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Freud hoje - Cebrap

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SUMÁRIOENTREVISTA4 RUMOS DA PSICANÁLISE,aos 150 anos do nascimentode seu criador40 O mundo nos MUNDOSDE FRANZ KAFKA43 Nova antologia visita universoimortal de PRIMO LEVIPERISCÓPIO14 MAHLER BANIDO deigrejas checas; a imortalSARAH BERNHARDT,Hugo Chávez e os judeus...OPINIÃO46 PAUL CELAN, comentadopor Hans-Georg Gadamer48 A LUCIDEZ DO ENSAIO em coletâneade Márcio Seligmann-Silva16 JOSÉ ARTHUR GIANNOTTIe os limites da tolerânciaO REPÓRTER20 UMA NOVA E TERRÍVEL FRONTEIRAentre o Irã e Israel50 Romance recriaTEMPO DE MAIMÔNIDES52 GUSTAV MAHLER, de ontem e de <strong>hoje</strong>22 DESCAMINHOS DA DEMOCRACIAno Oriente MédioENSAIOCONTO54 A HIPÉRBOLEJUDAICO-MEXICANAda escritora Margo Glantz26 Da impossibilidade de diálogo com oABSOLUTISMO ISLÂMICOPERFIL30 MAYANA ZATZ entre os limitese os horizontes da genética32 De uvas, raposas eHISTRIONISMO JUDAICOLETRAS E ARTES36 RITUAIS EM BRANCOE PRETO, por André DouekARQUIVO58 De Lucca a Foz do Iguaçu, a trajetóriade um JUSTO ENTRE AS NAÇÕESNA REDE62 O JUDAÍSMO CIBERNÉTICO,na tela do seu computadorHUMOR64 A ÉTICA DOS SAMURAIS,em versão judaicaRevista 18 1


CARTASQuero cumprimentar os organizadoresda Revista 18, da Casa de Culturade Israel, que está muitíssimo interessante.Gostei dos artigos, do nível (nemmuito superficial, como a maioria, nemmuito cabeça). Levei comigo no aviãoachando que iria dar uma olhada edeixar lá mesmo, mas, que nada! Trouxede volta. Parabéns!Adriana Jacobsberg - São Paulo, SPPassando os dias de Carnaval na casa decampo, em Teresópolis, de uma amiga, tivea oportunidade de conhecer a Revista 18.Li-a com o máximo interesse!Erika Mayer - Rio de Janeiro, RJAcabo de receber a Revista 18 nº 14.Excelente como sempre. Meus parabénspela escolha das matérias e o equilíbriodos assuntos, tornando a Revista 18 umverdadeiro must.Joseph Eskenazi Pernidji - Rio de Janeiro, RJQuanta alegria em meu coração aoreceber a Revista 18! Li as matérias ealegrou-me ver um conteúdo tão diversificadoe fundamentado em fatos históricos,sociais e culturais.Noé Darnel Lopes - Salvador, BahiaPor gentileza de amigos, tive o prazerde conhecer a Revista 18, no seu número 14.Parabéns ! Comedida a entrevista com orabino Henry Sobel. Acertada a matériade Luis Dolhnikoff. A divulgação do genocídioarmênio é importante... e assim vai ...com bastante variedade, leituras agradáveis,mais profundidade do que extensão,sem excessos publicitários, fotografiasadequadas... enfim, vale a pena !Joaquim Rohr - São Paulo, SPEm geral, eu não gosto de revistas decerta orientação segmentária – tipo femininas,juvenis, nordestinas etc. Isto incluirevistas para psicólogos, sociólogos, quetragam algo além de notícias específicas,digo, notícias sobre serviços.No começo, recebia a Revista 18como se fosse mais uma. Devagar, fuisendo seduzida pela oferta de artigosque realmente me interessam. Nãoé apenas questão de concordar oudiscordar. Os temas me interessam.Continuem, estou curtindo.Anna Verônica Mautner - São Paulo, SPGostaria de agradecer e cumprimentarpela excelente qualidade da Revista 18!Marcelo Maghidman - São Paulo, SPNossos sinceros votos de um AnoNovo com grandes realizações, e que aRevista 18, continue honrando e orgulhandoa intelectualidade judaica e brasileira,as quais vêm se banhando nos importantesartigos publicados, sem qualquercensura prévia e com os mais brilhantescolaboradores. Um grande abraço aoConselho Editorial e ao Centro da CulturaJudaica. Felicidades e sucesso!!!Rachel Green, Centro de Memória e Acervodas Oficinas Culturais da Secretaria deEstado da Cultura - São Paulo, SPSobre a Revista 18 nº 14, devo dizer quefiquei chocada com a publicação da matéria“Crônica de uma Guerra de Surdos”, deMarco Frenette, a propósito de um livroescrito há dez anos por Norman Finkelstein,em má hora publicado no Brasil, e que tratado conflito israelense-palestino. Frenettealega ter encontrado no livro “clareza eobjetividade do começo ao fim”. Israel e suahistória não podem ser divulgados pelaótica de autores que acham, a respeito deFinkelstein e de sua visão deturpada desionismo, que “é forçoso admitir queestamos diante de um autor que busca,honestamente, descortinar esta justiça”.Irene G. <strong>Freud</strong>enheim - São Paulo, SPASSINE REVISTA 18 revista18@brandmember.com.brtel (11) 3971 4372Sim, desejo receber 4 edições da Revista 18NomeEndereçoCEPBairro Cidade Estado e-mailTelefone ( ) Fax ( ) NascimentoFormas de pagamentoAnexo cheque nominal à Brand Member Marketing Direto Ltda. Valor de R$ 36,00 (assinatura nacional) / R$ 86,00 (assinatura internacional)Nº do cheque Banco AgênciaDepósito de R$ 36,00 (assinatura nacional) / R$ 86,00 (assinatura internacional) em nome de Brand Member Marketing Direto Ltdano Banco Bradesco conta nº 69798-2 agência 0200-3Enviar cópia do comprovante do depósito e a ficha preenchida por fax (11) 3971 4372, ou correio para:Av. Deputado Cantidio Sampaio, 6095 - Jardim Brasília - São Paulo - SP - CEP 02860 001DataAssinatura


SEÇÃOFoto: João CaldasParceiros e Mantenedores do Centro da Cultura JudaicaParceiros EsmeraldaBanco SafraCSN - Companhia Siderúrgica NacionalSuzano Bahia Sul Papel e CeluloseMantenedores EsmeraldaEdmundo SafdieFamília FefferParceiro RubiUnibancoParceiros PlatinaAgora Sênior CTVMBanco AlfaBanco Calyon BrasilBanco FibraCoteminasHedging-GriffoImetame MetalmecanicaInova InvestimentosJulio Simões Transportes e ServiçosKvaerner do BrasilMetso PaperPolibrasil ResinasTriton e Forum Indústria e Comércio de ModaUnicardMantenedores PlatinaIsrael VainboimJayme BobrowRoberto FederParceiros OuroAdesi Indústria e Comércio de AdesivosAtlanta Química IndustrialBooz Allen HamiltonBrascanEmbalatecFiorelli Comercial de VeículosFortes EngenhariaGuimar EngenhariaInpal S.A. Indústrias QuímicasInvensys SystemIsapa Importação e ComércioKM Indústria e Comércio de PapelMauá Investimentos Ltda.Paranasa Engenharia e ComércioPetroquímica UniãoPolitenoQuímica FinaREM Indústria e ComércioSatipel IndustrialSavyon Indústrias TêxteisSecurinvest Administradora de Recursos Ltda.Heilbut Arquitetura e Planejamento Ltda.Specialty Minerals do BrasilVoith PaperMantenedores OuroFlavio Mendes BitelmanPhilip WojdslawskiMantenedores PrataAndré KauffmannAnuar Mitri MaluliBoris TabacofCláudio HirschheimerDavid ErlichEduardo FischerFredric Michael LittoGustavo HalbreichHenri Philippe ReichstulIsrael GrytzJacques SarfattiJayme GarfinkelJosé MindlinMário Arthur AdlerMário FleckRaul MeyerRenato OchmanRuy FischerSamuel LaferSaul Olimpico LibmanWilliam Lohn


