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E chorou mais, muito mais ain<strong>da</strong>, deixan<strong>do</strong> que seus nervos vibrassem<br />
violentamente àquela mágoa, com uma veemência nunca<br />
atingi<strong>da</strong> pela sua <strong>do</strong>entia sensibili<strong>da</strong>de.<br />
CAPíTULO VI<br />
FLORZJNHA estava senta<strong>da</strong>, a fazer croché, à sombra <strong>da</strong> folhu<strong>da</strong> mangueira<br />
<strong>do</strong> quintal, e, manejan<strong>do</strong> a longa agulha, cismava em coisas<br />
que ultimamente tinham vin<strong>do</strong> <strong>da</strong>r à sua existência uma feição insólita,<br />
perturba<strong>do</strong>ra, como se de repente abrolhassem pedrouços<br />
àsperos no leito de um regato tranqüilo e claro. Até então ela vivera<br />
na fruição secreta de um afeto infantilmente casto, brota<strong>do</strong> um<br />
dia em seu coração, mas tão vela<strong>do</strong> e tími<strong>do</strong> que ninguém jamais<br />
o suspeitara. Ela surpreendera um olhar de mu<strong>do</strong> fervor que lhe<br />
foi ter ao fun<strong>do</strong> d'alma, rapi<strong>da</strong>mente, como o vento leva um embrião<br />
de flor ao fun<strong>do</strong> de uma gruta. E a flor Já vivia pali<strong>da</strong>mente<br />
na sombra <strong>do</strong> seu primeiro segre<strong>do</strong> <strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s suas lágrimas<br />
sem motivo ain<strong>da</strong>, lágrimas que são apenas a condensação <strong>do</strong>s primeiros<br />
sonhos no ambiente frio <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de exterior.<br />
Agora queriam arrebatá-la à sua deleitosa obscuri<strong>da</strong>de, atirá-la<br />
à plena luz que fecun<strong>da</strong> ou cresta, e um receio aflitivo a salteava,<br />
enchen<strong>do</strong>-lhe a cabeça <strong>do</strong>s zumbi<strong>do</strong>s precursores <strong>da</strong> vertigem. Ela<br />
se sentia como agarra<strong>da</strong> por um braço estouva<strong>do</strong> e invisível que<br />
a puxava e sacudia, despertan<strong>do</strong>-a para sempre <strong>do</strong> sonho <strong>do</strong>ce que vinha<br />
sonhan<strong>do</strong> e com o qual se contentava a sua alma desambiciosa<br />
e resigna<strong>da</strong>. Era uma mulher feita, e a vi<strong>da</strong> a solicitava para assumir<br />
um posto. Essa intervenção despótica, exerci<strong>da</strong> por intermédio<br />
de seu pai, fazia-a viver desde algumas semanas num opressivo<br />
ambiente de temerosas ansie<strong>da</strong>des.<br />
Como costumava nos dias de descui<strong>do</strong>sa tranqüili<strong>da</strong>de, fora sentar-se<br />
debaixo <strong>da</strong> mangueira <strong>do</strong> quintal mas com o semblante anuvia<strong>do</strong><br />
pelas inquietações que lhe trabalhavam o íntimo e com os<br />
olhos fosforea<strong>do</strong>s de clarões de febre.<br />
Suavemente ensombra<strong>do</strong> àquela hora <strong>da</strong> tardinha, o quintal ficava<br />
isola<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> o rumor <strong>da</strong> casa e <strong>da</strong> rua, fecha<strong>do</strong> por altas<br />
cercas revesti<strong>da</strong>s espessamente de melão-de-são-caetano, como verdes<br />
muralhas impenetráveis à vi<strong>da</strong> exterior. Os irmãos pequenos faziam<br />
suas correrias na calça<strong>da</strong>, o pai tinha i<strong>do</strong> à seca11 em casa <strong>do</strong><br />
11 Expressão tipicamente <strong>do</strong> falar lusitano, estranhável em Sales. Seu emprego,<br />
talvez, respondesse ao desejo de fazer concessão ao leitor portu!!uês, pois<br />
o livro seria (e o foi) edita<strong>do</strong> em Lisboa.<br />
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vigário, a mãe estava a cui<strong>da</strong>r <strong>do</strong>s arranjos <strong>da</strong> casa, e ela, sozinha<br />
ali, revolvia em sua cabecinha ardente pensamentos impertinentes<br />
como hóspedes intrusos e barulhentos, numa habitação onde reinava<br />
o amorável silêncio <strong>da</strong> serena felic<strong>da</strong>de. Doía-lhe pensar, mas<br />
pensava, e a longa agulha de níquel oscilava entre seus de<strong>do</strong>s frios e<br />
trêmulos, elaboran<strong>do</strong> impecavelmente os arabescos <strong>da</strong> tira branca<br />
que se lhe enrodilhava no colo.<br />
A solidão, que sempre fora grata ao seu espírito de contemplativa,<br />
