11.04.2013 Views

Duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase ... - anpap

Duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase ... - anpap

Duração / temporalidade / desmaterialização (ou quase ... - anpap

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

<strong>Duração</strong> / <strong>temporalidade</strong> / <strong>desmaterialização</strong> (<strong>ou</strong> <strong>quase</strong>) / colaboração<br />

na esfera pública: dois casos de interação explícita com as comunidades e uma<br />

viagem solitária de artistas latino-americanos (<strong>ou</strong> <strong>quase</strong>)<br />

Dr. Luiz Sérgio de Oliveira<br />

Professor Associado I do Departamento de Arte<br />

e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte<br />

da Universidade Federal Fluminense, Niterói<br />

Resumo:<br />

A produção mais ambiciosa da arte contemporânea articulada na esfera pública a partir do<br />

final dos anos 1980 tem apresentado algumas características que lhes são consistentes, tais<br />

como duração, <strong>temporalidade</strong>, <strong>desmaterialização</strong> e colaboração com as comunidades. No<br />

presente estudo, depois de buscarmos uma melhor compreensão dessas características<br />

apoiados em autores como Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire<br />

Doherty, Mary Jane Jacob e Miwon Kwon, entre <strong>ou</strong>tros, examinamos (mesmo que de forma<br />

sucinta), como essas características se apresentam em três projetos de três artistas latinoamericanos<br />

(<strong>ou</strong> <strong>quase</strong>): o chileno Alfredo Jaar, o mexicano Gustavo Artigas e o belgomexicano<br />

Francis Alÿs.<br />

Palavras-chave: arte contemporânea – esfera pública - comunidade<br />

Abstract:<br />

The most ambiti<strong>ou</strong>s contemporary art that articulated itself in the public sphere since the late<br />

1980s has presented some consistent characteristics, such as duration, temporality,<br />

dematerialization and collaboration with communities. In this study, after making use of<br />

authors like Grant H. Kester, Patricia C. Phillips, Eleonor Heartney, Claire Doherty, Mary<br />

Jane Jacob and Miwon Kwon, among others. for a better comprehension of those<br />

characteristics, we will examine (even in a very short manner) how those characteristics appear<br />

in three art projects by three Latin-American (or almost) artists: the Chilean Alfredo Jaar, The<br />

Mexican Gustavo Artigas and the Belgian-Mexican Francis Alÿs.<br />

Keywords: contemporary art – public sphere - community<br />

1<br />

<strong>Duração</strong>: princípio: fim<br />

“A preocupação literalista com o tempo – mais precisamente com a<br />

duração da experiência – é, conforme sugiro, paradigmaticamente teatral, [...] e que<br />

essa preocupação marca uma profunda diferença entre a arte literal e a pintura e<br />

escultura modernista” i ; dessa maneira poderíamos sintetizar os argumentos do influente<br />

crítico e historiador da arte modernista Michael Fried, em sua contenda com a arte<br />

minimalista, chamada por ele de arte literal (literalist art). Fried apontava a relação da<br />

arte minimalista com a <strong>temporalidade</strong> como algo que a afastava do campo mais<br />

399


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

específico das artes visuais para inserí-la na esfera do teatro. Na sua resistência em<br />

favor da arte modernista alicerçada no formalismo, ao lado de críticos como Clive Bell<br />

e Clement Greenberg, Fried afirm<strong>ou</strong> que “é pela virtude de sua presença e<br />

instantaneidade que a pintura e escultura modernista derrotam o teatro” ii .<br />

Para Grant H. Kester, professor da Universidade da Califórnia, San<br />

Diego, a perspectiva de Michael Fried em defesa da “experiência instantânea”<br />

provocada “pela arte autêntica o coloca junto a uma tradição filosófica bem estabelecida<br />

que define as artes visuais através de sua habilidade de transcender a constrangimentos<br />

temporais da literatura” iii , afirmando ainda que o “papel crescentemente central exercido<br />

pela experiência visual do espectador na arte modernista está tipicamente associado com<br />

a emergência do impressionismo”. No entanto, Kester, apoiado Thomas Crow, lembra<br />

que artistas como Joseph Kosuth, Marcel Broodthaers, entre <strong>ou</strong>tros, desafiaram o<br />

