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Tecnocracia e Burocracia - Cebrap

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3CARLOS ESTEVAM MARTINS<br />

TECNOCRACIA E BUROCRACIA


Embora existam fronteiras suficientemente delineadas<br />

separando as noções de burocracia e tecnocracia, não são<br />

poucas as ocasiões em que as encontramos confundidas.<br />

A origem desse equivoco remonta a Weber ou, melhor<br />

dizendo, à interpretação que se tem dado a algumas das<br />

características por ele atribuídas às burocracias modernas,<br />

tais como o primado da racionalidade, a criação de staffs<br />

profissionais, especializados e tecnicamente competentes, o<br />

requisito de treinamento prévio e prova de aptidão para o<br />

exercício de cargos específicos e as vantagens que daí<br />

advêm em termos de eficiência e calculabilidade da ação.<br />

De uma interpretação apressada da análise weberiana<br />

podem resultar formulações que tornam literalmente inútil<br />

o conceito de burocracia. Não faltam exemplos dessa possibilidade.<br />

A título de ilustração, veja-se a seguinte passagem<br />

de um texto de Reinhard Bendix: "Nas burocracias<br />

modernas os altos funcionários administrativos detêm o<br />

monopólio da competência, ou seja, eles são insubstituíveis<br />

por causa da alta qualificação técnica requerida pelas<br />

posições que ocupam. Na medida em que esses especialistas<br />

são insubstituíveis, diz-se que eles detêm um monopólio<br />

do poder". A primeira vista, trata-se de um comentário<br />

relativo antes à tecnocracia do que à burocracia: o<br />

monopólio do poder como resultado do monopólio do saber<br />

técnico-científico. Contudo, essa impressão é integralmente<br />

desfeita por uma nota adicionada ao mesmo texto: "Tipicamente,<br />

essa descrição não se aplica aos funcionários<br />

governamentais que são técnicos e especialistas nos campos<br />

da ciência ou da. indústria. Para esses, é possível encontrar<br />

substitutos com relativa facilidade. Ademais, eles caracteristicamente<br />

gozam de pouco prestígio no serviço<br />

público".<br />

Sem essa nota, o texto acima seria um exemplo da<br />

total identificação de burocracia com tecnocracia. Graças<br />

a ela, entretanto, ganha destaque a idéia de que é possível<br />

conceber um tipo de competência, racionalidade, eficiência e<br />

profissionalização que nada tem a ver com o que é próprio<br />

e exclusivo do contingente técnico-científico.<br />

Com efeito, o termo burocracia refere-se a uma modalidade<br />

específica de staff administrativo. A necessidade de<br />

constituir um staff administrativo surge em qualquer organização<br />

que se tornou tão complexa a ponto de não ser<br />

121


mais praticável a manutenção de relações imediatas e diretas<br />

entre o nível de chefia e o de execução. Em princípio,<br />

um staff administrativo é apenas o sistema de transmissão<br />

que torna possível o contato entre esses dois níveis mediante<br />

a manutenção de um fluxo de ordens que parte de<br />

cima para baixo e de um fluxo de informações que sobe<br />

dos escalões inferiores aos superiores. Muitas tarefas precisam<br />

ser realizadas (antes, durante e depois) para que<br />

cada decisão da chefia seja efetivamente cumprida por<br />

aqueles a quem cabe transformá-las em realidade. A garantia<br />

de que essas tarefas serão realizadas é dada pela<br />

presença de um corpo de funcionários que, representando<br />

os interesses da chefia e munido dos poderes por ela delegados,<br />

está em condições de obter dos executantes aquilo<br />

que deles se espera.<br />

O poder com que conta uma organização para motivar<br />

os seus membros e agir sobre o meio-ambiente (natural<br />

ou social) encontra-se, em princípio, concentrado no cume<br />

da hierarquia organizacional, ou seja, ao nível do escalão<br />

dirigente supremo. Tal escalão é efetivamente supremo<br />

na medida em que desfruta do poder de decidir, em última<br />

instância, sobre o destino da organização e a utilização dos<br />

seus recursos. Nesse sentido, a chefia organizacional distingue-se,<br />

por definição, tanto do staff administrativo propriamente<br />

dito, quanto dos membros que desempenham<br />

funções de nível meramente operacional.<br />

Há um outro aspecto, não menos importante, em que<br />

se distingue a chefia do staff administrativo. A primeira,<br />

em contraste com o segundo, representa, em princípio, o<br />

setor politicamente responsável pela organização, no sentido<br />

de ser o setor que responde pelo comportamento da<br />

organização nas suas relações com o mundo exterior. Na<br />

situação ideal que estamos tentando caracterizar, supõe-se<br />

que as pressões externas exercidas sobre a organização<br />

com o propósito de modificar o seu comportamento repercutem<br />

diretamente sobre o nível de chefia. No caso<br />

extremo, os efeitos de um relacionamento inadequado com<br />

o meio-ambiente implicariam a destituição da direção suprema.<br />

A partir dessas distinções analíticas, podemos pensar<br />

em duas dimensões distintas do conceito de burocracia:<br />

uma de natureza administrativa, outra de natureza política.<br />

122


Tomado em sentido administrativo, o conceito refere-se<br />

à forma particular de organização por meio da qual procura-se<br />

imprimir um caráter objetivo, neutro, impessoal e<br />

calculável ao funcionamento do staff administrativo. Em<br />

contraste, por exemplo, com a administração de tipo patrimonial,<br />

a administração burocrática estaria livre da interferência<br />

de uma série de fatores desordenadores tais como<br />

a arbitrariedade subjetiva dos superiores, as influências<br />

externas que se infiltram no sistema para romper a unidade<br />

de comando, a falta de treinamento e de qualificações<br />

necessárias para o exercício dos cargos, os abusos cometidos<br />

por funcionários que detêm a posse privada dos meios<br />

administrativos e toda sorte de variações incontroláveis<br />

resultantes de conflitos na interpretação de normas tradicionais<br />

imprecisamente formuladas e controversas.<br />

Nesse sentido, a burocratização teria o mérito de permitir<br />

a coordenação sistemática das múltiplas atividades<br />

administrativas a partir de um centro único de controle.<br />

Transformando o sistema administrativo num todo org&nico,<br />

capaz de funcionar em conformidade com critérios explícitos<br />

e objetivos, a meta final do processo de burocratização<br />

seria a de elevar ao máximo possível a racionalidade<br />

do sistema organizacional, permitindo a adequação<br />

dos meios aos fins e o cálculo rigoroso dos resultados<br />

previsíveis da ação. Se bem que, examinada de outro<br />

ponto de vista, seja possível afirmar que a competência<br />

burocrática se transforma no seu contrário. Assim, para<br />

Marx do mesmo modo que para Kafka, a burocracia<br />

conteria em si mesma um mecanismo embutido de incompetência<br />

auto-sustentada: "A cabeça confia aos círculos<br />

inferiores a compreensão do detalhe e os círculos inferiores<br />

crêem que a cabeça é capaz de compreender o geral e,<br />

assim, enganam-se mutuamente".<br />

Para os nossos propósitos, entretanto, o importante é<br />

sublinhar o fato de que os valores de racionalidade,<br />

eficiência, objetividade e profissionalismo envolvidos no<br />

aspecto meramente administrativo da burocracia nada têm<br />

a ver com o incremento da participação dos tecnólogos nos<br />

centros de decisão que comandam o funcionamento da<br />

organização. Dizer que um dado staff administrativo<br />

assumiu uma forma burocratizada implica em admitir,<br />

apenas, que a ação dos dirigentes organizacionais passou a<br />

ser instrumentalizada por um mecanismo de novo tipo,<br />

123


caracterizado pela natureza previsível de seu comportamento<br />

e por sua indiferença com respeito ao conteúdo dos<br />

comandos emitidos pela cúpula dirigente. Em outras palavras,<br />

a burocratização tomada nesse sentido equivale a<br />

uma reforma administrativa que aumenta a racionalidade<br />

do sistema na exata medida em que concentra poder de<br />

decisão nas mãos da chefia suprema, independentemente<br />

de quem sejam os ocupantes dessas posições e do modo<br />

pelo qual a elas tiveram acesso.<br />

Para ilustrar a incompatibilidade que existe entre a<br />

idéia de tecnocracia e a acepção específica do conceito de<br />

burocracia que estamos examinando, seria conveniente<br />

analisar o significado que Weber atribui ao profissionalismo<br />

administrativo. Na opinião de Weber, o papel desempenhado<br />

pela competência especializada torna imnossível<br />

a existência de uma máquina administrativa moderna<br />

sem a presença de um corpo de funcionários profissionalmente<br />

treinados. Ao pensar assim, entretanto, o que<br />

Weber tem em mente não é a noção corrente do profissional<br />

liberal, egresso de uma universidade e incorporado,<br />

por um motivo qualquer, a um determinado staff administrativo.<br />

Na realidade, a profissionalização a que ele se<br />

refere é de um outro tipo. Trata-se, a rigor, do funcionalismo<br />

como profissão.<br />

Em outras palavras, o caso clássico do profissional<br />

liberal supõe a combinação de dois elementos. Em primeiro<br />

