O Jogo (conto) publicado em Histórias do Rio Negro - Revista de ...
O Jogo (conto) publicado em Histórias do Rio Negro - Revista de ...
O Jogo (conto) publicado em Histórias do Rio Negro - Revista de ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
O JOGO<br />
Vera <strong>do</strong> Val*<br />
A chuvarada caiu repentina e a praça esvaziou <strong>de</strong>pressa. Mas era daquelas<br />
chuvaradas que <strong>de</strong>spencam s<strong>em</strong> mais n<strong>em</strong> menos, <strong>de</strong> repente o céu fica preto e ela<br />
<strong>de</strong>saba estrondan<strong>do</strong>, s<strong>em</strong> conversa fiada, espanta <strong>de</strong>socupa<strong>do</strong>s, relampeja, ronca<br />
grosso e <strong>do</strong> mesmo jeito que chega vai. O povaréu correu, a roda <strong>em</strong>baixo <strong>do</strong> oiti<br />
gran<strong>de</strong> dispersou-se. O alvoroço era geral. A chuva interrompera o jogo <strong>de</strong> <strong>do</strong>minó<br />
com o tal <strong>de</strong> Zé e a coisa não podia ficar assim. O enxeri<strong>do</strong> já tinha ganha<strong>do</strong> duas<br />
vezes contra duas <strong>do</strong> velho Antenor. Aquela era a negra, estava marcada <strong>de</strong> véspera,<br />
tinha expecta<strong>do</strong>r, torcida e tu<strong>do</strong>. Ufanavam-se por Antenor ser o campeão da praça e<br />
das re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha aquele abesta<strong>do</strong> a lhe fazer frente?<br />
A noticia da negra correra <strong>de</strong> boca <strong>em</strong> boca, era assunto <strong>do</strong>s botequins,<br />
conversa <strong>de</strong> banca <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, das peixarias, <strong>de</strong> povaréu miú<strong>do</strong> que levava a vida por<br />
lá. Até na igreja a notícia corria. As beatas tinham puxa<strong>do</strong> um terço, diziam que o<br />
padre havia da<strong>do</strong> uma palavrinha com Deus e arranca<strong>do</strong> Dele uma promessa <strong>de</strong><br />
proteção. Antenor era uma unanimida<strong>de</strong>. No puteiro ele também tinha sua torcida.<br />
Contava-se que Ermelinda, uma fulaninha nova e <strong>em</strong>pertigada, tinha dito que era hora<br />
<strong>do</strong> velho tomar um tranco. Foi só dizer e apanhar. Antenor era freqüenta<strong>do</strong>r antigo,<br />
<strong>do</strong>no <strong>de</strong> fã clube ali. Indignadas com aquela saúva que era chegante e metida a<br />
sabida, as mais velhas <strong>de</strong>ram-lhe uma corrida e ela acabou por se encafuar no quarto,<br />
passan<strong>do</strong> b<strong>em</strong> <strong>do</strong>is ou três dias ressabiada e s<strong>em</strong> meter o nariz para fora.<br />
O hom<strong>em</strong> tinha a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>.<br />
Antenor morava com a filha. Viúvo, Dona Arminda morreu ce<strong>do</strong>, mulher<br />
trabalha<strong>de</strong>ira e gentil, fora o primeiro e único amor <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e o <strong>de</strong>ixara inconsolável.<br />
Era sapateiro e isso acabou por ficar fora <strong>de</strong> moda, serviço mesmo era raro, pois hoje<br />
<strong>em</strong> dia essa gente não conserta nada, joga fora, t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> se querer tu<strong>do</strong> novo e<br />
luzin<strong>do</strong>, lugar <strong>de</strong> coisa velha é lixo. Dos bons t<strong>em</strong>pos Antenor salvara a casa pequena,<br />
ainda fazia uns troca<strong>do</strong>s que compl<strong>em</strong>entavam a aposenta<strong>do</strong>ria miserável e permitiam<br />