“fetiche da visualidade” (expressão de Crow) do modernismo, e que, para além desse<br />

distanciamento da opticalidade, também a forma como o espectador se relacionava com<br />

a obra de arte era desafiada nos anos 1960 e 1970: “especificamente, este período<br />

testemunha a criação de uma ampla variedade de obras que convidar, e dependem do<br />

direto envolvimento físico do espectador” iv .<br />

Certamente esse debate acerca da produção conceitual dos anos 1960/70<br />

não é reduzido (por Crow <strong>ou</strong> Kester) a uma reação ao formalismo e à instantaneidade da<br />

apreensão da pintura modernista pelo espectador, já que, conforme aponta a artista<br />

Andrea Fraser, há um componente político que permeia esse processo de produção,<br />

circulação e fruição da arte que precisa ser investigado, ponderando que “a crítica da<br />

autonomia do objeto de arte, ao final dos anos 1960, tinha se transformado em mais que<br />

uma rejeição ao formalismo greenberguiano [conforme fic<strong>ou</strong>] evidente nos discursos da<br />

Art Workers Coalition [...] em 1969”, configurando-se como “uma crítica dos usos aos<br />

quais as obras de arte são confrontadas: os interesses econômicos e políticos aos quais<br />

elas [as obras de arte] servem” v .<br />

De qualquer maneira, para efeito de nossa argumentação aqui neste<br />

momento, podemos afirmar esse componente temporal incorporado à obra de arte pelos<br />

artistas minimalistas (e por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark no Brasil)<br />

ganharia contornos mais radicais a partir das experiências performáticas ainda nos anos<br />

1960, com a completa desaparição da obra em termos tradicionais de fisicalidade,<br />

transmutada em mero evento, como em Following Piece (1969) de Vito Acconci, e que<br />

alcançaria enorme reverberação na produção de arte mais ambiciosa na esfera pública a<br />

400


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

partir dos anos 1990, abandonando uma tradicional atitude que permeava (permeia) a<br />

produção de arte para os espaços públicos com um sentido de perenidade, um tempo<br />

que, por ser eterno, não carece de urgência. As obras monumentais dos espaços públicos<br />

não se degladiam com a duração da dimensão temporal porque parecem sempre ter<br />

ocupado o lugar que ocupam, e que ali permanecerão ad eternum, não disputando a<br />

atenção do passante <strong>quase</strong> sempre absorto em seus pensamentos e engolfado pelo seu<br />

próprio tempo mental. Por <strong>ou</strong>tro lado, muito dessa arte ambiciosa produzida na<br />

contemporaneidade na esfera pública caracteriza-se como evento, com hora marcada<br />

para começar, e mais importante, com hora marcada para terminar, circunscrita em uma<br />

duração que não deve ser ignorada por quem não quiser ignorar a própria obra.<br />

2<br />

Temporalidade: aqui: agora<br />

Diante da multiplicidade e dinamismo dos contextos políticos e culturais<br />

da esfera pública, Patricia C. Phillips, crítica de arte e diretora da School of Fine and<br />

Performing Arts da State University of New York (SUNY) em New Paltz, sugere que as<br />

experiências de arte pública, ainda relativamente recentes, ainda em seu estágio<br />

laboratorial, sejam marcadas pela efemeridade, pela <strong>temporalidade</strong>:<br />

Como a composição e o contexto da vida pública mudam com os anos, a arte<br />

pública deve esforçar-se para alcançar novas articulações e novas expectativas.<br />

Ela deve confiar na sua flexibilidade, na sua adaptabilidade para ser ao mesmo<br />

tempo precisa e oportuna, específica e temporária. Arte pública efêmera provê<br />

uma continuidade para a análise das condições e configurações cambiantes da<br />

vida pública, sem requerer um congelamento necessário para expressar valores<br />

eternos para uma audiência ampla com formações diferenciadas e<br />

freqüentemente com diferentes imaginações verbais e visuais vi .<br />

A arte pública efêmera seria uma condição imprescindível para as<br />

práticas de arte que se realizam na esfera pública, deixando de simplesmente ocupar os<br />

espaços públicos das cidades contemporâneas para permitir uma dilatação do espectro<br />

dos “tipos de questões que elege para discutir, e não por sua acessibilidade e pelo<br />

volume de espectadores” vii , patrocinando sua contaminação crescente com questões<br />

políticas do cotidiano, enredando-se com a cultura do fazer diário da vida<br />

contemporânea. Um processo de cultura que se (i)materializa para além dos muros dos<br />

museus, das salas de concerto e dos grandes teatros de ópera. Um processo de cultura<br />

que não precisa ser criado em ateliês, que se insere nas práticas pós-ateliê, e que está em<br />

