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A influência da tradução na formação e na ... - Lenita Esteves

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A <strong>influência</strong> <strong>da</strong> <strong>tradução</strong> <strong>na</strong> <strong>formação</strong> e <strong>na</strong> consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> literatura brasileira no<br />

século XIX 1<br />

<strong>Lenita</strong> Rimoli <strong>Esteves</strong><br />

FFLCH – USP<br />

RESUMO: O século XIX assistiu à consoli<strong>da</strong>ção de um senso de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de no Brasil. O meio<br />

cultural/jor<strong>na</strong>lístico crescia com uma efervescência que refletia as mu<strong>da</strong>nças políticas e sociais. O<br />

romance-folhetim triunfa como a grande novi<strong>da</strong>de no meio jor<strong>na</strong>lístico, levando a ficção aos leitores e<br />

trazendo mais leitores para os jor<strong>na</strong>is. O presente trabalho busca ilumi<strong>na</strong>r a incidência <strong>da</strong> <strong>tradução</strong><br />

nesse momento, em que as <strong>na</strong>rrativas estrangeiras invadem o mercado e ao mesmo tempo inspiram<br />

nossa incipiente produção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Romantismo brasileiro; Tradução; Romance-folhetim; Nacio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de<br />

ABSTRACT: Brazilian 19th century has witnessed the consoli<strong>da</strong>tion of a sense of <strong>na</strong>tio<strong>na</strong>lity.<br />

Brazilian culture expanded quickly as a consequence of political and social changes, and the local<br />

newspapers played a fun<strong>da</strong>mental part in this development. The French roman-feuilleton was the<br />

great novelty at that time, bringing fiction to readers and many more readers to the newspapers. This<br />

paper aims to shed some light upon the incidence of translation at this moment, when foreign novels<br />

invade the Brazilian market and at the same time inspire our newly born <strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l literature<br />

KEYWORDS: Brazilian Romanticism; Translation; Roman-Feuilleton; Natio<strong>na</strong>lity.<br />

Na primeira metade do século XIX, o Brasil passou por profun<strong>da</strong>s transformações nos âmbitos<br />

social, político e cultural. De colônia passa a <strong>na</strong>ção independente e em pouco tempo terá como<br />

gover<strong>na</strong>nte um príncipe regente muito jovem, que tem sua maiori<strong>da</strong>de antecipa<strong>da</strong> em virtude de fortes<br />

pressões políticas. To<strong>da</strong> essa mu<strong>da</strong>nça provoca um desenvolvimento considerável, principalmente <strong>na</strong><br />

Corte. Ubiratan Machado descreve as conquistas alcança<strong>da</strong>s <strong>na</strong> déca<strong>da</strong> de 1850, que ele chama de<br />

“déca<strong>da</strong> de ouro do Império” (Machado 2001:16-17): estra<strong>da</strong>s de ferro, comunicação por telégrafo e<br />

uma significativa normalização do tráfego de <strong>na</strong>vios que vinham <strong>da</strong> Europa. Os paquetes chegavam<br />

com surpreendente regulari<strong>da</strong>de, trazendo aos brasileiros as grandes novi<strong>da</strong>des do Velho Mundo, entre<br />

elas livros de poemas, romances, jor<strong>na</strong>is, revistas, figurinos. O gosto <strong>da</strong>s pessoas se tor<strong>na</strong> bastante<br />

europeizado, as ci<strong>da</strong>des se expandem, a vi<strong>da</strong> mun<strong>da</strong><strong>na</strong> floresce, principalmente <strong>na</strong> Corte, com saraus<br />

1 Este texto é uma transcrição aproxima<strong>da</strong> de conferência proferi<strong>da</strong> no III CIATI – Congresso Ibero-Americano<br />

de Tradução e Interpretação, realizado em 2004. Posteriormente, foi publicado nos a<strong>na</strong>is do congresso.<br />

