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EM QUE SE TRADUZ A INGENUIDADE ... - Lenita Esteves

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<strong>EM</strong> <strong>QUE</strong> <strong>SE</strong> <strong>TRADUZ</strong> A <strong>INGENUIDADE</strong> ROMÂNTICA? 1<br />

(WHAT IS ROMANTIC INGENUOUSNESS TRANSLATED INTO?)<br />

<strong>Lenita</strong> Maria Rimoli ESTEVES (Universidade de São Paulo)<br />

ABSTRACT: Concerning fidelity and authorship, 19 th century Brazilian translators seem to oppose<br />

two of the main characteristics attributed to Romanticism: spontaneity and subjectivity. They seem to<br />

be more faithful to their audience than to the original author, which would be contrary to the<br />

assumption of spontaneous and subjective creation, one of the basic tenets of Romanticism.<br />

KEYWORDS: translation; authorship, fidelity, Romanticism<br />

0. Introdução<br />

Nos estudos literários, o movimento romântico é geralmente associado a conceitos como<br />

ingenuidade, espontaneidade, idealismo e subjetividade. Os livros escolares de literatura parecem<br />

unânimes em caracterizar os poetas e autores românticos em geral como personalidades ingênuas,<br />

entregues à vida e a suas paixões, inexperientes e muitas vezes incautas. É o que vemos, por exemplo,<br />

na caracterização do movimento feita por Douglas Tufano (1998: 16):<br />

Apesar de ter sido um movimento rico, com múltiplos desdobramentos, há uma característica<br />

que distingue o escritor romântico dos escritores de outras épocas – o gosto pela confissão<br />

plena dos sentimentos ou emoções que agitam seu íntimo, numa atitude individualista e<br />

profundamente pessoal, que recusa o controle da razão. É o triunfo da paixão e da<br />

sensibilidade. É também a expressão da melancolia, do sofrimento amoroso, da insatisfação<br />

com a vida (grifo do autor).<br />

No caso específico do Brasil, essa impressão de espontaneidade e inexperiência acaba sendo<br />

reforçada por nossa própria condição de nação que acaba de nascer e está em fase de consolidação.<br />

Jovem é o país, há pouco desvinculado politicamente de Portugal, assim como são tipicamente jovens<br />

os poetas românticos, a maioria deles deixando a vida ainda na flor da juventude. Nossa jovem e febril<br />

1 Este trabalho foi apresentado em forma de comunicação no 50 0 Seminário do GEL, em 2002.


nação assiste ao nascimento e a uma difusão também de nossa literatura. Proliferam os jornais, muitos<br />

deles tendo uma vida efêmera. Os jornais aparecem e desaparecem rapidamente, dando lugar a tantos<br />

outros jornais, num movimento de constante renovação.<br />

Um dos grandes atrativos dos jornais na época foi, como se sabe, o romance-folhetim, narrativa<br />

em geral extravagante e apaixonada que surgia aos pedaços, em publicação seriada que arrebatava a<br />

paixão do público e multiplicava, por conta disso, as vendas dos jornais. Grande parte dessas<br />

narrativas era importada, as histórias vindo especialmente da França, sendo traduzidas no Brasil para<br />

sua publicação nos jornais locais. Como se pode deduzir, a atividade tradutória fervilhava, nessa<br />

época, com o mesmo entusiasmo da paixão romântica.<br />

Mas antes que se enfoque especificamente a tradução do romance-folhetim no século XIX, vale<br />

a pena detalhar um pouco mais o contexto, definindo melhor o cenário sócio-cultural em que essa<br />

atividade floresceu com tanto vigor.<br />

1. Tradução, imprensa, literatura e cultura<br />

Como nos informa Lia Wyler (2001: 41-42), no Brasil, antes de 1888, as tentativas de produzir<br />

papel não foram bem-sucedidas. Na área de tipografia, não havia trabalhadores especializados, sendo o<br />

maquinário e a matéria-prima extremamente caros. Era muito mais barato importar livros, revistas e<br />

jornais da França, que chegavam quinze dias após seu lançamento naquele país. A falta de<br />

profissionais de imprensa em nosso país forçava os editores a recorrer a notícias, artigos e histórias<br />

vindas de fora para encher os jornais. Ao que parece, não faltou trabalho para os tradutores.<br />