401


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

processo permanente de (re)construção, para sempre inconcluso, para sempre<br />

inacabável, em permanente transformação.<br />

Se essa dimensão temporal está intimamente imbricada com a questão da<br />

duração, em especial quando nos deparamos com projetos/obras que se constituem na<br />

esfera do evento, do efêmero, essas duas dimensões, associadas à perspectiva<br />

desmaterializante e ao desejo dialógico de colaboração com as comunidades, permeiam<br />

com maior <strong>ou</strong> menor intensidade, mas sempre de forma marcante, a produção dos<br />

artistas latino-americanos que examinaremos adiante.<br />

3<br />

Desmaterialização: (<strong>ou</strong> <strong>quase</strong>)<br />

Os projetos sobre os quais nos debruçaremos adiante dão relevo ao<br />

espalhamento da arte que se articula em torno de um eixo no qual domina a interação<br />

com a comunidade, fazendo com que sua eventual materialidade se apresente como uma<br />

condição de absoluta lateralidade e desnecessidade, uma produção de arte geralmente<br />

orientada para o processo. Essa desconstrução de expectativas teria como aspecto<br />

positivo liberar os artistas - que articulam suas obras na esfera pública - do<br />

compromisso da geração de “resíduos artísticos”, permitindo que a obra mais que se<br />

materializar, simplesmente aconteça, em um processo identificado como a<br />

“<strong>desmaterialização</strong> da arte pública” pela crítica norte-americana Eleonor Heartney ainda<br />

no início da década de 1990 viii . Por <strong>ou</strong>tro lado, essa impermanência, tanto aspecto físico<br />

como temporal, em produções de arte que se configuraram como eventos únicos,<br />

certamente dificultam o processo de acompanhamento pelo público.<br />

A ênfase na interação comunitária, dialogando na volatilidade do<br />

processo de gestos fugidios condenados ao desaparecimento, tem empurrado muito<br />

dessa produção para um “não-sei-onde”, para um não-lugar, uma dispersão territorial<br />

dos projetos de arte “derramados” por localidades distintas e distantes dos tradicionais<br />

espaços da arte. Dessa maneira, essas práticas de arte, que não se preocupam em<br />

produzir qualquer remanescente objetual e que enfatizam sua aderência às comunidades<br />

interagidas, representam uma clara definição dessas comunidades como seu público, em<br />

um processo de endogeneidade e autofagia, em que os projetos vão sendo absorvidos e<br />

consumidos na medida que se desenvolvem, sendo usufruídos pela própria comunidade<br />

co-autora no ato da criação.<br />

402


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

Esse processo de definição da comunidade aderida ao projeto como<br />

sendo igualmente seu público privilegiado, e eventualmente o único que é, pelo menos<br />

em um primeiro momento, considerado, tem empurrado o “público secundário” ix para<br />

uma zona de alienação, abandonado à própria sorte em um buraco negro. Esse<br />

movimento de redefinição das audiências foi detectado e apontado por Mary Jane Jacob<br />

ainda em 1991:<br />

Na medida em que os artistas têm dado maior consideração à audiência no<br />

desenvolvimento de seus projetos, trazendo para dentro de seus trabalhos aqueles<br />

usualmente ausentes das instituições de arte, [...] muitos da audiência<br />

[tradicional] da arte têm escapado. [Dessa maneira] a audiência não tem sido<br />

ampliada, mas substituída. De fato, é essa mudança na composição da audiência,<br />

e sua posição no centro criativo, que faz dessa arte pública algo tão novo x .<br />

4<br />

Colaboração: artesfera pública<br />

A articulação da arte no domínio público engloba o desejo de<br />

aproximação entre artista e público, com a promoção eventual <strong>ou</strong> não do baralhamento<br />

das identidades. Embora não seja o espalhamento das obras/projetos nos espaços<br />

públicos a única condição indispensável para originar a interação entre artista e público<br />