lugar, formação especializada numa disciplina científica;<br />

em setrundo lugar, internalização de um sistema de<br />

crenças, valores e normas que orienta legitimamente a conduta<br />

dos membros da profissão na medida em que é por<br />

eles próprios elaborado e redefinido em função das circunstâncias<br />

que afetam o exercício da profissão A profissionalização<br />

administrativa, ao contrário, requer um conteúdo<br />

diferente para esses dois elementos. Em primeiro lugar,<br />

não importa a natureza do treinamento recebido pelo candidato,<br />

contanto que ele reúna as qualificações exigidas<br />

para o exercício do cargo. Em segundo lugar, o código<br />

de ética profissional que lhe cabe internalizar é não só<br />

heteronomicamente constituído, como prescreve, acima de<br />

tudo, que o funcionário se desincumbirá lealmente dos deveres<br />

do seu cargo, sejam quais forem os seus sentimentos<br />

pessoais e as discordâncias que tenha com a política posta<br />

124


em prática pela organização. Tamanha é a diferença entre<br />

os dois tipos de profissionalismo que a primeira coisa que<br />

se requer para que um profissional liberal (ou seja, um<br />

tecnólogo) transforme-se num burocrata consiste em que<br />

ele substitua o sistema de crenças propriamente profissional<br />

a que se encontra aderido pelo sistema de crenças<br />

que caracteriza o profissionalismo administrativo. Como<br />

se isso não bastasse, a segunda coisa que se espera dele<br />

é o uso seletivo das aptidões que adquiriu e o emprego<br />

condicional dos conhecimentos de sua disciplina no sentido<br />

de subordinar o patrimônio cultural representado pelo<br />

tecnólogo ao serviço da função que desempenha e não viceversa.<br />

Em suma, ao converter-se em burocrata o indivíduo<br />

aceita o dever específico de fidelidade às prescrições<br />

inerentes ao cargo; submete-se às injunções e responde às<br />

expectativas associadas à posição que ocupa no interior<br />

de uma estrutura pré-estabelecida e coloca-se, assim, a<br />

serviço de uma finalidade objetiva e impessoal que, em si<br />

mesma, não pode ser definida como sendo de natureza<br />

técnico-científica.<br />

Se a análise precedente faz sentido, dela se conclui<br />

que a burocratização de um sistema organizacional, exatamente<br />

porque aumenta a racionalidade, a eficiência e a<br />

objetividade do sistema, exclui a possibilidade do staff<br />

administrativo transformar-se num organismo tecnocrático<br />

capaz de sobrepor-se ao escalão dirigente: Isso é assim<br />

porque, no sentido administrativo que até aqui estamos<br />

discutindo, a burocratização esvazia o poder do burocrata<br />

e o converte num instrumento simultaneamente eficiente e<br />

subserviente a serviço de um comando centralizado e supremo.<br />

Nesse sentido, a burocracia constitui uma peça<br />

perfeitamente ajustada ao esquema de produção capitalista<br />

em larga escala e à sociedade constituída para a<br />

realização dos fins dessa produção. A submissão do burocrata<br />

ao cargo, ou seja, o império impessoal do "bureau"<br />

sobre o ser social dos seus ocupantes, é o que converte<br />

a burocracia no modelo de racionalidade administrativa<br />

que torna possível a gestão eficiente dos sistemas modernos<br />

de dominação. A contrapartida desse tipo específico<br />

de racionalidade não é a técnica nem, muito menos, a<br />

ciência, mas a disciplina.<br />

A outra acepção do termo, a dimensão política do<br />

conceito de burocracia, supõe justamente o contrário.<br />

125


Nesse caso descreve-se como burocracia o staff administrativo<br />

que se autonomizou, açambarcando em suas mãos,<br />

em detrimento da elite dirigente, o poder de decidir sobre<br />

o comportamento da organização. É evidente que tal autonomia<br />

nunca pode ser mais do que relativa uma vez que<br />

não lhe é dado transcender os limites estabelecidos pelos<br />

princípios estruturais de ordem social vigente dentro da<br />

qual foi engendrada e graças a qual floresce a burocracia<br />

que se proclama senhora de si mesma. Respeitada essa<br />

restrição essencial, é claro que há lugar para um certo<br />

grau de emancipação burocrática. Para que esta ocorra,<br />

basta que se desenvolva no staff administrativo a capacidade<br />

de se opor com êxito às diretrizes traçadas pela<br />

liderança oficial da organização. Não é necessário qualquer<br />

rompimento com as finalidades últimas que dão sentido<br />

à existência da organização. Seja como for, entretanto,<br />

o importante para nós é que, uma vez mais, também<br />

nesse caso não há porque confundir burocracia com tecnocracia.<br />

Que assim é, pode ser demonstrado pela análise da<br />

trajetória que vai do simples funcionalismo ao poder burocrático.<br />

Para tanto, é necessário perguntar: que recursos<br />

específicos, uma vez acumulados, conferem aos funcionários<br />

administrativos uma base autônoma de poder? Segundo<br />

a lógica do argumento que estamos tentando construir,<br />

se a lista desses recursos não inclui aqueles que são<br />

próprios e exclusivos do contingente técnico-científico,<br />

então impõe-se a conclusão de que o poder burocrático<br />

não se confunde com o poder tecnocrático.<br />

Para proceder ao exame desse ponto, convém ter presente<br />

a moldura que define os limites do poder burocrático.<br />

Nas sociedades capitalistas — as únicas que se<br />

enquadram no marco histórico-estrutural abrangido pelo<br />

presente trabalho — o contingente burocrático constitui<br />

uma categoria social essencialmente vinculada ao sistema<br />

de classes. Ela não é nem uma classe, nem uma camada<br />

ou estrato definível no interior de uma classe como acontece,<br />

por exemplo, com a "aristocracia operária" em relação<br />

à classe operária. Nos casos em que desempenha um<br />

papel central na dinâmica do sistema, enquanto burocracia<br />

pública ou burocracia de empresa, ela exerce a<br />

função de impor, utilizando-se dos meios coercitivos apro-<br />

126


priados, a ordem social estabelecida que garante a reprodução<br />

das relações capitalistas tanto na economia quanto<br />

na sociedade como um todo. Nos casos periféricos, enquanto<br />

burocracia sindical ou burocracia de partidos de esquerda,<br />

desaparecem até certo ponto os seus vínculos de subordinação<br />

com os princípios retores do sistema, mas, não<br />

obstante, permanece a referência a algum tipo de subordem<br />

estabelecida que a burocracia respectiva encara<br />

como sendo seu dever preservar. Em qualquer do suas<br />

formas, o próprio da burocracia é situar-se no centro dos<br />

antagonismos existentes entre dominantes e dominados e<br />

seu mister é o de destruir a realidade dessa contradição.<br />

Lamentavelmente, pouco se sabe sobre a burocracia<br />

como grupo de poder nas sociedades capitalistas. Há, entretanto,<br />

alguns fatores de ordem genérica que parecem ser<br />

comumente interpretados como responsáveis pela expansão<br />

do poder burocrático. Dentre esses, destacamos os seguintes<br />

:<br />

1) A expansão, não do poder burocrático, mas da<br />

envergadura estrutural das burocracias é, em geral, atribuída<br />

às transformações requeridas pelo próprio desenvolvimento<br />

do sistema capitalista. O surgimento de gigantescas<br />

corporações, a ampliação da intervenção do estado<br />

e de seu papel planejador, o caráter mais complexo e<br />

multifacético assumido pela luta sindical, são algumas das<br />

novas realidades que impuseram a organização de estruturas<br />

burocráticas extensas e altamente diferenciadas.<br />

Ora, quanto maior é o tamanho de um. corpo burocrático,<br />

tanto maior é a quantidade de poder que nele se<br />

encarna e, portanto, tanto mais diminuta é a parcela que<br />

resta à disposição da liderança organizacional. É claro<br />

que é da essência do poder burocrático o fato dele ser<br />

delegado e, em teoria, todo poder delegado é em principio<br />

recuperável. Entretanto, a variável tamanho da massa<br />

de poder delegado contribui para que, na prática, multipliquem-se<br />

as oportunidades de apropriação por tempo<br />

indefinido dos poderes entregues condicionalmente às burocracias.<br />

O enfeudamento de posições e setores por parte<br />

da camada burocrática, favorecido pelas grandes distâncias<br />

que separam o topo da hierarquia dos níveis subordinados,<br />

torna-se um evento fácil de ocorrer e difícil de corrigir.<br />

(Vale a pena notar que, no quadro do sistema socialista,<br />

127


a experiência chinesa demostra que, havendo a vontade<br />

política e criando-se os meios adequados, é possível não<br />

só conter o movimento de usurpação burocrática como<br />

reduzi-lo a proporções toleráveis).<br />

Todavia, quando entregues a si mesmos, sendo muitos,<br />

os burocratas têm mais chances de se impor do que<br />

se fossem poucos. Como observa Claude Lefort, a maior<br />

diversidade das atividades e de indivíduos encarregados<br />

de executá-las, a especialização e o caráter estanque dos<br />

serviços e o maior número de andares do edifício administrativo,<br />

são fatores que contribuem para multiplicar<br />

a quantidade de instâncias de co-ordenação e controle e,<br />

desse modo, maior se torna a soma de autoridade absorvida<br />

