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Flávio Benedito - IV Conferência Internacional de História ...

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UN<strong>IV</strong>ERSIDADE DE SÃO PAULO<br />

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS<br />

FLÁVIO BENEDITO 1<br />

VENEZUELA/BRASIL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS<br />

GOVERNOS PROGRESSISTAS E A GLOBALIZAÇÃO<br />

SÃO PAULO<br />

2012<br />

1 Doutorando do PPGHE-USP. Pesquisador-bolsista do CNPq. EMAIL: flaviobenedito@usp.br


“Talvez a característica mais<br />

impressionante do fim do século XX seja a<br />

tensão entre esse processo <strong>de</strong><br />

globalização cada vez mais acelerado e a<br />

incapacida<strong>de</strong> conjunta das instituições<br />

públicas e do comportamento coletivo dos<br />

seres humanos <strong>de</strong> se acomodarem a ele.”<br />

(Eric Hobsbawm, Era dos extremos, 1994)<br />

Nossa exposição preten<strong>de</strong> discutir algumas das relações entre<br />

globalização e os governos progressistas latino-americanos ─ em especial o <strong>de</strong><br />

Hugo Chávez, na Venezuela ─ nos marcos das noções <strong>de</strong> hegemonia e contra-<br />

hegemonia como as que propõe Emir Sa<strong>de</strong>r 2 ─ partindo-se <strong>de</strong> uma advertência<br />

teórica importante, feita por Daniel Mato em Cultura, comunicación y<br />

transformaciones sociales en tiempos <strong>de</strong> globalización:<br />

" La mayoría <strong>de</strong> quienes “<strong>de</strong>monizan” la globalización, como la mayoría<br />

<strong>de</strong> quienes hacen su apología, comparten un error <strong>de</strong> base: fetichizan<br />

aquello que llaman “globalización”. Vale <strong>de</strong>cir, lo representan como si se<br />

tratara <strong>de</strong> una suerte <strong>de</strong> fuerza suprahumana, <strong>de</strong> dios <strong>de</strong>miurgo, que<br />

actuaría con in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> las prácticas <strong>de</strong> los actores sociales. Por<br />

ello, no se <strong>de</strong>tienen a analizar cómo participan diversos actores sociales<br />

2 Vejam-se estas noções em SADER, Emir. Hegemonia e contra-hegemonia. In: Hegemonias<br />

e emancipações no século XXI. CECEÑA, Ana Esther. CLACSO, Consejo Latinoamericano <strong>de</strong><br />

Ciencias Sociales. Julio 2005, texto que discute a crise do mo<strong>de</strong>lo hegemônico norteamericano,<br />

a ascensão <strong>de</strong> outras potências concorrentes e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu estudo em<br />

termos mais abrangentes do que a da mera dominação econômica: " É neste sentido que o<br />

conceito <strong>de</strong> hegemonia ganha todo o seu significado. Não se reduz à dominação militar ou à<br />

superiorida<strong>de</strong> econômica, mas articula o conjunto <strong>de</strong> fatores que levam uma potência a ser<br />

dominante e dirigente. Wallerstein, em particular, afirma que não se po<strong>de</strong> dizer que exista<br />

hegemonia reduzindo-a à simples dominação, isto é, à coerção. Arrighi fala <strong>de</strong> “dominação sem<br />

hegemonia”. Este nos parece um raciocínio igualmente unilateral, que subestima os fatores<br />

i<strong>de</strong>ológicos, com toda a força que a penetração do American way of life segue tendo, da China<br />

à América Latina, da Europa do leste ao su<strong>de</strong>ste asiático, da Índia à Rússia, da Europa<br />

oci<strong>de</strong>ntal ao Japão. E subestima o papel <strong>de</strong> dirigente do bloco político e econômico das<br />

gran<strong>de</strong>s potências capitalistas, diante da incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outras potências, ou grupo <strong>de</strong>las,<br />

tomarem iniciativas próprias, apenas reagindo diante das iniciativas norte-americanas, mesmo<br />

quando as rejeitam. Reduzir a predominância norte-americana à coerção é uma visão<br />

economicista, que <strong>de</strong>sconhece os outros fatores que compõem a hegemonia, com a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> persuasão que os valores i<strong>de</strong>ológicos e os mecanismos <strong>de</strong> sua difusão pelas<br />

distintas formas <strong>de</strong> expressão que os norte-americanos conseguiram produzir e multiplicar."(p.<br />

17)<br />

2


en la producción <strong>de</strong> formas específicas <strong>de</strong> globalización. (...)Así, se<br />

representan aquello que llaman globalización como um montón <strong>de</strong><br />

acuerdos económicos orientados por la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> liberalización <strong>de</strong> los<br />

movimientos <strong>de</strong> capitales y comerciales –sumados a los propios<br />

movimientos <strong>de</strong> capitales y comerciales que se dan en tal marco jurídico<br />

<strong>de</strong> inspiración liberal y sus consecuencias macroeconómicas– y lo que, a<br />

su vez, consi<strong>de</strong>ran las consecuencias sociales <strong>de</strong> las tendências<br />

macroeconómicas. El carácter hegemónico <strong>de</strong> las interpretaciones<br />

económicas <strong>de</strong>l mundo y la vida social es un rasgo saliente <strong>de</strong> la vida<br />

contemporánea. Sin embargo, ello no significa que globalización sea<br />

sinónimo <strong>de</strong> “neoliberalismo”. Por el contrario, necesitamos uma<br />

aproximación teórica a la interpretación <strong>de</strong> los procesos <strong>de</strong> globalización<br />

contemporáneos, que nos permita compren<strong>de</strong>r cómo los discursos<br />

economicistas –y, en particular, el discurso que se ha calificado como<br />

“neoliberal”– se convirtieron en hegemónicos." 3<br />

As consi<strong>de</strong>rações que fazemos a seguir, embora valorizem<br />

predominantemente as análises <strong>de</strong> aspectos econômicos, buscam tanto quanto<br />

possível fugir a esta fetichização do termo "globalização", sem, no entanto,<br />

suprimi-lo ou substituí-lo. Nosso propósito aqui se resumirá a contrapor alguns<br />

argumentos <strong>de</strong> teóricos apologistas e <strong>de</strong> <strong>de</strong>tratores da globalização,<br />

<strong>de</strong>stacando <strong>de</strong>stes últimos os que se referem aos movimentos sociais<br />

"antiglobalizadores". O <strong>de</strong>staque recairá sobre o caso venezuelano, com o qual<br />

se procura evi<strong>de</strong>nciar a dimensão "contra-hegemônica" do movimento<br />

bolivariano atual, além dos fatores sociais que po<strong>de</strong>m ser encontrados em sua<br />

origem, bem como do papel que ele atribui ao Estado no processo dito<br />

revolucionário do chavismo.<br />

* * *<br />

Eric Hobsbawm chama a atenção para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o<br />

fenômeno da globalização como algo além <strong>de</strong> um processo puramente<br />

econômico, lançando a ênfase sobre seus aspectos técnicos e, sobretudo,<br />

sobre os aspectos sociais da reorganização global do trabalho:<br />

"Não acho que seja possível i<strong>de</strong>ntificar a globalização apenas com a<br />

criação <strong>de</strong> uma economia global, embora este seja seu ponto focal e sua<br />

característica mais óbvia. Precisamos olhar para além da economia.<br />

3 MATO, Daniel. Cultura, comunicación y transformaciones sociales en tiempos <strong>de</strong><br />

globalización. In: MATO, Daniel; MALDONADO FERMÍN, Alejandro. Cultura y<br />

Transformaciones sociales en tiempos <strong>de</strong> globalización. Perspectivas latinoamericanas. Abril<br />

