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O LIVRO DOS LOBISOMENS

Leia um trecho do livro - Editora Aleph

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SABINE BARING-GOULDO <strong>LIVRO</strong> <strong>DOS</strong><strong>LOBISOMENS</strong>TraduçãoRonald Kyrmse


O s direitos desta edição pertencem à Editora Aleph.TÍTULO ORIGINAL: The book of were-wolvesCAPA: Thiago Ventura e Luiza FrancoPREPARAÇÃO DE TEXTO: Berenice BaederREVISÃO: Hebe Ester LucasPROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: GXavier.comCONSULTOR EDITORIAL: Silvio AlexandreCOORDENAÇÃO EDITORIAL: Delfin e Débora DutraEDITOR RESPONSÁVEL: Adriano Fromer PiazziEDITORA ALEPHRua Dr. Luiz Migliano, 1110 – Cj. 30105711-900 – São Paulo – SP – BrasilTel.: [55 11] 3743-3202Fax: [55 11] 3743-3263www.editoraaleph.com.brDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Baring-Gould, Sabine, 1834-1924O livro dos lobisomens / Sabine Baring-Gould; traduçãoRonald Kyrmse. -- São Paulo: Aleph, 2008.Título original: The book of were-wolves.ISBN 978-85-7657-045-51. Ficção inglesa I. Título.08-01004 CDD-823Índices para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura inglesa 823


PREFÁCIO ................................................ 9CAPÍTULO I ..................................... 15INTRODUÇÃOCAPÍTULO II ................................... 21A LICANTROPIA ENTRE OS ANTIGOSDefinição de licantropia • Marcelo Sidetes • Virgílio • Heródoto • Ovídio • Plínio •Agriopas • História de Petrônio • Lendas árcades • Explicação propostaCAPÍTULO III ................................ 27O LOBISOMEM NO NORTETradições nórdicas • Modo como se efetuava a transformação • Völundar Kviða •Exemplos da Saga dos Völsungs • Saga de Hrolf Kraka • Poema faroês • Helga Kviða •Saga de Vatnsdæla • Saga de EyrbyggjaCAPÍTULO IV ................................ 41A ORIGEM DO LOBISOMEM ESCANDINAVOVantagem do estudo da literatura nórdica • Vestes de pele de urso e lobo • Os berserkir •Sua fúria • A história de Thorir • Trechos do Aigla • O lobo do entardecer • Skallagrim eseu filho • Derivação da palavra “hamr”: de “vargr” • Leis que afetam os proscritos •Tornar-se um javali • RecapitulaçãoCAPÍTULO V ................................... 55O LOBISOMEM NA IDADE MÉDIAHistórias de Olaus Magnus sobre lobisomens livônios • História do bispo Majolus •História de Albertus Pericofcius • Ocorrência semelhante em Praga • São Patrício •Estranho incidente relatado por João de Nürnberg • Bisclaveret • Lobisomens daCurlândia • Pierre Vidal • Licantropo paviano • Histórias de Bodin • Relato de Forestussobre um licantropo • Lobisomem napolitanoCAPÍTULO VI ................................ 67UMA CÂMARA DE HORRORESPierre Bourgot e Michel Verdung • O eremita de St. Bonnot • A família Gandillon •Thievenne Paget • O alfaiate de Châlons • Roulet


