuscam, mesmo que no âmbito da sociedadepolítica, o alcance dessa hegemonia– objetivo do integralismo, haja vista sua“transformação”, no mesmo ano de 1937,de associação (AIB) para partido político(PRP).Retornando ao periódico O Therezopolis,debruçamo-nos novamente sobre outroproblema: a concepção de educação vigenteno movimento.UMA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃOINTEGRAL NO MOVIMENTOINTEGRALISTA?Nossa reflexão recai, então, sobre a existência de atividadeseducativas que consubstanciemuma concepção de educaçãointegral para os integralistas. Emrelação a ela, destacamos o seguintetrecho:FOLHA CORRIDA – A Ação IntegralistaBrasileira comparecerá às eleições de3 de janeiro próximo, com a seguintefolha corrida: [...] – Instalou 3.246núcleos municipais, onde exerce umaobra educacional e de assistênciasocial notabilíssima, mantendo maisde 3.000 escolas de alfabetização,mais de l.000 ambulatórios médicos;centenas de lactários; numerososgabinetes dentários e farmácias; centenasde campos de esporte; centenasde bibliotecas. [...] – Realizounas 240 semanas de sua existência,em 3.000 núcleos, 720.000 conferênciaseducacionais. [...] – Mantémescolas de educação moral, cívica efísica, onde ministra aos moços quearranca dos prazeres fúteis e da velhiceprecoce, lições de ginástica,atletismo, esgrima, jogos esportivos,prodigalizando-lhes também aulas dehistória e moral cívica. 18Conforme podemos verificar, esta folhaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 91


A C Ecorrida é, na verdade, uma espécie de prestaçãode contas, com a qual os adeptos doSigma apresentaram-se ao pleito eleitoralde 1937. Em sua totalidade, esse documentoconta com 17 pontos arrolados,apontando os feitos do movimento, em váriosníveis e abrangência. Nesse grupode atividades desenvolvidas pelosintegralistas, pelo menos três relacionamseestritamente a atividades educativasque, analisadas com mais profundidade,nos permitem confirmar uma concepção deeducação integral.O primeiro ponto apresentado afirma quea AIB instalou mais de três mil núcleosmunicipais. Pelo texto, em cada um dessesnúcleos funcionavam escolas de alfabetizaçãoe biblioteca; ambulatórios médicose toda uma assistência em saúde,além de áreas para a prática desportiva.Tal aparato socioeducativo nos permite entenderos núcleos municipais como centrosirradiadores de uma “obra educacional ede assistência social” próxima a que preconizamalgumas concepções de educaçãointegral. 19No mesmo trecho apresentado, encontramosoutra referência à obra educacionaldo movimento: a realização de inúmerasconferências educacionais, também dentrode seus núcleos municipais. Essa segundaconstatação nos permite pensar na hipótesede que, a par das atividadessocioeducativas regulares, os integralistasplanejavam e executavam palestras que,de certa forma, conduzissem o olhareducativo de seus adeptos para uma formaintegralista de conceber a educação e/ou o ensino.Finalmente, o último ponto destacado confirmaa manutenção de escolas. Nesse espaçoformal, havia aulas de moral e cívicae atividades esportivas. Essa junção abrecaminho para a consecução do ideáriointegralista, na medida em que, a par dasatividades físicas – em que competição ehierarquia podem se fundir –, os adeptosdo Sigma eram “trabalhados” em relaçãoà sua veia nacionalista e a seu comportamentoético.Uma análise dessas atividades, em conjunto,nos permite inferir que no movimentointegralista: havia preocupação com a educação,vista como uma prática capaz dereproduzir seu ideário; a educação comportavaaspectos que visavam ao homem porinteiro, não se limitando às atividades intelectuais.Ao contrário, levava em conta atividadesesportivas, de moral e cívica e, ainda,atividades profissionais; os núcleosmunicipais congregavam diversas atividadessocioeducativas, no afã de reproduzirseu ideário, consolidando, assim,uma concepção singular de educação integral.Nesse sentido, e a partir dos primeiros levantamentosefetuados em relação aotema, entendemos que a singularidade doprojeto de educação integral dosintegralistas encontra-se no fato de estesprescindirem de um espaço formal para arealização de sua missão socioeducativa.Em outras palavras, percebemos que suaconcepção de educação integral não depen-pág. 92, jan/dez 2005


R V Odia da construção de espaço própriopara sua consolidação. Ao contrário, elase organizava em vários espaçoseducativos, fossem estes formais ou nãoformais.É possível ainda inferir que eram os núcleosmunicipais os centros irradiadores dessaproposição, uma vez que, a partir desuas ações, eram mantidas escolas de alfabetizaçãoe, ao mesmo tempo, de educaçãomoral e cívica, física e esportes, alémde bibliotecas e outros espaços culturais.Essa constituição dependia, provavelmente,da estrutura organizacional decada núcleo municipal: aqueles mais organizadostalvez desenvolvessem um trabalhosocioeducativo mais diversificadoe consistente; já os menos estruturados,possivelmente edificariam algumas atividadespontuais – quem sabe escolas dealfabetização, uma vez que o mesmo trechoque destacamos aponta a existênciade “mais de 3.000 escolas de alfabetização”.A partir do texto retirado de OTherezopolis, verificamos, então, que afunção da educação confundia-se com osobjetivos ético-filosóficos do movimento, nointuito de reproduzir, politicamente, o modelode homem e de sociedade preconizadospelo integralismo. Ou seja, mais umavez, temos a educação a serviço de interessesespecíficos. E, no caso específicoda educação integral, mais uma posiçãoconservadora em seus fundamentos epragmática nas ações engendradas paraimplantá-la.NOTÍCIAS DE ÚLTIMA PÁGINA...Em termos históricos, nossa investigaçãoacerca do tema –concepções de educação integral– ainda é incipiente. Os três ensaios queapresentamos sobre essa concepção, 20dentro do integralismo, abordam nossasprimeiras incursões com fontes primáriasrepresentativas do movimento e daquelaconcepção, bem como com fontes documentaispreciosas, quais sejam periódicossimpatizantes e pouco pesquisados – oununca pesquisados – por encontrarem-seem municípios do estado do Rio de Janeiro,e não em sua capital. Esse foi o motivodesencadeador do título do artigo aqui apresentado,e de suas reflexões, pois acreditamosque as fontes impressas, sobretudoquando relacionadas a localidades que nãose caracterizam como grandes centros,podem conter história(s) capazes de ajudarna compreensão da história.Nesse sentido, consideramos significativasas notas relativas à manutenção da escolade alfabetização no núcleo distrital deVieira, a fim de que mais crianças tivessemacesso à educação formal. Seria essauma prática comum do movimento, tambémem outras localidades do país? Ou ascondições objetivas, específicas do municípiode Teresópolis, possibilitaram essaprática?Em relação ao semanário O Therezopolis,foram ainda compilados ou reproduzidosartigos do próprio Plínio Salgado e deGustavo Barroso, entre outros mentores doSigma; notas e comunicações explícitas daAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 83-94, jan/dez 2005 - pág. 93


A C EAção Integralista Brasileira; pensamentos,poemas e textos de simpatizantes do movimento.Acreditamos que o rico materialencontrado precisa ser trabalhado, destafeita buscando a voz daqueles que, vivendonaquele período, podem contribuir nomelhor entendimento dessa página de nossahistória educacional.N O T A S1. Rosa Maria Feiteiro Cavalari, Integralismo: ideologia e organização de um partido de massasno Brasil, Bauru, São Paulo, EDUSC, 1999.2. O periódico O Therezopolis é citado na obra de Cavalari como impresso de cunho integralista,no período de 1932 a 1937 (Rosa M. F. Cavalari, op. cit., anexo II, p. 222).3. Nesse sentido, foi utilizada a obra de L. Bardin, Análise de conteúdo, Lisboa, 1977.4. Marta Maria Chagas de Carvalho, A escola e a República e outros ensaios, Bragança Paulista,EDUSP, 2003, p. 11.5. Belisário Penna, A mulher, a família, o lar e a escola, in Plínio Salgado, Enciclopédia dointegralismo, volume IX, p. 52.6. Rosa M. F. Cavalari, op. cit., p. 46.7. Aires, in Plínio Salgado, Enciclopédia do integralismo, op. cit., p. 74-75.8. Paupério e Moreira apud Rosa M. F. Cavalari, op. cit., p. 47.9. Rosa M. F. Cavalari, op. cit., p. 72.10. O Therezopolis de 9 de setembro de 1934.11. O Therezopolis de 30 de setembro de 1934.12. O Therezopolis de 14 de julho de 1935.13. O Therezopolis de 4 de agosto de 1935.14. O Therezopolis de 19 de abril de 1936.15. O Therezopolis de 21 de março de 1937.16. O Therezopolis de 23 de maio de 1937.17. J. C. Severino; M. R. M. Jacomeli e T. M. T. Silva (orgs.), O público e o privado na história daeducação brasileira, Campinas, Autores Associados, HISTEDBR; UNISAL, 2005.18. O Therezopolis de 5 de setembro de 1937.19. Os estudos que empreendemos até o momento acerca da educação integral nos permitemafirmar que esta categoria de análise, para além de um conceito mais geral e abrangente, quea identifica como uma educação do todo do ser humano, em seus aspectos intelectual,artístico, físico, de saúde, cultura e trabalho, reveste-se também de fundamentos e práticasespecíficas à ideologia que a defende. Nesse sentido, destacamos a existência de concepçõesconservadoras, liberais e progressistas – socialistas – de educação integral.20. Referimo-nos a trabalhos completos, apresentados nas IV e V Jornadas do HISTEDBR (2004e 2005), no III Congresso <strong>Nacional</strong> de História da Educação (2004) e no XXIII Seminário<strong>Nacional</strong> de História (2005).pág. 94, jan/dez 2005


R V ONilson ThoméProfessor na Universidade do Contestado (UnC).Mestre em Educação. Sub-Coordenador do GT HISTEDBR–Contestado–UnC.Doutorando em História da Educação na Faculdade de Educação da Unicamp.Escotismo em Caçador (SC)Uma instituição extra-escolar prejudicadapelo nazismo, fascismo, integralismoe nacionalismoEste estudo é pioneiro no âmbito doMovimento Escoteiro no estado de SantaCatarina, e foi elaborado paraproporcionar um início à história dosgrupos que surgiram no século XX, a maioria juntoaos estabelecimentos de ensino, para proporcionareducação moral, cívica e física à mocidade, comoo que foi verificado na cidade de Caçador por trêsoportunidades, as duas primeiras sacrificadas pelarepressão ao nazismo, ao fascismo, aointegralismo e pelo excesso de nacionalismo.Palavras-chave: instituições escolares, escotismo,Caçador, história.This study is pioneering in the scope ofthe Scouting Movement in the State ofSanta Catarina, and was elaborated toprovide a beginning to History of thegroups that had appeared in century XX, the togethermajority to the educational establishments, toprovide moral, civic and physical education to theyouth, as what it was verified in the city of Caçadorfor three chances, the two first ones sacrificed forthe repression to nazism, fascism, the integralismoand for the nationalism excess.Keyswords: school institutions, scouting for boys,Caçador, history.Este ensaio aborda o MovimentoEscoteiro na cidade de Caçador,pólo microrregional do Contestado,aqui categorizado como instituiçãoextra-escolar, em três momentos distintos,ou seja, envolvendo três organizaçõesdiferentes, nascidas em tempos distintos,das quais as duas primeiras foramalvo de diferentes formas de repressão.O tema é relevante neste momento deresgate de fontes para a construção dahistória da educação brasileira, noenfoque das instituições escolares, quandose voltam as atenções também paraas organizações extra-escolares, peloseu papel de contribuição à educação dajuventude brasileira.O primeiro grupo, que não existe mais,Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 95


A C Esurgiu no ano de 1931, por iniciativa docasal Dante e Albina Mosconi, imigrantesitalianos, educadores que instituíramna cidade de Caçador o primeiro estabelecimentode ensino secundário do interiordo estado de Santa Catarina. O segundo– que também não existe mais –surgiu pouco depois da decretação do EstadoNovo, por inspiração de políticos, autoridadese militares, em 1939. O terceiro– em plena atividade – teve origemno interior do Colégio Aurora, em 1960,por iniciativa da congregação religiosa dosIrmãos Maristas, que assumiu oeducandário do casal Mosconi. Ambosnasceram para proporcionar formas alternativasde educação à juventudecaçadorense, com maior valorização àsquestões ligadas à cidadania, à observaçãoda natureza, ao respeito aos princípiosde moral e cívica, e à formação docaráter.No Brasil, a instituição do escotismo, tidacomo extra-escolar (paraescolar), pelasua natureza, enquadra-se historicamenteentre as instituições escolares destinadasa complementar a educação formal nosestabelecimentos de ensino, e estevemuito em voga no Brasil após o EstadoNovo de 1937, com ênfase após aRedemocratização de 1946. Suas atividadesabrangiam clubes agrícolas, pelotõesde saúde, jornais, murais, ligas debondade, ligas pró-língua nacional, bibliotecas,círculos de pais e professores,associações de pais e ex-alunos, clubesde leitura, varais literários, grêmios estudantisetc. Assim, o escotismo é reconhecidono país como uma instituiçãoextra-escolar. No prefácio do livro Educaçãomoral e cívica, destinado aos alunosdo então 1º grau, a autora, LourdesLucia de Bortoli Groth, escreve:A você, estudante: [...]. Você estudarámoral e civismo de uma formadiferente e agradável, através de métodosmodernos. Para acompanhá-loem seu curso escolhemos os escoteiros,pois eles agem sempre comtotal respeito à moral e ao civismo.Além disso, o escotismo é reconhecidopor decreto federal como umainstituição de educação extra-escolar. 1Para compor este trabalho, elegemosapenas os principais marcos evolutivos ecaracterizadores do Movimento Escoteiro,sabendo que há campo para se escrevermuito mais sobre ele. Dessa forma,consideramos este artigo uma singelacontribuição aos trabalhos de resgateda memória histórica da juventude estudantilcaçadorense e do Contestado, especificamentena área da educação.ESCOTISMO E HISTÓRIAPresente em Caçador no ano de2005 com o Grupo EscoteiroPindorama, 2 o escotismo é umaorganização mundial de voluntariado, deeducação extra-escolar voltada para jovens,com a colaboração espontânea deadultos, sem vínculos político-partidários,que valoriza a participação de pessoasde todas as origens sociais, raças e crenças,de acordo com o propósito, os prin-pág. 96, jan/dez 2005


R V Ocípios e o método escoteiro concebidospelo seu fundador, o general inglês BadenPowell.Escotismo: [...] O escotismo é, essencialmente,método educacional eforma de vida. [...]. Após quase sessentaanos de vida, com milhões deadeptos em todo o mundo, o escotismocontinua em plena expansão,apesar das duas guerras mundiais eda violenta hostilidade que sofreudos governos totalitários. Seu valoreducativo, demonstrado nestes decênios,estriba-se essencialmente noseu realismo sadio, tomando o meninoe o rapaz, tais quais eles são eno seu idealismo sincero, apresentandocomo metas o domínio de simesmo e a dedicação aos outros,através de uma vida simples e plenade contato com a natureza. 3O propósito do Movimento Escoteiro emnível mundial é contribuir para que osjovens assumam seu próprio desenvolvimento,especialmente do caráter, “ajudando-osa realizar suas plenaspotencialidades físicas, intelectuais, sociais,afetivas e espirituais, como cidadãosresponsáveis, participantes e úteisem suas comunidades, conforme definidopelo seu projeto educativo”. 4 Internacionalmente,o conceito de escotismoexpressa queé um movimento educacional parajovens, sem fins lucrativos, com a participaçãode adultos voluntários. Fundadopelo militar inglês Baden Powellem 1907, e praticado por milhares dejovens por todo o mundo. Busca odesenvolvimento físico, mental, social,espiritual, de caráter e afetivo dosseus participantes através de um sistemade educação informal, baseadoem atividades práticas (o chamadoaprender fazendo) e na vida mateira.É organizado internacionalmente pelaOrganização Mundial do MovimentoEscoteiro (OMME). Apesar de se assumircomo um movimento sem vínculospolítico-religiosos, existem gruposvocacionados para determinadasconfissões religiosas. 5A organização, que complementa a funçãoda família, da escola e da religião,desenvolvendo para o jovem o caráter, apersonalidade e a boa cidadania,modernamente enquadrada no chamado“terceiro setor” da sociedade, objetivadesenvolver um comportamento baseadoem valores éticos, por meio da vidaem equipe, do espírito comunitário, daliberdade responsável e do estímulo aoaprimoramento da personalidade,quer no campo individual, quer no campocoletivo.Conta-se que tudo começou durante aGuerra do Transval, em 1899. BadenPowell comandava a guarnição do entroncamentoferroviário de Mafeking, cujaposse era de grande valor estratégico. Acidade foi durante meses vítima de ataquesde forças inimigas muito superiores,e só se manteve graças à inteligência ecoragem de seu comandante, cujas ati-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 97


A C Etudes inspiravam a atuação de seus comandados.Como dispunha de poucossoldados, ele treinou todos os homensválidos da cidade para usá-los como combatentese para os serviços auxiliares,primeiros socorros, comunicação, cozinhaetc., organizando um corpo de cadetescom adolescentes na cidade. As maneirascomo os jovens desempenhavamsuas tarefas, seus exemplos de educação,lealdade, coragem e responsabilidade,causaram grande impressão emBaden Powell e, anos mais tarde, esteacontecimento teria grande influência nacriação do escotismo.Promovido ao posto de major-general,Baden Powell tornou-se muito popular aosolhos de seus compatriotas e lançou umlivro, dirigido para militares, chamadoAids to scouting (Subsídios para reconhecimento).Em 1907, com um grupo devinte rapazes de 12 a 16 anos, BadenPowell foi para a ilha de Brownsea, pararealizar o primeiro acampamento escoteiro,ensinando-lhes, na ocasião, atividadesimportantes como: primeiros socorros,observação, técnicas de segurançapara a vida na cidade e na florestaetc. O sucesso do livro, não só diante dopúblico militar, mas também frente aopúblico jovem, 6 o incentivou a reescreveruma versão especialmente para rapazes.Em 1908, escreveu o seu manualde adestramento, o Escotismo para rapazes,em capítulos quinzenais que, inicialmente,foi publicado em fascículos evendidos nas bancas de revistas e jornais.Os jovens ingleses se entusiasmaramtanto com o livro que ele resolveuorganizar e fundar o MovimentoEscoteiro.Em seguida, em 1910, Baden Powell compreendeuque o escotismo seria a obraque ele dedicaria a sua vida, e para tantose afastou do Exército, dedicando-seapenas ao Movimento, que, rapidamente,se espalhou por vários países do mundo.Dois anos depois, 123 mil escoteirosestavam espalhados pelas nações quefaziam parte do império britânico. Comisso, a Coroa inglesa reconheceu a utilidadeda organização, que prestava relevantesserviços ao país, colaborando nosesforços de mobilização e assistência emconflitos.O ESCOTISMO NO BRASILEm 1907, ano que o MovimentoEscoteiro (Scouting for Boys)havia sido fundado, vários oficiaise praças da Marinha brasileira estavamna Inglaterra e se impressionaramcom esse novo método de educação complementarque Baden Powell havia idealizado.Entre eles estava o sub-oficialAmélio Azevedo Marques que inscreveuseu filho, Aurélio, em um grupo escoteirolocal, o qual tornou-se o primeiro escoteirobrasileiro, ainda que fora dopaís.O escotismo foi introduzido no Brasil em1908, por intermédio desses marinheirose oficiais de nossa Marinha, que trouxeramconsigo uniformes escoteiros e ointeresse de semear o movimento no Bra-pág. 98, jan/dez 2005


R V Osil. No dia 14 de junho de 1910, foi oficialmentefundado, no Rio de Janeiro, oCentro de Boys Scouts do Brasil. A partirde 1914, surgiram em outras cidadesvários núcleos, dos quais o mais importantefoi a Associação Brasileira de Escoteiros(ABE), em São Paulo. A ABE espalhouo movimento escoteiro por todo opaís e, em 1915, já contava com representaçõesna maioria dos estados brasileiros.Nesse mesmo ano, uma propostapara reconhecer o escotismo como deutilidade pública resultou no decreto nº3.297 do Poder Legislativo, sancionadopelo presidente Wenceslau Braz em 11de junho de 1917. Seu art. 1º estabelecia:“São considerados de utilidade pública,para todos os efeitos, as associaçõesbrasileiras de escoteiros com sedeno país”.O Movimento só ganhou amplitude nacionalcom a fundação da União dos Escoteirosdo Brasil (UEB), em 1924, que começouo processo de unificação dos diversosgrupos e núcleos escoteirosdispersos no país. O escotismo é praticadono Brasil por pessoas físicas ou jurídicasautorizadas pela UEB, 7 como asseguraa legislação, expressa no decretonº 5.497, de 23 de julho de 1928, e nodecreto-lei nº 8.828, de 24 de janeirode 1946. Desde sua fundação, a UEB étitular do registro internacional junto àOrganização Mundial do Movimento Escoteiro– World Organization of the ScoutMovement (WOSM) –, possuindo exclusividadepara implementação, coordenaçãoe prática do escotismo no Brasil.O ESCOTISMO EM CAÇADORTrês são os grupos escoteirosreferenciados neste artigo,cada qual com sua própria história.Aqui veremos os dois primeiros.O primeiro grupoExiste nas referências históricas do “velho”Ginásio Aurora um vago registro deque, no ano de 1931, o terceiro-sargentodo Exército Milton Moresqui criou oprimeiro grupo de escoteiros junto aoestabelecimento. Ele era seu professorde educação física e instrutor da Escolade Instrução Militar nº 354 (depois Tirode Guerra nº 568, mais tarde nº 172 e,hoje, Tiro de Guerra 005-006), que funcionavano mesmo prédio. O pequenogrupo de escoteiros – dois dos quais identificamoscomo tendo sido DomingosPaganelli e Laurindo Faoro 8 – contou coma liderança da sra. Albina Mosconi, esposado sr. Dante Mosconi, fundadoresdo Ginásio Aurora 9 em 1928. Entretanto,o grupo não foi registrado oficialmentee essa iniciativa não teve prosseguimentomais alongado no tempo, paralisandoanos depois.Segundo Domingos Paganelli, 10 o gruponasceu para complementar a educaçãodos meninos no Ginásio Aurora, e praticamentetodas as crianças eram, paralelamente,alunas e escoteiras. “Até o uniformeera o mesmo”, explica ele, tambémlembrando que, logo depois, “veioa ser muito forte a influência dointregralismo no Ginásio Aurora, ondeAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 99


A C Equase todos os professores eramintegralistas ‘de carteirinha’, pregandocom muita ênfase as idéias de Plínio Salgadoem sala de aula e nas atividades deescotismo, isso até por volta da segundametade dos anos trinta”.Em 1938, diante do desencadeamento da“Campanha da <strong>Nacional</strong>ização” no governoVargas, atingindo indistintamente todosos estrangeiros, agora considerados“inimigos do país”, sobretudo italianos ealemães, Dante Mosconi vendeu o GinásioAurora para a Congregação dos IrmãosMaristas, que chegaram em Caçadore assumiram o estabelecimento noinício de 1939.O segundo grupoE foi em seguida que outro movimentoescoteiro no município de Caçador nasceunesse ano de 1939, não mais no interiordo Ginásio Aurora, mas, dessa vez,por iniciativa da sociedade civil, lideradapelo jornalista Cid Gonzaga, depois detransferir residência de Porto União paraCaçador e ter lançado o seu jornal A Imprensa,este também de lá transferido.O jornal era semanário e já estava noquinto mês de funcionamento, quandoestampou em primeira página a seguinteinformação: “Caçador terá escoteiros.Anexo aos escoteiros virão as jovens bandeirantes.Será instrutor da tropa o Tte.Dois escoteiros (o da direita é Luiz Paganelli) da Tropa Marechal Guilherme, de Caçador (SC),em frente ao Museu Ipiranga, em São Paulo, em janeiro de 1940 (foto do arquivo do autor)pág. 100, jan/dez 2005


R V OEloy Mendes. Podemos garantir aos pequenoscidadãos de Caçador e seus respectivospais que em breve será criadonesta cidade um batalhão de escoteiros”.11Eloy Mendes era primeiro-tenente da ForçaPública de Santa Catarina e delegadoespecial de Polícia de Caçador. Na seqüência,em 9 de julho de 1939, o jornalestampou novo anúncio: “Aos jovensde Caçador de 10 a 17 anos de idadefazemos ciente que na Redação d’A Imprensaestá aberta a inscrição para aformação do grupo local de escoteiros”.Aqui, o registro da investidura do primeirogrupo, 12 no dia 25 de agosto do mesmoano:Teve invulgar solenidade este ano oDia do Soldado. O Tiro de Guerra 568anexo ao Ginásio Aurora jurou bandeira.À direita do batalhão ginasialformou o grupo de escoteiros, quetambém jurou bandeira neste dia. Às4 horas, o chefe Cid, a convite dosargento Siqueira, deferiu o juramentoa 26 escoteiros aí formados defrente do pavilhão da pátria, acompanhadoda sua guarda. 13Ainda segundo A Imprensa, na sua ediçãode 16 de setembro de 1939, o médicodr. Campelo de Araújo (que realizouos exames médicos) e o tabelião localsr. Manoel Siqueira Belo ofereceram umpavilhão nacional para ser hasteado naCaserna, a qual passou a ter, no seu pórtico,a legenda “Aqui se agrupam as esperançasda pátria”.No dia 16 de outubro de 1939, o gruporecebeu o registro nº 53 na Federação,com o nome oficial de Tropa MarechalGuilherme Xavier de Souza. A denominaçãohomenageou esta personalidade brasileiraque alcançou a patente de marechal-de-campoe foi presidente da provínciado Rio Grande do Sul, de 14 de julhoa 1º de agosto de 1868, dois anos antesde seu falecimento. Conhecido comomarechal Guilherme, 14 ele foi substitutointerino do marquês de Caxias no comandodo Exército na Guerra do Paraguai,depois que Caxias entrou em Assunçãoe retornou ao Brasil e foi elevado a duque.Nesse período, também foi organizadoo primeiro grupo de Bandeirantes, 15sendo eleita sua diretoria. Na seqüência,já em janeiro de 1940, foi oficialmenteorganizada a Associação de BandeirantesDelminda Silveira, 16 sendo nomeadachefe a srta. Nayá Gonzaga, filha do jornalistaCid Gonzaga.De 22 de janeiro a 2 de fevereiro de1940, sob o comando do chefe ArthurSchneider, a Tropa Marechal Guilhermeesteve em São Paulo, participando degrande acampamento nacional “AJURI”,representando a Federação de Escoteirosdo Paraná e Santa Catarina. Lá, inclusive,foi visitada pelo governadorAdemar de Barros.Nesse tempo, diversos estrangeiros – alemãese italianos –, além de sofreremoutros tipos de constrangimentos físicose morais, foram detidos na cadeia públicade Caçador e, humilhados, foram sub-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 101


A C Emetidos a trabalhos forçados como“calceteiros”, para revestir com paralelepípedosalgumas ruas da cidade, e como“garis”, para a limpeza e coleta de lixoem outras ruas. A partir de maio de1940, não há mais notícias dascorporações de escoteiros e de bandeirantes.Os agrupamentos teriam se dissolvidologo em seguida à partida de Caçadordo chefe Clemenceau Amaral, quehavia sido transferido.ESCOTISMO X JUVENTUDEHITLERISTAEstamos propensos a crer que oMovimento Escoteiro foi duramenteprejudicado no Brasillogo após a decretação do Estado Novo,a 10 de novembro de 1937, e, com maisintensidade, com as campanhas de nacionalizaçãodo ensino, empreendidas peladitadura na nação e pelos interventoresestaduais, entre 1939 a 1943, atingidopelas muitas similaridades do escotismocom o movimento da Juventude Hitlerista(Hitlerjugend) no Brasil. 17 Em 1938, foramvedadas aos estrangeiros as práticase atividades políticas no Brasil, como que as organizações teuto-brasileiraspassaram a atuar na clandestinidade.Justamente por ser uma organização similar,as autoridades da segurança nacionalteriam desestimulado o MovimentoEscoteiro nos moldes em que vinha acontecendo.Em documento datado de 29 de novembrode 1937 (menos de vinte dias apósa decretação do Estado Novo por GetúlioVargas), em Porto Alegre, membros daentão já camuflada “Juventude Hitleristano Brasil”, sob a sigla UdJTB, publicaramum manifesto intitulado Objetivos e obrada União da Juventude Teuto-Brasileira,documento que sugere a aproximaçãoentre a JH e os escoteiros. Vejamos:Acampamentos, raids, atletismo, educaçãoteórica em reuniões semanais,cultivo de música e cantos em geral,como a arte de ofícios, são os meioseficazes desta educação. Os acampamentose raids nos fazem conhecera grandeza do Brasil, a sua magníficanatureza, nos levam ao interiorpara travar relações com a populaçãodos campos, da colônia e conhecerseus costumes. O atletismotorna a juventude robusta e sadia,preparada para a luta das armas e davida. [...].A Juventude Teuto-Brasileira está organizadaem quatro regiões: Rio Grandedo Sul, Santa Catarina, São Paulo,Paraná e Rio de Janeiro. Ascorporações locais são divididas emgrupos pequenos de 10 a 12 jovens,masculinos ou femininos, nas idadesde 8 a 14 e de 15 a 20 anos. [...].A UdJTB é uma agremiação puramentebrasileira. Não tem ligações comquaisquer grupos políticos ou sociedadese especialmente não é ligadaa organizações alemãs. Como mantemosrelações muito amistosas comos “Escoteiros do Mar”, também asmantemos com outras agremiaçõespág. 102, jan/dez 2005


R V Ode juventude, entre outras com osescoteiros da Argentina, do Uruguaie da Alemanha. Temos aproveitadoalgumas experiências destascorporações, mas nunca tentamosimplantar em nossa estrutura coisasestranhas ao ambiente de nossaPátria. 18Na repressão policial aos nazistas, a 8de maio de 1939, o jovem ArmínioHufnagel, de 23 anos, residente em PortoAlegre, um dos chefes da JuventudeHitlerista no Brasil, foi detido pela políciado DOPS, quando, interrogado sobreseu envolvimento, entre outras respostas,declarou:[...] a contar do ano de 1932, o declaranteera apenas sócio ativo, gozandode todos os direitos que lheeram concedidos pelos regulamentose participando de todas as reuniões,festas e acampamentos realizadospela referida “União da Juventude”,que, em junho de 1935, o declarantefez parte de um grupo de escoteiros,membros da “Juventude Teuto-Brasileira” e em número de quinze rapazes,todos chefiados pelo dr. HansNeubert, para o fim de empreenderemuma viagem à Alemanha, atendendoa um convite do chefe da “JuventudeHitlerista” [...].[...] que, chegados à cidade deBerlim, foram logo encaminhadospara um grande acampamento debarracas, onde permaneceram peloespaço de quatorze dias, recebendoas mais variadas instruções militares;que o número de escoteiros presentesem tal acampamento atingia adois mil e quinhentos mais ou menos[...]. 19Já em 3 de outubro de 1939, o mesmoArmínio Hufnagel, novamente interrogadopor policiais do DPS/RS, apresentouvínculos mais estreitos entre escoteirose jovens hitleristas, constando em seudepoimento que:Veio a residir em Porto Alegre noano de 1932, procurando imediatamentecontato com escoteiros eindo enfileirar-se na “DeutschJungenschaft”, um departamento deescoteiros do Turnerbund; que emfins do ano de 1933 surgiu em PortoAlegre uma nova organização,que se denominava “DeutscheJungenschaft” [...]; que a nova organizaçãose distinguiu muito das associaçõescongêneres daquela época,porque pregava sobretudo a conservaçãoda raça e do sanguegermânico e manutenção estrita dalíngua e dos costumes dos antepassados;que esta nova organizaçãojuvenil não era outra coisa que umreflexo do desenvolvimento do Partido<strong>Nacional</strong>-Socialista, que naquelaépoca estava se instalando na Alemanhae por todo o mundo afora; [...]que devido à grande influência queErwin Wener Becker exercia sobre osescoteiros de seu grupo, conseguiuarrastar para a “DeutscheAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 103