2007.<br />

3


Antes <strong>de</strong> tudo, a globalização <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da eliminação <strong>de</strong> obstáculos<br />

técnicos, não <strong>de</strong> obstáculos econômicos. Ela resulta da abolição da<br />

distância e do tempo. (...) Para todas as finalida<strong>de</strong>s práticas, a produção<br />

não é mais organizada no interior dos limites políticos do Estado on<strong>de</strong> se<br />

encontra a se<strong>de</strong> da empresa. (...) enquanto a divisão global do trabalho<br />

estava antes confinada à troca <strong>de</strong> produtos entre regiões específicas,<br />

hoje é possível produzir in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das fronteiras nacionais e<br />

continentais. Este é o elemento fundamental do processo". 4<br />

A estas constatações fundamentais, que buscam mostrar como<br />

secundários os princípios "neoliberais" <strong>de</strong> supressão das barreiras<br />

alfan<strong>de</strong>gárias e <strong>de</strong> liberalização dos mercados e fluxos <strong>de</strong> capitais, seguem-se<br />

duas outras, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m i<strong>de</strong>ológica e social, ambas ligadas à "idolatria dos<br />

valores <strong>de</strong> mercado": primeiro, a <strong>de</strong> que as mudanças recentes pelas quais<br />

passa o capitalismo carregam em si o efeito danoso do abandono progressivo<br />

das motivações tradicionais da economia e das socieda<strong>de</strong>s (como a família e a<br />

valorização do trabalho), abandono esse cujas consequências se <strong>de</strong>vem sentir<br />

no funcionamento da própria estrutura capitalista. 5 Segundo, a <strong>de</strong> que o<br />

princípio <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mercado escon<strong>de</strong> a falácia da relação direta entre o<br />

crescimento econômico (por ela promovido) e da distribuição social da riqueza.<br />

Segundo esse princípio, toda ingerência estatal <strong>de</strong> controle ou regulação do<br />

mercado ten<strong>de</strong> a restringir o volume <strong>de</strong> lucros gerado pelo capital. 6 Essa<br />

"idolatria do mercado" se patenteia como a fetichização a que se refere Daniel<br />

Mato.<br />

Vejamos alguns argumentos <strong>de</strong> autores que, <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> vista<br />

diferentes, encaram grosso modo a globalização como um processo necessário<br />

e irreversível, um processo com aspectos inevitavelmente falhos, mas, no<br />

4<br />

HOBSBAWN, Eric. O novo século. Entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 2000, pp. 71-72.<br />

5<br />

"(...) Não há dúvida, porém, <strong>de</strong> que este será um dos gran<strong>de</strong>s problemas do século XXI. Hoje,<br />

ten<strong>de</strong>mos a consi<strong>de</strong>rar que não mais necessitamos das motivações tradicionais que, no<br />

passado, não só mantinham unidas as socieda<strong>de</strong>s humanas como também faziam funcionar a<br />

economia. (...) Estas atitu<strong>de</strong>s, que são os próprios fundamentos da nossa socieda<strong>de</strong>, foram<br />

completamente abaladas pela revolução econômica, social e cultural da última parte do século<br />

XX. " (Ibi<strong>de</strong>m, p. 139).<br />

6<br />

"(...) os argumentos <strong>de</strong> que os recursos são distribuídos <strong>de</strong> uma maneira ótima pelo máximo<br />

crescimento capitalista nunca foram convincentes. (...) Há muitos outros modos pelos quais<br />

po<strong>de</strong> avançar a globalização; não é preciso que ela se restrinja à eliminação dos obstáculos<br />

aos lucros. Na verda<strong>de</strong>, quando buscamos na história as razões da evolução equilibrada da<br />

indústria em âmbito mundial, vemos que esse equilíbrio não foi resultante da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

comércio, e sim do protecionismo." ( Ibi<strong>de</strong>m, p. 79).<br />

4


conjunto, positivos. Para alguns <strong>de</strong>les, tratar-se-ia a globalização <strong>de</strong> um novo<br />

momento histórico, uma "Terceira Revolução Industrial", a exigir novos<br />

paradigmas para sua compreensão. Segundo afirma um <strong>de</strong>les "(...)<br />

convivemos, temos <strong>de</strong> conviver, com a Terceira Revolução Industrial, que veio<br />

para ficar, po<strong>de</strong>mos gostar ou não gostar, mas temos <strong>de</strong> admitir que estamos<br />

entrando em uma nova era." 7 Outros, ainda, enfrentaram a tarefa <strong>de</strong> elucidar e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r abertamente o novo processo, como o fez J. Bhagwati (Em <strong>de</strong>fesa da<br />

globalização) ao apontar, entre outras coisas, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sucesso<br />

compartilhado, <strong>de</strong> países ricos e pobres, sob a condição <strong>de</strong> haver um<br />

gerenciamento a<strong>de</strong>quado dos mecanismos da globalização:<br />

"Talvez a observação mais relevante quanto ao perfil <strong>de</strong> gerenciamento<br />

hoje em dia resulte da percepção <strong>de</strong> que as duas gran<strong>de</strong>s forças do<br />

século XXI são a globalização econômica e o enorme crescimento da<br />

socieda<strong>de</strong> civil na maioria dos países, ricos e pobres, bem como a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambas serem convocadas para a causa do<br />

gerenciamento a<strong>de</strong>quado a administrar a globalização <strong>de</strong> maneira a gerar<br />

o que chamo <strong>de</strong> sucesso compartilhado. A socieda<strong>de</strong> civil, na esfera<br />

doméstica e como reflexo da mobilização nacional, dos valores, da cultura<br />

e suscetibilida<strong>de</strong>s políticas, oferece oportunida<strong>de</strong>s para um<br />

gerenciamento melhor da globalização nas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>mocráticas,<br />

cada vez mais numerosas no mundo todo e nas quais as ONGs vêm<br />

proliferando enormemente. Os governos, principalmente os dos países<br />

pobres, com frequência adotam leis, como a aprovação do princípio <strong>de</strong><br />

'pagar por poluir', mas não possuem os meios para monitorar o seu<br />

cumprimento. É aí que as ONGs adquirem importância como os olhos e<br />

os ouvidos da legislação. Por exemplo, até as ONGs indianas entrarem<br />

com ações sobre os efeitos colaterais ambientais <strong>de</strong>correntes das<br />

fazendas costeiras <strong>de</strong> camarão, o Ministério do Meio Ambiente<br />

<strong>de</strong>sconhecia o fato. O mesmo é válido para compridos rosários <strong>de</strong> leis em<br />

muitos países pobres: elas existem, mas não produzem gran<strong>de</strong> impacto,<br />

pois a informação não se dissemina." 8<br />

Outros estudiosos, no entanto, matizam essa certa euforia frente à<br />

globalização com observações <strong>de</strong> maior cautela, como Ulrich Bech (O que é<br />

globalização?), para quem : "(...) [o] choque da globalização, traço marcante da<br />

transição para a segunda mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, tem ao seu final um efeito politizante,<br />

pois todos os atores e organizações, em todos os domínios da socieda<strong>de</strong>,<br />

precisam lidar com os paradoxos e as exigências da globalização e com a sua<br />

7 MOURÃO, F. A. A. ALCA-MERCOSUL: um discurso <strong>de</strong>sfocado. In: CASELLA, P.B. &<br />

SANCHEZ. Quem tem medo da ALCA?. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 361.<br />

5


dinâmica que altera todos os antigos fundamentos. Esta necessida<strong>de</strong><br />

extrapola, <strong>de</strong> modo bastante curioso, o esquematismo esquerda-direita. Há<br />

uma nostalgia <strong>de</strong> esquerda e uma <strong>de</strong> direita. A primeira se remete ao Estado<br />

social, a segunda ao Estado nacional. Ambas estão <strong>de</strong> acordo quanto à <strong>de</strong>fesa<br />

do status quo ante contra a 'invasão do mercado mundial' ". 9 Segundo este<br />

autor, por exemplo, o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio da globalização está em transformar, em<br />

encontrar respostas a questões como: <strong>de</strong> que forma <strong>de</strong>ve-se realizar a<br />

cooperação internacional? Como empreen<strong>de</strong>r as ações conjuntas dos Estados<br />