CAPÍTULO VII ............................. 79JEAN GRENIERNas dunas de areia • Um lobo ataca Marguerite Poirier • Jean Grenier levado a julgamento •Suas confissões • Acusações comprovadas de canibalismo • Sua sentença • Comportamentono mosteiro • Visita de DelancreCAPÍTULO VIII .......................... 89FOLCLORE RELATIVO AOS <strong>LOBISOMENS</strong>Esterilidade do folclore inglês • Tradições de Devonshire • Derivação de were-wolf •Canibalismo na Escócia • O ladrão de Angus • O camponês de Perth • Superstiçõesfrancesas • Tradições norueguesas • Histórias dinamarquesas de lobisomens • Histórias deHolstein • O lobisomem nos Países Baixos • Entre os gregos; os sérvios ; os bielo-russos; ospoloneses; os russos • Uma receita russa para se tornar lobisomem • O Vlkodlak boêmio •História armênia • Contos indianos • Budas abissínios • Histórias americanas detransformação • Uma história doméstica eslovaca • Contos gregos, bearneses e islandesessemelhantesCAPÍTULO IX ............................ 111CAUSAS NATURAIS DA LICANTROPIACrueldade inata • Suas três formas • Dumollard • Andreas Bichel • Um sacerdote holandês• Outros exemplos de crueldade inerente • Crueldade unida ao refinamento • Uma húngaraque se banhava em sangue • Rapidez com que a paixão se desenvolve • Canibalismo: emmulheres grávidas, em maníacos • Alucinação: como se produz • Ungüentos • A história deLucius • Auto-enganoCAPÍTULO X ............................... 125ORIGEM MITOLÓGICA DA LENDA DO LOBISOMEMMetempsicose • Afinidade entre homens e animais • Finnbog e o urso • Osage e o castor •A conexão da alma e do corpo • Budismo • Caso do sr. Holloway • Idéias populares acercado corpo • A derivação do alemão leichnam • Vestes de penas • Transmigração de almas •Uma história basca • História do Pantchatantra • Idéias selvagens acerca de fenômenosnaturais • Trovão, raio e nuvem • A origem do dragão • O dragão de John de Brompton erauma tromba d’água • A lenda de Tifeu • Alegorização dos efeitos de um furacão •Antropomorfose • A nuvem cirro, um cisne celestial • Urvaçî • A nuvem de tempestade éum demônio • Vritra e râkshasas • História de um brâmane e um râkshasa


CAPÍTULO XI ............................ 143O MARECHAL DE RETZ I: A INVESTIGAÇÃO DAS ACUSAÇÕESIntrodução • História de Gilles de Laval • O castelo de Machecoul • Rendição do marechal• Exame das testemunhas • Carta de De Retz • O Duque da Bretanha relutando em moverse• O Bispo de NantesCAPÍTULO XII ......................... 161O MARECHAL DE RETZ II: O JULGAMENTOA aparição do marechal • Pierre de l’Hospital • A requisição • O julgamento adiado •Encontro entre o marechal e seus criados • A confissão de Henriet • Pontou persuadido aconfessar tudo • O julgamento adiado não é apressado • A hesitação do Duque da BretanhaCAPÍTULO XIII ....................... 173O MARECHAL DE RETZ III: A SENTENÇA E A EXECUÇÃOO julgamento adiado • O marechal confessa • O caso é transferido ao tribunal eclesiástico •Medidas imediatas do bispo • A sentença • Ratificada pelo tribunal secular • A execuçãoCAPÍTULO XIV ....................... 183UM LOBISOMEM GALICIANOOs habitantes da Galícia austríaca • O vilarejo de Polomyja • Tarde de verão na floresta • Omendigo Swiatek • Desaparece uma jovem • Um escolar desaparece • Criada perdida •Outro menino raptado • A descoberta feita pelo taverneiro de Polomyja • Swiatekaprisionado • Levado a Dabkow • SuicídioCAPÍTULO XV ......................... 193CASO ANÔMALO – A HIENA HUMANAGhouls • História de Fornari • Citação de Apuleio • Incidente mencionado por Marcasso •Cemitérios violados em Paris • Descoberta do violador • Confissão de M. BertrandCAPÍTULO XVI ....................... 201UM SERMÃO SOBRE <strong>LOBISOMENS</strong>Os discursos do dr. Johann • O sermão • ObservaçõesBaring-Gould: Uma breve Biografia ...................... 205


PREFÁCIOpor Helena Gomes“Tenha pena de mim, Coronel Ponciano de AzeredoFurtado. Sou um lobisomem amedrontado, corridode cachorro, mordido de cobra. Na lua que vem, tirodo meu tempo de penitência e já estou de empregoapalavrado com o povo do governo.” 1Triste a sina do lobisomem brasileiro: nada de bala deprata, roupas de couro, sobretudo negro ou qualquer outrotoque de glamour oferecido pelos filmes produzidos sobre opersonagem nas últimas décadas. O herdeiro do fadário (oumaldição) vira lobisomem em encruzilhada, em chiqueiro eaté em galinheiro, sempre às sextas-feiras e nem sempre delua cheia. E isso depois de tirar as próprias roupas e se esfregarnelas — o que pode incluir aí estrume e urina de algumanimal. Então, parte numa rotina bem estafante. Tem apenasuma noite para percorrer sete cidades antes de voltarpara o lugar de onde partiu. Todo o trajeto feito, naturalmente,antes de o galo anunciar o novo dia.1Apesar de o lobisomem aparecer pouco na história, vale a pena citar estetrecho de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, livro comuma linguagem simplesmente deliciosa.