pela burocracia e mais ela se permite centrar-se<br />

exclusivamente em si mesma.<br />

2) Associado ao gigantismo da camada burocrática e<br />

estimulado pela progressiva interdependência das unidades<br />

do sistema capitalista moderno, ocorre o fenômeno da crescente<br />

multiplicação das interações burocráticas entre o setor<br />

público e o privado e dos diferentes ramos de um e de<br />

outro entre si.<br />

Para que tudo que precisa ser resolvido seja de fato<br />

e convenientemente resolvido não é mais suficiente, como em<br />

épocas passadas, que meia dúzia de políticos confabulem<br />

com um punhado de negociantes e outros tantos generais.<br />

A articulação das atividades essenciais ao desenvolvimento<br />

do sistema exige o contato assíduo entre um sem número<br />

de pontos nodais das extensas redes burocráticas que penetram<br />

as várias esferas da vida social. Utilizando-se dos<br />

mais variados meios de comunicação, burocratas de todo<br />

tipo dão prosseguimento a um incessante intercâmbio de<br />

opiniões, projeto, informações, e demais itens necessários<br />

ao entabolamento de negociações. É claro que uma grande<br />

parte dessas atividades escapa ao conhecimento e ao controle<br />

direto daqueles que são oficialmente responsáveis<br />

pelas organizações envolvidas. Daí decorre a presunção de<br />

que de fato alarga-se cada vez mais a área de manobra<br />

deixada ao arbítrio exclusivo do contingente burocrático, em<br />

detrimento das liderenças que figuram no primeiro plano<br />

do cenário.<br />

3) Mais importante do que isso, entretanto, é o engrandecimento<br />

do poder burocrático que decorre do sistema de<br />

128


apoio mútuo que funciona não só no seio de uma dada<br />

burocracia (articulando entre si, numa única teia de compromissos<br />

recíprocos, funcionários de diferentes serviços,<br />

setores e escalões) como também entre representantes de<br />

burocracias pertencentes a organizações distintas e, muitas<br />

vezes, rivais. Esse travejamento formado por entendimentos,<br />

conluios e trocas informais de respaldos e ajudas de<br />

todo gênero constitui o substituto moderno dos laços de<br />

origem social e de parentesco que constituíam a base de<br />

poder das burocracias estatais vinculadas à classe domiante<br />

nos países e nos períodos em que prevaleceram critérios<br />

menos universalistas de recrutamento para o serviço<br />

público ou para os postos administrativos das organizações<br />

privadas. Com a abolição parcial das restrições<br />

baseadas no critério de classe, os burocratas modernos têm<br />

tratado de compensar a debilidade resultante de sua heterogeneidade<br />

social por meio da formação de sistemas de<br />

aliança que outra vez os reagrupa como portadores de um<br />

interesse próprio, relativamente definido, contraposto ou<br />

de alguma forma distinguido dos que caracterizam os seus<br />

reais ou supostos adversários.<br />

A literatura sobre grupos de pressão é uma fonte inesgotável<br />

de dados e evidências que iluminam essa situação.<br />

Ela descreve com detalhe o bloqueio sistemático a que<br />

são submetidos os cidadãos comuns e os representantes de<br />

interesses deficientemente organizados que buscam trafegar<br />

pelas vias de acesso que conduzem aos centros de autoridade.<br />

Não são poucos os ministérios e agências governamentais<br />

que, alegando a necessidade de prevenir a "inundação<br />

do aparelho do Estado", limitam a participação no<br />

sistema de audiências e consultas apenas às organizações<br />

de cume, ou seja, aquelas que desfrutam do reconhecimento<br />

oficial pelo fato de terem alguma coisa a dar em<br />

troca do que pedem. Quanto mais poderoso é o grupo<br />

de pressão, mais os burocratas estatais se preocupam com<br />

os seus movimentos, maior é a sua capacidade de constituir<br />

uma burocracia própria, apta a tratar dos problemas<br />

segundo a perspectiva e a linguagem que a burocracia<br />

oficial entende e aprecia, maiores são os seus cuidados na<br />

preservação do sigilo em que devem permanecer envoltos<br />

os tratos, as negociações e os acertos de conta, menor é a<br />

sua inclinação, em caso de conflito, pelas formas irremissíveis<br />

e públicas de luta política, maior é a quantidade e<br />

129


melhor é a qualidade do estoque de informações escassas<br />

que detêm sob seu controle e, finalmente, quanto mais<br />

poderoso é o grupo de pressão, maior é não só a sua<br />

capacidade como a sua disposição de retribuir com generosidade<br />

o tratamento preferencial que lhe seja concedido.<br />

Desse convívio entre "gentleman" os burocratas de ambos<br />

os lados retiram a força necessária para auto-afirmar o<br />

seu direito de ter voz ativa na condução de suas respectivas<br />

organizações empregadoras.<br />

Os aspectos mencionados até aqui parecem ser suficientes<br />

para caracterizar a natureza do poder burocrático<br />

nas sociedades de tipo capitalista, Chegamos,<br />

assim, ao momento crucial do argumento que estamos desenvolvendo.<br />

Com efeito, retomando o nosso ponto de partida,<br />

é hora de enfrentar a questão realmente decisiva, a<br />

qual se resume na seguinte pergunta: Não se poderia afirmar<br />

que, na era tecnológica, as condições apontadas como<br />

propicias ao florescimento do poder burocrático impulsionam,<br />

com igual força, a expansão do poder tecnocrático?<br />

De fato, muitos autores têm sustentado essa hipótese<br />

e, entre eles, destaca-se Galbraith. Se essa é a conclusão<br />

que se impõe, é evidente que nosso argumento se voltaria<br />

inteiramente contra si mesmo. Eis porque é importante, de<br />

nosso ponto de vista, tratar de demonstrar que a conclusão<br />

em apreço não dispõe de bases teóricas de sustentação.<br />

O que significa dizer que os tecnólogos também poderiam<br />

explorar, com iguais resultados, as mesmas oportunidades<br />

e recursos que facilitam a ascensão dos burocratas<br />

na estrutura de poder? Essencialmente, significa dizer<br />

que os tecnólogos só podem adquirir poder sob a condição<br />

de se converterem eles mesmos em burocratas e de se<br />

comportarem como tais. Aparentemente, poder-se-ia alegar<br />

que não há qualquer inconveniente nisso, uma vez que o<br />

poder sempre custa alguma coisa e esse é um preço igual<br />

a qualquer outro. Na realidade, como já veremos, isso<br />

não é verdade, pois o tipo de preço que se paga pelo<br />

poder não é de modo algum irrelacionado com a natureza<br />

do poder que se obtém em troca. Antes porém de discutirmos<br />

esse ponto, é necessário estabelecer com mais clareza<br />

o fato básico de que as fontes do poder burocrático,<br />

quando usadas pelos tecnólogos em seu próprio beneficio,<br />

130


ao contrário de transformá-los em tecnocratas, os reduzem<br />

a mera condição de burocratas influentes.<br />

Aos tecnólogos contratados para trabalhar em organizações<br />

modernas é confiada uma tarefa específica, qual<br />

seja, a de produzir os conhecimentos de natureza técnicocientífica<br />

que informam e fundamentam o processo decisório.<br />

Esse insumo adicional, representado pela contribuição<br />

dos tecnólogos, faz-se necessário por dois motivos.<br />

Em primeiro lugar, porque as organizações modernas, ademais<br />

de serem burocratizadas, não se estruturam em termos<br />

do postulado da ominiciência do dirigente que a teoria<br />

econômica clássica e o liberalismo em geral pressupunham.<br />

Com respeito aos dirigentes econômicos, tal postulado baseava-se<br />

na crença de que o empresário, ao decidir sobre<br />

a vida da empresa, dispunha de um conhecimento completo<br />

das alternativas existentes, assim como das conseqüências<br />

resultantes da escolha de qualquer uma delas ou de qualquer<br />

combinação entre elas. Admitia-se igualmente que<br />

esse conhecimento era continuamente renovado e atualizado<br />

ao longo do tempo de tal forma que o empresário estava<br />

sempre em condições de, por si mesmo, perceber e escolher<br />

as melhores oportunidades de ação, fossem quais fossem<br />

as transformações sofridas pelo contexto da ação.<br />

Hoje, ao contrário, assume-se que o dirigente é, por<br />

definição, limitado quanto ao conjunto de conhecimentos e<br />

informações técnicas que ele pessoalmente comanda. E<br />

assim como suas mãos se multiplicam graças à atuação<br />

dos burocratas que agem em seu nome e em seu lugar<br />

nos pontos estratégicos da organização onde foram para<br />

esse efeito colocados, assim também sua cabeça se torna<br />

mais competente e versátil graças à assessoria técnicocientífica<br />

prestada pelos tecnólogos. Para que os dirigentes<br />

interem-se a tempo do leque de alternativas tecnicamente<br />

viáveis, das cadeias de conseqüências suscitadas<br />

pelos cursos de ação adotados ou a serem adotados, assim<br />

como das futuras configurações de eventos que abrem novos<br />

horizontes para a organização, para que os dirigentes saibam,<br />

em suma, a que se ater, é necessário que sua capacidade<br />

cognitiva seja ampliada por uma equipe de especialistas<br />

por cuja conta corre a função de descobrir e propor<br />

métodos, meios, processos, produtos, alternativas, programas,<br />

objetivos e oportunidades superiores aos itens previamente<br />

conhecidos e empregados.