ENTREVISTAO divã, depois de um séculoe meio de <strong>Freud</strong>Arquivo pessoalFábio Landa: psicanáliselonge das camisas-deforçaque pretendemisolar, umas das outras,a psicologia, a estéticae a literaturaOpaulistano Fábio Landa, radicado há quase duasdécadas em Paris, é uma das vozes mais lúcidasdo pensamento psicanalítico contemporâneo.Médico formado pela Escola Paulista de Medicina,doutorou-se em psicanálise pela Université Paris VII econtinuou na França para dar seguimento a seusestudos. Acabou fazendo carreira em Paris: humanista àmoda francesa, que se recusa a vestir as camisas de forçaartificiais que separam, em boa parte do universo acadêmico,a psicologia da filosofia e da estética, ele é umprofundo conhecedor da tradição européia do humanismojudaico, leitor e intérprete de Canetti, Lévinas e Derrida(e tradutor destes dois últimos), e também um pensadororiginal, dono de um olhar crítico sobre a realidadecontemporânea, que sempre enxerga o homem dentro docontexto mais amplo em que vive, nunca se deixandolevar pelos modelos reducionistas que se tornaram umestereótipo de certo tipo de psicologia. Por recuperar auniversalidade do pensamento freudiano, bem como suasinterfaces com as ciências humanas de um modo geral,Landa é alguém que olha com extrema desconfiançapara a fragmentação e a especialização das ciências emnosso tempo, cujo discurso, no seu entender, aproxima-se,de maneira cada vez mais perigosa, da superstição.Hoje ele atua em Paris como clínico e docente na áreade filosofia, mas é também presença freqüente no Brasil,onde se dedica a ministrar seminários dirigidos a psicanalistase também cursos em nível de pós-graduação emfilosofia em diversas universidades (usp, Unicamp etc).Autor do livro Ensaio sobre a criação teórica empsicanálise (Editora da Unesp/Fapesp, 1999) e denumerosos artigos publicados por revistas como LesTemps Modernes (fundada por J. P. Sartre) e Le CoqHeron, Landa falou com exclusividade à Revista 18sobre sua visão do papel da psicanálise e sobre os rumosda prática psicanalítica no mundo contemporâneo.4 Revista 18


ENTREVISTARevista 18: 150 anos depois do nascimentode <strong>Freud</strong>, como o Sr. avalia aimportância de seu pensamento nomundo contemporâneo ? A validade dapsicanálise freudiana ainda se sustenta?Fábio Landa: Talvez mais do que nunca,eu diria enfaticamente: sim, 150 anosdepois do nascimento de <strong>Freud</strong>, nomundo contemporâneo, a psicanálise nãosó é válida como tem um imenso papel adesempenhar. Justificaria isso dizendoque, do meu ponto de vista, a psicanálise<strong>hoje</strong> talvez seja o último espaço laico,absolutamente laico, em que algo comoum diálogo, mesmo que seja um diálogoimpossível, como talvez seja todo diálogo,possa ter lugar. Num mundo com asdeterminantes que podemos pressentir,com espanto e perplexidade, num mundoem que se observa um ressurgimentoagressivo da atuação das "ideologias", apsicanálise torna-se mais importante doque nunca. Hannah Arendt deu umsentido agora clássico ao termo “ideologias”,destacando que estas têm apretensão de explicar tudo, pois consideramque o encadeamento dos eventosobedece à mesma “lei” que rege o encadeamentode idéias. Talvez se encontre aí aarrogância dos ideólogos que pretendemdominar tudo pelo seu pensamento,pretendendo mesmo controlar seupróprio pensamento. E <strong>hoje</strong> essas ideologiasvoltam a atuar de maneira agressivapor meio de todos os recursos queconhecemos: o apavoramento de grandesmassas humanas, os meios mais intensosde propaganda, que impõem um comportamentoextremamente primitivo calcadona violência sem limites. Aquilo queparecia ter sido solidamente conquistadonão o foi. As “ideologias” totalitárias, odiscurso totalitário com suas ramificaçõese até mesmo seus núcleos exterminadorese genocidas ressurgem. A mentiraabsoluta, de que falava Hannah Arendt,faz sua reaparição. Então, mais do nunca,a psicanálise surge como esse espaço antitotalitário.E como esse espaço de diálogo– possível e comprometido e ao mesmotempo impossível – a psicanálise torna-sealvo, um dos alvos prediletos inclusive, dodesprezo, do pouco caso, da tentativa debanimento. Este fenômeno é tambémfosse um balão de ensaio daquilo quePágina do New York Times, de 1937, com artigo sobre o criador da psicanáliseem seu 80º aniversário: psicanálise como resistência às simplificaçõesgrosseiras e ao materialismo crasso que caracterizam boa parte do século 20pode vir a ser, do aniquilamento daopinião pessoal, da realidade interna daspessoas em prol do que Primo Leviapontava como uma sociedade governadapelos privilégios obtidos pela violência emantidos pela violência. A ambiçãototalitária tende a apagar as fronteiras queconhecemos como esquerda ou direitanuma busca aflita por privilégios. HojeFotos: reproduçãoem dia, os discursos totalitários, aambição totalitária, são mais do quenunca presentes, e portanto, mais donunca, eu tenderia a afirmar a validade, aatualidade e sobretudo a necessidade dopensamento psicanalítico.18: O projeto teórico de <strong>Freud</strong> explicaa psique inconsciente como umRevista 18 5