A C EJungenschaft” mais ou menos quarentaescoteiros pertencentes ao Departamentode Turnerbund, resultandoo fechamento deste departamentopor falta de membros. 20Um dos congressos internacionais de jovensnazistas, conhecidos como Congressoda Juventude Hitlerista, aconteceu emNürenberg, em setembro de 1937, como grupo brasileiro sendo prestigiado pelodr. Goebbels, ministro da Propaganda deHitler, que os recebeu em audiência.Houve três excursões do gênero à Alemanhaaté fins de 1939. Os principaisrepresentantes da Juventude Hitlerista noBrasil, que para lá iam a convite, comtodas as despesas pagas pelo governoalemão, 21 recebiam um curso para chefes,na Alemanha, com ensinamentos quedeveriam repassar para chefes-instrutoresde grupos no Brasil.Durante a repressão ao nazismo em SantaCatarina, verificou-se que o PartidoNazista havia determinado que, já a partirde 1935, a Juventude Hitlerista e aAgremiação de Moços Alemães deveriamconstituir uma organização única, sob adenominação Deutsch-BrasilianscherJugendring – DBJ (Círculo Juvenil Teuto-Brasileiro). As autoridades policiais doDOPS/SC observaram que[...] em dias de festas comemorativasde datas alemãs, espetáculoscontristadores, diante das fanfarronadase passeatas caracteristicamentemilitares, realizadas pelos nazistasfardados, ostentando bandeirase flâmulas com a cruz suástica, puxadasa rigor pelas suas bandas decornetas e tambores, sendo que, emvia de regra, nestas demonstraçõesde desrespeito à nossa soberania,desfilavam centenas de crianças brasileirasde sangue germânico, pertencentesà Juventude Teuto-Brasileira. 22ESCOTISMO X JUVENTUDEINTEGRALISTAOutro fenômeno que parece terprejudicado o Movimento Escoteirofoi o do intregralismo,uma organização do tipo fascista, inspiradanos moldes italianos e oficializadano Brasil em 1932 com a criação da AçãoIntegralista Brasileira (AIB), liderada porintelectuais antiliberais. Expandiu-se portodo o país, chegando em 1936 a contarcom 800 mil filiados. O movimento eraultraconservador, nacionalista e de cunhoanticomunista. Sob a liderança maior dePlínio Salgado, com o lema “Deus, Pátriae Família”, configurou-se como positivistae de extrema-direita, apoiado por importantessegmentos da Igreja Católica e doExército brasileiro. O integralismo criousuas milícias, organizações paramilitarese de controle ideológico, cujos membrosuniformizados eram conhecidos como“camisas-verdes”. O movimento atuoutambém junto à mocidade brasileira naorganização, formação e apoio a gruposde escoteiros e de bandeirantes, comoinstrumento para a criação de uma novacultura nacional. 23pág. 104, jan/dez 2005


R V OA hierarquia atingia também a JuventudeIntegralista, conhecida como“plinianos”. As crianças eram iniciadase formadas no movimento dos 4aos 15 anos, com os infantes, oscurupiras, os vanguardeiros e os pioneiros.Deviam obediência aos seussuperiores em linha rígida e autoritária.Ao completarem 16 anos, todosse inscreviam nas forçasintegralistas: milícia, decúria, terço,bandeira ou legião. Com a energia dapregação dos seus líderes, não recuavamperante a violência, cabendosalientar que as mulheres tambémeram aceitas nas organizações domovimento. 24Após a Intentona Comunista de 1935, osintegralistas ampliaram o apoio ao governode Getúlio Vargas. Este, demonstrandoao público estar ameaçado por umsuposto avanço dos comunistas, aplicouo golpe de Estado de 10 de novembro de1937, decretando o Estado Novo, e atingindotambém os integralistas. Foi iniciadauma campanha pública contra ointegralismo, que culminou, em 2 de dezembro,com a proibição de funcionamentode partidos políticos e odesencadeamento de ação policial contraas sedes da AIB no país. Osintegralistas burgueses reagiram, mas jáem março de 1938 foram alcançadospela forte e violenta repressão. Ointegralismo foi fortemente identificadocom o fascismo e, no Sul do Brasil, especificamenteno Rio Grande do Sul eem Santa Catarina, foi acusado de terse aliado ao nazismo, servindo de disfarcepara a expansão deste outro fenômeno.Na Juventude Integralista, os chamados“plinianos” passavam por um processo desocialização ideológica, abrangendo atotalidade de suas atividades, graças auma formação dirigida e autoritária, quePrimeiros noviços da Patrulha do Leão, do Grupo Escoteiro Pindorama,de Caçador (SC), em frente ao Colégio Aurora, em fevereiro de 1961 (foto do arquivo do autor)Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 105


A C Evisava desenvolver a personalidade e osentimento cívico, e estimular a educaçãofísica e intelectual. Essa organizaçãode juventude era muito semelhante àcongênere do Partido <strong>Nacional</strong> FascistaItaliano. Através da instrução, o departamentodos “plinianos” brasileiros pretendiadesenvolver entre os jovens e as criançasintegralistas o sentimento decivismo, aprimorando-lhes o caráter,promover o seu desenvolvimento físico,pela prática de jogosdesportivos, excursões e passeios,e o desenvolvimento intelectual,moral e profissional, ensinando-lhestodos os serviços úteis à coletividade,trabalhos domésticos, além dainstrução primária e da educaçãomoral e profissional, fazendo damenina uma futura mãe de família,consciente da sua nobre função depreparar a criança, formando-lhes ocaráter, dar-lhe energia e nobreza desentimento. 25O departamento dos plianianos, dentroda estrutura hierárquica da AçãoIntegralista Brasileira, dividia-se em “direções”e “grupos” com a mocidade sendoatendida por “divisões”: “A Divisão deEscotismo compreendia uma seção Técnicae uma seção de Serviço. A primeiraabrangia os serviços de organizações,operações e instrução; e a segunda compreendiaos de intendência, saúde e disciplinae justiça”. 26 Segundo Trindade, aDivisão de Escotismo compreendiainstrução paramilitar, com uma seçãotécnica para elaboração dos planosde operações e um acampamento-escolacom o objetivo de ensinar comose tornar chefe [...]. Os meninos e asmeninas devem usar uniforme (camisaverde, calça branca ou azul, sapatospretos, casquete negro ou chapéusde escoteiro) e um equipamentopara acampamento da tropa. 27Ainda segundo Trindade:De 4 a 8 anos, os jovens italianosfazem parte do grupo “Filhos daLoba” (criado em 1931). Aos 8 anos,começam as coisas sérias. O meninosingressam nos “Balilla” e recebemuniforme, armas fictícias, participamem desfiles e paradas, para darlheso gosto pela vida em comum epela atividade militar. Durante estetempo as meninas recebem uma formaçãofísica e cívica no grupo das“Pequenas Italianas”. A partir dos 14anos, os meninos tornam-se“Avanguardisti”, as meninas “JovensItalianas”, isto até a idade de 18anos, quando todos são integradosnas juventudes fascistas. 28No caso específico de Caçador, o primeirogrupo escoteiro, formado na primeirametade da década de 1930, no interiordo Ginásio Aurora, sofreu forte influênciado integralismo e por causa da repressão– no início do Estado Novo – tantoseu diretor, o italiano Dante Mosconi, foiproibido de exercer a titularidade e omagistério, como os professores identifi-pág. 106, jan/dez 2005


R V Ocados com o integralismo foram afastadosdas funções. O grupo que surgiu depois,fora do quadro do Ginásio Aurora,sofreria por extensão o revés aplicadopela ditadura Vargas aos seus inimigos,sendo incorporado a outro movimento,oficioso e de cunho fascista, o da JuventudeBrasileira.Para o comando da 5ª Região Militar, queenglobava o Paraná e Santa Catarina, asescolas eram focos de orientação da doutrinanazista no Brasil. Tinha-se que oprojeto germânico obtinha sucesso naszonas de colonização alemã, usandocomo evidência a existência de associaçõesesportivas, culturais, recreativas ede classe, além de escolas e de uma vidanitidamente germânica, frutos da propagandaalemã expansionista e da buscade perpetuação da cultura por meio doensino da língua materna.Tratava-se, segundo Góis Monteiro,de uma pátria alemã em território brasileiro.Como a construção de umapátria engloba múltiplos aspectos davida coletiva, Góis Monteiro vai enumeraruma série de providênciassugeridas pelo comando da 5ª RegiãoMilitar, envolvendo a ação e atuaçãodos ministérios da Guerra, da Educação,da Justiça e do Trabalho. OMinistério da Guerra deveria desenvolvernúcleos de escoteiros, transformandoos existentes e criandonovos com a assistência de oficiaise sargentos capazes de imprimir umcunho verdadeiramente nacionalistaa essas organizações. Deveria aindacriar uma estratégia para “penetrar”nas associações esportivas, dandolhesinstrutores e forçando a aberturados quadros sociais a todos osbrasileiros, impedindo, dessa forma,a existência de entidades privativasestrangeiras. Sugere ainda a transferênciaou criação de unidades doExército nas zonas de maior influênciaestrangeira e, finalmente, umainvestida para forçar a aprendizagemda nossa língua nos quartéis, só fazendoa desincorporação para aquelesque falassem e escrevessem oportuguês com relativa facilidade. 29Nem todos os grupos e nem todos os escoteirosgaúchos e catarinenses tinhamsimpatia ou vínculos com as organizaçõesfascistas, nazistas ou integralistas daqueletempo. Mesmo assim, as medidas arbitráriasde repressão parecem ter alcançadodiretamente todos os corpos, 30 emmaior ou menor grau colocando-os nainatividade, ainda que temporariamente.ESCOTISMO E JUVENTUDE BRASILEIRAAditadura Vargas respondeu àinfiltração nazista e aointegralismo com uma intervençãona formação da juventude. Poridealização do ministro da EducaçãoGustavo Capanema, o Estado Novo produziuum outro fenômeno no Brasil: ainstituição da denominada Organização<strong>Nacional</strong> da Juventude, que seria orientadapelo Ministério da Guerra, depoisAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 107


A C Edenominada Juventude Brasileira, soborientação do Ministério da Educação. Ahistória registra que o ano de 1938 noBrasil foi especialmente fértil em medidaslegais e projetos identificados com aconstrução do nacionalismo brasileiro.Alguns desses projetos e medidas revelamo conteúdo doutrinário e político doprojeto nacionalista que se criava.Falar dessas medidas e projetos érelembrar o contexto da época. Foinesse ano que a investida integralistachegou ao seu apogeu e, simultaneamente,ao início de sua queda, poração repressiva do Estado. Foi nesseano que se formulou o projeto deOrganização <strong>Nacional</strong> da Juventude,em moldes fascistas e mobilizantesna sua concepção, evoluindo parauma experiência cívica sem maioresexpressões, por intervenção de setoresdo Exército. Foi também em1938 que a campanha de nacionalizaçãodo ensino chegou ao seu clímax,com a formulação e promulgaçãode um número substancial dedecretos-leis destinados essencialmentea deter a experiência educacionaldos núcleos estrangeiros naszonas de colonização. 31A Organização foi criada pelo decreto-leinº 2.072, de 8 de março de 1940, destinadaa ministrar educação moral, cívicae física à infância e à juventude, e veio aincorporar o Movimento Escoteiro atémeados de 1945, como explica ÍrisBarbieri:Desde a sua instituição até a suaextinção, percebe-se, através dos textoslegais, a redução de seus objetivos.O processo de redução se deupela maior ênfase que se destinou aocivismo, entendido como “consciênciapatriótica” em prejuízo da educaçãomoral como “elevação espiritualda personalidade” e da educação física.Esse fenômeno, mais a incorporaçãoda União dos Escoteiros doA Juventude Hitlerista desfilando num campo de esportes em uma cidade do interiorcatarinense. Foto de autor desconhecido, apreendida pelo DOPS/SC, com data provável de 1937pág. 108, jan/dez 2005


R V OBrasil à Juventude Brasileira, logo noinício de sua instituição (decreto-lei2.310, de 14 de junho de 1940) parase eliminar um poderoso concorrentee o sistema de controle estabelecidopor uma burocracia de comandoem linha, com origem no própriopresidente da República e participaçãodos ministérios da Educação,Guerra e Marinha, inequivocamenteinformam uma intenção do governofederal em interferir diretamente naformação da personalidade básica dobrasileiro, dotando-o de aspiraçõese ideais que apenas consultavam aosinteresses da Pátria, o que era comumnos anos de guerra que entãose vivia. Tratava-se, enfim, de mobilizartoda a vontade popular aos desígniospatrióticos. Não era outro omotivo que levava os alunos, diariamente,a recitar a “Oração à Pátria”.Contudo, em que pese todas essasprovidências, a Juventude Brasileiranão conseguiu se realizar senão emdimensões muito pequenas. O Escotismo,bem disseminado pelas escolasbrasileiras, foi um dos obstáculosque se antepôs à sua plena realização.32Caçador, que, a exemplo de outras cidadesda região, sediou uma corporaçãointegralista, aqui conhecida comoanticomunista e nazi-fascista, testemunhaisso. Nas instruções oficiais da Inspetoriade Ensino do Estado observa-se quenão há menção alguma a incentivos àformação de novos grupos de escoteirosjunto aos estabelecimentos de ensino,como se verificava antes. Nas fotos queregistraram a realização das campanhaspatrióticas de arrecadações, como a “daborracha” (coleta de pneus velhos), porexemplo, em Caçador, em 1942, nãomais se vêem os escoteiros ao lado dosescolares: o que existia, então, brilhandonas fotos, era a Juventude Brasileira.Em 1942, as finalidades da JuventudeBrasileira são restringidas ao culto à Pátria,e os estabelecimentos de ensino sãoorientados a disporem de “centros cívicos”.A chamada “Reforma Capanema”,de 9 de abril de 1942 (decreto-lei nº4.244), foi a tentativa governamental deinserir no ensino secundário 33 este mecanismofundamentado numa ideologiapolítica definida com conotações de patriotismoe nacionalismo, de caráter fascista,como menciona Otaíza Romanelli:Queremos referir-nos à presença dodispositivo que instituía a educaçãomilitar para os alunos do sexo masculinonos estabelecimentos de ensinosecundário, com diretrizes pedagógicasfixadas pelo Ministério daGuerra (art. 20). Este dispositivo,reforçado pelo disposto nos artigos22, 23 e 24, relativos à educaçãomoral e cívica, serviu de base à afirmaçãode que o governo estava organizandoa educação segundo omodelo de ideologia fascista. A leichegou até a fazer alusão à existênciade uma Juventude Brasileira, àsemelhança das Juventudes NazistaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 109


A C Ee Fascista existentes então na Alemanhae Itália. 34Especificamente, em sua Exposição de motivospara o decreto-lei nº 4.244, o próprioministro Capanema escreveu em1942:O ensino secundário se destina à preparaçãodas individualidadescondutoras, isto é, dos homens quedeverão assumir as responsabilidadesmaiores dentro da sociedade eda nação, dos homens portadoresdas concepções e atitudes espirituaisque é preciso infundir nas massas,que é preciso tornar habituaisentre o povo. [...].O estabelecimento de ensino secundáriotomará o cuidado especial naeducação moral e cívica de seus alunos,buscando neles formar, comobase do patriotismo, a compreensãoda continuidade histórica do povobrasileiro, de seus problemas e desígnios,de sua missão em meio aospovos. [...]. Deverão ser desenvolvidosnos adolescentes os elementosessenciais da moralidade: o espíritode disciplina, a dedicação aos ideaise a consciência da responsabilidade.Os responsáveis pela educação morale cívica da adolescência terão aindaem mira que é finalidade do ensinosecundário formar as individualidadescondutoras, pelo que forçadesenvolver nos alunos a capacidadede iniciativa e de decisão a todosos atributos fortes da vontade. 35O GRUPO ESCOTEIRO PINDORAMAAJuventude Brasileira era coisado passado quando surgiuo terceiro grupo em Caçador,menos de duas décadas depois. A primeiraturma do Grupo Escoteiro Pindorama 36pertencia, basicamente, às turmas docurso de admissão e à turma da primeirasérie do Ginásio Aurora. O líder era omarista irmão Diogo, nome de batismode Alexandre Câmpora, natural do RioGrande do Sul. Ele já havia feito o cursode chefe escoteiro, naquele estado, emalgum ano da década de 1940, juntamentecom o irmão Nilo Tonet, o qual o assessoroudireta e pessoalmente na organizaçãodo grupo em Caçador.O grupo começou a se organizar duranteo ano de 1960, com instruções de escotismoe reuniões preparatórias, inclusivecom os pais dos “noviços”. A sala de aulada Admissão e onde o grupo se reunianos sábados à tarde e domingos ficavanos fundos do térreo (que era de alvenaria)do prédio da velha construção comdois pavimentos de madeira. A tropa foiinstalada a 3 de setembro de 1960.Em outubro de 1962, começou o movimentodos Lobinhos 37 em Caçador. Emabril de 1963, por decisão da diretoria,foi adquirido o terreno e iniciada a campanhapró-construção da sede própria datropa, à rua Marechal Deodoro (no outrolado da rua do Colégio). Para pagar o terrenoe iniciar as obras, foram feitas campanhasna cidade, de rifas e de coletasde dinheiro e materiais, pelos escoteiros,pág. 110, jan/dez 2005


R V Oseus pais e os irmãos maristas. A sede,com o novo museu incluso, levou quasedois anos para ser construída. Uma grandefesta popular marcou sua inauguração,em 8 de dezembro de 1964.Com períodos de “altas” e “baixas” emsua composição, o Grupo EscoteiroPindorama manteve-se em funcionamentodesde então. A continuação desta históriarevela que foram empreendidas viagensa Joinville, Rio do Sul, Lages e excursõescom participações em acampamentosregionais e nacionais. Realizaramsenovas investiduras de noviços, aomesmo tempo em que, atingindo a idadeadulta, ou por outros motivos, integrantesdeixaram o movimento. Alternaramseas chefias, incorporaram-se oslobinhos e as escoteiras. Em setembrode 2005, ao alcançar seu 45º aniversário,o grupo registrou a passagem de maisde trezentos jovens de ambos os sexose de várias idades pelos seus quadros,chegando, nesta data presente, a contarcom cem integrantes.ConclusãoAcreditamos que, com este ensaio, possamoscontribuir para as pesquisas emhistória das instituições escolares no Brasil.O breve estudo aqui apresentado dentroda temática de “práticas escolares”,tratando de uma organização de atividadesextraclasse, complementares àformação humanista, poderá vir a animaroutros pesquisadores, pois que, emSanta Catarina, em meados do séculoCapa do livro didático Educação moral e cívica,(3. ed., São Paulo, Editora <strong>Nacional</strong>, 1979), da professora Lurdes de Bortoli Groth,de cunho nacionalista, com noções de moral e civismo através de atividades do movimento escoteiroAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 111


A C EXX, diversos estabelecimentos de ensinoadotaram e desenvolveram o movimento.Nossa pesquisa em história da educaçãoescolar na região do Contestado, iniciadaem 2002 sob a orientação do prof.dr. José Luís Sanfelice, da Unicamp, temse voltado também para os aspectos relacionadosà “nacionalização do ensino”,fenômeno histórico ocorrido em SantaCatarina em dois momentos, o primeirono início do século XX e, depois, quandoda entrada do Brasil na Segunda GuerraMundial. Justamente aí é que apareceramos indícios de problemas enfrentadospelo Movimento Escoteiro no Brasil,pelas similaridades com a organizaçãoclandestina da Juventude Hitlerista noBrasil – tema atraente para mais profundasinvestigações –, pela proximidadecom o integralismo e pela junção ao movimentoda Juventude Brasileira.N O T A S1. Lurdes Lúcia de Bortoli Groth, Educação moral e cívica: livro do professor, 3. ed., SãoPaulo, Ed. <strong>Nacional</strong>, 1979, p. 1 e 10.2. Fundado nesta cidade em 3 de setembro de 1960, é considerado o 11º no estado deSanta Catarina e com atividades ininterruptas até hoje.3. Fernando Bastos de Ávila, Pequena enciclopédia de moral e civismo, Rio de Janeiro,DNE/MEC, 1967, p. 196-197.4. Consulta a www.escotismo.com.br. Acesso em julho de 2005.5. Consulta a http://pt.wikipedia.org/wiki/Escotismo]. Acesso em julho de 2005.6. Tem-se também que, durante uma viagem pela Inglaterra, Baden Powell teria visto algunsmeninos usando em suas brincadeiras o livro que ele havia escrito para exploradores doExército, o qual continha ensinamentos sobre como acampar e sobreviver em regiõesselvagens. Consulta a www.escotismo.com.br. Acesso em agosto de 2005.7. Ver www.escoteiros.gov.br.8. O primeiro reside em Caçador e o segundo, já falecido, era irmão do dr. RaymundoFaoro, autor de Os donos do poder, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil,OAB nacional, membro da Academia Brasileira de Letras, e que também estudou noantigo Ginásio Aurora.9. No dia 12 de outubro de 1928, Dante e Albina Mosconi fundaram em Caçador o estabelecimentode ensino ao qual deram o nome de Colégio Aurora, implantando em casinhasde madeira os cursos elementar e complementar, nos moldes das escolas normais deSanta Catarina, e o comercial, seguindo a programatização do Instituto Comercial do Riode Janeiro. Em seguida, criaram o curso ginasial.10. Domingos Paganelli. Entrevista pessoal ao autor em setembro de 2005, em Caçador.pág. 112, jan/dez 2005


R V O11. A Imprensa, 25 de junho de 1939, ed. nº 19.12. Este grupo não nasceu no interior do Ginásio Aurora e nem funcionou no estabelecimento,como o anterior.13. A Imprensa, 27 de agosto de 1939, ed. nº 28.14. O marechal tinha um escravo alforriado, em sua fazenda, no interior de Minas Gerais,que veio a ser o pai do poeta catarinense João da Cruz Souza, mais conhecido comoCruz e Souza, jovem este que foi educado pela família do seu senhor e é dela que tomouo sobrenome Souza.15. As “Bandeirantes” apareceram pela primeira vez em público no dia 4 de setembro de1909. De vários lugares de Londres, patrulhas de meninas vestidas com uniformes semelhantesaos escoteiros, tendo inclusive lenço no pescoço, caminharam até o Paláciode Cristal onde, haviam ouvido, ia ser realizada uma demonstração técnica de escoteiros.Baden Powell estaria ali pessoalmente para observar as atividades dos rapazes eelas estavam ansiosas de poder convencê-lo a também fazer o mesmo com as escoteiras.O Movimento de Bandeirantes chegou ao Brasil no dia 30 de maio de 1919. Hoje, nãoexistem mais com este nome; são denominadas de “Escoteiras”.16. As organizadoras do grupo homenagearam a poetisa catarinense Delminda Silveira, deFlorianópolis, contemporânea de Cruz e Souza, Virgílio Várzea e Luiz Delfino, expoentesda literatura estadual.17. Até o fardamento era bem parecido, de camisa-blusa e calção (calça-curta) pardos,cinturão, meias longas de cor cinzas, sapato preto, lenço no pescoço.18. Aurélio da Silva Py, A 5ª Coluna no Brasil: a conspiração nazi no Rio Grande do Sul, 2.ed., Porto Alegre, Globo, 1942, p. 262.19. Ibidem, p. 263.20. Ibidem, p. 268.21. A Juventude Teuto-Brasileira tinha como objetivo preparar meninos para futuros furhrersde grupos, em cursos especiais. Esses cursos eram feitos na Alemanha, razão pela qualviajavam seguidamente caravanas de 15 a 20 jovens, com despesas pagas pelo governoalemão. Para as meninas existia a Bund Deutsches Auslands Madel, com regulamentointerno semelhante ao da Juventude Brasileira.22. Antônio de Lara Ribas, O nazismo em Santa Catarina, in O punhal nazista no coração doBrasil, 2. ed., Florianópolis, DOPS/SC – Imprensa Oficial, 1944, p. 22-23.23. Com a mais recente fase de democratização do país, com a liberdade de expressão,ultimamente o Movimento Integralista está ressurgindo em várias partes do Brasil e, emsuas manifestações públicas, não esconde a simpatia pelo Movimento Escoteiro, inclusiveelegendo Baden Powel um dos seus ídolos, como se observa em diferentes sites naInternet.24. Armando Filho, O integralismo, São Paulo, Editora do Brasil, 1999, p. 39.25. Rosa Maria Feiteiro Cavalari, O integralismo, São Paulo, EDUSC, 1999, p. 69, apud MonitorIntegralista.26. Ibidem, p. 61.27. Hélgio Trindade, Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30, São Paulo/PortoAlegre, Difusão Européia/UFRGS, 1974, p. 200.28. Ibidem, p. 199, apud Berstein et Milza, L’Italie fasciste, Paris, Colin, 1970, p. 213-214.29. Simon Schwartzman; Helena Maria Bousquet Bomeny; Vanda Maria Ribeiro Costa, Temposde Capanema, Coleção Estudos Brasileiros, v. 18, São Paulo/Rio, EDUSP/Paz e Terra,1984.30. Este assunto está sendo mais investigado pelo autor, na sua pesquisa de tese paradoutoramento.31. Simon Schwartzman; Helena Maria Bousquet Bomeny; Vanda Maria Ribeiro Costa, op. cit.32. Íris Barbieri, A educação no governo de Vargas (1930-1945): com ênfase no ensinonormal e na escola primária, tese de doutoramento, Osasco, Faculdade Municipal deCiências Econômicas e Administrativas de Osasco, 2 v., mimeo., 1973. Biblioteca daFaculdade de Educação da Unicamp, Campinas.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 95-114, jan/dez 2005 - pág. 113


A C E33. Com a Reforma Capanema, o ensino secundário, que se seguia ao ensino primário (cincoanos letivos), compreendia o ciclo ginasial (quatro anos) e o ciclo colegial (trêsanos).34. Otaíza de Oliveira Romanelli, História da educação no Brasil (1930-1973), 11. ed.,Petrópolis, Vozes, 1989, p. 159.35. Maria Luísa Santos Ribeiro, História da educação brasileira: a organização escolar, 17.ed., Campinas, Autores Associados, 2001, p. 148.36. Curiosamente – ou coincidentemente? – a denominação “Pindorama” (que significa “regiãode palmeiras”) tem a ver com a “Vila de Pindorama” (Neu-Wuerttenberg) que, no RioGrande do Sul, foi local do último acampamento escoteiro do grupo da “JuventudeTeuto-Brasileira”, entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938.37. Em novembro de 1913, surgiu um projeto intitulado “Regras para escoteiros menores”.Com mudanças e emendas, em 1914 foi publicado o esquema para “Lobinho” ou “JovemEscoteiro” que não era mais que uma forma modificada de adestramento de escoteiros.Em seguida, veio um manual próprio para os pequenos, de 7 a 10 anos de idade,abordando um método com características especiais.pág. 114, jan/dez 2005


R V OLuiz Bezerra NetoProfessor doutor da Universidade Federal de São Carlos.Educação no MSTUm encontrocom o ruralismo pedagógicoO artigo discute as relações entre omovimento denominado RuralismoPedagógico e o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST),buscando estabelecer as afinidades ediferenças entre eles, à medida que ambosentendem que a pedagogia poderia ser ummecanismo de fixação do trabalhadorno campo, sem considerar as condiçõessocioeconômicas que a determinam.Palavras-chave: educação rural; ruralismopedagógico; trabalhadores rurais; MST.The text talks about the differencesbetween the moviment called PedagogycRuralism, and the Landless WorkersMovement (MST), trying to establishproximities and differences between thegroups, while the moviments understand thatpedagogy may be a gear of worker fixation in thefield, not considering the social-economicconditions, which determine it.Keywords: rural education; pedagogical ruralism;rural workers; Landless Workers Movement.Apartir do último quarto do séculoXX, o movimento socialque mais ganhou evidência noBrasil foi o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST). Embora essemovimento afirme ter se inspirado nasLigas Camponesas e nas lutas dos trabalhadoresrurais ocorridas no Brasil duranteos séculos XIX e XX, no que tange àquestão educacional não resta dúvida deque muitos de seus discursos encontramsubsídio no movimento denominadoRuralismo Pedagógico, 1 presente na primeirametade do século XX. Para quepossamos compreender as semelhançasestabelecidas entre o Ruralismo Pedagógicoe o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra, com suas mudanças eAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 115


A C Epermanências, conflitos e divergências,é preciso entender que a educação ruraltem mantido certas peculiaridades ao longodo tempo, peculiaridades essas quepoderão tornar-se mais explícitas à medidaque conhecermos melhor a gênesee as propostas educativas do MST.Para tanto, é necessário que entendamosque as lutas pela terra no Brasil não sãorecentes. Datam do período colonial, comos povos indígenas na defesa de seu territóriocontra as “entradas” e “bandeiras”,patrocinadas pelo governo portuguêse por proprietários de terra da época.Essas lutas ganharam impulso no final doséculo XIX, com as denominadas lutasmessiânicas que, de alguma forma, acabaraminfluenciando e norteando as principaislideranças do MST. Das lutas queinspiraram o MST, podemos destacarCanudos, ocorrida no sertão da Bahia,entre os anos de 1870 e 1897, tendocomo líder Antônio Conselheiro, derrotadodepois de várias e brutais incursõesdas tropas federais.Outro importante movimento de luta pelaterra, que também influenciou o MST,aconteceu na região do Contestado (divisado Paraná com Santa Catarina), entreos anos de 1912 e 1916, e envolveumilhares de camponeses, tendo sido lideradopelo monge José Maria, tambémderrotado por tropas federais.Dentre todos os movimentos de luta pelaterra, o que mais influenciou os fundadoresdo MST, e do qual, segundo JoãoPedro Stédile, 2 o movimento é herdeiro,foi o das Ligas Camponesas 3 que, nasdécadas de 1950 e 1960, desenvolveuimportante papel na luta contra o latifúndiono interior do Nordeste, sobretudo naregião do semi-árido de Pernambuco e daParaíba.Depois desse período, com o golpe militarde 1964, estabeleceu-se a chamadapaz de cemitérios 4 no campo brasileiro,até que, no final da década de 1970,sobretudo após a criação da ComissãoPastoral da Terra, em 1975, e as grevesdos metalúrgicos do ABCD paulista, soba liderança de Luís Inácio da Silva, o Lula,os camponeses sentiram-se estimuladosa lutar por espaços para plantio, iniciandono Rio Grande do Sul as ocupaçõesde terra que estão na gênese do MST.O MST nasceu das lutas concretas pelaconquista da terra que os trabalhadoresrurais foram desenvolvendo de forma isoladana região Sul do país. No final dosanos de 1970, houve significativo aumentona concentração de terras nas mãosde grandes latifundiários e empresas rurais,culminando com a expulsão dospobres da área rural, devido à modernizaçãopor que passava a agricultura, ocasionandoentão um largo período de criseno campo, agravada pela falência doprocesso de colonização implementadopelo regime militar.Impulsionado pela ideologia da construçãode uma sociedade igualitária, a partirda implementação de uma reformaagrária feita sob o controle dos trabalhadores,o MST entendia que apág. 116, jan/dez 2005