As organizações modernas não contratariam staffs<br />

técnico-científicos se os seus dirigentes fossem ominicientes.<br />

Como, de fato, eles não o são, esse é um dos motivos<br />

que explicam a constituição de tais staffs. O segundo motivo<br />

é o de que não teria cabimento confiar à burocracia<br />

as tarefas atribuídas ao staff técnico-científico, uma vez<br />

que, tal como os dirigentes, os burocratas também são,<br />

para esse efeito, incompetentes. Não há nada melhor do<br />

que uma burocracia quando o produto específico que se<br />

deseja obter é eficiência administrativa. Mas se o que<br />

se busca é eficiência cognitiva, é claro que a solução burocrática<br />

não responde ao problema. Por si mesma, a burocratização,<br />

por mais desenvolvida que seja, não oferece<br />

qualquer garantia quanto ao acerto das decisões. Não<br />

compete às burocracias produzir valor de verdade, nem é<br />

para tal fim que elas foram criadas. E qualquer pretensão<br />

que elas possam nutrir a esse respeito é, por definição,<br />

absurda e infundada.<br />

Nessa negação fundamenta-se toda a critica antiburocrática<br />

literária, filosófica ou sociológica, de Kafka a Marx,<br />

de Nietzsche a Weber, de Locke a Tolstoi. A burocracia<br />

existe para outros fins. Se os dirigentes fossem ominicientes,<br />

os tecnólogos poderiam ser dispensados, os burocratas<br />

não. Se não tivesse havido todo o processo de<br />

desenvolvimento técnico-científico dos últimos séculos, as<br />

organizações modernas funcionariam sem tecno-assessorias,<br />

mas não sem burocracias.<br />

Aqui chegamos a um ponto importante. Quando uma<br />

burocracia se emancipa, no sentido de adquirir uma base<br />

própria de poder, ela o faz em tomo do eixo que define<br />

a sua função especifica no seio da organização. Como<br />

acertadamente nos recorda a literatura especializada em<br />

teoria organizacional, uma coisa são as funções de linha,<br />

outra coisa são as funções de staff. O burocrata é uma<br />

criatura da linha. Tanto maior é o número de posições<br />

de linha, tanto maior é o número de burocratas. Não é<br />

por outra razão que, conforme salientamos em páginas<br />

anteriores, um dos métodos pelos quais a burocracia expande<br />

seu poder apóia-se precisamente na multiplicação, necessária<br />

ou desnecessária, das posições de linha da administração.<br />

Pois bem: e os dirigentes? Onde se encontram<br />

eles? Também na linha. Eles ocupam justamente o ápice<br />

132


da linha administrativa. Dirigentes e burocratas fazem<br />

parte da mesma dimensão do contexto organizacional. A<br />

diferença que os distingue é antes de grau do que de<br />

qualidade, fato que fica evidente quando se compara, por<br />

um lado, operários (ou qualquer outra categoria de. meros<br />

executantes), com dirigentes ou burocratas, por outro lado.<br />

Se essa análise faz sentido, dela se deduz que a natureza<br />

do poder burocrático, em todas as suas manifestações,<br />

é, de duas coisas, uma: ou poder delegado pela cúpula<br />

dirigente, ou poder surrupiado à cúpula dirigente. No<br />

primeiro caso não é autônomo, já que só pode ser usado<br />

mediante prévio consentimento e dentro dos limites tragados<br />

por condições pré-estipuladas. No segundo caso, é<br />

poder próprio, mas não por ser originalmente próprio e<br />

sim por ter sido apropriado. De forma ilegítima, inclusive,<br />

sendo o que são as regras do jogo.<br />

O decisivo, entretanto, é que, tanto num caso, quanto<br />

no outro, o poder burocrático não vem de fora da organização.<br />

Ele é sempre poder já existente dentro da organização,<br />

é o poder que a organização possui pelo fato dela<br />

ser o que é no contexto social em que se encontra instalada.<br />

Em ambos os casos, trata-se de pautas particulares de distribuição<br />

de poder dentro da organização. É em virtude<br />

de não ser externa a origem do poder burocrático que se<br />

explica o fato de não se alterarem as relações de poder<br />

no seio da sociedade (relações de poder inter-classes, intergrupos,<br />

inter-organizações) na medida em que varie, para<br />

mais ou para menos, a soma de poder apropriado que os<br />

burocratas dessa ou daquela organização logrem concentrar<br />

em suas mãos.<br />

O mesmo não se pode dizer, é claro, das relações<br />

intra-linha nas organizações em que tais variações ocorram.<br />

Tão pouco pode-se dizer o mesmo das estratégias e táticas<br />

adotadas pelas diferentes classes, grupos e organizações<br />

que passam a se defrontar com entidades dominadas por<br />

suas próprias burocracias. Do mesmo modo que as relações<br />

intra-linha, essas estratégias e táticas também tendem<br />

a se alterar em função da maior ou menor proeminência<br />

das burocracias organizacionais. Com efeito, os<br />

métodos de lidar com uma organização cujo poder encontra-se<br />

sediado na cúpula deixam de ser eficazes se o poder<br />

se desloca para o corpo burocrático e vice-versa.<br />

133


Seja como for, o importante a assinalar é que as<br />

revoluções burocráticas não passam de golpes palacianos:<br />

o grande perdedor é sempre o escalão dirigente. Suponhase,<br />

por exemplo, a famosa "revolução dos gerentes" popularizada<br />

por Burnham. Depois de completada, na maior<br />

parte dos casos, tal revolução simplesmente reconstituiu<br />

a situação-padrão da qual havia partido: uma liderança<br />

organizacional dotada de autoridade suficiente para ter a<br />

sou serviço um corpo burocrático disciplinado e diligente.<br />

A única diferença estaria em que, no vértice da pirâmide,<br />

os empresários capitalistas cederam seu lugar aos "managers".<br />

Todavia, é possível imaginar que, ao longo do processo,<br />

houve fases de transição caracterizadas pela concentração<br />

de poder nas mãos dos futuros "managers", em<br />

detrimento dos ainda empresários capitalistas. Por que<br />

motivo, entretanto, haveríamos de supor que o comportamento<br />

das organizações que passaram por essa fase tenha,<br />

por causa disso, se alterado em comparação com o que<br />

era antes ou com o que passou a ser depois? Em que<br />

sentido os atuais "managers" diferem daquilo que eram<br />

quando não passavam de "futuros managers"? Que outros<br />

interesses eles representaram, antes ou depois, senão os<br />

interesses centrais para a sobrevivência e a expansão da<br />

organização empregadora?<br />

Excetuando-se os casos em que, a partir de fora,<br />

troca-se a cabeça dirigente de uma organização por outra<br />

imbuída de propósitos contrários ao status quo ante (como,<br />

por exemplo, a tomada do poder por um partido radical<br />

de oposição), que diferenças distanciam chefes e subordinados<br />

igualmente identificados com o mesmo estabelecimento<br />

de cujo futuro todos dependem? É porque essas<br />

diferenças são mínimas e desprezíveis que tanto se tem<br />

insistido sobre o caráter epifenomênico que retira significado<br />

histórico às variações do poder burocrático na sociedade<br />

capitalista.<br />

Quando se diz, portanto, que os tecnólogos convertidos<br />

em burocratas e utilizando-se das mesmas condições que<br />

beneficiam a esses últimos, podem converter-se num grupo<br />

de poder, o fenômeno que essa hipótese descreve não pode<br />

ser consistentemente denotado pelo termo tecnocracia.<br />

Essencialmente, são as seguintes as razões de ser dessa<br />

impossibilidade.<br />

134