(o que tem sido exaustivamente debatido na história da arte recente), por <strong>ou</strong>tro lado,<br />

certamente configura-se como uma circunstância vital para que tal interação seja bem<br />

sucedida.<br />

O reconhecimento da relevância da situação e do processo de interação<br />

comunitária tem permeado a produção de arte no domínio público desde o final da<br />

década de 1980. Desde então, as articulações da arte no domínio público têm propiciado<br />

que o “nosso entendimento de site mudasse de uma locação física, fixa, para algum<br />

lugar <strong>ou</strong> algo constituído através de processos sociais, econômicos, culturais e<br />

políticos” xi .<br />

Nesse contexto histórico inundado por novos termos e novas práticas que<br />

enfatizavam o processo de interação comunitária, como community-based art xii ;<br />

esparramando-se (e abarcando) não somente diferentes paisagens naturais, mas acima<br />

de tudo comprometendo-se com a cultura do cotidiano, a obra de arte deix<strong>ou</strong> o abrigo<br />

institucional para imbricar-se com a comunidade em um contato mais direto,<br />

ressignificando essa comunidade como o núcleo central da produção de arte,<br />

promovendo a realocação mais-que-democrática de extratos da sociedade que haviam<br />

403


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

sido negligenciados por uma parcela da produção de arte modernista, deixando de ser<br />

uma periferia relegada a uma situação de extrema lateralidade, uma “não-situação”, para<br />

se transformar na sua raison d’être, “<br />

No entanto, esse cenário desafiador de imbricação e colaboração com as<br />

comunidades parece ganhar um componente de dramaticidade quando envolve artistas<br />

vindos de regiões distantes daquelas que circundam <strong>ou</strong> são circundadas por essas<br />

comunidades, apresentando-se em situações que lhes altamente inusitadas, demandando<br />

estratégias que propiciem um melhor entendimento e um maior comprometimento por<br />

parte dos artistas com esses contextos a desafiar seu processo criativo. E esse tem sido<br />

um fenômeno muito presente na contemporaneidade em que os artistas itineram pelo<br />

planeta atendendo às novas práticas da arte; na medida em que a obra de arte sai de<br />

cena, o artista ganha mobilidade, deixando claro que agora quem viaja é o artista, não<br />

mais a obra; um artista que viaja para prestar um serviço de arte, através da criação de<br />

um evento, uma performance, um projeto, eventualmente uma obra, que por sua vez<br />

ficará atada aquela realidade em que foi gerada depois da partida do artista. Conforme<br />

observado por Miwon Kwon, a relevância de um profissional parece ser medida pela<br />

milhagem:<br />

Quanto mais viajamos para trabalhar, quanto mais somos solicitados a prover<br />

instituições em <strong>ou</strong>tras partes do país e do mundo com nossa presença e serviços,<br />

quanto mais cedemos à lógica do nomadismo, podemos assim dizer, mais somos<br />

levados a nos sentir desejados, procurados, validados e relevantes xiii .<br />

Esse “artista itinerante, [...] não mais um criador de objetos atado a um<br />

ateliê, trabalhando agora essencialmente sob demanda” xiv , precisará de muita cautela e<br />

perspicácia para simplesmente não naufragar nas facilidades, ilusões e armadilhas dos<br />

contextos que se lhe apresentam. A começar pela própria maneira como essa<br />

apresentação se dá.<br />

Miwon Kwon lembra que “a interação entre o artista e um determinado<br />

grupo comunitário não é baseada em uma relação não-mediada. Ao contrário, está<br />

circunscrita dentro de uma complexa rede de motivações, expectativas e projeções entre<br />

todos os envolvidos” xv . Portanto, o artista, ao deixar o seu ateliê-bolha, deixa<br />

igualmente para trás o seu isolamento, tornando-se permeável a essa “complexa rede de<br />

motivações, expectativas e projeções”, sendo necessário tentar evitar que o artista seja<br />

instrumentalizado e reduzido por ansiedades e interesses alheios.<br />

404


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

Mas essa é, por certo, uma conjuntura de riscos. Enquanto os objetos de<br />

arte, criados pelos artistas a partir de seus ateliês-enclaves no mundo, circulavam por<br />

diferentes situações e universos, abrigados pelas instituições de arte e involucrados em<br />

sua autonomia, tanto uns quanto <strong>ou</strong>tros – artistas e obras – pareciam protegidos. Nessa<br />

nova situação, é o artista e não mais a obra que se expõe; que se expõe aos riscos e às<br />

armadilhas da incompreensão, da superficialidade, da simplificação, da manipulação, do<br />