1


aos quais as mulheres comparecem ca<strong>da</strong> vez mais, derrubando preconceitos que, em déca<strong>da</strong>s anteriores,<br />

as haviam confi<strong>na</strong>do no aconchego do lar.<br />

Ao mesmo tempo em que recebíamos tantas publicações <strong>da</strong> Europa, os jor<strong>na</strong>is locais<br />

começaram a se multiplicar. Proliferam os jor<strong>na</strong>is, muitos deles tendo uma vi<strong>da</strong> efêmera: aparecem e<br />

desaparecem rapi<strong>da</strong>mente, <strong>da</strong>ndo lugar a tantos outros, num movimento de constante renovação.<br />

Um dos grandes atrativos dos jor<strong>na</strong>is <strong>na</strong> época foi, como se sabe, o romance-folhetim, <strong>na</strong>rrativa<br />

em geral extravagante e apaixo<strong>na</strong><strong>da</strong> que surgia aos pe<strong>da</strong>ços, em publicação seria<strong>da</strong> que arrebatava a<br />

paixão do público e multiplicava, por conta disso, as ven<strong>da</strong>s dos jor<strong>na</strong>is. Grande parte dessas<br />

<strong>na</strong>rrativas era importa<strong>da</strong>, as histórias vindo especialmente <strong>da</strong> França, sendo traduzi<strong>da</strong>s no Brasil para<br />

sua publicação nos jor<strong>na</strong>is locais. Como se pode deduzir, a ativi<strong>da</strong>de tradutória fervilhava, nessa época,<br />

com o mesmo entusiasmo <strong>da</strong> paixão romântica.<br />

Mas antes que se enfoque especificamente o papel <strong>da</strong> <strong>tradução</strong> no século XIX, vale a pe<strong>na</strong><br />

detalhar um pouco mais o contexto, definindo melhor o cenário sócio-cultural em que essa ativi<strong>da</strong>de<br />

floresceu com tanto vigor.<br />

1. Tradução, imprensa, literatura e cultura<br />

Como nos informa Lia Wyler (2001:41-42), no Brasil, antes de 1888, as tentativas de produzir<br />

papel não foram bem-sucedi<strong>da</strong>s. Na área de tipografia, não havia trabalhadores especializados, sendo o<br />

maquinário e a matéria-prima extremamente caros. Era muito mais barato importar livros, revistas e<br />

jor<strong>na</strong>is <strong>da</strong> França, que chegavam quinze dias após seu lançamento <strong>na</strong>quele país. A falta de profissio<strong>na</strong>is<br />

de imprensa em nosso país forçava os editores a recorrer a notícias, artigos e histórias vin<strong>da</strong>s de fora<br />

para encher os jor<strong>na</strong>is. Ao que parece, não faltou trabalho para os tradutores.<br />

A escassez de material produzido aqui no Brasil não se restringia aos campos <strong>da</strong>s artes, do<br />

jor<strong>na</strong>lismo e do entretenimento. Também nos bancos escolares faltavam livros didáticos em português.<br />

Justiniano José <strong>da</strong> Rocha, político, professor, jor<strong>na</strong>lista e tradutor, viu-se obrigado a traduzir livros de<br />

2


História. Chegou até a escrever um livro didático de Geografia, que não foi muito bem aceito entre<br />

seus pares. Constatou-se, à mesma época, a falta de um livro de História do Brasil. Em 1840 o mesmo<br />

J. J. Rocha propôs em uma sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a constituição de uma<br />

comissão especial que ficaria incumbi<strong>da</strong> dessa tarefa. A proposta foi aprova<strong>da</strong>, mas o projeto acabou<br />

não sendo levado a cabo (Cardim, 1964:52).<br />

O caráter incipiente <strong>da</strong> produção literária, jor<strong>na</strong>lística e cultural no Brasil se reflete,<br />

indubitavelmente, no comportamento do público diante dessa produção. Na maioria dos casos, a<br />

produção cultural não passava de um pretexto para encontros sociais. Como relata Tânia Brandão<br />