Em primeiro lugar, é preciso ter presente que o poder<br />

apropriado pela burocracia, justamente por ele ser da<br />

mesma natureza que o poder da chefia, é suscetível, em<br />

principio e a qualquer momento, de ser desapropriado.<br />

Como tanto o chefe quanto os subordinados encontram-se<br />

ocupando posições da mesma linha hierárquica, não se<br />

supõe que exista qualquer barreira qualitativamente intransponível<br />

capaz de colocar o chefe numa posição de dependência<br />

incondicional face ao subordinado. O poder de que<br />

o burocrata desfruta, seja ele delegado ou usurpado, é, em<br />

principio, eminentemente recuperável. Cada novo indivíduo<br />

que ingressa para uma organização burocrática não<br />

lhe aporta, em termos de poder, nada de novo (a menos,<br />

naturalmente, que se trate da infiltração de uma burocracia<br />

por parte de representantes de uma força sóciopolítica<br />

organizada extra-muros). Enquanto tal, o indivíduo<br />

que se torna burocrata não dispõe de outras bases<br />

de poder que não sejam as da própria organização em<br />

que opera. Eis porque o poder que adquire é, por um lado,<br />

indistinto dos demais poderes organizacionais c, por outro<br />

lado, por restituição ou destituição, recuperável.<br />

Não é isso, entretanto, o que caracteriza o caso dos<br />

tecnólogos. Na verdade, trata-se justo do oposto. Os<br />

tecnólogos são concebidos como um corpo estranho dentro<br />

da organização que os emprega, tão estranho quanto o<br />

são os produtores diretos numa empresa capitalista. Em<br />

primeiro lugar, porque a capacitação técnico-científica, ou<br />

seja, o fator de poder que pessoalmente controlam, não<br />

lhes foi outorgada pela organização. Ao contrário, lhes é<br />

inerente. Onde quer que estejam, dentro ou fora da organização,<br />

essa potencialidade permanece intacta. Assim<br />

sendo, cada indivíduo que se torna membro de um staff<br />

técnico-científico agrega um valor novo à organização, valor<br />

esse que não pré-existia na linha de comando administrativo<br />

e que, portanto, não podia ser dali retirado e deslocado<br />

para o staff.<br />

Da mesma forma que o capital ao comprar força de<br />

trabalho está incorporando ao processo de produção a<br />

energia física que ele próprio não possui, analogamente<br />

os tecnólogos contribuem com uma forma especifica de<br />

energia mental para a qual, nos limites do contexto organizacional,<br />

não há substituto. Um trabalhador desempre-<br />

135


gado continua sendo um trabalhador: ele pode ser expropriado<br />

do produto do seu trabalho, não da sua forca de<br />

trabalho. Com o burocrata não acontece o mesmo. Ele<br />

só se torna burocrata quando entra, pois, na realidade, não<br />

é o burocrata que faz o serviço, mas é o serviço que faz o<br />

burocrata. Como o que lhe falta é um ser próprio, que<br />

tenha substância em si mesmo, o burocrata, enquanto tal,<br />

não representa um interesse real, nem constitui, na sociedade,<br />

uma contradição verdadeira. O tecnólogo, como o<br />

trabalhador, vem de fora. Nesse sentido, sua base de<br />

poder é autônoma. Ninguém que não seja um tecnólogo<br />

pode fazer em seu lugar o que ele é capaz de fazer.<br />

Dessas considerações decorre uma conseqüência fundamental.<br />

Para que o comportamento do tecnólogo encontre-se<br />

submetido às determinações de uma vontade alheia à<br />

sua, é necessário, como condição sine qua non, um ato<br />

prévio de renúncia, ou seja, o ato pelo qual ele abdica<br />

ao exercício de seu próprio poder em seu próprio nome.<br />

Dal deriva-se uma possível definição do tecnocrata. Típicoidealmente,<br />

o tecnocrata seria o tecnólogo que se nega<br />

a renunciar à sua condição sócio-cultural e, em conseqüência,<br />

afirma a especificidade e o primado de um interesse próprio<br />

contraposto aos demais, ao mesmo tempo que luta por<br />

implantá-lo. Se consegue ou não é uma outra questão,<br />

em si mesma extrínseca à definição do termo.<br />

Pois bem. Há duas maneiras de um tecnólogo renunciar<br />

ao seu próprio poder, equivale a dizer, duas maneiras<br />

pelas quais o tecnólogo deixa de se converter num tecnocrata.<br />

A primeira envolve perda de poder ou, para ser<br />

mais preciso, entrega de poder. A segunda envolve afirmação<br />

de poder mas, helás! afirmação de um poder alheio,<br />

ou seja, não aquele mesmo poder que o tecnocrata, por<br />

ser tecnocrata, afirma. A primeira possibilidade consiste<br />

simplesmente na operação de aceitar um patrão, seja ele<br />

de que tipo for. Nesse caso, como membro de um staff<br />

técnico, por exemplo, o tecnólogo passa a receber de outrem<br />

as ordens que, no essencial, orientam sua conduta. Tendo<br />

renunciado a qualquer pretensão de auto-afirmação, não<br />

lhe cabe a designação de tecnocrata. Na verdade, ele é<br />

apenas um tecnólogo que desempenha funções de tecnoassessor.<br />

136


A segunda possibilidade implica em que o tecnólogo<br />

adquire e usa poder, mas não o poder seu, de tecnólogo,<br />

e sim o poder que os burocratas possuem enquanto burocratas.<br />

Por esse motivo, também nesse caso o tecnólogo<br />

não se converte em tecnocrata, por maior que seja a<br />

magnitude dos poderes que, por essa forma, venha a comandar.<br />

A conclusão a extrair dessas considerações é a de que<br />

qualquer das formas anteriormente mencionadas de expansão<br />

do poder burocrático, assim como quaisquer outras<br />

de que se possa cogitar, não são necessárias nem suficientes<br />

para configurar uma situação caracterizada pela<br />

emergência do poder de tipo tecnocrático.<br />

Com efeito, a ameaça representada por subordinados<br />

indisciplinados, que se valem das prerrogativas do cargo<br />

para desatender as expectativas da chefia, não constitui<br />

nenhuma novidade na história das organizações modernas.<br />

O poder burocrático não é um fenômeno novo. Essa constatação<br />

esclarece, portanto, que não é esse o referente<br />

empírico da teoria tecnocrática. A presunção de que o<br />

poder tecnocrático constitui, minimamente, um fenômeno<br />

novo é a premissa de que parte qualquer indagação a<br />

respeito do seu significado. Quem fala de tecnocracia ou<br />

está se referindo a uma possível novidade histórica ou está<br />

simplesmente tagarelando sobre um assunto inespecificado.<br />

Isso, infelizmente, é o que acontece aos autores que "descobrem"<br />

a tecnocracia nos meandros das repartições e, na<br />

falta de outro apetrecho, empunham seus tecnocratas com<br />

as armas do burocrata.<br />

É claro que existem, pelo menos como possibilidade,<br />

alianças políticas entre tecnocratas e burocratas. Isso,<br />

entretanto, não desfaz mas, ao contrário, confirma a pressuposição<br />

de que se trata de duas forças independentes<br />

que podem competir ou se aliar dependendo das circunstâncias.<br />

O tecnocrata baseia sua reivindicação de poder<br />

no tecnólogo que ele fundamentalmente é e que precisa<br />

continuar a ser para legitimar sua pretensão. Legitimamente,<br />

só da competência técnico-científica deriva-se a autoridade<br />

de que se investe. Assim sendo, ao se impor às<br />

vontades leigas com base nessa autoridade precipua, o<br />

137


tecnocrata atualiza e deflagra as potencialidades políticas<br />

inerentes ao tecnólogo. De um simples indivíduo capaz,<br />

transforma-se num senhor que manda porque capaz. Eis<br />

porque essa eventualidade apresenta-se como novidade histórica.<br />

