11.04.2013 Views

EM QUE SE TRADUZ A INGENUIDADE ... - Lenita Esteves

EM QUE SE TRADUZ A INGENUIDADE ... - Lenita Esteves

EM QUE SE TRADUZ A INGENUIDADE ... - Lenita Esteves

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

asileiro prossegue com a publicação da tradução da obra, que acabou tendo dois finais diferentes,<br />

sem que nada tivesse sido explicado ao público (Idem). Nas palavras de Machado,<br />

Essas traduções eram feitas sem qualquer autorização dos autores ou de seus editores. Nesta<br />

banda de cá do Atlântico, ninguém respeitava a propriedade intelectual. Mesmo porque<br />

inexistiam legislação sobre direito autoral e convenções internacionais. Algumas vezes, porém,<br />

a mistificação ia longe demais, enfurecendo o autor... (2001: 44).<br />

Machado refere-se aqui ao interessante episódio em que o tradutor, após o término da<br />

publicação de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, começa publicar uma nova história,<br />

intitulada A mão do finado, que, segundo alega o jornal, é continuação de O Conde de Monte Cristo.<br />

Não foi dito explicitamente que a obra era de Dumas, mas as coisas foram comunicadas de tal modo<br />

que o público foi levado a acreditar nisso. Tanto que a obra chegou a ser incluída, em Portugal, entre<br />

as obras de Dumas. Nessa condição, foi retraduzida para o português.<br />

Dumas chegou a ficar sabendo do acontecido, e escreveu uma carta ao Jornal do comércio<br />

datada de 20 de outubro de 1853. O jornal não interrompeu a publicação, que continuou conquistando<br />

o mesmo êxito (Idem).<br />

No fundo, talvez o indignado Dumas não estranhasse tanto a postura do nosso tradutor<br />

“espertinho”. Ele mesmo escreveu ao sabor do gosto do público, contrariando um dos preceitos básicos<br />

atribuídos ao Romantismo, o da escrita espontânea, voltada para o mundo interno do autor. Dumas não<br />

escrevia para expressar seus sentimentos e deixar extravasar suas emoções, mas para ganhar dinheiro.<br />

Se isso rendesse mais, o autor poderia mudar a história, sem maiores constrangimentos.<br />

Após o estrondoso sucesso de O capitão Paulo, Dumas assinou um contrato com o jornal Le<br />

Siècle um contrato de colaboração exclusiva, conta-nos Marlyse Meyer (1996: 61). O autor deveria<br />

produzir cem mil linhas por ano, ganhando um franco e meio por linha. Para “fazer a coisa render”,<br />

Dumas lança mão de diálogos monossilábicos entabulados por personagens secundários. O jornal,<br />

quando percebe a tática, estabelece que o ganho seria pela linha inteira. Diante de tal restrição, a<br />

Dumas nada resta além de matar seus lacônicos personagens.<br />

Essas histórias que, apesar de seu tom anedótico, são parte da nossa história literária, têm o<br />

poder de arejar a visão consagrada do Romantismo, temperando a imagem do poeta/autor ingênuo com<br />

a esperteza e o oportunismo de quem ganha dinheiro com literatura. Servem também para indicar um<br />

caminho ainda pouco explorado, o da averiguação da influência dessas traduções na produção literária<br />

local. E, acima de tudo, fazem-nos pensar sobre a ingenuidade atribuída aos poetas/autores românticos,<br />

que pode deixar de ser considerada uma condição determinante para assumir o papel de condição<br />

conveniente.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!