10O livro dos lobisomensTudo culpa de uma maldição que (como conta a pesquisadora Mariado Rosário de Souza Tavares de Lima, em seu livro Lobisomem: assombraçãoe realidade 2 ) o coitado herda, muitas vezes, por ser o último de umasérie de sete filhos, o caçula de sete irmãos, filho de um incesto, vítima demaldição, por ficar dez anos sem confissão ou comunhão, nascer com osdedos tortos, se casar apenas no civil ou, ainda, deixar de receber o batismo.Notou a forte influência religiosa no mito universal adaptado ao gostobrasileiro? Sim, as histórias de lobisomem, trazidas pelos portugueses epresentes de norte a sul do Brasil, ganharam um bônus para manter opovo na linha entre o certo e o errado, segundo as regras da Igreja Católica.“Na Europa a transformação dava-se por feitiço, no Brasil predominaa crença n’uma maldição a acometer o homem nascido sob certas condições”,reforça Ricardo de Mattos, no artigo “Dos lobisomens” 3 .O lobisomem brasileiro é, acima de tudo, alguém que, mesmo nãoquerendo, tem um pacto com o tinhoso, o dito cujo, aquele-que-nãodeve-ser-mencionado.E que, por este motivo, também faz lá suas maldades,deixando no ar aquele cheiro malévolo de enxofre e danação eterna.Em sua penitência, ele espalha o terror, deixa todo mundo apavoradopor onde passa, desvirgina donzelas inocentes que passeiam sozinhaspelo bosque, morde para transmitir o fadário e, de quebra, se alimentade fetos, crianças ainda pagãs, adultos, cadáveres, cachorros, bezerros eoutros animais pequenos e, para ele, muito apetitosos. A saída para anulara maldição do infeliz? Quem arrisca algo como o irmão mais velhobatizar o irmão número sete antes que este cresça e se transforme? Ouoferecer ao lobisomem uma saudação com a cruz, jogar água benta nelee realizar, por ele, sete rezas, durante sete noites, com sete velas acesas?Ou, quem sabe, um tiro bem dado, não se esquecendo de, antes, untar abala na cera de uma vela queimada em três missas seguidas?“Me respeite, moço! Eu não sou uma lenda, não, sou um mito. Ummito universal — e dos bons. Eu tenho uma existência individualizada2A autora realizou um trabalho muito bom e abrangente sobre o mito do lobisomem,em especial do brasileiro. E foi a responsável por transformar a cidadede Joanópolis, interior de São Paulo, na Capital do Lobisomem.3Este artigo, na integra, pode ser encontrado no site www.digestivocultural.com


SABINE BARING-GOULD 11dentro do mundo sobrenatural e uma função social muito antiga, quedá origem e explicações a alguns fatos. As lendas são apenas relatosdesses mitos.” 4No fundo, bem lá no fundo mesmo (ou seria no passado?), a religiosidadeestaria por trás do mito do lobisomem. Simples assim? Talvez não.Mas é um ponto de partida para se pensar. Vamos do começo. Comonasce o mito do lobisomem no mundo ocidental? Certo, você vai pensar,novamente temos gregos e romanos na história. “Na mitologia pré-helênica,para alguns, já teria havido um Zeus Licaeus, a mais antiga crençalocal”, afirma Maria do Rosário. “O Zeus Licaeus era o deus da luz (luke)e pode, também, ter havido confusão entre esse vocábulo e luko, lobo”.Além disso, a pesquisadora cita a existência de um rito com oferendas aodeus-lobo para que este poupasse os rebanhos. Ela acredita ainda que,durante o ritual, os sacerdotes se vestiam com a pele do animal-deus. JáLuperca, a deusa loba dos romanos, era homenageada com festas chamadasde lupercais, ou seja, festas do lobo. Aliás, segundo a lenda, foi a lobaLuperca quem amamentou os gêmeos Rômulo e Remo, futuros fundadoresde Roma e de seu império, que espalharia esta e outras históriasentre os povos conquistados durante séculos. Ricardo de Mattos acrescentaque, na Letônia, era costume sacrificar uma cabra numa encruzilhada(lobisomem sofre sua transformação na encruzilhada, lembra?)em honra aos lobos e para aplacar a ira de uma entidade silvestre.É quando, nesse contexto pagão, surgiu o cristianismo. Após a conversãodo imperador Constantino, no século IV, a nova doutrina foiimposta gradualmente a todo o império romano. Leia: imposta a váriospovos subjugados, com culturas e religiões pagãs diversas. Utilizou-se,então, uma tática ancestral, aquela mesma que ainda se vê nosdias de hoje nas melhores famílias. Quando uma mãe deseja que o filhoa obedeça, o que faz? Coloca medo na criança, não é mesmo? Queo digam as cantigas infantis e suas mensagens diretas: “Dorme, nenê,que a Cuca vem pegar!”. Ou seja: durma logo ou... enfrente seu medo!4Curiosa entrevista dada por um lobisomem ao jornal Folha de S.Paulo, ediçãode 28 de outubro de 2004.


