TRADUÇÃO FIEL: A QUEM? A QUÊ? POR QUÊ?1 ... - Lenita Esteves
TRADUÇÃO FIEL: A QUEM? A QUÊ? POR QUÊ?1 ... - Lenita Esteves
TRADUÇÃO FIEL: A QUEM? A QUÊ? POR QUÊ?1 ... - Lenita Esteves
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
RESUMO<br />
<strong>TRADUÇÃO</strong> <strong>FIEL</strong>: A <strong>QUEM</strong>? A <strong>QUÊ</strong>? <strong>POR</strong> <strong>QUÊ</strong>? 1<br />
<strong>Lenita</strong> M. R. <strong>Esteves</strong> *<br />
Este trabalho focaliza o problema da fidelidade do tradutor face às suas obrigações -- nem<br />
sempre compatíveis entre si -- para com o texto, com possíveis imposições do autor, com a<br />
editora e com... a teoria.<br />
Palavras-chave: tradução; fidelidade; compromisso; semelhança;<br />
1. Fidelidade, Autoria e Responsabilidade.<br />
Considero que não se pode falar de tradução sem falar em fidelidade. Na verdade,<br />
é a própria noção de fidelidade que dá fundamento ao conceito de tradução. Por enquanto,<br />
definirei a fidelidade como uma espécie de compromisso de semelhança. O texto traduzido<br />
precisa ter pelo menos algum aspecto que o assemelhe, que o aproxime do texto original.<br />
Caso isso não se dê, o texto traduzido não poderá ser classificado assim. E não é difícil ver<br />
como as próprias pessoas que produzem traduções mais “livres”, as chamadas traduções<br />
“criativas”, logo se adiantam em classificar o produto de seu trabalho como “recriação”,<br />
“transcriação”, etc. Mas, mesmo assim, essas traduções menos “coladas” ao original, que<br />
chegam até a receber outro nome, precisam, de alguma maneira, manter um compromisso<br />
de semelhança com o texto de partida.<br />
Quando assumimos um compromisso, empenhamos nossa palavra em relação a<br />
alguma coisa. É interessante pensar como, na tradução, o tradutor dá a sua palavra,<br />
empenha a sua palavra, não apenas no sentido assumir um compromisso, mas também no<br />
sentido de fornecer a sua palavra para a construção de um texto que não é seu. Mas, se um<br />
texto é feito de palavras, como pode um tradutor não ter alguma relação de posse com o<br />
fruto de seu trabalho?<br />
1 Este trabalho é a transcrição aproximada de uma palestra ministrada em 1995 aos alunos do Centro<br />
Universitário Ibero-Americano. Posteriormente, o texto foi publicado no volume 5 da Revista Estudos<br />
Acadêmicos. As referências são as seguintes: Estudos Acadêmicos Unibero: Compêndio de Produção<br />
Acadêmica da Faculdade Ibero-Americana. São Paulo, SP, Brasil. (Estudos Acadêmicos, 5, 1997, p. 64-71).<br />
1
Essa relação de posse, de autoria, subjaz sempre à noção de fidelidade e, a ela<br />
subjazendo, a povoa de elementos paradoxais. Para entendermos melhor essa relação de<br />
posse de um tradutor para com o seu texto, proponho que recorramos à noção de plágio,<br />
com a qual temos contato freqüente devido a acusações de apropriação indébita, seja no<br />
campo da música popular ou na comunidade científica, por exemplo. Em suma, plagiar é<br />
escrever um texto (musical ou não) que guarda uma certa quantidade de semelhanças com<br />
um outro texto já produzido. O crime está no fato de que o plagiador age como se o texto<br />
fosse seu, quando na verdade tal texto é apenas uma cópia (que, no caso da lei do plágio,<br />
não precisa ser perfeita) de um outro texto já existente. Cometendo tal crime, o plagiador<br />
se transforma em um apropriador indébito de um objeto que não lhe pertence.<br />
O tradutor é uma espécie de plagiador, mas ocupa uma posição diferente. No seu<br />
caso, o texto que produz deve guardar semelhanças com um outro texto, e isso levado ao<br />
máximo da possibilidade. Quanto mais semelhanças, tanto melhor. Só que o tradutor<br />
assume a posição de não ser o dono desse texto que, paradoxalmente, foi escrito por ele. O<br />
crime, no caso do tradutor, consistiria na traição, ou seja, em não guardar um certo número<br />
de semelhanças com o texto original. Nesse ponto, tradutor e plagiador ocupam posições<br />
radicalmente opostas: o êxito de um é o crime do outro, e vice-versa.<br />
Mas se analisarmos a analogia a partir de um outro ponto de vista, poderíamos<br />
também dizer que ambas as atividades, a tradução e o plágio, são muito parecidas, ou seja,<br />
no sentido de que as “cópias” produzidas nunca são perfeitas. Aliás, o que caracteriza uma<br />
cópia é a sua não-perfeição. Se um plagiador fizer a cópia perfeita de uma canção, por<br />
exemplo, ele estará apenas repetindo essa canção. O plágio precisa de certa forma ser<br />
