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CULTURA

CULTURA: - Fundação Tide Setubal

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FundaçãoTide SetubalPresidente do ConselhoMaria Alice SetubalConselheirosGuilherme Setubal Souza e SilvaJosé Luiz Egydio SetubalOlavo Egydio Setubal JúniorRosemarie Teresa Nugent SetubalCoordenação AdministrativaMirene São JoséCoordenação de ComunicaçãoFernanda NobreCoordenação de CulturaSebastião Soares (Tião Soares)Cr é d i t o s d e s ta p u b l i c a ç ã oCoordenação EditorialFernanda Nobre (Mtb 31.301)José Pedro da Silva NetoSebastião Soares (Tião Soares)Edição de TextosJudi CavalcantiColaboraçãoAdriana LimaRevisãoViviane RoweFotosVerônica ManevyIlustraçãoRodrigo AndradeProjeto Gráfico e DiagramaçãoEPGEsta publicação é o registro do I Seminário Cultura: Diálogos para o DesenvolvimentoHumano, realizado em 13 de setembro de 2008, no CDC Tide Setubal, em São MiguelPaulista, zona leste de São Paulo. As falas foram registradas por meio de gravação emáudio e transcritas após a atividade. A edição buscou preservar a oralidade das discussões.Agradecemos à Equipe do CDC Tide Setubal, ao Grupo Buraco d’Oráculo,Grupo Mambembe de Ouro Preto, Adalberto Akira Yamasaki, Iza Lanza, Leila MariaBlass, Marcelo Ribeiro, Raberuã, Sacha Arcanjo, Suely Miyuki Kimura Yamasaki eZulu de Arrebatá o apoio na organização do evento e aosparticipantes e profissionais de outros projetos da Fundação que,de algum modo, contribuíram para a realização deste evento.São Paulo, outono de 2009.Fundação Tide SetubalRua Jerônimo da Veiga, 164 – 13° andarCEP 04536-000 – Itaim Bibi – São Paulo - SPTelefax: (11) 3168 3655www.fundacaotidesetubal.org.br


apresentaçãoMaria Alice Setubal................................................................................. 5introduçãoParticipação Popular, Cultura e Desenvolvimento Humano:O Diálogo da Localidade com o Global – Sebastião Soares 7palestrasDiálogos Interculturais na Cidade – Danilo Santos Miranda.....12Gestão da Cultura na Cidade – Altair Moreira................... 22A Centralidade da Cultura em umMundo Globalizado – Maria Lucia Montes......................... 30debates & PropostasDebates................................................................50Propostas..............................................................61


apresentaçãoPalestrasDanilo Santos de Miranda 5AFundação Tide Setubal atua desde2005 em São Miguel Paulista, bairrolocalizado no extremo leste da cidadede São Paulo. A partir do primeirodia até hoje, um dos nossos maioresdesafios – se não o maior – é estimulara reflexão e apoiar iniciativas quecontribuam para ampliar a interrelaçãoda cultura em seu sentido lato ea inserção do bairro com a vida cotidianada cidade de São Paulo.São muitas as causas que explicamas barreiras – muitas vezes invisíveis– que impedem a cir cu laçãoe a explicitação da interdependênciacultural entre os chamados centros eas preconceituosamente mal-a fa madasperiferias das grandes metrópolesbrasileiras.Em vista disso, um dos pilares donosso trabalho, que visa contribuirpara o empoderamento e o desenvolvimentosustentável exatamente dessaslocalidades, é dar visibilidade efortalecer a cultura local. Entretanto,não partimos do pressuposto de quedevemos valorizar “qualquer” culturalocal. É preciso ter cuidado e estabelecerum diálogo franco com aslocalidades onde atuamos. Dois bonsexemplos disso são a migração e aviolência. A migração, por exemplo,ao mesmo tempo em que provocadesenraizamento, faz circular e interagir,num mesmo território, costumes,valores, modos de vida – cultura,portanto – de diversas regiões dopaís. É algo a ser observado, para quepossamos compreender e valorizar oamálgama cultural de comunidadescomo a de São Miguel Paulista. Já acultura da violência, tão presente nocotidiano do brasileiro que, muitasvezes, se legitima de forma subliminar,deve ser analisado e compreendidopara ser combatido em todas assuas formas de manifestação.Nossa concepção parte do pressupostode que o lugar é um espaçovivo, carregado de memó rias e significações.É lá onde acontecem asrelações do social, do econômico e


Sebastião SoaresParticipaçãopopular, cultura edesenvolvimentohumano: o diálogoda localidadecom o globalSebastião Soares*introdução7“Assim como cidadania e cultura formam um par integrado de significações,assim também cultura e territorialidade são, de certomodo, sinônimas. A cultura, forma de comunicação do indivíduoe do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizadodas relações profundas entre homem e seu meio, umresultado obtido através do próprio processo de viver. Incluindo oprocesso produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que nos dáa consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento.”Milton SantosQuando fui estimulado por MariaAlice Setubal a organizar o seminárioCultura: Diálogos para oDesenvolvimento Humano, do qualesta publicação é um dos principaisprodutos, sabia que me encontravadiante de um desafio: como mobilizara comunidade de São MiguelPaulista, bairro localizado no extremoleste da cidade de São Paulo, adedicar um dia inteiro para discutira centralidade da cultura e a integraçãodas políticas públicas decultura, tendo como pano de fundoo desenvolvimento sustentável e ofortalecimento da localidade em diá -logo com o global?Mas por que a participação dacomunidade, não só de localidadescomo São Miguel Paulista, tem seconstituído num desafio? Diversosfatores contribuem para isso, mas,nesta introdução ao rico conteúdodo seminário, destacarei dois deles,pelo caráter decisivo que possuem:as noções prevalentes no Brasil doque venham a ser participação populare cultura.* Doutorando emCiências Sociaispela PontifíciaUniversidadeCatólica de SãoPaulo (PUC-SP),mestre emEducação ecoordenadorde Culturada FundaçãoTide Setubal.


8 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Seminário de Humano culturaO fastio da participaçãoAinda é muito comum em nossopaís, quando se pensa em desenvolvertrabalhos sociais, se ter emmente uma receita cheia de vontadespara salvar a comunidade. Emmuitos casos, esse receituário é responsávelpor encontrarmos jovense crianças que participam de açõesde algum projeto social e sequer sabempor que estão lá. São projetosnos quais os monitores ou arte-educadoresesquecem de contextualizaros fazeres existentes. Preferem sevaler dos saberes trazidos em mãoúnica, de cima para baixo.Fruto dessa maneira de se relacionarcom as comunidades, surgeo cansaço participativo, expressono desabafo “cansei de participar”.Mas o que essa frase quer dizer?Não é exatamente de participar queas pessoas estão cansadas, mas decerto tipo de participação. Aquelaque se esgota no frequentar reuniões,que sempre são pautadas peloque é trazido e nas quais não se tema chance de contribuir, de dar a suaopinião e ser escutado.Nessa noção de participação,espera-se tão-somente contar com apresença física do público, formandoum aglomerado de pessoas que, porlimites operacionais, não terão voz evez. Para que passemos da ansiedadequanto à presença de público para odesafio da participação ativa da comunidade,em que esta seja “parte daação”, em que todos possam contribuircom suas experiências, saberes,fazeres e sugestões, torna-se necessárioreformularmos essa noção predominantede participação.Não precisamos de um novo modelode roda, mas fazer a antiga rodarodar. Experimentar uma nova formade ação social em que se ampliee se areje o diálogo com a localidade.Isso pressupõe um difícil exercíciode humildade para compreendermosmelhor o nosso próprio discurso e iralém, empreendendo outras práticascomunitárias em torno da participação,criando ou revigorando espaçose ações que valorizem as vivênciaslocais e tragam na sua concepção aprática da educação compartilhada.Caso queiramos enfrentar esse“fastio participativo”, é preciso ousare experimentar novas formas deatuação social, na qual a comunidadefaça parte das ações. Com isso, amplia-seo pertencimento e, com ele,cresce a participação popular, poisa comunidade vislumbra a possibilidadede ver atendidas as suas aspiraçõese participa efetivamente paragarantir a continuidade das ações.Mas qual a relação entre essaparticipação da comunidade local,a cultura e a globalização? De qualcultura estamos falando?Se o pilar da participação é o pertencimento,este, por sua vez, se fundamentana cultura – resultado doscostumes, modos de vida de pessoase grupos, construída no dia a dia, nastrocas e vivências coletivas.Nesse conceito, cultura e cidadaniasão inseparáveis. Não sepode falar em cultura sem se falarem participação e em conquistasde direitos. Por outro lado, não hácidadania sem se levar em contaos conhecimentos e os valores dacomunidade. Um dos objetivos indispensáveisde um projeto socialé despertar nos participantes ummaior sentimento de pertencimentoà sua localidade.Ora, um dos contrapontos a umdos maiores riscos da globalização– a homogeneização – é o desenvolvimentode identidades próprias,ligadas à experiência pessoalde cada um no lugar onde sevive. De modo que garantir “ser”


Sebastião Soaresparte das ações gera a ampliaçãodo número de pessoas que participamdas atividades reflexivas e dosdebates nas instituições. Isso fortalecea relação das pessoas com assuas comunidades e amplia o graude pertencimento social.Entretanto, há riscos. Um pontoque merece cuidados redobradosé o respeito à cultural local. Carecesaber anteriormente de qual ouquais culturas estamos a falar e arespeitar. Caso contrário, poderemospotencializar culturas que seapresentam em desacordo com osprincípios que declaramos no projetosocial. Um dos exemplos dissoé a cultura da violência, que muitasvezes é potencializada no âmbito dacultura local e, despercebidamente,se faz presente e é veiculada nasações de projetos sociais.Cabe perguntar sempre: de queculturas estamos falando? Da culturado automóvel, que é priorizadaem detrimento de outras práticas evivências coletivas, como é o casoda rua e de outros espaços públicos?A cultura da fome, desagregadorae potencialmente invisível aos olhosaté dos que dela sofrem, é tambémuma outra vertente a ser observada,contextualizada, descontextualizadae recontextualizada, como forma decontribuir para a reflexão e o debatedas comunidades populares no contextosocial onde se vive?Desse modo, a questão se tornabastante confusa e necessitamos deurgência nesse debate em direção auma compreensão do que estamosfalando. É primordial respeitar os saberese as culturas locais. Entretanto,antes precisamos ter claro de que culturaestamos a falar e compreender aforma pela qual passamos às pessoasda comunidades essas questões.A cultura tem ocupado importantesespaços nos debates das políticaspúblicas. A questão cultural éum tema bastante instigante para aabertura de espaços de reflexões oupara situar algumas posições de governoscomprometidos ou não comtemas desse grau de relevância.Entretanto, torna-se necessárioempreender um esforço responsávelno sentido de repensarmos o nossoexagerado crédito nos milagres deuma “suposta” política cultural,com seus especialistas e reinventoresda roda de plantão que lá estão,saídos de gabinetes acarpetados, apropor milagres mirabolantes.Há que se estar alertas e, ao mesmotempo, ousar. A concepção atual,que enxerga a cultura de formafragmentada, restrita ao universo daorganização de eventos, deliberadamenteempobrece sua potencialidade.A proposta é a aposta. Colocara cultura no centro, tirando-a daposição periférica, complementar,suplementar, que hoje ocupa nocenário das políticas públicas. Paraisso, no contexto atual, de intensasrelações globais e fortes diferençassociais, ganha importância crucial olocal, a cidade. Entretanto, precisamosentender a cidade como o centroonde a cultura acontece. Cadapessoa tem uma paisagem imagináriade cidade. Assim, não se podecriar um reconfigurador arbitráriodo imaginário da cidade, mas aocontrário. Precisamos pensar a partirde outro ponto de vista, mudaras perguntas para encontrar novasrespostas. Devemos compreender acidade como sendo um cenário doconhecimento e ir além, mudar oparadigma, ler a cidade como sendoum cenário do reconhecimento.Passar da visão da unicidade – dainformação, do evento e do desconhecimento– para a visão polissêmicada diversidade, enxergar ereconhecer os diversos matizes daintrodução9


10 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Seminário de Humano culturapólis, favorecer as redes de conhecimentono intuito de aumentar ocapital social.Isso não é compatível com aconcepção de cultura como eventoe sim com a ideia de cultura comoconjunto de iniciativas que atendama reivindicações de diferentes linguagense gêneros, bem como dosindivíduos criaturas criadoras. Comuma ideia de política cultural firmadano diálogo intercultural e nahipótese da centralidade da culturana concepção de políticas públicas– assim mesmo no plural, culturapresente em todos os campos emque a vida na cidade acontece: notransporte, na economia, no planejamentourbano, no meio ambiente,na saúde, na segurança alimentar,na comunicação, na educação, nolazer e na cultura. Isso porque nãohá desenvolvimento econômico sem


Sebastião Soaresdesenvolvimento cultural e, por suavez, sem cultura não há desenvolvimentohumano.Acreditamos que a democratizaçãodo acesso à cultura é atingida apartir de uma política de garantia dedireitos construídos por pessoas fazedorase, portanto, pertencentes aoproduto e não apenas como consumidorasde pacotes impostos de cimapara baixo, do norte para o sul, docentro para a periferia. Nessa noção,a cultura é entendida como fator pre-ponderantemente de transformaçãosocial. Daí seu valor inclusivo.O que pretendemos é garantir umaprática “nova-antiga” para a discussão,no sentido de ajudar a pensara cultura como política pública ecompreendê-la dessa forma, criando,assim, a responsabilidade de incluirpautas constitutivas da criação coletiva,balizando-se, todavia, na construçãouniversalizada dos direitos àcriação. Mais do que isso: visando auma cidadania cultural plena que nosremeta ao pertencimento.introdução11


12 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano


PalestrasDanilo Santos de Miranda 13Danilo Santos de Miranda*Diálogos interculturaisna CidadeÉuma satisfação estar aqui com vocês e presenciar a ação que se praticanesta região da cidade de São Paulo. Fico muito gratificado de vertoda essa mobilização em torno de questões relevantes para a vida doser humano. Estamos falando aqui hoje de cultura, de comunidade, deintegração, de protagonismo, de valorização, seja do ponto de vista dacomunidade, seja do ponto de vista dos cidadãos que a integram. Issotudo presente na introdução brilhante dos dois artistas que se apresentaramna abertura do seminário. Essas canções do Sacha Arcanjoe do Zulu de Arrebata trazem a realidade de uma forma tão forte, esseorgulho de ser daqui e ao mesmo tempo fazer a reflexão sobre o paísinteiro, sobre tudo que acontece à nossa volta, sobre as relações quese estabelecem na nossa sociedade. Por um lado, uma sociedade tãocheia de problemas, de separações e divisões. Por outro e ao mesmotempo, uma sociedade com todo esse desejo da integração, da participação,do envolvimento, em que a cultura, a música e a manifestação* Diretor doDepartamentoRegional do SescSão Paulo. Formadoem Filosofia e CiênciasSociais, é conselheirodo Museu de ArteModerna de São Paulo(MAM), do InstitutoItaú Cultural, doMuseu de Arte de SãoPaulo (Masp) e do Artfor the World – Suíça.