A escassez de material produzido aqui no Brasil não se restringia aos campos das artes, do<br />

jornalismo e do entretenimento. Também nos bancos escolares faltavam livros didáticos em<br />

português. Justiniano José da Rocha, professor, jornalista e tradutor, viu-se obrigado a traduzir livros<br />

de História. Justiniano chegou até a escrever um livro didático de Geografia, que não foi muito bem<br />

aceito entre seus pares. Constatou-se, à mesma época, a falta de um livro de História do Brasil. Em<br />

1840 Justiniano propõe em uma sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a constituição de<br />

uma comissão especial que ficaria incumbida dessa tarefa. A proposta foi aprovada, mas o projeto<br />

acabou não sendo levado a cabo (Cardim, 1964: 52).<br />

O caráter incipiente da produção literária, jornalística e cultural no Brasil se reflete,<br />

indubitavelmente, no comportamento do público diante dessa produção. Na maioria dos casos, a<br />

produção cultural não passava de um pretexto para encontros sociais. Como relata Tânia Brandão<br />

(2001: 97), Martins Pena tinha uma visão bastante crítica de seu público, que ia aos teatros para ver o<br />

que acontecia nos camarotes. A platéia permanecia iluminada, a iluminação do palco era ruim e isso,


somado à fumaça dos charutos, praticamente impedia a visão do que acontecia no palco. Portanto, ir ao<br />

teatro era uma busca de contato com a “civilização”, restringindo-se a um acontecimento social.<br />

2. Ingênuo?<br />

Nesse contexto, a homofonia estabelecida entre as palavras “insipiente” e “incipiente” acaba<br />

contaminando a distinção entre esses dois termos, passando os dois a ser aplicáveis no caso do público<br />

brasileiro, que não sabe “se comportar” porque ainda é principiante, jovem demais para ter uma<br />

conduta adequada.<br />

Agora que o cenário foi minimamente estabelecido, podemos voltar à tradução do romance-<br />

folhetim. Em meio a um ambiente tão insipiente e incipiente, como será que se portavam os tradutores<br />

em relação à questão da fidelidade, por exemplo? Que respeito era devido ao autor? E caso o autor do<br />

texto original não recebesse o devido respeito, poderia tal fato ser atribuído a uma ingenuidade dos<br />

tradutores? Alguns relatos talvez nos esclareçam algo sobre essa questão.<br />

Conta-nos Ubiratan Machado (2001: 43-44) que, em 1866, Machado de Assis foi traduzindo Os<br />

trabalhadores do mar, de Vítor Hugo, à medida que a história ia sendo publicada em fascículos em um<br />

jornal em Paris, sendo o intervalo entre a publicação na França e no Brasil equivalente ao tempo de<br />

viagem de um navio de lá para cá. Sem dúvida, essa prática era bastante arrojada para a época e, como<br />

se poderia esperar, criou situações inusitadas.<br />

Um romance-folhetim bastante famoso em sua época, tanto por sua popularidade quanto por<br />

seu caráter interminável, foi o Rocambole, de Ponson du Terrail. A obra foi traduzida para o português<br />

por Souza Ferreira e publicada no carioca Jornal do Comércio, que utilizou a mesma tática descrita no<br />

parágrafo anterior. No entanto, um atraso na chegada dos originais causou uma lacuna no andamento<br />

da história. Dado o sucesso da narrativa, julgou-se mais apropriado continuar a história assim mesmo,<br />

o que ficou a cargo do tradutor. Tudo era aceitável, menos interromper a história. Machado nos<br />

informa que Souza Ferreira fez isso mesmo, chegando até a “matar” alguns personagens. Tal medida<br />

lhe custou trabalho em dobro, quando a regularidade do correio foi restabelecida e o tradutor teve<br />

acesso de novo aos originais. Foi necessário “ressuscitar” personagens para conciliar o trecho da<br />

história criado pelo tradutor com o restante, produzido pelo autor (Machado, 2001: 44).<br />