ir tocan<strong>do</strong> a vida como podia. Tinha uma saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, alto e seco <strong>de</strong> carnes, um<br />
andar <strong>em</strong>pertiga<strong>do</strong> e ainda trazia os olhos amorosos, <strong>de</strong> longas pestanas que haviam<br />
seduzi<strong>do</strong> Arminda. A filha única, Teresa era viúva também, funcionaria publica, não<br />
tinha filhos n<strong>em</strong> nada que a pren<strong>de</strong>sse ou atrapalhasse. Vivia num apartamento
pequeno <strong>de</strong> <strong>do</strong>is quartos, <strong>em</strong> cima <strong>de</strong> uma loja, na rua lateral da praça; era a pouca<br />
coisa que o mari<strong>do</strong> havia lhe <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>, um mulato rixento que tanto armou nessa vida<br />
acaban<strong>do</strong> por morrer <strong>de</strong> faca nas costas <strong>em</strong> noite <strong>de</strong> bebe<strong>de</strong>ira. Teresa chorou e<br />
esgoelou pelo fina<strong>do</strong>, que afinal o hom<strong>em</strong> era ruim, mas era <strong>de</strong>la, <strong>de</strong> cama lhe servia<br />
b<strong>em</strong> e com fartura. A mesa ela r<strong>em</strong>ediava com o dinheiro da repartição, mas na cama<br />
não tinha jeito, era feia e <strong>de</strong>sengonçada, já fora um milagre ter acha<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, agora,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> velha, com os peitos lhe servin<strong>do</strong> <strong>de</strong> avental não era mais hora <strong>de</strong>ssas<br />
alegrias. No t<strong>em</strong>po <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> vivo ele costumava chegar pela madrugada, bêba<strong>do</strong>,<br />
subia a escada aos trambolhões, n<strong>em</strong> sabia direito on<strong>de</strong> se metia. Teresa aproveitava<br />
e se regalava <strong>de</strong> gozo. Com isso acaba<strong>do</strong> e enterra<strong>do</strong> ela precisava <strong>de</strong> alguém para<br />
aporrinhar e tratou <strong>de</strong> trazer o pai pra casa. On<strong>de</strong> já se viu morar sozinho nessa ida<strong>de</strong>,<br />
ela ali com quarto <strong>de</strong> sobra o que não se iria falar? Falar se fazia sim, naquelas<br />
re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas se falava o que se sabia e inventava o que não se sabia; diziam à boca<br />
pequena que Teresa estava cansada <strong>de</strong> esperar, na verda<strong>de</strong> queria mesmo é passar<br />
nos cobres a casa <strong>do</strong> pai que com aquela saú<strong>de</strong> toda ameaçava chegar aos c<strong>em</strong> anos.<br />
Tanto ela falou e azucrinou que Antenor, meio s<strong>em</strong> jeito, acabou preferin<strong>do</strong> aceitar<br />
morar com a filha que agüentar o falatório <strong>de</strong>la. Arrumou os trens <strong>de</strong>spediu-se <strong>do</strong><br />
cachorro vira-lata, companheiro das suas lidas que cachorro era d<strong>em</strong>ais para Teresa,<br />
tenha dó pai. Dona Matil<strong>de</strong>, a mulher da quitanda aceitou o bicho, andava precisada e<br />
Antenor mu<strong>do</strong>u-se <strong>de</strong> mala e cuia para o tal <strong>de</strong> apartamento. Mais que <strong>de</strong>pressa<br />
Teresa ven<strong>de</strong>u a casa <strong>do</strong> velho, <strong>em</strong>bolsou os cobres, está na poupança, pai, para uma<br />
hora <strong>de</strong> precisão.<br />
Em pouco t<strong>em</strong>po Antenor arrepen<strong>de</strong>u-se que não era hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> gaiola. A filha<br />
começou a tutelá-lo, vomitar regra, era hora disso e hora daquilo, olha a sujeira na<br />