16 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoEducação é mais do que aula, que escola, quequadro negro, professor, aluno, material escolar,frequência. Tudo isso é fundamental, mas a educaçãoque imaginamos é aquela ação que diz respeito àpermanência, à passagem de valores, à fixação deideias importantes para o bem da comunidade inteira.geral, acontece na cidade inteira.Então, há certa intenção por partedos candidatos de mostrar umanova proposta, geralmente que tenhaparede, que tenha construção,que tenha tijolo sobre tijolo. Se nãotiver tijolo sobre tijolo, não marca.É uma visão empobrecida.Em minha opinião, o que faltaem primeiro lugar é entender defato a cultura como um elementocentral, algo que está no meio detudo o que você faz. E não entendera cultura como algo que a gentetem que dar porque é um complementonecessário, é uma coisa queas pessoas desejam. Cultura é ferramentaessencial de mudança e detransformação de uma sociedade,de melhoria de uma cidade, de umEstado, de um país.Assim, a cultura tem que estarcentralizada, e não apenas a culturaenquanto manifestação artística oupreservação de patrimônio, a culturacomo elemento mobilizadordo ser humano em absolutamentetodos os aspectos. Vivemos a experiênciada cultura desde o momentoem que abrimos até o momento emque fechamos os olhos para estavida. Então, a experiência culturalé algo que perpassa toda a vida doser humano. Isso é difícil de muitaspessoas perceberem, daí imaginamque cultura seja apenas o fomentodas artes, a valorização das manifestaçõessimbólicas. Sem dúvida,tudo isso é cultura. Mas a culturaé muito mais do que isso. Falavada integração da questão cultural atodos os outros aspectos da vida doser humano. Vou dar um exemploimportante disso. Quem me relatoupessoalmente foi o ministro daCultura da França no período deFrançois Mitterrand nos anos 80,Jack Lang.Quando assumiu a pasta da Cultura,Lang se colocou – e recebeusuporte político para isso – comouma espécie de primeiro-ministroda Cultura. É curioso falar isso. Eleera um primeiro-ministro para assuntosde cultura. O que significavaisso? Que qualquer área do governoda França, naquele período,que pretendesse ou que tivesse umplano qualquer tinha que incluir acultura. Assim, em qualquer plano,o responsável pela área da Culturado governo participava e discutia aquestão. Vou dar um exemplo paraser mais claro. A Saúde detectavaa necessidade de se criar uma campanhanacional para a prevenção da


PalestrasDanilo Santos de Miranda 17aids, por exemplo. A elaboração doplano não era discutida exclusivamentepor médicos, especialistas,gente do ramo que fosse ver as consequências,a gravidade, a profundidade,o alcance disso. Claro quese pensava nisso, tinha que ter essesdetalhes, esses esclarecimentos. Entretanto,não se pensava nessa campanhasem que fosse debatida como Ministério da Cultura, que estavapresente desde a origem da discussão.Isso porque sem uma açãocultural efetiva você não muda acabeça das pessoas, não gera novoscomportamentos, não altera o estadodas coisas efetivamente. Vejam,naquele momento na França, vocêtinha a centralidade da cultura.A repórter do Estadão ficou muitointeressada nesse exemplo, tentandoentender como funciona esse negóciode saúde-cultura, justiça-cultura,violência-cultura, eco nomia-cultura,educação regular, escola e cultura,que, para mim, é a relação mais efetivae talvez a que tem sido a maispobre de todas. Tudo e cultura. Oque é isso?Então, tudo isso tem a ver com aquestão cultural. Não com a questãodas artes e do espetáculo, quetambém é importante, mas tudoque diz respeito à cultura. Tudo oque diz respeito à possibilidade deum artista falar da realidade, comoos dois que se apresentaram aqui efalaram de São Miguel. Quer coisamais expressiva? Não precisei dealguém para me dar uma explicaçãosobre São Miguel, ou o nomedas praças, como que as pessoasse sentem aqui, quais as questõesque estão no imaginário e na cabeçadas pessoas aqui no bairro. Nãoprecisei ouvir nada mais, bastaramas músicas que eles cantaram. Nãodigo que conheça profundamenteSão Miguel, mas, de qualquer forma,digo para vocês que isso refleteuma realidade, um fato, uma verdadeque não precisou de aula, deexplicação, folhetos, livros, nemprecisou de ninguém para me explicar.Está aqui no verso, na voz e nocanto que os dois artistas apresentaramaqui. Isso apenas para dar umexemplo de que estou tratando deuma coisa muito mais ampla. Se agente quiser falar até de transportepúblico, de campanhas para mantero rio Tietê limpo e por aí afora. Aquestão ambiental está vinculada aisso de uma maneira muito intensa.Foi exatamente isso que faltouna visão e nas propostas dos candidatosa prefeito da cidade de SãoPaulo. E aqui não me refiro a umcandidato em particular, mas a todosaqueles de que tive a oportunidadede analisar as propostas. Ninguém,nenhum político, ao falar de cultura,imagina esse papel tão vital, tãoóbvio e profundamente necessáriopara quem está lidando com o cotidianoda cultura.Aproveito esse exemplo concretoexatamente para mostrar a vocêsa importância da questão da centralidadeda cultura. Ela vai muito


18 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanoalém, portanto, de dar espaço para oartista, com todo o respeito que elemerece, mas é isso e muito mais.Quando mencionei a questão educacional,o fiz de maneira rápida, mastalvez nela resida o grande segredoda valorização, porque é ali que vocêforma o ser humano. É no tempo daescola regular que você recebe asinformações, desenvolve as suas habilidades,é educado efetivamente.É um período indispensável, primordialpara o ser humano e para asociedade. Mas educação é mais doque ensino. Educação é mais do queaula, que escola, que quadro negro,professor, aluno, material escolar,frequência. Tudo isso é fundamental,mas a educação que imaginamosé aquela ação que diz respeito à permanência,à passagem de valores, àfixação de ideias importantes para obem da comunidade inteira.Tem uma característica importanteda cultura que deve ser observada:a valorização da ética durantetoda a cadeia, todo o processo. Apresença permanente da questãoética é fundamental, pois também acultura pode se prestar ao mau serviçopara a população. Existe umfilme muito interessante, chamadoArquitetura da Construção, quetrata da cultura no tempo do nazismo.Ele foi utilizado de maneirabrilhante, dependendo do que vocêconsidera, para valorizar ideias, parapropor toda uma mentalidade parao ser humano. E a cultura tinha alium papel vital. Mas era uma culturaque não era perpassada pelos valoreséticos mais profundos. Então, paramim, no nosso dia a dia, na ação quea gente empreende no Sesc, a éticaé um elemento vital da cultura. Assimcomo é para aqueles que estãoenvolvidos nessa discussão, como éo caso da Maria Lucia Montes, quehá tantos anos discute aspectos daantropologia urbana na USP [Universidadede São Paulo], que entendetão bem dessa realidade toda, queestá presente muito mais do que eue de maneira brilhante, com todas assuas características de uma mulherque circula pela cidade com umaagilidade incrível. Assim como oAltair, que é um homem vinculadoà realidade da Secretaria do Estadoe que agora está discutindo um novoequipamento, que tem sido debatidode forma aprofundada, em que todasessas questões estão presentesnas discussões. O duro é colocar emprática, não é mesmo, Altair?Voltando às propostas apresentadaspelos candidatos a prefeitode São Paulo. Na minha avaliação,além de não pensarem a culturacomo elemento central de suas políticas,há certo egoísmo infantilizadodos políticos. Muitos deles achamque tudo o que fizeram é bom etudo o que o outro que faz é ruim.Peço desculpas pela aspereza, masisso é uma bobagem. Na questãocultural, todos propuseram man-


PalestrasDanilo Santos de Miranda 19Todo mundo precisa decultura, quem está ou nãomarginalizado. Imaginem senão houver cultura pra quemnão está marginalizado.Cultura é importantíssimopara pobre, para rico,para todo mundo.ter os equipamentos e fazer novosequipamentos, crescer, fazer mais ecoisa e tal. Particularmente não acreditoque cultura seja uma questão deaumentar o número de equipamentos.Fazendo uma analogia com ainformática, a cultura não é umaquestão de hardware, de fazer maiscoisas materiais. Para mim, a culturaé software. É uma questão de lidarcom as pessoas, com os programas,com as cabeças. Usar o que já estáaí. Tem muita coisa razoável. Vamosrecuperar o que está estragado.Outra concepção de cultura queaparece muito por aí, repetida atépor gente muito bem intencionada, éimaginar a cultura como uma espéciede substitutivo ou sucedâneo paraum trabalho de substituição da violênciapara o jovem ou para pessoasque estão em risco comportamental,que estão em risco de se tornar marginais.Nessa concepção, a saída é:vamos oferecer cultura, vamos tiraras crianças e os jovens da rua. Nãoprecisava, mas vou repetir: culturaé muito mais do que isso. É o dia adia. Todo mundo precisa de cultura,quem está ou não marginalizado.Imaginem se não houver cultura praquem não está marginalizado. Culturaé importantíssimo para pobre,para rico, para todo mundo. Aliás,um dos grandes problemas da nossaelite é não ter cultura no sentidoamplo, de enxergar a cultura comoalgo absolutamente necessário paratodos, de maneira democrática,aberta. A cultura como substitutivode uma possível atração para amarginalidade é um subproduto,algo decorrente da centralidade daquestão cultural. Isso não pode sermatéria central de política pública.Entretanto, lamentavelmente é oque ocorre com muita frequência.E vou até mais longe, entrando nocampo da Maria Lúcia, que é antropóloga,pesquisadora do tema. Achoaté que, se há um fortalecimento daquestão do combate à violência viacultura, você está promovendo dealguma forma a própria violência,na medida em que você fortaleceuma visão de combate dessa forma,desse modo e não como algo quevem naturalmente.Um dos candidatos a prefeito,que não vou citar qual, pois talvezele fale isso por aí, fala na instalaçãode 18 mil a 20 mil câmeras espalhadaspela cidade para combatera violência e promover a cultura.Não sei como é que vai promovera cultura. Ora, se isso for feito, sehouver uma campanha, chamará detal forma a atenção para essa questãoque não será estranho que, nofuturo, a marginalidade decida seexibir na frente dessas câmeras oufazer o diabo com elas, arrebentálas.Ou seja, roubar, fazer o filme doPCC e mostrá-lo na televisão.Vejam quanta falta de imaginação.Não estou dizendo, com isso,que a questão é simples. Não é.Sabemos, nós que atuamos há algumtempo na área, que não é tãosimples se fazer enxergar, debater e


20 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoA cidade é uma só, não vejo como separar dessa maneira.As ações têm que ser pensadas para acidade inteira. Claro que há necessidade de correções.aprofundar o entendimento sobre arelação dessa questão com a centralidadeda cultura, de sua importânciacomo ferramenta de melhoria,transformação e mudança. Não étão simples. Isso exige muito debatecomo este, muita participação.O movimento cultural tem a vercom participação, com envolvimento,com compromisso, e isso tem a vercom melhoria da qualidade de vida,com o meio ambiente, com a vida social,com a participação comunitária.Então, a gente procura no Sescexercitar esse tipo de ação no diaa dia. Sabemos que em parte cumprimosnossa missão, somos bemresolvidos em alguns casos, masnão em todos. Não somos uma instituiçãoperfeita, absolutamente resolvida.Longe disso. Mas a genteprocura atuar na cidade inteira. OSesc tem um compromisso muitogrande com a questão urbana porqueé uma instituição destinada aostrabalhadores do comércio e serviço– certamente nesta sala temosum grande número deles. E trabalhadoresde comércio e serviços sãopessoas que vivem nas cidades, quetêm compromisso com a vida humanadentro de um modelo que ahumanidade desenvolveu no decorrerdos séculos para tornar a vidadas pessoas mais confortável e melhor,embora na prática tenhamosa experiência de que a vida urbanatem se tornado menos confortável epior em muitos casos. Num passadomais remoto, não era assim. Se bemque descobriram agora na sociedadeindígena brasileira sinais degrandes aglomerações urbanas. Segundoessas informações, havia emalguns lugares no interior do Brasilpopulações de mais de 100 mil índiosvivendo mais ou menos próximos,inclusive antes do descobrimento.Isso é algo que é um poucosurpreendente para os especialistas,mas é coisa recente, que foi descobertaagora, pelo menos eu li issoem publicações, mas ainda não vium trabalho científico sobre isso.De qualquer maneira, a tentativada humanidade, ao inventar essa formade convivência humana, o viverna cidade, exige um entendimentomuito profundo com o outro. A questãoda alteridade, do respeito, da convivênciacom o outro ser humano queestá ao meu lado e com o qual tenhoque partilhar todos os bens, os benefíciose tudo que está à minha volta.Não que isso seja uma coisa absolutamentenova, quero dizer, nova paraa nossa fase da vida civilizatória. Masisso, sem dúvida nenhuma, exige umtipo de compromisso que tem a vercom aspectos muito importantes parao ser humano, para a melhoria da suaqualidade de vida.Em resumo, no Sesc temos essecompromisso, procuramos levar istoadiante: a intenção de sempre abrangero maior número possível depessoas e bairros. Vejam, até poucotempo, não havia nada do Sesc nazona leste. Hoje temos uma unidadeem Itaquera e uma unidade no


PalestrasDanilo Santos de Miranda 21Belenzinho. Tudo bem que se podedizer que o Belenzinho é uma zonaleste muito central. Mas temos umfato simbólico aí: trouxemos a nossasede, o nosso quartel general para azona leste, para a famosa ZL. É láno Belenzinho que estamos instaladosagora. É de lá que saem todas asações do Sesc para o Estado de SãoPaulo inteiro. Deixamos a AvenidaPaulista, que continua ótima e ondehoje funciona uma unidade que temum papel importante, relevante paraatender o público. Entretanto, a administraçãonão precisava ficar naAvenida Paulista. Viemos para o Belenzinho,para a zona leste, ali ondeera a antiga fábrica da Santista, ondeteremos a maior unidade do Sesc.Em mais um ano, já estará prontauma unidade bastante ampla. E anossa sede já está lá muito bem instaladacom tudo funcionando muitobem. Portanto, o nosso compromissoé fomentar, desenvolver padrões dequalidade de vida por meio da culturae das demais atividades, mas acultura está lá no centro da questão.A cultura, ela tem a ver com atividadefísica, a cultura tem a ver comatividade educacional, a cultura tema ver com ações voltadas para a terceiraidade, para a criança, para osjovens em geral. E digo jovens emgeral porque não gosto de classificaros jovens em situação de risco. Precisamosparar com isso.Para encerrar, quero deixar umaprovocação para a reflexão, algo quetalvez a própria Maria Lúcia possaaprofundar depois, que é a questãoda periferia versus o centro. Issomuitas vezes apareceu nas propostasdos candidatos: ações para periferiaumas, ações para o centro outras.Gente, a cidade é uma só, não vejocomo separar dessa maneira. Asações têm que ser pensadas para acidade inteira. Claro que há necessidadede correções. Por exemplo, seaqui tem 100 equipamentos e no outrolugar não tem nenhum, tenho quepensar como descobrir por que issoacontece. Por incrível que pareça,existem bairros e até Subprefeiturasna cidade de São Paulo que têmequipamentos e ações culturais maisdo que necessitam, enquanto outrasSubprefeituras não têm nada, zero,seja em termos de recursos, seja emtermos de equipamentos. É óbvioque isso é uma questão que tem deser resolvida, mas para equilibrar acidade e não para considerar a periferiaum problema e o centro umasolução. Isso não existe.Essas eram as colocações quegostaria de fazer. Peço desculpaspor não poder participar dos debates,o que não se constitui num problema,pois a Maria Alice Nassif iráme substituir e está por dentro dessatemática tanto quanto eu. Agradeçomais uma vez a oportunidade. Tenhoa expectativa de que reflexõescomo essa nos ajudem a entendermelhor São Miguel Paulista e a própriacidade de São Paulo, de ondeSão Miguel é parte abso lutamentevital e importante.