disfarçado. Precisa ter elementos que o façam um pouco dessemelhante em relação ao texto<br />
plagiado. E esse fato nos leva direto à questão do original.<br />
O conceito de “original”, e também o de “fidelidade”, têm sido, nos últimos<br />
tempos, questionados e rearticulados nos estudos em teoria da tradução. O termo “original”<br />
deriva do termo “origem”, que nos faz pensar na criação. Um autor cria um texto, mas esse<br />
texto só será chamado de “original” quando dele for feita uma tradução. Nesse sentido, a<br />
necessidade se conceitualizar o que seja um original nasce juntamente com a tradução.<br />
2
Mas o conceito de “original” também traz uma outra conotação, a de originalidade,<br />
ou seja, um texto “original” é um texto inédito, diferente, inventivo, que não se iguala a<br />
nenhum outro. Se pensarmos assim, a fidelidade a um original consiste justamente em não<br />
escrever esse original. Reproduzir o inigualável seria uma grande contradição.<br />
Tradicionalmente se considera que uma tradução não deve ser original, embora a grande<br />
quimera alimentada nessa atividade seja justamente a de que a tradução seja o original. A<br />
tradução não deve ser inventiva, surpreendente, inovadora. Ela deve repetir, de alguma<br />
maneira, a inventividade de um texto original. Mas existe uma necessidade de que essa<br />
repetição seja de algum modo diferente e inferior. A inferioridade da tradução garante o<br />
valor, a inventividade e a autonomia de um texto original. Por isso é importante pensarmos<br />
nos aspectos políticos que subjazem à noção de tradução. O fato de as traduções serem<br />
consideradas, em sua maioria, imperfeitas, não é um fato que devamos aceitar sem maiores<br />
questionamentos. Há determinações políticas e éticas por trás dos conceitos de autoria, de<br />
tradução e, por conseqüência, de fidelidade. E essas determinações se transformam através<br />
das épocas.<br />
O estatuto assumido por um texto original é uma construção cultural relativamente<br />
recente. Na época de Shakespeare, por exemplo, não havia preocupação com o direito de<br />
posse sobre um texto, pois não havia a instituição dos direitos autorais. É justamente por<br />
isso que há tantas controvérsias quanto à autoria de certos trechos de suas peças (ver<br />
<strong>Esteves</strong>, 1992). Como ninguém recebia provento algum por ter escrito um texto, era muito<br />
comum na época de Shakespeare a prática da colaboração: vários autores escreviam um<br />
mesmo texto. Esses textos eram plagiados, copiados e adaptados sem que ninguém fosse<br />
punido por isso. Daí a prova de que a noção de original é o produto de uma cultura,<br />
determinada por questões mercadológicas surgidas em uma época relativamente recente.<br />
Um outro exemplo pode ser encontrado em autores que, ao escreverem textos,<br />
atribuíam sua autoria a algum autor estrangeiro. Um caso, apresentado por Rousseau (citado<br />
por de Man 1979: 296-7), é o de Montesquieu que, em Le Temple de Gnide, escreve um<br />
prefácio onde afirma que essa obra foi traduzida de um manuscrito grego. Assim,<br />
Montesquieu se protege contra possíveis acusações de frivolidade e licenciosidade. Como o<br />
autor do manuscrito grego é desconhecido, a responsabilidade, no caso de Montesquieu fica<br />
3
no mínimo abrandada. Vemos então que o conceito de autoria, além de acarretar<br />
privilégios, também acarreta responsabilidades. O tradutor, tomado no sentido tradicional<br />
de um agente invisível, se desobriga de qualquer responsabilidade em relação ao texto que<br />
produz. Ele não tem o status de um autor, mas também não tem as responsabilidades deste.<br />
Ainda sobre as determinações políticas, ideológicas e mercadológicas que estão<br />
por trás da noção de autoria, apresento um exemplo muito interessante, mais recente. José<br />
Antonio Arantes (1994: 300-301)) nos conta uma história surpreendente, que foi batizada<br />
nos círculos acadêmicos de “O Escândalo de Ulysses”. Esse escândalo teve início em 1977,<br />
quando o neto e herdeiro do espólio de James Joyce, Stephen Joyce, propôs ao acadêmico<br />
alemão Hans Walter Gabler o preparo de uma edição corrigida de Ulysses. A idéia era<br />
chegar ao romance tal como teria sido escrito por Joyce, sem os erros das sucessivas<br />
edições. Foi criado um conselho por esse mesmo Stephen Joyce, do qual fazia parte, por<br />
exemplo, Richard Ellman, o mais respeitado biógrafo do autor. Richard Ellman e outros<br />