R V Oredistribuição de “terras ociosas” para amassa de excluídos seria a forma idealde melhorar a qualidade de vida dos trabalhadoresrurais e de melhor distribuira renda no país. Daí a insistência na lutapela manutenção do homem no campo,através de uma reforma agrária que distribuíssea propriedade da terra.O MST, desde sua fundação, tem afirmadoa necessidade inexorável de uma reformaagrária que modifique a estruturada propriedade da terra, dando-lhe umcaráter socialista, transformando o modode produção e conseqüentemente as relaçõesde trabalho até agora predominantesna sociedade brasileira. Esse discurso,porém, é contraditório, pois ao mesmotempo em que o MST afirma lutar poruma sociedade socialista, em que devemser rompidas as barreiras do direito “sagrado”da propriedade por meio das ocupaçõesde terras no campo, aceita e defendea pequena propriedade rural, contribuindopara ampliar e fortalecer asrelações capitalistas de produção no campo,apesar de este setor ter sido historicamenteconsiderado um entrave nas lutaspara a construção de uma sociedadesocialista, em virtude de seu caráter conservador.O movimento é constituído, basicamente,por trabalhadores desempregados quevivem numa situação de desespero e, porisso, são arregimentados para ocupar aterra. Segundo Stédile este é o últimorecurso dos trabalhadores num sacrifícioem busca da sobrevivência. Para ele, aocupação “é uma forma de luta exasperada,é o último recurso, é o sujeito quenão tem mais para onde ir, está no inferno,então resolve dar um tapa no diabo.Essa é a situação do acampado”. 5O MST destaca-se, também, por sua organização,disciplina e pelas lutas sociaisque desenvolve visando construiruma sociedade sob novas basessocioculturais, econômicas e políticas,cujo fundamento maior, pelo menos paraos dirigentes mais expressivos comoStédile, é o homem e não o lucro produzidopelo capital.Não se pode negar, entretanto, que nointerior do MST existam contradições comrelação a seus objetivos estratégicos.Expressão dessas antinomias é o fato deque, tanto alguns trabalhadores assentados,como alguns dirigentes com relativaexpressão, como José Rainha Júnior,afirmam lutar para renovar o capitalismo,ou mesmo para tornarem-se capitalistascomo os atuais fazendeiros. O MST,como já se afirmou, nasceu a partir daslutas pela terra, iniciadas no final da décadade 1970. O marco de fundação, enquantomovimento organizado detentorda sigla MST, no entanto, foi em janeirode 1984, no I Encontro <strong>Nacional</strong> de TrabalhadoresRurais Sem Terra, realizadoem Cascavel (PR), do qual participaramcento e cinqüenta delegados. Esse encontrotinha como finalidade reunir todas ascategorias de trabalhadores rurais que,de alguma forma, lutavam para obterterra para plantar.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 117


A C ENesse encontro, o MST definiu, comoprincípio, a luta pela reforma agrária,reivindicando “terra para quem nela trabalha”,bem como uma política agrícolaque assegurasse aos trabalhadores docampo a possibilidade de permaneceremem suas terras, dado que estes as vinhamconstantemente perdendo para osbancos, ou sendo expulsos pelos fazendeirose grileiros. 6 Outro princípio consideradoimportante pelos congressistas foia luta por uma sociedade sem exploradorese sem explorados.Durante os anos de 1986 e 1987, com olema “sem reforma agrária não há democracia”,procurou-se colocar em xeque adisposição do “governo democrático” daNova República em fazer as reformas quea sociedade exigia, sobretudo a reformaagrária, que o MST reivindicava fosse feitasob o controle dos trabalhadores. Nessemesmo período, o movimento lançouo lema: “terra não se ganha, se conquista”,deixando clara sua disposição de lutarpela posse da terra e conquistar a reformaagrária. Mesmo com o fim do regimemilitar, essa era uma tarefa muito difícilpara os Sem Terra devido ao esquemade repressão ainda vigente no país.Em 1985, os trabalhadores rurais semterra, já sob a sigla MST, realizaram oseu I Congresso <strong>Nacional</strong> (Curitiba), contandocom a participação de mil e quinhentosdelegados, quando definiram sualuta com o lema: “ocupação é a solução”,além de suas estruturas organizativa,associativa e suas instâncias de deliberação.Definiu também que os congressosnacionais deveriam ocorrer a cadacinco anos, com encontros a cada doisAssentamento Cobrinco, Rondônia. <strong>Arquivo</strong> do MSTpág. 118, jan/dez 2005


R V Oanos. Nesse mesmo congresso, forameleitas a primeira coordenação nacionale a primeira direção nacional do movimento.Em 1986, realizou-se o I Encontro <strong>Nacional</strong>de Assentados, no qual a discussãopredominante foi quanto à situação dosassentados frente ao MST, visto que estes,agora detentores de terras, poderiamcorrer o risco de não serem maisconsiderados sem terra. No período, chegou-sea discutir a possibilidade da criaçãode um movimento dos assentados naluta pela reforma agrária. Coerentementecom os princípios do MST, seus integrantesoptaram por deixar todos unidosno mesmo movimento. O MST desenvolveu,ainda, um papel importante na lutaem defesa da reforma agrária durante oprocesso constituinte de 1987/88, quandofoi o contraponto da bancada ruralista 7liderada pela União Democrática Ruralista(UDR), que no Congresso <strong>Nacional</strong> Constituintetentou de todas as formas impediro avanço de conquistas sociais atravésda lei, sobretudo no tocante à reformaagrária.Para não causar impacto negativo na sociedade,o MST optou por não adotar oslogan das Ligas Camponesas e dos trabalhadoresrurais da década de 1960,“reforma agrária na lei ou na marra”,apontando para um lema mais suave eque se traduzia nas palavras: ocupar,resistir e produzir. Tentando envolver aspessoas dos centros urbanos,conclamava-se todos para a luta ao seanunciar: “reforma agrária, esta luta énossa”, procurando ainda demonstrar osbenefícios que essa reforma traria paratoda a sociedade.Em 1992, o MST criou a Confederaçãodas Cooperativas de Reforma Agrária doBrasil (CONCRAB), buscando englobartodas as cooperativas formadas em assentamentossurgidos a partir da lutapela reforma agrária. A confederação visavamelhorar a produtividade e, ao mesmotempo, criar uma maior integraçãoentre esses grupos, para ampliar a inserçãono mercado dos produtos saídos dessesassentamentos.Dada a situação política da primeira metadedos anos de 1980, no qual vigoravaainda o regime militar e a Lei de Segurança<strong>Nacional</strong>, dentre outros elementosde repressão do período, o MST optoupor não ter um estatuto, situação na qualse mantém até hoje. No entanto, construiua Associação <strong>Nacional</strong> de CooperaçãoAgrícola (ANCA), que funciona comouma espécie de “guarda-chuva” legal parasuas atividades. Como forma de organização,o MST desenvolveu várias frentesou setores que se articulam para garantira existência orgânica do movimento,dentre os quais se destacam:Frente de massa: cuida dos preparativospara as ocupações em que o MST sefaz presente. Esse setor é o principal responsávelpela aglutinação dos lavradorespara o exercício de ocupação das áreasescolhidas pelo MST para esse fim. Emboranão tenha nenhum poder de deci-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 119


A C Esão, é fundamental para dar volume àsações do movimento;Setor de produção dos assentamen-tos: cuida da organização da produçãodos assentamentos resultantes de conquistasna luta pela reforma agrária desenvolvidapelo MST;Setor de formação: é responsável pelaformação política dos militantes e lavradoresde base. Esse setor organiza oscursos e seminários que envolvem todaa militância do MST;Setor de educação: responsável pelaeducação formal ou informal das crianças,jovens e adultos dos assentamentose acampamentos;Setor de comunicação e propagan-da: responsável pela propaganda do MSTe pelas denúncias nos momentos de conflitosou confrontos com a polícia. É responsável,também, por divulgar toda formade exploração e opressão sofridapelos trabalhadores rurais em geral.Como já mencionado, o MST difere detodos os outros movimentos de luta pelaterra que existiram na história do Brasil,por constituir-se em um movimento nacionalmenteorganizado e possuir uma propostade sociedade de cunho socialista.Essa nova sociedade, segundo o MST,deve se dar por meio da formação educacionalimplementada pelo movimento,nas regiões de acampamentos e assentamentosde trabalhadores ruraissem terra.Essa questão tem grande importância nomomento em que é discutida a problemáticaeducacional, por haver pessoas noseio da sociedade, e, principalmente, noMST, que acreditam que uma educaçãoquestionadora possa levar à construçãode uma sociedade diferente, a partir daqual uma reforma agrária de caráter socialistase torne possível. O MST acreditaque da combinação da luta pela terracom uma educação diferenciada, sem osvícios do sistema capitalista, seja possívelpensar numa sociedade livre, democráticae igualitária, como é seu ideal,provendo daí a construção de um “novohomem”, livre e solidário.Para se compreender a luta dos trabalhadoressem terra e seu projeto social,é importante não se perder de vista oentendimento de que o desenvolvimentoda história se constrói na luta entre asclasses sociais e que os trabalhadoresrurais vêm construindo sua história pormeio da luta de ocupação de terras, naformação dos acampamentos que levamaos assentamentos e à reforma agráriaque, segundo o MST, é tão necessáriaao país.A construção histórica vai se constituindonessa relação, visto que a história seassenta no desenvolvimento real da produção,partindo sempre da produçãomaterial da vida imediata e da forma deintercâmbio ligada ao modo de produçãopor ele produzido. Assim, conclui-se quea força motora da história não é a crítica,mas a revolução: produto do desenvolvimentosocial do homem e seu modopág. 120, jan/dez 2005


R V Ode produção. Essa disciplina revolucionáriaé, portanto, a condição necessáriapara a continuidade da luta frente aosdefensores do capital, que buscam portodos os meios quebrar a resistência domovimento, podendo ser obtida tambématravés do estímulo de pessoas encarregadasde manterem vivas a chama daesperança do MST, no processo por elesdenominado de mística.Considerada pelo movimento como umdos mais importantes instrumentos demanutenção da esperança e do fervor naluta em defesa de seus interesses, a místicaé o meio pelo qual o MST procuraencontrar forças para manter viva a memóriade seus mártires e buscar, comisso, dar esperanças à massa de trabalhadoressem terra na defesa de seusideais. Nesse aspecto, a mística constitui-senum importante elemento de formação,que ajuda a manter viva a esperançade um povo que, por algum tempo,havia se acostumado à falta de esperançase de alternativas de vida. A místicaé usada, também, para estimular aspessoas a lutarem por seus ideais e podeser celebrada das mais variadas formas,desde uma celebração ecumênica até ocantar do hino da internacional socialistacom punhos cerrados, como faziamos membros daquele movimento no séculoXIX.Além da importância da mística e da lutapor se inserir na história dos trabalhadoresem geral, os responsáveis pela educaçãono MST perceberam que os problemasverificados na primeira metadedo século passado não foram resolvidosaté o início deste século, visto que aindahoje há reclamações idênticas àquelaspercebidas há mais de meio século. Damesma forma que os educadoresruralistas daquele período, hoje tambémreclama-se da falta de coerência entre oque se ensina no campo e aquilo de queo campo realmente necessita para avançarno desenvolvimento de suas basesprodutivas.Por isso, os dirigentes do MST têm reivindicadodo Estado que a escola públicado meio rural seja pensada e organizadapara o trabalho no campo, dando a mesmaênfase para o trabalho manual e otrabalho intelectual, rompendo assim coma dicotomia social do trabalho intelectualpara uma classe e o trabalho braçalpara outra. O MST entende, portanto, quepartindo da prática produtiva para a educacional,estariam fazendo uma relaçãodialética entre teoria e prática, necessáriapara o progresso econômico e socialdo país.Seguindo a linha de raciocínio defendidapelos educadores ruralistas, o MST concluique os males inerentes às formas deeducação rural advêm do fato desta serdirecionada para os alunos da zona urbanasem nenhuma adequação para ocampo, e por isso fazem a apologia deum conteúdo diferenciado, que seja voltadopara seus militantes, pois entendemque o conteúdo ensinado nas escolas rurais,sem nenhuma adequação para oAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 121


A C Ecampo, não pode contribuir para fixar otrabalhador nesse ambiente.Tal qual Carneiro Leão, o MST considerade extrema importância a existência daescola, embora aquele autor reconhecesseque “a escola rural atravancada de livrose de programas elaborados para ascidades produziram e produzem estamonstruosidade: uma educação que nãocorresponde às aspirações dos indivíduosnem do grupo”, 8 provocando, de umlado, a negação da escola por parte designificativas parcelas dos habitantes docampo, e, de outro, a repulsa dos professoresque não querem se fixar naquelemeio.Essa “monstruosidade” de que fala CarneiroLeão teria sido produzida graças àmá formação dos professores que nãotiveram nenhum contato com o meio noqual seriam “jogados” para trabalhar, ouà falta de uma formação adequada parao trabalhador do meio rural. Não por acaso,Carneiro Leão afirmava que os professores,mandados para o interior, teriamestudado na capital ou nas grandescidades problemas que eram urbanos.Esses professores, de acordo com seuraciocínio, diplomaram-se em suas escolas,viveram com suas famílias nessesambientes, aprenderam e praticaram porcurrículos organizados para as exigênciasda vida citadina, e, portanto, iriamensinarnos meios matutos e sertanejos, porprogramas manipulados na capital,cuja distribuição de matérias ecujos métodos preconizados só pordescuido cogitam das necessidadese realidades da vida no interior. [...]seu pensamento está na cidade ena família distantes, seu sentimentoé de hostilidade ao ambiente,sua atitude de aversão e deincompreensão e que, em retribuição,com eles antipatiza. Os professoresvivem alheios aos problemascom que se defrontam, à vida queos cerca, às necessidades que oscircundam, ao destino e à felicidadedos alunos e da própria comunidade.São estranhos e estranhosquerem permanecer. 9Apesar da distância no tempo e das mudançasdecorrentes das transformaçõesocorridas, quer pelo grande êxodo porque passou o campo, pelo desenvolvimentoindustrial e tecnológico, quer pelasmudanças nas relações produtivas, corroborandocom esse tipo de pensamento,o MST tem defendido que da maneiracomo está sendo o ensino praticado hoje,ele contribui para acelerar ainda maisesse êxodo, ao fantasiar uma realidadeconsiderada bem mais atraente que arealidade do meio rural. Além disso, oconteúdo trabalhado nas escolas costumamostrar somente os benefícios existentesna cidade, que não são levadosao trabalhador do campo. O MST considera,ainda, que há o agravante de quedificilmente o conteúdo dos livros didáticosutilizados nesse setor apontam parapág. 122, jan/dez 2005


R V Oa realidade dos pobres e miseráveis quevivem nas periferias das grandes cidadesem situação deplorável.Ao discutir essa problemática nos anosde 1930, Carneiro Leão deparava comuma realidade parecida e a consideravacontraproducente para os habitantes daroça, tal qual os educadores do MST aencontram atualmente. Ao demonstrarseu pensamento sobre o assunto, Leãoadmitia quetal ensino muitas vezes é até contraproducente.É o filtro que embriagao espírito do aluno jovem comunicando-lhea ânsia de emigrar, de correrterras, de ir para a capital, deabandonar o campo, o labor duro,mas produtivo e sadio, em que sempreviveu. Para isso as referênciascontínuas do professor às belezas dacidade de onde veio, às distrações,às vantagens do meio urbano progressistaconstituem a forçacatalisadora capaz de extinguir definitivamente,na alma do matuto ousertanejo, os mais inveterados remanescentesde seu amor pelo torrãonatal [...]. 10E essa realidade que, ao longo do tempo,tem contribuído para expulsar o homemdo campo e ajudado a inchar asperiferias das grandes cidades que crescemdesordenadamente e sem controle,não sofreu alterações significativas como passar dos anos. Hoje, pode-se verificarque a distância em relação ao modode vida dos pobres do campo, semtecnologia e sem acesso à energia elétri-Acampamento no Pontal do Paranapanema, São Paulo. Foto de Paulo PintoAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 123


A C Eca, comparada com aqueles que vivemna cidade, ainda é bastante acentuadaem algumas regiões do país, assim comoo é a forma como vivem as pessoas que,no meio urbano, têm acesso ao empregoe à tecnologia em relação àqueles quenaquele ambiente não os têm.Não se trata, necessariamente, deurbanizar o campo, no sentido de levarpara lá farmácias, postos de saúde, supermercadosetc., mas de possibilitar ummínimo de conforto e permitir o acessoao uso de tecnologia como o computador,que poderia ajudar a melhorar os índicesde produtividade da terra e a condiçãofinanceira de seus moradores, commaior controle da produção. Para isso, éfundamental a expansão das redes detelefonia, energia elétrica, asfaltos einfra-estrutura básica em geral.Nessa perspectiva, é solicitado à escolae ao professor que invistam na educaçãoescolar, repensando seu conteúdo, suametodologia de trabalho e finalidades,para que atendam aos interesses dos trabalhadoresdo campo. Carneiro Leão condenavaa postura do professor e da escolapor sua apatia, ao afirmar queA escola e o mestre, que poderiamser fatores poderosos de educação,de direção de vida e de civilização,nada fazem além de ensinar a ler,escrever e contar. As escolas não setornam, portanto, agências de ajustamentosocial, de bem estar físico,mental e moral (...). São elementosà margem, às vezes desintegrados equase sempre nulos como fator deconstrução do grupo. 11Os educadores do MST entendem, ainda,que os “pobres e marginalizados”, comoos trabalhadores rurais sem terra, aolongo do tempo, não fizeram parte docurrículo escolar, por isso propõem quesejam mudados os currículos paraadequá-los à sua realidade, criando umanova forma de ensinar que dê conta daquiloque é característico do setor rural.Segundo Roseli Caldart, nesse campo háuma certa especificidade que “tem a vercom um novo currículo, com a relaçãoefetiva entre escola e comunidade, entreeducação, produção, cultura, valores,e com uma formação adequada aos trabalhadorese às trabalhadoras desta educação”,12 inserindo-os no contexto socialdo qual historicamente tem sido excluídatoda a classe trabalhadora, bem comoas minorias sociais e culturais.Para possibilitar essa forma de educação,o setor educacional do MST propõe queesse novo currículo promova, dentre outrascoisas, “uma educação que valorizeo saber dos/as educandos/as [visto que]crianças, jovens, adultos, pessoas maisvelhas, todos tem um conjunto de saberes,uma cultura e uma história que precisamser respeitadas e consideradasquando entram na escola”. 13 Ocorre que,ao partir daquilo que já se sabe, correseo risco de se ensinar exatamente aquiloque a criança não precisa aprender,promovendo-se um ensino inócuo. Nessecaso, o que precisa ser feito é um avan-pág. 124, jan/dez 2005


R V Oço na discussão acerca de qual é o papelda educação e da tecnologia para o meiorural e sobre quais são as condiçõesnecessárias para que o trabalhador ruraltenha acesso tanto à tecnologia comoao saber para usá-la.O MST vem lutando no intuito de conseguira fixação do homem à terra, preferencialmenteem sua região de origem.Para isso, procura inserir suas discussõesno contexto geral da luta por uma sociedadesocialista, ao contrário do que fizeramos defensores do ruralismo pedagógico,que estabeleceram uma argumentaçãoque tinha por base a oposição cidade–campo,utilizando-se de argumentosque passavam ao largo das diferençasde classes, deixando de lado o relevanteaspecto do acesso de camadas debaixa renda à escola, independentementedo contexto rural ou urbano em quese inseriam. 14Para Rizzoli, a fixação do trabalhadorrural tornar-se-ia ainda mais difícil deacontecer porque estaria “baseada numaanálise insuficiente da articulação entrecidade e campo, (pois) o projeto de adequaçãoda escola rural à realidade, comomeio de inibir o fluxo migratório, estavacondenado ao malogro”, 15 sobretudo porquenão levava em conta a questão econômica.Percebendo essa armadilha, oMST busca introduzir no debate acercada educação rural e da necessária discussãoda articulação entre campo e cidade,a problemática da posse e do usoda terra, bem como do acesso aos mecanismosde produção, distribuição econsumo de mercadorias.Reivindica-se uma escola voltada para omeio rural diferente das escolas regularesque atuam hoje, mas que não deixede levar em conta as diferenças sociaisque são características das sociedadesde classes. Para tanto se defende que aescola deva possibilitar uma educaçãopensada, planejada e estruturada a partirdos princípios da classe trabalhadorae do MST; e uma alfabetização que vámuito além do reconhecimento das letras,além do espaço da sala de aula e queocorra nas atividades culturais, religiosas,recreativas etc. do assentamento.A aprendizagem deve se dar em um ambienteseguro, receptivo e acolhedor afim de que a criança se sinta feliz parapoder expressar afetividade, sonhos,desejos, fantasias etc., desenvolvendo-secom liberdade; e deve ser planejadacomo um todo, com a participação dealunos, pais e professores, visando atendera todos, visto que a seleção do ensino,no Brasil, sempre ocorreu em todosos níveis, desde a educação elementar,em que a seleção se dá pela retenção epela evasão escolar, patrocinada pelaforma desinteressante como a educaçãovem sendo promovida.Por essas razões, o MST propõe um modelode educação coletiva no qual o ensinopossa ser baseado em novas relaçõespessoais e em novos valores humanos,em que a dignidade, a felicidade, a igualdade,o desenvolvimento cultural e cien-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 125


A C Etífico sejam direitos de todos, juntamentecom o atendimento às necessidadesbásicas de toda a população, eliminando-seas possibilidades de exclusão socialpela via escolar. Nessa concepção,educação, política, economia e sociedadepassam a ser face e contraface deuma mesma moeda, ao contrário da educaçãopraticada e defendida pelos detentoresdo capital, que procuram passarpara a sociedade a idéia de que a educaçãoé uma coisa neutra a que qualquerpessoa pode ter acesso, pois os governosa disponibilizam para todos.A transformação social e econômica teria,então, que possibilitar a transformaçãona educação, pois se entende queuma grande mudança cultural poderialevar a uma mudança política que beneficiasseaqueles que sempre foramalijados do poder. Para conseguir essatransformação, a principal via seria aescola, entendendo que essa escola deveriaser mantida pelo Estado egerenciada pela comunidade, que a administrariade acordo com suas necessidades.É obvio que não podemos pensarnuma perspectiva em que as idéias, pelavia da cultura, transformariam a realidade,mas que a realidade econômica mediadapela política pode transformar acultura e contribuir para modificar essamesma realidade.Embora a escola seja um espaço públicoe democrático, que conta com todas ascorrentes políticas e ideológicas dispostasna sociedade, ela não deixa de serum aparelho ideológico do Estado que,em grande medida, projeta interessesdos segmentos da classe dirigente queestiver ocupando o aparelho do Estadonaquele momento. Por isso, parece ingenuidadequerer que as camadas dirigentespossibilitem uma educação políticaque parta dos interesses da classe queestiver fora do poder. Assim, ou os educadoresafinam-se com os interesses dacomunidade, no caso os sem terra, ouserá inócua a defesa desse tipo de educação.Os intelectuais do MST têm consciênciade que não basta vontade para transformara realidade, porém que é precisomuita luta e organização. Entendem queé mais fácil a sociedade transformar aescola do que a escola transformar asociedade. Por isso, embora atribuam àescola um importante papel na luta datransformação social, sabem que essepapel é limitado, mas importante, à medidaque, de alguma maneira, a escolainterfere na consciência das pessoas quehabitam o espaço social em que ela seinsere. Essa consciência fica explícita nasseguintes palavras de Roseli Caldart:Como, de modo geral, é mais fácil acomunidade transformar a escola doque a escola transformar a comunidade,os problemas de organicidadedos assentamentos acabam sendoum [fator] limitante na formação do/a educador/a. Este é, por outro lado,um obstáculo que se torna desafiopedagógico e político: “... o suces-pág. 126, jan/dez 2005


R V Oso da escola é o sucesso do assentamento,não tem outro jeito...”. Eo princípio do envolvimento entreescola e comunidade passa a ter“mão dupla” e ser, ele próprio, umobjeto formador. 16Se para transformar a sociedade econômicae politicamente não é suficienteapenas que se faça algumas mudançasna educação, é fundamental, então, quese lute para reformulá-la. É necessário,ainda, que se implementem lutas sociais,como a reforma agrária, que é, no entenderdo MST, o principal instrumentode transformações sociais e econômicasde que dispõe a classe trabalhadora brasileirano atual momento histórico.A luta pela reforma agrária seria, portanto,a explicitação de algumas contradiçõesexistentes no interior da sociedade capitalista,em que a propriedade da terratem sido colocada acima da necessidadede seu uso social, impedindo que grandesparcelas de trabalhadores tenhamacesso à terra, ao emprego, à moradia,à educação e às condições de vida quedignificam o ser humano.A luta pela educação deverá servir comomais um momento de luta da classe trabalhadorapor algo que lhe tem sido negado.Assim, Roseli Caldart afirma que ofundamental da luta é que o trabalhadorrural, sobretudo aquele ligado ao MST,esteja preparado para implementar umprojeto/movimento educacional coerentecom o projeto/movimento político-pedagógicoque tem sido produzidona luta pela reforma agrária eAssentamento Jundiaí, Espírito Santo. <strong>Arquivo</strong> do MSTAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 127


A C Epela transformação social em nossopaís. Fazer a leitura destes movimentose conseguir impulsionálosem outros tipos de açõeseducativas é o grande papel, e portantodemanda formativa, de quemse pretende um/a educador/a dareforma agrária, ou, mais especificamente,do MST. 17Como ainda não existe essa consciênciana sociedade em geral, as crianças doMST têm sido levadas a entender que suaatuação pedagógica, enquanto parte darelação com o sujeito formador, é de fundamentalimportância para a obtençãodos resultados até agora alcançados pelostrabalhadores rurais, pois seu jeitode ser e de aprender acaba, de algumamaneira, se espalhando para toda a sociedade.Na tentativa de demonstrar a importânciada ação pedagógica do Movimento dosTrabalhadores Sem Terra, seus educadoresestão insistindo no discurso de queas suas práticas educativas têm sido levadasadiante pelo seu principal instrumentode formação, ou seja, as escolas,por meio dos seus cursos de formação.Nesse sentido, são ilustrativas as palavrasde Roseli Caldart, quando afirma queEsta experiência vem nos mostrandoa potencialidade política e pedagógicade se ter um curso do Movimentoe não apenas para o Movimento.Muitas escolas podem fazer um ótimocurso para as/os educadoras/esdo MST. Mas à medida que o próprioMST faz/gere o seu curso de magistério,ali estará encarnada a sua dinâmica,o seu processo histórico.Suas possibilidades e seus limitesterão que ser seu próprio objeto deformação. 18Como podemos perceber, embora hajagrande proximidade entre as propostasdo MST e aquelas defendidas pelos educadoresque empreenderam o movimentodo ruralismo pedagógico, essas nemsempre são explicitadas, pois o Movimentojamais demonstrou admitir qualquerligação entre ambos, principalmente devidoaos métodos de análise da sociedadeutilizados pelos ruralistas do início doséculo passado.Os pontos de partida para a análise socialde cada movimento são diferentes,pois enquanto os ruralistas utilizavam osreferenciais teóricos e metodológicos dospositivistas, e propunham apenas algumasreformas no interior do capitalismo,o MST assume uma postura dialética propondoa derrocada desse sistema, coma introdução de um novo modo de produçãoque tenha por bases a igualdade e asolidariedade, próprias do socialismo. Asdiferenças e semelhanças entre ambostornam-se mais palpáveis à medida queaprofundamos os estudos a respeito dotema.Em comum, encontra-se a crença de queuma pedagogia adequada para o trabalhadorrural é aquela que o ajuda a fixar-seno campo, sem levar em conta queo que realmente radica uma pessoa oupág. 128, jan/dez 2005


R V Oum grupo social em determinada áreageográfica são as condições que são proporcionadaspara a sua sobrevivência. Éna economia e não na educação que devemosbuscar as respostas para os processosde fixação e expulsão do homemem determinados lugares e épocas distintas.N O T A S1. Esse movimento entendia que a fixação do homem no campo poderia se dar por meio deuma pedagogia adequada, sem considerar as questões socioeconômicas que favorecemessa fixação ou sua expulsão.2. Um dos fundadores e principais intelectuais do MST.3. Movimento que surgiu como uma sociedade de ajuda mútua, em que o povo da regiãoda Galiléia, divisa de Pernambuco e Paraíba, se reuniam para comprar caixões para enterrarseus defuntos, uma vez que a prefeitura local apenas emprestava a urna para conduziro morto até o cemitério, devendo o caixão ser devolvido para esperar o próximomorto. Esse movimento tornou-se, posteriormente, sob a liderança do deputado Julião,no mais importante movimento revolucionário do período. Sobre o assunto, além deampla bibliografia, ver o filme: Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, sobrea vida de João Pedro Teixeira, um dos fundadores da liga.4. Expressão bastante utilizada pelo movimento sindical para designar um período de “ausência”de reivindicações no campo, ocorrido pelo fato de que os trabalhadores que seenvolviam nas lutas eram calados pelas armas da repressão política ou pelas milíciasarmadas dos fazendeiros.5. João Pedro Stédile, entrevista à revista Caros Amigos, nov. 1997, p. 29.6. É popularmente chamado de “grilo” o processo de conquista de terra por meios ilícitosocorridos no Brasil, principalmente na primeira metade do século XX, período em queera comum os fazendeiros invadirem as terras dos pequenos proprietários, criando umasituação de litígio. Quando os processos litigiosos chegavam ao Judiciário, via de regraos cartórios pegavam fogo “acidentalmente”. Nesse caso, por falta de escrituras, o juizcostumeiramente dava ganho de causa ao documento mais velho e, aí, o trabalhadorque guardava muito bem seus documentos, os apresentava com uma aparência de novo.Enquanto isso, os fazendeiros colocavam seus documentos numa gaveta junto comalguns grilos, para que em poucos dias esse documento estivesse todo carcomido, fazendoparecer mais velho que o do trabalhador e, com isso, se apropriando da terra. Oprocesso de grilagem da terra também foi comum nas chamadas terras devolutas, que apartir da lei de 1850 retornaram para o Estado por falta de comprovação do direito deposse.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 115-130, jan/dez 2005 - pág. 129


A C E7. Grupo de Deputados e senadores, formado durante o processo constituinte de 1987/88, com a finalidade de impedir que a Carta Magna possibilitasse a reforma agrária e ainclusão de temas e propostas consideradas socialistas.8. A. C. Leão, Sociedade rural: seus problemas e sua educação, Rio de Janeiro, s.e., s.d.,p. 220.9. Ibidem, p. 281.10. Ibidem, p. 278.11. Ibidem, p. 287.12. R. S. Caldart, Educação em movimento: formação de educadoras e educadores no MST,Petrópolis, Vozes, 1997, p. 40-41.13. Ibidem, p. 42.14. A. Rizzoli, O real e o imaginário na educação rural, tese de doutourado, Campinas, FE/Unicamp, 1987, p. 7.15. Idem.16. R. S. Caldart, op. cit., p. 60-61.17. Ibidem, p. 110.18. Ibidem, p. 140.pág. 130, jan/dez 2005


R V ONailda Marinho da Costa BonatoProfessora da UNIRIO. Doutora em Educação pela Unicamp. Especialista emAdministração de Sistemas de Informação pela UFF. Pedagoga e Arquivista.O Fundo Federação Brasileirapelo Progresso FemininoUma fonte múltipla para a históriada educação das mulheresO artigo apresenta e discute o uso domaterial do Fundo Federação Brasileirapelo Progresso Feminino, que é parte doacervo do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, como fontede pesquisa do projeto “Concepções daFederação Brasileira pelo ProgressoFeminino sobre a educação das mulheres”,e destaca a documentação da I Conferênciapelo Progresso Feminino, de 1922.Palavras-chave: Federação Brasileira peloProgresso Feminino, história daeducação feminina, I Conferência peloProgresso Feminino, Bertha Lutz.The paper relates the use of thedocumentary from the Archive BrazilianFederacy for Feminine Progress, which ispart of the collection of the <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> do Brasil, as source in theresearch for the project “Conceptions of theBrazilian Federacy for the Feminine Progressabout women’s education”. It emphasizes thedocumentation of the First Conference for theFemine Progress, from 1922.Keywords: Brazilian Federacy for the FeminineProgress, history of the women’s education, FirstConference for the Women Progress, Bertha Lutz.Apartir dos anos de 1980 “a pedagogiafoi atravessada porum feixe de ‘novas emergências’,novas exigências e novas fórmulaseducativas, novos sujeitos dos processosformativos/educativos e novas orientaçõespolítico-culturais”. 1 Entre essas novasorientações temos os movimentosfemininos iniciados ainda no século XIX,visando o resgate social e a afirmaçãopolítica das mulheres, “reclamando ovoto, a instrução, as tutelas sociais parao trabalho feminino e a maternidade quepuseram no centro da consciênciaeducativa e da reflexão pedagógica o problemado gênero”. 2 No campo da pesqui-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 131