(2001:97), Martins Pe<strong>na</strong> tinha uma visão bastante crítica de seu público, que ia aos teatros para ver o<br />

que acontecia nos camarotes. A platéia permanecia ilumi<strong>na</strong><strong>da</strong>, a ilumi<strong>na</strong>ção do palco era ruim e isso,<br />

somado à fumaça dos charutos, praticamente impedia a visão do que acontecia no palco. Portanto, ir ao<br />

teatro era uma busca de contato com a “civilização”, restringindo-se a um acontecimento social.<br />

2. Será ingenui<strong>da</strong>de?<br />

Nos estudos literários, o movimento romântico é geralmente associado a conceitos como<br />

ingenui<strong>da</strong>de, espontanei<strong>da</strong>de, idealismo e subjetivi<strong>da</strong>de. No caso específico do Brasil, essa impressão<br />

de espontanei<strong>da</strong>de e inexperiência acaba sendo reforça<strong>da</strong> por nossa própria condição de <strong>na</strong>ção que<br />

acaba de <strong>na</strong>scer e está em fase de consoli<strong>da</strong>ção. Jovem é o país, há pouco desvinculado politicamente<br />

de Portugal, assim como são tipicamente jovens os poetas românticos, a maioria deles deixando a vi<strong>da</strong><br />

ain<strong>da</strong> <strong>na</strong> flor <strong>da</strong> juventude. Nossa jovem e febril <strong>na</strong>ção assiste ao <strong>na</strong>scimento e à difusão também de<br />

nossa literatura.<br />

Nesse contexto, a homofonia estabeleci<strong>da</strong> entre as palavras “insipiente” e “incipiente” acaba<br />

contami<strong>na</strong>ndo a distinção entre esses dois termos, passando os dois a ser aplicáveis no caso do público<br />

brasileiro, que não sabe “se comportar” porque ain<strong>da</strong> é principiante, jovem demais para ter uma<br />

conduta adequa<strong>da</strong>. Mas e nossos escritores e jor<strong>na</strong>listas? Mais especificamente: e nossos tradutores?<br />

3


Em meio a um ambiente tão insipiente e incipiente, como será que se portavam os tradutores em<br />

relação à questão <strong>da</strong> fideli<strong>da</strong>de, por exemplo? Que respeito era devido ao autor? E caso o autor do texto<br />

origi<strong>na</strong>l não recebesse o devido respeito, poderia tal fato ser atribuído a uma ingenui<strong>da</strong>de dos<br />

tradutores? Alguns relatos talvez nos esclareçam algo sobre essa questão.<br />

Conta-nos Ubiratan Machado (2001: 43-44) que, em 1866, Machado de Assis foi traduzindo Os<br />

trabalhadores do mar, de Vítor Hugo, à medi<strong>da</strong> que a história ia sendo publica<strong>da</strong> em fascículos em um<br />

jor<strong>na</strong>l em Paris, sendo o intervalo entre a publicação <strong>na</strong> França e no Brasil equivalente ao tempo de<br />

viagem de um <strong>na</strong>vio de lá para cá. Sem dúvi<strong>da</strong>, essa prática era bastante arroja<strong>da</strong> para a época e, como<br />

se poderia esperar, criou situações inusita<strong>da</strong>s.<br />

Um romance-folhetim bastante famoso em sua época, tanto por sua populari<strong>da</strong>de quanto por seu<br />

caráter interminável, foi o Rocambole, de Ponson du Terrail. A obra foi traduzi<strong>da</strong> para o português por<br />