ENTREVISTArepositório de conteúdos reprimidospor autoridades familiares e/ouculturais. A visão de inconsciente de<strong>Freud</strong> também toma como pressupostoque o irracional no homem pode serexplicado pela razão. Onde estão oslimites desse projeto de desencantamentoda psique ?FL: Talvez devêssemos discutir algunsdos pressupostos dessa pergunta antesde chegarmos ao desencantamento dapsique. O projeto teórico de <strong>Freud</strong> arespeito do inconsciente é muito maiscomplicado que um mero repositório deconteúdos reprimidos. Alguns leitorescríticos da psicanálise, como Canetti ouLévinas, apontavam justamente, na psicanálise,essa aparência de uma certa mecânicade emoções, como se eu pudesseconsertar minhas emoções. Como diziaCanetti, numa piada muito cruel, é comose eu fosse ao psicanalista com o mesmoestado de espírito com que levo aomecânico meu automóvel, como se apsicanálise se propusesse a ser umamecânica de emoções, uma arquitetura dearticulações, em que alguém pudessemexê-las, remexê-las ou normalizá-las.Mas o inconsciente freudiano não ésimples memória reprimida. É issotambém, mas não apenas. <strong>Freud</strong> nãoconcebeu o inconsciente como um merodepositório, uma espécie de quintal ondese jogam coisas que não servem ou coisasque foram maceradas ou coisas queforam relegadas para a periferia de si. Ovalor da noção de inconsciente deve-se,justamente, ao fato de se ter de considerálocomo se habitasse em mim um estrangeiroque está o tempo todo pedindo, exigindo,implorando, impondo, construindoem mim uma atitude hospitaleira, isto é,um estrangeiro que pede hospitalidade.Examinemos, por exemplo, a manifestaçãoonírica: todas as noites sonhamose o sonho aparece como a linguagem deum território estranho, numa línguaestranha, da qual não conhecemos aspalavras nem a gramática, e menos aindaa estrutura etimológica. Não conhecemosnada dessa língua, nada desse território eno entanto sabemos que há algo nosdizendo alguma coisa, alguém nos dizendoalguma coisa, e somos obrigados a fazerum esforço de tradução de um lugar paraoutro, de uma língua para outra, de umregistro afetivo a outro registro afetivo.Esse estrangeiro, que está sempre incomodando,me obriga a ter uma orelha paraescutar uma língua que eu não conheço,ele me força a criar uma língua e faz comque eu lhe dê ouvidos porque insiste emfalar comigo, insiste em obter uma respostade mim. E esse estrangeiro, esse territórioestranho, demanda de mim, inclusive,algo que eu não tenho, quer que eu lhediga “fique à vontade”, como quando aAlguns leitores críticosda psicanálise, comoCanetti ou Lévinas,apontavam justamente,na psicanálise, essaaparência de umacerta mecânica deemoções, como se eupudesse consertarminhas emoçõesgente recebe uma visita, “faça como seestivesse em casa”. Esse estrangeiro, que<strong>Freud</strong> me diz que eu acolho em mim – ounão acolho em mim – demanda a minhahospitalidade, meu esforço de tradução,meu esforço de compreensão. Às vezessuas maneiras me parecem até selvagens,me parecem pouco civilizadas, como seesse estrangeiro me falasse de algumacoisa que eu não reconheço como eu. Oestrangeiro me fala de uma civilização oude uma não-civilização, de uma anticivilizaçãoque coloca em questão amaneira pela qual eu vivo atualmente,pela qual eu disponho meu espaço, pelaqual eu disponho os meus móveis, meusinteresses. Esse estrangeiro apresenta-se,dia após dia, para me dizer que a minhamaneira civilizada não é a única maneiracivilizada, que dentro de mim existe umaoutra maneira, um outro modo de fazer,de pensar as coisas, de querer.Portanto, o inconsciente é esse repositório,mas não só. Ele é esse repositório deassuntos reprimidos (é um aspecto importantíssimo;sem dúvida, foi a primeiradefinição do inconsciente), mas o inconscientede <strong>Freud</strong> é muito mais do que isso.O inconsciente não está nos limites daconsciência, não é algo que já foiconsciente e não é mais. É algo que jamaisfoi consciente. Como se eu tivesse amemória de algo que não vi, e sobretudonão vivi. Se fosse a memória só daquiloque vivi, diria que seria um repositório.Mas é uma memória daquilo que não vivi.E como posso ter a “memória” de algo quenão vivi? Esse é o grande interesse doinconsciente, tal como <strong>Freud</strong> formulou.Quando pensamos o inconsciente comoessa “memória” daquilo que talvez eununca tenha vivido, abrimos o caminhopara uma postura analítica segundo aidéia de <strong>Freud</strong>, em que o analista fornece,não interpretações, mas construções aoseu analisando. <strong>Freud</strong> preferia a palavraconstrução à palavra interpretação. Oanalista contrói modelos, hipóteses queele submete ao seu analisando, de talmaneira que aos poucos essas construçõesdaquilo que não foi vivido, daquilo quepoderia ter sido vivido, seja o que talvezestá sendo comunicado dis após dia pelossonhos. Algo que não vivi mas tambémque não posso esquecer. Uma "memória"que se torna uma necessidade deconhecer. Preciso conhecer esse algo quehabita em mim e que vem desse territórioem mim onde se encontra uma “memória”do não-vivido, por mais estranho que issopossa parecer.18: Entretanto, a psicanálise freudianamuitas vezes é percebida como ummétodo que busca, por meio da razão,conhecer e explicar as especificidades epatologias de cada indivíduo...6 Revista 18


ENTREVISTAFL: A visão de inconsciente de <strong>Freud</strong> nãopressupõe uma explicação do irracionalpela razão já supondo que a razão vásubmeter a não-razão. <strong>Freud</strong> aponta parauma coabitação entre instâncias de naturezasdistintas em que jamais uma vaisubmeter a outra definitivamente, o queestabelece a necessidade de negociaçãoentre as instâncias. E esse é um dos grandesinteresses do ensinamento psicanalítico:em cada um de nós coabitam instânciasdistintas, que negociam perpetuamente,para desespero dos portadores das verdadese certezas únicas. Nenhuma instância emnós é capaz de ser o amo e senhor único,nem mesmo o tão decantado logos que,diga-se de passagem, pretendeu ter tomadoo poder num aparentemente bem-sucedidogolpe de Estado. A psicanálise mostrou queo rei, qualquer rei, está nu, inclusive o logos,que durante séculos animou a crença detantas mentes brilhantes, pretendendonos ensinar a nos desembaraçar de nossaspaixões. A razão deve conhecer seuslimites. A razão precisa aprender a serhumilde porque precisa negociar comoutras instâncias que funcionam deacordo com outros princípios.18: Parece-lhe que <strong>hoje</strong>, no universo dacultura e da sociedade, essses limitesda razão estão se tornando mais nítidose reconhecidos?FL: Hoje em dia assistimos ao reencantamentoda natureza, dos céus, das relaçõeshumanas – mas por meio dos demônios,dos velhos demônios conspiracionistas,“complotistas”, da tentativa de explicar omundo, novamente, pelos maus e osbons, Satã, Lúcifer, as hordas infernaiscontra as hordas celestiais. Isto é umreencantamento dos céus, da natureza,uma tentativa de dominar aquilo quenós não dominamos porque o mundo écomplexo demais para que o possamosdominar e aceitamos isso muito mal.Então, depois do desencantamento, nósvemos o reencantamento dos céus pelosextraterrestres, pelos ovnis. Nós vemos oreencantamento das relações humanaspelos complôs, pelo racismo. O reencantamento– ou o encantamento quenunca desapareceu na psicanálise – nãome parece passar por essa mágica umpouco virulenta...Sigmund <strong>Freud</strong>: o inconsciente é como a memória de algo que não foi vividoA psicanálise nos obrigaa estarmos acordados,a não podermos dormir,a estarmos insones,incomodados por aquiloque é estranho,estrangeiro, incontrolável,não-domesticável e quenos obriga a umdoloroso abandono deuma posição dedominação absoluta18: A psicanálise <strong>hoje</strong>, então,surgiria como a ciência do convívioe da conciliação?FL: Sim, ela trata da imperiosa necessidadede coabitar. Quase como se pudéssemosdizer: podemos viver juntos? Comose eu pudesse transformar essa perguntaem mim mesmo: será que eu posso viverjunto comigo? Será que os diversos "eus"podem coabitar em mim? Será que possoser um território de coabitação? Nãoestamos, aqui, muito longe da palavrapoética, uma palavra que é, ao mesmotempo, comunicativa e performativa, eque porta em si a possibilidade de atravessaras barreiras entre eu e os meusoutros, entre eu e o outro; atravessar asbarreiras míticas, todas as barreiras mistificadasque existem entre eu e os outros, eos meus outros. A palavra poética varaessa carapaça e atinge o outro, e o outrome atinge numa afetação recíproca, nosafetamos, estamos afetados, não somosRevista 18 7