22 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano


PalestrasAltair Moreira 23Altair Moreira*Gestão da culturana cidadeNa década de 70, eu fazia teatro com o Grupo Núcleo aqui em SãoMiguel Paulista. Estou emocionado porque de certa maneira passaum filme na minha cabeça, de quando eu era ainda muito jovem.Agradeço o convite do Tião Soares, que é um velho amigo meu detantas andadas pela vida. Chegamos, algumas vezes, a jurarmos quenão mais falaríamos de cultura, principalmente de política pública decultura. E vocês sabem muito bem que essa discussão sobre políticade cultura parece ser uma coisa para sempre, maltrata muito a população,as perspectivas de um desenvolvimento local mais harmônico.Essas paradas têm contribuído para não nos encararmos como somos,de estar sempre fugindo da nossa história, de os jovens sempre estarempresos a modelos de consumo, pela falta de conteúdo e discernimentode caminhos mais prováveis para traduzirmos as nossas potências e impotências.Seria muito importante, um dia, fazer uma reflexão sobre oque a falta de uma política pública causou na nossa formação e na vida* Assessor técnicoculturaldo ProgramaFábricas de Culturae coordenadordo LaboratórioCultural do InstitutoPólis. Formado emComunicação Social,foi secretário deCultura de SantoAndré na gestão doprefeito Celso Daniel.


24 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanodas populações. Eu acho que, por refletirsobre essas coisas, eu e o Tião,em algum lugar, numa mesa tomandocerveja, assistimos aos anos passareme às gerações chegando semcondições de desfrutar o que a modernidadelhes delegou. A cultura éum caminho para viver a vida comdignidade, com direito, para percebero outro, é uma herança tão legalque vai, é transformada, e cada indivíduovai descobrindo sua identidade,que quando fala é para serouvido pelo outro, que quando cantaé para ser cantado, que quando representaé para revelar o seu mundoe a leitura do mundo do outro, quequando se anuncia é também paraser notado, que quando tenciona épra vida ser mudada e para revelaros ruídos. Talvez por acreditarmosnisso que, muitas vezes, achávamosque era melhor meter o pé na estrada,mas não adiantava, sempre estávamosde volta à casa ou na janela dosdebates da política pública. A MariaAlice Setubal, coordenadora destafundação, a conheci há muito tempo,quando ela coordenava uma escola,no bairro da Previdência, São Paulo,onde frequentava a minha afilhadaEstrela Terra, filha do Silvinho, meugrande amigo. Essas são as sincronicidadesque a cultura permite e nosembala para outros desafios.Bom, deixemos de filosofia, masquero lhes dizer que muitas das reflexõesque farei com vocês, conformevocês puderam notar, me acompanhamhá algum tempo, e muitas delasse aprofundaram quando fui diretorde Cultura das gestões do CelsoDaniel, no município de Santo Andréem 1990/1992 e 1997/2000, nestesdois últimos anos como secretário deCultura do município. Depois no InstitutoPólis, onde sou consultor. Eu eo Hamilton Faria tivemos a oportunidadede criar um Laboratório Culturalpara aprofundar questões sobreo desenvolvimento local e os fazeresculturais das comunidades, e hojesou assessor técnico cultural no ProgramaFábricas de Cultura, projetofinanciado pela Secretaria de Estadoda Cultura e BID [Banco Interamericanode Desenvolvimento], que temcomo coordenador-geral o Luiz Nogueirae a Ana Lúcia Lopes como coordenadoraexecutiva. É um projetointeressante, que tem o corpo comoeixo principal. Seria importante queesse coletivo os chamasse para fazeruma exposição das suas propostaspedagógica, cultural e social.Eu vou começar a falar com vocêssobre a gestão pública na localidade.É um tema que, enquanto acultura não for reconhecida comoprimordial para a população, temosque insistir nessa discussão com osnossos pontos de vista, nossas reflexões,nosso olhar para um territóriocom mais justiça e direitos de igualdadee de oportunidades a todos oscidadãos, principalmente aquelesque vivem sem condições de moradia,que não têm um estudo digno,que não têm acesso a uma formaçãocultural integradora e crítica.Acho que, para uma boa gestãodemocrática da cultura, é importanteque se perceba como funcionam osseus sistemas locais de cultura nosterritórios do município, ou seja, issorequer que a gestão abra mão, comcerteza, da sua arrogância. Quero


PalestrasAltair Moreira 25Enquanto a cultura nãofor reconhecida comoprimordial para a população,temos que insistir nessadiscussão com os nossospontos de vista, nossasreflexões, nosso olhar para umterritório com mais justiça edireitos de igualdade e deoportunidades a todos os cidadãos.dizer que, muitas das vezes, o Estadoainda tem esse comportamento,vê que sua missão é levar, propiciaracesso à cultura, é montar projetosde eventos. Em muitas das vezes, ossegmentos culturais assumem umaatitude política, o diálogo, a informaçãoe a construção de uma políticaque lhe dê continuidade. A partirdo diálogo, é preciso, em primeirolugar, compreender, perceber comose dá a fruição cultural das atividadesculturais dos grupos, como sãoas suas criações artísticas e culturaise quais são as perspectivas de futuroe como poderão ter uma políticamais capilar na cidade.Os sistemas locais de cultura darãoà gestão pública da cultura tambéma noção de diversidades culturaise de como elas se interrelacionam,como elas estão estruturadas ounão, como também são construídosos seus processos de criação, quaissão os processos de deslocamento daprodução artística no território e naregião, as suas histórias dos grupos,dos indivíduos, dos agentes culturais,das entidades e instituições culturaise sociais, e como interagem;e, na cidade, as suas reflexões acercados destinos, de suas pretensões, dassuas dificuldades e das suas conquistasnos contextos.Terá a dimensão de como a culturalocal se relaciona com a região,com o Estado e a Federação, obteráinformações importantes de comosão constituídos os seus capitais culturais,o que fazem e quais os objetivoscentrais das entidades com gruposculturais e com a sociedade emgeral, de como são constituídos osorçamentos das entidades privadase os seus projetos, quais são os segmentosculturais e sociais que atendema pedagogia e a metodologiadas suas ações de formação voltadaspara a comunidade. Bom, tudo querespira quer ar, deslocamento, comer,lazer, acessar, perceber, construir,fazer etc. Mas, infelizmente,esses procedimentos ainda não sãoutilizados pelas gestões públicas.Para a política, o compartilhamentocom a diversidade cultural abriránovos horizontes alternativos quecontribuirão não somente para umprograma mais apropriado pela populaçãocomo trarão outras âncorasde saberes e valores que darão maisorganicidade às ações públicas de culturae às incapacidades que revelam ovazio institucional no território, darálugar a projetos com mais transparênciae resultados de melhor sociabilidade,melhor relação com os grupos,ocupará melhor o contexto urbano,caminhos para o abrigo das culturasjuvenis, de gênero, de tradição etc.Eu acredito que a política de culturaainda não descobriu que o eixo centralé o desenvolvimento humano emharmonia com a natureza, na adoçãode medidas para a proteção e a reafirmaçãodas diversidades com suasestéticas e os seus conteúdos.


26 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoOutro fator importante é o compartilhamento da gestãocom a sociedade, a possibilidade da construção política paraencontrar alternativas para a mudança da cultura política deuma forma criativa, referenciadas nos valores culturais universaise locais, de solidariedade e de espiritualidade, que permitirão aintegração do pluralismo cultural na vida do território.Então, pensei em alguns desafiosurgentes que a política pública precisaenfrentar para manter-se viva:Em primeiro lugar, é preciso queo orçamento para a cultura seja digno,não só para o custeio, mas parainvestimento. Outro fator importanteé o compartilhamento da gestãocom a sociedade, a possibilidade daconstrução política para encontraralternativas para a mudança da culturapolítica de uma forma criativa,referenciadas nos valores culturaisuniversais e locais, de solidariedadee de espiritualidade, que permitirãoa integração do pluralismo culturalna vida do território.O outro passo é assumir a transversalidadecom as demais políticaspúblicas no território, e a educaçãoé um elemento fundamental para odesenvolvimento do local, para amemória, para os hábitos e costumesda localidade, de como se relacionarcom a tecnologia, com aglobalização. São ações que podemgarantir às futuras gerações uma relaçãocom o local e com o mundode um jeito mais crítico.Penso também na importânciada criação de um fundo municipalde fomento para o desenvolvimentoe o empoderamento do sistemacultural local. Faltam investimentospara formação de gestores e agentesculturais, visando aos estímulosàs capacidades técnicas e culturaisque facilitem os entendimentos dosnovos fazeres culturais da sociedadee estimulem o surgimento de novosatores oriundos das dinâmicas culturaislocais, que contribuirá paraampliar e aprofundar os processosde descentralização da política decultura e dos serviços culturais. Essaformação para ambos é muito importantepara que também tenhamum olhar mais amplo das suas açõesno município e que identifiquem epossam fundamentar conteúdos quevenham a encontrar metodologiascapazes de repensarem as práticaspúblicas no município.As Secretarias de Cultura normalmentenão trabalham com aformação cultural adolescente – éimportante o trabalho com as culturasjuvenis. Não é muita essa a quetemos assistido, ou seja, na maioriadas vezes é muito mais um mosaicodas suas criações, mas nunca são dojovem como protagonista e compacidadede pensar, elaborar ações noterritório. O investimento na juventudecom uma política de culturaampla, abrangendo desde a saúde, aeducação, facilitando-lhes o acessoàs tecnologias de comunicação etc.É necessário pensar na construçãocom a sociedade de processosde integração local e regional, criandocorredores culturais, reforçando


PalestrasAltair Moreira 27circuitos culturais que estimulem atroca de conhecimento para a buscada preservação dos bens culturaismateriais e imateriais, ecológicos eespirituais das regionalidades.Vejo também a necessidade decriar ou refuncionalizar os espaçospúblicos já existentes para darabrigo à criação artístico-cultural,movimentos sociais da localidade,permitindo assim transculturalidadelocal e regional.Hoje, é muito importante quese crie um fundo para a proteçãoe inovação da diversidade culturalpara apoiar projetos comunitáriosou individuais para a investigação,com uma política amparada por indicadoresculturais que possam seraplicados para qualificar e medir oimpacto da política pública nas comunidadese também no indivíduo.Há de se fomentar programas quetenham por objetivo estimular o sistemacultural local a produzir projetoscoletivos e individuais que superemas dificuldades atuais com a perspectivada autonomia das coletividades.Programas de formação culturalque permitam criar uma nova institucionalizaçãoda política públicade cultura no território, acompanhadade reformas do estado local quepermitam a mobilidade, flexibilidadee capacidade de adequação juntoàs entidades e instituições formais einformais do sistema cultural localdevem ser implementados.Hoje é importante que o poderpúblico crie um determinado tipo deprograma com a produção cultural desensibilização dos empresários locaise da sociedade civil sobre a importânciada diversidade cultural para o desenvolvimentohumano das cidadese a ênfase no direito à cultura parafortalecê-la no local e regional.É fundamental a criação de mecanismosde identificação de processosculturais que necessitam de apoio eque estão com a sua sobrevivênciafrágil e fora do sistema cultural locale, também, de programas para o desenvolvimentodas potencialidadesindividuais da diversidade cultural, levandoem conta a sua criatividade, suainovação, suas peculiaridades, visandoa sua afirmação, seu crescimento e suaconsolidação no território.A implantação de um sistemaregional de cultura cujo objetivoseja a organização das instituições,entidades, grupos culturais regionaisque vão estruturar o intercâmbiocultural regional e operar comações conjuntas que impulsionama circulação, criação de projetos,com o objetivo de reafirmá-las edesenvolvê-las nas regiões, deveser discutida.São necessários readequaçãoou criação de espaços públicos quefavoreçam a transculturalização, aintermediação e a integração da diversidadecultural; a difusão e o fortalecimentodas expressões culturaisdo local e regional pelos meios decomunicação existentes; e a promoçãoda participação dos artistas locaisem programas de financiamentoestadual, do Ministério da Cultura,e internacional para apoiar projetossociais e culturais para a circulação,


28 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanoa produção ou a construção da infraestruturapara a cultural local.Gestores culturaisA política pública de cultura aindahoje, a meu ver, necessita com urgênciaabandonar o comportamen tocomo se ela fosse um planeta queocupa o lugar de outro, ou seja, asua ação provoca uma inação, porter um caráter autoritário; se arrogapara si o virtuosismo, claro, issoquando tem. Há uma postura assépticanas políticas públicas. Isso nãoé possível, um dos perfis da culturaé o convívio com a tensão, é umprocesso importante para que todosse sintam participantes e integradosno bem-estar dos territórios.Mas o que eu vejo, em algumasadministrações, são gestões que procuramacomodar as tensões, e issotem fôlego curto. Esse comportamentonão é a solução, porque, de certomodo, você a domestifica, você acabasempre reforçando de um modoou outro o privilégio, no que acabareforçando a política do balcão. Écerto também que a sociedade civiltem grandes dificuldades em compartilharcom a política pública, elatambém é autoritária, é um processopor que ambos têm de passar. Amaturidade se dará após um convíviode longo prazo que, infelizmente, aengenharia da não-continuidade depolíticas públicas estrangula.Na verdade, a sociedade aindanão se convenceu das políticas departicipação. E muitos governostêm contribuído para que desacreditem,porque acabam cooptandoas lideranças, e estas, quando sãorepresentantes da população, namaioria das vezes, se arrogam queeles são conhecedores das reivindicaçõesda população e acabam, comesse comportamento, se afastandodos seus representados. Devemosreconhecer que boas parcelas daprodução artística estão se mobilizandoem torno das leis de incentivo,mas têm grande dificuldade emusufruir, pois, por não estarem dentrodo critério do mercado, acabamse fragilizando. Para essa situação,eu defendo fundos públicos para artistase comunidades culturais paracircularem as suas produções culturais.Também o que notamos é quetem diminuído os orçamentos diretospara a cultura.Mas, hoje em dia, com essa corridaa todo custo em busca da visibilidade,os gestores públicos agempor meio dos “projetos satélites”,quero dizer com isso que são aquelesprojetos em que determinadosgrupos ou entidades recebem financiamentospara criação de eventos,e estes não dialogam com a cidade,não trazem conteúdos que solicitemdiscussões e conhecimentosque possam fortalecer a sociedadelocal. Na maioria das vezes, sãoA política pública de cultura ainda hoje, a meu ver,necessita com urgência abandonar o comportamentocomo se ela fosse um planeta que ocupa o lugar de outro, ou seja,a sua ação provoca uma inação, por ter um caráterautoritário, se arroga para si o virtuosismo, claro, isso quando tem.


PalestrasAltair Moreira 29eventos que reforçam o consumopelo consumo da cultura e reforçamvalores duvidosos.Rapidamente é bom sempre afirmarque política pública tem umpapel importante na promoção dodireito e é um dos instrumentos importantespara combater a desigualdadede condições de boa parcelada população das cidades.Assim exposto, eu acho queaqui também tem algumas questõesdesafiantes que precisam seraprofundadas por nós e pelos gestorespúblicos:• Falta de articulação entre as entidadespúblicas e a sociedade civil;• Ausência de serviços e programasde formação de acesso, disseminaçãoda informação e produçãode conhecimento;• Falta de interculturalidadesno território;• Ausência de política de formação erenovação de público para a cultura;• Falta de participação dos segmentossociais na política pública. Nãohá periodicidade e requalificaçãodos recursos humanos;• Necessidade de investimento naconstrução ou na refuncionalizaçãodos espaços públicos,tornando-os multidisciplinares;• Descontinuidade das políticasculturais nas cidades;• Ausência de um projeto públicode cultura, transversal com asociedade civil;• Falta de equipamentos públicosque possam abrigar a diversidadecultural local;• Desconhecimento das redesvisíveis, invisíveis, manchas ecircuitos culturais, que unem osbairros, os promotores culturais eos criadores culturais;• Falta de orçamento público decultura voltado à formação, difusãoe promoção da cultura;• Dispersão dos orçamentos públicospara a cultura;• Falta de programação culturalintegrada e duplicação de iniciativase projetos;• Acesso das populações carentes àcriação artística e cultural;• Democratização dos espaçospúblicos. Espaços e recursosvoltados para as culturas juvenis,tradicionais;• Falta a articulação e fomentaçãodos espaços públicos com aprodução cultural e os movimentossociais, indivíduos, a cessãodestes e privados para as manifestaçõesartísticas e culturaisindependentes;• Definição de políticas de memóriapara a cidade;• Dinamização de projetos em rede.Obrigado a todos e a todas. Sintomehonrado em poder estar de voltaa São Miguel Paulista e compartilharcom vocês essas indagações que sãopermanentes no cotidiano de cadaum. Como o otimismo faz parte dacultura, parafraseio o título de umlivro do autor J.D. Sallinger: “Paracima com a viga, moçada.”