Não se trata, para a chefia, do caso clássico do<br />

burocrata que está abusando do "seu" poder, um poder<br />

que no fundo tem sua origem e sua sede última na própria<br />

chefia. Trata-se de um tecnólogo que está exigindo voz<br />

ativa e supremacia a partir de seu próprio poder, um poder<br />

que a chefia pode utilizar se e quando de alguma forma consegue<br />

comprá-lo, mas que ela em definitivo não possui<br />

como coisa sua. A novidade consiste em que a chefia se<br />

confronta com uma forma de poder que, se lhe for recusada,<br />

é em principio irrecuperável pelo fato de ser, em sua<br />

origem, um poder socialmente constituído e não organizacionalmente<br />

conferido.<br />

Isso nos traz ao outro aspecto da questão a que acima<br />

aludimos quando nos referimos ao interesse próprio encarnado<br />

na condição social do tecnólogo. Em outras palavras,<br />

o problema das relações entre tecnocracia e burocracia<br />

revela suas verdadeiras proporções quando passamos a considerar<br />

o tecnólogo não enquanto indivíduo isolado, mas<br />

como ser social, ou seja, como produto e produtor do contingente<br />

técnico-científico o qual, por sua vez, deve sua<br />

existência e sua razão de ser ao movimento histórico da<br />

sociedade que o engendrou, movimento esse de que ele<br />

próprio participa como efeito e como causa. Para considerar<br />

essa dimensão mais fundamental do conceito de tecnocracia<br />

é necessário, portanto, desviarmos nossa atenção das<br />

organizações para a sociedade que as inclui, dos tecnólogos<br />

para o contingente técnico-científico, da consciência do<br />

cientista para a história da consciência cientifica, das entidades<br />

consumidoras para as instituições criadoras da<br />

ciência e da técnica.<br />

Essa abordagem, abstraindo as ambições e propósitos<br />

peculiares a indivíduos ou grupos particulares, identifica<br />

a origem social da tecnocracia no vinculo de mútua representação<br />

que enlaça os tecnólogos entre si constituindo-os<br />

como unidades de um mesmo subsistema social: a assim<br />

chamada ordem institucional da ciência. De fato, a idéia<br />

de um poder tecnocrático pressupõe a existência de um<br />

agregado social especifico, relativamente estruturado e au-<br />

138


tônomo, unificado em torno de um patrimônio simbólico<br />

próprio, uma herança cultural comum e um destino a ser coletivamente<br />

elaborado e compartilhado pelos seus membros.<br />

Tal organismo, em geral descrito como uma "comunidade<br />

técnico-científica", encerraria em si mesmo uma<br />

soma de interesses materiais e ideais suscetíveis de o converter<br />

num sujeito histórico genuíno, muito embora insignificante<br />

no quadro de uma sociedade dividida por contradições<br />

materiais pungentes entre classes e grupos sociais<br />

irreconciliáveis. Na verdade, chega a ser cômico, se não<br />

fosse tão significativamente humilhante para o homem<br />

civilizado, falar de um contingente técnico-científico que<br />

marcha coeso em direção à objetivação dos ideais da ciência.<br />

De fato, o que mais chama a atenção, quando se<br />

considera a referida "comunidade" em qualquer situação de<br />

conflito, é que, antes mesmo do mais mínimo embate, ela<br />

não consegue esconder, sua extraordinária fragilidade interna<br />

e sua inapelável impotência em face de condições adversas<br />

à sua auto-afirmação.<br />

Não obstante, não há de ser pelo fato de ser tênue<br />

que sua realidade deva ser negada. Ela é débil e incerta,<br />

mas não ilusória. Em princípio, a diferença específica que<br />

distingue o contingente técnico-científico das demais esferas<br />

da vida social é encontrada nas instituições, nas práticas<br />

e nos homens primariamente comprometidos com o<br />

processo de descoberta da verdade e de defesa da verdade<br />

descoberta, homens, práticas e instituições igualmente devotadas<br />

à extensão dos benefícios do conhecimento à humanidade<br />

em seu conjunto, tanto quanto empenhados na<br />

conquista das condições materiais e espirituais requeridas<br />

pelo processo de produção e aplicação do saber técnicocientífico.<br />

Muitos são os estudos que focalizam o contingente<br />

técnico-científico por esse seu lado positivo. Dando ênfase<br />

às determinações individualizadoras, tais estudos insistem<br />

na idéia de que os homens de saber devem ser visualizados<br />

em termos de uma unidade coletiva. Expressões tais como<br />

"comunidade técnico-científica" ou "sistema social de ciência"<br />

são freqüentemente usadas para sumarizar a noção<br />

de que os membros dessa espécie pertencem a um todo<br />

social inclusivo e vivem em seu próprio mundo relativamente<br />

em paz e voltados para si mesmos, um mundo até<br />

139


certo ponto indepedente e protegido por fronteiras bem delineadas<br />

no interior das quais as forças centrípetas mais do<br />

que contrabalançam os efeitos fragmentadores das forças<br />

centrifugas. Para Norman Storer, por exemplo, esse é<br />

um ponto satisfatoriamente assentado: "devemos encarar<br />

a ciência", diz ele, "como uma estrutura social — um<br />

complexo de status e posições sociais cujas relações particulares<br />

são reconhecidamente independentes de outras<br />

relações na sociedade. Devemos considerar a ciência como<br />

uma entidade auto-sustentada, um sub-sistema da sociedade".<br />

Os traços distintivos dessa comunidade são freqüentemente<br />

assinalados na literatura. Antes de mais nada, de<br />

seus membros espera-se, em contraste com os "outsiders",<br />

o leal comprometimento com os afazeres relativos à meta<br />

do avanço sistemático do conhecimento e de sua aplicação<br />

para a melhoria das condições que afetam a existência<br />

humana. Uma outra série de expectativas diz respeito<br />

ao dever de isenção subjetiva e estrito autocontrole sobre<br />

as paixões provocadas por sentimentos egocêntricos ou particularistas.<br />

A prática das disciplinas cientificas requer<br />

a universalidade tanto da percepção, quanto do trato. Tais<br />

preceitos encontrar-se-iam sistematizados em códigos de<br />

ética os quais são internalizados no curso da formação<br />

acadêmica e adjudicados pelas associações profissionais e<br />

sociedades cientificas encarregadas de zelar pela manutenção<br />

da ordem na comunidade técnico-científica. Ao<br />

mesmo tempo elas desempenhariam também a função de<br />

representar os interesses dessa ordem junto aos demais<br />

setores da sociedade.<br />

Outra característica peculiar aos indivíduos profissionalizados<br />

seria o fato de que eles se orientam por um<br />

sistema de recompensas primariamente baseado em símbolos<br />

de "work achievement", cujo significado é internamente<br />

elaborado pela comunidade profissional, não podendo,<br />

portanto, ser plenamente captado pelas pessoas que não<br />

se acham imersas na rede de interações e no sistema simbólico<br />

que individualiza essa comunidade. Em continuação,<br />

admite-se ademais que a alocação de prestigio e estima<br />

social é canalizada principalmente para indivíduos e instituições<br />

que se tornam proeminentes em função de performances<br />

que contribuíram para defender ou aperfeiçoar os<br />

140


padrões de excelência vigentes no campo cientifico, técnico<br />

ou ética Alçados a um status especial, esses feitos meritórios<br />

sintetizam a natureza do espirito cientifico e servem<br />