cozinha, roupa suja é no balaio, não <strong>de</strong>ixa a luz acesa, pai, as coisas estão pela hora<br />
da morte. Tanto certo e erra<strong>do</strong> que a cabeça <strong>de</strong>le zoava. Mas o caminho era s<strong>em</strong> volta,<br />
<strong>do</strong> dinheiro da casa não sabia n<strong>em</strong> a cor, a aposenta<strong>do</strong>ria era mirrada e não era mais<br />
t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> aventurança. Sorte <strong>de</strong>le que ela trabalhava o dia to<strong>do</strong> e ele ficava solto, livre<br />
da apoquentação.<br />
Mal Teresa saia o velho ia para baixo <strong>do</strong> oitizeiro gran<strong>de</strong>; sua vida era lá, até a<br />
mesa <strong>de</strong> armar ele tinha arruma<strong>do</strong>, presente <strong>de</strong> um admira<strong>do</strong>r. Dali imperava na<br />
praça. Era rei s<strong>em</strong> coroa, herói <strong>de</strong> pobre, não tinha pedrisco naquelas bandas que não<br />
soubesse que seu Antenor era o gran<strong>de</strong> campeão <strong>de</strong> <strong>do</strong>minó. Era respeita<strong>do</strong>. Cantava<br />
<strong>de</strong> galo na roda <strong>de</strong> velhos, cada um tão mal arruma<strong>do</strong> na vida quanto ele, ban<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
95
mal pari<strong>do</strong>s que nada mais tinham a fazer <strong>do</strong> que ficar ali ao sol, vigian<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.<br />
Um dia brigavam entre si, era ciúme, outro dia, irmana<strong>do</strong>s nessa <strong>de</strong>sesperança <strong>de</strong><br />
velho, acabavam por se abraçar, um sabia da agrura <strong>do</strong> outro, o que lhe <strong>do</strong>ía na alma<br />
e chorava nos ossos. Seu Antenor era o í<strong>do</strong>lo, não perdia uma, era zaz trás o velho<br />
tinha cabeça, louvavam-lhe os bons olhos, a m<strong>em</strong>ória privilegiada, as mãos rápidas <strong>em</strong><br />
colocar a pedra certa, o tino para acuar adversário. Quan<strong>do</strong> algum <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong><br />
aparecia e se atrevia a <strong>de</strong>safiar o velho eles se cutucavam, se juntavam <strong>em</strong> risinhos e<br />
olhares cúmplices tangen<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sinfeliz para o oitizeiro gran<strong>de</strong> e lá esperavam Seu<br />
Antenor. Era uma sentada só. No silêncio até voar <strong>de</strong> besouro se ouvia, o hom<strong>em</strong> se<br />
concentrava, olhava firme para o <strong>de</strong>safiante e lia nele escrito na cara a pedra<br />
guardada, o segre<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong>. E não dava outra, <strong>em</strong> menos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z minutos, coroa<strong>do</strong><br />
pelos aplausos da sua corte <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ntada, ganhava a partida, s<strong>em</strong> lero n<strong>em</strong> meio termo.<br />
Aí se ufanava! Era importante! Sob aplausos discutia as jogadas, levava palmadinhas<br />
nas costas, parabéns, impava <strong>de</strong> orgulho. Nessa hora ele crescia, virava gente, tinha<br />
nome e sobrenome Antenor da Silva, se <strong>de</strong>stacava, era gran<strong>de</strong>, campeão. Naquele<br />
batalhão <strong>de</strong> <strong>de</strong>svali<strong>do</strong> ele era o rei, recolhia os louros e respingava sua importância <strong>em</strong><br />
to<strong>do</strong>s eles que se sentiam como foss<strong>em</strong> reinventa<strong>do</strong>s.<br />
A alegria ia esparraman<strong>do</strong> até se aproximar a hora <strong>de</strong> Teresa chegar <strong>em</strong> casa.<br />