estudiosos começaram a questionar se o alemão Gabler, sem o conhecimento necessário da<br />
língua inglesa, seria a pessoa certa para empreender tal tarefa. Questionaram também os<br />
métodos do editor alemão que, com a ajuda dos mais avançados computadores, estaria se<br />
perdendo num intrincado cotejo de manuscritos, textos datilografados, provas tipográficas e<br />
várias edições de Ulysses. O exaustivo e custoso trabalho de Gabler resultou na introdução<br />
de cerca de cinco mil alterações ao texto de Ulysses que Joyce vira publicado, alterações<br />
que iam desde mudanças na pontuação e substituições de palavras até mudança de nomes<br />
de pessoas reais da Dublin de 1904.<br />
As objeções dos acadêmicos caíram no vazio, e quase todos se retiraram do<br />
conselho. A polêmica se acirrou e veio a público quando o texto corrigido passou do meio<br />
acadêmico para o meio editorial. O Ulysses de Gabler saiu em 1986, com toda a<br />
parafernália da mídia internacional, mas foi bombardeado pelo acadêmico John Kidd, da<br />
Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos. Em 1988, Kidd contestou, no New York<br />
Review of Books as alterações de Gabler e também seus métodos de cotejo. Gabler, por sua<br />
vez, ignorou as críticas. O texto “corrigido” vendia aos milhões em todo o mundo.<br />
Segundo José Antonio Arantes, são identificados alguns motivos que levaram<br />
Stephen Joyce, o neto de James Joyce, a propor ao editor alemão uma edição corrigida do<br />
4
Ulysses. O mais grave deles é que Stephen Joyce visava a um alongamento do período em<br />
que ainda estariam vigentes os direitos autorais sobre a obra. Os direitos autorais sobre<br />
Ulysses deveriam expirar em 1o. de janeiro de 1992, e assim Stephen Joyce deixaria de<br />
lucrar com a venda de exemplares da obra. Apenas uma edição substancialmente nova<br />
justificaria em termos legais a renovação dos direitos autorais. Caso contrário, a obra cairia<br />
em domínio público. Dessa forma, vemos que uma obra literária, um intocável objeto de<br />
arte, não é tão intocável assim, estando também sujeita a determinações tão mundanas<br />
quanto as determinações mercadológicas.<br />
Voltemos à questão da não-perfeição das cópias. Por que será que uma tradução,<br />
na qualidade de cópia de um “original” nunca é perfeita? Ou, pelo menos, não é perfeita<br />
eternamente? Na minha opinião, justamente pelo estatuto de cópia que a tradução tem.<br />
Costuma-se dizer que as traduções envelhecem, e o original não. Mas como um texto do<br />
século XVII pode ser mais atual que uma tradução desse mesmo texto feita há apenas vinte<br />
anos? Se aceitarmos que traduções diferentes, realizadas em diferentes épocas e contextos,<br />
conferem a esse texto do século XVII colorações diversas, está respondida a questão, que<br />
não consistia na verdade em nenhum enigma. Assim, uma tradução teria as “marcas” da<br />
época em que foi produzida. Mas e o original, por que ele não teria essas mesmas marcas?<br />
E, no caso de uma tradução fiel, como seria possível recuperá-las?<br />
Se pensarmos na diversidade de culturas, estilos e épocas a que um tradutor está<br />
exposto, a fidelidade, definida aqui como esse compromisso de semelhança, poderia chegar<br />
ao limite de uma impossibilidade. Como um tradutor pode querer reproduzir ou retratar<br />
uma época e uma cultura das quais ele não fez parte?<br />
A semelhança e a originalidade são conceitos que se enriquecem se levarmos em<br />
conta o que se chama de intertextualidade (ver, por exemplo, Barthes, 1979). Um texto está<br />
prenhe de possibilidades de relações com outros textos, um texto remete o leitor a outros<br />
textos. E nesse infinito remeter, redes de semelhanças vão sendo construídas ao longo das<br />
épocas. O tradutor estará inserido nessas redes e será influenciado por diversas delas. E se<br />
pensarmos na existência dessas redes de semelhança, o próprio caráter de originalidade de<br />
um texto original vai perder a sua força. Ser original é uma coisa difícil, talvez até<br />
impossível. Um texto não está isolado e diz respeito a outros textos, sempre.<br />
5
Mas sendo ou não um produto cultural que reflete uma determinada época, o certo<br />
é que a noção de texto original existe e vigora na nossa época. Dizer que esse conceito é<br />
relativo não é dizer que ele não exista e não seja determinante na nossa prática de tradução<br />
atualmente.<br />
2. A fidelidade na Teoria e na Prática<br />
Após falar um pouco da fidelidade em termos gerais, gostaria de dar umas<br />