30 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano


PalestrasAltair Moreira 31Maria Lucia Montes*A centralidadeda cultura em ummundo globalizadoComeço agradecendo o convite. É uma honra, realmente um privilégio, estaraqui hoje. Como disse o Danilo, mesmo para quem tem muita reflexãoe trabalho sobre a periferia, como é o meu caso, não é sempre que é possívelestar, “ao vivo e em cores”, participando da vida de seus moradores ededicando tempo a este convívio num clube da comunidade, que é ondeme deram o privilégio de estar partilhando esta conversa com vocês.Sou antropóloga e, como tal, deveria falar da cultura num sentidoamplo. Só que, ao dizer que a cultura não é exatamente aquilo que estamosacostumados a pensar – ou seja, que cultura tem a ver apenas comarte, com evento, com espetáculo –, o Danilo já colocou logo de iníciotodo o meu problema antropológico. Para o antropólogo, “cultura” significaum conjunto de mecanismos de regulação do comportamento dobicho humano que tem a ver com a conformação física de seu corpo,o desenvolvimento de seu cérebro etc., e que substitui, no homem, oque no animal se chama “instinto”. Ao longo da evolução das espécies* Professoraaposentada doDepartamento deAntropologia daUniversidade deSão Paulo (USP), foirelatora do projetoinicial do MuseuNacional da CulturaAfro-Brasileira para oMinC e coordenadorade pesquisa do MuseuAfro Brasil duranteseu processode implantação.


32 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoPara o antropólogo, “cultura”significa um conjunto demecanismos de regulação docomportamento do bicho humano quetem a ver com a conformação física deseu corpo, o desenvolvimento de seucérebro etc., e que substitui, no homem,o que no animal se chama “instinto”.neste nosso planeta, quando os hominídeosdescobriram a capacidadede manipulação das coisas do mundoao seu redor que lhes dava a própriaforma física de sua mão – ondea oposição do polegar aos demaisdedos permite que a mão segurecom firmeza coisas grandes comopedras ou possa pegar coisas muitopequenas como galhinhos de árvore,com gestos precisos e delicados –,teve início um extraordinário processode transformação que levouao surgimento da nossa espécie, oHomo sapiens sapiens. Usar um galhode árvore como alavanca significatransformá-lo em ferramenta, istoé, significa dar à coisa que existe nanatureza uma finalidade e um sentidodiferente, para servir a um propósitohumano. É essa apropriação quevai permitir a passagem da naturezapara a cultura. Por isso se diz que otrabalho foi essencial para transformaro macaco em homem. Porque, àmedida que os hominídeos eram capazesde usar mais e mais ferramentas,iam ao mesmo tempo desenvolvendoo seu cérebro e a postura eretado corpo, necessária para sustentaro grande volume da sua cabeça. Assim,a evolução que resultou no sur-gimento do homem foi um processoao mesmo tempo biológico, psíquico,cultural e social, já que, vivendoem grupos, os primeiros seres humanoseram capazes de transmitir suasdescobertas uns aos outros e assimassegurar sua socialização, medianteregras construídas na vida sociale que foram aos poucos regulandoo seu comportamento, no lugar doinstinto que compartilhavam com osoutros animais. Cultura é este universodas regras.O mesmo processo que permitiua evolução da espécie humana serepete em cada indivíduo que delafaz parte. Vamos pegar o exemplode um gatinho. Ao nascer, com doisminutos de nascido, ele já tem reflexossuficientes para grudar na tetada mãe para mamar e assim garantira sua sobrevivência. Agora peguemuma criancinha humana. Ela não temesse reflexo, não tem esse instintoda mesma forma que o gatinho, porque,sozinho, ele não permite garantirque ela sobreviva. Ela precisa sercuidada pela mãe, pela família e, nolimite, por toda a sociedade, e só aospoucos vai aprender a sobreviver, vaiaprender a se tornar humana quandocomeçar a ser capaz de pensar, falar,exprimir emoções e sentimentos pormeio do corpo, do gesto, da palavra.Só aí ela começa a simbolizar omundo à sua volta, isto é, começa aconferir às coisas um sentido que éuma construção da cultura e, então,ela começa a se tornar propriamentehumana. Então, no sentido antropológico,cultura, como disse o Danilo,é isso: algo que tem a ver absolutamentecom tudo na vida humana.Por isso o Danilo já fez uma parteessencial do meu serviço: pensaro que é a cultura, entendida nessesentido amplo, na sua relação coma cidade, e pensar qual o lugar dacultura como elemento central da


PalestrasMaria Lucia Montes 33construção da cidadania – uma coisasobre a qual a gente fala sem parare nunca pensa o que tem a vercom a cultura. O que é cidadania?É a condição e a qualidade de quemé cidadão, aquele que mora na cidade,entendida como um modelode convívio humano que resulta dacriação, no plano da cultura, de umconjunto de normas de convivênciaque promovam a melhor forma devida do ser humano.Claro que isso é pensado segundoo modo como as coisas deveriamser. E, pensando a longo prazo, nalonga duração da história, até quefoi assim mesmo que tudo aconteceu:da caverna até a metrópole,houve certa “mudancinha”, emboraconsidere que hoje, na metrópole, agente está mesmo voltando à caverna...É tamanha a barbárie que vivemoshoje, que não haveria homemda caverna que fosse capaz de fazero tipo de coisa que os humanos“civilizados” fazem, de tamanhaviolência e crueldade. O homem dacaverna matava, mas matava bichopara comer. Hoje, a gente mata serhumano, faz um picadinho, botanum saco de lixo e aí se ouve falarque “deu saco”, como diz a bandidagemdas favelas cariocas, para falarde uma situação que se complicouaté o ponto de chegar ao assassinatoa sangue frio! Nós, humanos,somos uma “racinha” muito difícil...Então, nós, que fazemos partedessa raça, temos a obrigação deusar nossa capacidade humana depensar, antecipar, ter valores – queé o que nos define como produto eprodutores da cultura – para refletirsobre como queremos organizaradequadamente o convívio humano,de tal modo que a cidade, nossoespaço de atuação, seja a condiçãode construção de cidadania, numconvívio humano civilizado entreos seres dessa “racinha” chamadaHomo sapiens sapiens.Como o Danilo já falou boa partedas coisas do meu terreno de antropóloga,vou fazer o caminho inversoao dele. A partir da realidadelocal, o Danilo pensou o plano maisamplo da cidadania, indo do pequenopara o grande. Vou começar dogrande para o pequeno, pensando nacentralidade da cultura num mundoglobalizado, e aí veremos como vamosnos encontrar lá na frente. Nosanos 70 e 80, quando se falava emglobalização, isso era um debate deespecialistas, que dizia respeito àeconomia, à integração dos mercados,à reestruturação produtiva, aomodo como o capitalismo estava sereorganizando em escala planetáriae que impactos isso teria sobre a divisãointernacional do trabalho, quetipo de políticas deveriam ser adotadas,se um modelo neoliberal daglobalização seria o único possívelou não – isso como se a globalizaçãofosse uma questão de escolhapolítica, em que se pudesse ter jeitode dizer, “não, isto é ruim porque éuma integração desigual dos paísesdependentes na órbita do capitalismoplanetário”.Era esse o tipo de debate presentenaquele período. Hoje em dia,falar em globalização mudou completamentede sentido. Por um motivomuito simples: a questão ambientalhoje tem uma importância


34 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanotal que não dá para nenhum ser humanofazer de conta que não sabe oque está acontecendo: a questão doaquecimento global, da emissão decarbono, da necessidade de pensarnovas formas de substituir os combustíveisfósseis, se o etanol é umaboa forma de combater as mudançasclimáticas que produzem fenômenoscomo o tsunâmi e o Katrina,secas constantes em algumas partesdo mundo e, ao mesmo tempo,inundações em outras etc.Não dá para ignorar a questãodas mudanças ambientais. Sóque os dilemas são muitos. Citandoapenas um exemplo: o etanol éuma ótima solução, vai ser o sucessoeconômico do Brasil? Sim,mas não é tão simples, pois produzircombustível a partir de plantas,usando terras que poderiam servirpara outros cultivos capazes de alimentaras pessoas, pode gerar crisede desabastecimento na alimentação,que pode ser desencadeada apartir do momento em que se deixade produzir alimentos para produzircombustíveis. Esse assunto estátodo dia nos jornais. Então, a globalizaçãodeixou de ser uma questãoeconômica, como era pensadae discutida nos anos 80 e 90, parase tornar uma questão mais ampla,Corremos o risco real deacabarmos com os recursos naturaisdo planeta e com a raça humana,tudo por sermos incapazes deviver de uma maneira adequada emnossa relação com o meio ambiente ecom o mundo que nos sustenta.que absolutamente não é possívelignorar, porque o que está em jogohoje são problemas muito mais próximosdas pessoas.Falei antes da “racinha” humana...O perigo é acontecer com elaalgo parecido ao que ocorreu comos dinossauros em dado momentoda história do planeta Terra. Oscientistas acreditam que, em virtudede um evento catastrófico, como apossível queda de um imenso meteorito,começaram a ocorrer mudançasdramáticas no clima e no meioambiente de diferentes partes doplaneta, o que levou à extinção dosanimais de grande porte que entãoviviam no mundo, como os dinossauros.Nesse caso, a catástrofe foicausada por um fator externo. Agora,no entanto, uma nova catástrofesemelhante poderá ocorrer, maspor um motivo interno, totalmentedependente dos atuais habitantes daTerra. Corremos o risco real de acabarmoscom os recursos naturais doplaneta e com a raça humana, tudopor sermos incapazes de viver deuma maneira adequada em nossarelação com o meio ambiente e como mundo que nos sustenta.Evidentemente, a questão colocadadessa forma ampla, planetária,está suscitando a consciênciade que é preciso encontrar respostase soluções globais. A questãotem sido tema das grandes cúpulas,como são exemplos a conferênciasobre mudanças climáticas a ser realizadana Dinamarca este ano pararediscutir os termos do Protocolode Kyoto, ou os encontros do G-8,G-20. A pergunta nessas cúpulas é:o que temos de fazer? As respostasvariam, porque são muito grandese complexos os interesses em jogonessas cúpulas assim como em outrosgrandes encontros, como os doFórum Social Mundial, que afirma


PalestrasMaria Lucia Montes 35Mudanças de hábitos não são fáceis,porque elas implicam uma mudança de visãode mundo, mudança de perspectiva comrelação aos valores que se traduzem emnosso comportamento cotidiano.que não será o G-8 que nos dará asrespostas necessárias... Hoje temosuma grande mobilização planetáriaem torno de questões que nos sãocomuns. Claro que esses fóruns, essascúpulas, têm poucos resultados.Sabemos o quanto é difícil avançar,o egoísmo do ser humano o impedede enfrentar o caminho da mudança,pondo em questão o modo como aspessoas estão acostumadas a viver,num mundo onde a empresa pensaque o lucro sem limite é a única razãopossível de sua existência, emque os governos acham que têmque promover o desenvolvimentoa qualquer custo e outras coisas assim.São apenas grandes palavrasde ordem, e nada mais, que saemdessas cúpulas, e as pessoas estão sedando conta de que dessa forma nãodá mais para seguir adiante.Se os grandes encontros internacionaisproduzem como resultadoessa pouca eficácia prática, noentanto, há uma indicação clara dadireção em que temos que seguir.Então, as pessoas dizem: é precisocomeçar mudando os hábitos dassociedades, por exemplo, começandoa mudar os seus hábitos deconsumo. Existem pesquisas quedemonstram que, se o padrão deconsumo americano fosse espalhadopara o planeta inteiro, seriam necessárioscinco planetas Terra parasustentar o consumo da sociedadeglobal! Simplesmente não temos recursosnaturais para sustentar isso.E o padrão de consumo da classe Abrasileira não fica muito longe dopadrão da sociedade americana. Seo conjunto dos brasileiros e o restodo mundo fossem consumir comonossa classe A consome, seriamnecessários três planetas Terra. Então,já se sabe que há algo errado.Temos padrões de comportamentoque estão norteados por valores quesão inviáveis. Não se trata de gostarou não desses padrões. O fato é que,se forem mantidos, acabará a vidano planeta Terra. Simples assim.Mudanças de hábitos não são fáceis,porque elas implicam uma mudançade visão de mundo, mudançade perspectiva com relação aosvalores que se traduzem em nossocomportamento cotidiano. Dito deoutro modo, tais mudanças significammudança de cultura, uma revisãocrítica de nossos valores e nossoshábitos em função de outra visãode mundo, de uma nova cultura queprecisa ainda ser criada e que teráque reorganizar a vida social, a economia,a política, em torno de novosvalores e novos padrões de conduta.É preciso criar uma nova cultura dasustentabilidade, sem a qual o planetae a vida do ser humano na Terradeixarão de existir.


36 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoEsta questão da centralidade dacultura nos processos de mudançaé tão importante que, até antes mesmoque o problema ambiental e aquestão da sobrevivência do planetaadquirissem essa visibilidade, já nosanos 90 havia uma preocupação coma questão cultural que se colocavana mesma direção. Já então a Unesco[Organização das Nações Unidaspara a Educação, a Ciência e a Cultura]manifestava sua preocupaçãocom os riscos que a globalizaçãotrazia para a identidade, as culturase as características próprias de cadasociedade humana.A globalização é como uma máquinade moer carne, um trator econômicoque, por onde passa, nivelatudo, e, junto com ele, vem o tratorcultural. Se um país que tem umacultura “tradicional”, como no casodo Japão e da China, por exemplo,quiser ter lugar hoje no Conselhodas Nações Unidas, ele precisarámudar inteiramente os antigos valorese padrões de conduta que regulamsua vida social, e precisarádemonstrar que tem o mesmo graude “desenvolvimento” e “progresso”dos Estados Unidos. E comisso vão sendo destruídos valoresespecíficos de determinadas sociedades,de determinadas culturas,que faziam enorme diferença parao mundo como um todo. Hoje, nãose diz “que maravilha é a China!”porque ela tem uma civilização infinitamentemaior, mais antiga e, emmuitos aspectos, superior à civilizaçãoocidental. As pessoas dizem“que maravilha é a China!” porqueela é capaz de produzir um espetáculohollywoodiano no encerramentodas Olimpíadas...Então, a Unesco já estava preocupadacom isso desde os anos 90,quando editou uma série de Convenções,que foram assinadas pelos diferentespaíses da ONU [Organizaçãodas Nações Unidas], em torno daquestão do risco da perda da diversidadecultural e contra a homogeneizaçãoque resultaria em um únicogrande padrão cultural global emâmbito planetário. Segundo declaravamaquelas Convenções, isso acarretariauma perda significativa parao patrimônio comum da humanidade,cuja riqueza reside precisamentena extraordinária diversidade dacultura dos diferentes povos. A ideiade proteção e defesa da diversidadecultural foi se tornando cada vezmais presente na reflexão da Unescoe foi sendo aprofundada de tal maneiraque, hoje, pensar na importânciado “patrimônio cultural” de umdeterminado país não significa apenaslevar em conta o patrimônio dojeito como estávamos acostumadosa pensar nele, ou seja, o patrimônio