ENTREVISTAOs limites da psicanálise: dominação absolutapor meio da razão é a grande quimera quesurge, na Europa, a partir do Iluminismo,e que só pode ser contida pela noção deresponsabilidade e humildadenão se deixa dominar, por esse outro que,sem ele, eu não sou eu. Nesse contexto emque a responsabilidade, lenta mas inexoravelmente,afasta a liberdade de sua posiçãomajestática, imperial, a psicanálise e a filosofiatêm de considerar a ética como filosofiaprimeira, como queria Lévinas. Nãoestamos longe do espírito freudiano. <strong>Freud</strong>dizia que o Ego, esse sacrossanto senhor, éum pequeno senhor, um ínfimo senhor,quase um não-senhor, é um anão que temque lidar, negociar com dois gigantes,aquilo que <strong>Freud</strong> chamava o Superego,muito mais do que o Ego, aquele que estáacima do Ego, e o Id. Então vemos que aquestão de negociar não é nem mesmonegociar honrosamente, pomposamente,já que se trata da negociação de um anãocom dois gigantes. Assim, homens <strong>hoje</strong>,ou mentimos, nos iludimos e permanecemosaspirando essa dominaçãosenhorial, absoluta, sobretudo por meiodo terror, ou somos obrigados humildemente,modestamente, quase submissamente,a negociar. Difícil entrada nestemilênio que se anunciava radioso e cheiode promessas de liberdade e de felicidade.Gostaria de insistir sobre a palavraterror. De tanto repeti-la, manuseá-la, acabamospor torná-la familiar, acabamospor aceitá-la e por aceitá-la como algomais de nosso ambiente com o qualdevemos nos acomodar. Talvez, se o intelectual,aquele que tem como profissãoestar alerta, se deixa adormecer, ele traisua tarefa social de barreira, de alarme deparalisia do pensamento de todos. O intelectualtraidor torna-se traidor de todos edo pensamento. O homem aterrorizado jáé vítima e vítima humilhada e ofendidana sua inteligência, presa fácil de tornarseapenas mais um na massa. Talvezdevêssemos, com Karl Kraus, jamais cedere abrir a brecha por onde passam aspalavras que vão constuir Auschwitz.A psicanálise não é odomínio da razão, mas éaceitação do conflito.Conflito que nãonecessariamente temque ser uma rupturaou uma guerra. Mas umconflito, um conflitode interesses, que temde ser negociado semque nenhum dosparceiros possa imporsobre o outro suaspróprias condições18: A psicanálise surgiu como umaferramenta para a cura de doençaspsíquicas ou mentais. Ela também écapaz de proporcionar a felicidade e arealização do ser humano?FL: Gostaria de retomar o comentário dealguns leitores críticos da psicanálise quemencionei anteriormente: se fosse ao psicanalistacomo se estivesse levando meuautomóvel ao mecânico, efetivamente apsicanálise, então, como ferramenta, nãoteria nenhum interesse. Mas creio que ovalor da psicanálise é que começou a seinteressar pelas doenças, como na formulaçãoda pergunta, psíquicas ou mentais, emuito rapidamente deixou-se convencerpela evidência de que as doenças psíquicasou mentais não são apanágio de alguns, os“doentes”, mas são propriedade de todos.Todos nós passamos por lá. Todos nós,sem muito caricaturar, passamos porexperiências das quais pensávamos muitoorgulhosamente, até algumas décadasatrás, estar resguardados. Nenhum de nóspode dizer que está do lado certo dafronteira entre os sadios e os doentes,porque estes limites, que nos pareciamtão evidentes, claros, intransponíveis quepraticamente não teríamos com que nospreocupar, na realidade não são claros.Enfim, a psicanálise teve o mérito deabandonar muito rapidamente estasituação confortável que colocava os“doentes” de um lado e os “médicos” e os“sadios” de outro. Os psicanalistas reconheceramo interesse de buscar na literaturaou então nos casos ditos raros oubizarros, alimento, fonte de aprendizado.Essa barreira julgada clara, determinada,entre saúde mental e doença mental, podeser transposta com certa facilidade.Nesses termos, é muito difícil falarmos defelicidade, realização, quando reconhecemosa proximidade com o sofrimento, odrama e a tragédia. Felicidade, realização,são termos muito vagos para a psicanálise.Observamos, <strong>hoje</strong> ainda, disciplinasque tentam mostrar efetivamenteque podemos nutrir as ilusões de quevamos dominar tudo. Cremos ou estamosdispostos a acreditar que somos científicos,que vamos resolver as coisas pelaciência, pelos comprimidos, pela mudançados comportamentos. E vamos ser felizes.É interessante constatar como o pensamentocientífico, dito científico, está tãoperto do pensamento mágico, do pensamentoreligioso, nessa ilusão de acreditarna salvação, redenção, felicidade, o equilíbrioe todas essas coisas que, se olharmoscom olhos um pouco menos hipnotizados,não existem.18: E em que medida pode a psicanálisealiviar os sofrimentos que são intrínsecosà condição humana?FL: A psicanálise, dizia na resposta à10 Revista 18


ENTREVISTAprimeira pergunta, é um espaço leigo. Elanão promete a redenção ou então arecompensa, antes ou depois da morte,como no campo religioso, onde muitasvezes se afirma que se a felicidade não estáaqui, ela está um pouco mais adiante. Se arecompensa não está aqui, não temproblema, ela está um pouco maisadiante, para além da vida, da morte. Paraa psicanálise, do ponto de vista da negociação,a questão da felicidade e da realizaçãosurge como um problema insolúvelou apenas temporariamente solucionável.Saímos de uma ilusão de libertaçãopara um peso da responsabilidade, saímosde uma ilusão de tudo podermos parauma necessidade de negociar pacientemente.De tal maneira que a psicanálise,primeiro, não é uma ferramenta, segundo,pode até ser uma terapia, e pode até ajudarum pouco, mas absolutamente nãopromete a felicidade, muito menos ailuminação, menos ainda a realizaçãohumana. Mas ela promete algo muitodifícil de aceitarmos como promessa: umcaminhar lento, aflito, de negociação comos outros de mim, de dentro e de fora demim e que muda completamente oregistro da questão da realização ou dafelicidade para o registro da negociaçãodo conflito e para o registro da humildade,da modéstia. Sofremos, de nossaspróprias pulsões, a pressão de termos decrescer e crescer é um trabalho denomeação, de encontrarmos as palavras ea maneira de dizer, portanto também deaprendizado (no sentido forte do termo,aprender com a experiência). Antedoutrinas que prometem as maravilhasdo além, como se a morte fosse algo nemtão grave assim, e ante os livros e osdiscursos que nos prometem que, fazendoisso e aquilo vai dar tudo certo, o psicanalistasó pode oferecer um olho sorridentee outro lacrimoso.18: Libertar o ser humano de seus condicionamentose neuroses pressupõe aexistência de um Eu verdadeiro que seencontra aprisionado. A noção de que oindivíduo nasce como uma tábula rasae que ele é o fruto de suas expériênciase traumas da infância, é compatívelcom a idéia de um Eu verdadeiro quebusca realizar-se num mundo real ?Nesse contexto em que aresponsabilidade, lentamas inexoravelmente,afasta a liberdade de suaposição majestática,imperial, a psicanálise ea filosofia têm deconsiderar a ética comofilosofia primeira, comoqueria LévinasO psicanalista e seu cão da raça chow-chow: conscientizar o indivíduoda multiplicidade de aspectos da personalidade é maneira deenfrentar o reducionismo racionalista e utilitarista que ameaça, cadavez mais, transformar seres humanos e cidadãos em autômatosFL: No campo da psicanálise, estamosmuito longe de pensar que uma criança éalgo que nasce em branco. A criança, opequeno homem, o homem que nasce, jánasce imerso numa tal complexidade, jánasce sendo de uma tal maneiracomplexo, que a última coisa que a gentepoderia pensar, para sermos rigorosamentepsicanalistas, é que o homemnasce como uma tábula rasa. Poderíamoslembrar uma passagem de Kafka que podenos servir. Kafka, quando estava elaborandoA muralha da China, escreveu noseu diário um pequeno conto: construir asi mesmo é como construir uma casa.Construir a si mesmo é como construiruma casa, em que começamos adesmontar a casa velha, construindo acasa nova. Terminamos por constatar quenão só não temos mais a casa velha comoainda não temos a casa nova. Enquanto acasa velha já não tem mais teto, a nova sótem uns pilares. Mudamos de uma casaque não serve mais para uma casa queainda não nos serve, de uma casa que jánão nos abriga para uma casa que aindanão pode nos abrigar. O Eu verdadeiro, seé que existe algo como Eu e comoverdadeiro, é um Eu nu, vulnerável, embusca de certo conforto ou proteção, umEu fraco, frágil, laborioso, mas tambémpreguiçoso. Então, se existe um verdadeiroEu, é quase como se fosse um Eu empermanente exílio, um Eu que, se quiserpossuir alguma coisa, possui muitopouco, e tem uma posse que não lhe serveRevista 18 11