pinceladas nessa questão em termos mais específicos. A fidelidade, além de ser um<br />
conceito que muda através das épocas (sendo que nem existia em certos períodos), é<br />
também um compromisso que se modaliza de diferentes maneiras, das quais vou dar uns<br />
poucos exemplos. Além da fidelidade ao autor ou à obra original, existem outras fidelidades<br />
que devem ser mantidas, por exemplo, em relação aos editores. Sempre em nome de uma<br />
fidelidade ao autor, os editores muitas vezes nos impõem procedimentos que são contrários<br />
às nossas concepções a respeito do texto original. Mas como o próprio termo diz, essas<br />
imposições nos forçam a repensar nossa fidelidade em relação ao original e muitas vezes<br />
modificá-la. Em alguns casos a concepção que o próprio editor tem do que seja fidelidade<br />
parece bastante equivocada.<br />
Uma experiência recente que tive pode ilustrar bem a questão. Eu deveria<br />
traduzir o livro Allegories of Reading de Paul de Man. Nesse livro, o autor faz um estudo<br />
sobre quatro autores, a saber, Rilke, Proust, Nieztsche e Rousseau. Logo no prefácio,<br />
ficamos sabendo que alguns capítulos foram escritos originalmente em francês e depois<br />
traduzidos pelo próprio autor para a edição em língua inglesa. No caso de Rilke, por<br />
exemplo, os textos analisados são poemas, e Paul de Man apresenta cada poema em língua<br />
alemã e depois nos dá uma tradução sua para o inglês, fazendo ressalvas quanto à<br />
traduzibilidade de tais poemas. Nesse caso, a tradução deveria fazer o mesmo, apresentando<br />
o poema em alemão e a sua versão para o português. Quanto a isso, haveria dois<br />
procedimentos possíveis: eu poderia fazer uma tradução da tradução de Paul de Man, o que<br />
eu julgaria mais certo, ou procurar alguma versão já existente daquele texto para o<br />
6
português. As duas hipóteses foram rejeitadas pela editora, que incumbiu-se de procurar um<br />
outro tradutor que fizesse a versão direta para o português.<br />
Na análise que Paul de Man faz da obra de Proust, é apresentado um trecho de<br />
um de seus livros, já traduzido pelo próprio Paul de Man. Nesse caso, como tradutora, eu<br />
deveria apresentar a versão em francês e uma tradução para o português, que não deveria<br />
nem se basear na tradução de Paul de Man e nem reproduzir a tradução para o português já<br />
existente. A editora também se incumbiria de procurar um tradutor do francês que fizesse<br />
esse trabalho.<br />
No caso de Nietzsche e Rousseau, a coisa se complicou um pouco, pois o<br />
próprio Paul de Man alterna seu procedimento, às vezes apresentando trechos da obra de<br />
Nietzsche traduzidos para o inglês por ele mesmo, e outra vezes fornecendo uma tradução<br />
já existente.<br />
O que me chamou a atenção foi não só a postura da editora, mas a postura do<br />
próprio Paul de Man em relação à tradução. Para um autor tão preocupado com as minúcias<br />
do texto, com a etimologia das palavras, como pode ser tão inocente um processo de<br />
tradução? E é possível ver como esse autor, tão consciente das determinações retóricas que<br />
estão em ação nos textos, não questiona a atividade da tradução ou a parcialidade de suas<br />
próprias traduções.<br />
Há notas de rodapé em que Paul de Man deixa explícita a sua postura não<br />
questionadora quanto à tradução. Por exemplo, na nota 20 do capítulo 7, o autor diz: “faço<br />
uma tradução livre que tenta explicar a versão francesa, que é mais elegante, embora mais<br />
elíptica” (p.146). Embora Paul de Man apresente logo em seguida a versão do referido<br />
trecho em francês, sua atitude de dizer que vai explicar o texto em francês parece estar nos<br />
comunicando que o modo como se escreve um texto pode ser isolado do que ele veicula, o<br />
que Paul de Man parece estar todo o tempo negando. Na nota 16 do mesmo capítulo de<br />
Man define o significado de um termo: “Rousseau diz “des premiers Instituteurs”, o que<br />
pode soar críptico na tradução. O significado se refere aos homens ‘primitivos’ como os<br />
“primeiros” inventores que instituíram a linguagem” (p.145). É claro que essa definição de<br />
Paul de Man, que restringe outros possíveis sentidos, é coerente com a argumentação que<br />
7
ele está construindo, senão ele não a teria feito. Mas, em momento algum ele parece estar<br />
alerta para tal fato.<br />
Essa sua atitude também transparece se colocarmos a pergunta: se ele se propõe<br />