Fato semelhante aconteceu com a tradução de Os moicanos de Paris, de Alexandre Dumas,<br />

publicado pelo Correio Mercantil. Augusto Emílio Zaluar, o tradutor, viu-se frente ao mesmo<br />

problema, a interrupção da historia. Só que, nesse caso, o motivo não foi o transporte dos originais,<br />

mas sua própria produção. Dumas interrompera a publicação da obra no jornal parisiense, o que se<br />

estendeu por um tempo considerável. O tradutor não se deu por achado: deu continuidade ao romance,<br />

chegando a ponto de dar-lhe um desfecho. Posteriormente, o jornal de Paris recomeça a publicação, e o


asileiro prossegue com a publicação da tradução da obra, que acabou tendo dois finais diferentes,<br />

sem que nada tivesse sido explicado ao público (Idem). Nas palavras de Machado,<br />

Essas traduções eram feitas sem qualquer autorização dos autores ou de seus editores. Nesta<br />

banda de cá do Atlântico, ninguém respeitava a propriedade intelectual. Mesmo porque<br />

inexistiam legislação sobre direito autoral e convenções internacionais. Algumas vezes, porém,<br />

a mistificação ia longe demais, enfurecendo o autor... (2001: 44).<br />

Machado refere-se aqui ao interessante episódio em que o tradutor, após o término da<br />

publicação de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, começa publicar uma nova história,<br />

intitulada A mão do finado, que, segundo alega o jornal, é continuação de O Conde de Monte Cristo.<br />

Não foi dito explicitamente que a obra era de Dumas, mas as coisas foram comunicadas de tal modo<br />

que o público foi levado a acreditar nisso. Tanto que a obra chegou a ser incluída, em Portugal, entre<br />

as obras de Dumas. Nessa condição, foi retraduzida para o português.<br />

Dumas chegou a ficar sabendo do acontecido, e escreveu uma carta ao Jornal do comércio<br />

datada de 20 de outubro de 1853. O jornal não interrompeu a publicação, que continuou conquistando<br />

o mesmo êxito (Idem).<br />

No fundo, talvez o indignado Dumas não estranhasse tanto a postura do nosso tradutor<br />

“espertinho”. Ele mesmo escreveu ao sabor do gosto do público, contrariando um dos preceitos básicos<br />

atribuídos ao Romantismo, o da escrita espontânea, voltada para o mundo interno do autor. Dumas não<br />

escrevia para expressar seus sentimentos e deixar extravasar suas emoções, mas para ganhar dinheiro.<br />

Se isso rendesse mais, o autor poderia mudar a história, sem maiores constrangimentos.<br />

Após o estrondoso sucesso de O capitão Paulo, Dumas assinou um contrato com o jornal Le<br />

Siècle um contrato de colaboração exclusiva, conta-nos Marlyse Meyer (1996: 61). O autor deveria<br />

produzir cem mil linhas por ano, ganhando um franco e meio por linha. Para “fazer a coisa render”,<br />

Dumas lança mão de diálogos monossilábicos entabulados por personagens secundários. O jornal,<br />

quando percebe a tática, estabelece que o ganho seria pela linha inteira. Diante de tal restrição, a<br />

Dumas nada resta além de matar seus lacônicos personagens.<br />

Essas histórias que, apesar de seu tom anedótico, são parte da nossa história literária, têm o<br />

poder de arejar a visão consagrada do Romantismo, temperando a imagem do poeta/autor ingênuo com<br />

a esperteza e o oportunismo de quem ganha dinheiro com literatura. Servem também para indicar um<br />

caminho ainda pouco explorado, o da averiguação da influência dessas traduções na produção literária<br />

local. E, acima de tudo, fazem-nos pensar sobre a ingenuidade atribuída aos poetas/autores românticos,<br />

que pode deixar de ser considerada uma condição determinante para assumir o papel de condição<br />

conveniente.


RESUMO: Em relação à fidelidade e à autoria, os tradutores do Romantismo brasileiro parecem<br />

contrariar duas das principais características atribuídas ao movimento, a espontaneidade e o<br />

subjetivismo. Eles parecem mais fiéis ao público que ao autor original, contrariando um dos<br />

pressupostos básicos do Romantismo, o da criação subjetiva e espontânea.<br />

PALAVRAS-CHAVE: tradução; autoria; fidelidade; ingenuidade; Romantismo<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

CARDIM, E. Justiniano José da Rocha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964.<br />

MACHADO, U. A vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,<br />

2001.<br />

MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.<br />

TUFANO, D. Estudos de Língua e Literatura, 5. ed. reform. São Paulo: Moderna, 1988.<br />

WYLER, L. Translating Brazil. In: Crop 6, p.33-50, 2001.

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