Nacionais? Como impedir que empresas transnacionais favoreçam ou apoiem<br />

regimes anti<strong>de</strong>mocráticos? Como não concentrar a riqueza, globalizando <strong>de</strong><br />

fato a miséria? (Veja-se a parte <strong>IV</strong>, <strong>de</strong>ste livro).<br />

Mais condizente com a posição teórica que adotamos, a globalização<br />

<strong>de</strong>ve ser compreendida não como um processo histórico novo, <strong>de</strong> um caráter<br />

progressivo inexorável, mas apenas como uma nova etapa do imperialismo<br />

capitalista, que, segundo alguns, revela mesmo um estado geral <strong>de</strong> crise <strong>de</strong>ste<br />

modo <strong>de</strong> produção (Veja-se, por exemplo, István Meszaros, Para além do<br />

capital, Parte III). Apesar do que se tem alegado sobre o estreitamento das<br />

funções do Estado nacional no âmbito do processo <strong>de</strong> globalização das<br />

economias mundiais ─ que a bem dizer po<strong>de</strong> ser mais bem <strong>de</strong>scrito como um<br />

processo <strong>de</strong> transnacionalização dos capitais ─, é possível afirmar-se que, o<br />

que <strong>de</strong> fato vem ocorrendo é algo diferente <strong>de</strong>sse estreitamento: a <strong>de</strong>finição da<br />

política nacional e internacional dos países, em geral, é hoje estreitamente<br />

vinculada aos centros hegemônicos no sistema financeiro internacional. As<br />

pressões que as instituições financeiras supranacionais (BM, FMI) exercem<br />

sobre as economias (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> empréstimos e investimentos<br />

internacionais) aparecem como o aspecto fundamental do quadro <strong>de</strong> sujeição<br />

das economias periféricas às centrais, e, por conseguinte, atestam, nos<br />

respectivos cenários nacionais <strong>de</strong>sses países sujeitados, o alto grau <strong>de</strong><br />

intervenção do Estado nas questões econômicas. Afinal, se <strong>de</strong>ixadas ao sabor<br />

apenas das "leis <strong>de</strong> mercado", essas economias periféricas ver-se-iam<br />

inevitavelmente perturbadas por agitações sociais crescentemente<br />

8 BHAGWATI, J. Em <strong>de</strong>fesa da globalização. RJ, Elsevier, 2004, p. 251.<br />

9 BECH, Ulrich. O que é globalização?.SP: Paz e Terra, 1999, p. 227.<br />

6


eivindicativas. Nesse sentido, esses Estados nacionais, ao contrário do que se<br />

afirma, precisam ampliar sua função diretora e repressora nos assuntos<br />

econômicos e sociais, a custa, no entanto, <strong>de</strong> perda clara <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> dos<br />

partidos, sobretudo os <strong>de</strong> "mais claro compromisso popular".<br />

Em relação aos centros hegemônicos, é visível a ampliação do Estado<br />

na esfera da economia se consi<strong>de</strong>rarmos ainda a participação nela dos<br />

crescentes gastos militares, exponencialmente maiores que durante a Guerra<br />

Fria, e ─ mais significativos ainda ─ os investimentos em reconstrução e as<br />

garantias <strong>de</strong> controle do fornecimento <strong>de</strong> petróleo das regiões em conflito.<br />

Vejam-se, neste sentido, as últimas campanhas militares levadas a cabo pelo<br />

EUA e seus aliados europeus: as guerras no Golfo Pérsico, a invasão do<br />

Afeganistão e a guerra contra o Iraque. As suspeitas que se lançam sobre uma<br />

possível guerra contra o Irã <strong>de</strong>vem ser compreendidas neste contexto.<br />

Na literatura marxista (e não só nela), esses traços do cenário mundial ─<br />

isto é, a ingerência aguda das potências centrais nas políticas internas das<br />

economias <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, a política belicista em áreas <strong>de</strong> importância<br />

estratégica quanto a matérias primas e recursos energéticos, e, <strong>de</strong>ve-se<br />

acrescentar, a concentração <strong>de</strong> capitais em poucos centros financeiros ─ são<br />

<strong>de</strong>scritos, como se sabe, como elementos constituintes do imperialismo<br />

mo<strong>de</strong>rno, que Lênin, <strong>de</strong>screveu nos termos <strong>de</strong> uma etapa superior do<br />

capitalismo, e Hilferding i<strong>de</strong>ntificou como resultado direto da hegemonia do<br />

capital financeiro.<br />

Se aceitarmos o fato <strong>de</strong> que, no plano econômico mundial, vem<br />

consolidando-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> alguns anos um movimento <strong>de</strong> transnacionalização do<br />

capital, e que isto constitui o aspecto mais importante da evolução do<br />

capitalismo nos dias presentes, será necessário reconhecer que essa<br />

transnacionalização reforça as relações tipicamente capitalistas e as transfere<br />

para as economias <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes na forma <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> sujeição político-<br />

econômico-militar claramente imperialistas. As alterações da geopolítica em<br />

conseqüência do <strong>de</strong>smoronamento do império soviético traduziram a<br />

substituição do antagonismo i<strong>de</strong>ológico liberalismo-socialismo da Guerra Fria<br />

pelo belicismo unilateralista da superpotência única. Na América Latina, as<br />

7


vitórias eleitorais recentes <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res populares (como no Brasil, Argentina,<br />

Bolívia, Equador, Venezuela, Nicarágua) tiveram invariavelmente por mote a<br />

luta contra a militarização das relações internacionais no continente, a par <strong>de</strong><br />

projetos <strong>de</strong> integração regional em contraposição aos interesses imperialistas.<br />

10<br />

Outra mudança fundamental neste "processo <strong>de</strong> globalização" resi<strong>de</strong> na<br />

substituição da hegemonia do capital produtivo pela do capital financeiro. De<br />

um ponto <strong>de</strong> vista amplo, essa financeirização da economia mundial parece<br />

indicar uma crise abrangente nos mecanismos <strong>de</strong> circulação ampliada do<br />

capital via realização da mercadoria num cenário <strong>de</strong> crise dos processos<br />

tradicionais <strong>de</strong> exploração da força <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> expropriação da<br />

mais-valia. Como observa um autor a respeito <strong>de</strong>ssa crise e suas<br />

consequências sobre as economias <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, a<br />

"(...) hegemonia sistêmica da macroestrutura financeira internacional,<br />

cujas políticas econômicas se pautam na <strong>de</strong>sregulamentação financeira<br />

e liberalização cambial, garante ao capital, uma mobilida<strong>de</strong> internacional<br />

sem prece<strong>de</strong>ntes na história, gerando, como consequência, uma<br />

inter<strong>de</strong>pendência do mercado <strong>de</strong> moedas e <strong>de</strong> finanças, causando<br />

dificulda<strong>de</strong>s às gestões monetárias por parte dos Bancos Centrais. Tal<br />

fato implicou em que a estabilida<strong>de</strong> monetário-financeira e cambial das<br />

economias nacionais fosse condicionada pelo sistema financeiro<br />

internacional, o que reproduz, em novos termos, uma situação <strong>de</strong><br />

consequente assimetria se relacionarmos o <strong>de</strong>senvolvimento econômico<br />

das nações hegemônicas com as “em <strong>de</strong>senvolvimento” ou as<br />

“sub<strong>de</strong>senvolvidas”. Ou seja, à medida que estas são inseridas na<br />

divisão internacional do trabalho, o são em condição <strong>de</strong>sigual." 11<br />