12O livro dos lobisomensNão foi diferente naquela época. As crenças pagãs foram distorcidas,taxadas de diabólicas, e seus seguidores se tornaram umatenebrosa ameaça a ser combatida. Uma curiosidade? A própriaimagem do diabo chifrudo foi inspirada no deus pagão Cornífero,o aspecto masculino da natureza, cultuado por antigos caçadoresna Europa.“Mas ouviu-se ainda outro som, longínquo e fraco, na distância.Era o uivar faminto da alcatéia, que prosseguia em busca de outracarne que não a do homem que acabara de se lhe escapar.” 5O que dizer do pobre lobisomem, aquele mito gerado pelo medoao paganismo e associado automaticamente ao diabo? Acrescente aisso o verdadeiro terror que os europeus sentiam em relação ao lobo,um animal perigoso para os camponeses e aldeões. Não é à toa que olobo é sempre o vilão dos contos de fadas, estes derivados da tradiçãooral de muitos povos. Hoje, o lobo, vítima de séculos de perseguiçãoe caçadas, também necessita da proteção dos ecologistas e simpatizantespara não engrossar a lista dos animais extintos.O lobisomem, resultado de fontes variadas, encontra na literaturaum terreno para se expandir, ganhar fãs e se multiplicar, seja na abordagemmais hollywoodiana do mito, seja na cadência brasileira e seutempero folclórico. E nada melhor do que o medo, este ingredientefundamental de inúmeras histórias, para encontrar eco e espaço garantidonas mentes e corações dos leitores.“Estranho mundo, o deles. Era para lá que eu ia nos períodos em quea mutação me permitia cruzar o limite entre a besta e o homem, o grandepredador. Perto dele, eu e os outros bichos éramos um nada. Comemosa carne e lambemos o sangue. Mas o homem toma a alma.” 65Trecho do livro Caninos brancos, de Jack London.6Trecho do conto “Luna errante”, publicado no livro A dama-morcega, deGiulia Moon.


SABINE BARING-GOULD 13A publicação de O livro dos lobisomens, de Sabine Baring-Gould,traz ao leitor a rara oportunidade de conhecer um estudo clássicosobre o mito lobisomem. Publicado originalmente em 1865, este trabalhode referência (e leitura obrigatória!) chega em um momentooportuno, quando os leitores brasileiros experimentam um interessemaior por literatura fantástica.Como explica a escritora Martha Argel, em artigo ainda inédito, aliteratura de terror nacional recebeu impulso, há alguns anos, com olançamento de Os sete, o primeiro romance vampírico de AndréVianco, atualmente um autor best-seller. “Isso foi em 2001”, prossegueMartha. “De lá para cá, surgiu um mercado, modesto mas estável,para histórias de vampiros – em papel, a procura é principalmentepor romances, mas os contos são extremamente populares na internete atingem um grande número de leitores.”Para Martha, os vampiros são o carro-chefe na repercussão entreos leitores e na forma como os conquista. Esse sucesso alavancou apublicação de outros contos de terror, principalmente nos veículosalternativos, como fanzines, sites e listas de discussão na internet, oque beneficiou outros gêneros, como a fantasia e a ficção científica.De uma forma geral, segundo a escritora, a literatura fantástica temestado em ebulição nos últimos anos, com um incremento na produçãoe o aparecimento de maior número de obras com valor literário eeditorial que se refletem no surgimento de um público de leitores e fãs.“Quase tudo está acontecendo dentro de círculos alternativos e vinculadoa comunidades específicas, como os RPGistas, os fãs de mangás,Harry Potter e O Senhor dos Anéis, mas ocasionalmente a produção‘vaza’ para o mainstream.”O livro dos lobisomens, portanto, chega na hora para reforçar ofôlego milenar de um mito que continua mais do que vivo na nossaimaginação. E que, nas noites de sexta-feira, ainda vai provocar terríveiscalafrios por onde passar.Helena Gomes é escritora, jornalista, professora universitária e curiosasobre lobisomens e outros mitos fantásticos.