Então Antenor arr<strong>em</strong>etia para o apartamento que estava cansa<strong>do</strong> da cantilena se ela o<br />
encontrasse por ali. On<strong>de</strong> já se viu um velho nessa ida<strong>de</strong> passar o dia vadian<strong>do</strong>,<br />
meti<strong>do</strong> com essa gentinha que não t<strong>em</strong> on<strong>de</strong> cair morta? Ele que se <strong>de</strong>sse ao respeito<br />
que ela não estava ali para passar vergonha, Dona Arminda se soubesse disso sentava<br />
na cova e haveria <strong>de</strong> sofrer e chorar, tinha si<strong>do</strong> uma mulher séria a vida toda e não<br />
estava agora para o mari<strong>do</strong> se comportar assim. A praça era lugar <strong>de</strong> vadio, <strong>de</strong> gente<br />
amalucada que não tinha para on<strong>de</strong> ir e n<strong>em</strong> sabia <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha. Um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> s<strong>em</strong><br />
eira n<strong>em</strong> beira, nada a fazer nessa vida. Pai <strong>de</strong>la não era para isso, ele que achasse<br />
serviço, limpasse alguma coisa, fosse passear na beira <strong>do</strong> rio, fizesse umas amiza<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>centes, a casa estava cheia <strong>de</strong> revista, a televisão, porque ele não se acomodava?<br />
Antenor ia diminuin<strong>do</strong> na ca<strong>de</strong>ira até se transformar <strong>em</strong> pó <strong>de</strong> traque. Duas ou três<br />
vezes ela achou a caixa <strong>de</strong> <strong>do</strong>minó <strong>do</strong> pai e <strong>de</strong>u fim rapidinho. Ele n<strong>em</strong> suspirou que<br />
sabia que ia ser pior, abaixava a cabeça cala<strong>do</strong>, fechava-se como caramujo, que ela<br />
nunca ia enten<strong>de</strong>r mesmo. Sentavam-se no sofá e lá iam os <strong>do</strong>is, ela ven<strong>do</strong> as novelas<br />
ele cabecean<strong>do</strong> <strong>de</strong> sono.<br />
96
O tal <strong>de</strong> Zé surgira <strong>do</strong> nada, mulato b<strong>em</strong> forni<strong>do</strong> e atarraca<strong>do</strong>, alguns diziam<br />
que era <strong>em</strong>barca<strong>do</strong>, não era daquelas bandas. Tinha um riso escancara<strong>do</strong> on<strong>de</strong> luziam<br />
<strong>do</strong>is <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ouro, um jeito <strong>de</strong> sabe-tu<strong>do</strong>, falava alto, gesticulava. Logo que chegou<br />
encostou a barriga no balcão <strong>do</strong> boteco e vangloriou-se que era invencível, jogo <strong>de</strong><br />
<strong>do</strong>minó era com ele, bateu no peito e cuspiu <strong>de</strong>bocha<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> lhe falaram <strong>de</strong><br />
Antenor, que o velho não lhe dava n<strong>em</strong> para o cheiro. Foi discussão <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> hora,<br />
os velhos ficaram ofendi<strong>do</strong>s, e <strong>de</strong>spencaram o <strong>de</strong>safio.<br />
A sorte estava lançada.<br />
A primeira Seu Antenor levou, era melhor <strong>de</strong> cinco. A segunda ele também<br />
levou e cresceu. Na terceira a coisa começou a ficar feia, o tal Zé foi sorrateiro,<br />
naquela <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> não quer nada e acabou por papar a partida. Foi um silencio dana<strong>do</strong>.<br />
Antenor sentiu um frio na barriga. Suspense geral. Na quarta ele viu a viola <strong>em</strong> caco.<br />
O abesta<strong>do</strong> levou e levou ligeiro. O público ficou s<strong>em</strong> fala, o herói <strong>de</strong>les estava<br />