10 Veja-se, a propósito a observação <strong>de</strong> R Zibechi: " En paralelo, la exitosa resistencia al<br />

mo<strong>de</strong>lo creó una nueva relación <strong>de</strong> fuerzas, particularmente en Sudamérica, que puso en<br />

primer plano a cuestión <strong>de</strong> la integración regional –con dos proyectos en disputa– ante la que<br />

numerosos movimientos encuentran dificulta<strong>de</strong>s a la hora <strong>de</strong> fijar posición. Parece evi<strong>de</strong>nte<br />

que Estados Unidos no juega solo en una Sudamérica que ya no pue<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada su<br />

“patio trasero”, y que se consolida un cierto multilateralismo impulsado, entre otros, por la<br />

activa presencia <strong>de</strong> un país como Brasil, que viene exhibiendo capacidad <strong>de</strong> ejercer un peso<br />

<strong>de</strong>terminante en la región. Por último, aparece un tema nuevo y complejo que ha generado<br />

conflictos y divisiones: las relaciones gobiernos-movimientos en aquellos países dirigidos por<br />

fuerzas progresistas y <strong>de</strong> izquierda. Los movimientos sociales no siempre supieron advertir la<br />

profundidad <strong>de</strong> los cambios en marcha y ubicarse ante escenarios mucho más complejos y<br />

contradictorios que no admiten lecturas simplistas ". (ZIBECHI, R. Movimientos sociales:<br />

nuevos escenarios y <strong>de</strong>safíos inéditos. In: Observatório Social <strong>de</strong> América Latina 21, Buenos<br />

aires, CLACSO, p.222)<br />

11 ALMEIDA, José Rubens Mascarenhas. Globalização., p. 12.<br />

8


Dessas observações gerais, inferem-se duas i<strong>de</strong>ias, ambas <strong>de</strong> certa<br />

relevância: primeiramente, a profunda mudança representada pelo movimento<br />

<strong>de</strong> transnacionalização econômica, longe <strong>de</strong> significar uma nova reor<strong>de</strong>nação<br />

das relações entre as economias mundiais que pu<strong>de</strong>sse superar os<br />

<strong>de</strong>sequilíbrios gritantes entre nações pobres e nações ricas, ten<strong>de</strong> antes a<br />

acentuar progressivamente esses <strong>de</strong>sequilíbrios, tornando a pauperização<br />

aguda das populações dos países pobres um efeito inevitável da sujeição<br />

econômico-política <strong>de</strong>les em relação aos centros hegemônicos, agravando, por<br />

um lado, a instabilida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> uns, enquanto, por outro lado, promove a<br />

concentração da riqueza num círculo reduzido <strong>de</strong> economias po<strong>de</strong>rosas; em<br />

segundo lugar, a própria noção <strong>de</strong> "globalização", enquanto expressão <strong>de</strong> uso<br />

corrente nos meios <strong>de</strong> comunicação e nos discursos institucionais e políticos,<br />

sempre numa acepção valorativa (quando não ufanista), acaba por revelar-se<br />

mais um recurso retórico <strong>de</strong> propaganda <strong>de</strong> seus apologistas do que<br />

propriamente um recurso teórico <strong>de</strong> análise da realida<strong>de</strong> histórica presente,<br />

tornando a promessa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das economias mundiais pela via da<br />

globalização uma mistificação grosseira, a escon<strong>de</strong>r da humanida<strong>de</strong> um futuro<br />

tão sinistro quanto o foi o passado da formação das economias imperialistas,<br />

no qual o mundo conheceu a tragédia <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s guerras.<br />

Com efeito, a conjuntura política mundial presente revela aos<br />

observadores um quadro em que alguns elementos parecem constituir<br />

importantes óbices à <strong>de</strong>sejada construção <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong> livre comércio<br />

global. Esta esbarra, segundo compreen<strong>de</strong>mos, em alguns fatos, mais ou<br />

menos evi<strong>de</strong>ntes, que ten<strong>de</strong>m a distorcer aquele mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al imaginado pelos<br />

entusiastas da globalização. Em primeiro lugar, a atenção <strong>de</strong>ve-se voltar para<br />

os <strong>de</strong>sequilíbrios no interior <strong>de</strong> cada um dos blocos econômicos que se<br />

ergueram nas últimas décadas, e que necessitam ser corrigidos para que haja<br />

um funcionamento equânime e imparcial das vantagens comerciais entre os<br />

membros <strong>de</strong> cada grupo. Dois exemplos patentes <strong>de</strong>sta distorção ocorrem: 1)<br />

no Mercosul, em que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão sobre liberalizações <strong>de</strong> tarifas por<br />

parte <strong>de</strong> Brasil e Argentina (e mesmo daquele sobre esta) é imensamente<br />

maior e mais favorável a eles mesmos do que aos outros países membros. Na<br />

prática, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da produção industrial <strong>de</strong> países<br />

9


como o Paraguai e Uruguai po<strong>de</strong> ser restringida pela concorrência <strong>de</strong> indústrias<br />

mais po<strong>de</strong>rosas dos dois maiores parceiros. O setor automobilístico e <strong>de</strong><br />

autopeças parece ser um exemplo disso. Neste caso, não há propriamente<br />

concorrência, mas oligopolização. 2) No NAFTA, a instalação <strong>de</strong> indústrias<br />

estaduni<strong>de</strong>nses nas áreas fronteiriças ao México representa uma outra forma<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio entre membros <strong>de</strong> um mesmo bloco. Neste caso, o emprego<br />

<strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra mais barata (mexicana, no caso) por fábricas do outro lado da<br />

fronteira resulta em efeitos negativos diversos, como o enfraquecimento da<br />

organização política dos operários (<strong>de</strong> ambos os lados da fronteira, pela forte<br />

concorrência pelas vagas <strong>de</strong> trabalho), o que significa esperar uma<br />

precarização das condições <strong>de</strong> trabalho e um aumento da informalida<strong>de</strong>,<br />

sobretudo dos trabalhadores mexicanos. De caráter mais social que<br />

econômico, mas igualmente preocupante, é <strong>de</strong> esperar o fato <strong>de</strong> haver uma<br />

crescente animosida<strong>de</strong> da população da região das plantas em relação aos<br />

trabalhadores estrangeiros. Creio que esses exemplos po<strong>de</strong>riam ser<br />

multiplicados ainda.<br />

Um segundo obstáculo ao plano i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> livre comércio<br />

global, e que constitui hoje um dos temas mais polêmicos em voga na gran<strong>de</strong><br />

imprensa sobre o tema, diz respeito à intransigência <strong>de</strong> algumas potências em<br />

renunciar à política protecionista <strong>de</strong> produtos em relação aos quais temem<br />

per<strong>de</strong>r a concorrência a similares estrangeiros na ausência <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong><br />

proteção. A renúncia ao protecionismo quase certamente afetaria<br />

profundamente a condição <strong>de</strong> comércio <strong>de</strong>sses produtos, em razão da óbvia<br />

vantagem competitiva dos produtos estrangeiros. É o caso da produção<br />

agrícola europeia, subsidiada pelos respectivos governos, e que afeta as<br />

condições <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> com, por exemplo, os produtos brasileiros. O<br />

Brasil, como se sabe, vem lutando junto à OMC para que se corrija essa<br />

política <strong>de</strong> subsídios à produção agrícola europeia. Mas o caso não é isolado:<br />

os subsídios <strong>de</strong> Estado são polêmicos também no caso dos EUA, gran<strong>de</strong><br />

arauto, vale lembrar, da liberalização comercial. Neste país, o anseio por um<br />

livre comércio internacional sofre restrições com a política <strong>de</strong> subsídios à<br />

produção, por exemplo, <strong>de</strong> cereais. Igualmente, com a política <strong>de</strong> fixação <strong>de</strong><br />

cotas <strong>de</strong> importação, como no caso, dos cítricos e do aço. Há certo grau <strong>de</strong><br />

hipocrisia nos discursos oficiais quando se apregoa a liberalização<br />

10


internacional enquanto domesticamente se impõem restrições. A questão,<br />

a<strong>de</strong>mais, ganhou um novo ingrediente com a polêmica em torno da produção<br />