IJamais me esquecerei da caminhadaque fiz certa noite em Vienne,depois de completar o exame deuma desconhecida relíquia druídica,a Pierre Labie, em La Rondelle,perto de Champigni. Eu ficarasabendo da existência dessecromlech 1* naquela tarde, ao chegar emChampigni, e parti para visitá-la semcalcular o temp o que gastaria em chegarlá e retornar. Basta dizer que descobrio venerável amontoado de pedrasquando o Sol estava se pondo, eque consumi as últimas luzes do entardecerfazendo planos e esboços.Comecei então a retornar. A caminhadade umas dez milhas cansarame,pois era o fim de uma longa jornada,e eu machucara a perna subindoem algumas pedras a caminho da relíquiagaulesa.Havia um pequeno vilarejo nãolonge dali, para onde dirigi meuspassos, na esperança de alugar uma* Monumento pré-histórico, composto de menires em círculo ou elipse. [n. do t.]


16O livro dos lobisomens“aranha” 2* que me conduzisse à estação do correio; fiquei frustrado...Poucas pessoas do lugar sabiam falar francês, e o padre, quando apeleipara ele, assegurou-me de que não havia no lugarejo melhor veículoque uma charrua comum, com sólidas rodas de madeira; nemhavia possibilidade de conseguir um cavalo. O bom homem propôshospedar-me naquela noite; mas fui forçado a declinar do convite,porque minha família pretendia partir cedo na manhã seguinte.Então manifestou-se o prefeito:– De forma nenhuma monsieur pode voltar hoje à noite, atravessandoos baixios, por causa do... do... – e sua voz foi abaixando... – osloups-garoux.– Ele diz que precisa voltar! – retrucou o padre em dialeto. – Masquem irá com ele?– Ah, há! M. le Curé. Está muito bem um de nós acompanhá-lo,mas pensa como será voltar sozinho!– Então dois terão de ir com ele – disse o padre –, e vocês poderãocuidar um do outro ao retornarem.– Picou me disse que viu o lobisomem há apenas uma semana –falou um camponês –; estava em seu campo de trigo-mouro. O Sol játinha se posto e ele pensava em ir para casa, quando ouviu um farfalhardo outro lado da sebe. Olhou por cima dela, e lá estava o lobo, dotamanho de um bezerro, diante do horizonte, a língua de fora e osolhos reluzentes como fogos do pântano. Mon Dieu! Me pega atravessandoo pântano hoje à noite. Ora, o que dois homens poderiam fazerse fossem atacados por esse lobo demoníaco?– É tentar a providência – disse um dos anciãos da aldeia –; ninguémpode esperar a ajuda de Deus se se lançar voluntariamente aoperigo. Não é assim, M. le Curé? Ouvi-o dizer isso mesmo no púlpito,no primeiro domingo da quaresma, pregando o Evangelho.– Isso é verdade – observaram várias testemunhas, balançandoas cabeças.* Carruagem de pequeno porte, de duas rodas, puxada por um cavalo. [n. do t.]