a traduzir os trechos das obras e assume a responsabilidade sobre sua tradução, juntamente<br />
com as conseqüências que ela possa acarretar para o desenvolvimento de seus argumentos,<br />
por que não uniformizou os procedimentos, fazendo a tradução de todos os trechos?<br />
A editora, da mesma forma, parece não ter certeza do que pensa a respeito de<br />
fidelidade e de tradução. Por que substituir a tradução do próprio autor do livro por uma<br />
outra, se é óbvio que em muitos pontos os termos escolhidos por esse autor, as opções que<br />
ele fez no ato tradutório, refletem a sua leitura desses textos e portanto têm mais chances de<br />
ser condizentes com o argumento que ele desenvolve? E, se é feita a opção por essa<br />
substituição, por que não substituir a tradução feita por Paul de Man por uma outra que em<br />
geral é considerada como uma tradução de qualidade?<br />
Se o problema é que o meu texto, que seria baseado na tradução de Paul de<br />
Man, resultaria na tradução de uma tradução, o que o distanciaria do original, por outro lado<br />
essa tradução da tradução teria, sem dúvida, mais chances de estar mais próxima da leitura<br />
que Paul de Man faz do texto do que uma outra tradução que não levasse essa sua leitura<br />
em conta. Uma outra tradução, mesmo se considerando fiel e imparcial, poderia se<br />
distanciar do argumento do autor e até contradizê-lo.<br />
No caso dos estudos da obra de Nietzsche e Rousseau, Paul de Man nos fornece<br />
as informações sobre quem foram os tradutores de referidos trechos, e afirma<br />
explicitamente que fez algumas ligeiras modificações em favor de uma consistência<br />
terminológica. Ora, se o autor fez ligeiras modificações em uma tradução que ele próprio<br />
escolheu (e é claro que essa escolha não foi aleatória), por que eu deveria enxertar à minha<br />
tradução trechos que não foram traduzidos nem por mim nem por Paul de Man e que, por<br />
isso mesmo, poderiam necessitar de modificações não tão ligeiras assim?<br />
Levando tudo isso em conta, optei por traduzir a partir do texto de Paul de Man,<br />
deixando explícito esse procedimento para o leitor, em notas de rodapé. Mas nada garante<br />
que os editores irão aceitar e apoiar minha decisão.<br />
8
Um outro exemplo de determinações feitas pelo editor pode ser minha<br />
experiência na tradução de O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien. Quando comecei o<br />
trabalho, deparei-me, logo no início, com interjeições do tipo: “Good heavens above!” ou<br />
“Lor’ bless you”, as quais traduzi, numa primeira instância, o mais literalmente possível,<br />
com expressões em português do tipo: “Céus!” e “Benza Deus!”. O editor, ao ler minha<br />
tradução, fez a observação de que o autor, católico ferrenho, tinha construído em seu livro<br />
um mundo totalmente imaginário e dissociado do universo e do vocabulário católicos.<br />
Nesse caso, eu deveria evitar expressões como “Benza Deus!”, por exemplo. Tal<br />
observação é fruto da leitura que esse editor fez do livro, e pode ser questionada. É certo<br />
que “Lord” pode não se referir a Deus, mas fica difícil pensar em um “heaven” que não<br />
esteja associado ao céu católico.. Se em português temos o termo “céu” para firmamento e<br />
para “céu” em oposição a “inferno”, o mesmo não acontece na língua inglesa, na qual<br />
existem os termos “heaven” e “sky”. É certo que as acepções possíveis para qualquer um<br />
dos termos em qualquer uma das línguas podem ser inúmeras, mas a leitura do editor é<br />
questionável, embora no caso de minha tradução a autoridade desse editor tenha<br />
estabelecido que essa é a leitura correta.<br />
Esse fato ajuda a reiterar o que já foi dito antes: apesar de uma tradução ser<br />
fruto da leitura que o tradutor faz do texto original, essa leitura não é exclusivamente sua, e<br />
não o é em mais de um nível. É claro que o tradutor participa de uma cultura e de um<br />
conjunto de crenças que são partilhados por ele e as pessoas com quem convive. Por outro<br />
lado, mesmo que o tradutor não interprete este ou aquele termo de determinada forma,<br />
existe a chance da influência do editor que, por ser o patrão, impõe a sua leitura.<br />
Outro impasse surgiu em relação aos nomes próprios. Em geral, quando se faz<br />
uma tradução, não se traduzem nomes próprios, que são mantidos em sua forma original.<br />
Porém, no livro com o qual eu estava trabalhando, os nomes eram provocadoramente<br />
traduzíveis: parecia que eles queriam informar algo sobre os personagens. Adotei então,<br />