<strong>de</strong> biocombustíveis, sobre que se lança a culpa pelo aumento dos preços dos<br />

alimentos. A questão continua em aberto, naturalmente, mas a hipocrisia<br />

referida acima é, inegavelmente, um importante ingrediente.<br />

Um terceiro entrave: um sistema global eficiente <strong>de</strong> livre comércio<br />

pressupõe uma condição básica, sem a qual toda tentativa <strong>de</strong> efetivá-lo será<br />

parcial ou totalmente frustrada. Refiro-me a um estado geral, nas relações<br />

internacionais, <strong>de</strong> relativa ausência <strong>de</strong> conflitos militares entre os países.<br />

Infelizmente, o fim da Guerra Fria não concretizou a esperada situação <strong>de</strong> paz<br />

mundial, em que existissem apenas conflitos regionais (historicamente antigos<br />

e <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> local). Ao contrário, o novo milênio inaugurou-se com uma<br />

sucessão <strong>de</strong> conflitos, longe ainda <strong>de</strong> serem concluídos (Afeganistão, Iraque, e<br />

possivelmente, Irã...). Esses conflitos, e a forma como foram justificados (uma<br />

"cruzada civilizadora do oci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>mocrático contra as ditaduras<br />

fundamentalistas do oriente), dão a medida das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se alcançar um<br />

"livre comércio global" que não traduza, em realida<strong>de</strong>, a expansão imperialista<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s potências (EUA e Europa) sobre a riqueza <strong>de</strong> nações, militar e<br />

economicamente, mais fracas. A conjuntura internacional recente trazia alguns<br />

elementos <strong>de</strong> complicação a esse quadro: a permanência do grupo mais<br />

conservador do Partido Republicano na presidência dos EUA, <strong>de</strong> forte espírito<br />

belicista, adicionava uma nota <strong>de</strong> cautela nas políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, por<br />

exemplo, na América Latina. O caso da Venezuela é ilustrativo. Embora<br />

permaneçam como bons parceiros comerciais no caso do petróleo, e gran<strong>de</strong><br />

parte das <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> <strong>de</strong>safeto recíproco entre Chávez e Bush não<br />

passasse <strong>de</strong> retórica vazia, um estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança permanente era e<br />

continua sendo pouco <strong>de</strong>sejável para relações comerciais estáveis. A questão,<br />

pois, está em, em termos diretos, em não transformar a OTAN na salvaguarda<br />

da "liberda<strong>de</strong> comercial" das nações <strong>de</strong> capitalismo avançado ( no caso dos<br />

Estados Unidos, esteja o país sob governo republicano ou <strong>de</strong>mocrata).<br />

O comércio <strong>de</strong> um país não é uma esfera que possa se <strong>de</strong>sligar <strong>de</strong> sua<br />

função social. O comércio global, por conseguinte, <strong>de</strong>ve atrelar-se a uma ética<br />

que supere o prosaísmo do puro ganho mercantil, que vença essa como estéril<br />

"usura mo<strong>de</strong>rna". Dizer isto significa que a constituição <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> livre<br />

11


comércio global não po<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong> discutir o problema dos países cujo<br />

comércio é incipiente e precário, em virtu<strong>de</strong> da própria miséria interna, fruto <strong>de</strong><br />

um passado <strong>de</strong> colonização. O que quero dizer é que o sistema precisa<br />

integrar as nações cujo comércio pouco tem <strong>de</strong> peso no plano mundial, mas<br />

que teriam muito a ganhar com a inserção no sistema mundial: a formação <strong>de</strong><br />

um mercado consumidor interno não elitista, nem exclu<strong>de</strong>nte, po<strong>de</strong> representar<br />

uma ascensão do nível <strong>de</strong> vida geral da população do país. Os melhores<br />

exemplos disso po<strong>de</strong>m ser encontrados nos países africanos. Tome-se em<br />

consi<strong>de</strong>ração um país como Ruanda, <strong>de</strong>vastado pela miséria e pelo<br />

autoritarismo político, duas causas <strong>de</strong>terminantes da gran<strong>de</strong> tragédia que<br />

varreu o país em 1994, e para a qual o mundo vergonhosamente fechou os<br />

olhos. Creio que muito se ganharia com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> integração das nações<br />

miseráveis ao gran<strong>de</strong> sistema comercial i<strong>de</strong>ado, e capaz <strong>de</strong> ir além dos<br />

resultados que consegue a política <strong>de</strong> ajuda humanitária para esses casos. A<br />

i<strong>de</strong>ia presente neste parágrafo <strong>de</strong>certo po<strong>de</strong> ser encarada como ingênua ou<br />

simplista, ou então eivada <strong>de</strong> um utopismo, impróprio da pesquisa científica;<br />

contudo, ela seria uma excelente ferramenta na tarefa <strong>de</strong> tirar ao capitalismo a<br />

sua face <strong>de</strong>sumana e reificadora, que mesmo os <strong>de</strong>fensores do sistema são<br />

obrigados, em algum grau, a reconhecer.<br />

Afastar as questões culturais das discussões em torno da melhor<br />

maneira <strong>de</strong> se organizar o comércio mundial é <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado uma condição <strong>de</strong><br />

existência do comércio, ou seja, a estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mercado consumidor<br />

amplo, constituído por populações diversas. A questão que <strong>de</strong>sejo enfatizar é a<br />

do etnocentrismo que acaba por se traduzir em expressões <strong>de</strong> <strong>de</strong>culturação ou<br />

intolerância cultural: a imposição <strong>de</strong> hábitos <strong>de</strong> consumo ― em geral por meio<br />

da publicida<strong>de</strong> massiva ― e nem sempre escrupulosa ou eticamente<br />

orientada, a povos <strong>de</strong> hábitos diferentes dos do país <strong>de</strong> origem dos produtos<br />

po<strong>de</strong> conduzir a situações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação <strong>de</strong> laços sociais fundados no<br />

costume. Penso nas pequenas comunida<strong>de</strong>s rurais, <strong>de</strong> países como o Brasil ou<br />

a Índia, comunida<strong>de</strong>s até há pouco <strong>de</strong>sligadas dos gran<strong>de</strong>s centros urbanos,<br />

mas que subitamente passam a ser alvo <strong>de</strong> produtos da chamada "indústria<br />

cultural", que promovem estilos <strong>de</strong> vida e comportamentos sociais (como o<br />

individualismo exacerbado e o consumismo <strong>de</strong> ostentação) cujos efeitos tem<br />

sido percebidos na fragilização dos laços interpessoais das comunida<strong>de</strong>s.<br />

12


Por fim, há a questão da mão <strong>de</strong> obra. Se o valor da força <strong>de</strong> trabalho é<br />

uma variável tão importante na composição do valor das mercadorias, quanto o<br />

é o valor das tarifas aduaneiras, e se consi<strong>de</strong>rarmos que as teses liberalizantes<br />

propugnam a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluxo <strong>de</strong> capitais e <strong>de</strong> mercadorias entre os países,<br />

será lícito esperar ser igualmente válida a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fluxo <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra.<br />

Contudo, o contrário é o que se vê: o vergonhoso muro que se levanta na linha<br />