PalestrasMaria Lucia Montes 37edificado, o monumento de valorhis tórico, arquitetônico ou artístico.Ao contrário, a ideia de patrimôniocultural tornou-se muito mais amplae inclui uma dimensão muitomais delicada e intangível, que éo patrimônio imaterial da memória,em que se condensa um saberancestral transmitido pela tradição.É aquilo que constitui os modos deproduzir, de pensar, de sentir, quefazem parte da experiência de vidae da experiência histórica de umdeterminado povo ou de um grupodentro de uma sociedade.A discussão sobre a importânciada preservação da diversidade culturale do patrimônio imaterial da culturaacabou se expandindo por todoo mundo, com repercussão significativaem toda parte, inclusive noBrasil, onde hoje já existem políticaspúblicas extremamente importantesde preservação do patrimônio imaterialno âmbito das macropolíticas doMinistério da Cul tura. E uma coisainteressante é que essa preocupaçãose estendeu para além do Ministérioda Cultura, como descobri outro dia,por conta de uma reflexão que melevou a verificar algo curioso. Nãohá uma instituição federal que nãotenha algum tipo de programa voltadopara a diversidade cultural e opatrimônio cultural e, mais curiosoainda, para a promoção e a defesa demanifestações da cultura tradicionale popular! Aqui não estou me referindoao BNDES (Banco Nacionalde Desenvolvimento Econômico eSocial) e à Petrobras, que, todo mundosabe, é a grande instituição financiadorade projetos culturais, masincluo também todo um conjunto deprojetos desenvolvidos por inúmerassecretarias de ministérios, como ode Ciência e Tecnologia, IntegraçãoNacional, Educação, Justiça, Saúde,Minas e Energia, Comunicações,Desenvolvimento Agrário, MeioAmbiente, Turismo, enfim, todos.É realmente espantoso, e até nopróprio Ministério da Cultura, existe,por exemplo, um grande programados chamados Pontos de Cultura,que é uma iniciativa extremamenteimportante no sentido de proteger efomentar a diversidade cultural brasileira,abrigando inclusive as formastradicionais e populares de cultura.Antes, elas não encontravam espaçoa não ser em instituições como a Funarte,que sempre incluiu um setorvoltado para a “cultura popular” eespecialmente para o “folclore”. Enão é que essas formas de expressãocultural popular não sejam importantes.Entretanto, na lógica dessasociedade em que vivemos, elasnão são consideradas importantes,porque nem ao menos de fato fazemparte da “cultura”. “Cultura” éa nossa, a “alta” cultura, a das artesplásticas, da música, do teatro, doA ideia de patrimônio cultural tornou-semuito mais ampla e inclui uma dimensãomuito mais delicada e intangível, que é opatrimônio imaterial da memória, em que se condensaum saber ancestral transmitido pela tradição.


38 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoQuando alguém vai a uma exposição de arte, diz apenas:“Hoje vou à Pinacoteca, ao MASP.” Então, por queserá que a criação do povo, para ter lugar em museu,precisa do adjetivo, “arte popular”?cinema. A outra cultura, a culturados outros, já não é mais cultura,mas folclore, da mesma forma que“nós” produzimos arte e “eles” produzemartesanato.Há claramente uma dimensão políticanessa questão. Quando falamosde diversidade cultural, começamosa desconstruir essa se pa ração e a noscontrapor a essa versão de que “eles”,lá na periferia – aqueles migrantesnordestinos –, produzem “folclore”,enquanto no Teatro Municipal, quandose ensaia uma ópera ou um balé,é “cultura” o que está sendo produzido.Quando alguém vai a uma exposiçãode arte, diz apenas “Hoje vouà Pinacoteca, ao Masp” e não “Hojevou a uma exposição de arte erudita”.Então, por que será que a criaçãodo povo, para ter lugar em museu,precisa do adjetivo, “arte popular”?“Ah! que maravilha, uma exposiçãode arte popular, tão engraçadinha!”Isso é uma coisa horrorosa!Então, toda essa problemática globalque estou mencionando acabouredundando na percepção de umamáquina de moer carne, de um tratorda globalização, que põe em risco adiversidade e desnuda o elementopolítico de desqualificação de umainfinidade de culturas espalhadaspelo mundo que contribuem para agrandeza do ser humano. A belezado ser humano é a possibilidade dadiferença, a capacidade de gentediferente poder pensar de maneirasdistintas sobre o que comer e o quenão deve ser comido, como e ondemorar, procriar, se divertir, acreditarem deuses, praticar cultos. Os problemashumanos são os mesmos,mas as respostas são absolutamentediferentes em cada pedaço do planeta.Essa é a grandeza do ser humano!Portanto, a questão da globalizaçãoteve o mérito de produzir comoreação a percepção da diferença,a percepção da importância da diversidadee até mesmo de produzirpolíticas públicas de proteção e defomento à diversidade cultural e aopatrimônio imaterial, que desmontaesta nossa lógica que diz “nós temoscultura e eles têm folclore” ouentão permite desqualificar quemnão é “igual” a nós, dizendo: “Mas,enfim, eles são atrasados!” Vejama questão da cultura dos povos indígenas,por exemplo.Nos anos 70, quando dava aulapara a Escola de Comando do EstadoMaior do Exército Brasileiro– essas coisas acontecem, o passadocondena a gente, não é mesmo? Boaparte dos generais que estão hoje aína ativa foi meu aluno... –, infelizmenteouvi os militares me dizeremcoisas incríveis sobre os índios brasileiros.Falar de índio era como pegarum pano vermelho e abanar nafrente de um touro miúra, daquelesde tourada na Espanha: eles ficavamenlouquecidos e me diziam, “Mas,professora, se desde 1500 estamostentando civilizar os índios e aindanão adiantou, era mais fácil botaros que sobraram no CopacabanaPalace, esperar o último morrer e


PalestrasMaria Lucia Montes 39A beleza do ser humano é a possibilidadeda diferença, a capacidade de gente diferentepoder pensar de maneiras distintas sobre o quecomer e o que não deve ser comido, como eonde morar, procriar, se divertir, acreditar emdeuses, praticar cultos.aí a gente tinha o domínio necessáriosobre a Amazônia...” Isso euouvi nos anos 70. Hoje vocês têmnos jornais todo dia alguma polêmicasobre a demarcação da reservaRaposa Serra do Sol, e a concepçãoainda é a mesma, absolutamenteidên tica. Seis arrozeiros afrontam aConstituição, mas aí o Supremo TribunalFederal [STF] vem correndodizer, “Espera um pouco! Precisamosver como é que foi esse processode demarcação...” E aí é possívelnegar os direitos dos povos indígenas,em defesa dos seis arrozeiros!Outro exemplo? Um bandidoengravatado rouba este país não seipor quantos anos – uns dez anospelo menos – e, depois de um montede investigações, ele é preso. Aívem o STF e concede dois habeascorpus em menos de 48 horas emanda soltar o bandido. O que essesdois exemplos têm em comum?Eles se referem a acontecimentosque refletem uma visão de país comuma cultura que não tem lugar paraa diferença. No Brasil, só há lugarpara um único valor: o sucesso econômico,o “desenvolvimento” econômico,o enriquecimento individual,o prestígio e o poder que se temem torno dessas coisas. Já os índiosda Amazônia, se os puséssemos láno Copacabana Palace, mesmo se oEstado tivesse que sustentá-los, seriamais útil, porque poderíamos irlá e derrubar a Floresta Amazônica!Com a floresta no chão, seria possívelver a fronteira com a Venezuela,controlar o perigo do Hugo Chávez,olhar a fronteira com a Colômbia,controlar o perigo das Farc...Chegamos a um momento decisivoda história deste país. Estamosnuma encruzilhada. O Brasil estávivendo uma situação absolutamenteprivilegiada, em que temos hojeuma possibilidade inédita de desenvolvimentoeconômico. Como dizo presidente Lula, “eu tenho muitasorte!” E tem mesmo. Isso porquetantas coisas poderiam dar errado!Mas aí o Brasil encontra petróleono meio de uma crise geral doscombustíveis e ainda nos destacamosna produção de “energia limpa”,o etanol. E estamos vivendoum momento importante tambémporque setores tradicionalmentemarginalizados da nossa sociedade,que nunca foram considerados verdadeiramentecomo parte do Brasil,estão agora tendo uma atenção relativa.Vejam o caso do ProgramaBolsa Família. Existem alguns queclassificam o programa de assistencialista,dizendo que só dá esmola.Só quem nunca saiu de São Paulo,quem nunca andou pelo Nordeste,pela Amazônia, pode ter essa visão!Não sabe o que é ter cem merréis na


40 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoA contrapartida daglobalização é a exigência dasustentabilidade. O que significadesenvolvimento sustentável? Antes dequalquer coisa, significa que nãoé possível continuar depredando oplaneta do jeito que se faz hoje.mão, como diz o povo, onde provavelmenteesse dinheiro do Programaé o único que entra no circuitomonetário da economia, nos lugaresmais distantes deste país. É assimque acontece. Goste-se ou nãose goste do presidente Lula... Hácoisas mudando, há gente entrandopara fazer parte deste país. É ummomento crucial para se pensar oque será o futuro do Brasil.Mas, então, você tem aí o PAC[Programa de Aceleração do Crescimento],e lá nós vamos fazer grandeshidrelétricas no rio Madeira, noXingu... Arrozeiros entram na terraindígena da Raposa e isso causaum “debate” constitucional sobrequem tem direito a essas terras... Aministra Marina Silva cai porquetenta controlar as madeireiras e oagrobusiness que devasta a Amazôniapara botar gado e plantar soja...Estou mencionando fatos que estãonas manchetes dos jornais todo dia.Tudo isso é necessário lembrar parase perceber o que é a centralidade dacultura e se pensar qual o modelo depaís que a gente quer no futuro.Diante da questão da globalização,não dá para se pensar em terum modelo de desenvolvimento doBrasil que reproduza o caminho quefoi adotado pelos países que hojesão industrializados. Não há lugarno mundo hoje onde não se fale emsustentabilidade, que virou a palavrada moda. A contrapartida daglobalização é a exigência da sustentabilidade.O que significa desenvolvimentosustentável? Antesde qualquer coisa, significa que nãoé possível continuar depredando oplaneta do jeito que se faz hoje. Portanto,o desenvolvimento tem queser ecologicamente sustentável, nãopredatório. Essa é a primeira condição,e fundamental, pois sem ela nãohaverá planeta que sobreviva.Mas também, por causa da globalizaçãoe de todo o resto de suasconsequências, hoje existe em nívelplanetário um grau de desigualdadee de exclusão social que torna inviávela vida para países inteiros ou grupossociais determinados nas nossassociedades contemporâneas. Então,desenvolvimento sustentável não éapenas aquele que é ecologicamentecorreto e não predatório, mas aqueleque é inclusivo e se preocupa em integraros segmentos marginalizadospela barbárie da desigualdade socialque existe num país como o Brasile, em escala planetária, entre os povosdo G-8 e o continente africano,por exemplo, ou entre os banqueirosde Wall Street e populações do suldos Estados Unidos, que vivem emcondições tão terríveis quanto as dequalquer outro país pobre do mundo.O desenvolvimento tem de ser ecologicamentenão predatório e economicamentesustentável, no sentidode ser um empreendimento que temde pensar o tempo inteiro nas suasduas pontas, quer dizer, naquilo quetira da natureza e naquilo que dápara o ser humano. Ora, ter gentetrabalhando em condição análoga àescravidão numa plantação de canapode ser, talvez, até ecologicamente“correto”, já que a cana se desti-


PalestrasMaria Lucia Montes 41na à produção do etanol, mas nãoé economicamente sustentável, nãono sentido monetário, mas socialdo termo. Por isso mesmo, um modelode desenvolvimento para osdias atuais tem que ser socialmenteinclusivo e justo, porque não podeser predatório, não só da naturezacomo também do ser humano.Essas questões todas que estoumencionando se devem ao fato deeu ter escolhido começar trabalhandono plano macro para falarda centralidade da cultura. Agoravocês entendem por que estamosfalando em centralidade? Porque,na verdade, o mundo atual nos colocoucomo desafio ter que repensaro que é este modelo de civilizaçãoque criamos com a nossa culturaocidental nos últimos cinco séculos,no período entre o século XV eo século XX. Ele é um desastre quepode acabar numa tragédia para avida no planeta. A crítica ao modelocivilizacional sob o qual vivemospressupõe a mudança dessa cultura,que hoje se estende em escalaplanetária. Entretanto, por causado perigo dessa mesma globalização,tivemos como contrapartida,o reconhecimento da existência desaberes tradicionais, de modos devida que são outros em relação aoque a gente conhece. Aprendemosque existem países, grupos sociais,sociedades humanas inteiras quetêm outros modos de pensar a suarelação com o mundo, a relação dohomem com a natureza, com o sagradoe com os outros homens, entresi mesmos.Isso precisa não só ser compreendidoe respeitado, mas também incorporadoa uma nova cultura queé preciso construir. Como no casoda Amazônia, por exemplo. Não éapenas saber o que existe – “Ah, osíndios sabem coisas interessantessobre as plantas” –, e então, deixarisso com eles lá, na selva. Não! Temosque ir lá e aprender com eles. Aindústria farmacêutica, por exemplo,poderia explorar os conhecimentosancestrais, milenares, dos povos indígenas,sobre a riqueza da biodiversidadeamazônica, e utilizá-los paraproduzir remédios. No entanto, issonão pode ser feito no padrão da indústria,pois ela não é tonta, não. Sepuder, vai lá, pega o saber indígena,corre patentear na Suíça. A questãoé o que temos que fazer para incorporaresses outros saberes dentro danossa perspectiva.Isso não é fácil. Outro dia estavaconversando com um antropólogoamigo meu, o Mauro Almeida, importantíssimoprofessor da Unicamp,que é acreano e era amigo do Chi-


42 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanoco Mendes. Cada vez que o ChicoMendes estava ameaçado de morte,o Mauro o trazia correndo aqui paraSão Paulo, para ficar um tempo atéas coisas se acalmarem por lá. Atéo dia que não teve jeito, e o ChicoMendes foi assassinado! Recentemente,o Mauro estava propondocriar uma universidade no Acre, masnão a universidade apenas lá em RioBranco, na capital. Ele propunha quefosse uma universidade itinerante,que os professores pegassem o barcoe fossem pelos rios fazer uma trocade saberes. Era chegar para os índiose dizer “Nós temos um saber de saúde,de medicina, do desenvolvimentode técnicas de plantação. Vocês têmmuitos outros, saberes médicos, sabereséticos, valores sobre o modode se relacionar com a natureza.Vamos fazer uma troca?” O Mauroquase foi crucificado por fazeressa proposta! Os médicos disseram,horrorizados: “Esse louco está querendoreintroduzir as práticas doxamanismo que tanto atrapalharamnosso trabalho?” Pois é isso mesmoque é preciso fazer! Vamos botar xamãsna universidade, porque temosmuita coisa a aprender com eles!Vocês entendem por que eu digoque estamos num momento crucialde pensar o que o Brasil quer ser,quando crescer? É isso! A gente estápensando a globalização, a importânciada diversidade e o reconhecimentodas sociedades tradicionais,dos saberes tradicionais, e está assimlegitimando e promovendo, emnome da problemática do patrimônioimaterial, um conjunto de práticasculturais, de saberes, de formasartísticas, tirando delas aquela pechade “folclore” para dizer: “Vejam,isso é uma manifestação riquíssima,legítima, historicamente importantíssimada vida e da cultura destepaís!” Isso tudo está acontecendo,mas, como indagou o Danilo, ondeé que isso se integra de uma formaglobal para se pensar políticas públicas?E, mais ainda, acredito quetudo isso é inviável sem se pensarem inclusão social e cultural, querdizer, a incorporação dessas diferençasem nosso modo de vida, paraassim podermos desconstruir o quese pensa no Brasil há pelo menos500 anos e pensar numa outra formade inserção do país no mundo. Sabemosdisso porque vemos a centralidadeda cultura. Na era da globalização,a cultura é o cerne absoluto,em escala planetária, de mudançassem as quais a vida do ser humanono planeta Terra se torna inviável.Uma outra humanidade deve serpossível, e para isso uma outra culturatem de ser construída.Essa é uma ponta da história, noplano global, sobre a qual queriaA gente está pensando a globalização, a importância dadiversidade e o reconhecimento das sociedades tradicionais, dossaberes tradicionais, e está assim legitimando e promovendo,em nome da problemática do patrimônio imaterial, umconjunto de práticas culturais, de saberes, de formasartísticas, tirando delas aquela pecha de “folclore”.