A C Esa em educação, no rastro da construçãode uma nova história da educação, oobjeto educação feminina tomou impulso,firmando-se nos anos de 1990 comouma nova abordagem de pesquisa.Para se pensar a educação feminina nopresente, faz-se necessário ir ao passado,a fim de compreender como as mulherese sua forma de inserção na instituiçãoescolar e na sociedade foram semodificando ao longo do tempo. Isso nosleva a buscar o lugar de sua própria participaçãonesse processo, tendo em vistaa sua história de luta políticareivindicatória por direitos sociais e garantiasindividuais. Como nos ensina LeGoff, precisamos “estar atentos às relaçõesentre presente e passado, isto é,compreender o presente pelo passado,mas também compreender o passadopelo presente”. 3 Nesse sentido, elaboreio projeto de pesquisa institucional “Asconcepções da Federação Brasileira peloProgresso Feminino sobre educação dasmulheres”, 4 tendo como fonte privilegiadao fundo/arquivo da própria Federação(FBPF), contido no acervo do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong>. Por meio dessa fonte de informação,resgata-se a memória de partedo pensamento feminista brasileiro, quetomou forma nas primeiras décadas doséculo XX, pertinente à educação e instruçãoda mulher brasileira.Por meio das leituras dos documentos,busco compreender a tessitura em queas concepções se forjaram, o contextohistórico-social em que se desenvolverame suas repercussões na sociedade e naeducação oficial, balizada pelas seguintesquestões:– Quais foram os motivos para a criaçãoda Federação?– Qual era o ideário educativo defendidopela Federação relativo à educaçãoe instrução das mulheres? Quaisas transformações sofridas no pensamentoeducacional da entidade nopercurso de sua existência, assimcomo os seus motivos?– Quais as suas contribuições para oacesso das mulheres a uma maiorescolarização e inserção social?– Em sua trajetória de luta, teve a Federaçãoinfluência nas políticas públicasinstituídas para a educação feminina?Como estratégia metodológica está sendofeito um levantamento, seleção, identificaçãoe descrição dos documentos (escritose imagéticos) em todo o fundo/arquivoFBPF, 5 que trazem a questão daeducação e da instrução para as mulheres.Esse procedimento vem tornandonecessária a busca de novas fontes no<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> e em outras instituiçõesde memória, visando cruzar a leitura dadocumentação em foco com essas outrasfontes e a bibliografia estudada, a fimde se ter um corpus de interlocução paraa compreensão das questões postas àpesquisa.Quando iniciei a pesquisa encontrei oarquivo organizado parcialmente, haven-pág. 132, jan/dez 2005


R V Odo apenas como instrumento de pesquisa6 um ‘inventário sumário’, 7 elaboradoem 1989, identificado da seguinte maneira:Fundo/Coleção 8 Federação Brasileirapelo Progresso Feminino; Datas-limite:1902 a 1979; Código do Fundo: Q0Seção de Guarda: SDP; Instrumento SDP046 – CODES. Os documentos estavamenvolvidos por papel, em envelopes ouencadernados, trazendo na frente umadescrição sumária do conteúdo e armazenadosem caixas de metal, alguns emprecárias condições e necessitando deum tratamento técnico de conservação 9e até mesmo de restauração. 10 Por issoa necessidade de vasculhar todas as caixasminuciosamente, tendo em vista meusobjetivos, o que demandava um grandetempo.Talvez, pelo exposto, em dezembro de2005 o material foi fechado à consultavisando sua reorganização com a elaboraçãode um novo instrumento de pesquisa.Quando terminei este artigo estavaesperando a reabertura do acesso àdocumentação textual, 11 pois ainda faltammuitas caixas a serem abertas e vasculhadase muito material a ser trabalhado.Porém, quanto à documentaçãoiconográfica, fui informada do término desua organização, devendo serdisponibilizada futuramente à consultapública por meio eletrônico, através deum novo instrumento de pesquisa.Enquanto isso não acontece, estou analisandoo material já coletado e partindopara outros arquivos e instituições embusca de outros documentos, necessidadesurgida em virtude da pesquisa nessefundo arquivístico.A FEDERAÇÃO BRASILEIRA PELOPROGRESSO FEMININO E BERTHA LUTZCriada por um grupo de mulheresde classe média e de altaescolaridade, a Federação Brasileirapelo Progresso Feminino tinhacomo membros de sua diretoria: BerthaLutz; Stella Durval; Jeronyma Mesquita;Cassilda Martins; Esther Ferreira Vianna;Evelina Arruda Pereira; Berenice MartinsPrates. 12 A documentação aponta para aatuação e presença marcantes de BerthaLutz como presidente, considerada pioneiranas lutas feministas no Brasil.Bertha Maria Júlia Lutz nasceu na cidadede São Paulo, no dia 2 de agosto de1894, filha da enfermeira inglesa AmyFowler e do médico-cientista Adolfo Lutz.Bióloga graduada pela Universidade daSorbonne, é nomeada, por concurso, em1919, para alto cargo no Museu <strong>Nacional</strong>.A trajetória de Bertha se confunde coma própria trajetória da FBPF. Após estudosna Europa, de volta ao Brasil, em1918, então com 24 anos, lutou intensamentepela emancipação feminina, nosentido de que fossem devidamente reconhecidosos direitos da mulher comopessoa humana e membro ativo da sociedade.Seu pensamento sobre as questõesfemininas é expresso, por exemplo,nos textos publicados nos boletins da Federação.A luta pela emancipação femi-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 133


A C Enina, de acordo com os documentos doarquivo já consultados e analisados ecom o Dicionário mulheres do Brasil, levou-aa criar, em 1919, a Liga para aEmancipação Intelectual da Mulher. 13Dessa iniciativa também tomou parte aprofessora e escritora Maria Lacerda deMoura, que, por divergências de idéias,acabou se afastando do grupo. Conformeo Dicionário, mudando-se para SãoPaulo, Maria Lacerda de Moura:ficou indignada ao se deparar comas condições de vida do proletariadopaulista. Abandonou, então, odiscurso ameno e reformista do grupoligado à FBPF e optou por maneirasmais contundentes de atuar politicamente,envolvendo-se intensamentecom o movimento operárioanarquista. Assumindo a presidênciada Federação Internacional Feminina,entidade criada por mulheres de SãoPaulo e Santos. 14Há correspondências trocadas entre asduas ativistas feministas.A Liga seria o embrião da Federação criadaem 1922, que se tornaria uma referênciado movimento feminista brasileirona primeira metade do século XX, comBerta Lutzpág. 134, jan/dez 2005


R V Odestaque especial para a conquista do sufrágiofeminino alcançado em 1932, entãosua principal bandeira de luta.Posteriormente, a Liga passou a denominar-seLiga pelo Progresso Feminino. Aadesão de mulheres de outros estadosàs idéias da entidade provocou a formaçãoda Federação das Ligas pelo ProgressoFeminino, que, em 19 de agosto de1922, após a participação de Bertha Lutzna Conferência Pan-Americana de Mulheres,realizada em Baltimore, Estados Unidos,tornou-se a Federação Brasileirapelo Progresso Feminino, organizandonesse mesmo ano a I Conferência peloProgresso Feminino, da qual falaremosmais adiante.Com sede no Rio de Janeiro à época desua fundação, a Federação contava comum material de divulgação de suas idéias,sobretudo na capital, local privilegiadode manifestações sociopolíticas culturais.A entidade discutia, entre outrosassuntos, a educação e a instrução paramulheres como meio destas conquistaremmaiores garantias e direitos sociais epolíticos, entre os quais o próprio direitoà educação e à instrução.O FUNDO FBPF: UMA FONTEMÚLTIPLAAssim como na edição de umfilme, quando terminamosuma tese de doutorado 15 muitodo material que foi coletado para asua produção é “descartado” ou não utilizadoem toda a sua potencialidade, considerandoo recorte dado à tese, no meucaso a educação profissional feminina.Porém, se por um lado, para esse objetivoinicial ele é desconsiderado, por outroé de extremo valor para a continuidadede nossas pesquisas e aprofundamentoda nossa temática mais ampla– a educação feminina. Na busca de fontepara a tese, passaram pelos meusolhos e mãos uma diversidade de documentos,tais como: atas, relatórios, pareceres,fotografias, entre eles os documentosdo Fundo Federação Brasileirapelo Progresso Feminino, onde se destacavaa documentação da I Conferênciapelo Progresso Feminino, ocorrida no Riode Janeiro, em 1922, ano de fundaçãoda FBPF.Naquele momento, considerando meusobjetivos, destaquei a discussão travadana Comissão de Educação e Instrução daConferência, referente à Escola ProfissionalFeminina. Contudo, observamos quemuitos outros temas foram discutidos,expressando o pensamento daquela entidadesobre a educação e instrução dasmulheres, e que eram merecedores deanálise no campo da pesquisa em históriada educação.Concluído o doutorado, elaborei o projetoinstitucional exposto acima e oramotivador deste artigo. O projeto tementre seus objetivos: analisar as concepçõeseducativas defendidas pela Federaçãorelativas à educação das mulheres,entendendo-a como uma das entidadespioneiras do movimento feminista brasi-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 135


A C Eleiro; e arrolar os documentos que, deuma forma ou de outra, nos apontamessas concepções visando à produção deum repertório 16 de fontes, para propiciara pesquisadores da educação e à sociedadeem geral o acesso à informaçãopertinente à trajetória de luta das mulheres,por exemplo, pelo acesso a umamaior escolarização.Considero o Fundo FederaçãoBrasileira pelo Progresso Feminino,conforme identificado no<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, com datas-limite de1902-1979, uma fonte primordial. 17 Deacordo com a definição dada pelo Dicionáriode terminologia arquivística, fundoé uma “unidade constituída pelo conjuntode documentos acumulados por umaentidade que, no arquivo permanente, 18passa a conviver com arquivos de outras”.19 Por estar contido no acervo do<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, e sendo a Federaçãouma pessoa jurídica, o seu arquivo, aoser recolhido por aquela instituição dememória, se caracteriza como privado depessoa jurídica, passando a se constituirem mais um dos fundos que compõem oreferido acervo. Como fonte que encerramúltiplas possibilidades de pesquisa,pela sua variedade de espécies documentaise pelas possíveis temáticas quenele encontramos para o estudo sobreeducação, ele foi arrolado no Guia preliminarde fontes para a história da educaçãobrasileira, coordenado porClarice Nunes e publicado pelo INEP, em1992.Composto de 89 caixas de documentosarrolados num inventário sumário, encontramosneste fundo arquivístico uma variedadede espécies documentais que noslevam a pensar a participação dessa entidadenas questões postas à educaçãofeminina, tanto no âmbito oficial do sistemaeducacional, quanto na sociedadeem geral. Composto de boletins de divulgação;estatutos da entidade; livros deatas; cartas; bilhetes; relatórios; recortesde jornais e revistas; discursos desuas associadas e dirigentes; entrevistas;artigos; índice dos arquivos do Museu<strong>Nacional</strong>, organizado por Bertha Lutz epublicado em 1920; originais dos anaisda I Conferência pelo Progresso Feminino,de 1922, e do II Congresso InternacionalFeminista, 20 de 1931; livretointitulado: D. Bertha Lutz: homenagemdas senhoras brasileiras à ilustre presidenteda União Interamericana de Mulheres,de 1925, e um outro de divulgaçãodo programa do curso “Cruzada nacionalde educação política”, como comemoraçãodo décimo aniversário da Federação;impresso arrolando “Os 13 princípiosbásicos”, como sugestões ao anteprojetoda Constituição, de 1933, enfatizandoquestões vinculadas ao cotidiano dasmulheres, especificamente sobre a maternidadee proteção à infância, condiçõesde trabalho, estado civil, dentreoutras; palestra Como escolher um bommarido, na visão de um eugenista, realizadapelo dr. Renato Kehl; fragmentos datese de livre-docência de Bertha Lutz: Anacionalidade da mulher casada perantepág. 136, jan/dez 2005


R V Oo direito internacional privado, apresentadaà Faculdade de Direito de Niterói,no concurso para livre-docência na cadeirade direito internacional privado; o artigo“A Revolução de 1930 no Brasil”;discursos de Bertha Lutz na Organizaçãodas Nações Unidas, em 1951; textos sobreo ensino agrícola, no Brasil e na Europa;entre tantos outros produzidos eacumulados no percurso de sua existência.Há também documentos pessoais deBertha Lutz, tais como: curriculum vitae,passaporte, título de eleitor, dados biográficos,e, ainda mais, um significativoconjunto de imagens fotográficas referentesàs atividades da Federação e de suasassociadas.Dessa documentação foi produzido umCD-ROM referente à I Conferência peloProgresso Feminino, funcionando comoum instrumento de busca.Todo o material que compõe o FundoFBPF é fonte de consulta, propiciandoinformações ao pesquisador e sendo oponto de partida de sua análise, tendoem vista o objeto histórico estudado –no meu caso, as concepções educativaspara o sexo feminino daquela agremiaçãoassociativa e suas repercussões na educação,no sistema educacional e na sociedadeem geral. Para Saviani, todas asfontes históricas são construídas, sãoproduções humanas, portanto elas estãona origem do trabalho do historiador, ouseja, “as fontes históricas não são a fonteda história [...] não é delas que brotae flui a história. Elas, enquanto registros,enquanto testemunhos dos atos históricos,são a fonte do nosso conhecimentohistórico, isto é, é delas que brota, énelas que se apóia o conhecimento queproduzimos a respeito da história”. 21 Paraesse educador, todo material de pesquisasó adquire “o estatuto de fonte diantedo historiador que, ao formular o seuproblema de pesquisa, delimitará aqueleselementos a partir dos quais serãobuscadas as respostas às questões levantadas”.22Tendo em vista a correspondência,até o momento foi possívelperceber algumas redes de relaçõestecidas pela entidade. Os documentosapontam uma interlocução coma Pró-Matre; a Associação Cristã Feminina;diversas entidades internacionais feministascomo a International Associationof University Women e o Institute forInternational Education; a União UniversitáriaFeminina; a Associação Pan-Americanade Mulheres e sua presidenteCarrie Chapman Catt, também presidenteda Aliança Internacional pelo SufrágioFeminino; com o governo federal e doDistrito Federal e de outras unidades dafederação; com a Diretoria de InstruçãoPública do Distrito Federal; parlamentares,diretoras e professoras, e médicos.Para efeito deste artigo, a seguir destacoinformações trazidas pela documentaçãoreferente a I Conferência peloProgresso Feminino, para se pensar asconcepções de educação daquela entidade.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 137


A C EA DOCUMENTAÇÃO REFERENTE ÀI CONFERÊNCIA PELO PROGRESSOFEMININOOcorrida no Rio de Janeiro, em1922, ano de fundação da Federação,desta I Conferênciaparticiparam pela FBPF 25 delegadas,representantes de várias comissões compostasde senhoras da sociedade, profissionaisengenheiras civis e agrônomas,funcionárias públicas, professoras, entreoutras. Presidida por Bertha Lutz, tevecomo delegada de honra Carrie ChapmanCatt, presidente da Aliança Internacionalpelo Sufrágio Feminino e da AssociaçãoPan-Americana de Mulheres. Participaramtambém algumas associações, entre elasa Liga de Professores, a Cruzada <strong>Nacional</strong>Contra a Tuberculose, o Centro SocialFeminino, a Cruz Vermelha, a Legiãoda Mulher Brasileira e a União dos Empregadosno Comércio, e representantesde vários estados da federação, comoPernambuco, Paraíba, Bahia e Sergipe,Pará, Santa Catarina, Amazonas, EspíritoSanto e também do Distrito Federal.Participaram, ainda, diversos colaboradores,entre eles senadores, deputados,médicos e advogados. Foram instituídasna Conferência as seguintes comissões:Educação e instrução; Legislação do trabalho;Assistência às mães e à infância;Direitos civis e políticos; Carreiras e profissõesapropriadas a serem franqueadasao sexo feminino; Relações Pan-Americanase Paz.A Conferência teve como tese geral: “Acolaboração da Liga pelo Progresso Femininona educação da mulher, no bemsocial e aperfeiçoamentos humanos”. AComissão de Educação e Instrução discutiudiversos temas referentes à educaçãofeminina e foi composta por EstherPedreira de Mello; Benevenuta Ribeiro,Congresso feminista de 1922, com a presençada líder feminista norte-americana, Carrie Chapman Catt, Berta Lutz e outras feministas.pág. 138, jan/dez 2005


R V Odiretora da Escola Profissional FemininaRivadávia Correa; Maria [Xaltrão] Gaze,diretora da Escola de Aplicação; delegadasda Diretoria da Instrução Pública doDistrito Federal; Corina Barreiros; MariaAdelaide Quintanilha e Brites Soares,pela Federação; Carmem de Carvalho eAnna Borges Ferreira, pela Liga do DistritoFederal; Branca Canto de Mello pelaLiga Paulista pelo Progresso Feminino;Carneiro Leão, diretor de Instrução Públicado Distrito Federal; e os deputadosJosé Augusto e Tavares Cavalcante. Nelacolocavam-se preocupações com a educaçãoescolar das mulheres, envolvendoquestões em torno da formação para: omagistério primário; o exercício das profissõesdo comércio e ofícios; a funçãodoméstica e a responsabilidade sobre aeducação dos filhos; e a formação devalores.Especificamente, na Comissão de Educaçãoe Instrução debatiam 23– Quanto ao ensino primário: O ensinoprimário deve ser obrigatório? Desdeque idade a criança deve receber aeducação proporcionada pelo Estado?Desde as escolas e classes maternaise jardins da infância? É recomendávelem todas as idades a co-educaçãodos sexos? Em caso negativo, em queidade deve cessar? As funções domagistério público primário devem serprivativas das mulheres em todos osgraus? Qual a colaboração que podemter os homens nisso? O casamentodeve incompatibilizar a mulher parao exercício do magistério primário? Odesenho e os trabalhos manuais devemser obrigatórios em todos os cursosprimários?Congresso Feminista de 1922, com a presença da líder feminista norte-americana,Carrie Chapman Catt (4ª posição), Berta Lutz (5ª posição) e Júlia Lopes de Almeida (6ª posição)Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 139


A C E– Quanto ao ensino profissional, domésticoe agrícola: Como primeiro passopara o ensino profissional deve-se difundirlargamente o ensino do desenhoa mão-livre? Deve ter a mais ampladifusão o estudo da economia domésticacom as suas aplicações à agricultura?Deve-se promover largamentea criação de escolas para mães defamília, onde se ensinem, além da economiae prendas domésticas, as noçõesessenciais de higiene e medicinainfantil? O ensino profissional deve serobrigatório? Quais os trabalhos especiaisque devem ser cultivados pelosexo feminino e quais os modelos quedevem ser ministrados? Como se deveresolver a questão da obrigatoriedadedo ensino profissional para as mulheres?Em que casos podem ser dispensadasdo aprendizado de artes eofícios?– Quanto à educação cívica: Nas escolasdomésticas e estabelecimentos profissionaisfemininos, ministrar-se-á oensino da Constituição e o direito usual,procurando-se desenvolver nas alunasa preocupação com o bem públicoe habilitando-as a desempenharsua missão social.– Quanto ao ensino secundário e superior:Deve ser facultativo o ingressoàs mulheres em todos os cargos civisde ensino superior e secundário? Nosaludidos cursos deve haver seçõesespeciais para as alunas ou, ao contrário,devem elas freqüentar as aulase exercícios escolares juntamentecom os rapazes? Na hipótese doensino simultâneo dos sexos, há necessidadede providências administrativaspara resguardar a boa ordeme a disciplina? Em caso afirmativo,quais são elas?A discussão em torno dessas questões foiacalorada. Ficou claro o embate travadono seio da entidade considerando as diversasopiniões de suas associadas, o quegerou conclusões que não correspondiama um pensamento único da entidade. Odebate em torno do ofício do magistérioprimário, ou seja, se as funções do magistériopúblico primário devem ser privativasdas mulheres, é representativo.Defendida por Maria José [Xaltrão] Gaze,a exclusividade da Escola Normal paramulheres era contra-argumentada porGuilhermina Vieira da Matta, delegada doEspírito Santo, que reconhecia possuir amulher “muito mais que o homem sentimentosafetivos, paciência e astúcia paracompreender a alma da criança e educála”,24 embora houvesse a necessidade derapazes no ensino primário, considerandoque a instrução primária não era oferecidaapenas nas capitais, onde a criançajá tinha uma vivência com a civilização,mas também nos sertões, locaisonde a comunicação era muito mais difícil,sendo mais fácil aos homens “penetrarpara civilizar” os filhos daqueles queviviam afastados da civilização e em plenoanalfabetismo. Fica evidente que,para ela, esta árdua tarefa seria maispág. 140, jan/dez 2005


R V Oapropriada aos homens do que as mulheres,seres considerados mais frágeisnaquela sociedade republicana. Seu argumentodemonstra, ainda, a divisão entrea cidade e o campo no que se refereà escolarização da população àquelaépoca.Outro argumento está no fato de que émais adequado aos homens lecionaremnos cursos noturnos destinados ao operariadodo que às mulheres. Assim, éimportante que os homens sejam preparadospela Escola Normal para esses encargosmais pesados do exercício domagistério, para que as escolas não sejamocupadas por pessoal sem formaçãoe incompetente. Aqui, revela-se tambéma divisão histórica no que se refere aquem se destina o ensino noturno, emregra destinado às classes menosfavorecidas – no caso o operariado – enquantoo ensino diurno é destinado àsclasses mais abastadas. A preocupaçãoé que, ao concordarem em excluir o sexomasculino da Escola Normal, não viessemelas a contribuir para a ruína desse nívelde ensino naqueles estratos sociais maisdesfavorecidos.Pondera ainda que o rapaz que não dispõede recursos para pagar a matrículados Ginásios pode cursar a Escola Normal,em vez de se limitar apenas à instruçãoprimária. Seria, também, contraditóriofechar as portas da Escola Normalaos homens, se a entrada das mulheresno Colégio Pedro II 25 e em outroscursos superiores era reivindicada naquelefórum de discussão. Nesse sentido,uma das responsáveis pela defesa daentrada de meninas no Colégio Pedro IIé Bertha Lutz. Sua indicação à Comissãode Ensino foi a seguinte:Considerando existir atualmente noBrasil ensino primário, profissional esuperior destinado ao sexo feminino;Considerando existir ensino secundáriooficial para o sexo feminino namaioria, senão na totalidade dos estados;Considerando não existir entretantoensino oficial secundário para o sexofeminino no Distrito Federal;Considerando ressentir-se a educaçãoda mulher, do ponto de vista dafacilidade de adquirir cultura geral,como do preparo as escolas superioresfranqueadas ao sexo feminino.A Comissão de Ensino propõe que aConferência pelo Progresso Femininolembre às autoridades competentesa conveniência de ser franqueado aosexo feminino o Colégio Pedro 2 o deacordo com o projeto apresentadona sua própria congregação e o votonesse sentido de recente Congressode Ensino, lembrando ainda a vantagemde fazer sentir às autoridadesreferidas ser oportuno o momentoatual para franqueá-lo a fim de queno próximo concurso de entrada possamapresentar-se candidatos dosexo feminino sendo reparado destemodo, imediatamente, a lamentávelAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 141


A C Efalha na instrução do sexo femininona nossa capital. 26O Colégio Pedro II foi fundado em 1837, 27mas a entrada de meninas só foi efetivamenteconcretizada em 1927. 28 Assim, apresença feminina no Colégio representouo atendimento de uma das reivindicaçõesdas camadas médias e de partedo movimento feminista que se constituíana década de 1920, conforme documentosda citada Conferência.Ainda durante o Império, “as escolas denível secundário particulares para meninase a Escola Normal não se equiparavam,em nível acadêmico, ao Colégio D.Pedro II, exclusivamente masculino”. 29Nos países avançados, as mulheres jáestavam na direção de escolas masculinas,como, por exemplo, nos Estados Unidos.No Brasil, enquanto os meninos cursavamo ensino secundário, visando aoacesso aos cursos superiores, a maioriadas moças cursava a Escola Normal, destinada“a profissionalização e/ou ao preparopara o lar”. 30É importante reforçar que a Conferênciacontou com a presença do diretor de InstruçãoPública do Distrito Federal, AntônioCarneiro Leão (1922-1926), comomembro da Comissão de Educação e Instrução,nacionalista identificado com acrença no poder da educação como meiocapaz de vencer as grandes mazelas sociais(o analfabetismo e as doenças queassolavam a cidade do Rio de Janeiro eo país) e implementar as bases do novo:Alunas e professores da Escola Venceslau Brazcom Berta Lutz (4ª posição) durante o II Congresso Internacional Feministapág. 142, jan/dez 2005


R V Oum novo país, uma nova cidade, um novohomem, uma nova educação. E tambémcom várias diretoras e professoras representantesda Diretoria de Instrução Públicado Distrito Federal, além de váriasprofessoras de outras unidades federativas,assim como filiadas à Federação.O II Congresso Internacional Feministarealizou-se nove anos depois, em 1931,e de novo no Rio de Janeiro. É de se destacarque, entre outros documentos, háuma reportagem do Diário Carioca – oseventos mereceram uma grande coberturada imprensa escrita –, onde se vê oregistro fotográfico da visita das conferencistasao Colégio Pedro II.ConclusãoO Fundo FBPF possibilita estudosinterdisciplinares a respeito da atuaçãoda Federação e de Bertha Lutz, sua líderfeminista mais “famosa”, cuja história devida se confunde com a história da Federação.Suas bandeiras de luta e o direitodas mulheres à educação e à instrução éo que estou a pesquisar e a estudar, considerandoo período coberto pela documentação– 1902 a 1972.A identificação nesse fundo arquivísticode outras organizações ou associaçõesrepresentativas da luta pela emancipaçãofeminina com suas concepções deeducação já resultou no subprojetointitulado “O ensino superior para mulheres:concepções da União UniversitáriaFeminina”, entidade surgida em1929, que vem sendo desenvolvido pelabolsista de iniciação científica da UNIRIOCaren Victorino Regis, sob minha orientação.Por fim, acredito ser o trabalho de pesquisaque ora apresento uma contribuiçãopara se pensar a trajetória da educaçãodas mulheres e sua repercussãohoje, que não se esgota em si mesmo,pois, ao ser exposto, abre múltiplas possibilidadesde discussão, o que dá o tomII Congresso Internacional Feminista. Sentadas,Jerônima Mesquita (2ª posição), Carlota Pereira de Queiroz (4ª posição) e Berta Lutz (5ª posição)Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 143


A C Eda produção e pesquisa acadêmica.Apresentamos apenas um texto preliminarsobre o tema, sabendo que esta fontetem muito a ser explorada. O movimentofeminista da época, em sua primeiraedição no Brasil, não deixa de terseus méritos, porém foi considerado,posteriormente, como elitista. Araújodestaca que, no Rio de Janeiro, DistritoFederal, os ideais de emancipação femininaressoaram influenciados pelos movimentosfeministas europeu e americano.Na capital, “a produção cultural, ocomportamento social e a moda tentamseguir os modelos dos países consideradosavançados”. 31 Verificamos essaindumentária por meio das imagens fotográficasdas ativistas da Federação,publicadas em periódicos da época porocasião dos feitos da entidade.Mas, por enquanto, deixemos essa discussão.N O T A S1. Franco Cambi, História da pedagogia, tradução de Álvaro Lorencini, São Paulo, Editorada Universidade Estadual Paulista, 1999, p. 638. (Encyclopaidéia).2. Idem.3. Jacques Le Goff, A história nova, São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 34.4. A partir de 2006 o projeto passou a ter o apoio da Faperj – Fundação Carlos ChagasFilho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.5. Essa etapa, a partir do 2º semestre de 2005, conta com a colaboração de Caren VictorinoRegis, bolsista de iniciação científica da UNIRIO, e Raquel Silva Simon como voluntáriada pesquisa. Ambas alunas do curso de pedagogia da UNIRIO.6. “Obra de referência, publicada ou não, que identifica, localiza, resume ou transcreve,em diferentes graus e amplitudes, fundos, grupos, séries e peças documentais existentesem um arquivo permanente, com a finalidade de controle e de acesso ao acervo.”Ana Maria de Almeida Camargo e Heloísa Liberalli Belloto (coord.), Dicionário de terminologiaarquivística, São Paulo, Associação dos Arquivistas Brasileiros – Núcleo RegionalSão Paulo; Secretaria de Estado da Cultura, 1996, p. 44. São exemplos de instrumentosde pesquisa: catálogo, guia, índice, inventários sumário e análitico, repertório.7. Instrumento de pesquisa onde a descrição do Fundo está feita de forma sumária.8. Coleção é uma “reunião artificial de documentos que, não mantendo relação orgânicaentre si, apresentam alguma característica comum”. Dicionário de terminologiaarquivística, op. cit., p. 17.9. Tecnicamente, a conservação é entendida como “um conjunto de procedimentos quetem por objetivo melhorar o estado físico do suporte, aumentar sua permanência eprolongar-lhe a vida útil, possibilitando, desta forma, o seu acesso por parte das geraçõesfuturas”. Sérgio Conde de Albite Silva, Algumas reflexões sobre preservação deacervos em arquivos e bibliotecas, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1998,p. 9 (Centro de Memória, Comunicação Técnica, 1).pág. 144, jan/dez 2005