atemorizava-a naquele momento, e vinham-lhe ímpetos de fugir<br />
<strong>da</strong>li e ir para o la<strong>do</strong> <strong>da</strong> mãe, cingir-se a ela como no tempo em<br />
que as histórias de almas pena<strong>da</strong>s a enchiam de incoercíveis terrores.<br />
Mas Mariana, a velha ex-escrava que a criara, lá vinha se arrastan<strong>do</strong><br />
para fumar o seu cachimbo junto ao tronco <strong>da</strong> mangueira,<br />
sentan<strong>do</strong>-se quase a seus pés, a soltar em silêncio lentas e tênues<br />
bafora<strong>da</strong>s, muito entreti<strong>da</strong> em ver as galinhas subir uma a uma<br />
para os galhos <strong>da</strong>s ateiras, depois de calcularem por um instante o<br />
esforço preciso para a ascensão. Num momento em que Florzinha<br />
parara as mãos e descansava o <strong>do</strong>rso de encontro ao encosto <strong>da</strong> cadeira,<br />
a preta tirou o cachimbo <strong>da</strong> boca, encalcou o fumo com<br />
o de<strong>do</strong> e, cuspin<strong>do</strong> para o la<strong>do</strong>, rompeu o silêncio:<br />
- Você sabe que Lina está outra vez banzan<strong>do</strong>?<br />
Florzinha compreendeu que Mariana fazia um exórdio para chegar<br />
a outro assunto; mas, afetan<strong>do</strong> interes'le pelo caso de Lina, antiga<br />
cria<strong>da</strong> de uma família vizinha, exclamou:<br />
- O que! já saiu <strong>da</strong> casa <strong>do</strong> Zé Lopes? Mas não faz quinze<br />
dias que ela foi para lá!<br />
- :S como lhe digo, Fulô. Aquilo lá toma mais juízo! Estava<br />
ganhan<strong>do</strong> oito mil réis por mês e roupa só para cui<strong>da</strong>r <strong>do</strong>s meninos.<br />
- Mas por que saiu ela?<br />
- Sei lá! Veio esta noite cá contan<strong>do</strong> muita lambança, que o<br />
Zé Lopes é muito impertinente, que a mulher é muito enjoa<strong>da</strong>, que<br />
os meninos são uns capirotos . . . Partes de cabra influí<strong>da</strong>, que quer<br />
casar.<br />
- Ah! Ela vai casar? Com quem?<br />
- Eu nem te digo, menina. Com uma peste de caboclinho sem<br />
fun<strong>da</strong>mento, que bebe de cair e é aleija<strong>do</strong> de um braço. Não te<br />
lembras <strong>do</strong> porta<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s canas que a tua amiga <strong>do</strong> Grajaú te man<strong>do</strong>u<br />
outro dia?<br />
- Sim, lembro-me; estava muito ébrio.<br />
- Aquilo só vive tonto, é um dia sim outro também. Então<br />
está em cima <strong>da</strong> fartura <strong>da</strong> cachaça!<br />
Que maluca!<br />
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- A cabra só fala em casamento, tanto pra ele como pra o&<br />
cutros. E sabe o que ela me contou? Que você também está pra<br />
casar.<br />
- Que história é essa? - disse Florzinha com aspereza, tornan<strong>do</strong>-se<br />
rubra e franzin<strong>do</strong> os sobrolhos.<br />
- Diz que na Feira é só em que se fala; to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> faz caçoa<strong>da</strong><br />
de ti com esse <strong>do</strong>utô novo que vem aqui.<br />
Florzinha não replicou, mas a expressão carrega<strong>da</strong> <strong>do</strong> seu semblante<br />
fez com que a preta não prosseguisse. Se a menina ficava<br />
aborreci<strong>da</strong> só com isso, pensava ela, quanto mais se soubesse que<br />
diziam que o <strong>do</strong>utor só queria divertir-se à custa dela, que chamavam<br />
seu pai de alcoviteiro? E a pobre <strong>da</strong> D. Bilinha, então, que<br />
não diziam dela também com o <strong>do</strong>utor? Isso ain<strong>da</strong> era pior.<br />
- Mamãe soube alguma coisa <strong>do</strong> que a Lina disse? - perguntou<br />
por fim Florzinha com os olhos no croché.<br />
- Menina, eu acho que não: a Lina só esteve comigo na cozinha<br />
e depois foi embora.<br />
Fez-se de novo um silêncio; Mariana tornou a encalcar o fumo <strong>do</strong><br />
cachimbo e, deitan<strong>do</strong>-se de la<strong>do</strong> sobre o cotovelo e baixan<strong>do</strong> a voz<br />
para o tom <strong>da</strong>s confidências, perguntou com uma inflexão maternal:<br />
- Mas, Fulô, não há mesmo na<strong>da</strong>, não, entre esse moço e você?<br />
- Que pergunta, Nanã! Um homem que chegou outro dia . ..<br />
Nem ele pensa em mim nem eu nele. Fico furiosa com essas histórias<br />
de casamento para mim!<br />
- Ora, benzinho, você há de casar sempre com Sancho ou com<br />