PalestrasMaria Lucia Montes 43Na era da globalização,a cultura é o cerneabsoluto, emescala planetária, demudanças sem as quaisa vida do ser humanono planeta Terra setorna inviável.falar com vocês. Da outra ponta, oDanilo já falou, brilhantemente. Naverdade, o grande problema é comofazer dialogar o global, do qual falei,com o local, explorado pelo Danilo.A resposta é quase evidente.Não se pode mais pensar a culturano universo pequenininho em queestávamos acostumados a pensararte e cultura e aí marcar a diferençaentre centro e periferia, arte ecultura de verdade, do nosso lado,e folclore e artesanato, quando erado outro. Não dá mais para pensarassim. Hoje temos que pensar issotudo de uma maneira global, integrada,e não faltam exemplos decoisas importantes a considerar.Quando cheguei aqui, disse avocês: “Gente, vocês me desculpemporque cheguei atrasada! São Miguelé muito longe!” Mas não é queSão Miguel é longe, é a cidade deSão Paulo que é grande, imensa. Em2004, tive o privilégio de participarde uma aventura chamada ExpediçãoSão Paulo: pegamos um bandode senhores acadêmicos das universidades,daqueles que não têm noçãode que cidade é esta, e fomoscortar São Paulo de norte a sul e deleste a oeste. Dividimos o bando emdois grupos e fiquei numa rota quecomeçava em Guaianases, passavapor Cidade Tiradentes, Itaquera,São Miguel, depois ia para SãoMateus, o Jardim Anália Franco, noTatuapé, e depois para o centro dacidade. De lá fomos para Pinheirose depois para o Jardim Ângela. Então,cruzei esta cidade num granderoteiro, o que me permitiu começara pensar ao vivo e em cores sobre asquestões que o Danilo colocou antes.E digo ao vivo e em cores poruma razão muito simples: é que, antesdisso, eu tinha coordenado umapesquisa feita nos 21 bairros ondeforam implantados os CEUs. Paraquem não conhece, são os CentrosEducacionais Unificados, equipamentosda Prefeitura de São Paulo,que foram instalados em alguns dosbairros mais pobres ou carentes daperiferia, e, em cada um deles, nossaequipe tinha que montar uma exposiçãosobre a história local, seusproblemas e suas conquistas.No início da pesquisa para asexposições, que deviam ser abertasna época da inauguração dos CEUs,coloquei não só meus dois pés paratrás, coloquei até minha bengalinhapara trás! Afinal, como disseo Danilo, lá vinha de novo aquelavelha história de que o que conta éedificação que tem quatro paredes,que seja visível, grande etc. Tinhaa maior desconfiança possível. Atéque meus pesquisadores começarama andar naqueles bairros da periferiae comecei a ver o que era a demandadas pessoas, e o que era ter ali umCEU em funcionamento. Os problemasque todo morador de periferiacolocava para a gente eram dois: desempregoe violência. E diziam: “Oque eu ganho com a minha honestidadeé desemprego” e “Violênciasignifica droga e crime”.Quando o Danilo diz que achaque, em termos de políticas públi-


44 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoNão se trata de criar atividade culturalpara tirar os meninos da rua. Comodiz o Tião, é cultura para ocupar a rua.cas, é errado pensar em uma políticade cultura para a periferia e outrapolítica de cultura para resgatar ojovem da violência, ele tem razão.Políticas públicas não podem serpensadas desse jeito. Mas, na práticacotidiana dos moradores da periferia,é isso que acontece. Quandovocê tem alternativas, não háapelo da violência que resista. Ocrime organizado e a droga estãolá, de boquinha aberta para pegaro moleque de 11 anos e fazer viraraviãozinho. Então, não se trata decriar atividade cultural para tirar osmeninos da rua. Como diz o Tião, écultura para ocupar a rua. Vamosbotar os meninos na rua, vamosrecuperar o espaço da cidadaniacom atividade cultural que integreas pessoas, que as inclua, levandoem conta a dimensão da violênciae da falta de equipamentos nesseslugares, e a falta de atenção para oque é a vida desses segmentos dapopulação. Porque não são apenasos jovens que viram traficantes, étambém o velho, é a criança.Por isso, a ligação entre educaçãoe cultura é uma coisa absolutamenteessencial. Como disse, eutinha a maior desconfiança com relaçãoaos CEUs, até que os vi emfuncionamento, e aí não sei quantasvezes quase chorei de emoção,ao ouvir contar e, depois, ver commeus próprios olhos, coisas quenão imaginava possíveis. Gente quenunca tinha visto uma peça de teatrona vida descobria o que era essaarte, de que tinha notícia apenaspela novela, porque agora há umespaço absolutamente fundamental,onde tem conforto e dignidade,e esse é o espaço de uma escolacomo nunca se tinha visto antes.Acho que ali havia uma lição queaprendemos também com o Sesc.Quando o Sesc Campestre, hojeunidade Interlagos, no extremo dazona sul, estava sendo construído,todo mundo dizia: “Meu Deus, masessa arquitetura maravilhosa, essemobiliário incrível, para botar aquina periferia, para essa gente?”Essa era a crítica que o Sesc ouviana época. No entanto, os equipamentosdo Sesc Interlagos estão atéhoje intocados, não foram depredadoscomo se imaginava, e as pessoastêm o maior orgulho daquelelugar. Quando vem alguém visitaro pessoal da localidade, as pessoasdizem: “Vou levar você para veruma coisa bonita que tem aqui nobairro”, e eles vão mostrar comorgulho o Sesc. Vi a mesma coisacom relação aos CEUs.Depois, quando fizemos a ExpediçãoSão Paulo, havia uma coisainteressantíssima que pudemos observar.Determinadas casas que davamfundos para os CEUS começarama abrir janela no fundo da casa,para que os moradores pudessemolhar para um equipamento urbanoque finalmente sinalizava para elesuma coisa importante, da qual setornavam conscientes: “A gente temlugar, a gente tem voz e vez, tem dig-


PalestrasMaria Lucia Montes 45nidade, porque tem um equipamentoonde existem cultura e educação,como nos bairros dos ricos.” Ali,definitivamente, cultura e educaçãonão estavam separadas. Não podeme não devem ser separadas. Portanto,não é saber se o equipamento édo Estado ou do município, ou se écriação de um partido ou de outro, oque é fundamental. O fundamental éefetivamente pensar na vida dos cidadãose na vida da cidade, porquenão faz diferença nenhuma, para ocidadão comum, se o equipamentofoi instalado lá por conta de um partidoou de outro ou se é do Estado oudo município, mas sim o fato de queele está lá. E a política que dá certo apopulação reconhece...Naquela época do projeto dosCEUs, nós trabalhávamos com opessoal da Secretaria da Educação,que era um pessoal triste! MeuDeus do céu, era coisa de se chorar!Encontrei CEUs onde os diretoresachavam que era tão bonito o equipamentoque precisava ser fechadono fim de semana, e, então, eles levavama chave para casa! Mas aía mobilização da comunidade fezcom que essa gente fosse demitida eo trabalho nos CEUs pode continuar.Só que, depois, quando a Prefeituracomeçou a dizer que tambémnão tinha como manter o trabalhodos oficineiros, as coisas se tornarammuito mais complicadas. Lembrode um verão terrível em que aspiscinas dos CEUs estavam vazias,porque se dizia que não havia dinheiropara pagar a conta de água!Entretanto, a Prefeitura tinha dinheiropara fazer um monte de outrascoisas em várias outras áreas,mas nada para a educação e cultura,que era onde se fazia o trabalho dosCEUs. A questão não era, portanto,falta de recursos para pagar a contade água! O ponto fundamental era aconcepção de que, no fundo, pobrenão precisa de piscina, que isso éum luxo! Isso é o resultado de umfenômeno cultural, de uma culturapolítica não cidadã que está presenteem todo esse caso!Algo que o Danilo colocou, e queconsidero crucial, é pensar o que oscandidatos a Prefeito têm a apresentarcomo programa para a cultura,e está até havendo debates a esserespeito. Alguns representantes doFórum Permanente para as CulturasPopulares e Tradicionais participaramdesses debates e apresentaramum conjunto de reivindicações comrelação a esse segmento culturalque diz respeito a tudo o que é considerado“marginal”, as culturasindígenas, a cultura popular, a culturatradicional vista como folclore.


46 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoO que os representantes do Fórumprocuravam deixar claro, com suasreivindicações, é que há lugar paratudo isso dentro desta cidade cosmopolita,mas que é também umaespécie de “resumo” do Brasil, pelaquantidade de migrantes de outrosEstados que vivem aqui. Reivindicarum lugar para essas manifestaçõesque podem ser expressãodessas culturas regionais ou locaisé reclamar o direito à diversidade,o seu reconhecimento, porque é elaque dá aos moradores um sentidode pertencimento que integra a populaçãoenquanto cidadãos, ao lhespermitir que reconheçam a si mesmosna cultura de sua cidade. Poressa mesma razão, uma das coisas,na experiência dos CEUs, que medeixaram mais impressionada é queeu tinha uma equipe de oito antropólogosem campo para recolherdepoimentos sobre a história dosbairros, e eles iam procurar o quê?Exatamente instituições como estaem que nós estamos agora, um clubeda comunidade, porque era a históriados moradores que nos permitiacompreender a história do bairro.Então, graças a esse trabalho, pudemoscompreender o que é um clubeda comunidade, o que é uma associaçãode moradores, o que é umposto de saúde em que as pessoasfazem um trabalho importante: éuma instituição onde as pessoas dobairro se reconhecem numa históriaque lhes pertence e podem compreenderque essa história faz deles parteda história maior da cidade. É oque lhes dá um sentido de pertencimentoa essa história e os transformaem cidadãos paulistanos, independentementedo fato de terem ou nãonascido na cidade de São Paulo.Isso tudo acontecia porque ospesquisadores iam lá e queriam sabercomo é que era o bairro vistopelos moradores, não o bairro visto“de fora”, que só está no jornalpor conta do crime, da enchente, do“problema da violência urbana” ouda catástrofe natural que transformagente pobre em notícia. Sim, porquesó aí a periferia entra no jornal. Aocontrário, o que a gente buscava eraa periferia vista pelos seus própriosmoradores. Como no caso de CidadeTiradentes, por exemplo, ondeos jovens nos diziam que, se fossemprocurar emprego, não podiam dizerque moravam em Cidade Tiradentes,porque, na cabeça de quemfazia a entrevista para lhes dar ounão o emprego, lá era um “lugarde bandido”. Mas aqueles meninosaprenderam com o pessoal do Kinoforuma fazer cinema e, então,saíram pelas ruas do bairro gravandoe registrando o que era a CidadeTiradentes deles, a “do bem”, daspessoas honestas, que trabalham eestão na luta, batalhando a cada diaReivindicar um lugar para essas manifestaçõesque podem ser expressão dessas culturas regionaisou locais é reclamar o direito à diversidade, oseu reconhecimento, porque é ela que dá aosmoradores um sentido de pertencimento.


PalestrasMaria Lucia Montes 47Se a gente não forcapaz de ver, respeitar,aproveitar tudo isso etrabalhar para integrara periferia de fato nacultura da cidade, nãovamos avançar.sua sobrevivência. Em cada um dessesbairros da periferia, encontreigente admirável que nos contava averdadeira batalha que foi o começodo bairro. Era como se precisassemfazer a cultura conquistar a natureza,porque, quando chegaram lá, só haviamato, não tinham água, luz, nemesgoto, asfalto, não tinham nada. Eessa gente foi lá e domou a natureza,fizeram suas casas, sozinhos, nosfins de semana, e cobriram com lajenum mutirão de vizinhos e depoisbatalharam para conseguir a água,a luz, o esgoto, e batalharam aindamais para ter o centrinho cultural e ocurso de capoeira e as aulas de dança,o grupo de hip hop e o curso deviolão, enfim, seja o que fosse quepara eles representasse cultura. Foiassim que foi sendo construída suaidentidade, seu sentido de pertencimento.Era a cidade contada em primeirapessoa, e isso é cidadania!Então, o que eu aprendi nas minhasandanças pela cidade na ExpediçãoSão Paulo, no trabalho parafazer as exposições nos CEUs, éque existe uma vitalidade, uma integridade,uma grandeza e uma belezaenorme nessa população da periferiada cidade. Se a gente não forcapaz de ver, respeitar, aproveitartudo isso e trabalhar para integrá-lade fato na cultura da cidade, não vamosavançar. Não coloco a questãocomo uma alternativa do tipo “ouisto ou aquilo”, o que é responsabilidadedo Estado ou do município, oque é conquista de um ou outro partidopolítico. Acho que as Fábricasde Cultura são absolutamente fundamentais,assim como acho que osCEUs tinham que funcionar a plenovapor, porque isso é o que contribuipara a construção da cidadania. Naquelaépoca em que fazíamos a pesquisa,no começo da implantaçãodos CEUS, o pessoal da Secretariade Educação e os diretores nomeados– entre eles, os tais que fechavama escola e levavam a chavepara casa! – tinham como propostadiscutir a integração do seu trabalhocom o da Secretaria de Cultura, emtorno da ideia da “cidade educadora”.Mas acho que não sabiam nemdo que a gente estava falando quandotentávamos mostrar a importânciadessa integração. Como a culturapode significar educação e comoa cidade pode ser educadora? A “cidadeeducadora” é aquela que, comos equipamentos urbanos que põeà disposição dos seus moradores, écapaz de cultivar neles um sentidode urbanidade, um novo modo delidar com os espaços e as instituiçõesda cidade, e que se torna umfator de educação. O equipamentocultural – seja a Fábrica de Culturaque está para ser implantada, seja oCEU que já está aí, seja o pequenocentro comunitário criado pelospróprios moradores – é um fatorde civilização. Isto é, um fator depromoção de encontro, de integração,da partilha, da troca e da criaçãode novos padrões de convíviode pessoas que fazem parte de umamesma humanidade comum, e quesentem orgulho de pertencer àquele“pedaço” da cidade.