Souza Ferreira e publica<strong>da</strong> no carioca Jor<strong>na</strong>l do Comércio, que utilizou a mesma tática descrita no<br />

parágrafo anterior. No entanto, um atraso <strong>na</strong> chega<strong>da</strong> dos origi<strong>na</strong>is causou uma lacu<strong>na</strong> no an<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong> história. Dado o sucesso <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa, julgou-se mais apropriado continuar a história assim mesmo, o<br />

que ficou a cargo do tradutor. Tudo era aceitável, menos interromper a história. Machado nos informa<br />

que Souza Ferreira fez isso mesmo, chegando até a “matar” alguns perso<strong>na</strong>gens. Tal medi<strong>da</strong> lhe custou<br />

trabalho em dobro, quando a regulari<strong>da</strong>de do correio foi restabeleci<strong>da</strong> e o tradutor teve acesso de novo<br />

aos origi<strong>na</strong>is. Foi necessário “ressuscitar” perso<strong>na</strong>gens para conciliar o trecho <strong>da</strong> história criado pelo<br />

tradutor com o restante, produzido pelo autor (Machado, 2001: 44).<br />

Fato semelhante aconteceu com a <strong>tradução</strong> de Os moicanos de Paris, de Alexandre Dumas,<br />

publicado pelo Correio Mercantil. Augusto Emílio Zaluar, o tradutor, viu-se frente ao mesmo<br />

problema, a interrupção <strong>da</strong> historia. Só que, nesse caso, o motivo não foi o transporte dos origi<strong>na</strong>is, mas<br />

sua própria produção. Dumas interrompera a publicação <strong>da</strong> obra no jor<strong>na</strong>l parisiense, o que se estendeu<br />

por um tempo considerável. O tradutor não se deu por achado: deu continui<strong>da</strong>de ao romance, chegando<br />

a ponto de <strong>da</strong>r-lhe um desfecho. Posteriormente, o jor<strong>na</strong>l de Paris retomou a publicação, e o brasileiro<br />

4


prosseguiu com a publicação <strong>da</strong> <strong>tradução</strong> <strong>da</strong> obra, que acabou tendo dois fi<strong>na</strong>is diferentes, sem que<br />

<strong>na</strong><strong>da</strong> tivesse sido explicado ao público (Idem). Nas palavras de Machado,<br />

Essas traduções eram feitas sem qualquer autorização dos autores ou de seus editores. Nesta<br />

ban<strong>da</strong> de cá do Atlântico, ninguém respeitava a proprie<strong>da</strong>de intelectual. Mesmo porque<br />

inexistiam legislação sobre direito autoral e convenções inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Algumas vezes, porém,<br />

a mistificação ia longe demais, enfurecendo o autor... (2001:44).<br />

Machado refere-se aqui ao interessante episódio em que o tradutor, após o término <strong>da</strong><br />

publicação de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, começa publicar uma nova história,<br />

intitula<strong>da</strong> A mão do fi<strong>na</strong>do, que, segundo alega o jor<strong>na</strong>l, é continuação de O Conde de Monte Cristo.<br />

Não foi dito explicitamente que a obra era de Dumas, mas as coisas foram comunica<strong>da</strong>s de tal modo<br />

que o público foi levado a acreditar nisso. Tanto que a obra chegou a ser incluí<strong>da</strong>, em Portugal, entre as<br />

obras de Dumas. Nessa condição, foi retraduzi<strong>da</strong> para o português.<br />

Dumas chegou a ficar sabendo do acontecido, e escreveu uma carta ao Jor<strong>na</strong>l do Comércio<br />

<strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 20 de outubro de 1853. O jor<strong>na</strong>l não interrompeu a publicação, que continuou conquistando o<br />

mesmo êxito (Idem).<br />

No fundo, talvez o indig<strong>na</strong>do Dumas não estranhasse tanto a postura do nosso tradutor<br />