Martim12•<br />
- Mas não quero essas histórias comigo! Que línguas malva<strong>da</strong>s<br />
as desta terra!<br />
E a rapariga levou a mão aos olhos intumesci<strong>do</strong>s por uma on<strong>da</strong><br />
de pranto. A preta aproximou-se mais de Florzinha e abraçan<strong>do</strong>a<br />
pelos joelhos:<br />
- Deixe de choro, minha filha; se você não quer, ninguém a<br />
obriga.<br />
- Que não dirão de mim por aí! - exclamava a moça, enxugan<strong>do</strong><br />
os olhos na aba <strong>do</strong> casaco. Essa canalha <strong>da</strong> Feira é até capaz<br />
de escrever infâmias pelas paredes, como costuma.<br />
Essas mofinas murais eram a arma terrível <strong>da</strong> maledicência <strong>da</strong><br />
terra; as casas de pintura nova eram outras tantas colunas de Pas-<br />
t:. Expressão hoje em processo de desaparecimento, mo<strong>do</strong> eufcmístico significan<strong>do</strong><br />
com esse ou aquele.<br />
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quino13, cobertas de inscrições, umas mais apaga<strong>da</strong>3, outras mais<br />
frescas, conten<strong>do</strong> alusões a certos fatos ou a cert2s pessoas.<br />
Com as últimas palavras, o pranto de Florzinha recrudesceu, sacudin<strong>do</strong>-lhe<br />
o peito com soluços abaf2<strong>do</strong>s de encontro aos joelhos,<br />
sobre os quais ela se <strong>do</strong>brara como uma planta bati<strong>da</strong> por um sopro<br />
de borrasca. Mariana, muito arrependi<strong>da</strong> de ter provoca<strong>do</strong> aquela<br />
cena, acariciava-a, exortava-a, a não se mortificar à toa. Sinhá podia<br />
chegar ...<br />
D. Claudina apareceu com efeito e seus olhos e fixaram na filha,<br />
que, sentin<strong>do</strong> a sua chega<strong>da</strong>, começou a soluçar mais forte.<br />
- Que é isto, minha filha? - interrogou, embora entreadivinhan<strong>do</strong><br />
já a causa <strong>do</strong> pranto.<br />
Não ten<strong>do</strong> resposta, voltou-se para a preta:<br />
- Que é isto, Mariana? Por que chora Florzinha deste mo<strong>do</strong>?<br />
- :É pro mode umas histórias que a Lina contou.<br />
E a preta começara a desenrolar de novo o seu exórdio cheio de<br />
apreciações sobre a Lina, quan<strong>do</strong> a patroa a interromoeu impaciente:<br />
- Mas que histórias são essas? Deixa-te de rodeios.<br />
Florzinha enrolou atabalhoa<strong>da</strong>mente o croché e recolheu-se à casa.<br />
Então a preta, muito escabria<strong>da</strong>, reproduziu as histórias <strong>da</strong> Lina<br />
em to<strong>da</strong>s as miudezas, inclusive a parte referente à professora; e<br />
concluiu dizen<strong>do</strong>:<br />
- Vosmincê sabe que eu não sou de mexericos; falei a Fulô<br />
pensan<strong>do</strong> que fazia bem. Antes eu não me metesse com o que não é<br />
<strong>da</strong> minha conta. Os brancos lá se entendem com os seus furdunços!<br />
Mariana levantou-se, baten<strong>do</strong> com o cachimbo no tronco <strong>da</strong> mangueira<br />
para fazer cair a cinza. D. Claudina ouvira em silêncio to<strong>da</strong><br />
a narrativa; o caso, em sua desagradável complicação, magoava<br />
a sua natureza simples, afeita ao ramerrão bonançoso de uma existência<br />
sem dramas. Com que direito vinha essa gente tomar conta<br />
de sua filha, uma pobre criança que era anonta<strong>da</strong> como um exemplo<br />
de bom comportamento? Ain<strong>da</strong> an<strong>do</strong>u alguns instantes arrastan<strong>do</strong><br />
o seu corpo anafa<strong>do</strong> por baixo <strong>da</strong>s fruteiras, pungi<strong>da</strong> de um<br />
mal-estar profun<strong>do</strong> e preparan<strong>do</strong>-se para nessa mesm noite interpelar<br />
o mari<strong>do</strong> e pô-lo ao fato <strong>do</strong> que se pas1ava: ele era o<br />
responsável por tu<strong>do</strong> isso, na sua mania de ter um genro <strong>do</strong>utor.<br />
Se para isso se devia servir de zombaria na Feira e em to<strong>da</strong> a<br />
ci<strong>da</strong>de e ver a sua filha chorar dessa maneira, agradeci<strong>da</strong>, dispensava<br />
tamanha honra. D. Claudina deixou Florzinha a sós com a<br />
l:l Ah"sfío crudit'l c'o nntnr no h.bito <strong>do</strong> T"Onnbcl1o ele Ron1>. n n?rtir <strong>do</strong><br />
século XVI, de afixar notícias, geralmente mal<strong>do</strong>sas, ao pé de uma estátua mutila<strong>da</strong>,<br />