48 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoQuando meus pesquisadores foramfazer seu trabalho de levantamentode dados, vieram aqui emSão Miguel e procuraram todas aslideranças dos movimentos, dosgrupos e das instituições do bairro.Porque, para as nossas exposições,tínhamos criado um painelque a gente brincava que era o nosso“painel Bamerindus”, de “genteque faz”. Mas, na verdade, não eraapenas “gente que faz”, era “genteque faz a diferença”, porque cuidavanão só de si mesma e da família,cuidava também dos problemas dacomunidade. E então, em contrapartidaa esse painel onde estavamas lideranças do bairro, havíamoscriado também outro painel, o dos“artistas do pedaço”. Por isso fomosprocurar, uma por uma, as pessoasque eram importantes para a comunidade,importantes no “pedaço”.E vocês, do Clube da Comunidade,fizeram parte da minha pesquisa eestavam lá, nos painéis da minhaexposição do CEU, porque eramuma referência para o bairro, paraa gente do “pedaço”. É essa a ideiado pertencimento, do orgulho deser de “São Miguel, para o mundover”. É isso que a periferia inteiratem o potencial de ser e de poderafirmar. Mas isso a gente não podeesquecer que significa uma valorizaçãoda cultura no sentido amploem que o Danilo tão bem colocouna fala dele.Então, é aqui que ele e eu nos encontramos.No começo, quando trateia questão da cultura num sentidoainda mais amplo, falei da globalizaçãoe, agora, estou terminando com aquestão da cidade. E foi aí que o Danilocomeçou, para mostrar que só sepoderia entender a questão da cidadetratando da cultura em um sentidomais amplo. Vocês veem agora queestávamos falando da mesma coisa.Pensar a centralidade da cultura nomundo contemporâneo, neste nossotempo de globalização, vai desdepensar a necessidade de salvar o planetaTerra até salvar a nossa vida urbana,como disse o Danilo. Ao longoda história, sempre se pensou que acidade representava a melhor formade convívio dos seres humanos, ehoje em dia estamos quase chegandoà conclusão de que é o pior. Eé o pior porque hoje ele tem comofoco um tipo de cultura voltado paraum individualismo possessivo eegoísta, em que cada um quer levarvantagem sobre os demais, voltadopara o lucro que não leva em con-


PalestrasMaria Lucia Montes 49ta a desigualdade social que é capazde criar, para o domínio material danatureza, que está acabando com avida no planeta. São esses valores,hoje espalhados por todo o mundo,que criam uma visão hegemônica deuma cultura homogênea, em que nãohá lugar para a diversidade e a diferençae que desqualifica qualquer indivíduo,grupo ou sociedade que nãose enquadre nesse padrão único.Com isso se cria uma forma perversade convívio social, em que adesigualdade, fruto da pobreza, quedeveria ser objeto de cuidado coletivoda ação do Estado e do governo,por meio de políticas públicas,passa a ser vista como responsabilidadeprivada dos indivíduos quesão suas vítimas. E, em contrapartida,os bem-sucedidos passam ainfluenciar as decisões do governoe do Estado, apropriando-se a títuloprivado de recursos pertencentes àesfera pública, em seu próprio benefício.É assim que, de ambas asperspectivas, se destrói o sentidode ação coletiva e de solidariedadee a própria noção de uma esferapública, que deveria funcionar embenefício de todos. Não é de se estranhar,portanto, que, no espaçourbano, o convívio social se degenereem confronto, como espaçode violência e da ausência da lei,já que ela não é igual para todos. Éassim que a cidade deixa de ser oespaço de construção da cidadania,em razão dos valores perversos deuma cultura global hegemônica;mas é também nas suas brechasque, nas margens do espaço urbanoe social, nas periferias ou entregrupos e sociedades “marginalizados”,começam a se construir osvalores de uma nova cultura, baseadana solidariedade, na justiça ena reconstrução e reconquista dosdireitos de cidadania.Então, hoje em dia, já não é maisopcional pensar ou não sobre essasquestões. Na “aldeia global” em quevivemos, a cultura é central tantopara se pensarem os grandes problemasda humanidade quanto para sepensarem as práticas cotidianas queacontecem no pequeno mundo deum pequeno clube da comunidadecomo este, mas que faz toda a diferençapara o bairro e para a cidade.Por isso, o Danilo falou sobre a importânciade uma pessoa como ele,que está sempre pensando “grande”,cuidando dos problemas em largaescala, poder partilhar com vocês,na outra ponta, o convívio cotidianoque existe aqui e o potencial extraordináriode transformação social queisso representa. Acho que está nahora – este é um ano de eleições – decobrarmos coerência das políticaspúblicas para que elas sejam capazesde levar essas questões a sérioe nos ajudar a construir uma cidademelhor para todos nós. Esta nossacidade que existe no mundo globalé apenas uma das pontas dos problemasque a centralidade da culturanos coloca hoje; na outra ponta,eles dizem respeito à humanidadeno seu conjunto e à preservação danatureza, que é condição do nossosustento e da preservação da vidaem nosso planeta. Neste contexto,nosso pedacinho de tarefa é estarnos pequenos clubes da comunidadeque existem por aí, na cidade, fazendoa nossa pequena parte em umgrande trabalho. Uma pequena parteque pode ser até mesmo, comono meu caso hoje, sair de casa às8h da manhã, tendo dormido às 6h,para estar aqui com vocês compartilhandoideias e sonhos comuns...Agradeço muitíssimo esta oportunidadeque vocês me deram e reafirmoque é um privilégio e um prazer poderestar aqui hoje. Obrigada.


50 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano


PalestrasDanilo Santos de Miranda 51DebatesMaria Alice Setubal: Vamosagrupar as questões em blocosde perguntas e depois a gentepassa para a mesa responder.Adaílton Alves: Sou do grupoBuraco do Oráculo, que faz teatrode rua. É mais uma contribuição doque uma pergunta. Do jeito que foifalado por vocês, a gente tem querefundar a sociedade brasileira. Pelomenos, entendi dessa maneira, jáque tudo está passando pela questãoda convivência. Recentemente, temsaído muitas publicações, inclusivejornalísticas, dizendo que um dosgrandes problemas do século XXIserão as metrópoles, as cidades –as metrópoles principalmente. SãoPaulo é construída eminentementede forma segregadora, os bairrosnão tiveram um projeto. Quandovocê pega a Cidade Tiradentes e aCidade Jardim, são bairros que nãoestão distantes só geograficamente,


52 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanomas economicamente, socialmente.Pertenço a um movimento chamadoTeatro de Rua da Cidade deSão Paulo. Acho que você tem doislados: os pobres sendo jogados,segregados, e você tem um outrolado, na outra ponta, um movimentode autossegregação que são osbunkers, que são os condomíniosfechados. Você tem uma sociedadecompletamente dividida e se dividindocada vez mais. Acho que resgatara convivência, o espaço público,é fundamental nos dias de hoje.Por isso, nós fomos parar, na realidade,no teatro de rua. Na verdade,a pessoa está com medo de sairna rua porque a rua não é um localapropriado, porque ela foi pensadacomo escoadouro do capital e precisavoltar a ser pensada no sentidodas relações humanas. Então, osespaços públicos abertos precisamganhar uma dimensão muito maisampla na sociedade, principalmentena cidade de São Paulo. Isso é devital importância. Gostaria que vocêsfalassem um pouco sobre isso.Anderson: Faço teatro no ItaimPaulista. Faço algumas observações,frases soltas, talvez mais paracomplicar as coisas do que paraclarear. Eu vou falar as frases comoanotei, conforme elas vieram. Cidadefragmentária, cultura fragmentada,guetos, ricos, pobres de cor, declasse sexual etc. Culturas que nãose comunicam, organização do espaçourbano ditado pelo capital, aumentode guetos culturais ou a suaeliminação através de políticas culturaisde cima para baixo. Cidadesglobais, simultaneamente ligadasao mundo, mas que não se comunicamno âmbito da comunidade. Etambém é o caso da observação deque a gente está à beira do fim dacivilização tal qual como nós a conhecemos.Eu vejo como se fosse osromanos ou os gregos quando elesestavam à beira do fim da sua civilização,para o bem e para o mal. Ébem provável isso. Estava pesquisandona internet e encontrei que,até o fim da humanidade, temos uns30 ou 40 anos em média, mas doano de 2050 não passa. No caso,essa geração que está surgindo agoraé a última do planeta Terra. Outracolocação: mais importante do quelei de incentivo, seria a população


debates & propostasDebates e Propostas 53ter o controle dos meios de produçãoartística porque a nossa culturanão vem das escolas, vem da mídia,vem da MTV, vem dos comerciaisda televisão, está impregnada de noçõesdo que é o ser humano, do queé a pessoa, que você é um bicho,que você tem que consumir, consumire consumir. Não é só na escola,está impregnado disso. Acho que aspessoas devem ter domínio sobre osmeios de produção artística. É isso.Maria: Sou mãe de dois adolescentesque estão aqui, sou funcionáriapública e poeta. Queria mereportar à professora Maria Lúcia.A senhora coloca a questão de quereproduzimos na construção da nossaidentidade nacional valores doetnocentrismo europeu. Concordo.É exatamente isso que a gente verificanas nossas relações com os povosindígenas, com os negros, comas mulheres, reproduzimos exatamenteos valores do etnocentrismoeuropeu e reproduzimos esses valoresna nossa rua, no nosso localde trabalho. Essa é uma tarefa queestá colocada para nós brasileirosque queremos discutir a nossa diversidadecultural. Porque a gente,quando fala em cultura, tem muitoaquela coisa do senso comum deachar que cultura é só a expressãoartística, e é muito mais do queisso, embora a expressão artísticatambém seja parte disso e uma parteimportante. Então, gostaria que aprofessora aprofundasse um poucomais esse aspecto.Renato: Faço parte dos projetosda Fundação aqui no CDC TideSetubal. Vocês falaram tanto, tantoem cultura e aqui em São Migueltem poucos locais públicos que fazemalgo em relação à cultura. Porque não construir um Sesc aqui emSão Miguel?Wagner: Sou ator e produtorcultural. Eu gostaria que o Altair pudesseaprofundar o que disse a respeitodas leis de incentivo. Recentementetive a oportunidade de ouviruma entrevista do Augusto Boalque felizmente está sendo indicadoao Prêmio Nobel da Paz. Ele pediainclusive a extinção da Lei Rouanet,segundo ele porque a gente, hámuitos anos, nas décadas de 70 e80, tinha as chamadas Comissõesde Cultura, que eram formadas porartistas, pessoas do governo e organizaçõessociais. Nelas se discutiaprofundamente o que iria se aprovar,apoiar e até mesmo com autonomiados próprios artistas sobre osrecursos que eram destinados para asua arte. Hoje a gente vê o que produzimos,a nossa própria realidade,o conjunto de nossas ideias e nossoscomportamentos serem discutidospelo departamento de marketingdas empresas. Então, a gentesubstituiu uma gestão autônoma emais independente dos artistas, sejameles locais, sem demérito a nenhumaprodução, mas a gente ficavendo o Fantasma da Ópera receberincentivo de R$ 5 milhões, oCirco Du Soleil com R$ 9 milhõese falta dinheiro para as produçõesmais emergentes, que dizem respeitoa nossa realidade e a nossosanseios. Então, como é que a gentepoderia se não instituir, pelo menosrediscutir o papel social dessas leisde incentivo?Francisco Ferreira: Sou fotógrafoe produtor cultural de pequenoseventos. Queria fazer umacolocação para a professora MariaLúcia. A senhora disse que cultura


54 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano“Edificar paredes, telhados não significavocê dar espaço à cultura, e aí me reportoa algo que o Altair e a Maria Lucia falaram: oque faz a cultura acontecer são as pessoas.”Maria Alice Nassiftem a ver com cidadania. Em outromomento, que tem a ver com quandose organiza o convívio entre aspessoas. E aí me veio uma questãosobre a representatividade. A nossacivilização passou a viver em tornode representações, a sociedadecivil se organiza através de representações.No momento da redemocratizaçãodo país, existia muitamobilização popular de váriossetores, inclusive da cultura, ondesurgiu o IPA, Movimento Culturalda Penha e outros movimentos nacidade como um todo. Aí se tinhauma política pública de ir e vir,duas mãos, a da periferia e da secretaria,e essas representações foramcrescendo, tomando certo volumee hoje me parece que ela tem forçade representação. Mas eu gostariaque a professora esclarecesse se elatem força também de legitimidadee, tendo ou não tendo, qual é opapel do governo nisso, porque eleincentiva essas representações, que,no meu ponto de vista, não têm legitimidade.Estou falando de associações,Oscips e por aí vai.Claudemir: Sou diretor do grupoPólo Dramático. Trabalho comteatro e educação em artes. A minhaquestão é a seguinte: se não meengano, foi o Altair que falou umafrase sobre uma coisa em que acredito.Quando dou aula, dou oficinade teatro, não quero formar umartista, quero formar um cidadão,quero abrir uma visão. E tive umaexperiência na escola em que trabalho,no Objetivo em São Miguel:houve uma festa junina e a dona daescola falou que ia mudar o nomepara festa country, que naquele anoiria fazer a festa country. Disse paraela: “Pô, por que festa country?” Eela me respondeu: “‘É porque existempais que são evangélicos e nãoaceitam festa junina.” Aí negocieiaté conseguir transformar a festacountry numa festa sertaneja, queficou mais próxima da junina. Sãopessoas religiosas, religiões evangélicas,se elas fossem seguir umacultura mesmo, seriam de religiõesafros. Então, essa questão de formarcidadão acaba meio travandonessas barreiras que aparecem, nabarreira religiosa. Gostaria de saberse algum de vocês tem algumaideia de como trabalhar isso.RESPOSTAS DA MESA* Maria Alice Nassif (Sesc):Exercício duro este de tentar sintetizar.Mas vamos lá. Essa questão* Maria Alice Nassif substituiu Danilo Santos de Miranda, que deixou o evento apósa mesa de abertura.


debates & propostasDebates e Propostas 55de se fazer um Sesc aqui em SãoMiguel é uma questão que perpassanão só muitas das questões queforam colocadas como também asfalas da Maria Lucia e do Altair.O Danilo falou sobre algo que estápresente de novo, muito repetitivamentenas propostas dos nossoscandidatos na atual eleição, esempre esteve historicamente, queé a construção disso e daquilo, eno nosso caso, construção de casasde cultura ou o que quer seja.O Danilo falou alguma coisa comoedificar paredes, telhados não significavocê dar espaço à cultura, eaí me reporto a algo que o Altair ea Maria Lúcia falaram: o que faz acultura acontecer são as pessoas eisso é alguma coisa com que a genteconvive necessariamente todosos dias no Sesc. Algumas vezes, agente ouve estes comentários: “Ah!o Sesc é inspirador, referência ecoisa e tal. As coisas que podeminspirar, as coisas que podem serreferências que o Sesc faz são ascoisas que são tocadas de uma formamuito criteriosa, suada, brigadamesmo pelas pessoas que estãolá. Temos uma equipe muito boa eassim a gente consegue dar algumpasso à medida que a equipe empurraesse passo pra frente, porqueo Sesc constrói coisas, a gente estáconstruindo Belenzinho. A genteestá fazendo outro em Guarulhos,que é mais ou menos perto daqui.A gente não tem um poder de fogotão grande para esparramar unidadespela cidade inteira, mas a genteestá pontuando em algumas regiões.Há pouco tempo, a gente conversouaté pelo Movimento NossaSão Paulo com as pessoas da zonasul, da Cidade Ademar, do JardimÂngela, que queriam também umSesc lá. Estamos vendo espaço lá.Acabamos de acertar, na semanapassada, com a Prefeitura de Osascoum terreno lá, recebemos lá deOsasco e vamos construir um Sescem Osasco, e por aí vai. Mas, sejacomo for, não é a questão de vocêconstruir o Sesc, é você ter as pessoaspara fazer a coisa acontecer ede uma forma integrada, como oDanilo bem colocou. Ou seja, não étrazer a manifestação artística purae simples, mas é você criar um espaçopara que o local, assim comonacional, assim como o estrangeiro,possam conversar. A gente temprogramas em que traz a pessoalocal do bairro e um ícone, masque fala, trabalha, por exemplo,