“espertinho” (mais uma vez, J. J. Rocha). Ele mesmo escreveu ao sabor do gosto do público,<br />

contrariando um dos preceitos básicos atribuídos ao Romantismo, o <strong>da</strong> escrita espontânea, volta<strong>da</strong> para<br />

o mundo interno do autor. Dumas não escrevia para expressar seus sentimentos e deixar extravasar suas<br />

emoções, mas para ganhar dinheiro. Se isso rendesse mais, o autor poderia mu<strong>da</strong>r a história, sem<br />

maiores constrangimentos. 2<br />

2 Após o estrondoso sucesso de O capitão Paulo, Dumas assinou com o jor<strong>na</strong>l Le Siècle um contrato de colaboração<br />

exclusiva, conta-nos Marlyse Meyer 1996: 61). O autor deveria produzir cem mil linhas por ano, ganhando um franco e<br />

meio por linha. Para “fazer a coisa render”, Dumas lança mão de diálogos monossilábicos entabulados por perso<strong>na</strong>gens<br />

secundários. O jor<strong>na</strong>l, quando percebe a tática, estabelece que o ganho seria pela linha inteira. Diante de tal restrição, a<br />

Dumas <strong>na</strong><strong>da</strong> resta além de matar seus lacônicos perso<strong>na</strong>gens.<br />

5


Essas histórias que, apesar de seu tom anedótico, são parte <strong>da</strong> nossa história literária, têm o<br />

poder de arejar a visão consagra<strong>da</strong> do Romantismo, temperando a imagem do poeta/autor ingênuo com<br />

a esperteza e o oportunismo de quem ganha dinheiro com literatura. Servem também para indicar um<br />

caminho ain<strong>da</strong> pouco explorado, o <strong>da</strong> averiguação <strong>da</strong> <strong>influência</strong> dessas traduções <strong>na</strong> produção literária<br />

local. E, acima de tudo, fazem-nos pensar sobre a ingenui<strong>da</strong>de atribuí<strong>da</strong> aos poetas/autores românticos,<br />

que pode deixar de ser considera<strong>da</strong> uma condição determi<strong>na</strong>nte para assumir o papel de condição<br />

conveniente.<br />

3. Uma literatura <strong>na</strong>scente<br />

Brito Broca sugere que a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s traduções deveu-se, em grande medi<strong>da</strong>, a uma falta de<br />

escritores brasileiros que suprissem a deman<strong>da</strong> gera<strong>da</strong> pelos jor<strong>na</strong>is (Broca 2000:105). Mas é<br />

importante não ignorar o fascínio que a Europa, e principalmente a cultura francesa, exerciam sobre o<br />

público brasileiro.<br />

Mesmo assim, a liber<strong>da</strong>de que os tradutores tomavam era bem grande em comparação com o<br />

que se costuma observar nos nossos tempos. Traduzir, a<strong>da</strong>ptar, reduzir e expandir textos eram<br />

ativi<strong>da</strong>des não suficientemente diferencia<strong>da</strong>s. Por outro lado, a própria produção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l seguia de<br />

perto as obras européias, sem que isso precisasse sequer ser disfarçado.<br />

O já mencio<strong>na</strong>do Justiniano José <strong>da</strong> Rocha, uma <strong>da</strong>s grandes figuras <strong>da</strong> época, também atuou<br />

como autor, tendo produzido alguns romances-folhetins. Em seu prefácio a Os assassinos misteriosos,<br />

ou a paixão dos diamantes, de 1839, Justiniano escreve:<br />

Será traduzi<strong>da</strong>, será imita<strong>da</strong>, será origi<strong>na</strong>l a novela que ofereço, leitor benévolo? Nem eu<br />

mesmo que a fiz vô-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês, que se<br />

ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cui<strong>da</strong>do de reduzi-los<br />

6


aos limites de apêndices, cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os<br />

lugares em que me parecia dever traduzir, substituindo com reflexões minhas o que me parecia<br />

dever ser substituído; uma coisa só tive em vista, agra<strong>da</strong>r-vos. (Rocha: 1839, in: Serra 1997:<br />

57-58).<br />

Fica patente a preocupação do autor em agra<strong>da</strong>r ao leitor, preocupação essa que justifica uma<br />

certa displicência (principalmente se pensarmos do ponto de vista atual) quanto à categoria a que<br />

pertence o seu texto (em parte <strong>tradução</strong>, em parte a<strong>da</strong>ptação, em parte texto condensado...). Essa<br />