nas proximi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> casa de um snonteiro cham::clo .,,,con;r.o. nur,,<br />
laro aue ro;e tem o seu nome. Por extensão, chama-se ,asquim jornal f1l1C<br />
se dedir'\ à i:1triga, à maledicência.<br />
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sua mágoa e foi sentar-se à ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> vizinha até que viesse o mari<strong>do</strong>.<br />
Asclepíades voltou às oito horas com o promotor, hora em que<br />
de ordinário este costumava sair para o víspora <strong>da</strong> professora.<br />
- O nosso promotor veio cear coalha<strong>da</strong> conosco, - anunciou<br />
o <strong>do</strong>no <strong>da</strong> casa com alvoroço amável.<br />
- Dá-nos muito prazer, <strong>do</strong>utor.<br />
- Que é <strong>da</strong> Florzinha? - perguntou, inspecionan<strong>do</strong> a casa com<br />
um olhar inquieto.<br />
- Foi deitar-se; está com muita <strong>do</strong>r de cabeça.<br />
Asclepíades mu<strong>do</strong>u subitamente de expressão; seu olhar tornouse<br />
duro sob a testa encapela<strong>da</strong> de rugas. Conteve-se dificilmente<br />
para não exigir explicações mais completas. Alípio disfarçava com<br />
a caricatura de um sorriso o seu desapontamento. Passar duas horas<br />
com aquele casal e a filhara<strong>da</strong> não era um prazer de deuses. Os<br />
meninos meio ariscos, meio risonhos, enroscavam-se pelos portais<br />
de de<strong>do</strong> na boca, com uns grandes olhos curiosos.<br />
- Estará esta matutinha a fugir-me? - pensou ele no primeiro<br />
instante, lembran<strong>do</strong>-se desse <strong>do</strong>mingo em que a rapariga se esquivou<br />
com o propósito visível de não ir à igreja a seu la<strong>do</strong>. Nas suas<br />
visitas diárias, ela retar<strong>da</strong>va o mais possível o seu aparecimento e<br />
sentava-se sempre no ponto mais distante dele, sem se interessar pela<br />
conversação, com um ar muito sisu<strong>do</strong>, como para significar que não<br />
estava ali por gosto. Timidez matuta, tática de garridice ou . .. ?<br />
Talvez tenha algum n::;mora<strong>do</strong>, quem sabe? - pensou de repente.<br />
Mas quem? À casa <strong>do</strong> coletor não vinha rapaz algum, ela nunca<br />
saía, e o amor próprio àe Alípio não lhe consentia admitir essa hipótese.<br />
Os rapazes que conhecia eram tão tcsc:os, tão ignorantes,<br />
tão dessemelhantes a essa criaturinha delica<strong>da</strong> e distinta . . . O nome<br />
de Matias nem sequer lhe veio à lembrança. Ca<strong>da</strong> dia ela parecia<br />
mais retraí<strong>da</strong> e mais silenciosa. Que seria então? Agora notava<br />
que isto ocorria desde que começara a encurtar as suas visitas<br />
para passar o resto <strong>da</strong> noita<strong>da</strong> no víspora <strong>da</strong> professora. Ciuma<strong>da</strong>,<br />
portanto; não podia ser outra coisa. À sua vai<strong>da</strong>de de galantea<strong>do</strong>r<br />
foi grata esta conjetura, e dela não quis mais sair. Era a mais racional<br />
e a mais cómo<strong>da</strong>. Até se esqueceu <strong>do</strong> desapontamento de<br />
sua ausência, cuja significação se tornara bem clara. "As mulheres<br />
são to<strong>da</strong>s as mesmas! exclamava consigo. Ora vejam esta santinha<br />
a fazer cenas de ciúme!''<br />
Seu fácil bom humor estabeleceu-se de pronto e ganhou-lhe o<br />
sembh:mte com a espontanei<strong>da</strong>de de um gás que sobe à tona d'água<br />
numa bolha irisa<strong>da</strong>. Seu espírito costumava sair <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> pela porta<br />
mais agradável, que é sempre a mais próxima. Contou ane<strong>do</strong>tas,<br />
caçoou de algumas figuras e de alguns costumes <strong>da</strong> terra, rin<strong>do</strong> e<br />
fazen<strong>do</strong> rir alto, esquecicos to<strong>do</strong>s <strong>da</strong> <strong>do</strong>r de cabeça de Florzinha,<br />
'!leno..; D. Claudina, que Sf' mostrava menos expansiva: ela sabia que<br />
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a filha estava talvez a chorar lá dentro, não com <strong>do</strong>r de cabeça, mas<br />
com t•ma <strong>do</strong>r de coração, agrava<strong>da</strong> naquele mstante com a presença<br />
<strong>do</strong> bacharel.<br />
E por momentos D. Claudma se tornava absorta a querer penetrar<br />