R V O10 A restauração já é um procedimento muito mais caro e agressivo, fragilizando o suportede papel. Conceitualmente, é entendido como “um conjunto de procedimentos que visarecuperar, o mais próximo possível, o estado original de uma obra ou documento”. Oideal é que se proceda a conservação preventiva que “abrange não só a melhoria dascondições do meio ambiente nas áreas de guarda do acervo e nos meios de armazenagem,como também cuidados com o acondicionamento e o uso adequado dos acervos,visando retardar a degradação dos materiais. É, pois, um tratamento de massa, feito emconjunto”. As ações de conservação preventiva são aconselhadas por serem mais econômicas,dando uma longevidade ao documento, evitando com isso uma intervençãomais radical como a restauração. (Sergio Conde de A. Silva, op. cit., p. 9).11. Embora saiba que a organização técnica e a higienização de um conjunto de documentosarquivísticos demanda longo tempo.12. No Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, biográfico e ilustrado, encontramosverbetes de algumas dessas mulheres, a saber: Bertha Lutz (ver p. 106-112);Stella Durval (ver p. 502); Jeronyma Mesquita (ver p. 290-291); Evelina Arruda Pereira(ver p. 214-215). Mantive os nomes grafados como aparecem no documento original. NoDicionário também encontramos um verbete referente à FBPF (ver p. 217-225). SchumaSchmaher e Érico Vital Brazil (orgs.), Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até atualidade,biográfico e ilustrado, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000.13. Ibidem, p. 106-112.14. Ibidem, p. 399.15. Nailda Marinho da Costa Bonato, A escola profissional para o sexo feminino através daimagem fotográfica, Campinas, Unicamp, 2003, (tese de doutorado em educação defendidaem 6 de agosto de 2003).16. Aqui, repertório é entendido como um instrumento de pesquisa composto de documentospreviamente selecionados, pertencentes a um ou mais fundos ou arquivos, segundoum critério temático. Nesse caso, do Fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino,destacam-se os documentos que, de uma forma ou de outra, trazem a temáticaeducação feminina.17. Conforme José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil, 3 a ed., São Paulo,Companhia Editora <strong>Nacional</strong>; Brasília, INL, 1978. (Brasiliana: Série grande formato; v.20).18. Conjunto de documentos produzidos por uma pessoa física ou jurídica, pública ouprivada, no percurso de sua existência, e que é custodiado em caráter definitivo, emfunção do seu valor de uso probatório, histórico, social e cultural. Dicionário de terminologiaarquivística, op. cit., p. 8.19. Ibidem, p. 40.20. Sinalizamos que a bibliografia sobre Bertha Lutz e a Federação se refere ao evento de1922 como “I Congresso Internacional pelo Progresso Feminino”; aqui estamos usandoa denominação “Conferência” tal como encontrada nos originais do arquivo da Federação.Entretanto, conforme os documentos de 1931, ocorre o “II Congresso Internacionalpelo Progresso Feminino”.21. Dermeval Saviani, Breves considerações sobre fontes para a história da educação, emJosé Claudinei Lombardi e Maria Isabel Moura Nascimento (orgs.), Fontes, história ehistoriografia da educação, Campinas, Autores Associados: HISTEDBR; Curitiba, PontifíciaUniversidade Católica do Paraná (PUCPR); Palmas, Centro Universitário Diocesano doSudoeste do Paraná (UNICS); Ponta Grossa, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),2004, p. 5-6 (Coleção Memória da Educação).22. Ibidem, p. 6-7.23. Fonte: Fundo FBPF/AN.24. Fonte: Fundo FBPF/AN.25. Fundado em 1837, só a partir de 1882 vamos encontrar algumas poucas matrículas demeninas no conceituado Colégio. Conforme Escragnolle Dória, em sua obra Memóriahistórica do Colégio Pedro Segundo (1939, p. 170), a abertura do ano letivo de 1883 noexternato seria marcado por uma novidade: “O dr. Candido Barata Ribeiro, lente de medicina,requereu matrícula no 1º ano para suas filhas Cândida e Leonor Borges Ribeiro.Ocupava a Pasta do Império, o senador Pedro Leão Velloso, o qual por aviso de 22 defevereiro de 1883 autorizou o reitor da Instituição a admitir no externato “alunas doAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 131-146, jan/dez 2005 - pág. 145


A C Esexo feminino”, por não existir disposição legal proibitiva. Além das filhas do médico,aproveitaram-se da concessão Maria Julia Picanço da Costa, Olympia e Zulmira de MoraesKohn, também depois professoras municipais“. Podemos também constatar essa informaçãono verbete sobre Yvone Monteiro da Silva, aluna do Colégio em 1927, no Dicionáriomulheres do Brasil: de 1500 até atualidade, biográfico e ilustrado, op. cit., p. 529.Em 1885, havia no estabelecimento 15 alunas matriculadas e cinco ouvintes. O reitorsolicitava ao ministro a nomeação de uma inspetora, ponderando, contudo, a conveniênciade serem as alunas do externato, encaminhadas para outras instituições escolaresadequadas ao sexo feminino. Das alunas do externato uma contava 22 anos de idade,outra 16, a idade das demais variava entre 10 e 14 anos. Só uma freqüentava o 3º ano,as outras o 1º e o 2º ano. Finalizava o ano letivo de 1885 com a providência do ministroMamoré no sentido de não mais serem admitidas alunas, por ser o Colégio destinadosomente ao ensino de pessoas do sexo masculino. Mas como seria injusto deixar asalunas do externato ao desamparo de instrução convinha encaminhá-las para a EscolaNormal, para o Liceu de Artes e Ofícios (O Liceu mantinha uma seção de ensino para osexo feminino) ou mesmo para o “Curso noturno gratuito para o sexo feminino estabelecidono Externato do Instituto de Instrução Secundária depois estabelecido no Ginásio<strong>Nacional</strong>”, fundado pelo professor José Manoel Garcia. Assim, em 1889 as alunassão transferidas para estabelecimentos de ensino “próprios para o sexo feminino”, voltandoaquela instituição educativa a ser excluivamente para o sexo masculino até 1926.26. Fonte Fundo FBPF/AN.27. De acordo com Escragnolle Doria, op. cit., o Colégio teve origem no Seminário SãoJoaquim. A proposta de reorganização desse Seminário ocorreu na Regência de Pedro deAraújo Lima, o marquês de Olinda, sendo ministro da Justiça e interino do ImpérioBernardo Pereira de Vasconcelos. Através do decreto de 2 de dezembro de 1837, oSeminário foi batizado de “Colégio de Pedro Segundo”. A data foi escolhida de propósitopor conta da passagem natalícia do imperador Pedro II. A inauguração aconteceu em 25de março de 1838.28. Em 1926, em virtude de uma interpretação dada pelo diretor-geral do Departamento<strong>Nacional</strong> de Ensino a um dispositivo do decreto nº 16.782A, permitiu-se que no externatoingressasse uma aluna de nome Yvonne Monteiro da Silva, iniciando seus estudos noano seguinte. Isso abriu precedente para outras matrículas. Então, naquele ano de 1927,encontramos matrículadas no externato 27 meninas e 717 meninos.29. Rosa Maria Barboza de Araújo, A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio deJaneiro republicano, 2ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p. 70.30. Rachel Soihet, A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militânciafeminista de Bertha Lutz, Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, Anped; Campinas,Autores Associados, set./dez. 2000, n. 15, p. 98.31. Rosa Maria Barboza de Araújo, A vocação do prazer, op. cit., p. 72.pág. 146, jan/dez 2005


R V OWarley da CostaMestranda em Educação pela UniRio.Especialista em História do Brasil pela UFF. Graduada em História pela UFRJ.Professora das Redes Municipal e Estadual do Rio de Janeiro.Olhares sobre as Imagensda Escravidão AfricanaDos pintores viajantes aos livros didáticosde história do ensino fundamentalEste texto analisa a importância dasimagens da escravidão africana nos livrosdidáticos de história do ensinofundamental, produzidas por pintoreseuropeus no século XIX, e reproduzidasnesses livros. Reflete sobre a apropriaçãodessas figuras pelo mercado editorial, a produçãohistoriográfica e o ensino de história.Palavras-chave: escravidão, livro didático,imagem, memória.This paper analyzes the importance ofAfrican slavery images in Historyschoolbooks used in elementary teachingand produced by European painters onthe 19th century. It reflects theappropriation of theses pictures byeditorial market, historiographic productionand the teaching of History itself.Keywords: slavery, schoolbooks,image, memory.Otexto a seguir 1 reflete sobre osmodos de ver as imagens da escravidãoafricana reproduzidasnos livros didáticos do ensino fundamental2 e o significado desse recurso pedagógicocomo mediador de saberes e acervode memórias.A leitura das imagens da escravidão africananos livros didáticos nos remete aum passado histórico através das cenasretratadas por pintores ainda no períodoescravista e reproduzidas na atualidadenesses livros.A análise do texto imagético pode proporcionaruma reflexão acerca da leiturade mundo dos pintores europeus doséculo XIX e, sobretudo, da leitura dopesquisador, que há de considerar ascondições em que essas figuras foramselecionadas e reproduzidas, tais comoAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 147


A C Etendências historiográficas, interesses domercado editorial, entre outras. Há deconsiderar também, o uso que se fazdessas imagens, ricas fontes documentais,que fazem emergir memórias adormecidas,verdadeiros elos entre o presentee o passado.A ARTE DE OLHAR AS IMAGENSAriqueza de informações contidasnum quadro, numa fotografiaou mesmo num filme,incentivou o uso de imagens como fontedocumental, nas últimas décadas, peloshistoriadores.Imagens, fragmentos do todo, não podemser percebidas desarticuladas do universosocial em que estiveram inseridasquando produzidas. Ao mesmo tempo,elas falam por si, elas revelam aspectosisolados em seu contexto. Nesse sentido,ao tratar da análise e dos modos dever as pinturas, convém observar e indagaro que elas nos dizem a respeito dasculturas em que foram produzidas e quala sua finalidade ao ser criada. Elas foramproduzidas para ilustrar determinadotexto, para ornamentar determinadapeça de arte (como os vasos ousarcófagos), ou para registrar o presentevivido para a posteridade? O mosaicoque ornamentava as igrejas no século VI,por exemplo, cumpria o objetivo de informaraos fiéis as mensagens sagradas,uma vez que a maioria da população nãodominava o código verbal e a Igreja necessitavadifundir seus ensinamentos.“Como explicou o papa Gregório Magno,‘as pinturas podem fazer pelos analfabetoso que a escrita faz para os que sabemler’”. 3Outro ponto importante para avaliar seriaperceber até que ponto elas são realistas.Retratam ou não a realidade emque vivia seu criador? O pintor estevepresente ao acontecimento ou foi elaboradaposteriormente? O cenário é naturalou foi criado? Finalmente, não poderíamosestudar a imagem sem considerarseu próprio processo de produção,incluindo aí, formas, padrões, cores etecnologias empregadas. Tais aspectostendem a revelar o contexto cultural emque foram produzidas, assim como astecnologias empregadas podem expressaro nível de desenvolvimento de determinadasculturas. Nas pinturas nas cavernasidentificamos a limitação do númerode cores e o tipo de tinta extraída danatureza, (terra – marrom, urucum – vermelho),revelando as condições do artistana pré-história.Outro aspecto a ser considerado é quantoao como e para quê são utilizadas.Nessa perspectiva é que focamos nossalente para as imagens da escravidão noslivros didáticos do ensino fundamental.A IMPORTÂNCIA DE “VER AS CENAS”PARA APRENDERComo um importante recurso pedagógico,as imagens vêm sendoamplamente utilizadas nasedições mais recentes dos livros didáticosde história para o ensino fundamental.Ao folhearmos os livros didáticos depág. 148, jan/dez 2005


R V Ohistória disponíveis no mercado editorialnas últimas décadas, verificamos que háuma grande quantidade de gravuras noslivros de ensino fundamental, diminuindoconsideravelmente essa quantidadenos livros de ensino médio.Para aquele nível de ensino, o mercadoprivilegiou o uso de imagens como ilustraçãodo texto, satisfazendo a grandedemanda da cultura visual contemporânea.As imagens, além de ilustrar o texto,dão um colorido especial ao livro, tornando-omais atrativo para o aluno. CirceBittencourt enfatiza que:O caráter mercadológico e as questõestécnicas de fabricação da obradidática interferem no processo deseleção e organização das imagens edelimitam os critérios de escolha, namaioria das vezes, das ilustrações.[...] Os livros didáticos não podemser caros, mas necessitam de gravuras,como pressuposto pedagógicoda aprendizagem, principalmentepara alunos do ensino elementar.4Portanto, a importância da imagem no atode aprender é inquestionável. “As criançastêm necessidade de ver as cenas históricaspara compreender a história. Épor essa razão que os livros de históriaque vos apresento estão repletos de imagens”,5 diz Ernest Lavisse, historiadorfrancês do século XIX e autor de livrosdidáticos. Para esse autor “ver as cenas”possibilita uma melhor compreensão dosconteúdos escritos além de facilitar amemorização dos fatos.A leitura da imagem proporciona ao receptorum sentido, um significado própriode acordo com suas vivências. SegundoJohn Berger “nunca olhamos apenas umacoisa, estamos sempre olhando para asrelações entre as coisas e nós mesmos”. 6Nesse sentido, é inevitável que uma gravurapossa estabelecer relações entre opresente e o passado, tendo como mediadoraa memória. Assim, a imagem induzo espectador a estabelecer uma redede significações de acordo com experiênciasindividuais, socializando valores eelaborando saberes e identidades coletivas.Para Miriam LeiteIsso ocorre no caso de imagens deconjuntos de objetos, retratados deuma pessoa ou pequenos grupos, emais se acentua a tendência quandoa imagem é lida como documentaçãode um inter-relacionamento social,quando é preciso recriar uma realidadeem função de um nível preponderanteda experiência, da memóriaque organiza, desorganiza e reorganizaaquilo que o tempo, seu maiorinimigo, vai destruindo. 7Nos livros didáticos de história analisadospodemos observar que a abundânciade imagens parece nos querer informaras condições de vida dos cativos,reforçando a trajetória de vida sofrida,de permanente dor. As séries de imagensneles estampadas referem-se ao trabalhoem cativeiro, castigos corporais, capturae cenas do comércio de almas.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 149


A C EA maioria das ilustrações é de autoria deJohann Moritz Rugendas e de Jean-Baptiste Debret, artistas do século XIX,que retrataram o cotidiano do Brasil desseperíodo. Desses artistas, as obras quetraduzem festas ou qualquer tipo de autonomia,estão descartadas.OLHARES DOS PINTORES-VIAJANTES:DEBRET E RUGENDASEssas obras imagéticas representamum verdadeiro tesouro paraa historiografia brasileira, nosentido de que buscavam retratar cenasdo cotidiano. Mesmo com o olharenviesado de europeu, Debret não deixoude reproduzir o negro e o índio nasociedade brasileira, causando muitasvezes desconfiança entre as autoridades.Ao olhar cuidadoso de Debret não escapavanenhum detalhe: de ricos comerciantesa simples escravos, das famíliasmais tradicionais às mais pobres. A redede informações se estendia também aocardápio, às atividades econômicas, aosritos, às festas, numa descrição minuciosados hábitos e costumes brasileiros.Havia em seu trabalho a preocupação emretratar para o europeu a realidade brasileira.No período em que o artista esteve noBrasil, na transição entre Colônia e Império,havia a necessidade de consolidaruma nova imagem da nação brasileira euma preocupação em valorizar a imagemdo Brasil, afastando o estigma de paísexótico.Influenciado pelo neoclassicismo deJean-Louis David, seu primo, Debret justificavaa veracidade de suas obras pelofato do artista estar testemunhando ofato que está pintando. De acordo comDebret, O jantar no Brasil, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, v. 2, pr. 7, São Paulo, Edusp, 1989pág. 150, jan/dez 2005


R V OValéria Lima, trata-se do realismoempíricocujo princípio básico é a observaçãodireta do pintor.A composição se dava por etapas e oproduto final deveria ser a traduçãomais perfeita desse trabalho minucioso.Nele reinariam o equilíbrio, aforça e a pureza da arte pictórica. Aarte teria, então, a oportunidade deexpressar verdades inquestionáveis eeternas, valores associados a umamoral regenerada e que espelhavamum novo sentido ético.A questão do realismo neoclássico e,portanto, o grande elo entre a inspiraçãodavidiana de Debret e sua experiênciano Brasil. 8Debret chegou ao Brasil convidado a integrara Missão Artística Francesa, quetinha como objetivo organizar um grupode artistas e mestres que pudessem implantarno Rio de Janeiro, sede do governoportuguês nessa época, uma escolade artes e ofícios.A inauguração da Academia Imperial deBelas Artes, em 1816, amenizou o preconceitoexistente em relação aos pintores,já que a classe dominante no Brasilpassou a ver nessas manifestações artísticasa possibilidade de aproximaçãocom a cultura européia, incluindo as artesna educação de seus filhos. O artista,então, adquiria aos poucos um certoprestígio junto à elite brasileira.[...] a vinda da Missão Francesa e afundação da Academia teve como umdos seus objetivos a tentativa de revertera imagem preconceituosaconferida ao artista brasileiro no contextosocial da época. O artista plásticoera visto com desprezo, pois seutrabalho de origem manual era associadoàs artes mecânicas que, por suavez, eram destinadas aos escravos. 9Ao mesmo tempo era necessário construiruma nova imagem desse novo país.Valorizar a imagem do Brasil, afastandoo estigma de país exótico, talvez tenhasido uma iniciativa do próprio pintor.O artista, além de compor a Academiade Artes, tinha a função de cenógrafooficial da Corte. Ele foi o responsável pordocumentar importantes momentos dahistória da Casa de Bragança no Brasil.O seu testemunho visual, captando cenasatravés da sensibilidade de seu olhar,colecionou obras que se configurariam naperformance do país recém-emancipado.Johann Moritz Rugendas, de origem alemã,foi outro famoso pintor responsávelpor criar uma imagem do país para oexterior. Ainda muito jovem desembarcouno Brasil. Participou da expediçãocientífica do barão Georg-Heinrich VonLangsdorff sem muita experiência profissionalou conhecimento do Brasil.Rugendas separou-se da expedição pordesentendimentos com Langsdorff, permanecendono país por um curto período(1822-1825) e retornando apenas noSegundo Reinado, em 1845. Observandosua obra publicada em 1835, Viagempitoresca através do Brasil, 10 pode-seAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 151


A C Eperceber a influência do cientificismosobre o seu trabalho, tanto nas suas gravurascomo no seu texto:Pode parecer estranho que neste caderno,destinado a tornar conhecidosos costumes dos habitantes livres doBrasil, comecemos pelos mulatos.Mas não nos será difícil encontraruma justificação se dissermos que oshomens de cor, embora legalmenteassimilados aos brancos, constituemem sua maioria, as classes inferioresda sociedade. É, portanto, poreles que se podem penetrar nos costumesnacionais. Sejam-me, pois,permitidas algumas observações acercadessa importante parcela da populaçãodo Brasil. 11Rugendas demonstrou equilíbrio entre aacuidade da observação e a criatividadeinerente a qualquer produção artística,tendo procurado criar uma imagem positivado país para o Velho Mundo. O olhareuropeu sobre os quadros dos artistasoitocentistas, certamente, teve um papelimportante na percepção que os habitantesdo Velho Mundo construíram sobre oNovo Mundo.O retrato do passado de sua origem, estampadonos livros didáticos, com certeza,não escapou ao olhar atencioso dosnossos alunos da escola pública. A identificaçãocom o passado, a partir das cenasreproduzidas pelos artistas-viajantes,provavelmente foi significativa em sua formaçãoidentitária, o que ainda estamosestudando.LIVRO DE HISTÓRIA: PROPAGADORDE SABERES E GUARDIÃO DE MEMÓRIASConsideramos que o livro didáticoé um importante recursoa ser analisado, visto que tornou-secomum seu uso pelo professor doensino fundamental nas escolas públicas,sobretudo a partir da obrigatoriedade dadistribuição gratuita pelo governo federal,através do PNLD (Programa <strong>Nacional</strong>do Livro Didático). 12 Utilizado no cotidianoescolar, perguntamos se o livro didáticonão desempenha um papel significativona formação ideológica e cultural doseducandos, considerando que seus textose imagens são um forte referencialpara quem o lê. Como um importante instrumentode trabalho em sala de aula,constata-se que, muitas vezes, professorese alunos o têm como única fonte deinformação, e que funciona comosistematizador dos conteúdos da propostacurricular oficial.O livro didático tem sido, desde o séculoXIX, o principal instrumento detrabalho de professores e alunos, sendoutilizado nas mais variadas salasde aula e condições pedagógicas, servindocomo mediador entre a propostaoficial do poder e expressa nos próprioscurrículos e o conhecimento escolarensinado pelo professor. 13O livro didático funciona também comomediador entre o saber acadêmico e oconhecimento escolar. Nesse caso, osautores tentam veicular informaçõesnuma linguagem mais acessível ao leitor,pág. 152, jan/dez 2005


R V Oaproximando-se mais de sua realidade.Muitas vezes, o resultado é a simplificaçãoexagerada que descaracteriza determinadosconceitos, ou mascara outros.De acordo com Hebe Mattos, “a simplificaçãode algumas formulaçõeshistoriográficas complexas nos livros didáticos,por exemplo, muitas vezes transformaem estereótipos esvaziados de significaçãoacadêmica ou pedagógica, comoaconteceu, na década de 1980, com oconhecido conceito de modo de produção”.14Considerando a importância do livro didáticocomo propagador do saber científicoe histórico, podemos percebê-lo, também,a partir de seus textos e imagenscomo lugar de memória. De acordo comPierre Nora,Na mistura é a memória que dita e ahistória que escreve. É por isso quedois domínios merecem que nos detenhamos,os acontecimentos e oslivros de história, porque não sendomistos de história e memória, masos instrumentos, por excelência damemória em história, permitem delimitarnitidamente o domínio. Todagrande obra histórica e o próprio gênerohistórico não são uma forma delugar de memória? Todo grande acontecimentoe a própria noção de acontecimentonão são, por definição,lugares de memória? 15O livro de história pode ser consideradopropagador dos acontecimentos do passadoe também guardião da memória dediferentes grupos, entendendo a memóriacomo produção espontânea do presente.Para Nora, “a memória é um fenômenosempre atual, um elo vivido no eternopresente; a história, uma representaçãodo passado”. 16Nessa perspectiva, o manual didático seconfigura como instrumento de divulgaçãode uma memória, guardando em suaspáginas histórias, gravuras e fotografiasque, uma vez visualizadas, constituemimportantes acervos selecionados deacordo com sua significação para diferentesgrupos.IMAGENS, LEITURAS E ESCRITASDA ESCRAVIDÃO NOS LIVROS DIDÁTICOSAo abordar o tema escravidão,observamos nos livros de históriaa abundância de imagens,que parecem não apenas quererinformar, mas reforçar as condições devida dos cativos. No ensino fundamental,o assunto é tratado com mais ênfase nasexta série quando é apresentado ao alunoo mundo colonial. O escravo aparecenesse contexto vinculado ao sistema colonialcomo uma “peça”. A vida dos afrobrasileirossó será mencionada novamentenos currículos por ocasião da aboliçãoda escravidão, final do século XIX, sendoum dos últimos temas abordados nasétima série. A história da África ou mesmoda América antes da chegada doseuropeus é abortada dos compêndiosescolares.As cenas da escravidão reproduzidas noslivros estão relacionadas ao teor do tex-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 153


A C Eto e reproduzem apenas cenas dramáticas:castigos corporais, fugas e torturas.Nos livros em questão observamos queo escravo é apresentado como uma simplespeça da engrenagem: o escravo passivo,massacrado pelo sistema. Oescravismo se reduz, então, a um insignificanteaspecto do sistema colonial esó pode ser explicado pelas necessidadesdo mercado externo. Retratam a sociedadeescravista, polarizada entre senhorese escravos, desconsiderando asespecificidades nascidas ao longo dotempo.A inexistência de relações familiares éexplicada de forma quase unânime: nãohavia condições de se criar relações estáveisentre os cativos devido às condiçõesproduzidas pelo próprio sistema,como, por exemplo, mudança freqüentede dono. Seria precipitado afirmar que taiselementos houvessem destruído completamenteas tentativas de união entre eles.Podemos observar nos textos e imagensdos livros analisados essa tendência:“não havia possibilidade de o escravodeixar sua condição. Era escravo, do nascimentoà morte. Somente em ocasiõesespecialíssimas ele conseguia sua libertação(alforria)”. 17 Um capítulo dedicadoà escravidão, intitulado Escravidão, osofrimento que produz riqueza, da obrade José Roberto Ferreira, 18 também reforçaessa tendência.As denúncias necessárias podem ser interessantes,mas relegam ao escravo opapel de agente absolutamente passivo.Sem movimento próprio, sem nenhumapossibilidade de autonomia, ele se transformarianum ser desprovido de qualquerDebret, Feitores castigando negros,Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, v. 2 , pr. 27, São Paulo, Edusp, 1989pág. 154, jan/dez 2005


R V Oação humana. Apesar de entender a importânciade tais abordagens no contextohistórico em que foram produzidas,percebemos que os autores buscavamexplicação para as desigualdades da sociedadecontemporânea. Ao denunciar a escravidão,acabavam apresentando o negronum estado de “anomia” permanente.Decerto, não se pode mascarar a realidade,nem muito menos afirmar que nãohouve sofrimento no cativeiro. A própriacondição de escravo já retira do homemo que se pode ter de melhor: a dignidade.Ignorar, porém, alguns aspectos dacultura, das relações sociais e afetivasque se estabeleciam na sua vivência cotidianaé simplificar bastante a dinâmicada nossa história. Mesmo sob o cativeiro,os escravos criaram relações sociaisespecíficas como amizade, solidariedadee amor.Nos últimos anos, a história social temoferecido ricas contribuições à pesquisasobre a escravidão. Baseados em novosestudos e balizados em fontes de pesquisasdocumentais, os historiadores vêmtrazendo à tona novas questões relativasa esse tema. Valorizando-se fontescartorárias, judiciais, fiscais edemográficas, a história social abriu caminhospara a proliferação de pesquisasnesta área.Na década de 1970, Ciro Flamarion Cardoso,19 com seu estudo comparativo dassociedades escravistas da América, consideroua importância das atividades camponesasdo escravo, denominada por elede “brecha camponesa”. Verificou queem todas as colônias ou regiõesescravistas muitos dos escravos dispunhamde lotes em usufruto e do tempopara cultivá-los. Na década de 1980, es-Debret, Pequena moenda portátil,Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, v. 2, pr. 27, São Paulo, Edusp, 1989Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 155


A C Etudos antropológicos e historiográficosrevelaram a relativa autonomia dos escravos,criada a partir de mecanismospróprios no dia-a-dia, nas relações familiaresou na busca pela alforria. Demonstraram,assim, que apesar da violênciada escravidão, o negro não se mantevepassivo ou alienado, não se manteve incapacitadopara construir espaços próprios.Das formas mais radicais de resistênciacomo fugas e quilombos às estratégiasmais implícitas eles procuraram caminhospara a liberdade. Essas tentativasde liberdade aparecem tanto nos conflitosmais diretos como no cotidiano, tantona luta por benefícios, roubos, comona compra das cartas de alforria. Conquistara liberdade, por meio de tais expedientes,significava se livrar do cativeiropor vias oferecidas pelo próprio sistema.Decerto, “o escravo aparentementeacomodado e até submisso de um diapodia tornar-se o rebelde do dia seguinte,a depender da oportunidade e das circunstâncias”,20 pois o cativeiro já trazconsigo como projeto a liberdade.Sidney Challoub demonstrou como “asconcessões senhoriais, entendidas comodireitos reivindicados na Justiça, transformaram-seem histórias de liberdade”;21 como a luta por direitos conquistadosem antigas fazendas representou ummaior acesso à liberdade.Não se trata aqui de negar o caráter violentoinerente à escravidão, pois sabemosque ao se tornar propriedade deoutrem o ser humano perde a sua dignidadeao ver decretada sua morte social.22 Porém,A nova historiografia da escravidãobrasileira deixa clara a importância dese compreender a organização da escravidãoe seu funcionamento tantoRugendas, Negros no porão do navio,Viagem pitoresca através do Brasil, 8ª ed., Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1979pág. 156, jan/dez 2005


R V Ocomo forma de trabalho quanto comosistema social e cultural, para queseja possível entender suas conseqüênciasteóricas e sistêmicas maisamplas para a compreensão da históriado Brasil e de seu lugar dentrodo desenvolvimento da economiamundial. 23Sheila Faria, utilizando também ademografia histórica, procurou comprovara existência de relações familiaresestáveis e duradouras, especialmente nosgrandes plantéis, redimensionando o diaa-diada vida no cativeiro. Demonstrouque “dados demográficos indicaram quea instituição familiar fazia parte da organizaçãodo universo escravo, emboranem todos a ela tivessem acesso, masera muito mais abrangente e legalizadado que até mesmo as primeiras pesquisaspareciam indicar”. 24À história da escravidão, em que o cativoera considerado sujeito passivo, contrapôs-sea memória da família escrava,das relações de amizade e resistência.Em resposta ao silêncio sobre o passado,emergem novas lembranças que repassadasde geração a geração reivindicamespaço no presente. Memórias queprecisam chegar aos livros didáticos emimagens e textos.ENSINO DE HISTÓRIA E MEMÓRIASDA ESCRAVIDÃOAmemória social, como elementoda história, articula-se diretamentecom o ensino de história,uma vez que compreendemos asala de aula também como um espaçoprodutor e propagador de memórias. Ahistória é concebida, ainda, como produtorae propulsora de memórias.Rugendas, Castigo público na praça de Sant’ana, Viagem pitoresca através do Brasil, op. cit.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 157


A C ENessa perspectiva, o saber histórico emsala de aula está direcionado a uma produçãode conhecimento que privilegiadeterminadas memórias em detrimentode outras. Ao selecionar certos acontecimentos,o historiador, balizado por fontesdocumentais científicas, silencia sobreoutros. Observamos assim, no ensinode história no Brasil, a necessidadede reconhecimento da identidade nacionaldesde a formação do Estado brasileiroapós a Independência até os dias dehoje. Para isso, o ensino de história estrutura-senuma visão eurocêntrica queprivilegia o mundo do colonizador eescamotea a sociedade pré-colonial eafricana, reproduzindo a ideologia dequem dominou. A história do Brasil éconstruída de forma linear, sujeita aosacontecimentos marcantes para a históriaeuropéia, como guerras de reconquista,Cruzadas, Revolução Francesa entreoutros. Ao ocultar a memória do passadoafricano, a historiografia brasileirarelegou a um papel secundário boa parteda população brasileira, naturalizandoa memória oficial. Ao produzirem umaversão autorizada, os historiadores desenvolvemum processo de enquadramentoda memória:O trabalho de enquadramento da memóriase alimenta do material fornecidopela história. Esse material podesem dúvida ser interpretado e combinadoa um cem números de referênciasassociadas: guiados pela preocupaçãonão apenas de manter asfronteiras sociais, mas também demodificá-las; esse trabalho reinterpretaincessantemente o passado em funçãodos combates do presente e dofuturo. [...] Esse trabalho deenquadramento da memória tem seusatores profissionalizados, profissionaisda história. 25Contrapondo-se à memória oficial, temosa memória subterrânea que numa tênuerede se articula através das relações familiarese de amizade. Segundo Pollak,“uma vez que as memórias subterrâneasconseguem invadir o espaço público,reivindicações múltiplas e dificilmenteprevisíveis se acoplam a essa disputa damemória”. 26 Em resposta ao silêncio sobreo passado, emergem novas lembrançasque repassadas de geração a geraçãoreivindicam espaço no presente. Asala de aula certamente é um espaço deinvasão das memórias subterrâneas. Enquantoa historiografia, inserida em suasfontes orais ou escritas, limita por meiode um recorte temporal sua pesquisapela lente do historiador, a memória ultrapassaesses limites, pois está em constanteconstrução.Os acontecimentos vividos pessoalmenteou “por tabela”, 27 individualmente oupelo grupo, podem desenvolver um processode projeção ou identificação comdeterminado passado. Assim, a memóriaherdada da escravidão, através não somenteda historiografia oficial, mas derelatos e imagens, pode desenvolver noindivíduo um sentimento depág. 158, jan/dez 2005


R V Opertencimento ao grupo. Nesse sentido,a memória como um elemento constituintede identidades pode ser um fortereferencial entre a construção da imagemde si, para si e para os outros. A memóriada escravidão inscrita nas gravurasdos artistas viajantes do século XIX,reproduzidas nos livros didáticos no séculoXX, pode, a partir de uma identificação,ultrapassar os limites impostos pelahistória oficial.Segundo Azevedo,A sala de aula, no caso de nossa pesquisaa sala de aula de história, temem si vários monumentos à memória.A própria relação aluno/professordecorre de uma tradição historicamenteconstruída e repleta de elementosritualísticos. O ato de ensinartraz em si uma memória socialque transpassa os muros do prédioescolar. A existência de uma memóriasocial que estabelece o horizontede cultura que alicerça o ato de ensinarfaz da história-ensinada mais doque o ensino da historiografia determina,faz da sala de aula de históriaum lugar de resgate da memória, detransformação e de produção de novasmemórias. 28Nesse contexto, podemos considerar aimportância das relações que se estabelecemno cotidiano da sala de aula em querecursos como o livro didático e suas imagensganham espaço significativo na propagaçãodessas memórias e na constituiçãode identidades, na medida em que háuma identificação e um sentimento depertencimento aos grupos retratados.N O T A S1. Elaborado a partir da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em Educaçãoda UniRio, nível de mestrado.2. Três livros foram inicialmente selecionados para estudo: Os caminhos do homem, deAdhemar Martins Marques, Flavio Beirutti e Ricardo Faria; História, de José Roberto MartinsFerreira; e História integrada, de Cláudio Vicentino. Todos editados na década de 1990.Os critérios para seleção dos livros foram: a freqüência de seu uso nas escolas municipais,o que foi feito através de um levantamento junto aos professores, e sua inclusãono Programa do Livro Didático do governo federal, verificada no catálogo do próprioPrograma. Com o desenvolvimento da pesquisa incluímos um quarto livro: História, presentepassado de Sonia Irene do Carmo e Eliane Couto.3. Susan Woodford, A arte de ver a arte, São Paulo, Círculo de Livro, 1983, p. 8.4. Circe Bittencourt, Livros didáticos entre textos e imagens, in Circe Bittencourt (org.), Osaber histórico na sala de aula, São Paulo, Contexto, 1997.5. Ernest Lavisse apud Circe Bittencourt (org.), op. cit., p. 75.6. John Berger apud Miriam Moreira Leite, Retratos de família: leitura da fotografia histórica,São Paulo, Universidade de São Paulo, 1993, p. 31.7. Miriam Moreira Leite, op. cit., p. 31.8. Valéria Lima, Uma viagem com Debret, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 147-160, jan/dez 2005 - pág. 159