“indecisão” de Rocha deixa entrever uma forte tensão que se instala nesse momento, relativa à<br />

identi<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. O grande frisson do momento é seguir o modelo europeu, mas ao mesmo tempo<br />

existe a necessi<strong>da</strong>de de criar, consoli<strong>da</strong>r e afirmar a identi<strong>da</strong>de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Os melodramas dos folhetins<br />

tendiam a trazer paisagens distantes, retratar ambientes remotos e longínquos, quando não exóticos. Em<br />

sentido contrário, manifesta-se a tendência de criar perso<strong>na</strong>gens bem brasileiros, como a brejeira<br />

Moreninha, o malandro Leo<strong>na</strong>rdo Pataca com o populacho que o rodeia e, por que não, aquele índio<br />

idealizado de nosso Romantismo, que embora parecesse mais um cavaleiro medieval europeu, não<br />

deixou de representar um desejo de afirmação de <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de, uma busca de origem, mítica como são<br />

to<strong>da</strong>s as origens.<br />

É possível observar um movimento de aclimatação <strong>da</strong>s histórias, um abrasileiramento do<br />

ambiente em que elas ocorrem. Justiniano José <strong>da</strong> Rocha, tradutor dos festejados e célebres Mistérios<br />

de Paris, que inspiraram em nosso país inúmeros outros “mistérios” 3 , inicia o já citado Os assassinos<br />

misteriosos, ou a paixão dos diamantes <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Paris era teatro de crimes e suplícios horrorosos; a infame Brinvilliers, esse monstro, que a<br />

vingança e a sede do ouro havia precipitado <strong>da</strong> mais alta posição no abismo <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção,<br />

3 Brito Broca lista dois: Os mistérios <strong>da</strong> Roça e Ver<strong>da</strong>deiros mistérios do Rio de Janeiro (BROCA 2000: 111). Já Marlyse<br />

Meyer encontrou em sua pesquisa muitos outros “mistérios”, entre eles Mistérios <strong>da</strong> rua <strong>da</strong> Aurora, Mistérios <strong>da</strong> Tijuca,<br />

Mistérios do Recife, Mistérios do Rio de Janeiro, Mistérios do Brasil (MEYER 1996: 466).<br />

7


acabava de pagar no ca<strong>da</strong>falso seus adultérios, seus envene<strong>na</strong>mentos, seu parricídio[...].<br />

Muitos inocentes foram então perseguidos; viram-se muitas perso<strong>na</strong>gens de alto coturno,<br />

muitos empavo<strong>na</strong>dos cortesãos, comprometidos e lançados <strong>na</strong>s masmorras.<br />

Essa sucessão de crimes, de processos, de suplícios, penhorava, sem exauri-la, to<strong>da</strong> a<br />

curiosi<strong>da</strong>de do povo parisiense, quando novos atentados vieram distraí-la, e profun<strong>da</strong>mente<br />

alterá-la. Raro era o dia em que se não achasse <strong>na</strong> rua um cadáver, rara a ron<strong>da</strong> notur<strong>na</strong> que<br />

não descobrisse uma vítima; e todos os corpos achavam-se feridos do mesmo modo: uma só<br />

feri<strong>da</strong> feita com o mesmo instrumento; uma só, no coração, profun<strong>da</strong> e triangular. (In: Serra<br />

1997: 58).<br />

De 1839, quando foi publicado o romance de Justiniano J. <strong>da</strong> Rocha, para 1844, quando veio a<br />

público Maria, ou vinte anos depois, de Joaquim Norberto de Sousa e Silva, já se pode notar um<br />

progresso no abrasileiramento <strong>da</strong>s paisagens e do ambiente. O primeiro capítulo de Maria,<br />

sintomaticamente intitulado “O Rapto”, abre-se <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Aprazíveis são as montanhas <strong>da</strong> Gávea. É de sobre suas pedras eleva<strong>da</strong>s, esses rochedos<br />

enormes que sobejam às suas encostas, e de entorno às suas florestas, que se descobre a<br />

imensi<strong>da</strong>de do oceano Atlântico, que perde-se no infinito, lá onde assenta-se a base azula<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

abóba<strong>da</strong> do céu e rara vela branqueja como o atiati que esvoaça, asas imóveis que nem<br />

trepi<strong>da</strong>m, de sobre a superfície <strong>da</strong>s águas, lá onde se perde o pensamento cansado de divagar...<br />