no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> espírito <strong>da</strong> filha. Não seria só o me<strong>do</strong> <strong>da</strong> maledicência<br />
que afligia assim o seu coração inocente e timorato? Mas de<br />
repente outros pensamentos a invadiam tumultuariamente fazen<strong>do</strong><br />
o caos em sua cabeça pouco afeita a elucubrações profun<strong>da</strong>s. Consentia<br />
na ação <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> porque julgava que a fj,ha viria a aceitar<br />
de bom gra<strong>do</strong> a corte <strong>do</strong> promotor; mas desde que a boca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
entrava a babujar-lhe o lar, fazen<strong>do</strong> a menina sofrer, já não podia<br />
tolerar que isso continuasse assim. Poucos dias antes censurara o<br />
descomedimento <strong>do</strong> man<strong>do</strong>: não ficava bem an<strong>da</strong>r atiran<strong>do</strong> a filha<br />
às ventas <strong>do</strong> promotor: ela, graças a Deus, não era nenhum rebatalho.<br />
"Tome cui<strong>da</strong><strong>do</strong> com a língua <strong>do</strong> povo, Asclepíades!" Ia refletin<strong>do</strong><br />
assim, mas uma gargalha<strong>da</strong> franca deste, já desbasta<strong>do</strong> de<br />
suas smtomáticas rugas frontais, chamava-a de novo ao jogo <strong>da</strong><br />
conversação. Asclepíade:; contava também, sem graça, veneran<strong>da</strong>s<br />
ane<strong>do</strong>tas e conhecidíssrmos episódios de sua esta<strong>da</strong> no Rio de<br />
Janeiro.<br />
Lá dentro, Florzinha chorava ain<strong>da</strong>, frouxamente, monotonamente<br />
agora. Ela sentia nascer-lhe um sentimento de aversão ao<br />
homem que admirara a princípio, que achara distinto e interessante,<br />
mas que a intimi<strong>da</strong>ra sempre, a humilhara com seus mo<strong>do</strong>s de prínc.ipe<br />
entre campônios. Demais, <strong>da</strong>s conversas que ouvia desde pequena,<br />
<strong>da</strong>s leituras que fazia, se formara em seu espírito uma prevenç1iL·<br />
sistemática contra as pt:ssoas educa<strong>da</strong>s nas grandes ci<strong>da</strong>des.<br />
To<strong>do</strong> praciano lhe parecia suspeito como porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s maus costumes,<br />
<strong>do</strong>s vícios a que os livros sagra<strong>do</strong>s li<strong>do</strong>s no colégio se referiam<br />
sem dúvi<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> falavam de perdição, de impie<strong>da</strong>de. Por esse<br />
motivo nunca pudera ser amiga de Bilinha, a quem <strong>da</strong>va sempre <strong>do</strong>na,<br />
a quem tratava sempre por senhora, a despeito <strong>da</strong>s suas tentativas<br />
de intimi<strong>da</strong>de. Naturalmente, Alípio a olhava como a uma ma tu tinha<br />
tola, boa para diverti-lo e a quem dispensava amabili<strong>da</strong>des por<br />
uma compaixão protetora. Pois guar<strong>da</strong>sse as suas amabili<strong>da</strong>des, que<br />
não lhe faziam falta e até a incomo<strong>da</strong>vam pelo seu exagero e francesismo.<br />
Seu pranto secara no correr dessas reflexões, e, quan<strong>do</strong> na sala<br />
de jat;tar um rumor de cadeiras arrasta<strong>da</strong>s lhe fez perceber que o<br />
bacharel se retirava, de •1lhos enxuto e já possuí<strong>da</strong> <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de<br />
feminma, prestou ouvi<strong>do</strong> atento às palavras que ali se trocavam<br />
t.m despedi<strong>da</strong>.<br />
- Queira apresentar os meus respeitos a D. Florzinha e dizerihe<br />
que- me afligem os seus incômo<strong>do</strong>s, - disse ele, elevan<strong>do</strong> a voz<br />
para ser ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> quarto.<br />
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Se, por sua vez, Alípio houvesse ouvi<strong>do</strong> o muxoxo que acolheu<br />
suas palavras, certo não teria saí<strong>do</strong> <strong>da</strong>li com o semblante radioso<br />
ao homem que se julga ama<strong>do</strong>.<br />
Asclepíades esperou que o bacharel se afastasse para fechar as<br />
portas, e D. Claudina entrou no quarto <strong>da</strong> filha. As duas mulheres<br />
oll.aram-se um instante em silencio, com uma ansie<strong>da</strong>de terna<br />
t: perscruta<strong>do</strong>ra. Envolvi<strong>da</strong> no lençol até o pescoço, um <strong>do</strong>s bra.,ros<br />