numa primeira instância, o procedimento de não traduzir os nomes próprios, e quando estes<br />
fossem considerados muito “significativos”, fazer uma nota de rodapé sugerindo uma<br />
interpretação. Por exemplo, um dos personagens secundários se chama “Proudfoot” e tem<br />
os pés notoriamente grandes. Esse nome seria até fácil de traduzir, mas existem outros<br />
9
como “Baggins” e “Bracegirdle” que, traduzidos, não teriam a mesma leveza dos termos em<br />
inglês. Senti a necessidade de uniformizar a tradução. Se os nomes próprios fossem<br />
traduzidos, então todos deveriam ser traduzidos. O que, numa primeira tentativa, resultou<br />
num texto desagradável à leitura. Encontrei então, nas notas de rodapé, uma solução<br />
cabível. Mas o editor disse que as notas tornariam o texto “pesado” e que tais elucubrações<br />
não eram bem-vindas nesse tipo de livro. Resolvi então adotar a seguinte estratégia: os<br />
nomes próprios muito “significativos” seriam traduzidos e os outros não, em detrimento da<br />
uniformidade do texto.<br />
Problema semelhante aconteceu com os nomes de pontos geográficos, rios,<br />
montanhas, vales, etc. Existe no livro um rio que se chama “Brandywine” e uma região<br />
denominada “Gladden Fields”, cortada por um outro rio do mesmo nome, ou seja, “Gladden<br />
River”. Traduções possíveis para tais termos em português seriam, correspondentemente,<br />
um termo em português que acoplasse “brandy” e “vinho” e, no segundo caso, “Campos<br />
Alegres”. As soluções adotadas pela tradução portuguesa, por exemplo, são justamente<br />
“Brandevinho” e “Campos Alegres”<br />
Nesse ponto, aconteceu uma coisa que me fez viver um novo tipo de fidelidade<br />
ao autor. No decorrer da tradução, a editora me enviou, por intermédio de um revisor que<br />
tinha grande conhecimento a respeito da obra, um texto onde o próprio autor, Tolkien, dava<br />
instruções a respeito da tradução desses nomes próprios. Pude então constatar que foi<br />
desenvolvido ali um trabalho de invenção filológica bastante acurado, e que dificilmente o<br />
tradutor descobriria a verdadeira origem desses nomes fictícios sem essa “mãozinha” do<br />
autor.<br />
The Lord of the Rings é um livro que conta as aventuras de um hobbit, ser<br />
imaginário criado pelo autor, que se envolve com criaturas mais ou menos sobrenaturais<br />
que ele, por exemplo, elfos, gnomos, anões, magos, entidades maléficas com grandes<br />
poderes além do humano, etc. A cada povo corresponde uma língua diferente: os elfos têm<br />
uma língua, os anões têm outra, e assim por diante. O autor teve o cuidado e a paciência de<br />
realmente “criar” tais línguas, e uma região ou um rio, por exemplo, tem pelo menos três<br />
nomes que são citados mais ou menos com a mesma freqüência no decorrer da narrativa. E<br />
10
como a narrativa é longa, somando mais de 1200 páginas, essa profusão de nomes complica<br />
muito o trabalho do tradutor.<br />
No contato com esse texto escrito por Tolkien, que orientava sobre a tradução<br />
dos nomes próprios, tive muitas surpresas, pois vários dos nomes que pareciam<br />
provocadoramente traduzíveis referiam-se a coisas que jamais eu teria imaginado.<br />
“Brandywine”, por exemplo, é o nome de um rio, mas esse nome não tem, na etimologia<br />
construída pelo autor, nenhuma relação com “brandy” ou “wine”, e sim é uma corruptela de<br />
“Baranduin”, um nome da língua dos elfos, criada pelo autor, e que quer dizer “rio<br />
comprido da cor do cobre”, e não tem nada a ver especificamente com “conhaque” ou<br />
“vinho”. A expressão “Gladden Fields” não se relaciona com o termo “glad”, como se<br />
poderia pensar. Na intenção do autor, “glad” ou “gladden” corresponde à íris, a flor de lis,<br />
tão comum nos escudos e insígnias medievais. A expressão se origina então em glaedene,<br />
do inglês arcaico. Aliás, traduzir “gladden fields” por “campos alegres”, como fez a<br />
tradução portuguesa, cria uma inconsistência para a história, já que tais campos foram alvo<br />
de uma das mais sangrentas batalhas de toda a narrativa. A minha tradução optou então por<br />
traduzir os termos “Brandywine” e “Gladden Fields” e “Gladden River” por “Brandevin”,<br />
“Campos de Lis” e “Rio de Lis”, respectivamente.<br />
Dessa forma, estabeleceu-se entre o autor e eu uma espécie de contato<br />
metalingüístico, no qual esse autor revela seu desejo de controle sobre a sua obra, definindo<br />
o modo como uma série de termos devem ser traduzidos. Por outro lado, fiquei pensando<br />