(In: Serra 1997:120)<br />

A descrição segue citando “leques de palmeiras” e “pássaros com suas plumas de varia<strong>da</strong>s cores”,<br />

culmi<strong>na</strong>ndo com animais <strong>na</strong>tivos:<br />

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O sabiá gorjeia placi<strong>da</strong>mente, a paca percorre o abaulado do monte e o escamoso tatu vaga<br />

pela margem desses veios de cristali<strong>na</strong>s águas... (In: Serra 1997: 121).<br />

Já <strong>na</strong> segun<strong>da</strong> metade do século XIX, Aluísio Azevedo é um dos que exemplificam ain<strong>da</strong> mais<br />

o abrasileiramento dos ambientes dos romances. O texto de Os mistérios <strong>da</strong> Tijuca, posteriormente<br />

intitulado Girândola de amores, já nem traz mais elementos de nossa exuberante <strong>na</strong>tureza, tão caros às<br />

primeiras gerações românticas. O que se vê é um ambiente urbano e uma preocupação em identificar<br />

espaços bastante conhecidos dos moradores do Rio de Janeiro <strong>da</strong> época. Perdura, to<strong>da</strong>via, a veia<br />

sensacio<strong>na</strong>lista, as fortes cores do gênero folhetinesco:<br />

Justamente no dia do malogrado casamento de Gregório, o Dr. Ludgero, então chefe de polícia <strong>da</strong><br />

Corte, acabava de entrar <strong>na</strong> casa de sua residência à rua <strong>da</strong> Aju<strong>da</strong>, quando o orde<strong>na</strong>nça lhe<br />

entregou, por man<strong>da</strong>do do ativo delegado Benevides, a parte de um grande crime, que nessa<br />

mesma tarde se havia cometido nos armazéns de rapé do popular fabricante Paulo Cordeiro.<br />

Ludgero levantou-se incontinenti <strong>da</strong> mesa, tomou apressado o chapéu e a bengala, meteu-se<br />

no carro e disse ao cocheiro que tocasse para a ladeira <strong>da</strong> Conceição.<br />

O carro parou à entra<strong>da</strong> de uma espécie de corredor, que conduzia sinistramente a um<br />

lugar apertado, sujo e abafado pelo teto. Era aí que a polícia detinha os cadáveres complicados<br />

em qualquer crime. Ain<strong>da</strong> não existia o Necrotério.<br />

Fazia péssima impressão entrar <strong>na</strong>quela pocilga <strong>da</strong> morte, cujo aspecto repulsivo dizia todos<br />

os mistérios <strong>da</strong> miséria huma<strong>na</strong>.[...] Sobre uma <strong>da</strong>s mesas, jazia, glacial e rígido, o corpo<br />

ensangüentado de um homem branco. Ao lado, dentro de um caixão de forma especial e com as<br />

tábuas enseba<strong>da</strong>s pelo hábito de carregar os despojos <strong>da</strong>s autópsias, viam-se matérias informes,<br />

de uma cor estranha e repug<strong>na</strong>nte, dentre as quais sobressaíam vísceras huma<strong>na</strong>s, gor<strong>da</strong>s e<br />

brancas como carne de porco, e um crânio, cerrado ao meio, deixando transbor<strong>da</strong>r a massa<br />

9


compacta dos miolos. Em torno de tudo isto zumbiam moscas. (Azevedo 1882: cap. III).<br />