nu, d0bra<strong>do</strong> sob a cabeça, fazen<strong>do</strong> oscilar levemente a rede com o<br />
impulso <strong>do</strong> pé contra a parede, a moça esperava impassível que a<br />
mãe lhe dissesse alguma coisa. Esta sentia ímpetos de sentar-se<br />
à beira <strong>da</strong> rede, cingi-la nos braços, enchê-la de carícias e comunicar-lhe<br />
a resolução em que estava de tomar o seu parti<strong>do</strong>, de<br />
apoiar a conduta que a c:craç;ío lhe ditasse; mas tal procedimento<br />
r,oderia concorrer para que a menina, sem mais exame, precipita<strong>da</strong>mente,<br />
se subtraísse às decidi<strong>da</strong>s intenções <strong>do</strong> pai. Ela, gozan<strong>do</strong><br />
embora em casa de uma larga autonomia, reservara discretamente<br />
&o mari<strong>do</strong> um campo de rção que só invadia em ocasiões extremas.<br />
Mas se não expressou a promessa feita a si mesma naquele instante,<br />
com o fervor de um juramento sagra<strong>do</strong>, deixou-a transparecer<br />
no iniludível olhar com que retribuiu o olhar ardente e penetrante<br />
nela crava<strong>do</strong>. Nesse momento Asclepíades deixava explodir<br />
o mau humor sopita<strong>do</strong> até então e batia brutalmente as portas.<br />
- Está ouvin<strong>do</strong>? Tea pai está furioso porque não apareceste,<br />
apesar de eu lhe ter dito que estavas com <strong>do</strong>r de cabeça.<br />
Florzinha respondeu apr:nas com um gesto de aborrecimento.<br />
- Acho que não jevias aparecer ao <strong>do</strong>utor assim com os olhos<br />
incha<strong>do</strong>s e nervosa como estás; mas também ele não é culpa<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
que se diz na rua.<br />
- Culpa<strong>do</strong> ou não, pcsso deixar de sentir-me dessas coisas?<br />
Naturalmente ele sabe de tu<strong>do</strong> também, e se chegar aqui e encontrarme<br />
de cara muito alegr.:. . . Acha a mamãe que é bonito an<strong>da</strong>r<br />
o nome <strong>da</strong> gente de boca em boca como o <strong>da</strong>s filhas <strong>do</strong> Pereira e<br />
outras <strong>do</strong>i<strong>da</strong>s desse feitio? Ain<strong>da</strong> se fosse ver<strong>da</strong>de! Mas mamãe bem<br />
abe que é uma falsi<strong>da</strong>de!<br />
Estas últimas palavras foram ditas com voz tremi<strong>da</strong> e rega<strong>da</strong>s<br />
com um novo jorro c! pranto que lhe correu pela têmpora e,<br />
quente ain<strong>da</strong>, lhe caiu no braço nu. D. Claudina estava profun<strong>da</strong>mente<br />
abala<strong>da</strong>: era então certo que Florzinha não sentia inclinação<br />
alguma pelo bacharel?! . ..<br />
- Tens razão, minha filha, tens raz1o; mas que há de pensar<br />
e;,ssa gente ven<strong>do</strong> esse moo vir aqui to<strong>do</strong>s os dias e saben<strong>do</strong> <strong>do</strong> entusicnmo<br />
com que teu pRi fala dele em to<strong>da</strong> a parte? Ver<strong>da</strong>de ou<br />
!1ão, só pode pensar que vocês se gostam.<br />
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- Oh! mamãe! até você?. . . exclamou Florzinha numa explosão<br />
de soluços.<br />
- Vem cá, deixa-te de crlancices: digo que o povo tem direito<br />
de pensar assim, e não mente em relação ao Dr. Alípio, porque<br />
a ver<strong>da</strong>de é que ':'!le dá mo::;tras de gostar de ti, e teu pai não<br />
esconde o contentame'lto que isso lhe causa.<br />
- Mas eu não gosto dele! não quero ouvir falar nisso! bra<strong>do</strong>u<br />
Florzinha com exaltação, senhm<strong>do</strong>-se subitaneamente na rede. Se<br />
me aperrearem muito hei de acabar por tomar-lhe ódio e de não<br />
lhe aparecer mais nunca. FeliL;mente, vou breve para a fazen<strong>da</strong> de<br />
meu tio.<br />
Com o movimento ráoi<strong>do</strong> que ela fez, caiu o lençol, e o seu<br />
busto se pompeou na meia nuàez <strong>da</strong> camisa, muito branco e liso,<br />
finamente tornea<strong>do</strong>, deixrn<strong>do</strong> entrever sob a pala de ren<strong>da</strong> as duas<br />
pequenas protuberâncias <strong>do</strong>s seios mal sazona<strong>do</strong>s ain<strong>da</strong> pela puber<strong>da</strong>de.<br />
Os cabelos de um louro carrega<strong>do</strong>, quase castanhos, caíam-lhe<br />
<strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s forman<strong>do</strong> um resplen<strong>do</strong>r para a beleza terrena <strong>do</strong> rosto,<br />
onde os olhos úmi<strong>do</strong>s punham faiscações de revolta. Era tão formosa,<br />