ENTREVISTApara quase nada. Uma condição dehabitação muito precária, quase comoalguém que tem que prestar contas aoproprietário da casa ou do terreno. Quasealguém que tem sempre que estarpedindo empréstimo e financiando o tetoou a porta, sabendo que mesmo assim nãovai conseguir construir uma fortaleza,não vai conseguir ficar sossegado. Estácondenado a ser frágil. A condição defragilidade talvez seja a condição maiscomplexa que possamos atribuir àcriança. Todos nós começamos nacondição complexa de dependência. Senão fosse o outro para cuidar de mim, eu,pequeno homem que acabou de nascer,não teria chance nenhuma.18: E o que é para <strong>Freud</strong> o mundo real ?A realidade palpável e concreta, osreflexos dessa realidade na psiquehumana ou os poderes psíquicos quecada indivíduo traz consigo?FL: Talvez puséssemos dizer que a psicanálisetrouxe algumas poucas contribuições,mas essas poucas contribuiçõessão suficientes para que a psicanálisetenha um lugar respeitável na história dohomem. Uma dessas contribuições é que<strong>Freud</strong> nos mostrou que a realidadetambém não é uma, a realidade é duas,pelo menos; que temos uma realidadeinterna e uma realidade externa e queessas duas realidades são tão reais umaquanto a outra. Vivo, não uma realidade,mas o encontro ou o choque ou o conflitoentre duas realidades, que são irredutíveisuma à outra: a realidade interna e a realidadeexterna. Minha realidade internaconstrói o mundo da mesma maneira queo mundo me constrói. Essas duas realidadesestão, permanentemente, numcomércio muito denso e talvez pudéssemosnos aproximar do que diziam ossurrealistas: a convergência virtual entreduas realidades é a aspiração do homem.18: Como se explica, à luz da teoriafreudiana, o paradoxo que se observano assim chamado “mundo desenvolvido”,onde segurança material pareceter como contrapartida, não um graucrescente de felicidade, mas problemascada vez mais graves de consumo dedrogas, explosões de violência e insatisfaçãocom a vida? <strong>Freud</strong> previa estesrumos para a civilização ocidental?FL: <strong>Freud</strong>, como profeta, não merece umaatenção particular; chegou a supor onazismo como uma febre passageira.Porém, deixou um legado considerável aoprevenir que a psicanálise não poderia teruma “visão de mundo”: um analista analisa.Nesses grandes eventos mencionadosna questão – o consumo de drogas, asexplosões de violência, a insatisfação coma vida, talvez pudéssemos pressentir umatentativa mágica e imediata de buscaralgo como uma felicidade prometida ouÉ interessante constatarcomo o pensamentocientífico, dito científico,está tão perto dopensamento mágico,do pensamento religioso,nessa ilusão de acreditarna salvação, redenção,felicidade, o equilíbrioe todas essas coisasque, se olharmoscom olhos um poucomenos hipnotizados,não existementão uma satisfação prometida. E aconstatação de que essa felicidade, essasatisfação é uma promessa, e como todapromessa, uma dívida que não se paga. Oconsumo de drogas ou as explosões deviolência têm, evidentemente, umamultiplicidade de fatores implicados, mastalvez também tenham a ver a com o fatode que a promessa do desenvolvimentocientífico não trouxe consigo a contrapartidaque esperávamos. Nada parecepoupar, abreviar ou aliviar a tarefa decada um na construção de si mesmo. Essatarefa, a construção de si mesmo, <strong>hoje</strong>parece em grande dificuldade. Ressurgemas ideologias totalitárias, com seusgrandes mestres, suas ordens simples eperemptórias, sua massa de seguidores,mais ou menos vítimas, mais ou menoscriminosos. Os discursos simplificadores,o ódio pela cultura e pela inteligência, asexplicações conspiracionistas e diabólicasda história, infelizmente, estão outra vezem alta.18: O pensamento freudiano estácalcado sobre um rompimento radicalcom o legado espiritual e religioso dojudaísmo, mas ao mesmo tempo <strong>Freud</strong>via-se, sempre, como judeu. De quemaneira o pensamento de <strong>Freud</strong> estáimpregnado pela tradição judaica?FL: Teríamos que ser muito cautelosospara dizermos que o pensamentofreudiano é um rompimento radical. Sim,é um rompimento radical com o legadoespiritual e religioso de um certojudaísmo e de uma certa maneira deabordar o judaísmo. Numa troca decorrespondência entre <strong>Freud</strong> e Abraham,verificamos algo significativo: os doisinterlocutores diziam, um para o outro,que “talvez nós tenhamos abandonado oestudo do Talmude, mas o Talmude nãonos abandonou”. Poderia ser uma anedota,mas nem tanto porque, com umcerto judaísmo, sim, a ruptura de <strong>Freud</strong> éradical, mas com outro judaísmo seriamais difícil afirmar isto. Porque é umavasta pergunta, essa. Alguns grandestrabalhos a respeito da relação de <strong>Freud</strong>com o judaísmo mostram que se trata deuma relação extremamente complicada,conflituosa, já começando pela históriapessoal de <strong>Freud</strong>, de <strong>Freud</strong> com seu pai.Há um célebre episódio em que o pai de<strong>Freud</strong> conta a <strong>Freud</strong> que ele estavaandando na calçada quando um antisemitapassa por ele e joga o chapéu delena rua e diz : “Vai pegar, judeu!” E <strong>Freud</strong>pergunta ao pai: “E o que você fez, pai?”. Eo pai responde: “Eu desci da calçada e fuipegar o chapéu”. Seria oportuno avançaraqui, sem desenvolver a hipótese de que ointerlocutor irredutível de <strong>Freud</strong> e dapsicanálise é a figura do anti-semita?Talvez aí sim valesse a pena uma tentativade resposta, evidentemente sujeitapolêmica e a grandes divergências. <strong>Freud</strong>12 Revista 18


PERISCÓPIOFotos: reproduçãoBem junto ao Ninho da ÁguiaO Intercontinental Berchtesgaden,luxuoso resort situado nas belasmontanhas de Obersalzberg, nalocalidade de Berchtesgaden, Alemanha,completa um ano defuncionamento em março de 2006.O hotel é dotado de 138 quartos,três restaurantes, piscinas (interna eexterna), área de conferência, salãode beleza, campo de golfe, spa e uma belíssima vista para as montanhas.São instalações com padrão cinco estrelas voltadas para hóspedesexigentes. O resort aceita a presença de animais de estimação em suasdependências. Um detalhe apenas o transformou em alvo de espanto dacomunidade internacional: Berchtesgaden era o lugar de repouso de AdolfHitler, onde ele residiu por longas temporadas e planejou muitas ações da2 a Guerra Mundial. Ali tinha sua residência para férias e fins de semana,chamada O Ninho da Águia, à qual foram acrescentados, em 1943, umafortaleza e um bunker. O Intercontinental foi construído no lugar de umantigo albergue para membros do partido nazista, próximo ao Ninho.“Louvai ao Senhor”O bispo da cidade tcheca de Brno determinou que asobras do compositor Gustav Mahler (1860 - 1911)não apresentam, em seu conjunto, louvores a Deusem quantidade suficiente. Por isto, os concertosdedicados à obra de Mahler, que desde o ano 2000eram executados na catedral de Jihlava, foramproibidos pelo bispo, que apresentou como justificativaum decreto papal de 1987, que determinaque “só músicas que contenham louvores a Deuspodem ser apresentadas em igrejas”. O ConselhoMunicipal de Jihlava reagiu com espanto à ordemdo bispo. Mahler passou nesta cidade seusprimeiros 15 anos de vida, e é conhecido como umfilho desta localidade na Moravia.E agora, Hamas?Enquanto não se definem os rumos do novo governo israelense, Hamas parece hesitar entre o desejo de diálogo com a UniãoEuropéia e os Estados Unidos e o caminho de violência que vem seguindo até agora. Por Nahum SirotskyJericó fica na Cisjordânia, nas proximidades do rio Jordão.Tem uns 20 mil habitantes. E disputa com Damasco, capitalda Síria, o título de mais antigo centro urbano habitado nessaparte do mundo onde surgiu o monoteísmo. Segundo a Bíblia,Jericó foi a porta de entrada das terras prometidas aos hebreus,que vinham de 40 anos de andanças pelo deserto do Sinai. Tudoisto há muitos milhares de anos.Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, os israelenses conquistarama cidade, e em 2005 entregaram-na à Autoridade Palestina,então presidida por Yasser Arafat, como parte de umprocesso que, imaginava-se, levaria a um Estado palestino independente.Mas a chamada Intifada de Al Aksa, revolta palestina,interrompeu a marcha. Foram meses de choques. Depois, veio amorte de Arafat, e a queda de Sharon, em Israel.Eleições gerais na zona da Autoridade Palestina transferiramo poder para um Conselho Legislativo (Parlamento), com aimprevisível maioria absoluta do Hamas, grupo que prometegovernar com honestidade, implantar um Estado teocrático. Enão reconhecer o direito de Israel existir.Eleições gerais em Israel foram marcadas para o fim do mêscorrente. E devem decidir quem será o chefe de Governo, nolugar de Sharon, que foi substituído por um interino. No dia 14de março, Israel invadiu Jericó, para capturar um grupo depalestinos que estavam confinados num presídio palestino.Entre eles incluíam-se indivíduos apontados como autores doassassinato do então ministro do Turismo, general RehavamZeevi, um dos grandes heróis militares do país. Os criminososhaviam sido entregues à Autoridade Palestina com o compromisso,garantido pelos Estados Unidos e Inglaterra, de seremmantidos em detenção. Um deles era o líder de Frente Palestina,em discordância com o processo de paz. Circulou a notícia deque ele seria solto pelo Hamas. Israel agiu para impedir que14 Revista 18