SABINE BARING-GOULD 17– De língua de fora, e de olhos reluzentes como fogos do pântano!– disse o confidente de Picou.– Mon Dieu! Se eu encontrasse o monstro, haveria de correr – disseoutro.– Bem creio, Cortrez; posso assegurar que você correria – disse oprefeito.– Do tamanho de um bezerro – acrescentou o amigo de Picou.– Se o loup-garou fosse tão-somente um lobo natural, ora, então, sabe...– o prefeito pigarreou –, sabe que não lhe daríamos importância. Mas, M.le Curé, é um demônio, pior que um demônio, um demônio humano...pior que um demônio humano, um homem-lobo demoníaco.– Mas o que fará o jovem monsieur? – perguntou o padre, olhandode um para outro.– Não se preocupem – disse eu, que escutava tranqüilamente aconversa em dialeto que compreendia. – Não se preocupem; caminhareide volta sozinho, e se encontrar o loup-garou cortarei suas orelhase seu rabo e os enviarei a M. le Maire com meus cumprimentos.Um suspiro de alívio do grupo, que se via livre da dificuldade.– Il est anglais – disse o prefeito, balançando a cabeça como sequisesse dizer que um inglês enfrentaria impune o diabo.O pântano era um baixio melancólico, de aspecto bastante desoladordurante o dia, mas agora, ao crepúsculo, era dez vezes mais desolador.O céu, de um suave tom cinza-azulado, estava absolutamente limpo.Nele jazia a lua nova, com uma curva de parca luz aproximando-seda sua base ocidental. O pântano estendia-se até o horizonte, enegrecidopor poças de água estagnada, de onde os sapos trilavam incessantementena noite de verão. Urzes e samambaias cobriam o solo, mas pertoda água cresciam densas massas de íris e juncos, contra as quais ovento fraco sussurrava sua voz enfadonha. Cá e lá havia montículosarenosos, encimados por abetos, como salpicos negros diante do céucinzento; não havia sinal de habitação em lugar nenhum; o único vestígiohumano era a estrada, branca e reta, estendendo-se por milhasatravés do brejo.


18O livro dos lobisomensNão era improvável que aquele distrito abrigasse lobos, e confessoque me armei com um pedaço de pau reforçado tirado ao primeiroarvoredo que a estrada atravessou.Essa foi minha apresentação aos lobisomens, e, diante de superstiçãoainda tão viva, me lancei à investigação da história e dos hábitosdessas míticas criaturas.Preciso confessar que não tive o mínimo sucesso em obter um espécimedo animal, mas encontrei seus vestígios em todas as direções; eexatamente como os paleontólogos montaram o labirintodonte a partirde suas pegadas na marga e de uma lasca de seu osso, talvez eutambém possa descrevê-lo, apesar de não tê-lo vivo diante de mim.Os vestígios deixados são de fato bastante numerosos e apesar de,como o dodó e o dinórnis, o lobisomem poder ter-se extinguido emnossa era, ainda assim, deixou seu selo na Antigüidade clássica, pisouprofundamente as neves setentrionais, atropelou rudemente a genteda Idade Média e uivou entre sepulcros orientais. De uma raça malévolaestaríamos contentes de termos nos livrado dele e da sua laia, ovampiro e o ghoul 3* . Mas... quem sabe? Talvez sejamos um pouco apressadosem afirmar sua extinção. Ele pode continuar rondando pelasflorestas abissínias, vagueando por entre as estepes asiáticas e até seusuivos lúgubres podem, ainda, ser ouvidos a partir do fundo de algumacela acolchoada de um Hanwell ou um Bedlam 4** .Nas páginas seguintes, pretendo investigar os relatos sobre lobisomensdos velhos escritos da Antigüidade clássica; em seguida, os contidosnas sagas nórdicas, e, por fim, os numerosos e detalhistas elaboradospelos autores medievais. Junto a isso, farei também um esboçodo folclore moderno relacionado com a licantropia.A partir daí, veremos que sob o véu da mitologia existe uma realidadeconcreta; que uma superstição corrente contém dissolvida em siuma verdade positiva.* Demônio lendário que ataca túmulos e se alimenta de cadáveres. [n. do t.]** Nomes de hospícios ingleses. [n. do t.]


SABINE BARING-GOULD 19Desejo mostrar que se trata, no caso da licantropia, de um desejoinato de sangue, implantado em certas índoles, controlado em circunstânciasordinárias, mas que irrompe ocasionalmente, acompanhadode alucinações, levando na maioria dos casos ao canibalismo.Depois, darei exemplos de pessoas assim afetadas, as quais, na crençade outros, e na sua própria, haviam sido transformadas em animais, eque, nos paroxismos de sua loucura, cometeram numerosos assassinatose devoraram suas vítimas.Em seguida, os exemplos serão os de pessoas que, sofrendo damesma paixão pelo sangue, também assassinavam para saciar suacrueldade natural, contudo não estavam sujeitas a alucinações nemeram viciadas em canibalismo.Também serão dados exemplos de pessoas com as mesmas propensões,que assassinaram e devoraram suas vítimas, mas que estavamperfeitamente livres de alucinações.

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