A C E9. Ana Elizabeth Rodrigues de Carvalho Lopes, Foto-grafando: sobre arte-educação e educaçãoespecial, dissertação de mestrado em educação, Rio de Janeiro, Universidade doEstado do Rio de Janeiro (UERJ), 1996.10. Johann Moritz Rugendas, Viagem pitoresca através do Brasil, 8. ed., Belo Horizonte,Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1979, p. 145.11. Idem.12. Este programa foi implementado pelo governo federal a partir de 1994 em todo o Brasil.13. Circe Bittencourt, op. cit., p. 72-73.14. Hebe Maria Matos de Castro, Das cores do silêncio: os significados da liberdade nosudeste escravista, Brasil século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 131.15. Pierre Nora, Entre memória e história: a problemática dos lugares, Projeto história, SãoPaulo, n. 10, dez. 1993, p. 7.16. Ibidem, p. 9.17. Adhemar Martins Marques; Flávio Costa Berutti & Ricardo de Moura Faria, Os caminhosdo homem, v. 2, Belo Horizonte, Lê, 1991, p. 136.18. José Roberto Martins Ferreira, História, v. 2, São Paulo, FTD, 1991.19. Ciro Flamarion S. Cardoso, A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo, São Paulo,Brasiliense, 1982.20. João José dos Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasilescravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 7.21. Sidney Challoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidãona Corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 173.22. Hebe Maria Matos de Castro, Das cores do silêncio, op. cit., p. 131.23. Stuart Schwartz, Escravos, roceiros e rebeldes, Bauru, EDUSC, 2001, p. 29.24. Sheila de Castro Faria, Escravos forros e livres: proximidade e distância, in A Colônia emmovimento: família e fortuna no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII), tese de doutoradodo Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, UFF, 1994.25. Michael Pollak, Memória e identidade social, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n.10, 1992.26. Idem.27. Idem.28. Patrícia Bastos de Azevedo, Ensino de história e memória social: a construção da história-ensinadaem uma sala de aula dialógica, dissertação de mestrado do Programa dePós-Graduação em Educação, Niterói, UFF, 2003.pág. 160, jan/dez 2005


R V OAzilde L. AndreottiDoutora em Educação e pesquisadora vinculada ao Grupode Estudos e Pesquisas HISTEDBR, da Faculdade de Educação da Unicamp.O Acervo de Documentosda Biblioteca Infantilde São Paulo (1936-1960)Testemunho de uma épocarevelando sua diversidadeNeste texto apresento um projeto deorganização do acervo de documentos daBiblioteca Infantil de São Paulo e seusdesdobramentos, que respaldaram açõesefetivas, imprimindo um sentido maisamplo para as atividades de preservaçãoe divulgação de registros documentais.Palavras-chave: biblioteca infantil, acervo dedocumentos, preservação e divulgação.In this text i present a project of theorganization of documents from theInfantile Library of São Paulo andits unfoldments which based presentactions, giving a wider sense topreservative and divulgative activitiesof documental registers.Keywords: infantile library, documental registers,preservative and divulgative activities.Oresgate e a organização de documentostêm se revelado umaprática cada vez mais constante,muitas vezes a partir do empenho depessoas envolvidas com a pesquisa histórica.Este texto apresenta um trabalhode organização do acervo documental daBiblioteca Infantil de São Paulo, em meadosda década de 1990, denominadoProjeto Memória, cujo objetivo era resgataruma série de documentos acumuladosdesde 1936, que se encontravamdesorganizados, guardados em diferenteslugares, alguns perdidos e mal conservados,como também disponibilizá-los, poisa falta desses registros e de sua divulga-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 161-170, jan/dez 2005 - pág. 161


A C Eção reduziria o que representou a Biblioteca,pela perda de referências passadasem relação ao seu significado e trajetóriacomo instituição educativa e cultural.Inaugurada em 14 de abril de 1936, aBiblioteca compunha o ambicioso projetode criação do Departamento de Culturade São Paulo, dirigido por Mário deAndrade, e foi orientada para proporcionaralternativas de modo a complementaro que era oferecido pelas escolas deeducação oficial, acompanhando os novosmétodos pedagógicos recomendadospara a educação da criança. A implantaçãode uma Biblioteca infantil, na época,estava reduzida a algumas poucas escolas,como a do Instituto Caetano de Campos,por exemplo. 1O projeto da Biblioteca Infantil foi consideradode vanguarda, pois abrigava característicasde um centro de cultura emtorno do livro e da leitura, como confirmamsuas primeiras atividades: sessõesde cinema sonoro, exposição de selos emoedas, concurso infantil de pintura,hora do conto e um jornal feito pelas crianças.Foi também o embrião de outrasbibliotecas infantis na cidade, no estadode São Paulo e em outras capitais dopaís, tamanha a repercussão quanto àsua criação e funcionamento.A história da Biblioteca confunde-se coma Vila Buarque, bairro aristocrático naépoca 2 e atual região central da cidadede São Paulo, onde a Biblioteca ocupou,primeiramente, uma pequena casa na ruaMajor Sertório, contando com uma salade leitura (livros de ficção e pequena coleçãode referência), uma sala de revistas,um salão de festas que servia paraas sessões de cinema e uma pequenavaranda utilizada como sala de jogos:Fotografia de inauguração da Biblioteca Infantil,em 14 de abril de 1936. Lenyra Fraccaroli, diretora da Biblioteca, está à esquerdade Mário de Andrade. Fonte: <strong>Arquivo</strong> da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobatopág. 162, jan/dez 2005


R V Odamas e xadrez. 3A divulgação de suas atividades atraiu criançase jovens de várias regiões da cidade,chegando a atender mais de quatromil freqüentadores por mês, impondo anecessidade de um espaço mais amplo.Em 1945, a Biblioteca mudou-se para umcasarão situado em uma quadra desapropriadapela prefeitura, no mesmo bairro,pertencente a Rodolfo Miranda, antigosenador da República. Com a ampliaçãode suas instalações, outras atividadespuderam ser organizadas, tais comoa Sala Braille, para o atendimento sistemáticode crianças com deficiência visual– o que já ocorria, mas sem um espaçoespecífico –, e foram iniciados os Congressosde Literatura Infantil e Juvenil,nos quais crianças e jovens debatiamtemas ligados à literatura. 4 Nessa quadra,foi construído o seu prédio atual, comuma área de 2.334 metros quadrados, 5inaugurado em 24 de dezembro de 1950,onde novas sessões foram iniciadas,como o teatro infantil, a sala de arte, e adiscoteca, posicionando-se como Bibliotecainfantil central, a partir de uma rededistrital que se ampliaria na década de1950. Em 1955, o nome Monteiro Lobatofoi dado à Biblioteca, em homenagem aoescritor, e atualmente denomina-se BibliotecaInfanto-Juvenil Monteiro Lobato.Desde a sua criação, em 1936, a BibliotecaInfantil foi dirigida por Lenyra deArruda Camargo Fraccaroli (1906-1991),até que se aposentasse, em 1960. Duranteesse período de 24 anos, Lenyrapreocupou-se em guardar toda a documentaçãoque envolvia a Biblioteca, alémda administrativa, reunindo um acervorico em informações para pesquisadores.Lenyra participou da organização e difusãode várias bibliotecas infantis no estadode São Paulo e no Brasil, como aBiblioteca Infantil de Salvador, Bahia, em1950, cuja proposta de criação apresentadaa Anísio Teixeira, então secretáriode Educação e Saúde desse estado, foiantes enviada para a apreciação deLenyra por Denise Tavares, sua primeiradiretora. 6Nas correspondências arquivadas, inúmerascartas solicitavam orientação para aorganização de bibliotecas infantis, desdeo espaço físico, os móveis adequados,o acervo etc., até pareceres sobre algumlivro de literatura infantil. 7 Na expansãodas bibliotecas infantis pela cidade deSão Paulo, a partir de 1946 e, sobretudo,nos anos de 1950, Lenyra Fraccaroli,acumulando o cargo de chefe da Divisãode Bibliotecas Infanto-Juvenis, teve a funçãode ver o terreno, o bairro de localização,como também participar da organizaçãodas primeiras bibliotecas instaladas.Após sua aposentadoria, Lenyra afastouseda direção da Biblioteca, mas seguiuarticulando atividades voltadas à literaturainfantil, com a criação da AcademiaBrasileira de Literatura Infantil e Juvenil,em 1978, da qual foi presidente dehonra. 8No seu afastamento no início da décadade 1960, não se sabe ao certo por qualAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 161-170, jan/dez 2005 - pág. 163


A C Erazão, Lenyra levou para a sua casa todaa documentação que havia acumuladodesde 1936. Talvez desconfiasse que nãoseria dada a importância devida aos documentostão bem guardados por ela. Em1985, doou esse acervo para a Biblioteca,acrescido de alguns documentos pessoais,conforme termo de doação, com apresença do então secretário da Culturado município de São Paulo, GianfrancescoGuarnieri.Com a morte de Lenyra, em uma cerimôniacom a presença de sua filha Dulce,prestaram-lhe uma homenagem dandoseu nome a uma sala na Biblioteca, ondefunciona atualmente a Seção de Bibliografiae Documentação. Há uma Bibliotecainfanto-juvenil na Vila Manchester,região norte da cidade de São Paulo, queleva seu nome, como também na cidadede Rio Claro, inaugurada em 1981.A documentação preservada, conhecidana Biblioteca como Acervo Lenyra, nossurpreendeu, mesmo levando-se em contaa conotação de um arquivo construídoconforme os desígnios de uma pessoa,na seleção particular do que deve serlembrado e documentado. A própria iniciativada guarda dessa documentaçãodestoou do que acontecia e ainda acontecequanto à preservação de documentos,que são fontes de pesquisa importantespara a historiografia em geral.Destaco uma rápida descrição dessematerial organizado por Lenyra: cincoálbuns de fotografias, indicados comoDocumentário fotográfico das Bibliotecas,desde 1925 até a década de 1950, comsetecentas fotos; 9 sete álbuns de recortesde jornais, a maioria da grande imprensa,de 1924 até 1960, com artigosdescrevendo as primeiras atividades daBiblioteca e sua trajetória; a atuação deLenyra Fraccaroli e a criação de outrasbibliotecas ramais; artigos destacando arealização de Congressos de LiteraturaInfantil e Juvenil, artigos sobre MonteiroLobato, artigos de políticos, artigos sobrea carreira de bibliotecário etc.Quanto às correspondências, são noveálbuns entre correspondências recebidase enviadas, desde 1936, e mais sete álbuns,em que se confundem correspondênciase recortes de jornais. Deste material,muitas cartas foram retiradas, poishaviam folhas rasuradas nos álbuns (ascartas eram coladas ou grampeadas e asfolhas numeradas). Mesmo assim, encontram-secartas de Mário de Andrade e depolíticos, como Jânio Quadros e Adhemarde Barros, correspondências de outrospaíses da América Latina, bem como deoutros estados brasileiros pedindo orientaçãopara a montagem e organização debibliotecas infantis, solicitação de livrosetc. Há também material sobrebiblioteconomia, sobre o funcionamentoe organização de bibliotecas e a coleçãodo jornal A Voz da Infância. 10O projeto de resgate da história da Bibliotecadurou dois anos: 1995 e 1996.Com a participação do arquiteto CelsoEduardo Ohno, compilamos, sistematizamose organizamos esse acervo para fu-pág. 164, jan/dez 2005


R V Oturos pesquisadores. Durante esse período,o Projeto Memória esteve na pautada Biblioteca, gerando discussões acercada sua origem e da importância da suatrajetória, envolvendo várias pessoas,respaldando algumas atividades já emandamento e ensejando a origem de outrasações. Esse movimento em torno doprojeto de organização do acervo, semdúvida, imprimiu um sentido mais amploao trabalho, levando a algumas reflexõesa respeito do significado de um acervo,do ato de sua organização e divulgação.Geralmente, os arquivos se apresentamcomo registros ligados ao passado, quedevem ser conservados (o que nem sempreocorre), como testemunho do já acontecido,muitas vezes com pouca ou nenhumaligação com o presente. No decorrerdo nosso trabalho, surgiram algumasquestões que não havíamos previsto, jáque a organização dos documentos tinha,originalmente, a finalidade de resgatar osignificado da Biblioteca e disponibilizarum arquivo para pesquisadores. Os desdobramentosdesencadeados nos surpreenderame dimensionaram a importânciado trabalho, pois o acervo foi revelandoseu caráter diversificado, ultrapassandoos objetivos <strong>iniciais</strong>, fornecendo um suportepara atividades do momento.Relato, a seguir, as conseqüências imediatasda organização do acervo.Junto à Agenda Cultural, publicação mensal,na época, da Secretaria da Culturada Prefeitura de São Paulo, sobre eventospromovidos em suas unidades, divulgamosesse material e conseguimos quealguns ex-freqüentadores retornassem àBiblioteca, atraídos principalmente pelosálbuns de fotografias, como também pesquisadoresinteressados em algum recortedo material organizado.A organização do acervo contribuiu comalgumas reuniões de uma associação demoradores do bairro da Vila Buarque,onde a Biblioteca se encontra desde asua origem, o “Núcleo dos Amigos da PraçaRotary”, entidade ainda atuante e queconseguiu resgatar a praça que sedia aBiblioteca para o seu lazer, contando como apoio de Rosely Leme, sua diretora naépoca. Houve também, naquele momento,uma proposta de construção de umMuseu da Televisão na praça, o quedescaracterizaria o escasso espaço verdedo bairro. O acervo fotográfico serviude suporte para demonstrar os váriosmomentos da praça, que chegou a sediarum teatro, derrubado no início dos anosde 1970. 11 As fotografias do acervo sesomaram a outras produzidas pelos moradorese a origem e a história do bairroe da Biblioteca ajudaram quanto à importânciade se preservar a praça.Os álbuns de fotografias serviram tambémpara dinamizar as visitasmonitoradas que atendiam a grupos decrianças agendados por escolas para conhecera Biblioteca, suas instalações efuncionamento, culminando com uma atividadena sala de leitura. Esses álbunsfizeram parte dessas visitas, apresentandoos diferentes prédios que a BibliotecaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 161-170, jan/dez 2005 - pág. 165


A C Eocupou, que já não existem mais, chamandoa atenção sobre as mudanças nobairro da Vila Buarque, como tambémsobre os costumes da época.Para as atividades que se desenrolaramjunto ao processo de organização doacervo, as fotografias foram os suportesque mais chamaram a atenção, sem dúvida,por se constituírem em testemunhosde momentos que se perdem, que setransformam, muitas vezes idealizados.Como bem assinala Susan Sontag, a fotografiase apresenta “como apenas umfragmento, e com o passar do tempo suasamarras se desprendem. À deriva, vai-setransformando em passado difuso e abstrato,aberto a qualquer tipo de leitura”. 12As fotografias retrataram aspectos dobairro da Vila Buarque, que no rápidoprocesso de urbanização de São Pauloassistiu a amplos e ajardinados casarõestransformarem-se em prédios de apartamentos.Retrataram também antigos costumescomo a indumentária de meninosengravatados e meninas com laços nacabeça e amplos vestidos, sentados deforma circunspeta à volta de uma mesa,na Biblioteca, com um livro aberto à suafrente.Nosso trabalho serviu também de apoiopara algumas oficinas que se realizavamna Biblioteca, como a disponibilização doacervo para um grupo de teatro amadorde jovens que participavam de oficinasde teatro. Esse grupo encenou parte dahistória da Biblioteca, resultando na vinda,para uma palestra, de Iacov Hillel,renomado diretor de teatro e ex-diretorda Escola de Arte Dramática da Faculdadede Comunicações da USP, que iniciousua carreira teatral na Biblioteca, comum grupo de teatro nos anos de 1960, oTeatro Infantil Monteiro Lobato (Timol).Outra conseqüência do trabalho foiuma mudança no próprio espaço da Bibliotecae a junção do trabalho de res-Sala de revistas e de empréstimo de livros da Biblioteca Infantil Municipal.Fonte: Separata da Revista do <strong>Arquivo</strong> Municipal, n o 64, de fevereiro de 1940pág. 166, jan/dez 2005


R V Ogate da sua documentação com a doAcervo Monteiro Lobato, sob a responsabilidadede Hilda Junqueira VillelaMerz, que foi reorganizado com o auxíliode Celso Ohno e instalado em localmais propício.O Acervo Monteiro Lobato, iniciado nosanos de 1930 com figuras de personagensinfantis doados por Lobato, assíduofreqüentador da Biblioteca, 13 e doaçõesda família do escritor, após a sua morteem 1948, reúne as primeiras edições doslivros de literatura infantil, seus ilustradores,traduções, adaptações, documentospessoais, farta correspondência, homenagens,artigos sobre o autor e suaobra, artigos escritos por Lobato em váriosperiódicos desde o início do séculoXX, livros e teses sobre Lobato, fotografiase alguns pertences seus em uma vitrineem exposição. São 3.028 documentosabrangendo os vários aspectos da vidado autor e de sua obra. 14 A Biblioteca jáinformatizou esse acervo, cuja reuniãose deu pelo envolvimento pessoal deHilda Junqueira Villela Merz, pesquisadoradedicada à obra de Monteiro Lobato,contratada pela prefeitura por “notóriosaber” em 1982, que esteve durante 16anos à frente do Acervo Lobato,pesquisando no jornal O Estadode São Paulo e em outras fontes,complementando um acervo para pesquisadores.É indicada como especialista emLobato, sendo que a maioria das obrasa respeito do autor conta com a sua participação,mesmo que nem sempre oscréditos a contemplem. Após completar75 anos, em 1998, dona Hilda, como échamada, aposentou-se, mas continuasua pesquisa sobre Monteiro Lobato,atende a pesquisadores e não perdeu seuvínculo com a Biblioteca, onde, sistematicamente,passa algumas manhãs.A organização do acervo da Bibliotecaensejou algumas exposições, a mais significativafoi a dos 60 anos de sua criação,em abril de 1996. 15 Não fomos adianteem relação a alguma publicação quepudesse divulgar de forma mais ampla oacervo organizado ou o histórico e a trajetóriada Biblioteca e, com isso, encerramoso trabalho. Atualmente, esse acervoestá disponível na Seção de Bibliografiae Documentação da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, que leva o nomede Sala de Documentação Lenyra C.Fraccaroli, procurada por pesquisadorespor conter algumas obras raras do séculoXIX, livros de literatura infantil desdea década de 1910, obras de literaturainfanto-juvenil estrangeira, teses e revistassobre literatura infantil e juvenil, aColeção Revista Tico-Tico, o AcervoMonteiro Lobato 16 e também a documentaçãosobre a história da Biblioteca, quefoi tombada após o trabalho de organização.O processo de organização do acervo daBiblioteca Infantil demonstrou como utilizare dar sentido a documentos que atéentão estavam mal conservados e esquecidose nos levou a algumas reflexõesquanto à questão da conservação dosacervos e seus significados, que ultrapas-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 161-170, jan/dez 2005 - pág. 167


A C Esa a finalidade de registro e testemunho,dado que a importância que se concedea um arquivo se apresenta também naforma de sua organização e possibilidadede acesso.O nosso trabalho estimulou a preservação,o tombamento e a divulgação domaterial organizado, como também facilitouas condições de acesso à consultade outros acervos na Biblioteca, contribuindopara a conscientização da importânciada guarda e da disponibilização dedocumentos.O conjunto de informações reunidas sobreas atividades desenvolvidas pela BibliotecaInfantil ao longo de sua históriae o seu reconhecimento, sem dúvida,serviu como referência para o planejamentoe desempenho da instituição, aomenos naquele momento, como tambémsobre a importância de se registrar asatividades e os projetos desenvolvidos emseu espaço. Atualmente, há uma sala reservadaà memória da Biblioteca Infantil,com os pertences de Lenyra Fraccaroliem uma vitrine, o mimeógrafo em queera produzido o jornal da Biblioteca, o ACapa do primeiro número do A Voz da Infância,de 10 de julho de 1936, jornal da Biblioteca, homenageando Carlos Gomespág. 168, jan/dez 2005


R V OVoz da Infância, os álbuns de fotografiase de documentos, como também algunsvolumes com o histórico de outras bibliotecasinfanto-juvenis da rede municipalde São Paulo, coordenados pela funcionáriaM. Conceição C. de Oliveira.O interesse pela história da Biblioteca,despertado pelo trabalho de reunião deseus registros, revelou o caráter diversificadodo acervo: de sua simples organizaçãosurgiu uma composição mais ampla,tanto no momento do trabalho, quedurou dois anos, quanto posteriormente,na disponibilidade de acesso aos documentosque o trabalho proporcionou e naconstatação de que havia um arquivoimportante, revelador da trajetória daBiblioteca, desde a sua origem.O reconhecimento do projeto educativode complementação escolar que a Bibliotecaensejou na época de sua criação,com propostas de atividades baseadasnos princípios da escola nova, 17 voltadaspara crianças letradas, 18 e a farta documentaçãoque nos permite vasculhar essesprocedimentos pedagógicos, porexemplo, já chamaram a atenção de pesquisadoresda área da educação.Um material inédito, compilado e organizadoencontra-se a disposição de pesquisadores,podendo-se constituir de váriossignificados, dependendo da finalidadeque for investida na sua abordagem, cumprindoo objetivo inicial de deixarmos ummaterial para futuros pesquisadores, atenuandoa dispersão de informações.N O T A S1. Criada em 1925, a Biblioteca Infantil da escola primária do Instituto Caetano de Campossofreu várias interrupções, retomando suas atividades em 1933. Cf. Ana Regina Pinheiro,A imprensa escolar e o estudo das práticas pedagógicas: o jornal “Nosso Esforço” e ocontexto escolar do curso primário do Instituto de Educação (1936-1939). Dissertação(Mestrado em Educação), PUCSP, 2000. A dissertação traz o histórico dessa biblioteca.2. Sobre os bairros da cidade de São Paulo, ver Ernani Bruno, Histórias e tradições da cidadede São Paulo, Rio de Janeiro, José Olympio, 1954, p. 947. O autor destaca que “eramprincipalmente considerados elegantes na primeira parte do século XX em São Paulo –pelas suas edificações – além do Higienópolis, a Vila Buarque, os Campos Elíseos [...]”.3. Celso Eduardo Ohno, Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, cronologia resumida,São Paulo, 1996, (xerox). Texto arquivado na Seção de Bibliografia e Documentação daBiblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato.4. Foram realizados seis Congressos de Literatura Infantil e Juvenil, em vários estados dopaís, com ampla cobertura da imprensa, contando com o apoio e a participação deescritores e jornalistas como Monteiro Lobato, Vicente Guimarães e Thales de Andrade,entre outros. Cf. B. Katzentein, As relações humanas num Congresso Infanto-Juvenil,Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, n. 30, set./out. 1947, que traz um artigodescrevendo algumas impressões sobre o II Congresso, de Belo Horizonte.5. Projeto do arquiteto Willian Hentz Gorham, da Divisão de Arquitetura da Prefeitura Municipalde São Paulo.6. Nos arquivos da Biblioteca encontra-se uma correspondência entre as duas diretoras.Cf. S. Bortolini, A leitura literária nas Bibliotecas Monteiro Lobato de São Paulo e Salva-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 161-170, jan/dez 2005 - pág. 169


A C Edor. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação), UNESP de Marília, 2001. Essetrabalho traz uma análise das ações atuais, quanto à promoção da leitura, nessas duasbibliotecas.7. É de sua autoria a publicação, em 1953, da Bibliografia brasileira de literatura infantilem língua portuguesa. Essa Bibliografia, a primeira publicada no Brasil, tinha o objetivode servir de obra de referência para os catalogadores das bibliotecas infantis e escolares,conforme a apresentação da autora. Organizada por ordem alfabética pelo sobrenomedos autores, incluiu livros infantis publicados no Brasil e alguns, em Portugal. Abibliografia em questão levantou 1.843 títulos, trazendo como referências, o número depáginas; se havia ilustração; o tamanho do livro em centímetros; um rápido resumo doconteúdo, com duas ou três linhas; a determinação da faixa etária adequada, dividida dedois em dois anos e o preço.8. Registrada em 26 de agosto de 1978, sob sua presidência, essa Academia tinha a finalidadede promover a literatura infantil e incentivar a criação de salas de leitura nosmunicípios. Em 1979, organizou o curso de literatura infantil e formação de salas deleitura. Não tenho informações das atividades atuais dessa Academia, como também desua extinção. O arquivo da Biblioteca tem pouco material sobre o assunto.9. Essas fotos datam de 1925 e estavam coladas ou grampeadas. Os álbuns foram remontadose para resguardar as fotografias foram confeccionadas, à mão, cerca de 3.500 cantoneiras,por falta de material e respaldo institucional em relação ao trabalho de organização desseacervo. Foram montados também outros álbuns, com fotografias mais recentes.10. Sobre esse jornal cf. A. L. Andreotti, A formação de uma geração: a educação para apromoção social e o progresso do país no jornal A Voz da Infância da Biblioteca Infantilde São Paulo (1936-1950). Tese (Doutorado em História e Filosofia da Educação), Faculdadede Educação da UNICAMP, 2004.11. O Teatro Leopoldo Froes foi construído na década de 1950, na mesma praça da Biblioteca,para a montagem de peças infantis. Com a falta de teatros na cidade de São Paulo,foi utilizado para apresentação de peças teatrais em geral. Em 1973, após vários problemasna sua estrutura, o teatro foi demolido para dar lugar a um centro de arte na gestãodo prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz. O projeto nunca foi começado. A respeito,no jornal Folha de São Paulo, de 16 de junho de 1973, com um desenho do projeto docentro de arte, lê-se a seguinte matéria: Teatro Leopoldo Froes cai, surge o Centro deArte. (Fonte: Álbum de recortes de jornais do arquivo da Biblioteca).12. Susan Sontag, Ensaios sobre a fotografia, Rio de Janeiro, Arbor, 1981, p. 71.13. Inúmeros registros, na Biblioteca, indicam a presença de Lobato. Crônicas de jornal,fotografias, entrevistas com as crianças publicadas no jornal da Biblioteca, o A Voz daInfância, como também algumas cartas. Esses registros se encontram arquivados naSeção de Bibliografia e Documentação da Biblioteca.14. Na época do Projeto Memória (1995-1996) havia informações de que a família de MonteiroLobato não se dispunha a doar para a Biblioteca o restante do material do escritor, pornão achar esse espaço o mais adequado. Provavelmente, o material seria doado parauma universidade. Em dezembro de 2001, a família do escritor doou em comodato parao Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (CEDAE), vinculado ao Institutode Estudos da Linguagem da Unicamp, um acervo que ainda mantinha em seu poder.Após cinco anos, se os entendimentos continuarem, o material fica em definitivo para ainstituição.15. Exposição 60 anos de Memória, com módulos divididos em períodos, desde os anos de1930, sobre a trajetória da Biblioteca.16. Trabalho não publicado, elaborado pela bibliotecária Jacira Rodrigues Garcia, da Seçãode Bibliografia e Documentação da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, em setembrode 1993, e arquivado na Biblioteca, contendo um resumo do acervo disponívelpara pesquisadores.17. A Escola Nova, ideário de renovação da educação nas primeiras décadas do século XX,teve, no Brasil, Lourenço Filho como um dos seus precursores. A criança como o centroda educação, a escola ativa, no dizer de muitos, era um dos pilares dessa pedagogiaque, assim, criticava veementemente os padrões de ensino da escola tradicional, centradano conhecimento do professor, entre outros aspectos. Cf. Dermeval Saviani, Escola edemocracia, São Paulo, Cortez, 1985, entre outros.18. A Revista do <strong>Arquivo</strong> Histórico Municipal, n. 34, de 1940, traz uma pesquisasocioeconômica de 1938, sobre as crianças que freqüentavam a Biblioteca, indicandoque a maioria pertencia às camadas médias da população.pág. 170, jan/dez 2005


R V OCláudia B. Heynemann e Vivien IshaqDoutoras em História pela UFRJ e UFF,respectivamente, e pesquisadoras no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>.Elaine Cristina F. . Duarte e Vivian ZampaMestres em História pela UERJ e pesquisadorasdo site O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> e a história luso-brasileira.O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>Vai às EscolasO artigo analisa a atuação do<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> no campopedagógico, por meio dadivulgação de documentos de seu acervo no siteO <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> e a história luso-brasileira.Trata, especificamente, da seção intitulada “Salade aula”, uma iniciativa que, além de um fim emsi mesma, abre à área de pesquisa da Instituição aoportunidade de uma reflexão pertinente aosarquivos, à produção historiográfica e ao ensinoem história, problematizando a relação entre osconteúdos programáticos previstos nosParâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e oacervo institucional, nos termos de suaadequação mútua.Palavras-chave: ensino de história, históriacolonial, pesquisa histórica, arquivos nacionais.The article analyses theNational Archive’s action in thepedagogical field, by divulgingdocuments of its collection in the site O <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> e a história luso-brasileira. Specifically,it deals with the section entitled Classroom, aninitiative, which besides being an end in itself,opens to the Institution research area theopportunity of a reflection relevant to thearchives, the historiographic production and theteaching of history, placing in problem form therelationship between the programmatic contentsprovided in the Parâmetros Curriculares Nacionais(PCN’s) and the institutional collection, in theterms of their mutual suitability.Keywords: the teaching of history, colonialhistory, historical research, national archives.O ARQUIVO NACIONAL E A HISTÓRIALUSO-BRASILEIRANo quadro de três séculos dedomínio português, o <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> foi herdeiro da tradiçãolusa, por genealogia administrativa epor parte significativa do patrimônio queconserva. Aos fundos e coleções geradospela burocracia colonial, à vasta correspondênciae legislação, por meio da qualse expressa a política metropolitana,agregam-se aqueles que vieram com d.João para o Rio de Janeiro em 1808. Osefeitos da chegada da Corte portuguesaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 171