assim, que D. Cla'.ldina esqueceu a réplica e ficou a contemplá-la<br />
num êxtase de vi<strong>da</strong>de materna.<br />
- Mulher! - gritou <strong>do</strong> seu quarto Asclepíades.<br />
Essa maneira de chamar a esposa usava-a Asclepíades nos momentos<br />
tempestuosos; quan<strong>do</strong> reinava a bonança, D. Claudina passava<br />
a ser - minha veiha - ou mais ternamente ain<strong>da</strong> - minha<br />
cabocla.<br />
A carícia conti<strong>da</strong>, a promessa cala<strong>da</strong> se exteriorizaram então irnsistivelmente.<br />
D. Clauriina sentou-se à beira <strong>da</strong> rede, abraçou a<br />
filha, beijou-lhe a testa e sussurrou-lhe ao ouvi<strong>do</strong>:<br />
- Dorme bem, minha filhinha, e fica sben<strong>do</strong> que a tua mãe<br />
$erá sempre por ti.<br />
Senta<strong>do</strong> na rede, de camisola, a cara embezerra<strong>da</strong>, a torcer o ca<br />
•·anhaque entre o polegar e o índex, Asclepíades fumava nervosamente<br />
o seu cigarro. A mulher, silenciosa, ia-se despin<strong>do</strong>. Com<br />
J:..reenden<strong>do</strong> afinal que era preciso provocar as explicações deseja<strong>da</strong>s,<br />
r.Ie iuquiriu numa meia voz colérica:<br />
- Sua filha está mesmo <strong>do</strong>ente?<br />
- Não, está muito enti<strong>da</strong> - e con: razão - de seu nome an<strong>da</strong>r<br />
por aí na boca <strong>do</strong> mund0.<br />
E a matrona narrou o aconteci<strong>do</strong>, acrescentan<strong>do</strong>:<br />
- Não sei ao certo se ela gosta dele ou não, porque, nervosa<br />
como está, não se pode mndá-la bem; mas acho que não faz bom<br />
cabelo an<strong>da</strong>r uma moça, qua&e uma menina ain<strong>da</strong>, à mercê <strong>da</strong>s<br />
más línguas. Você, como pai, veja o que deve fazer.<br />
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- E por que não há de correspoPder ela à3 atenções <strong>do</strong> Dr.<br />
Alípio? observou o pai, que não admitia dúvi<strong>da</strong>s a esse respeito. -<br />
Ela nunca poderá encontrar parti<strong>do</strong> melhor, nem mesmo igual!<br />
- Não digo que não; mas só pode ser feliz quem casa com <strong>do</strong>utor?<br />
Que felici<strong>da</strong>de é a <strong>da</strong> Nuca em ter casa<strong>do</strong> com o Dr. Gomes<br />
c'la Costa? Um homem morto, um defunto em pé!<br />
- Ora, minha senhora, não compare água com vinho! Você<br />
acha que o Dr. Alípio tem cara de tísico?<br />
- bso não tem. Você está certo de que ele quer seriamente casar<br />
com sua filha?<br />
- Certeza não tenho, mas há muitas probabili<strong>da</strong>des. Agora, se<br />
ela começa com as suas 1.olices de bicho arisco, está claro que não<br />
se fará na<strong>da</strong>. Não se apmham moscas com vinagre. Que tem que<br />
falem por aí? Isso é muito natural numa terra pequena. Podese<br />
tapar a boca <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>? Se talam por inveja, fiquem certos esses<br />
botocu<strong>do</strong>s de Ipuçaba de que não tenho minha filha para nenhum<br />
deles.<br />
- Façs o que entender. Só uma coisa lhe digo: não quero minha<br />
filha enxovalha<strong>da</strong>.<br />
- Deixe por minha conta.<br />
- E também o previno de uma c01sa: contra a sua vonade,<br />
ela não há de casar; mesmo que seja com um príncipe, quanto mais<br />
com um <strong>do</strong>utor.<br />
Ain<strong>da</strong> por largo espaço fala1·am no bacharel, que naquele momento<br />
batia as ruas sem rumo certo, seguran<strong>do</strong> as extremi<strong>da</strong>des<br />
<strong>da</strong> bengala atravessa<strong>da</strong> nas costas. A falta <strong>do</strong> entretenimento <strong>do</strong><br />
víspora tornava-lhe abominavelrr.cnte longas aquelas horas <strong>da</strong> noite,<br />
acostuma<strong>do</strong> como estava :1 passá-las em ceatas14 nos cafés <strong>do</strong> Re<br />
..:ife ou em pândegas com estu<strong>da</strong>ntes e com mulheres. Felizmente,<br />
Bilinha devia ter volta<strong>do</strong> a ca:>a, ou, cuem snbe, talvez chegan<strong>do</strong><br />
naquele momento, pois, inform'lra a Bc:-"vin<strong>da</strong>, D. Maria Lina tinha<br />
:<strong>do</strong> buscá-la. E, estugan<strong>do</strong> o passo, bordejou para a casa <strong>da</strong> professora,<br />
na esperança de um encontro possível.<br />
Através <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, negra como uma viúva recente, sem uma única<br />