Nota-se portanto que, lentamente, a ambientação <strong>da</strong>s histórias vai se transformando, passando a<br />

incluir elementos tipicamente brasileiros. Seria redun<strong>da</strong>nte enfatizar a <strong>influência</strong> européia em nosso<br />

meio cultural/jor<strong>na</strong>lístico. Nossos intelectuais, jor<strong>na</strong>listas e artistas, em sua esmagadora maioria,<br />

tiveram alguma vivência <strong>na</strong> Europa, que era um inegável centro de ema<strong>na</strong>ção de modelos sociais,<br />

culturais e artísticos. Até nossa veia <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista é importa<strong>da</strong> dos ideais românticos europeus.<br />

Talvez o que em geral passe despercebido é a atuação <strong>da</strong> <strong>tradução</strong> nesse momento. As obras<br />

traduzi<strong>da</strong>s, que abasteciam os jor<strong>na</strong>is e conviviam praticamente em pé de igual<strong>da</strong>de com as produções<br />

locais, eram toma<strong>da</strong>s muitas vezes como modelo para as publicações de nossos autores. Assim como<br />

não havia regras muito bem-defini<strong>da</strong>s quanto a traduzir, a<strong>da</strong>ptar, ou condensar uma obra estrangeira,<br />

também não havia uma delimitação precisa entre literatura “de primeira” e “de segun<strong>da</strong> linha”. Não<br />

havia espaços distintos para as duas categorias, e o pé-de-pági<strong>na</strong>, espaço reservado para romances,<br />

crítica de teatro, artigos sobre mo<strong>da</strong> e costumes, entre outros, abrigou obras que hoje estão<br />

praticamente perdi<strong>da</strong>s, por serem considera<strong>da</strong>s comerciais e de pouca quali<strong>da</strong>de. Por outro lado, nesse<br />

mesmo espaço foram veicula<strong>da</strong>s obras considera<strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>mentais para a nossa literatura, como<br />

Memórias de um Sargento de Milícias, A moreninha, Quincas Borba, e O Guarani. Para um público<br />

novo, jovem e relativamente ingênuo, talvez essas diferenças de quali<strong>da</strong>de não ficassem tão evidentes.<br />

É nesse estado de indefinição que a <strong>tradução</strong> incide, não só nos modos usuais que costumamos abor<strong>da</strong>r,<br />

como um meio de difusão de obras estrangeiras em nossa terra, mas também como um espaço em que<br />

há grande elastici<strong>da</strong>de e tolerância quanto a questões de autoria, fideli<strong>da</strong>de e origi<strong>na</strong>li<strong>da</strong>de.<br />

Bibliografia:<br />

AZEVEDO, A. (1992). Girândola de Amores, texto disponível para download em<br />

http://www.ig.com.br/pagi<strong>na</strong>s/novoigler/autores.html<br />

10


BRANDÃO, T. (2001) Translation and ellipses: notes on 19th century Brazilian theatre, Crop 6, p. 91-<br />

107<br />

BROCA, B. (2000). Aluísio Azevedo e o romance-folhetim. In: BILAC, Olavo; e MALLET, Par<strong>da</strong>l. O<br />

esqueleto. Rio de Janeiro: Casa <strong>da</strong> Palavra.<br />

CARDIM, E.(1964) Justiniano José <strong>da</strong> Rocha. São Paulo: Companhia Editora Nacio<strong>na</strong>l.<br />

MACHADO, U. (2001) A vi<strong>da</strong> literária no Brasil durante o romantismo. Rio de Janeiro: EdUERJ.<br />

MEYER, M.. (1996) Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras.<br />

ROCHA, J. J.. (1839) Os assassinos misteriosos, ou a paixão dos diamantes. In: SERRA, Tânia Rebelo<br />

Costa (1997). Antologia do romance-folhetim: 1839-1870. Brasília: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Brasília.<br />

SERRA, T. R. C.. (1997) Antologia do romance-folhetim: 1839-1870. Brasília: Editora <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Brasília.<br />

WYLER, L. (2001) Translating Brazil, Crop 6, p.33-50.<br />

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