de papéis-modelo para os principiantes e candidatos a membro<br />

do contingente técnico-científico. Finalmente, supõe-se<br />

que a socialização profissional leva os indivíduos a manifestar,<br />

em suas relações com as entidades empregadores<br />

em particular e com as agências de controle social em<br />

geral, uma acentuada preferência pelas formas de autoridade<br />

de tipo interpares, em contraste com o padrão superordenado<br />

caracteírstico das relações de poder nos contextos<br />

burocratizados.<br />

A identificação desses e de outros traços definidores<br />

de uma subcultura relativamente autônoma tem levado<br />

muitos autores a admitir a existência de uma base social<br />

suficientemente consolidada e apta, portanto, para gerar<br />

os estímulos conduzentes à participação política com sentido<br />

coletivo. Alguns, como Geiger por exemplo, vão ao<br />

ponto de admitir que a constituição dessa coletividade, dado<br />

o alto grau de diferenciação social e integração interna<br />

que teria atingido, veio determinar uma reformulação da<br />

estrutura de classes nas sociedades industriais avançadas.<br />

Em outras palavras, o contingente técnico-científico, concebido<br />

como classe tecnológica, se situaria em contraposição<br />

às demais classes, frações e setores de classe da sociedade<br />

com as quais disputaria, em aliança com umas e conflito<br />

com outras, o privilégio de redefinir e reordenar o sistema<br />

de relações de apropriação e dominação em função de<br />

seus interesses específicos de classe.<br />

Noutro lugar retomaremos esse tópico com o propósito<br />

de mostrar que essa perspectiva de análise baseia-se numa<br />

concepção historicista e antropomorfizante da qual resulta<br />

uma compreensão superficial e equivocada da natureza das<br />

classes sociais. Aqui, contudo, interessa-nos apenas sublinhar<br />

a idéia de que não são poucos os autores que encaram<br />

o contingente técnico-científico como a "constituency" cujas<br />

necessidades e demandas orientam a conduta dos tecnólogos<br />

individuais, os quais, para não perder os seus vínculos com<br />

aquela comunidade e o status que desfrutam em seu seio,<br />

tenderiam a agir como representantes de seus interesses<br />

nas relações políticas que entretenham com as demais forcas<br />

organizadas da sociedade. O sistema social da ciência se-<br />

141


ia, assim, um todo suficientemente estruturado e dotado<br />

das demais condições necessárias para pré-determinar o<br />

comportamento dos seus membros no plano da vida política.<br />

Em face das questões que se apresentam como objeto de<br />

conflito político, ele não só seria capaz de emitir um conjunto<br />

coerente de critérios avaliativos e sinais propulsores<br />

da ação, como também estaria apetrechado com um sistema<br />

de sanções tão convincente quanto seria necessário para<br />

que sua vontade adquirisse força de lei aos olhos de seus<br />

membros.<br />

O contingente técnico-científico seria, sem dúvida, uma<br />

potência social imbatível, se essa fosse uma descrição fidedigna<br />

da realidade. Alguns laivos do que foi descrito,<br />

entretanto, ainda que episódicos e quase imperceptíveis,<br />

são de fato encontrados na realidade. Como é costume<br />

argumentar nesses casos, trata-se de uma questão de grau.<br />

Seria descabido pretender, como vem sendo feito com crescente<br />

freqüência, que os atributos sócio-culturais que fecham<br />

as fronteiras da ordem institucional da ciência representem<br />

uma proteção tão garantida e um poder de alcance à<br />

longa distância tão grande a ponto de prevenir a heteronomia<br />

política daqueles que a representam, junto aos demais<br />

interesses constituídos. Ao contrário, a hipótese<br />

oposta é que tem sido fartamente demonstrada pelo material<br />

empírico disponível. As influências provenientes do<br />

mundo exterior são suficientemente poderosas para romper<br />

as barreiras levantadas pelo estabelecimento técnicocientífico<br />

e infestá-lo de influências contraditórias que o<br />

tornam irremediavelmente fragmentado e dividido contra<br />

si mesmo, incapaz de articular num mesmo movimento de<br />

ação política as diferentes correntes de opinião que se<br />

entrechocam em seu interior.<br />

De fato, comparado com outras categorias, como os<br />

militares, os burgueses ou os operários, o tecnólogo encontra-se<br />

numa situação atípica, no sentido de que para ele<br />

as vantagens pessoais sobrecompensam as desvantagens<br />

associadas aos seus atos de traição aos interesses específicos<br />

de sua base social. Assim é por vários motivos.<br />

Em primeiro lugar porque esses mesmos interesses não<br />

estão claramente definidos, nem fortemente organizados.<br />

E não o estão porque padecem de uma debilidade congênita:<br />

na verdade, eles não passam de interesse de natureza<br />

ideal lançados num campo de batalha em quo se digladiam<br />

142


interesses de natureza material. Como diria Marx, dadas<br />

as regras do jogo não basta que a idéia clame por se<br />

tornar realidade: é necessário que a realidade exija a<br />

corporificação da idéia.<br />

Em segundo lugar, são em geral frouxos e muitas vezes<br />

esfumaçados ou mesmo inexistentes os laços de interdependência<br />

estrutural que vinculam cada tecnólogo com o<br />

conjunto de sua disciplina e sua disciplina com o conjunto<br />

do estabelecimento técnico-científico. Compare-se essa<br />

situação com as relações de solidariedade recíproca que<br />

unem o militar com sua divisão e sua divisão com o conjunto<br />

das forças armadas. Via de regra, é permitido ao<br />

tecnólogo ser mais bicho do que gente em suas relações<br />

com o ventre que o gerou: uma vez posto no mundo, o<br />

grau de irresponsabilidade com que se comporta só é comparável<br />

ao desinteresse que sua sorte inspira aos demais<br />

membros da família técnico-científica. Essa falta de interação<br />

expressa, ao nível das relações intersubjetivas, o<br />

baixo grau de imbricamento sistemático que se observa<br />

entre os elementos constitutivos do estabelecimento técnicocientífico<br />

quando o analisamos ao nível das estruturas<br />

objetivas. Praticamente não se nota aí o efeito bumerangue<br />

graças ao qual um burguês que age contra os<br />

interesses objetivos de sua classe fere em última análise<br />

a si mesmo e tão mais profundamente quanto mais profundo<br />

for o interesse de classe traído. O mesmo não acontece,<br />

senão escassamente, com o tecnólogo. Em termos objetivos,<br />

o sub-sistema em que ele está inserido é menos real<br />

do que outras totalidades. Os princípios retores que ordenam<br />

as relações de dependência entre os elementos desse<br />

sub-sistema e que determinam as suas condições de reprodução,<br />

assim como seus processos dinâmicos, aparentemente<br />

não adquiriram vigência universal e soberana dentro das<br />

fronteiras que delimitam a "comunidade". As partes que<br />

a constituem tendem antes a ser englobadas por outras<br />

totalidades mais abrangentes a cujas leis de funcionamento<br />

e desenvolvimento se subordinam.<br />

Essa é, sem dúvida, a conclusão sugerida por algumas<br />

análises de dados existentes. Generalizando a partir desse<br />

material, Bernard Barber atesta que "nas sociedades modernas<br />

parece não haver qualquer movimento, formal ou<br />

informal, de integração das profissões em um único grupo<br />