porta aberta àquela hora, na<strong>da</strong> se ouvia senão o ladrar monótono<br />
<strong>do</strong>s cães e a surria<strong>da</strong> escarninha <strong>da</strong>s corujas dentre o arvore<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
quintais. No céu preto e soletie as esrelas piscavam a miú<strong>do</strong> os<br />
olhos azulinos. Bafagens mornas traziam a espaços vagos aromas<br />
de plantas agrestes e a rescendência a<strong>do</strong>cica<strong>da</strong> <strong>da</strong> bagaceira de um<br />
próximo engenho de cana.<br />
14 A palavra cearas é também de cunho peculiar luso; não pertence ao falar<br />
brasileiro. menos ain<strong>da</strong> ao nordestino.<br />
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Já teria Bilinha chega<strong>do</strong>? Ao chegar perto <strong>da</strong> escola parou, vm-a<br />
fecha<strong>da</strong> e alongou um olhar para as bdn<strong>da</strong>s <strong>da</strong> casa <strong>do</strong> Chico Herculano:<br />
nem um vulto, nem um ruí<strong>do</strong> na escuridão silente. Desengana<strong>do</strong>,<br />
deu a volta <strong>do</strong> :JUarteirão para recolher-se, quan<strong>do</strong> ouviu<br />
um tropel de passos e vozes de pessoas que se aproximavam.<br />
E! passava justamente pelos fun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quintal <strong>da</strong> escola e ouviu<br />
bater ao portão. Era Bilinha com certeza, que acabava de entrar.<br />
Estava de pé, a amargar a sua decepção, furioso por se ter retar<strong>da</strong><strong>do</strong><br />
esse minuto fatal. Em tal atitude foi encontra<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is transeuntes<br />
que lhe deram boa-noite e se puseram a rir ao se afastarem<br />
l:llguns passos.<br />
Alípio compreendeu então a inconveniência de ter si<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong><br />
ali, e, mais irrita<strong>do</strong> ain<strong>da</strong>, deu de marcha para casa. Mas pouco<br />
depois, mu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> de idéia e de direção, acendeu um charuto e envere<strong>do</strong>u<br />
para a ban<strong>da</strong> <strong>da</strong>s casinhas <strong>do</strong> Açude.<br />
CAPíTULO VII<br />
IA coRRENDO ABRIL, o mês "<strong>da</strong>s águas mil"15, quan<strong>do</strong> os botões se<br />
intumescem para rebentar na esplêndi<strong>da</strong> floração de maio. Os roça<strong>do</strong>s<br />
sofriam a primeira capina, que o:; desbravava <strong>do</strong> ervaçal <strong>da</strong>ninho,<br />
alastra<strong>do</strong> invasoramente por entre as carreiras <strong>do</strong> milho, afogan<strong>do</strong><br />
no embasti<strong>do</strong> <strong>da</strong>s suas hostes intrusas os feijoeiros salpica<strong>do</strong>s<br />
de flores roxas com feitio de borbolehs e os jerimunzeiros que se<br />
abriam em campânulas de ouro fulv0.<br />
Já satura<strong>do</strong> d'água, o solo não emitia esse calor de cio que lhe<br />
irradia <strong>da</strong>s entranhas ao contato <strong>da</strong>s pri:::neiras chuvas. Os rios cor<br />
r'am túrgi<strong>do</strong>s, na majestade soberana <strong>da</strong>s grandes forças, atingin<strong>do</strong><br />
a crla <strong>da</strong>s altas ribanceiras, de onde se debruçavam os mofumbos<br />
folhu<strong>do</strong>s e os canoés alongavam as raízes longas e retilíneas como<br />
os tubos de um órgão. O marulho sur<strong>do</strong> <strong>da</strong>s águas, rolan<strong>do</strong> sobre as<br />
lajes <strong>do</strong> leito, acompanhava o grande coro <strong>da</strong> aves, cujas vozes,<br />
diferentes de som e de expressão, se harmonizavam no mesmo ho<br />
sana festivo em honra <strong>da</strong> estação bendita.<br />
Parece que entre as aves o feitio físico corresponde a um <strong>da</strong><strong>do</strong><br />
temperamento imutável para ca<strong>da</strong> soletivi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> mesmo tipo. D:t<br />
ordem à família, <strong>da</strong> família ao grupo os caracteres vão-se acentuan<br />
<strong>do</strong> com uma precisão infalível. Por clm pássaro se conhecem os<br />
15 Há, muito comum ain<strong>da</strong> no Nordeste, a expressão "abril. águas mil". É<br />
que o clímax <strong>da</strong>s chuvas, normalmente, ocorre no mês de abril.<br />
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