<strong>de</strong> fronteira entre os EUA e o México constitui um exemplo escandaloso dos<br />

limites éticos e políticos da liberalização econômica. A<strong>de</strong>mais disso, a rejeição,<br />

por vezes animosamente cruel, <strong>de</strong> trabalhadores imigrantes africanos e latino-<br />

americanos na Europa representa outro exemplo. Lá, o recru<strong>de</strong>scimento <strong>de</strong><br />

movimentos políticos xenófobos e a adoção <strong>de</strong> uma política severa <strong>de</strong> restrição<br />

aos fluxos migratórios <strong>de</strong> trabalhadores dão o tom <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> coisas em<br />

países que ― esquecidos da <strong>História</strong> recente ― há menos <strong>de</strong> um século,<br />

empurravam parte <strong>de</strong> sua população para lugares distantes das antigas<br />

colônias na América e Ásia. Se tudo isso não for efetivamente objeto <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>ração séria, as discussões em torno das liberalizações do comércio<br />

mundial correm o risco <strong>de</strong> permanecer um jogo <strong>de</strong> palavras <strong>de</strong> uma retórica<br />

vazia.<br />

Vejamos agora, em linhas gerais, a emergência, neste contexto mundial,<br />

<strong>de</strong> um fenômeno para o qual intelectuais <strong>de</strong> todo o mundo têm voltado sua<br />

atenção. O atual cenário político venezuelano tem merecido, justificadamente,<br />

uma atenção particular nos estudos acadêmicos e nas discussões políticas que<br />

se travam hoje na América Latina. A razão disso resi<strong>de</strong>, em gran<strong>de</strong> medida,<br />

nas interpretações ─ notavelmente polêmicas ─ que se têm esboçado para<br />

explicar o "fenômeno Chávez". Oscilando entre avaliações que, por um lado, o<br />

estigmatizam como uma mera reedição do populismo típico latino-americano e,<br />

por outro, o exaltam como uma alternativa promissora e po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong><br />

reorganização do Estado contra o "Estado mínimo" e o processo <strong>de</strong><br />

globalização econômica, o chavismo, a bem dizer, coroa um processo político<br />

<strong>de</strong> décadas, que, por muitos motivos, guarda certa peculiarida<strong>de</strong> na história<br />

latino-americana. Embora a Venezuela se integre perfeitamente ao conjunto<br />

dos países latino-americanos ─ consi<strong>de</strong>rados em sua formação histórica<br />

própria, <strong>de</strong> secular <strong>de</strong>pendência econômica, <strong>de</strong> autoritarismo político e <strong>de</strong><br />

miséria social ─ o país conheceu na década <strong>de</strong> 1970 (e primeiros anos da <strong>de</strong><br />

13


1980) um período tradicionalmente relembrado como <strong>de</strong> abastança econômica<br />

e <strong>de</strong> paz social ─ traços bastante peculiares numa época em que o restante do<br />

continente se agitava, convulso, em meio a ditaduras militares e movimentos<br />

armados da esquerda radical. Entre os estudiosos, não poucos encararam as<br />

instituições políticas venezuelanas <strong>de</strong>sses anos como as mais <strong>de</strong>mocráticas da<br />

América Latina, sustentadas, a<strong>de</strong>mais, por um progresso material fundado na<br />

exploração da riqueza petrolífera do país. Desta perspectiva, ainda, alguns<br />

aspectos da vida político-partidária viriam reforçar a sensação <strong>de</strong> otimismo que<br />

então tomou conta da socieda<strong>de</strong> venezuelana: um sistema político <strong>de</strong> dois<br />

partidos (AD e COPEI), <strong>de</strong> exígua diferença i<strong>de</strong>ológica, e que permitia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

1958, certo estado <strong>de</strong> equilíbrio através <strong>de</strong> um "pacto <strong>de</strong> governabilida<strong>de</strong>"<br />

(puntofijismo), combinado com a firme exclusão <strong>de</strong> grupos políticos radicais<br />

(como o PCV); a forte institucionalização dos partidos e sua composição<br />

multiclassista, o que <strong>de</strong>sencorajava o aparecimento <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças individuais,<br />

e, ao mesmo tempo, permitia a formação <strong>de</strong> coalizões com partidos menores; e<br />

o controle que, na prática, pô<strong>de</strong> exercer a AD sobre importantes setores do<br />

movimento operário (organizados na Confe<strong>de</strong>ração dos Trabalhadores da<br />

Venezuela - CTV).<br />

O cenário econômico mundial <strong>de</strong> inícios <strong>de</strong> 1970, por sua vez, revelou-<br />

se auspicioso para a Venezuela: em 1973, por força da OPEP (da qual o país<br />

era membro preeminente), o barril <strong>de</strong> petróleo atingiu um valor quatro vezes<br />

maior do que nos anos anteriores, numa tendência que se manteria por toda a<br />

década, e mesmo se acentuaria com a Revolução Iraniana <strong>de</strong> 1979. 12 O<br />

progresso econômico podia ser visto, em termos numéricos, nas exportações ─<br />

que ascen<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> 3,1 bilhões <strong>de</strong> dólares (1972) para 11, 3 bilhões (1974) ─ e<br />

no aumento da receita interna disponível. O quadro interno venezuelano<br />

<strong>de</strong>sses anos é assim resumido por Daniel Hellinger :<br />

"The influx of petrodollars during the OPEC boom (1973-1983) far<br />

excee<strong>de</strong>d the capacity of the country to absorb capital. The institutions<br />

of <strong>de</strong>mocracy, especially the judiciary, seemed incapable of coping with<br />

the competition for rents. Certainly the wealthy profited the most, but<br />

the corruption was prolific, embracing toll takers on the highway, military<br />

12 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: O breve século XX (1914-1991). (Trad. <strong>de</strong> Marcos<br />

Santarrita). 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.<br />

14


contractors, social service provi<strong>de</strong>rs, presi<strong>de</strong>nts, and their mistresses.<br />

Thus the corruption was "<strong>de</strong>mocratic" in a sense. Puntofijismo<br />

ensured that some rents percolated down to all social strata, and there<br />

was optimism that the country was advancing. It was measurable in<br />

daily life and in opportunities for the children of urban migrants and<br />

workers. After the <strong>de</strong>valuation of 1983, however, the distributive<br />

capability of the system waned, and with it confi<strong>de</strong>nce that this<br />

<strong>de</strong>mocracy would spur <strong>de</strong>velopment and opportunity." 13<br />

No entanto, nos anos 1980, o mo<strong>de</strong>lo econômico venezuelano dava<br />

sinais <strong>de</strong> esgotamento: entre 1980 e 1986 registrou-se ─ apesar do aumento<br />

das exportações <strong>de</strong> petróleo em razão da queda das exportações iranianas ─<br />

uma curva <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte do crescimento interno. Referindo-se aos anos <strong>de</strong><br />

1979 e 1980, resume Héctor Malavé Mata o movimento <strong>de</strong> queda ─ que se<br />

agravaria nos anos seguintes e que culminaria com a brutal <strong>de</strong>svalorização do<br />

bolívar, em 1983, e com os altos índices <strong>de</strong> inflação no fim da década (81% em<br />

1989) : "(...) En esos dos años la economía <strong>de</strong>l país, con <strong>de</strong>sequilibrios básicos<br />

acentuados por factores internos y externos que limitaron el <strong>de</strong>sarrollo <strong>de</strong> las<br />

activida<strong>de</strong>s productivas, mostró signos <strong>de</strong> estancamiento relativo, a juzgar por<br />

el ritmo <strong>de</strong> crecimiento anual <strong>de</strong>l PTB que a precios constantes ni siquiera llegó<br />

a 1% en promedio, lo cual significó una ostensible contracción. Ello fue<br />

resultado <strong>de</strong> una política económica restrictiva aplicada, hasta límites <strong>de</strong> una<br />

<strong>de</strong>saceleración excesiva, por el gobierno <strong>de</strong> Luis Herrera Campins en sus dos<br />

primeros años <strong>de</strong> gobierno". 14<br />

A par do <strong>de</strong>scenso econômico, <strong>de</strong>lineava-se uma gravíssima crise<br />

social, que culminaria na violenta revolta popular <strong>de</strong> 1989 (conhecida como<br />