A C Eao Brasil materializaram-se tanto natransposição de órgãos da estrutura administrativametropolitana quanto na fundaçãodo Real Horto, da Biblioteca Reale do Museu Real. Os sonhos dos intelectuaisda segunda metade do XVIII viriamacontecer, finalmente, em um cenário noqual “imprensa, periódicos, escolas superiores,debate intelectual, grandesobras públicas, contato livre com o mundo(numa palavra: a promoção das Luzes)assinalam o reinado americano ded. João VI, obrigado a criar na Colôniapontos de apoio para o funcionamentodas instituições”. 1No século XIX, instituições públicas ouprivadas, como a Biblioteca Pública, oMuseu <strong>Nacional</strong> e o Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro, investiram no enriquecimentode seus acervos, obtendoobras, coleções e documentos na Europae em outras regiões do país. A partirde seu funcionamento efetivo, o <strong>Arquivo</strong>Público procurou, por diversos meios,ampliar e qualificar seu universo documental.É ainda na década de 1840 quechegam ao <strong>Arquivo</strong> Público os documentosdo extinto Desembargo do Paço, quefuncionara no Brasil a partir da chegadada Corte portuguesa, até 1828. Achavamseem “completo abandono” no SupremoTribunal de Justiça, muitos já em estadoprecário. Nesse período, foi também recebidooutro órgão da administraçãojoanina, a extinta Mesa da Consciência eOrdens. Os esforços empreendidos paraa formação do acervo da Instituição envolverama viagem de Antônio GonçalvesDias, em 1852, a diversas províncias doNorte, com a missão de coligir documentosem bibliotecas e arquivos de mosteirose repartições públicas. Deveriam serreunidos, especialmente, aqueles quepelo decreto de 1838 se destinavam ao<strong>Arquivo</strong> Público, “sendo devida ao seuzelo, no desempenho daquela comissão,não só a efetiva entrada para o <strong>Arquivo</strong>de documentos importantes, mas tambéma notícia da existência de outros,cuja aquisição se trata de realizar”. 2O recolhimento ou a reprodução de documentosda história colonial brasileiraevidencia algo intrínseco aos arquivoscomo um todo: o processo constitutivo deseus acervos, muito mais do que a idéiade recomposição dos fragmentos de umadada história do Brasil. Ao longo do tempo,esses fundos e coleções, públicos ouprivados no <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, adquiriramdiferentes sentidos, exemplificados nasclassificações adotadas na passagempara a República, em que foram reunidosos segmentos “Brasil Reino” e “BrasilColônia” ou na renovação do interessepor determinados temas como a InconfidênciaMineira. Grupos de trabalho,publicações, exposições, arranjos, são,direta ou indiretamente, intervenções quereconfiguram seu sentido, atribuindo valora alguns conjuntos, destacando aspectos,permitindo e conduzindo algumasabordagens de pesquisa.Um momento privilegiado para refletirmossobre a história luso-brasileira no âmbi-pág. 172, jan/dez 2005


R V Oto do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> foi, inegavelmente,a comemoração do V Centenário dosDescobrimentos. Publicações, exposições,seminários e bases de dados foramalguns dos produtos visíveis dessaparticipação. Um dos produtos realizadosfoi a base de dados Roteiro de fontes do<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> para a história luso-brasileira,3 que compreende o período coloniale a administração de d. João VI noBrasil. A parcela do acervo institucionalcompreendida no período entre o final doséculo XVI e as duas primeiras décadasdo século XIX distribui-se em cerca de170 fundos ou coleções, de proveniênciapública ou privada, produzidos, principalmente,pela administração central epor tribunais e câmaras, em Portugal ouem suas colônias, em sua maior parte nacolônia americana. Com um total de3.486 unidades de arquivamento (correspondentesa um volume de códice, pacotede uma caixa, maço ou processo), abase possibilita a pesquisa em 3.880descritores onomásticos, 2.234descritores toponímicos e 1.600descritores temáticos que podem ser relacionadoscom as datas-limite escolhidaspelo usuário.Esse trabalho fez sobressair diversosaspectos da documentação que não eramidentificados pelos instrumentos de pesquisa,além de criar uma outra dinâmicade consulta, comunicando documentos dediferentes proveniências entre si. O Roteiropermite, assim, a seleção de temascomo arte, cidades, domínio holandês,comércio de escravos, família, festas religiosas,história natural, índios, manufaturas,mineração, Portugal – invasãonapoleônica, habitação, produtos tropicais,quilombos, pau-brasil, entre tantosoutros. Também as espécies documentaissão variadas, como cartas régias,alvarás, inventários post-mortem, processoscrimes, memórias etc. Esse amploespectro temático oferecido pela base dedados subsidia toda a atividade de pesquisaenvolvida no site O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>e a história luso-brasileira, cujo conteúdoe estrutura foram elaborados aPlanta de uma propriedade em Caiena. Chevalier de Préfontaine.Maison rustique: a l’ usage des habitans de la partie de la France équinoxiale, connue sous lenom de Cayenne. Paris: Chez Bauche, Libraire, à Sainte Genevieve, & à Saint Jean dans le défert, 1763Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 173


A C Epartir de 2002, com o acesso às informaçõesem 2003.A idéia de luso-brasileiro figura assimcomo uma síntese, o que certamenteenvolve uma opção historiográfica, apostandoem uma tradição ibérica, pensandoem um projeto tal como se desenhouao final do setecentos, e em uma reciprocidadenos termos das transformaçõesculturais operadas nessas sociedades.Priorizar esse enfoque resultou não apenasem um título, mas na estruturaçãodos grandes temas eleitos para o site dehistória colonial.Voltado para a difusão do acervo do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> e de suas publicações eeventos relacionados ao tema, o siteabrange diversas linhas de pesquisa eáreas do conhecimento, constituindo,também, um espaço dedicado à divulgaçãode outros lançamentos editoriais,congressos e seminários, resenhas, ensaios,projetos e atividades acadêmicas.Colaborar com o ensino de história pormeio da divulgação de documentos de seuacervo, de acordo com as principais diretrizesprevistas para a disciplina, tornou-seuma tarefa inadiável para a principalinstituição arquivística do país, detentorade um acervo privilegiado emextensão e diversidade e que ainda é dedifícil acesso para estudantes e professores,dada sua complexidade. Essa iniciativa,além de um fim em si mesma,abre à área de pesquisa da Instituição aoportunidade de uma reflexão pertinenteaos arquivos, à produçãohistoriográfica e ao ensino em história,problematizando a relação entre os conteúdosprogramáticos previstos nosParâmetros Curriculares Nacionais(PCN’s) e o acervo institucional, nos termosde sua adequação mútua, significado,teor informativo, relevância, e, sobretudo,inserção nas principais linhashistoriográficas.Ao valor do patrimônio documental conservadono <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, conferidopor uma série de características, deveseagregar a dinâmica de uma contínuainterpretação de sua totalidade, dos nexosestabelecidos entre fundos e coleções,da materialidade dos diferentessuportes e formatos, enfatizando o caráterda construção e formação do acervodo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, em detrimento deuma relação de transparência com umdeterminado processo histórico.As transformações operadas nos domíniosda historiografia e da arquivística chegaramao ensino da história nas escolasbrasileiras, animadas pelo caráterinterdisciplinar, pelo contato com novaspesquisas e pelo predomínio da históriacultural, paralelamente à adoção de métodosde aprendizagem, contrários aobinômio memorização–reprodução e voltadospara uma perspectiva crítica.O acesso à expressão escrita de partedas sociedades estudadas possibilita ocontato com a noção de discurso e dealteridade, com as diferenças culturais,pág. 174, jan/dez 2005


R V Ocom a complexidade do tempo histórico,ultrapassando a fixidez de determinadasdatas e eventos, com as diferentes dimensõescomportadas pelos registros deixados:listas de utensílios domésticos e deescravos nos inventários post-mortem;tratados diplomáticos; documentos sobrea segurança no litoral e ataques de piratas;entre tantos outros, ampliam, assim,o sentido dos períodos históricos demarcados.Deve-se assinalar, ainda, que ainserção dos documentos no ensino, alémde incentivar a pesquisa, dissemina aidéia fundamental da história como umcampo de conhecimento, uma produçãointelectual constituída, também, pelapesquisa nos arquivos.APRENDENDO COM OS DOCUMENTOS:O ENSINO DE HISTÓRIA E AS FONTESARQUIVÍSTICASApreocupação em sala de aulacom a adequação dos conhecimentosconstruídos e a realidadede docentes e discentes ganharamcorpo no Brasil há pelo menos duas décadas.Esse período coincidiu com a expansãodos cursos de pós-graduação e omaior diálogo estabelecido entre pesquisadorese profissionais da educação. Emmeio a essas discussões foramestabelecidas diferentes propostascurriculares, influenciadas, sobretudo,pelos debates acerca das recentes tendênciashistoriográficas, e que, igualmente,sugeriam as possibilidades de se revero estudo da disciplina da história, nosensinos fundamental e médio.Pensando nesses problemas, a Lei deDiretrizes e Bases da Educação (LDB), de1996, apresentou uma série de mudanças,de forma a valorizar professores ealunos no processo de construção do conhecimento.Entre as medidas determinadaspela LDB, destacaram-se os projetospedagógicos próprios de cada comunidadeescolar e a adoção de diretrizeseducacionais, propostas pelo documentoque viria a constituir, dois anosdepois, os PCN’s.Passava a ser defendida, dessa forma, aexistência de diferentes percepções doprocesso de aprendizagem e a necessidadede integrar a teoria e a prática nocampo da história, tendo em vista a incorporaçãode seus pressupostos teóricose metodológicos. Sob essa perspectiva,os PCN’s dedicados ao ensino dadisciplina incentivam a problematizaçãodessas questões pelo professor, assimcomo a utilização de abordagens e conteúdosalternativos que contemplem odesenvolvimento de atividadesinterdisciplinares e o uso de diferentesrecursos didáticos. 4Em suas orientações gerais, observamosa valorização da pesquisa histórica, desenvolvidaa partir da diversidade de documentos,como uma forma dos educadoresexplorarem diferentes fontes deinformações, criando métodos e materiaisdidáticos capazes de favorecer aaprendizagem. Segundo os Parâmetros,a possibilidade de se trabalhar com diferentesmetodologias e materiais didáticosAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 175


A C Eem sala de aula permite que os alunosadquiram, com o tempo, iniciativa pararealizarem seus trabalhos, elegendo diferentestipos de fontes de pesquisa,como as orais, iconográficas ou eletrônicas,entre outras. 5Em uma outra vertente, os profissionaisde outros países ligados à pesquisa emarquivos e bibliotecas sinalizaram paraa possibilidade de uma maior utilizaçãode seus acervos, por parte de professorese alunos, no processo de ensinoaprendizagem.A partir dessa iniciativa,foram criados sites voltados para o ensino,adequando as mais variadas formasda linguagem documental à prática escolar.Um exemplo é o <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> doReino Unido 6 que, através de uma linguagemlúdica, disponibilizou o seu acervopara professores e alunos, estimulandoa pesquisa e valorizando o conhecimentode sua história. Igualmente, os sitesdo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> americano e do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> francês 7 destinaram atençãoespecial à área de educação, estimulandoa consulta aos documentosarquivísticos.Como assinalou os PCN’S, não se tratade formar “pequenos historiadores”,tampouco que os mesmos escrevammonografias e teses acadêmicas. O maisimportante, nessa perspectiva, é que oaluno esteja apto a selecionar as informaçõesmais pertinentes ao estudo propostode forma a interpretar as característicasdo passado, confrontadas com asua realidade. 8SALA DE AULAOacervo do <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, decaráter único, há muito se destacana produção acadêmicade pesquisadores nacionais e estrangeiros,que encontram nos fundos e coleçõesconservados, uma fonte inesgotávelde possibilidades de pesquisa, atendendoàs mais recentes linhashistoriográficas, estudos lingüísticos,cartográficos, antropológicos etc. A propostade construção de um site de histórialuso-brasileira pelo <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>considerou o acervo e a relevância dainstituição para os estudos desenvolvidosna área de história colonial, além da possibilidadede contribuir para o ensino dehistória nos níveis médio e fundamental.A inscrição ativa na área pedagógica tornou-seum aspecto fundamental da atividadede pesquisa e de difusão do acervoda instituição, fornecendo material parauso nas escolas e introduzindo novos textos– documentos de época a serem analisados–, identificando, desse modo, adisciplina da história como um campo deconhecimento em construção.Entre as seções que estruturam o site,destaca-se aquela especificamentedirecionada para o ensino fundamental emédio, intitulada “Sala de aula”. 9 Suaestrutura se apóia em dossiês temáticos,com no mínimo três documentos, de cujostextos são extraídos termos, expressões,personalidades, instituições, lugares, assuntos,eventos políticos etc., que sãoobjeto de verbetes explicativos. Nos ver-pág. 176, jan/dez 2005


R V Obetes são explorados ainda conceitos históricos,práticas sociais e culturais, atividadeseconômicas e relações de trabalho,entre outras possibilidades oferecidas.Essa iniciativa visa atender a demandada rede de ensino pública e privadaque procura o <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> comoparte das atividades extraclasse, bemcomo o interesse institucional no desenvolvimentodessa linha, dentro da áreade pesquisa e difusão cultural.Os textos que compõem a seção “Salade aula” são selecionados na seção “Documentos”,a qual é composta por resumosde documentos pesquisados na basede dados Roteiro de fontes do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> para a história luso-brasileira.Essas ementas são acompanhadas de umtexto redigido por um especialista notema sobre as características gerais doacervo destacado, além de algumas indicaçõesbibliográficas.Os documentos da seção “Sala de aula”são transcritos na íntegra ou em parte,tendo sua grafia atualizada. Para ilustrarmelhor a proposta desenvolvida por estaseção, é válida a leitura de uma das matériaspreparadas para o tema “A expansãoportuguesa: Oriente”:Tinha-se espalhado uma notícia naEuropa, que devia haver um caminhomais curto para chegar à Índia, queo que se trilhava até então. Esta idéiatinha esquentado todos os espíritos.Um príncipe português empreendeuTela de abertura do site O <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> e a história luso-brasileira,em http://www.arquivonacional.gov.br/historiacolonialAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 177


A C Esó, o que nenhum soberano se haviaatrevido empreender. Mandou fazeresta descoberta. Não havia atéentão outra astronomia na Europa senão a que os árabes tinham deixado;[...] Não se conhecia a geometriaque tem servido depois a medir osgrandes corpos [...]. A bússola já eraconhecida; porém ainda a não tinhamfeito servir ao uso que se empregoudepois. [...] Os navios portuguesesdobraram o cabo que está na extremidaded’África. A corte de Lisboaprevê, que se poderá abrir por aquia passagem à Índia, o chamou Caboda Boa Esperança. Vasco da Gamachega nesta parte d’Ásia depois deriscos, penas, e trabalhos [...]. Apassagem dos portugueses à Índiapelo Cabo da Boa Esperança, é umdos grandes acontecimentos no nossomundo. Esta descoberta avizinhandoas partes as mais apartadasdo globo, tem causado uma revoluçãogeral no gênio, nas artes, comércio,e indústria. 10Esses termos grifados correspondem aosverbetes que têm a finalidade de subsidiaros professores de história, sugerindooutros caminhos para explorar os documentosdisponíveis na seção. Os verbetessão redigidos a partir de uma amplapesquisa bibliográfica, incluindo aconsulta à coleção de livros raros do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong>. Além disso, as matériasincluem sugestões para utilização emsala de aula, tomando-se por base o currículode história para os segmentos fundamentale médio. Ao longo dos dois anosde funcionamento do site, a seção “Salade aula” apresentou uma produção significativaque compreende 28 temas, 124matérias e aproximadamente seiscentosverbetes explicativos.Inúmeras possibilidades de uso se apresentamde acordo com o tratamento dispensadoaos textos: para trabalhar umperíodo histórico, por exemplo, o professorpode optar por não datar o documento.Dessa forma, poderá convidar os alunosa se perguntarem a que acontecimentosou personagens fazem parte o referidotexto; ou ainda, a que outros momentoshistóricos ligam-se este tema. Tambémpoderá abordar o caráter oficial ounão do documento, mostrando os variadostipos de fontes e atores sociais existentes.Uma outra linha a ser seguida dizrespeito à análise do vocabulário e conceitosde época. Esse exercício pode serrealizado através da comparação com ostermos atuais, enfatizando a diferençados seus significados sociais, culturais epolíticos. 11 Apresenta-se, assim, para osalunos, a possibilidade da superação doconhecimento comum por meio da pesquisaàs fontes de época, como um modofundamental para a constituição de autênticossujeitos do conhecimento, capazesde construir a sua leitura do mundo. 12Os textos transcritos para a seção “Salade aula” exploram a temática do mundoluso-brasileiro, inserindo-se nos mesmosassuntos propostos para a seção “Docu-pág. 178, jan/dez 2005


R V Omentos”, os quais gravitam em torno dequatro temas gerais: Expansão portuguesa,Brasil, Portugal e Império luso-brasileiro.O desdobramento desses grandestemas deu-se a partir de tópicos comoreligiosidade e instituições religiosas; ciência,cultura e educação; cidades coloniaise a Corte no Brasil; política externae diplomacia do Estado português, ou emsubtemas como a invasão do Rio de Janeiropor corsários franceses, os movimentossediciosos setecentistas no Brasil,entre outros.Um aspecto relevante quanto à proposiçãodos temas é que estes são eleitos apartir dos descritores temáticos presentesno Roteiro de fontes. Como dissemosanteriormente, a base de dados ofereceuma diversidade de entradas acerca doperíodo colonial, englobando não só oBrasil, mas a totalidade do império lusobrasileiro.Explorando aspectos variados,que vão desde os assuntos institucionaisaté às representações culturais e as práticascotidianas, a base também privilegiaaspectos propostos pela historiografiabrasileira mais recente, à luz de debatescomo o da história cultural, que aoutilizar diferentes metodologias e fontesde pesquisa, insere-se em uma linhaproblematizadora do social, preocupadacom as massas anônimas, seusInterior de uma moradia de ciganos. Jean Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique auBrésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement, epoquesde l‘avénement et de I‘abdication de S. M. D. Pedro 1er. Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 179


A C Emodos de viver, sentir e pensar. Umahistória com estruturas em movimento,com grande ênfase no mundo dascondições de vida material [...]. Umahistória não preocupada com a apologiade príncipes ou generais emfeitos singulares, senão com a sociedadeglobal, e com a reconstruçãodos fatos em séries passíveis de compreensãoe explicação. 13Atento às comemorações pelobicentenário da vinda da Corte portuguesapara o Brasil, o <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> jádeu início a alguns trabalhos enfocandoo período joanino (1808-1821). Além darecente exposição “O mundo luso-brasileiro”,14 o site, mais especificamente asseções “Documentos” e “Sala de aula”,passou a contar com a presença, maissistemática, do acervo documental da instituiçãosobre esse momento da histórialuso-brasileira. Nesse sentido, os temas“A nobiliarquia luso-brasileira” e “Portugal,Casa Real e Imperial”, a serem inseridosna página, marcam o início de umasérie sobre a sede da monarquia portuguesano período.Uma importante contribuição do “Sala deaula” consiste em possibilitar a utilizaçãoda fonte primária no ensino da históriacolonial, uma vez que também sãodisponibilizadas cópias digitalizadas dosdocumentos em bom estado. Dessa forma,a seção faculta a professores e alunosa possibilidade de se familiarizar como tempo histórico, a realidade e o espíri-Festejo colonial. Henry Chamberlain. Vistas e costumesda cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1818-1820. Rio de Janeiro: Kosmos, 1943pág. 180, jan/dez 2005


R V Oto de outras épocas, presentes inclusivena grafia específica desse período. Comojá assinalaram alguns estudiosos sobrea relação existente entre a utilização dedocumentos e a sala de aula:O simples contato com um documentode época, quer seja um registroescrito, iconográfico ou sonoro,transporta os estudantes para umaoutra dimensão temporal, pelas diferençasde linguagem nos casos dostextos escritos ou na forma de apreensãoda mensagem. O documento,porém, não deve ser utilizado apenascomo estímulo inicial ou “ilustração”de uma determinada aula. Omesmo exercício proposto com oslivros didáticos ou textos dos própriosprofessores pode ser realizadoconfrontando-se dois documentossobre o mesmo processo, produzidospor autores com inserção socialdistinta, explorando as possíveis diferençasnos registros que podem serrelacionadas à dinâmica dos conflitossocais. 15Pensado em diferentes instâncias, o significadodesse acervo, quer na singularidadede um manuscrito, quer em suarelação com fundos, coleções, obras rarasou cartografia, enseja um pensamentocrítico, uma curadoria do acervoinstitucional e da escrita da história, formuladaa partir do próprio <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>,em uma perspectiva distinta dasanálises habitualmente conhecidas. Trata-sede superar um conjunto de premissasrelativas ao conhecimento histórico,à natureza dos documentos, às idéias dememória e realidade que, de alguma forma,permanecem intocadas nos arquivos.Ao valor do patrimônio documental conservadono <strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, conferidopor uma série de características, deveseagregar a dinâmica de uma contínuainterpretação de sua totalidade, dos nexosestabelecidos entre fundos e coleções,da materialidade dos diferentes suportese formatos, enfatizando o caráterda construção e formação do acervo do<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong>, em detrimento de umarelação de transparênciacom um determinadoprocessohistórico.Forte em Diu, Índia. Correio da Manhã, s.d.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 171-182, jan/dez 2005 - pág. 181


A C EN O T A S1. Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 6ª ed., BeloHorizonte, Itatiaia, 1981, p. 227.2. Relatório do Ministério do Império de 1853, Rio de Janeiro, Tipografia do Diário de A. &L. Navarro, 1854.3. O projeto Roteiro de fontes recebeu o apoio das seguintes instituições: Universidade doEstado do Rio de Janeiro (UERJ), Fundação VITAE, Comissão <strong>Nacional</strong> para as Comemoraçõesdos Descobrimentos Portugueses (CNCDP) e Programa de Apoyo al Desarrollo deArchivos Iberoamericanos (Programa ADAI).4. Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, Parâmetroscurriculares nacionais, Brasília, 1998, p. 29.5. ibidem, p. 45.6. Ver www.pro.gov.uk7. Ver www.nara.gov e www.archivesnationales.culture.gouv.fr8. Brasil, Parâmetros curriculares nacionais, op. cit., p. 40.9. A mestre em história Ana Carolina Eiras Coelho Soares foi redatora da seção “Sala deaula” até junho de 2005.10. Ver www.arquivonacional.gov.br/historiacolonial. Seção “Sala de aula”.11. Thelma N. M. B. Silva e Heloísa J. Rabello, O ensino de história, Niterói, EDUFF, 1992, p.46 e 47.12. Paulo Knauss, Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa, emRepensando o ensino de história, São Paulo, Cortez, 1996, p. 28-30.13. Ronaldo Vainfas, Os protagonistas anônimos da história, São Paulo, Campus, 2002, p.17.14. A exposição O mundo luso-brasileiro esteve em cartaz no Espaço Cultural do <strong>Arquivo</strong><strong>Nacional</strong> entre os dias 27 de setembro e 27 de outubro de 2005.15. Marcelo Badaró Mattos, Pesquisa e ensino, em História: pensar e fazer, Rio de Janeiro,Universidade Federal Fluminense, Laboratório Dimensões da História, 1998, p. 124.pág. 182, jan/dez 2005


R V OP E R F I L I N S T I T U C I O N A LGrupo de Estudos e Pesquisas“História, Sociedade e Educaçãono Brasil” (HISTEDBR)José Claudinei LombardiDoutor em Educação. Professor do Departamentode Filosofia e História da Educação, da Faculdade de Educaçãoda Unicamp. Coordenador Executivo do Grupo de Estudose Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR).Criado em 1986, o HISTEDBR define-sepelo amplo campo de investigação noqual a temática da educação,entendida como intrinsecamentearticulada com a sociedade, étrabalhada desde a história, com os métodos eteorias próprios e característicos dessa área doconhecimento. A denominação “História,Sociedade e Educação” se vincula a umentendimento que remete ao historiador a tarefade dedicar-se, entre outros objetos e problemasde investigação, à educação, que, por sua vez,não é mera abstração, mas é social, geográfica ehistoricamente determinada.Palavras-chave: educação, história, sociedade.Created in 1986, HISTEDBR defines forthe ample field of inquiry in which thethematic of the education, understoodas intrinsically articulated with thesociety, is worked since History, withthe proper and characteristic methods andtheories of this area of knowledge. Thedenomination “History, Society and Education” isconnected with an agreement that leads to thehistorian the task of dedicating himself, amongother objects and problems of inquiry, to theeducation that, in turn, is not a mere abstraction,but also socially, geographically and historicallydetermined.Keywords: education, history, society.OGrupo de Estudos e Pesquisas“História, Sociedade e Educaçãono Brasil” (HISTEDBR) chega,neste ano de 2006, ao seu vigésimoaniversário. Criado em 1986, o Grupo,sediado na Faculdade de Educação daUnicamp, contou com a participação deprofessores e seus respectivosorientandos de mestrado e doutorado,com o objetivo de propiciar o intercâm-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 183


A C Ebio das pesquisas que estavam sendodesenvolvidas no curso de pós-graduação.Dermeval Saviani relembra o processode criação do Grupo nos seguintestermos:Tendo iniciado minhas atividades docentesno Departamento de Filosofiae História da Educação da Faculdadede Educação da Unicamp em 1980,fui organizando progressivamente asatividades de pesquisa, docência eorientação dos alunos de pós-graduação,procurando dar seqüência, tambémna Unicamp, à experiência bemsucedidade orientação coletiva quedesenvolvia na PUC de São Paulo.Emergiu, nesse processo, a idéia deaglutinar, num grupo de pesquisa, osprojetos de tese de doutorado em desenvolvimentono âmbito da históriada educação. Essa idéia veio a seconcretizar em 1986 com a criaçãodo Grupo de Estudos e Pesquisas“História, Sociedade e Educação noBrasil”.O núcleo inicial do Grupo foi compostopor doze doutorandos uma vezque aos nove alunos que eu orientavaem 1986 se juntaram mais doisorientandos do prof. Evaldo AmaroVieira e um do prof. José LuísSanfelice. 1Nos primeiros anos de sua consolidação,entre 1986 e 1990, realizaram-se encontrosperiódicos, geralmente semestrais,com o intuito de debater a elaboraçãodas pesquisas. A preocupação maior eraacompanhar o processo de desenvolvimentodos trabalhos e a socialização dasinformações entre os pesquisadores doGrupo. Acompanhando o andamento e aconclusão dessas pesquisas, com afinalização das dissertações e teses, decidiu-sepela constituição de um grupo depesquisa de âmbito nacional. Isso resultavado retorno dos pesquisadores paraas suas instituições de origem, espalhadaspelas diversas regiões do país, masque desejavam continuar desenvolvendoum trabalho coletivo, mantendo a articulaçãocom os demais companheiros.A organização desse coletivo nacional,para além das relações entre orientandose orientadores, exigia a formalização doGrupo junto à Faculdade de Educação daUnicamp, bem como a institucionalizaçãodos Grupos de Trabalho (GTs) em suasrespectivas instituições. Formou-se, então,um núcleo permanente de pesquisa,centralizado na Faculdade de Educaçãoda Unicamp e articulador de GTs regionaise estaduais. Nesse ano de 1991eram 15 GTs, espalhados por 14 estadosbrasileiros. Com relação à denominaçãodo grupo, também Saviani, no járeferido Editorial da revista on-line dogrupo, retomou sinteticamente os argumentosteóricos para tanto:A denominação “História, Sociedadee Educação no Brasil” foi escolhidapor duas razões: de um lado, buscou-seuma denominação suficientementeabrangente para acolher a diversidadede temas dos projetos depág. 184, jan/dez 2005


R V Otese dos alunos, não se limitando aosestudos específicos tradicionalmenteclassificados na disciplina históriada educação; de outro lado, procurou-sedefinir um eixo que sinalizavaa perspectiva de análiseaglutinando investigações que estudassema educação enquanto fenômenosocial que se desenvolve notempo. Assim, o termo “sociedade”aparecia como mediação entre “história”e “educação” sugerindo que ahistória da educação seria entendidaem termos concretos, isto é, comouma via para se compreender a inserçãoda educação no processo globalde produção da existência humana,enquanto prática social determinadamaterialmente. Buscava-se, poresse caminho, superar a visão tradicionalda história da educaçãocentrada nas idéias e instituiçõespedagógicas. Ficava indicado, pois,que o enfoque considerado mais adequadopara dar conta dessa perspectivade análise se situava no âmbitodo materialismo histórico, quer dizer,a concepção dialética tal comodelineada pelas investigações levadasa efeito por Marx as quais tiveramcontinuidade na obra de seus seguidorescom destaque para Engels,Lênin, Lukács e Gramsci. Isso, obviamente,sem desconhecer a possibilidadee eventuais contribuições deoutras formas de investigação histórico-educativa.Sabe-se, com efeito, que a perspectivadialética de base marxista logrousignificativa penetração no campoeducacional no Brasil durante a segundametade da década de 1970 eao longo dos anos 80 do século XX.Nesse contexto, uma das possibilidadestraduzida na proposta de algunsintegrantes era que o grupo seconstituísse numa referência nacionalpara os estudos marxistas daeducação, buscando articular os pesquisadoresda educação de todo opaís interessados em trabalhar nessaperspectiva. 2INSTITUCIONALIZAÇÃO E HISTÓRICODOS SEMINÁRIOSAinstitucionalização do Grupodeu-se em 1991, quando foirealizado o I Seminário <strong>Nacional</strong>de Estudos e Pesquisas “História,Sociedade e Educação no Brasil”, naUnicamp, efetivado em duas etapas: entreos dias 6 e 10 de maio e entre osdias 9 e 13 de setembro. O tema escolhidofoi “Perspectivas metodológicas dainvestigação em história da educação”.A escolha incidiu sobre uma temática querefletia o embate entre as várias perspectivasmetodológicas e teóricas diferenciadasno campo da investigação em históriada educação. Não houve publicaçãodos anais desse I Seminário, do qual foipublicado um único texto, que é referêncianecessária nos debates teóricometodológicosda história. 3 Durante esseencontro foi elaborado o projeto “Levantamentoe catalogação das fontes primá-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 185


A C Erias e secundárias da história da educaçãobrasileira”, que foi priorizado em funçãodo entendimento de que havia escassez,precariedade, dificuldade de acessoe dispersão das fontes documentais necessáriaspara a implementação da pesquisaem história da educação no país.Esse projeto inicial, intermediário à pesquisapropriamente dita, foi uma propostade trabalho coletiva, articuladora dosinteresses de todos os membros dos Gruposde Trabalho do HISTEDBR nas váriasregiões do país e, hoje, transformadoem projeto permanente do Grupo, ao seconstituir em um esforço de investigaçãoe para disponibilizar documentos necessáriosaos pesquisadores da história daeducação brasileira.O II Seminário <strong>Nacional</strong> de Estudos ePesquisas “História, Sociedade e Educaçãono Brasil” ocorreu na Unicamp, em1992, entre os dias 6 e 10 de abril. Otema escolhido foi “Fontes primárias esecundárias em história da educação brasileira”.O objetivo desse seminário foidar continuidade aos debates sobre asprincipais correntes metodológicas deinvestigação histórica, como também conheceras principais pesquisas e trabalhoscom fontes primárias e secundáriasda educação brasileira e os catálogos erelatórios delas resultantes. Também nãohouve a publicação dos anais desse evento,mas vários dos trabalhos expostos jáestavam publicados. 4Os anos seguintes foram marcados pelarealização de vários encontros periódicosdos coordenadores dos GTs, geralmenteno interior de outros eventos da área.Juntamente com a ampliação gradativade novos GTs, o projeto “Levantamento,organização e catalogação das fontes primáriase secundárias da história da educaçãobrasileira” possibilitava que asequipes encontrassem novos rumospara a investigação em história daeducação brasileira, de modo especial,a partir de pesquisas centradasnas fontes primárias regionais e locaisda educação.O III Seminário <strong>Nacional</strong> de Estudos ePesquisas “História, Sociedade e Educaçãono Brasil”, realizado entre os dias 15e 17 de novembro de 1995, na Unicamp,foi marcado pela socialização das pesquisas,realizadas ou em processo de produção.Para esse evento foram convidadosrepresentantes de sociedades de históriada educação dos países ibéricos elatino-americanos, objetivando o intercâmbiode experiências. Participaram doevento 107 pesquisadores, dos quais 86apresentaram comunicações científicasnas seguintes temáticas: história local e/ou regional da educação, pesquisatemática, levantamento e catalogação,coletivos de pesquisa/organizações emhistória da educação, historiografia equestões teórico-metodológicas, estudoshistórico-biográficos, história comparadada educação. Após o evento foi feito umesforço para organizar os trabalhos emtorno dessas grandes temáticas, para“mapear” os caminhos trilhados pelo Gru-pág. 186, jan/dez 2005