equívoco.<br />

5<br />

Dois casos de interação explícita: uma viagem solitária:<br />

artistas latino-americanos: (<strong>ou</strong> <strong>quase</strong>)<br />

Os projetos de arte examinados nesta seção foram todos desenvolvidos<br />

na região do extremo oeste da fronteira do México com os Estados Unidos, entre as<br />

cidades de Tijuana e San Diego, no ano emblemática de 2000, por encomenda da mostra<br />

inSITE.<br />

O primeiro projeto a ser examinado, desenvolvido pelo artista<br />

chileno, residente em Nova York, Alfredo Jaar (Santiago, 1956), apresenta<br />

essas diversas dimensões que têm configurado muito da produção de arte<br />

contemporânea na esfera pública: duração, <strong>temporalidade</strong>, <strong>desmaterialização</strong> e<br />

colaboração com a comunidade. La Nube / The Cl<strong>ou</strong>d foi realizado por Jaar na<br />

manhã de 14 de <strong>ou</strong>tubro de 2000 com a colaboração de diversos grupos de<br />

ativistas que apoiam os migrantes na região de fronteira, além das<br />

comunidades que se deslocaram até Valle del Matador, Tijuana, <strong>ou</strong> Goat<br />

Canyon, San Diego, para participar de uma obra/celebração em homenagem<br />

aos <strong>quase</strong> 2.000 mortos na travessia ilegal da fronteira desde 1994. Uma<br />

nuvem de mais de 1.500 balões brancos que pareciam querer ganhar asas e<br />

partir para <strong>ou</strong>tras terras. Mas estavam presos, amarrados, cerceados, como<br />

sonhos cerrados, em uma situação que se assemelha àquela vivenciada pelos<br />

que desejam (e não conseguem) cruzar a fronteira.<br />

A obra The Cl<strong>ou</strong>d / La Nube (Fig. 1) “nasceu da indignação, mas o<br />

resultado queria ser poesia. Eu queria insistir com esse minuto de silêncio porque a<br />

morte já é algo cotidiano na fronteira, a morte foi banalizada” xvi , e foi realizada nos dois<br />

405


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

lados, nos dois países, nos dois mundos... simultaneamente, com a sonoridade de<br />

Albinoni, Bach e Veracini flutuando dos dois lados da linha, entremeada pela leitura de<br />

dois poemas – Tras el muro e El descenso - do poeta de Tijuana, Victor Hugo Limón.<br />

O minuto de silêncio que se seguiu à leitura dos poemas de Limón<br />

marc<strong>ou</strong> com profunda tristeza o clímax da obra-cerimônia, momento em que os balões<br />

brancos foram finalmente liberados, ganhando asas contra o céu azul daquela manhã de<br />

<strong>ou</strong>tono no hemisfério norte, como que homenageando Catalina Enríquez, Félix Zavata,<br />

Guadalupe Romero, Trinidad Santiago, Aureliano Cabrera, entre <strong>ou</strong>tros,...<br />

silenciosamente.<br />

O projeto de Gustavo Artigas (Cidade do México, 1970), The Rules of<br />

the Game / Las reglas del juego (Fig. 2), foi realizado no começo da tarde do dia 13 de<br />

<strong>ou</strong>tubro de 2000, com mais de trinta jovens atletas reunidos no ginásio de esportes do<br />

Preparatória Lázaro Cárdenas, colégio de ensino secundário de Tijuana, para a<br />

realização de um jogo / dois jogos.<br />

Dois jogos / um jogo. Disputados no mesmo espaço, no mesmo dia, na<br />

mesma hora. Dois locutores anunciavam o evento, em espanhol para o futsal, em inglês<br />

para o basquetebol. O apito inicial de uma partida vale para as duas. A bola rola de um<br />

lado, a <strong>ou</strong>tra quica do mesmo lado, e todos correm juntos, ao mesmo tempo, no mesmo<br />

espaço. Vinte atletas em quadra, um espaço que regularmente só comportaria dez por<br />

vez. É falta, a barreira é formada dentro do garrafão. Invasão da área? Não, ele não está<br />

nesse jogo, está no <strong>ou</strong>tro. E uma bola vai quicando enquanto a <strong>ou</strong>tra rola. São Las<br />

reglas del juego / The Rules of the Game.<br />

Gustavo Artigas, fazendo uso de esportes consagrados entre os de maior<br />

paixão e prática mais disseminada dos dois lados da fronteira, busc<strong>ou</strong> criar uma<br />

obra/evento que provocasse uma reflexão acerca das relações entre comunidades<br />

distintas, distanciando-se de qualquer formulação que sugerisse uma proposição de<br />

enfrentamento <strong>ou</strong> assimilação, mas que buscasse exemplificar as complexidades dessas<br />

relações: “a pesar de cada juego diferente, la tolerancia necesaria para convivir se basa<br />

en las negociaciones que hacemos para compartir ese espacio común” xvii .<br />

O projeto de Artigas enfatiza a dimensão de duração da obra, uma vez<br />

que, nesse caso, o projeto de arte é redefinido por regras que lhe são exteriores e que<br />