ameaça<strong>do</strong>. Mas era chegada a hora <strong>de</strong> Teresa e a negra ficou para o dia seguinte. Zé<br />
ainda riu, fez pouco caso, achou que era covardia. Que se resolvesse tu<strong>do</strong> ali, <strong>de</strong><br />
imediato que historia <strong>de</strong> dia seguinte era essa? Saiu arrotan<strong>do</strong> grosso, mas enfim, era<br />
minoria.<br />
Antenor foi para casa e aquela noite não <strong>do</strong>rmiu. Sequer ouviu a cantilena da<br />
filha que <strong>de</strong>sfiava o rosário diário. Alhea<strong>do</strong> sentia-se a balançar. Parecia-lhe estar solto<br />
no ar, s<strong>em</strong> lastro, vôo cego, passarinho s<strong>em</strong> guarita. Foi para a cama, mas revia as<br />
jogadas na cabeça, pensava e pensava e tornava a pensar. Uma hora lhe pareceu ver<br />
o Zé, imenso, sain<strong>do</strong> da pare<strong>de</strong> com a boca escancarada na risada <strong>do</strong> <strong>de</strong>boche.<br />
Antenor <strong>em</strong> calafrios amiu<strong>do</strong>u-se. Na visag<strong>em</strong> a boca foi aumentan<strong>do</strong> e <strong>de</strong> repente não<br />
havia mais Zé, só uma boca gigantesca, pantagruélica e vermelhaça, a língua<br />
tr<strong>em</strong>elican<strong>do</strong>, os <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ouro luzin<strong>do</strong> e cuspin<strong>do</strong> as pedras <strong>do</strong> jogo uma atrás da<br />
outra. Elas iam <strong>de</strong>spencan<strong>do</strong>, voan<strong>do</strong> pelo quarto, baten<strong>do</strong> nas pare<strong>de</strong>s como se<br />
estivess<strong>em</strong> vivas, soterran<strong>do</strong> Antenor, lhe fazen<strong>do</strong> cova <strong>em</strong> vida, pedra e mais pedra e<br />
Teresa vestida <strong>de</strong> roupa <strong>de</strong> circo sain<strong>do</strong> da bocarra, <strong>de</strong> chicote <strong>em</strong> punho, rin<strong>do</strong><br />
tresloucada e repetin<strong>do</strong> a ladainha Suan<strong>do</strong> <strong>em</strong> bicas Antenor viu o dia raiar e não<br />
tinha prega<strong>do</strong> o olho.<br />
N<strong>em</strong> b<strong>em</strong> o aguaceiro tomou outro rumo, a enxurrada escorreu pelos bueiros, o<br />
céu já <strong>de</strong> novo azul e o sol pipocan<strong>do</strong>, os habitantes começaram a voltar. Foram se<br />
97
espalhan<strong>do</strong> pelos cantos, cada um tinha seu espaço cativo. Para baixo <strong>do</strong> oiti gran<strong>de</strong><br />
Seu Antenor veio arrastan<strong>do</strong> a mesa <strong>de</strong> armar, um olho na sua torcida, o outro no<br />
adversário. O safa<strong>do</strong> vinha achegan<strong>do</strong>, com cara <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, como se Seu Antenor<br />
fosse titica para ele. Os olhos <strong>do</strong> velho ardiam, o coração pinoteava, as tripas davam<br />
nó. Sabia que era in<strong>de</strong>pendência ou morte, via o olhar <strong>do</strong>s amigos, esperança e o<br />
me<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> mistura<strong>do</strong>, uma mixórdia <strong>de</strong> sentimentos. Acomo<strong>do</strong>u-se na ca<strong>de</strong>ira, olhou<br />
<strong>em</strong> volta <strong>de</strong>vagar, lá estavam to<strong>do</strong>s. Dona Marlene da pensão, qu<strong>em</strong> diria até ela toda<br />
elegante, Seu Jerú tinha larga<strong>do</strong> o balcão, a molecada <strong>do</strong> colégio, Dona Dora, com o<br />
terço na mão, tinha até arrasta<strong>do</strong> o padre com ela, que nessas horas vale tu<strong>do</strong> e o<br />
vigário era quase da família. Até as putas engrossavam a torcida. Foi aí que Seu<br />