PERISCÓPIOMiss também é culturaMais de 300.000 telespectadoresfranceses elegeramAlexandra Rosenfeld, de 19anos, como a mulher maisbonita da França, e ela recebeuo título de Miss França 2006. Anova rainha da beleza, que sediz leitora e admiradora doescritor italiano Primo Levi,representou, no concurso nacional, a região doLanguedoc, e representará o país no próximoconcurso internacional de Miss Universo.Sarah, a DivinaA grande atriz francesa SarahBernhardt (1844-1923) é o temade uma exposição atualmenteem cartaz no Jewish Museumde Nova York. Esta artista legendária,que é também descrita naobra-prima de Marcel ProustEm busca do tempo perdido, erafilha ilegítima de uma cortesãjudia holandesa, chamadaJudith van Hard. Embora fossebatizada, Sarah Bernhardt foialvo de anti-semitismo, principalmenteno início de suacarreira, e ridicularizada pelaimprensa da época por causa desua “aparência judia”.Contra e a favorO New York Times de 3 de fevereiro citou palavras do secretário de Defesa dos Estados Unidos Donald Rumsfield, quecomparam o presidente da Venezuela Hugo Chávez a Adolf Hitler. A comparação de Rumsfield desencadeou umasérie de protestos, inclusive dentro da comunidade judaica norte-americana. Recentemente, Chávez fez um pronunciamentoque poderia ser interpretado como sinal de anti-semitismo, porém, pouco depois, encontrou-se, de maneirarespeitosa, com membros destacados da comunidade judaica venezuelana. O gesto de Chávez, de enviar óleo combustívelpara aquecimento doméstico a preços subsidiados para a população pobre dos Estados Unidos, tem sido aplaudidopor muitos rabinos norte-americanos, indignados com o corte de subsídios por parte da administração Bush.fossem liberados. Foi uma batalha de cerca de dez horas entreforças de Israel e um grupo de detentos, que prometiam resistiraté a morte. Preferiram a vida. E se entregaram.Em Israel se discute, desde então, se a operação foijustificada pela possibilidade de solturade líderes perigosos ou se houveintenção eleitoral do atual chefe degoverno interino e candidato naseleições que se aproximam. Ninguém,porém, discute a periculosidade doselementos detidos.Nesta região do mundo, em quenasceu a tradição do olho por olho,parece que nada pode ficar sem umaresposta, que tanto pode ser olho porolho quanto uma compensação adequada.A questão agora é saber comoreagirão as organizações palestinascomo o Hamas, que assumiu a responsabilidade por inúmerosataques a Israel pelos chamados homens-bomba, os suicidas,arma que agora tanto se utiliza no Iraque.Como se verificou no caso dasreações às caricaturas deMaomé, o que acontece naregião tende a ser contagiante.E perigosoVirá a vingança com a volta a ataques suicidas a Israel? Ouos novos líderes palestinos optarão por compensação compatívelcom seus objetivos maiores? Europa e Estados Unidos senegam a conversar com o Hamas enquanto o grupo islâmicopalestino persistir em sua linha de serecusar a aceitar a existência de Israel ese reservar o direito de continuar comomovimento de libertação nacional, ouseja, de manter um estado de guerra. Masimagina-se que talvez o Hamas prefiradialogar com os europeus e americanos,adquirindo, desta forma, legitimidadeinternacional, e reagindo com palavrasno lugar de bombas. Como se verificouno caso das reações às caricaturas deMaomé, o que acontece na região tendea ser contagiante. E perigoso. Nahum Sirotsky, jornalista, é correspondente da RBS e do IG emIsrael. Ex-diretor de Visão, Manchete, Diário da Noite do Rio, foi ocriador da revista SenhorRevista 18 15


OPINIÃOReproduçãoTolerância máximaJosé Arthur Giannotti refletesobre os limites do conceito detolerância religiosa no mundocontemporâneo e vê uma políticaestritamente laica como únicamaneira de garantir o convívioentre diferentes grupos de féOconceito de tolerância é multívoco,pois denota o aceitar, ocondescender, assim como osuportar. Aceitar pode valer entre iguais,mas condescender e suportar implicamrelações de desigualdade entre osagentes. Daí a necessidade de distinguirvários planos em que a tolerância vem aser exercida. Já que não posso me aventurarpor esses caminhos tortuosos, souobrigado a escolher um deles, e tento omais abrangente de todos, a tolerânciareligiosa, que afeta a totalidade de nossaexistência, do nascimento à morte.Abarca até mesmo o universo dos nãocrentes, pois uns e outros convivem nomesmo espaço coletivo. Mas de queforma? A incredulidade não tende a sedar como infidelidade?16 Revista 18