Caracazo): patenteavam-se, com ainda maior veemência, as fraquezas e<br />

limitações históricas do "mo<strong>de</strong>lo" venezuelano". Mais do que uma explosão<br />

momentânea e irracional da população pobre, o movimento (que se esten<strong>de</strong>u<br />

até 5 <strong>de</strong> março, e se espalhou por várias outras cida<strong>de</strong>s além da capital) trouxe<br />

a marca iniludível da falência da "política distributiva", proporcionada pela<br />

expansão petroleira, e do "consenso político", forjado em Punto Fijo. Muitos<br />

13 HELLINGER, Daniel. "Political overview: the breakdown of puntofijismo and the rise of<br />

chavismo. In: ELLNER, Steve & HELLINGER, Daniel (Ed.). Op. cit., p. 30.<br />

14 MATA, H. M. "Venezuela: La economía en el periodo 1974-1980", In: MÉNDEZ V., Sofía<br />

(Org.). La crisis internacional y la América Latina. México: Centro <strong>de</strong> investigación y docencia<br />

económicas, p. 631.<br />

15


estudiosos tentaram estabelecer uma relação entre a agitação social e o<br />

<strong>de</strong>sgaste das instituições políticas, após décadas em vigor. 15 Mas, em verda<strong>de</strong>,<br />

essa crise social se traduzia num fenômeno mais importante (e mais<br />

duradouro) <strong>de</strong> polarização social, provocada por fatores econômicos. Seu<br />

paroxismo, manifestado no Caracaço, coincidiu com os piores indicativos<br />

econômicos e sociais dos últimos trinta anos (e alguns entre os piores do<br />

conjunto dos países latino-americanos): índice <strong>de</strong> produção anual negativo,<br />

índices crescentes <strong>de</strong> inflação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego urbano. E sobretudo revelava<br />

o grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que a economia do país tinha em relação ao petróleo e<br />

às oscilações do produto no mercado internacional. A crescente animosida<strong>de</strong><br />

social <strong>de</strong>sses anos representava, segundo S. Ellner 16 , uma ruptura com o<br />

passado <strong>de</strong> uma nação que fora uma das mais prósperas do continente, mas<br />

que experimentaria nos anos 1990 um processo severíssimo <strong>de</strong> agravamento<br />

da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. A polarização social, ainda segundo esse autor,<br />

encontrou expressão também na ampliação do número <strong>de</strong> trabalhadores na<br />

economia informal, e no ressentimento mútuo entre os setores mais pobres e<br />

os mais abastados da socieda<strong>de</strong>. Foi nesse ambiente, por conseguinte, que<br />

surgiram os partidos (como o <strong>de</strong> Chávez) que voltaram seu discurso quase<br />

exclusivamente para os segmentos mais baixos, rompendo assim a tradição <strong>de</strong><br />

partidos multiclassistas.<br />

Apesar da momentânea recuperação econômica, graças ao aumento do<br />

preço internacional do petróleo que se seguiu ao ataque norte-americano ao<br />

Iraque, entre agosto <strong>de</strong> 1990 e março <strong>de</strong> 1991, o fim <strong>de</strong>ste ano veria novos<br />

protestos populares contra a carestia, e que acabaria por computar duas<br />

<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> mortos. O governo <strong>de</strong> Carlos Andrés Pérez, eleito euforicamente<br />

em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1988 com a promessa <strong>de</strong> retorno aos anos <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>,<br />

chegava ao início <strong>de</strong> 1992, como alvo <strong>de</strong> um golpe <strong>de</strong> Estado, li<strong>de</strong>rado pelo<br />

então tenente-coronel Hugo Chávez, que embora malogrado, prenunciava as<br />

agruras que o país enfrentaria nos anos seguintes.<br />

15 Cf. ELLNER, Steve. Introduction. In: ELLNER, Steve & HELLINGER, Daniel (Ed.). Op. cit.,<br />

p.18.<br />

16 I<strong>de</strong>m, p. 21.<br />

16


A adoção do "receituário neoliberal" na Venezuela, nos primeiros meses<br />

do governo Pérez, pouco diferiu das que ocorriam e ocorreriam no restante da<br />

América Latina, <strong>de</strong> Ménem a Fujimori, <strong>de</strong> FHC a Losadas. O fracasso das<br />

políticas sociais ― proclamadas por esses governos como combinadas às<br />

reformas financeiras e econômicas liberalizantes ― conduziria ao<br />

fortalecimento dos partidos oposicionistas em quase todos os países latino-<br />

americanos e, em fins dos anos 1990, levaria ao po<strong>de</strong>r figuras políticas da<br />

esquerda histórica <strong>de</strong>stes países. Na Venezuela, essa ruptura assumiu, no<br />

entanto, certa peculiarida<strong>de</strong>: a ascensão <strong>de</strong> Chávez coincidiu, naquela<br />

conjuntura, com a chegada à presidência dos Estados Unidos <strong>de</strong><br />

representantes diretos das corporações norte-americanas ― sobretudo as<br />

empresas petroleiras ― que, como nota um estudioso,<br />

"(...) en lugar <strong>de</strong> promover los ajustes que parecían aconsejables en la<br />

arquitectura financiera internacional para asegurar su estabilidad, han<br />

acelerado a fondo la lucha por alcanzar un mundo hecho a la medida <strong>de</strong><br />

las recomendaciones <strong>de</strong> las corporaciones transnacionales y, en<br />

particular, <strong>de</strong> las petroleras y financieras, al mismo tiempo imprimiéndole<br />

a esta lucha una dimensión militar con implicaciones políticamente<br />

explosivas. El impulso <strong>de</strong>cisivo que el atentado <strong>de</strong>l 11 <strong>de</strong> septiembre <strong>de</strong><br />

2001 le dio a la política “imperial” <strong>de</strong> Bush ha estado acompañado por<br />

una agresiva política doméstica <strong>de</strong> reducción <strong>de</strong> impuestos (sobre todo a<br />

las corporaciones), mientras que se prolonga la recesión económica que<br />

siguió al dramático colapso <strong>de</strong> la llamada “nueva economía”. De manera<br />

que tanto el entorno internacional como las perspectivas futuras para la<br />

economía norteamericana ofrecen elementos <strong>de</strong> incertidumbre mayores<br />

que los acostumbrados, lo que aconseja pru<strong>de</strong>ncia en el empeño por<br />

<strong>de</strong>finir <strong>de</strong>rroteros alternos.” 17<br />

Esta circunstância daria a Chávez um importante mote em seu discurso<br />

contra o "capitalismo selvagem" e o "imperialismo <strong>de</strong> Mr. Death", cujo tom<br />

pouco mudou até recentemente. Este mote ― a <strong>de</strong>fesa intransigente da<br />

exploração estatal da riqueza petrolífera através do controle efetivo pelo Estado<br />

da PDVSA, como base material para as reformas sociais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

abrangência na socieda<strong>de</strong> venezuelana, em especial nos estratos mais<br />

pobres― este mote, todavia, traz algum fundamento histórico: é possível<br />

asseverar-se que o chavismo irrompe, no cenário político latino-americano,<br />

17 PARKER, Dick. ¿Representa Chávez una alternativa al neoliberalismo? Revista Venezolana<br />

<strong>de</strong> Economía y 102 Ciencias Sociales. p. 95.<br />

17


como a mais expressiva forma <strong>de</strong> oposição institucional ao vendaval <strong>de</strong><br />

reformas neoliberais que tomou conta do continente em seguida ao fim <strong>de</strong><br />

regimes militares que avassalara a região (e <strong>de</strong> que, como vimos,<br />

curiosamente, a Venezuela, fora uma exceção). No chavismo, pois, a<br />

"revolução bolivariana" ganha a forma (a <strong>de</strong>speito do adjetivo "socialista" que<br />

quase sempre acompanha essa expressão) <strong>de</strong> um nacionalismo radical, que<br />

alguns politólogos erroneamente insistem em chamar <strong>de</strong> populista (ou,<br />

segundo outros ainda, neopopulista 18 ).<br />

Quatro medidas da política <strong>de</strong> Chávez, ao longo <strong>de</strong>sses doze anos <strong>de</strong><br />

governo, permitem caracterizar o chavismo como uma alternativa histórica ao<br />

mo<strong>de</strong>lo neoliberal 19 : a) a reforma da economia petroleira: esta reforma baseou-<br />

se em ao menos duas medidas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> impacto, a saber, 1) a interrupção do<br />

processo <strong>de</strong> privatização da PDVSA, transferindo para o Executivo a <strong>de</strong>finição<br />

da política <strong>de</strong> gerenciamento da estatal, e 2) o fortalecimento das relações<br />

entre os países membros da OPEP para a imposição <strong>de</strong> uma política mundial<br />