406


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

demarcam a experiência artística pelo tempo específico da prática esportiva que<br />

constitui a obra. São as regras do jogo.<br />

Contrariando nossa percepção fundada na geometria euclidiana que<br />

aponta a linha reta como a menor distância entre dois pontos, Francis Alÿs (Antuérpia,<br />

Bélgica, 1959) empreendeu uma viagem solitária e sinuosa ao redor do planeta com o<br />

objetivo de evitar a travessia da fronteira entre México e Estados Unidos. Partindo de<br />

Tijuana, tinha como meta de chegada o ponto exato da Grande San Diego que dialoga<br />

rigorosamente com seu ponto de partida, do <strong>ou</strong>tro lado, tendo a fronteira no meio. Cerca<br />

de um mês de viagem, passando pela Cidade do México, Santiago do Chile, Sidney,<br />

Xangai, Seul, Seattle, Los Angeles, San Diego, até completar o percurso caminhando de<br />

novo até a linha de fronteira, tendo atingido o <strong>ou</strong>tro lado sem cruzar a linha de fronteira,<br />

justificando o título da obra – The Loop.<br />

O projeto de Francis Alÿs filia-se à herança da produção articulada em<br />

torno da crise do objeto de arte dos anos 1960, desprezando <strong>ou</strong> eventualmente abolindo<br />

por completo qualquer produto resultante de suas ações e gestos: “me interesan más las<br />

actitudes que el producto”, sentenci<strong>ou</strong> Francis Alÿs, artista belga residente na cidade do<br />

México, em 1997, como uma mantra que vem sendo ecoado através das décadas desde<br />

que artistas ao redor do mundo – Europa, Estados Unidos, Japão, América Latina –<br />

decidiram se dedicar ao processo de <strong>desmaterialização</strong> do objeto de arte, eventualmente<br />

suprimindo-o.<br />

A peregrinação desse artista (<strong>quase</strong>) latino-americano - Francis Alÿs (Fig.<br />

3) - por três continentes parecia reciclar e ampliar em escala as caminhadas urbanas de<br />

Vito Acconci - Following Piece - de 1969, com a diferença de que a diminuta<br />

comunidade de Acconci – definida em três membros: aquele a quem o artista seguia, o<br />

próprio artista, e aquele que seguia os dois, o(a) fotógrafo(a) a documentar a “obra”, em<br />

Alÿs parecia limitada a apenas o artista, quando muito acompanhado daquele “<strong>ou</strong>tro”<br />

em que o próprio artista se transmutava, um <strong>ou</strong>tro com o qual se funde e que tem<br />

percorrido mundos, <strong>ou</strong> mais explicitamente, os mundos da arte, na condição de artistaviajante,<br />

de artista-turista, artista-itinerante, eventualmente solicitado a atuar como um<br />

artista-etnógrafo, como sugere Hal Foster, tentando encontrar replicações para as<br />

situações desconhecidas que defronta e que desafiam sua compreensão.<br />

407


Notas:<br />

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

i Michael FRIED. “Art and Objecthood”. In: BATTCOCK , Gregory (ed.). Minimal Art: a Critical Anthology.<br />

Nova York: E. P. Dutton, 1968, p. 145.<br />

ii Idem, 146.<br />

iii KESTER, Grant H. Conversation Pieces: Community + Communication in Modern Art. Berkeley, Cal.:<br />

University of California, 2004, p. 50.<br />

iv Idem, 52-53.<br />

v FRASER, Andrea. Museum Highlights: The Writings by Andrea Fraser. (editado por Alexander Alberro).<br />

Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2005, p. 56-57.<br />

vi PHILLIPS, Patricia C. “Temporality and Public Art”. In: SENIE, Harriet F., e WEBSTER, Sally (eds.).<br />