OPINIÃOVale lembrar que, na metade do século 19, particularmenteos comunistas acreditaram que o problema perderarelevância. A questão teórica da religião teria sido resolvida,de sorte que o progresso e a Revolução terminariampor dissolver esse ópio do povo. Enquanto isso, o Estado seencarregaria de uma repressão educativa. Nem todos,porém, foram tão radicais; os primeiros sociólogos – MaxWeber é um deles – diagnosticaram um progressivo desencantamentodo mundo à medida que a ciência e a razãotécnica estariam modificando as mentes e solapandocondutas de cunho religioso. No entanto, foi basicamenteo inverso que aconteceu.Muitas vezes se ouve dizer que cada religião tem suaprópria experiência do divino, como se elas apresentassemaspectos diferentes de um mesmo conteúdo. A multiplicaçãodos encontros e cultos ecumênicos não o comprova?Mas sem a idéia de Espírito Absoluto, queganha esse caráter precisamente porqueincorpora todas as representações religiosas,cada uma como um todo visto de certoângulo, fica difícil pensar o que esseconteúdo possa ser. Talvez o místico, isto é, A destruição é sempreum conteúdo sem qualquer modalização.Mas deixemos de lado essas firulas metafísicaspara nos perguntar como ficam as sorte que a política e asde alguns inimigos, depráticas religiosas diante do caráter profundamenteirreconciliável de seus princípios. operações de seuNão vejo como cada religião possa abrir aniquilamento aindamão de sua verdade. Sabe-se que as ciênciascontemporâneas deixaram de se tomar devem criar ascomo procura DA verdade, pois nelas há circunstâncias para queuma determinação recíproca entre discursose tecnologias, o que faz delas uma alternânciade perspectivas e uma procura sem também possam viros restantes um diafim. Mas o discurso religioso se arma emconfronto com o espírito científico. Isso não a ser amigossignifica que a fé seja irracional, mas elalabora com seu próprio Absoluto, que tendea se fazer prática particular – inquestionávele intolerante. O protestante não podeaceitar, como o católico, a transformação daeucaristia em corpo de Jesus; o judeu não pode aceitar atese do Apóstolo Paulo, segundo a qual a circuncisãoespiritual equivaleria à circuncisão física; o muçulmanonão pode aceitar os mistérios da Trindade, pois afirma ereafirma a unicidade de Deus, sendo Maomé o seu profeta eassim por diante. Desse ângulo, os princípios de umareligião não toleram os outros. Os sacerdotes e os teólogospodem dialogar, reunir-se em concílios, comparar seuspontos de vista, admirar o refinamento das teses, mas cadacrente não duvidará de que está de posse de sua verdade, anão ser que já tenha sido mordido pela cobra da indiferença.É interessante observar que, nos relatos dosencontros ecumênicos, quase sempre um congressista sedistrai e não perde a vez de confirmar o caráter verdadeirode sua religião.Cultos ecumênicos juntam, num mesmo espaço,práticas diferentes em vista de um objetivo comum, mascada indivíduo mantém sua identidade na medida em queconserva intacto o cerne do ritual que pratica. Mesmo osincretismo, ao articular, num todo, fragmentos de religiõesdiversas, continua preservando a unidade do culto:um católico, adepto do candomblé, não aceitaria comungarnum terreiro.Cada crente pode orar sozinho, mas somente pratica umculto ecumênico se comungar com práticas cujo sentido,no fundo, ele rejeita. Além do mais, quase sempre a reuniãode indivíduos de crenças diferentes em vista de um objetivocomum – homenagear um morto, por exemplo – se fazgraças ao trabalho de intermediários institucionalizados,como o padre, o rabino, o bispo evangélico, que suspendemsuas diferenças para compor uma cerimônia coletiva. Cadaum está interessado em praticar suascrenças e vigiar as transgressões a seusprincípios, mas se participa de uma cerimôniaecumênica é porque assim acreditaestar fortalecendo sua Igreja e seassocia com outras na medida em quecalcula os ganhos da ação coletiva. Qual éo sentido, porém, desse coletivo? Não é oculto do morto, que poderia ser feito emcada Igreja, mas a intenção de reunir fiéis,independentemente de suas crenças, paraque mostrem que, ao menos em vista domorto, podem estar juntos em vida. Asdiferenças de políticas religiosas setravam assim por intenções e práticas deconsenso, propriamente políticas, queavaliam a aliança com os outros tantoquanto a aliança com Deus.No entanto, essa relativa autonomia édifícil de ser praticada. O adepto de umareligião se liga tanto a Deus como aosfiéis da mesma crença e seguem asmesmas regras como membros de umaIgreja, de uma seita, de uma ordem eassim por diante. Ora, desse ponto devista prático, os próprios princípios religiosos passam,então, a ser iluminados sob o aspecto da prática políticoreligiosa;num mesmo texto, ordens diferentes ressaltamaqueles aspectos que legitimam seu próprio apostolado. Atéque ponto essa coexistência não degenera em conflito? Emparticular, os mesmos princípios cristãos serviram para quecatólicos, donatistas, maniqueístas, pelagianos se engalfinhassematé à morte, mas quando se estudam esses movimentosdo início do cristianismo fica evidente que a questãobásica era como se apropriar dos restos do Império Romano.Creio ser difícil uma disputa sobre princípios religiososdegenerar num conflito prático, a não ser que os agentes sepercebam ameaçados em suas próprias identidades sociais.O céu pode comportar um diálogo infinito sobre diferençasde fé, mas no nível da prática de cada religião, a tendência éRevista 18 17


OPINIÃOo cerco dos fiéis pelas Igrejas. Na verdade, cada uma a seumodo: uma religião da salvação quer salvar os outros, umareligião da transcendência almeja tornar conhecido ocaminho da ascese e assim por diante; mas, desse modo,cada uma está preparada para exercer um tipo de violência.No entanto, mesmo no conflito, desde que este não degenerenuma matança generalizada, sempre se vislumbra umterreno coletivo onde as diferenças religiosas deixam de serpertinentes, onde outras diferenças se manifestam, poissomente assim a luta de um com o outro não termina eliminandoo outro e o próprio conflito.A associação de crentes numa comunidade requer, pois,mais do que a convergência de opiniões. Uns se re-ligampelo sangue, pela aliança firmada, pela tradição; outros, pelaentrega aos mesmos mistérios, prontos a irem além delesmesmos e assim por diante. Mas convém salientar quequalquer conflito entre eles incorpora umadimensão prática impossível de ser resolvidano plano da fé e até mesmo das instituiçõesreligiosas. Estas, por sua próprianatureza, quando combatem o cismático,quando lutam contra uma ameaça que vemde dentro, terminam recorrendo à força,colocando-o fora do campo religioso. Assimabandonam um projeto de paz e tendem afazer do outro o infiel que deve ser morto.Enquanto o conflito tiver esse caráter,enquanto o outro for o absoluto, não háconciliação e paz possíveis, o que faz daguerra de religião um processo sem fim.Lembremos que, no Ocidente, até oséculo 16, era impossível alguém se aceitarcomo incrédulo, descrente, de sorte que asdiferenças religiosas sempre foram pertinentes.Somente a repressão de uma Igrejaforte poderia assegurar uma paz relativa,não havendo pois espaço para o pensamentode uma política estritamente laica.O Ocidente pagou um preço alto paracompreender que somente uma política laicaem estrito senso vem a ser capaz de limitaros exageros das políticas religiosas. Isso ocorreu, sobretudo,durante as guerras religiosas do século 16. Exemplificando:o católico Carlos V, obcecado pelo projeto de unificar oSanto Império Romano sob a mesma crença, só vence ospríncipes alemães protestantes depois de se comprometer aassinar o Tratado de Paz de Augsburgo (1555), segundo oqual cada príncipe poderia determinar a sua religião comoaquela de seu povo. Obviamente, esse compromisso sópoderia ser passageiro por causa da disputa entre as velhase as novas elites que modificavam o perfil da Europa. Aguerra continua, mas os massacres chegaram a limites detal forma intoleráveis – em Paris, na noite de SãoBartolomeu (agosto de 1572), foram mortos por volta de3.000 protestantes – que passaram a ameaçar a própria existênciade cada grupo. Fica então evidente a necessidade deEnquanto o conflito tiveresse caráter, enquanto ooutro for o absoluto, nãohá conciliação e pazpossíveis, o que faz daguerra de religiões umprocesso sem fimum pacto social além dos conflitos religiosos. É significativoque nesta época se passa a pensar o Estado comocontrato, sendo Thomas Hobbes um dos formuladores maisrefinados desta teoria. No plano da prática e no plano teórico,frente à ameaça de desastre total, inventa-se umcontrato exclusivamente político que leva ao Estado absolutista.O Absoluto da religião dá lugar a outro Absoluto.Vale a pena ainda lembrar o oportunismo exemplar deHenrique IV. Sendo um dos chefes do partido calvinista,consegue salvar-se do massacre pagando o preço da abjuração,vence seus inimigos, sagra-se em Chartres e entratriunfante em Paris – mas a cidade não vale uma missa?Mais tarde, lá está ele se aliando aos príncipes protestantesalemães. Dessas idas e vindas, porém, resulta o Édito deNantes, garantindo a liberdade de consciência para todos.Cada um se obriga a respeitar a religião do outro, desde quevenha a ser intolerante em relação aosinimigos do Estado. Mas agora a crençapode virar arma política.Lembrei esses episódios para salientarque a prática de uma política que se querapenas política nos custou um longo edoloroso aprendizado. E agora, quando denovo a política se entrelaça com políticasreligiosas, acredito ser necessário repensartoda essa experiência. Em particular, nademocracia, quando os cidadãos devemser tratados como iguais perante a lei, atolerância prática passa a ter, como umade suas condições de possibilidade, aidentificação de cada um como sujeito dedireitos. Até há poucas décadas, no Ocidenteisto se deu reconhecendo-se essesujeito como cidadão partícipe de umEstado. No entanto, não foi por isso que oséculo 20 foi um século de paz e de tolerância.Mas esse dilaceramento, essasguerras totais também não se sedimentaramem experiências que podemorientar o pensamento do futuro?Parece-me evidente que a políticaarma um espaço de decisões coletivas na base de pactosque somente se repõem no jogo de aliados e adversários.Parece-me ingênuo pressupor que a luta política possa terna sua base uma ética visando o consenso e a reconciliaçãototais. Por sua própria natureza, a luta pelo poder é exclusiva,uns fazem parte dele, outros são afastados. Daí o riscoconstante. O jogo político do aliado e do adversário, doamigo e do inimigo, se transforma facilmente num regimeautoritário quando o outro é pensado como devendo serexcluído do processo, quando é desenhado como a figurado Mal. Isso aconteceu nos movimentos autoritários doséculo 20, quando o inimigo foi marcado pelo sangue, pelaraça, pela traição irrecuperável, merecendo, pois, serexcluído do jogo da política transformada em religião leiga,excluído então do mundo dos seres humanos.18 Revista 18