<strong>de</strong> preços mais favorável ao conjunto dos países exportadores do produto, a<br />

par do reconhecimento <strong>de</strong> que a economia venezuelana se fundaria ainda por<br />

muito tempo na exportação do produto; b) o <strong>de</strong>senvolvimento endógeno: a<br />

oposição que o governo sofre <strong>de</strong> parte do empresariado nacional<br />

(Fe<strong>de</strong>cámaras), <strong>de</strong> certo modo impeliu Chávez a uma posição <strong>de</strong> relativa<br />

18 Um exemplo <strong>de</strong>ssa adjetivação se encontra em FOLZ, Olivier. Hugo Chavez : le renouveau<br />

du populisme vénézuélien ? Revue <strong>de</strong> Civilisation Contemporaine <strong>de</strong> l’Université <strong>de</strong> Bretagne<br />

Occi<strong>de</strong>ntale, EUROPES / AMÉRIQUES. Disponível em http://www.univ-brest.fr/amnis/.<br />

Tratando da construção da imagem <strong>de</strong> Chávez, diz o autor: "Cette étu<strong>de</strong> aura démontré que<br />

Hugo Chavez est incontestablement un grand lea<strong>de</strong>r charismatique. Elle nous aura aussi<br />

permis d’établir qu’il possè<strong>de</strong> plusieurs caractéristiques connexes au populisme latinoaméricain<br />

<strong>de</strong>s années trente et soixante. À l’instar <strong>de</strong>s grands lea<strong>de</strong>rs populistes et du<br />

protopopulisme vénézuélien, il apparaît dans un contexte <strong>de</strong> crise généralisée. Il se présente<br />

aussi sous un aspect protestataire, nationaliste et en appelle au peuple pour légitimer son<br />

action. Toutefois, nous conviendrons que <strong>de</strong>s éléments novateurs viennent s’y ajouter. En effet,<br />

Hugo Chavez se situe hors du système <strong>de</strong>s partis et intervient dans un contexte <strong>de</strong> désillusion<br />

démocratique. Il est le fruit d’une société anomique, désarticulée et encline aux peurs <strong>de</strong> la<br />

mondialisation. Par ailleurs, il est étranger à la tradition politique. À la différence <strong>de</strong>s partis<br />

politiques traditionnels, son mouvement fait montre d’une carence idéologique patente qui<br />

donne l’impression d’une improvisation constante. En effet, les médias l’ont propulsé sur le<br />

<strong>de</strong>vant <strong>de</strong> la scène politique et entretiennent ce rapport <strong>de</strong> proximité entre le lea<strong>de</strong>r et les<br />

masses, créant ainsi un phénomène d’hyperpersonnalisation <strong>de</strong> l’exécutif 53 . L’enchâssement <strong>de</strong><br />

toutes ces nouveautés conceptuelles nous amène à parler non plus <strong>de</strong> populisme mais <strong>de</strong> néopopulisme.<br />

Hugo Chavez est-il un lea<strong>de</strong>r néo-populiste ? Sans hésiter, nous répondrons par<br />

l’affirmative."(p.10).<br />

19 Veja-se PARKER, Dick. Op. Cit., p.98 et seq.<br />

18


simpatia com os investidores estrangeiros; o traço <strong>de</strong> nacionalismo da política<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial interno, <strong>de</strong> cujo sucesso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> o plano <strong>de</strong><br />

diversificação da base produtiva da economia do país, resi<strong>de</strong> na preocupação<br />

estatal em incentivar o pequeno e médio empresariado, estimulando a<br />

concorrência interna ao passo que coíbe a formação <strong>de</strong> oligopólios nacionais e<br />

internacionais; c) a autonomia frente ao capital estrangeiro: este ponto constitui<br />

o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio a ser vencido pelo bolivarianismo chavista: impedir o avanço<br />

das negociações em torno <strong>de</strong> um mercado comum das Américas (ALCA) que<br />

permitiria a refortalecimento da hegemonia comercial e financeira norte-<br />

americana sobre todo o continente. O <strong>de</strong>safio está numa alternativa (ALBA)<br />

que promovesse a integração das economias latino-americanas <strong>de</strong> forma mais<br />

efetiva, com a constituição <strong>de</strong> um banco <strong>de</strong> recursos financeiros para a região;<br />

d) aplicação <strong>de</strong> políticas sociais efetivas: <strong>de</strong> inegável vantagem política (e aqui<br />

se baseiam os que caracterizam o chavismo como uma reedição do<br />

populismo), os programas sociais voltam-se para a efetivação <strong>de</strong> uma<br />

"economia social", na qual a produção material do país traduza-se em<br />

melhorias substantivas das condições elementares <strong>de</strong> vida. O <strong>de</strong>semprego e o<br />

subemprego, bem como educação e saú<strong>de</strong>, aparecem como metas prioritárias<br />

do governo. Neste plano, a aproximação com Cuba significou mais do que uma<br />

suposta afinida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica e <strong>de</strong> estratégias, pois pô<strong>de</strong> contar com a<br />

importação <strong>de</strong> profissionais das áreas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> educação. Um marco<br />

fundamental <strong>de</strong>sta posição <strong>de</strong>u-se em 2002, com a Lei <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social.<br />

Sobre ele diz Parker: " (...) que marca una ruptura radical con la postura<br />

neoliberal que, en mayor o menor medida, había inspirado las medidas<br />

adoptadas en el resto <strong>de</strong>l continente. <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> interminables (e<br />

imperdonables) <strong>de</strong>moras, se introdujo un marco para este aspecto fundamental<br />

<strong>de</strong> la política social que es claramente la antítesis <strong>de</strong>l neoliberalismo. La<br />

cobertura es universal y no selectiva. El sistema <strong>de</strong> financiamiento es colectivo<br />

y no individual. Y, finalmente, es manejado por el Estado y no dominado por el<br />

sector privado. Aunque el sector privado no está excluido, su participación está<br />

limitada a aquellas instituciones que funcionan “sin fines <strong>de</strong> lucro”. Con esta<br />

medida, se establece, <strong>de</strong> una vez, que la responsabilidad por la seguridad<br />

19


social <strong>de</strong> los ciudadanos queda en manos <strong>de</strong>l Estado y no se somete a la<br />

lógica mercantil." 20 Somadas, essas estratégias têm levado a Venezuela a<br />

uma situação merecedora da atenção dos que esperam honestamente que o<br />

dinamismo histórico da América Latina a conduza a um estado efetivo e<br />

duradouro <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia social, mais do que <strong>de</strong> mera <strong>de</strong>mocracia formal. Por<br />

isso, Edgardo Lan<strong>de</strong>r pô<strong>de</strong> apontar duas características da história presente<br />

venezuelana às quais se espera os cientistas políticos e sociais <strong>de</strong>vam ater-se,<br />

e com as quais encerramos esta exposição:<br />

20 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m, p. 106.<br />

21 LANDER, Edgardo. Venezuela: a busca <strong>de</strong> um projeto contra-hegemônico. Hegemonias e<br />

emancipações no século XXI. CECEÑA, Ana Esther. CLACSO, Consejo Latinoamericano <strong>de</strong><br />

Ciencias Sociales, Julio 2005, p. 215.<br />

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