143


de poder. As diversas profissões freqüentemente competem<br />

entre si". E, o que é mais importante, "elas também<br />

diferem quanto a uma variedade de questões sociais nas<br />

quais sua própria competição não se encontra diretamente<br />

envolvida". Baseando-se em dados de outra natureza, Jean<br />

Meynaud enfatiza o mesmo ponto ao insistir em que um<br />

dos principais obstáculos enfrentados pelo movimento tecnocrático<br />

reside precisamente nas profundas divisões que se<br />

configuram entre os próprios técnicos opondo uns aos<br />

outros não só quanto aos conflitos interdisciplinares mas<br />

em termos de cisões muito mais profundas radicadas nas<br />

contradições sócio-econômicas, políticas e ideológicas que<br />

prevalecem na sociedade global.<br />

Os fatos são, sem dúvida, adversos para os ideólogos<br />

proponentes de soluções tecnocráticas. Todavia, a questão<br />

de princípio que estamos tentando discutir permanece de<br />

pé. Com efeito, por mais difícil que seja, no mundo empírico,<br />

a existência de um poder tecnocrático real, isso não<br />

nos impede de estabelecer o conteúdo típico-ideal que esse<br />

poder reveste. Mesmo que jamais os tecnólogos venham<br />

a assumir o poder em qualquer de suas formas, a condição<br />

sine qua non para que eles, enquanto tecnólogos, exerçam<br />

o poder tecnocrático, reside inevitavelmente no nexo de<br />

representatividade que vincula os tenocratas poderosos<br />

aos interesses objetivos próprios à ordem institucional<br />

técnico-científica. Sem esse nexo o fenômeno do podei<br />

tecnocrático ou não é nada, ou é de todo ininteligível. Assim<br />

como não tem qualquer sentido a concepção de um poder<br />

burguês que não seja exercido em função dos interesses<br />

objetivos da burguesia, ou de um poder militar que não<br />

se submeta aos controles impostos pela corporação militar,<br />

assim também é auto-contraditória a concepção de um<br />

poder tecnocrático que se forja e se exerce independentemente<br />

de sua base social.<br />

Os neologismos não surgem à toa, sem uma razão de ser<br />

que os explique. Esse é o caso do neologismo "tecnoburocracia"<br />

e o argumento acima fornece a razão de ser de<br />

seu aparecimento. A rigor, era realmente preciso inventar<br />

uma nova palavra para designar o tecnocrata cujo poder<br />

é no fundo meramente burocrático: de fato, tal indivíduo<br />

pode ser tudo, menos um tecnocrata. E já que ele é um<br />

ser híbrido no qual a aparência tecnocrática mal disfarça<br />

144


a essência burocrática, não poderia haver melhor achado<br />

do que chamá-lo de tecnoburocrata.<br />

Infere-se do argumento anterior que há duas maneiras<br />

distintas de se pensar o tecnoburocrata. Uma reduz-se<br />

ao simples equívoco, graças ao qual os conceitos de burocracia<br />

e tecnocracia se fundem numa massa amorfa e<br />

sem nexo. Uma ilustração dessa possibilidade é fornecida<br />

pela obra de Luiz Carlos Bresser Pereira, um autor significativamente<br />

mais preocupado com o futuro dos administradores<br />

de empresa do que com o papel histórico da<br />

comunidade técnico-científica. A outra maneira consiste em<br />

usar o termo como instrumento ético-crítico para detectar<br />

a presença do burocrata sob as vestes do tecnocrata. Esse<br />

é o significado que o termo tecnoburocracia assume na<br />

obra de Nora Mitrani, uma pioneira na pesquisa empírica<br />

do fenômeno tecnocrático. Vejamos, portanto, o que ela<br />

nos diz.<br />

Ao relatar os resultados das investigações que realizou<br />

durante a década dos 50, Nora Mitrani julgou conveniente<br />

servir-se da expressão "tecnoburocrata" para distinguir<br />

tanto os tecnólogos quanto os tecnocratas daqueles<br />

que simplesmente organizam o trabalho de equipes técnicas<br />

e controlam o produto resultante. Numa das amostras<br />

entrevistadas por Mitrani, em contraste com os tecnólogos<br />

desprovidos de ambição de poder, delineou-se entre os<br />

tecnoburocratas uma acentuada tendência no sentido de<br />

atribuir à noção de "técnico" uma acepção tão desproporcionalmente<br />

ampla que fazia desaparecer por completo<br />

qualquer distinção entre essa noção e a de "dirigente" ou<br />

"chefe burocrático". As definições oferecidas pelos entrevistados<br />

foram do seguinte teor: "o técnico é aquele que<br />

tem o espirito de síntese"; "o técnico é uma espécie de<br />

arquiteto do mundo"; "o técnico é aquele que organiza".<br />

Um dos tecnoburocratas foi mais longe que os demais,<br />

não hesitando em definir com clareza o que os outros<br />

vinham timidamente insinuando. Segundo suas próprias<br />

palavras, o técnico é o homem especializado que tem<br />

uma competência aguda sobre um problema estreito. "Eu<br />

sou levado" disse ele, "a reagir contra essa acepção demasiado<br />

restrita, pois existe também o técnico em idéias<br />

gerais. Se um grande chefe é inteligente, não é necessário<br />

que ele seja um técnico. Eu próprio não me sinto<br />

145


um técnico. O chefe de orquestra que coordena o trabalho<br />

dos técnicos não é mais um técnico ele próprio."<br />

A mesma percepção de diferença entre as funções<br />

administrativas e as de natureza técnico-científica manifestou-se<br />

no tipo de lacunas de que se queixaram os entrevistados<br />

ao criticar o conteúdo do ensino nas universidades<br />

que freqüentaram. Os tecnoburocratas acima de<br />

tudo reclamavam por não terem aprendido o suficiente<br />

sobre "a arte de comandar", "a arte de. se tornar um bom<br />

chefe", assim como por não terem sido estimulados a desenvolver<br />

"aptidões polivalentes".<br />

Em um outro estudo, a propósito do processo de constituição<br />

do Euratom, Nora Mitrani chegou a resultados<br />

plenamente consistentes com os indicados acima. Com<br />

efeito, ela verificou que, no mundo das grandes negociações<br />

tecnológicas, o indivíduo que não se encontra nas posições<br />

que possibilitam a coordenação de um "brain trust" de especialistas,<br />

"mesmo sendo um sábio de reputação mundial, é<br />

condenado a permanecer como simples subalterno, sem<br />

dúvida temido, admirado e cortejado pelos governos mas,<br />

não obstante, dirigido e comandado, até que, por fim, desacreditado,<br />

se passa a ser considerado indesejável".<br />

O modo pelo qual se desenvolveram as manobras para<br />

a criação do Euratom revelou, em toda sua nudez, o traço<br />

que distingue a figura do tecnoburocrata: "muito antes<br />

que os cientistas, os especialistas e os experts tivessem<br />

qualquer oportunidade de manifestar suas tendências tecnocráticas,<br />

eles foram suplantados e explorados pelos agrupamentos<br />

tecnoburocráticos formados por políticos, industriais<br />

e delegados sindicais".<br />

A tecnoburocracia é, assim, o oposto da tecnocracia.<br />

Como tratamos de mostrar anteriormente, o tecnocrata é<br />

o tecnólogo que foi capaz de afirmar o seu próprio poder,<br />

o poder inerente à sua capacitação técnico-científica. Quando<br />

essa auto-afirmação não é possível, só restam duas alternativas<br />

para o tecnólogo: ou se transforma num simples<br />

assessor técnico (um instrumento manejado pela burocracia),<br />

ou se converte em tecnoburocrata (um tecnólogo<br />

que comanda, não com base no seu próprio poder específico<br />

e sim por meio de instrumentos de poder tipicamente burocráticos)<br />

.<br />

146

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