que um leitor em língua inglesa, que não tivesse contato com esse texto “metalingüístico”<br />
de Tolkien, provavelmente nem teria idéia de todo esse artifício de criação de línguas, e<br />
provavelmente interpretaria o termo “Brandywine”, por exemplo, como uma referência a<br />
certas características das águas desse rio que supostamente se assemelhariam a “brandy” e<br />
“wine”. Nesse sentido, a tradução acabou resultando num produto que é mais realista que o<br />
rei, sendo mais explicitamente fiel ao autor do que o próprio texto original. Digo<br />
explicitamente porque, no prefácio à tradução, há uma menção a esse texto<br />
“metalingüístico” de Tolkien, e também à adoção, na tradução, das sugestões do autor.<br />
Concluindo, podemos dizer que a fidelidade é uma noção relativa, e que se<br />
modula de variadas formas conforme a situação em que está o tradutor. Do mesmo modo,<br />
11
elementos externos podem influir na fidelidade de um tradutor, mesmo a despeito dele.<br />
Assim como um autor não tem controle sobre a sua obra, apesar de alguns autores, como é<br />
o caso de Tolkien, tentarem ao máximo garantir esse controle, o tradutor não tem controle<br />
sobre o texto que produz, mesmo antes de ele estar finalizado. No caso de determinações<br />
feitas por editores, julgo que se deve buscar um espaço de negociação, de diálogo, para que<br />
o tradutor possa expor suas idéias. O mesmo se aplica à relação tradutor/revisor. O ideal é<br />
que tradutor e revisor “conversem” e troquem idéias a respeito do texto. Isso acontece em<br />
alguns casos, mas não é regra. A regra é que o tradutor perca seu texto de vista após<br />
entregá-lo aos editores. Não é sempre que a editora reenvia o texto para o tradutor, para que<br />
este possa julgar as interferências ou sugestões do revisor. Julgo que um trabalho em<br />
equipe, com diálogo e negociação, pode produzir uma tradução mais rica e com menos<br />
falhas.<br />
♣<br />
Costuma-se dizer, na área da tradução, que a teoria não auxilia a prática em<br />
nada. Mas quando se fala em tradução e quando se faz tradução, há sempre uma teoria<br />
subjacente, mesmo que não tenhamos consciência disso. Se, na prática, o tradutor sabe que<br />
a fidelidade é uma noção relativa, que se constrói de modos diversos dependendo da<br />
situação em que se encontra, a teoria que se refere a essa prática deve ser condizente com<br />
ela.<br />
Eu já fazia traduções (em sua maioria de textos técnicos) há algum tempo<br />
quando tive o primeiro contato com a teoria, o que não quer dizer que não eu tivesse eu<br />
mesma uma teoria. Esse primeiro contato aconteceu num curso oferecido pela Unicamp, do<br />
qual participei como aluna especial.<br />
Nesse curso ouvi coisas que condiziam com as minhas opiniões sobre a<br />
tradução. Ficou claro para mim, desde o início, que a teoria da tradução passava por uma<br />
espécie de reforma, uma revisão que apontava caminhos que não haviam sido trilhados<br />
antes. Mesmo correndo os riscos de uma atitude redutora, tentarei resumir em poucas linhas<br />
quais eram as novidades, quais eram esses novos caminhos apontados para o teórico da<br />
tradução. As conclusões a que chegávamos durante o curso, baseadas nos textos que líamos,<br />
eram as de que a tradução não é uma atividade de segunda categoria, o tradutor não é um<br />
12
necessariamente um traidor e a fidelidade é uma noção relativa. “Fidelidade” sempre exigia<br />
um complemento: a quem, a quê, por quê? Ao mesmo tempo, o tradutor não deveria e nem<br />
poderia ser um agente invisível. A invisibilidade do tradutor, embora seja uma das outras<br />
quimeras alimentadas nessa área, é praticamente impossível. Nada poderia soar mais<br />
agradável aos ouvidos de um tradutor, tão mergulhado nessa metafísica da traição e tão<br />
pouco reconhecido por seu trabalho. Talvez a sedução da teoria exercida sobre mim tenha<br />
começado aí. Resolvi então prestar o exame para o curso de mestrado, e atualmente estou<br />
iniciando a redação de minha tese de doutorado em tradução.<br />
Em minha tese de mestrado, a base teórica para o desenvolvimento de meus<br />
argumentos foi o pós-estruturalismo, em conjunto com a desconstrução, principalmente<br />
representada pela figura de Jacques Derrida. Derrida escreve sobre muitas coisas, sempre<br />
tendo como pano de fundo uma crítica à metafísica ocidental que, desde Platão, cultua uma<br />
verdade transcendental, a verdade última, que a filosofia vive o tempo todo a buscar, e na<br />