Critical Issues in Public Art. Washington e Londres: Smithsonian Institution Press, 1998, p. 303.<br />

vii Idem, 298.<br />

viii Eleonor Heartney recicl<strong>ou</strong> o termo cunhado por Lucy Lippard em Six Years: the Dematerialization of the<br />

Art Object from 1966 to 1972 (Berkeley, Cal.: University of California Press, 1973.), embora Lippard<br />

afirmasse a própria imprecisão do termo, “já que uma peça de papel <strong>ou</strong> uma fotografia é tão objetual<br />

<strong>ou</strong> tão ‘material’ quanto uma tonelada de chumbo, [e que] não é realmente uma questão de quanta<br />

materialidade uma obra tem, mas o que o artista está fazendo com isso”. (p. 5-6). A respeito da<br />

“<strong>desmaterialização</strong> da arte pública”, ver HEARTNEY, Eleanor. “The Dematerialization of Public Art”. In:<br />

. Critical Condition: American Culture at the Crossroads. Cambridge, Ingl.: Cambridge University<br />

Press, 1997, p. 206-218.<br />

ix DOHERTY, Claire. “The New Situationists”. In: (ed.). From Studio to Situations: Contemporary<br />

Art and the Questions of Context. Londres: Black Dog Publishing, 2004, p.9.<br />

x JACOB, Mary Jane. “An Unfashionable Audience”. In: LACY, Suzanne. Mapping the Terrain – New<br />

Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59.<br />

xi KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. Cambridge, Mass.:<br />

The MIT Press, 2002, p. 10.<br />

xii Community-based, new genre public art, context-specific, audience-oriented, site-responsive, relational<br />

art, para citar apenas alguns desses termos.<br />

xiii KWON, op. cit., 2002, p. 157.<br />

xiv Ibid., p. 46.<br />

xv KWON, op. cit., 2002, p. 141.<br />

xvi Conforme texto do site do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes do governo mexicano.<br />

Disponível em: . Acesso: 15 ago.<br />

2003.<br />

xvii Proposta do artista. “The Rules of the Game”, Gustavo Artigas, inSITE2000. (Arquivos inSITE, San<br />

Diego).<br />

Referências bibliográficas:<br />

DOHERTY, Claire. “The New Situationists”. In: (ed.). From Studio to Situations:<br />

Contemporary Art and the Questions of Context. Londres: Black Dog Publishing,<br />

2004, p.9.<br />

FRASER, Andrea. Museum Highlights: The Writings by Andrea Fraser. (editado por<br />

Alexander Alberro). Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2005, p. 56-57.<br />

FRIED, Michael. “Art and Objecthood”. In: BATTCOCK , Gregory (ed.). Minimal Art: a<br />

Critical Anthology. Nova York: E. P. Dutton, 1968, p. 145.<br />

HEARTNEY, Eleanor. “The Dematerialization of Public Art”. In: . Critical<br />

Condition: American Culture at the Crossroads. Cambridge, Ingl.: Cambridge<br />

University Press, 1997, p. 206-218.<br />

JACOB, Mary Jane. “An Unfashionable Audience”. In: LACY, Suzanne. Mapping the<br />

Terrain – New Genre Public Art. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996, p. 59.<br />

KESTER, Grant H. Conversation Pieces: Community + Communication in Modern Art.<br />

Berkeley, Cal.: University of California, 2004, p. 50.<br />

KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity.<br />

Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002, p. 157.<br />

408


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

PHILLIPS, Patricia C. “Temporality and Public Art”. In: SENIE, Harriet F., e WEBSTER,<br />

Sally (eds.). Critical Issues in Public Art. Washington e Londres: Smithsonian<br />

Institution Press, 1998, p. 303.<br />

KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity.<br />

Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002, p. 157.<br />

Currículo resumido:<br />

Luiz Sérgio de Oliveira é artista, Professor Associado I do Departamento de Arte da<br />

Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, e Coordenador do Programa de<br />

Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF. Mestre em Arte pela New York<br />

University (NYU) e D<strong>ou</strong>tor em Teoria e História da Arte pela Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro (UFRJ).<br />

Figuras:<br />

Fig. 1 – Alfredo Jaar<br />

La Nube / The Cl<strong>ou</strong>d<br />

2000<br />

Fig. 2 – Gustavo Artigas<br />

The Rules of the Game / Las reglas del juego<br />

2000<br />

409


17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas<br />

Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis<br />

Fig. 3 – Francis Alÿs<br />

410

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!