Antenor cresceu. Estufou o peito, pariu uma corag<strong>em</strong> que não tinha, ela veio<br />
espr<strong>em</strong>ida, mas veio. Que era velho ele sabia, mas velho não era lixo, n<strong>em</strong> carta fora<br />
<strong>do</strong> baralho. Havia <strong>de</strong> mostrar ao enxeri<strong>do</strong> que ainda usava calças, que no império <strong>de</strong>le<br />
ninguém triscava. O tal <strong>de</strong> Zé sentiu o clima e tratou <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> bazófia, percebeu<br />
que a coisa era feia. Um suspiro fun<strong>do</strong> veio rolan<strong>do</strong> da platéia. Era chegada a hora.<br />
Tu<strong>do</strong> aconteceu tão <strong>de</strong>pressa que n<strong>em</strong> dá gosto <strong>de</strong> contar. Podia-se cortar o<br />
silêncio com faca <strong>de</strong> tão <strong>de</strong>nso que ele era. Era um silêncio tão forte que se<br />
passarinho voasse nele ficava <strong>de</strong> asa quebrada; se duvidar muito ali ninguém n<strong>em</strong><br />
respirava.<br />
Zaz trás, s<strong>em</strong> fricote Seu Antenor foi papan<strong>do</strong>, o Zé botava sua pedra o velho<br />
matava <strong>em</strong> cima. Uma, duas, três, seu Antenor lapt... Quan<strong>do</strong> se viu tinha acaba<strong>do</strong>. o<br />
povaréu n<strong>em</strong> acreditava, precisou <strong>de</strong> uns <strong>do</strong>is minutos para explodir <strong>em</strong> palmas, risos<br />
e faniquitos.<br />
Carregaram o velho nas costas, igual joga<strong>do</strong>r <strong>de</strong> bola. Mas aquilo era mais<br />
forte, era uma risa<strong>do</strong>na <strong>de</strong> alma, uma lavada <strong>de</strong> honra, um botar prumo no mun<strong>do</strong>.<br />
Não havia ninguém ali que não se sentisse resgata<strong>do</strong> e vinga<strong>do</strong>, fosse <strong>do</strong> que fosse,<br />
que nesta vida motivo <strong>de</strong> vingança não falta. Seu Jerú abriu o barracão <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
armazém, e o povo espalhou-se. Cerveja para com<strong>em</strong>orar era o que mais tinha, até<br />
uns bolinhos apareceram na hora. Brin<strong>de</strong>s e mais brin<strong>de</strong>s, Seu Antenor no lugar <strong>de</strong><br />
honra era paparica<strong>do</strong>, o padre <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> direito, e a <strong>do</strong>na <strong>do</strong> puteiro <strong>do</strong> outro. Do tal<br />
<strong>de</strong> Zé n<strong>em</strong> cheiro que o fulano escafe<strong>de</strong>u s<strong>em</strong> ninguém n<strong>em</strong> ver, e também não fazia<br />
falta. Foi quan<strong>do</strong> Teresa chegou. Vinha vermelha e esbaforida, on<strong>de</strong> está aquele velho<br />
safa<strong>do</strong> que ainda me mata <strong>do</strong> coração.<br />
98
Seu Antenor viu a filha chegan<strong>do</strong> e já abrin<strong>do</strong> a boca pra romper na cantilena.<br />
O velho ainda teve um titubeio, pelo rabo <strong>do</strong> olho percebeu que to<strong>do</strong>s o olhavam. Foi<br />
então que se levantou impávi<strong>do</strong> colosso, engrossou a voz e, antes <strong>de</strong>la dizer um a,<br />
soltou um bravo e heróico grito retumbante:<br />
- Teresa, foda-se.<br />
* Vera <strong>do</strong> Val. Escritora. Paulista, radicada na Amazônia. bacharel pela Faculda<strong>de</strong><br />
Filosofia Ciências e Letras <strong>de</strong> Ribeirão Preto/USP. Principais livros <strong>publica<strong>do</strong></strong>s. Águas<br />
Rubras. O Imaginário da Floresta (Matins Fontes, 2007) e Historias <strong>do</strong> rio <strong>Negro</strong><br />
(Martins Fontes, 2007).<br />
99