qual todo o conhecimento deve ser baseado. Derrida fala também em vários textos sobre<br />
tradução, e uma de suas afirmações mais citadas é aquela que define a tradução como uma<br />
transformação: “uma transformação regulada de um texto por outro, de uma língua por<br />
outra” (1972:30).<br />
A noção de tradução como transformação é muito interessante e serve a vários<br />
fins. Inclusive serve ao fim de provocar as mais acirradas críticas contra si própria. Essa<br />
citação foi usada de várias maneiras, e não se pode dizer que tenha sido usada sempre com<br />
o mesmo rigor. Essa proposta para se definir a tradução, até certo ponto revolucionária,<br />
chegou a dar margem a uma certa interpretação segundo a qual a desconstrução e o pós-<br />
estruturalismo estariam pregando o “vale-tudo” em tradução, afirmando que uma tradução<br />
pode ser qualquer coisa.<br />
Na minha concepção, como tentei deixar claro no início desta reflexão, se fosse<br />
permitido esse “vale-tudo”, estaria descaracterizada qualquer noção de tradução, já que toda<br />
tradução assume alguma espécie de compromisso de semelhança. Se quisermos utilizar a<br />
definição de Derrida, o ideal é que prestemos atenção a esse outro termo: segundo o autor,<br />
a tradução não é uma transformação qualquer, mas uma transformação regulada. E essa<br />
regulação não é imposta apenas por diferenças culturais ou de época, mas é também uma<br />
13
egulação de uma língua pela outra. Se as línguas são diferentes, se elas têm estruturas<br />
diferentes, uma tradução vai sempre realizar alguma espécie de transformação, mas isso não<br />
implica que ela possa realizar qualquer coisa e ainda continuar se chamando tradução.<br />
É justamente porque existe essa diferença entre as línguas que existe tradução.<br />
A tradução é fundada numa diferença, e o grande paradoxo que se instaura aí é que ela<br />
almeja uma semelhança total, a perfeição. As conseqüências de tal proposta para a prática<br />
da tradução são amplas e se inserem nos mais variados campos. Se não há significados<br />
estáveis e petrificados, se essa semelhança perfeita é inatingível, o tradutor se torna<br />
desobrigado do fardo da traição inevitável. Ele poderá opinar e negociar a respeito das<br />
decisões que toma em seu trabalho. Na mesma direção, se o tradutor não é um agente<br />
transparente e invisível, ele pode e deve aparecer cada vez mais, conseguindo dessa maneira<br />
melhores condições de trabalho e remuneração.<br />
Em contrapartida, o tradutor também se encontra numa posição de maior<br />
responsabilidade pelo que produz. A partir do momento em que se aceitar de forma geral a<br />
idéia de que o tradutor interfere no texto que traduz; que, em resumo, ele não é invisível, ele<br />
assumirá também responsabilidades mais sérias em relação a esse texto. O que aconteceu<br />
tempos atrás com a noção de autoria pode ser aplicado para a tradução. Se o tradutor<br />
interfere no texto que produz, o que considero inevitável, ele também é um pouco<br />
responsável por ele. É preciso que se tenha um rigor, um cuidado ao traduzir que muitas<br />
vezes não se tem. Assim como a tradução não pode ser qualquer coisa, o tradutor não pode<br />
ser qualquer tradutor. Nesse sentido, os pressupostos que o pós-estruturalismo assume para<br />
a tradução trazem melhores condições não só para o tradutor, mas também para a qualidade<br />
das traduções.<br />
Dessa forma, não se pode dizer que essa teoria é estéril e não traz frutos para a<br />
prática do tradutor. Teoria e prática estão intimamente ligadas, alterando-se e se<br />
transformando constantemente.<br />
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ARANTES, José Antonio. “E Palavras sem Fim”. In: BURGESS, Anthony<br />
Homem Comum Enfim. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1994.<br />
BARTHES, Roland. “From Work to Text”. In: Harari, Josué V . Textual<br />
Strategies. Ithaca: Cornell University Press, 1979.<br />
Press, 1979.<br />
De MAN, Paul. Allegories of Reading. New Haven and London: Yale University<br />
DERRIDA, J.”Semiologia e Gramatologia” in Posições trad. Maria Margarida<br />
Correa Calvente Barahona Lisboa: Plátano Editora.(ed. original francesa pela Minuit,<br />
Paris, 1972)<br />
ESTEVES, <strong>Lenita</strong> R. “Algumas Faces e Fases de um Original Shakespeareano”.<br />
Trabalhos em Lingüística Aplicada. Campinas: UNICAMP, vol. 19, p. 99-104, 1992.<br />
____________<br />
__________________________________________________________________<br />
15