R V Opo. Foram editados os anais desse IIISeminário. 5Nesse evento, considerou-se que o grupotinha atravessado sua “fase heróica” eque era necessário um instrumento maiságil para o intercâmbio entre os GTs.Decidiu-se, então, pela criação da redeHISTEDBR, para o intercâmbio de informações,e também pela edição do BoletimHISTEDBR, em meio digital e impresso,pois vários GTs ainda não eraminformatizados. No primeiro e único númerodo Boletim – HISTEDBR, ano 1,número 1 –, foram publicados documentose textos sintetizadores da trajetóriado grupo. A iniciativa de editar um boletimeletrônico foi temporariamente abandonada,pois se esbarrava na precariedadede condições infra-estruturais parasua implementação.O IV Seminário <strong>Nacional</strong> de Estudos ePesquisas “História, Sociedade e Educaçãono Brasil” realizou-se na Unicamp,entre os dias 14 e 19 de dezembro de1997. Nesse evento o grupo retomou osdebates teórico-metodológicos e,concomitantemente, manteve o espaçopara a socialização da produção dos pesquisadoresvinculados aos Grupos de Trabalho.O tema central – “O debate teórico-metodológicono campo da história esua importância para a pesquisa educacional”– permeou as quatro mesas-redondasrealizadas: “Questõesmetodológicas da história”; “Questõesteórico-metodológicas da história da educação”;“Trajetórias da pesquisa em históriada educação no Brasil” e “Problemáticateórico-metodológica da históriada educação desde as diferentes experiênciasnacionais ou regionais”. Para assessões de comunicações inscreveram-se153 pesquisadores com 120 trabalhos,sendo dez trabalhos de pesquisadoresestrangeiros, com a seguinte distribuição:Argentina: 3; Chile: 1; Colômbia: 1;Espanha:1; Itália: 1; Paraguai: 1; Portugal:1; Uruguai: 1. Os anais do eventoforam publicados 6 e o conjunto das conferênciasministradas nesse IV Seminárioresultou na publicação de duas coletâneas.7Abrindo um parêntese no relato, mereceregistro que, em 1999, foi publicado umnovo informativo eletrônico, o HISTEDBR:Boletim “História, Sociedade e Educação”,lançado em 10 de maio, com a propostade periodicidade mensal. A nova iniciativafoi operacionalizada por Maria de FátimaFelix Rosar, então em estudos pósdoutoraisna Unicamp, José ClaudineiLombardi e José Carlos Souza Araújo.Novamente as dificuldades deoperacionalização inviabilizaram a continuidadedessa iniciativa, que não passoude seu primeiro ano, no qual foram editadosquatro números. No ano seguinte,em setembro, foi criada a RevistaHISTEDBR On Line que, desde a criação,tem mantido periodicidade e encontra-seindexada. Cada número da revista é produzidopor um GT, com o apoio dos demais.A cada número, a revista tem contadocom a adesão da comunidade cien-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 187


A C Etífica de historiadores da educação brasileirae afirma-se como um espaço pluralpara a propagação dos trabalhos produzidosda área.O V Seminário <strong>Nacional</strong> de Estudos ePesquisas “História, Sociedade e Educaçãono Brasil” realizou-se entre os dias20 e 24 de agosto de 2001 na Unicamp,com o tema central “Transformações docapitalismo, do mundo do trabalho e daeducação”. As mesas-redondas tiveram osseguintes temas: “Capitalismo, trabalhoe educação”; “Capitalismo, trabalho eeducação no Brasil” e “15 anos doHISTEDBR e a historiografia educacionalbrasileira”. Esta última apresentou umbalanço da produção de cada GT, comrelato das pesquisas, dissertações, teses,publicações, catálogos de fontes etc. OV Seminário recebeu um total de 172inscrições de trabalhos, sendo 118 comunicaçõescientificas, apresentadas emquatro sessões, e 54 trabalhos no formatode painéis. Os anais do evento, comos trabalhos completos, estão em CD-ROM; também foi publicado um Cadernode Resumos. Os textos produzidos eapresentados na conferência inaugural enas mesas-redondas foram publicados emuma coletânea. 8O VI Seminário <strong>Nacional</strong> de Estudos ePesquisas “História, Sociedade e Educaçãono Brasil” foi realizado entre os dias10 e 14 de novembro de 2003, emAracajú, com o tema “A história da educaçãopública no Brasil”. No VI Seminárioocorreram as seguintes mesas-redondas:“Historiografia da escola pública noBrasil”, “História comparada da escolapública” e “Escola pública brasileira naatualidade: lições da história”. Foram inscritos148 trabalhos, todos apresentadosnas sessões de comunicações científicas.Os anais do evento, com todos os trabalhoscompletos, fizeram parte de um CD-ROM. Também foi publicado um Cadernode Resumos. Os textos das conferênciasproferidas durante o seminário forampublicados numa coletânea. 9 NesteSeminário também ocorreu umaredefinição das linhas de pesquisa doGrupo. Mantendo a mesma concepção ea mesma conceituação do eixo temáticonorteador das pesquisas do Grupo, mastendo em vista mudanças ocorridas naprodução acadêmica dos Grupos de Trabalho,decidiu-se pelas linhas de pesquisaa seguir: linha 1 – Historiografia equestões teórico-metodológicas da históriada educação: comporta estudos quetenham ênfase na historiografia e/ou deanálise de questões teóricometodológicasda produção histórico-educacionalbrasileira; linha 2 – História daspolíticas educacionais no Brasil: situamseas investigações que tenham por objetivoo estudo de problemas e temasrelacionados à política educacional brasileira;linha 3 – História das instituiçõesescolares no Brasil: localizam-se os projetosque tenham por objeto a análisehistórica das instituições educacionais,sob os mais variados aspectos, e quetenham importância para a compreensãohistórica da educação.pág. 188, jan/dez 2005


R V OAS JORNADAS REGIONAISAampliação dos debates e dovolume da produção acadêmicatransparece nos diversoseventos promovidos pelo Grupo no decorrerdesses quase vinte anos. Esses encontrostêm estimulado a discussão sobrehistória da educação, despertado ointeresse na apresentação de pesquisasjá elaboradas ou em andamento, favorecendoo intercâmbio acadêmico-científico,como também constituem um espaçode encontro de educadores e pesquisadoresda história da educação brasileira.Além dos seminários nacionais, o Grupode Trabalho sediado na UniversidadeFederal de Sergipe realizou o Colóquio“Sociedade, História e Memória”, entre13 e 15 de março de 2002, na UniversidadeFederal de Sergipe.Em vista da experiência bem sucedida deeventos com recorte regional e temático,da necessidade de aproximar o GT daUnicamp dos demais GTs espalhados pelopaís, e das transformações da pós-graduaçãono país, com demanda crescentepor apresentação e publicação da produçãoacadêmica, decidiu-se pelaimplementação de jornadas regionais outemáticas. Essa idéia, surgida de conversasinformais entre os membros do GTda Unicamp, foi tomando corpo e levadacomo proposta para a reunião de coordenadoresdo HISTEDBR ocorrida no VSeminário <strong>Nacional</strong> (2001), quando entãose decidiu pela realização das jornadas.A I Jornada do HISTEDBR – região Nordestefoi organizada em conjunto com aUNEB (Universidade do Estado da Bahia),UESB (Universidade do Sudoeste Baiano)e UEFS (Universidade Estadual de Feirade Santana), em Salvador, nos dias 9 a12 de julho de 2002, tendo como temade discussão a “História da escola públicano Brasil”. O evento teve como objetivoestimular a consolidação da produçãocientífica vinculada aos programas depós-graduação em “Educação econtemporaneidade” e “História social”oferecidos pela UNEB. Teve ainda porobjetivo constituir-se em um espaço deintercâmbio e reflexões das pesquisasrealizadas nas universidades estaduais daBahia. Os anais do evento, com os trabalhoscompletos, foram editados em CD-ROM, e foi publicado um Caderno de Resumos.A II Jornada do HISTEDBR – região Sulfoi realizada entre os dias 8 a 11 de outubrode 2002, tendo como tema central“A produção em história da educaçãona região Sul do Brasil”. Essa Jornadafoi originalmente proposta para comemoraruma década de produção acadêmicado HISTEDBR no sul do Brasil, criandoum espaço para os debates teórico-metodológicose para a apresentaçãoda produção dos pesquisadores dessaregião do país. Entretanto, por solicitaçãode GTs localizados em outras regiões,o evento acabou sendo aberto àparticipação de todos os grupos do país.Esse encontro regional foi realizado emduas etapas: uma na Universidade dePonta Grossa (UEPG) e outra na PontifíciaAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 189


A C EUniversidade Católica do Paraná (PUCPR),em Curitiba, com mesas-redondas comos seguintes temas: “A organização e criaçãodo GT Paraná”; “Fontes e históriadas instituições escolares”; “Fontes e históriadas políticas educacionais” e, finalmente,“Fontes e historiografia educacionalbrasileira”. O evento contou com130 comunicações científicas, constantesnos anais em CD-ROM, sendo ainda publicadoum Caderno de Resumos; daspalestras nas mesas-redondas, foi editadauma coletânea. 10A III Jornada do HISTEDBR – região Sudestefoi realizada entre os dias 22 e 25de abril de 2003, em Americana-SP, noCentro Universitário Salesiano de SãoPaulo/UNISAL, 11 e teve por tema central“O público e o privado na história da educaçãobrasileira: concepções e práticaseducativas”. Assim como as Jornadasanteriores, apesar da ênfase original naprodução científica regional, o eventoacabou sendo aberto para os pesquisadoresde outras regiões do Brasil. Duranteo evento ocorreram as seguintes mesasredondas:“O público e o privado comocategoria de análise em educação”; “Opúblico e o privado: teorias e configuraçõesnas práticas educativas” e “A problemáticado público e do privado na históriada educação no Brasil”. Os anaisdo evento, com os trabalhos completos,foram editados em CD-ROM e publicouseum Caderno de Resumos. As palestrasrealizadas nas mesas-redondas forampublicadas em uma coletânea. 12A IV Jornada do HISTEDBR foi realizadaem Maringá-PR, no período de 5 a 7 dejulho de 2004, na Universidade Estadualde Maringá (UEM), com o tema geral “Históriae historiografia da educação: abordagense práticas educativas”. As atividadescentrais foram as seguintes : trêsmesas-redondas seguidas de debate,abertas ao público; sessões de comunicaçõescientíficas; reuniões de trabalhodos coordenadores dos GTs doHISTEDBR. As mesas tiveram comotemáticas: “Perspectivas atuais da históriada educação”, “Educação e imigraçãono Brasil”, e “História e historiografia daeducação no Brasil”. Os resumos e trabalhosdas comunicações científicas foramdisponibilizados em anais, editoradosem CD-ROM. 13A V Jornada do HISTEDBR foi realizadano período de 9 a 12 de maio de 2005,no campus central da Universidade deSorocaba (UNISO), 14 com o tema geral“Instituições escolares brasileiras: história,historiografia e práticas”. Foram realizadastrês mesas-redondas para oaprofundamento da discussão do temageral. A primeira incidiu sobre a “Históriadas instituições escolares”; a segundadiscutiu o tema “Historiografia das instituiçõesescolares”; a terceira mesa-redondateve por tema “Instituições escolares:práticas”. Foram apresentadas 196comunicações científicas, por duzentos evinte autores, oriundos de 18 estadosbrasileiros. 15A VI Jornada do HISTEDBR foi realizadapág. 190, jan/dez 2005


R V Oentre os dias 7 e 9 de novembro de2005, em Ponta Grossa-PR, no campusda Universidade Estadual de Ponta Grossa(UEPG), 16 com o tema central “Reconstruçãohistórica das instituições escolaresno Brasil”. O evento foi realizado comuma conferência de abertura abordandoo tema central e três mesas-redondasorganizadas de forma a ampliar os debatessobre o tema central. A primeiramesa-redonda abordou o tema “Instituiçõesescolares: arquivos e fontes”; a segundadiscutiu o tema “Instituições escolares:etnia e educação escolar”; a terceirateve por tema “Historiografia dasinstituições escolares”. Foram apresentados225 trabalhos nas sessões de comunicaçãocientífica, que estãoregistrados em um Caderno de Resumos(impresso) e em CD-ROM com os anaiscompletos. 17OUTRAS ATIVIDADESBuscando implementar ainda maissuas atividades, o GrupoHISTEDBR, desde 1999, promoveencontros mensais na Faculdade deEducação da Unicamp, onde são apresentadose debatidos, nas sessões do evento“Comunicações em história da educação”,resultados de pesquisas, de trabalhosem andamento, dissertações e tesesconcluídas e obras publicadas. Namesma direção, mas ampliando o campo,o Grupo HISTEDBR, juntamente como PAIDÉIA (Grupo de Estudos e Pesquisasem Filosofia e Educação), 18 têm promovidomensalmente sessões dos “Colóquiosde filosofia e história da educação”,que trazem discussões de temas que versamsobre educação.Para a implementação e desenvolvimentodo Projeto 20 anos, ao longo de 2005,as sessões dos eventos “Comunicaçõesem história da educação” e dos “Colóquiosde filosofia e história da educação”foram realizadas na Sala deVideoconferências da Faculdade de Educaçãoda Unicamp e transmitidas viainternet. A promoção foi do GT daUnicamp, contando com a participação depesquisadores dos outros GTs. Essas sessõesforam implementadas para acompanharos trabalhos realizados pelas diferentesequipes; para a socialização deinformações no âmbito do Grupo <strong>Nacional</strong>e para debater as várias questõesacadêmicas implicadas no Projeto.Além dos projetos, dos Seminários e dasJornadas, entre as diversas experiênciasdo grupo HISTEDBR cabe ainda registrar:– o desenvolvimento do Projeto “Levantamentoe catalogação de fontes primáriase secundárias da história daeducação brasileira”, que tem resultadona produção de vários catálogosde fontes locais e regionais;– a vasta produção acadêmica expressapelas teses e dissertações de alunosdos Programas de Pós-Graduaçãoligados aos pesquisadores dos Gruposde Trabalho do HISTEDBR;– a realização de inúmeras pesquisasAcervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 191


A C Etemáticas, provenientes do trabalhoem diversos acervos, repositórios defontes primárias referentes aos maisdiferentes aspectos e períodos históricosda educação local e regional;– a manutenção de um site na páginado Grupo na internet com as informaçõesinstitucionais do HISTEDBR nacional,bem como dos diversos Gruposde Trabalho, e outras informaçõesconsideradas relevantes para a comunidadecientífica; 19– a produção de alguns meios eletrônicosde intercâmbio de informaçõesimportantes para os pesquisadores daárea e, também, para a publicaçãode artigos e documentos. 20 Exemplo:a Revista HISTEDBR On-Line, acessívela partir do endereço eletrônico dogrupo;– a criação e manutenção de uma listade comunicação do Grupo, aberta àcomunidade científica da área, com oobjetivo de promover o intercâmbiode informações para os pesquisadoresda área. 21– Em 2005, foram publicadas duas coletâneaspelo Grupo: a primeira,intitulada Marxismo e educação: críticada escola contemporânea, 22 reúneas conferências do ciclo de debatesorganizado pelo HISTEDBR, entre2001 e 2004, tendo por objetivo discutira abordagem educativa das váriasvertentes do marxismo; a segunda,intitulada Ética e educação: reflexõesfilosóficas e históricas, 23 resultadas conferências do “Colóquio ética eeducação” realizado em Paulínia (SP),em julho de 2004.O PROJETO 20 ANOS, O CD-ROMNAVEGANDO PELA HISTÓRIADA EDUCAÇÃO BRASILEIRAE O VII SEMINÁRIO NACIONALPara comemorar os vinte anos defundação do grupo HISTEDBR,decidiu-se por um esforço coletivopara conhecer e socializar a produçãointelectual dos GTs que o compõe,com o desenvolvimento do Projeto 20anos de HISTEDBR – Navegando pela históriada educação brasileira. A propostafoi discutida e aprovada em reunião decoordenadores do grupo, realizada duranteo VI Seminário do HISTEDBR, e o objetivogeral do projeto foi levantar, reunir eorganizar o conjunto da produção do GrupoHISTEDBR, com a socialização deseus resultados. Tal objetivo geral foioperacionalizado em três itens específicos:– a realização de um amplo levantamento,sistematização e análisehistoriográfica da produção acadêmicados GTs vinculados ao HISTEDBR,de modo a propiciar um amplo painelda pesquisa histórico-educacional produzidapelo Grupo, buscando-se destacarquem produziu, o que foi produzido,períodos históricos abrangidos,temáticas abordadas e outras informaçõespertinentes;– a produção de um CD-ROM quepág. 192, jan/dez 2005


R V Oaglutine textos sobre a história da educaçãobrasileira em ambientemultimídia, articulando texto, som eimagem, possibilitando ao leitor umentendimento de conjunto sobre cadaum dos diferentes períodos etemáticas da história da educação brasileira;– a produção de uma coletânea sobre ahistória da educação brasileira, comtextos inéditos dos pesquisadores doGrupo, e que até o momento não foiconcretizada.A implementação do projeto 24 deu-se coma mobilização dos GTs para que encaminhasseminformações sobre o conjuntoda produção de cada um dos Grupos. Oobjetivo era montar um amplo painel dapesquisa histórico-educacional produzidapelo Grupo. O resultado do levantamento,com a produção dos diversos GTs, foireunido em uma base digital de dadospara possibilitar uma visão geral e integrada,a partir dos seguintes campos deorganização das informações: Grupo deTrabalho, ficha catalográfica, tipo de produção,autor, título, período histórico, eixotemático e data, completado com um campopara os resumos e palavras-chave.Um primeiro balanço da produção doHISTEDBR 25 traz como principais informações:o tipo de produção, o período históricoe o eixo temático para cada trabalho.Entretanto, muitos trabalhos nãoidentificam todos os campos e outroscompõem vários campos ao mesmo tempo.Essa constatação dificulta umaquantificação exata de toda a produção,mas mesmo assim permite uma visãogeral, indicativa, da produção do grupo.Será necessário esforços para completare consolidar as informações encaminhadaspelos GTs, a fim de viabilizar cálculosestatísticos mais precisos. Isso nãoimpede, entretanto, exercícios de análisehistoriográfica, como os que vêm sendorealizados por vários pesquisadoresdo grupo, pois a organização preliminardos dados, com a totalização de 1.593produções, é suficientemente ilustrativae indicativa da produção do Grupo. Só atítulo de ilustração, tomando-se o campoPeríodo histórico, embora a maioria dostrabalhos (51%) não identifique o períodotratado, é nítido o privilégio conferidoà contemporaneidade para a realizaçãodas pesquisas, com 17% dos trabalhos;a Primeira República vem em seguida,com 11%; depois, a Era Vargas com 6%,o Império com 5%, o Período militar com4%, o <strong>Nacional</strong>-desenvolvimentista com4% e a Colônia com 2%. Mesmo reconhecendoa necessidade de retificaçõese consolidação dos dados, eles sãoindicativos dos caminhos que a pesquisaeducacional tem assumido no Grupo, inclusivedas dificuldades de melhor precisaro objeto de pesquisa educacional, ahistoricidade do objeto e do método deinvestigação e análise. Os dados tambémsão indicativos quanto aos períodos históricosprivilegiados nas investigações,com forte predileção pela contemporaneidadee reduzido volume de produçãosobre a Colônia.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 193


A C EMas o objetivo não foi realizar um balançoconclusivo, um retrato fiel da totalidadeda produção do HISTEDBR, porém,simplesmente, implementar um trabalhode caráter coletivo que marcasse os vinteanos de sua organização, apresentandoum panorama geral da contribuiçãodo Grupo à história da educação brasileira.Isso foi materializado num produtoque, por sua própria natureza, tem o caráterde primeira versão, positivamenterevestido de certa provisoriedade quepermita, futuramente, novos e mais amplosdesenvolvimentos, em extensão eprofundidade. Foi esse o sentido da produçãodo CD-ROM Navegando pela históriada educação brasileira, um produtodo esforço coletivo do HISTEDBR, marcandoa passagem de seus vinte anos.Esse meio digital, utilizando a tecnologiamultimídia hoje disponível, torna possívela socialização de trabalhos inéditosde pesquisadores do HISTEDBR, com textosproduzidos para esse fim, acrescidade uma síntese didática sobre cada períodohistórico da educação brasileira, bemcomo de ferramentas que disponibilizaminformações, fontes e conteúdos fundamentaisao entendimento dos períodose temáticas da história educacional brasileira.Para comemorar as duas décadas de fundaçãodo Grupo, realizou-se o VII Seminário<strong>Nacional</strong> de Estudos e Pesquisas“História, Sociedade e Educação no Brasil”,entre 10 e 13 de julho de 2006, naUnicamp. Com o tema geral “20 anos deHISTEDBR: navegando pela história daeducação brasileira”, o principal objetivofoi a realização de um balanço da produçãoacumulada pelo Grupo e, ao mesmotempo, propiciar a todos os participanteso debate sobre a história educacional brasileiraa partir de um recorte temático etemporal. Para a abertura e encerramentodo evento foram previstas duas conferênciasinternacionais com dois conhecidosintelectuais italianos que dispensammaiores apresentações: Mario AlighieroManacorda e Dario Ragazzini. Essas duasconferências foram realizadas através devideoconferências, inaugurando o uso decomunicação à distância, em tempo real,nos eventos do Grupo.Para este VII Seminário <strong>Nacional</strong> inscreveram-se354 participantes, oriundos de57 instituições de ensino superior, com261 comunicações científicas, assim distribuídaspelas linhas de pesquisa doGrupo: historiografia e questões teóricometodológicasda história da educação,com 69 trabalhos (26,4%); história daspolíticas educacionais no Brasil, com 121comunicações (46,4%) e história das instituiçõesescolares no Brasil, com 71 trabalhos(27,2%).Não optamos, pois, por uma comemoraçãofestiva, com bolos e jantares, maspor comemorar aquilo que é a própriarazão da existência do Grupo: o desenvolvimentoda pesquisa. Esperamos queo debate teórico-metodológico no âmbitoda história da educação no Brasil e oexame crítico da produção histórico-edu-pág. 194, jan/dez 2005


R V Ocacional do HISTEDBR possibilitem aoGrupo a continuidade de sua atuação e,ao mesmo tempo, propiciem um saltoqualitativo em sua constituição, amadu-recendo as condições necessárias paraa implementação de novos projetosarticuladores e mobilizadores dos esforçoscoletivos de todo o Grupo.N O T A S1. Demerval Saviani, Editorial, Revista HISTEDBR on-line, n. 4.2. Idem.3. C. F. S. Cardoso, Paradigmas rivais na historiografia atual, Educação e Sociedade, n. 47,abr. 1994, p. 61-72.4. INEP, História da educação brasileira, Brasília, 1989; Clarice Nunes, Guia preliminar defontes para a história da educação brasileira, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,Brasília, v. 71, n. 167, p. 7-31, jan./abr. 1990; Gilberto Luiz Alves e Lener AparecidaGalinari, Catálogo bibliográfico da educação sul-matogrossense, Campo Grande, UFMS,1988.5. José Claudinei Lombardi (org.), Anais do III Seminário de Estudos e Pesquisas “História,Sociedade e Educação no Brasil”, Campinas, Unicamp-FE-HISTEDBR, 1996.6. José Claudinei Lombardi, Demerval Saviani e J. L. Sanfelice (orgs.), O debate teóricometodológicoda história e a pesquisa educacional, Anais do IV Seminário <strong>Nacional</strong> deEstudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil“, Campinas, Editora AutoresAssociados/Unicamp-FE-HISTEDBR, 1999, CD-ROM.7. Demerval Saviani, José Claudinei Lombardi e J. L. Sanfelice (orgs.), História e história daeducação: o debate teórico-metodológico atual, Campinas, Editora Autores Associados/HISTEDBR, 1998.Os trabalhos apresentados na mesa redonda com representantes internacionais levaramà organização da seguinte coletânea: J. L. Sanfelice et al. (orgs.), História da educação:perspectivas para um intercâmbio internacional, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR,1999.8. José Claudinei Lombardi, Demerval Saviani e J. L. Sanfelice (orgs.), Capitalismo, trabalhoe educação, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 2002.Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 183-196, jan/dez 2005 - pág. 195


A C E9. José Claudinei Lombardi, Demerval Saviani e M. I. M. Nascimento (orgs.), A escola públicano Brasil: história e historiografia, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 2005.10. José Claudinei Lombardi e Maria Isabel Moura Nascimento (orgs.), Fontes, história ehistoriografia da educação, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR; Curitiba, PontifíciaUniversidade Católica do Paraná (PUCPR); Palmas, Centro Universitário Diocesano doSudoeste do Paraná (UNICS); Ponta Grossa, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),2004.11. O evento foi promovido por GTs constituídos em instituições universitárias públicas eprivadas: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Centro Universitário Salesianode São Paulo (UNISAL) – Unidade de Americana; Universidade do Estado de São Paulo(UNESP) – campus de Presidente Prudente; Universidade São Marcos – Unidade de Paulínia;Instituto Superior de Ciências Aplicadas (ISCA) – Limeira; e Universidade para o Desenvolvimentodo Estado e da Região do Pantanal (UNIDERP).12. José Claudinei Lombardi, Mara Regina M. Jacomeli e Tânia Maria T. da Silva (orgs.), Opúblico e o privado na história da educação brasileira: concepções e práticas educativas,Campinas, Autores Associados; Americana, UNISAL, 2005.13. Analete Regina Schelbauer, José Claudinei Lombardi e Maria Cristina Gomes Machado(orgs.), Educação em debate: perspectivas, abordagens e historiografia, Campinas, AutoresAssociados, 2006 (no prelo).14. O evento foi organizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-FE) e Universidadede Sorocaba (UNISO), com a co-promoção das seguintes instituições: Universidadepara o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (UNIDERP), Centro UniversitárioSão Paulo (UNISAL/Americana), Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) eUniversidade Federal de Uberlândia (UFU).15. Os textos que compuseram as “falas” das mesas-redondas estão sendo organizadospara publicação.16. O evento foi promovido pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp), com a co-promoção das seguintes instituições:Centro Universitário Diocesano do Sudoeste do Paraná (UNICS), Pontifícia UniversidadeCatólica do Paraná (PUCPR), Universidade do Contestado – Campus Caçador (UnC), UniversidadeEstadual de Maringá (UEM), Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO),Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). O evento contou com o apoio doConselho <strong>Nacional</strong> de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundo de Apoioao Ensino, à Pesquisa e à Extensão (FAEPEX/Unicamp), Fundação Araucária de Apoio aoDesenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná, Prefeitura Municipal de Ponta Grossa,Universidade São Marcos (UNIMARCO) – Campus Paulínia e Faculdade de Pato Branco(FADEP).17. Também está sendo organizada a publicação dos textos resultantes da Jornada.18. O Grupo PAIDÉIA aglutina os docentes, pesquisadores e pós-graduandos da área defilosofia da educação, do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdadede Educação da Unicamp.19. O site tem o seguinte endereço eletrônico: www.histedbr.fae.unicamp.br20. Inicialmente foi produzido o Boletim Eletrônico HISTEDBR, distribuído através de lista;atualmente, é mantida a edição da Revista HISTEDBR On-Line, ISSN 1676-2584.21. A lista ou grupo eletrônico HISTEDBR está alojado no site www.grupos.com.br22. José Claudinei Lombardi e Demerval Saviani (orgs.), Marxismo e educação: crítica daescola contemporânea, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 2005.23. José Claudinei Lombardi e P. Goergen (orgs.), Ética e educação: reflexões filosóficas ehistóricas, Campinas, Autores Associados/HISTEDBR, 2005.24. E em todo esse trabalho e percurso foi fundamental o trabalho de Manoel Nelito MatheusNascimento.25. A organização das informações e esse primeiro balanço foram produzidos por AzildeAndreotti.pág. 196, jan/dez 2005


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R V OInstruções aosColaboradoresI. A revista Acervo, de periodicidadesemestral, dedica cada número a umtema distinto, e tem por objetivo divulgare potencializar fontes de pesquisanas áreas de ciências humanase sociais e documentação. Acervoaceita somente trabalhos inéditos, soba forma de artigos e resenhas.II. Todos os textos recebidos são submetidosao Conselho Editorial, que poderecorrer, sempre que necessário, apareceristas.III.O editor reserva-se o direito de efetuaradaptações, cortes e alterações nostrabalhos recebidos para adequá-losàs normas da revista, respeitando oconteúdo do texto e o estilo do autor.Os textos em língua estrangeira sãotraduzidos para o português.IV. O material para publicação deve serencaminhado em uma via impressa euma em disquete ou por intermédiode e-mail com arquivo anexado, noprograma Word 7.0 ou compatível.V. Os textos devem ter entre 10 e 15laudas (fonte Times New Roman; corpo12; entrelinha 1,5 linha), excetuando-seas resenhas, com aproximadamentecinco laudas. Devem conterde três a cinco palavras-chave e viracompanhados de resumo em portuguêse inglês, com cerca de cinco linhascada. Após o título do artigo,constam as referências do autor (instituição,cargo, titulação).VI. Devem ser enviadas também de trêsa cinco imagens em preto e branco,com as respectivas legendas e refe-Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, n o 1-2, p. 197-200, jan/dez 2005 - pág. 201


A C Erências, preferencialmente com indicação,no verso, sobre sua localizaçãono texto. As ilustrações devemser remetidas em papel fotográfico notamanho de 10x15cm ou escaneadasem alta resolução (tamanho da imagem:mínimo de 10x15cm; resolução:300dpi; formato: TIF).VII. As notas figuram no final do texto,em algarismo arábico, dentro dospadrões estipulados pela ABNT. A citaçãobibliográfica deve ser completaquando o autor e a obra estiveremsendo indicados pela primeiravez. Ex: ORTIZ, Renato. A modernatradição brasileira. São Paulo:Brasiliense, 1991. p. 28.VIII.Em caso de repetição, utilizar ORTIZ,Renato, op. cit., p. 22.IX. A bibliografia é dispensável. Casoo autor considere relevante, deverelacioná-la ao final do trabalho.Essas referências serão publicadasna seção BIBLIOGRAFIA, figurandoem ordem alfabética, dentro dospadrões da ABNT, conforme osexemplos abaixo:Livro: FERNANDES, Florestan. A revoluçãoburguesa no Brasil. Rio deJaneiro: Zahar, 1976.Coletânea: REIS FILHO, Daniel Aarãoe SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Imagensda revolução: documentos políticosdas organizações clandestinasde esquerda de 1961 a 1971. SãoPaulo: Marco Zero, 1985.Artigo em coletânea: LUZ, Rogerio.Cinema e psicanálise: a experiênciailusória. In: Experiência clínica e experiênciaestética. Rio de Janeiro:Revinter, 1998.Artigo em periódico: JAMESON,Fredric. Pós-modernidade e sociedadede consumo. Novos EstudosCEBRAP. São Paulo: nº 12, jun.1985, p.16-26.Tese acadêmica: ANDRADE, AnaMaria Mauad de Sousa. Sob o signoda imagem: a produção da fotografiae o controle dos códigos derepresentação social da classe dominanteno Rio de Janeiro, na primeirametade do século XIX.1990. Tese (Doutoramento em história),Universidade FederalFluminense, Niterói.X. Caso o artigo ou resenha seja publicado,o autor terá direito a cincoexemplares da revista.XI. As colaborações poderão ser enviadaspara o seguinte endereço:Revista Acervo<strong>Arquivo</strong> <strong>Nacional</strong> – Coordenação-Geralde Acesso e Difusão DocumentalPraça da República, 173, Bloco C,sala B002, Centro – Rio de Janeiro –RJ – Brasil – CEP: 20211-350XII. Informações sobre o periódico podemser solicitadas pelo telefone(21) 2224-4525 ou via e-mail(difusaoacervo@arquivonacional.gov.br).pág. 202, jan/dez 2005

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