56 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano“As políticas públicasnão preveem a formaçãode pessoas e a colocação depessoas devidamentecapacitadas, para tocaresses programas.”Maria Alice Nassifna mesma linguagem artística (namúsica, poesia), no mesmo estilo,mas um cara local, um ícone daquelalinguagem, para conversar ese apresentar juntos, dividir o mesmoviolão, assim como o Sacha e oZulu fizeram aqui, do mesmo jeito,para trocar experiência. Enfim, sãomomentos de troca, de convivência,de conhecimento. Mas isso sóacontece se você tiver pessoas queestão com essa visão. O que colocamos– e temos discutido muitoisso não só no Sesc como no grupode trabalho de Cultura do MovimentoNossa São Paulo – é quenormalmente as políticas públicas,mesmo aquelas que não estão estabelecidasem planos já regulamentados,mas que são praticadas, nãopreveem a formação de pessoas e acolocação de pessoas devidamentecapacitadas, para tocar esses programas,como o Altair falou. Aívocê tem as paredes e fica vazio,aí o diretor leva a chave para casaporque tem medo de que alguém váquebrar. Quer dizer, cadê a visãodessas pessoas, os animadores dosespaços? Metade do investimentodo Sesc de São Paulo e do Sescdo Brasil inteiro, que tem um orçamentogrande, é na seleção e nacapacitação das pessoas para animaros espaços. Sem isso, o Sescnão acontece. Acreditamos que, seos políticos investirem na composiçãode quadros capacitados comuma visão construída, a coisa vaiacontecer. A área de cultura – agente diagnosticou isso no GT deCultura, não é, Tião? – tem ummonte de espaço ocioso, que nãoé utilizado, e não temos há 23 anosum concurso para colocar pessoasna área da cultura. Todos os funcionáriosda área da cultura sãoemprestados de outras secretariase geralmente são pessoas que nãoestão sequer minimamente motivadas,quanto mais capacitadas,atualizadas. Por exemplo, e semquerer desmerecer, a gente temprofessor adaptado que não dá aulamais porque não tem mais voz. Elevai ser o animador de uma biblioteca.Nem fica lá, porque a jornadadele é pequena. Vivemos isso concretamente.Chegar à biblioteca esermos recebidos por uma pessoaque é a responsável pela limpezada biblioteca. E ela estava lá emprestandoo livro para os meninos,obviamente não tinha informaçõespara dar, para motivar, fortalecer,jogar a viga para cima, como disseo Altair. Então, se não houver uminvestimento nas pessoas, no quadrode pessoal, mas como políticade Estado e não de um governo,vai ser muito difícil, sejam lá quaisforem as paredes construídas, doSesc ou não, que essas paredes falem.Parede não fala.Maria Lucia Montes: Minhasquestões são as grandonas, as cabeludase valeria a pena um semináriointeiro de uma semana paraa gente discutir. Quando coloquei


debates & propostasDebates e Propostas 57a questão da perspectiva da globalização,que comecei grandão,comecei de propósito a partir dograndão para dizer o que aconteceucom o ser humano no planetaTerra, desde os tempos dos dinossauros,da revolução neolítica. Foium processo que tem um padrão derelação do homem com a naturezae de exploração da natureza, e essepadrão hoje chegou objetivamenteao limite. Aí não é opcional. Oplaneta vai viver muito bem sema raça humana. Afinal, ele viveumuito bem sem os dinossauros.É nossa responsabilidade pensarhoje o que que a gente fez. Agora,quando eu disse que a gente estáfalando da globalização, é óbvioque estou falando de um modelode convívio social econômico evalores culturais que estão associadosà modernidade ocidental e,portanto, à instauração do modo deprodução capitalista. A crise que agente está vivendo hoje está pondoem questão o cerne desse sistemacapitalista. Acho que é mais do queo controle dos meios de produçãoou a revolução ou qualquer coisadesse tipo. É o cerne dos valoresque fizeram com que o capitalismose transformasse nessa barbárieque ele é hoje. Por um lado, umacoisa que deu um domínio da naturezapelo homem, já que hoje agente vive em condições infinitamentemelhores do que qualquerhomem medieval. Mas por outro,tem o preço pago por isso que éa exclusão, a exploração, o extermíniode populações inteiras emnome do quê? Em nome do capital,em nome do lucro. Acho queisso é de uma evidência tão grandeque, às vezes, penso que nãotenho mais que falar nisso. Veja,não se trata de dizer que políticasde cultura são paliativo enquantonós não atacarmos o capitalismo.Estou dizendo que hoje o capitalismoem escala planetária está numasituação de crise tal que não adiantaeu decretar o fim dele, ou dizerque vou tomar o Estado para acabarcom o capitalismo. Estou dizendoque a nossa tarefa na área dacultura é de uma profundidade talporque esta precisa refundar nãoé só a sociedade brasileira, mas avida no planeta. Acho que essa éa perspectiva que a gente tem nohorizonte global. A questão quefoi colocada sobre o etnocentrismoestá no cerne disso. A sociedadeque globalizou os seus valoresé a sociedade ocidental cristã,branca e europeia que conquistoua América, que dominou a África,que criou o colonialismo inteiro eo imperialismo que serviram paramassacrar povos inteiros, destruirdiferentes culturas para construiro poder das sociedades ocidentaismais avançadas, cujo modelo decivilização se tornou planetário. Éisso que está sendo posto em ques-


58 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humanotão hoje. Então, quando falo dacentralidade da cultura, estou falandoa sério mesmo. Do neolíticoao apocalipse, a pior coisa que nosaconteceu foi a civilização ocidentalter tido o impacto que teve. Eisso foi proporcionado pelo capitalismo.Ele tornou possível essacivilização que a gente vive hoje.Acho que não é uma questão assimde a gente dizer, como se diziaantes, não é Estado ou municípioou partido “x” ou partido “y”,também não digo é o sistema “x”ou sistema “y”, a questão é muitomais profunda. Não digo sequerEstado ou iniciativa privada. Essaé uma situação de uma complexidadetotal. Acho que a gente temque pensar muito a sério nisso.Falamos de deveres do Estado emtermos de política pública de cultura.Concordo. Temos aqui umamoça que é representante de umaentidade privada, e digo que se tivesseque indicar alguém para ministroda Cultura, indicaria o DaniloMiranda, que, sozinho no Sesc,faz mais do que os Ministérios fazempor conta própria. Agora, porque o Danilo é capaz de fazer isso?Entre outras coisas porque tem aindependência e a autonomia depoder trabalhar no âmbito de decisãoque ele escolhe, que ele quer,e sabe o que faz e faz de maneiramaravilhosamente eficiente. Masele tem um âmbito de liberdade.O Estado tem a ver com a questãoda representação, que também foicolocada. Mas isso é outro papo,daria um seminário inteiro. O queo Estado é? O Estado é uma instânciade igualdade, ele cria lei dianteda qual, teoricamente, todo mundoé igual. Portanto, o plano de açãodo Estado é o plano da igualdade.Se digo igualdade de imposição devalores e conteúdos, digo obviamenteum Estado autoritário. Sedigo igualdade de oportunidades,de possibilidades, estou criando ascondições para que a questão darepresentatividade aconteça. Sema gente para fazer a coisa não rola,mas sem a gente ter condição parafazer as coisas também nada rola.Acho que a questão da representaçãonão é só a representação quevocê estava colocando, na verdadeé a participação e a representação.Você tem uma mobilização que


debates & propostasDebates e Propostas 59“Quem sabe a gente tem tempo de acordarantes, acordar antes significa vamos levara cultura a sério, o que é levar a cultura asério? Vamos desmontar o complexo de valoresque montaram essa sociedade que é capitalista.”Maria Lucia Montesimplica uma participação, que implicauma representação. Agora,de um modo geral, temos tambémuma coisa que é normal na dinâmicada vida social, quem gostade poder vai atrás dele. Ao se abrirum espacinho de participação e representação,tem um núcleo que seapodera da função de representantee vai lá e faz o que faz. O Estadointeiro, de A a Z, do Planalto aomunicípio, é a apropriação privadada coisa pública. Então, quandoum grupo se torna representante eele é representante desse mesmogrupo e não fala pelo coletivo, nãotem legitimidade. Agora também écômodo, a gente sempre diz: “Ah!Esses bandidos estão indo lá tomaro meu lugar.” Vá lá suar a camisa,participar daquela chatice de burocracia,porque o Estado é burocráticoe tem que ser num certo sentido.Vá lá e aguente a chatice dacomissão. Então, acho que é assim,tem um monte de coisas que sobrapara a gente discutir, mas queriaressaltar isso, inclusive vale para aquestão da lei de incentivo que foilevantada. Acho que tem a ver comessa relação entre o privado e o lugardo Estado que é uma questãoampla, que tem que ser discutidaa fundo. Não é agora que a gentevai poder resolver, mas acho que éimportante você ter levantado. E,quanto ao apocalipse, ao fim dostempos, acredito piamente que eleestá aí, enunciado no jornal tododia e a gente não leva a sério, até ahora que a gente começar a ter osKatrina dentro de casa, a gente vaicomeçar a dizer: “Opa, isso nãoacontece só na terra dos outros,acontece aqui também.” Quemsabe a gente tem tempo de acordarantes, acordar antes significa vamoslevar a cultura a sério, o queé levar a cultura a sério? Vamosdesmontar o complexo de valoresque montaram essa sociedade queé capitalista. Se vocês pegarem dolado de lá também não é muito melhor,porque senão não teria acabado,não teria virado aquele antrode corrupção, em suma, são valoresque estão em jogo. Acho queisso é a centralidade da cultura. Épor isso que acho que vale a pena agente estar aqui discutindo. Agora,as questões que foram levantadassão questões que valem demais apena a gente fazer um semináriomais amplo a respeito delas.Altair: Acho que uma das reflexõesque a população teria que fazeré sobre essas barreiras, essas divisõescentro versus os bairros longedos centros – não gosto de falar periferia.É tudo São Paulo. São culturasdiferentes, são outras culturas, não éa cultura oficial e tal. Mas temos queponderar uma coisa interessante que


60 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano“As leis de incentivos não resolveram as coisas.Quer dizer, resolveu para o grande espetáculo, para a grandevisibilidade, mas não resolveu o problema dasexpressões artísticas culturais regionais.”Altair Moreirasão as pessoas se autodenominaremcomo cultura do gueto. Isso é umacoisa que o movimento tem que refletirlegal sobre isso. Será que vale apena se autodenominar como gueto?Essa é uma das palavras mais terríveisdo preconceito criada ao longo desseséculo. O que exatamente quer dizerquem é do gueto? Alguém que nãose contabiliza, quem é do gueto estácontente com o que tem? Então achoque isso merece uma reflexão, umadiscussão. Se diz gueto exatamentepela ausência de educação, pela ausênciado Estado, pela ausência donão sei mais o quê. Então, talvez aoverbalizar, ao explanar, ao exemplificarisso você pode estar exatamentereforçando uma coisa que não queremosna democracia, em condiçõesigualitárias para todos.Quanto à questão das Lei de Incentivos,aí também é uma discussãoque dá dor de cabeça. Acho queelas estão passando por um momentofinito, estão acabando. As leis deincentivos não resolveram as coisas.Quer dizer, resolveu para o grandeespetáculo, para a grande visibilidade,mas não resolveu o problema dasexpressões artísticas culturais regionais,daquelas que não trabalhamcom o mercado. Uma das soluçõestalvez fosse o governo criar fundosde cultura autogeridos, ou seja, cogeridoscom a produção cultural.Esse é um caminho que tem que seretomar, qual é a melhor forma dissoé para se pensar. Porque, para seenquadrar na lei, precisa ser global,precisa não sei o que lá, precisa teruma história ou precisa ter uma tragédia,talvez se passar pelo BBB,cair para o Big Brother, quem sabeaté consegue. Agora, se você nãofor, vamos dizer assim, do momento,do acontecimento, você não serácontemplado pela lei. Como 99,9%das produções locais não são o acontecimento,é o cotidiano, é a batalhado dia a dia, são coisas pequenasdiante dos recursos que estão soltospor aí, acho que um fundo co-geridopela produção cultural descentralizada,não centralizada em Brasília,pode ser um caminho para tentarmosresolver esse problema.Maria Alice Setubal: Agradeçoimensamente a presença do Altair,do Danilo, da Maria Lúcia e da MariaAlice e de todos vocês que estão aquie participaram ativamente do seminário.Foi um encontro riquíssimo, levantoue aprofundou questões muitoimportantes para o nosso pensar sobrea cultura aqui em São Miguel e nacidade de São Paulo. Queria reforçara importância de uma reflexão comoessa que tivemos aqui hoje, da importânciade estarmos pensando a cidadea partir do olhar de São Miguel epensar São Miguel a partir da cidade.Muito obrigado a todos.


Propostas 61PropostasOs pontos apresentados a seguir nasceram em grupos de discussãoque se reuniram após a mesa de abertura do evento. As reflexõese propostas têm como objetivo lançar elementos para a discussãosobre questões que indicam alterações nos mecanismos deimplementação de políticas voltadas para a cultura presentes nas estruturasde governos e de práticas socioculturais em São Paulo e no Brasil.Buscamos apresentar a essência do pensamento trazido por todosque tiveram como tarefa responder às questões básicas: Oque mudar? Como mudar? E por que mudar a esfera das políticasde cultura voltadas para as relações humanas e sociais?Em síntese, os autores da proposta colocam que as novas abordagenspara as políticas de cultura no Brasil exigem profundos processosde mudança na explicação dos comportamentos sociais e na racionalidadecoletiva tal qual se apresentou no calor das discussões.


62 Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento HumanoA ênfase das discussões doseminário apontou transformaçõesligadas a uma concepção decultura de forma mais alargada,considerando nas cidades – manifestaçãoconcreta do urbano – quenovos e diferentes modos de vidase encontram e se gestam, e a culturadaí decorrente se transformaem política.Propostas e abordagensCompreensão de CulturaManifestação da identidade individuale coletiva nos seus diversosmodos de existir.A cultura da qual falamos compõe-se,entre outros elementos, damaneira de alimentar-se, das relaçõessociais ou familiares que se estabelecem,do modo de produção, das relaçõespolíticas construídas, das manifestaçõesartísticas, do patrimônioimaterial e do imaginário social.Política Participativa –Transformações na Gestão• Criação de mecanismos de consultapopular na comunidade comagentes culturais locais e interessadospara a elaboração e execuçãodas políticas publicas;• Dar visibilidade às demandas ecriações culturais da localidade;• Rearticulação do Conselho Municipalde Cultura e dos Fóruns Regionaisde Cultura em cada Subprefeiturada cidade de São Paulo;• Orçamento para a cultura: garantirpor lei e com distribuição proporcionalà demografia;• Implementação de Política deRecursos Humanos na área públicacom plano de carreira queaponte a descrição das competênciaspara cada cargo, alémde concursos públicos voltadospara a composição do quadronecessário, com a participaçãode profissionais da área em questão,e avaliação de desempenho;• Os cargos de gestores devem serocupados por concursados, comcomprovada competência e eleitopela comunidade a partir de propostade trabalho;• Estabelecimento de continuidadede projetos, programas eações assertivas e bem-sucedidasindependentemente das alteraçõesgovernamentais;• Ação intersecretarial e transdisciplinare integração de políticaspúblicas;Integração entre Culturae Educação• Formação profissionalizante paraserviços inerentes à área de cultura,por meio da oferta de cursosgratuitos ou a preços acessíveis;• Inclusão do registro das manifestaçõese saberes da cultura populartradicional e outras representaçõesda diversidade no sistemaeducacional formal;• Capacitação de profissionais;• Criação e implementação de diálogospermanentes entre os agentesda cultura e os profissionais daeducação formal;


debates & propostasDebates e Propostas 63Indicadores• Construção de mecanismos paraconstituição, pesquisa e acúmulode indicadores na área da cultura;Participantes dos gruposAdelino Mario MartinsCamila Rafaela Santos de MoraesClaudemir SantosElias LopesEdson PauloEduardo de Almeida DantasFabiano BarbosaFernando Gomes de Souza – Nando ZFilipe Peçanha di DomenicoFrancisco FerreiraIsis Osti de MedeirosIzaltino RibeiroJane Cunha VictórioJoão Paulo RodriguesJosafá Pereira da SilvaJúlio CezarMaria de Nazaré da Silva PeixotoPedro NetoRodrigo Rios OliveiraRuy Barbosa SilvaSacha ArcanjoSacha Gabriel CabeloSonia MariaSonia SantanaSueli KimuraTião SoaresTiago Araujo VieiraValdir Aguiar da SilvaValter PassarinhoVitor Rodrigues Conde da SilvaWagner Tadeu da SilvaZulu de Arrebatá


RealizaçãoApoioOficina CulturalLuiz Gonzaga

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