OPINIÃONo entanto, somente quando a lutapolítica se entrelaça com a luta políticoreligiosaé que o inimigo necessita servisto como o outro radical. A políticademocrática, pelo contrário, desde queaceita a inevitabilidade do conflito pelopoder, somente pode se configurar comodemocrática, operação entre sujeitos dedireitos, se a oposição amigo/inimigo forrelativa, o inimigo de <strong>hoje</strong> podendo vir aser o amigo de amanhã.Até que ponto, porém, uma políticademocrática pode ser mantida quando oinimigo contesta o indivíduo comosujeito de direitos e prega sua eliminaçãototal? Em primeiro lugar, há de se ter ocuidado de não aceitar o discurso radicalsem antes verificar se não se transformouem arma ideológica do amigo. Emsegundo lugar, se o inimigo radical selança numa aventura terrorista, noataque total, é óbvio que todos osatacados têm o direito de se defender. Noentanto, se, ao exercer sua defesa noplano do próprio inimigo, elesconvertem a luta política numa lutapolítico-religiosa, no infinito conflito deuns contra os outros?Acontece, porém, que amigos e inimigosformam grupos que somentedesencadeiam um processo de trucidamentorecíproco se forem marcados parasempre como os inimigos uns dos outros.Não vejo, pois, outra política a seguir, sea paz ainda continua a ser almejada. Adestruição é sempre de alguns inimigos,de sorte que a política e as operações deseu aniquilamento ainda devem criar ascircunstâncias para que os restantes umdia também possam vir a ser amigos. José Arthur Gianotti é professor emérito doDepartamento de Filosofia da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,pesquisador sênior do CEBRAP e membro doconselho editorial da revista Novos Estudos,do CEBRAPSinagoga de Tarnopol, Hungria, incendiadapelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial: atéque ponto uma política pode ser mantidaquando se contesta o indivíduo como sujeito dedireitos e se prega sua eliminação total?


O REPÓRTERO Irã às portas de Israel?Aliança entre o Hamas e o governo abertamente disposto à aniquilação doEstado judeu, de Mahmoud Ahmadinejad, leva a regressão sem precedentesnas perspectivas de paz entre Israel e os palestinos. Por Leslie SusserReproduçãoPoucos dias antes das eleições palestinas,no fim de janeiro, o presidentedo Irã Mahmoud Ahmadinejadencontrou-se com os líderes do Hamas noexílio Khaled Mashal e Musa AbuMarzuk, em Damasco. Numa breve visitaà capital síria, Ahmadinejad fez questãode encontrar-se com os homens do Hamase com os líderes de nove outras facçõespalestinas que rejeitam qualquer tipo deacordo com Israel. O conflito israelensepalestino,ele lhes disse, segundo foi relatadopela imprensa do mundo árabe, seriao “foco central da guerra final entre oislã e o Ocidente”, e todos eles poderiamcontar com o apoio irrestrito do Irã.Segundo fontes israelenses, um mês antes,num encontro com Ahmadinejad emTeerã, Mashal declarou seu comprometimentocom o Irã: “Se o Irã for atacado,nós seremos parte da reação iraniana”,teria dito. E quando o Hamas venceu aseleições, em 25 de janeiro, o Irã declarouestar à disposição para fornecer fundos,suprimentos, armas e treinamento paraações de milicianos contra Israel.Esquadrão de homens-bomba, que se mostram dispostosa atacar, em parada militar do Hamas: envolvimento do Irãno conflito israelense-palestino é cada vez mais intensoA amizade crescente entre o Irã e oHamas faz surgir o espectro de um postoavançado hostil, patrocinado pelo Irã,bem às portas de Israel. Ou será que oHamas pretende moderar-se, num esforçopara garantir a continuidade de bilhões dedólares em ajuda ocidental? E se a decisãofor manter o radicalismo, e o Ocidentesuspender sua ajuda, o Irã estará dispostoe será capaz de fornecer os us$ 1,5 bilhõespor ano que os palestinos <strong>hoje</strong> recebemdo Ocidente? E quem será o chefe nasrelações entre o Irã e o Hamas? O Hamasserá uma marionete iraniana, ou seráindependente, usando a ajuda oferecidapelo Irã da maneira que lhe convier?Alguns especialistas israelenses vêmfalando de um “eixo Hamas-Irã”, e prevêemque o relacionamento entre o Irã e o Hamaslevará a um perigoso processo de regionalizaçãodo conflito israelense-palestino,no qual o Hamas será apenas uma armanas mãos de forças maiores. Outros dizemque o Hamas vai aproveitar o apoioiraniano para constituir um exércitopalestino forte e independente. Outros,ainda, afirmam que o nacionalismo doHamas e o caos da Autoridade Palestinaacabarão por inibir a relação com o Irã,embora isto não necessariamente signifiquemoderação com relação a Israel, ouque o Hamas vai optar por uma tranqüilidadetática, moderando suas posições emantendo distância com relação ao Irãenquanto busca manter a ajuda ocidental.A relação entre o Irã e o Hamascomeçou, timidamente, no fim da décadade 1980, com a primeira Intifada. Oprincipal elo entre o Irã e os palestinos eraa então diminuta facção Jihad Islâmica,que apoiava, sem restrições, a difusão deuma revolução islâmica ao estilo iraniano.O Hamas, uma organização muito maior,dirigida a objetivos nacionalistas, era muitomais circunspecto, e consciente de suasdiferenças ideológicas com Teerã. Preservava,ciosamente, sua independênciacomo organização nacional palestina, eenfatizava seus laços com a FraternidadeMuçulmana Sunita em vez do Irã xiita.Ainda assim, ambos desenvolveramlaços operacionais estreitos, baseados emsua total rejeição a um compromisso depaz com Israel. Estes laços foram enfatizadossignificativamente no fim de 1992,quando Israel expulsou mais de 400líderes do Hamas para o sul do Líbano. Alieles foram abrigados pelo Hezbolá, patrocinadopelo Irã, e desde então o Hezbolátem ajudado a treinar os guerrilheiros doHamas, e tem servido como um canalpara fundos e armas iranianos.Com o início da segunda Intifada, em2000, o Irã incrementou seu envolvimentocom os assuntos palestinos, aprofundandoseus laços com um Hamasagora ansioso por cooperar, e com outrasfacções palestinas. O fornecimento dearmas e de dinheiro cresceu de maneira20 Revista 18


O REPÓRTERsignificativa e o Hezbolá transferiu tecnologiade importância estratégica, comopor exemplo da manufatura de morteiros.Os foguetes do tipo Qassam tornaram-se aprincipal arma palestina contra Israel nosúltimos anos.Entre os pessimistas com relação aofuturo desenvolvimento da situação estáo ex-embaixador de Israel junto às NaçõesUnidas, Dore Gold, um especialista emmovimentos islâmicos e conselheiro políticodo partido Likud. Ele afirma que oHamas e o Irã precisam um do outro estrategicamente,e que esta dependênciamútua poderia levar à criação de umEstado controlado pelo Irã junto àfronteira de Israel. Gold afirma que oHamas precisa do Irã para perseguir seuobjetivo de destruição de Israel, enquantoo Irã precisa do Hamas para ampliar suaesfera de influência. “O Hamas dependede ajuda externa, tanto financeira quantomilitar, e o Irã é a principal potênciaregional disposta a desafiar a tentativaocidental de estabelecer paz entreisraelenses e palestinos”, ele afirma.Gold prevê um cenário negro, no qualnão só o Irã ocupa o espaço radicalconquistado pelo Hamas depois de suavitória nas eleições, mas a Al-Qaedatambém. “Temos informações de que, noverão de 2005, a Al-Qaeda tomou adecisão estratégica de mudar alguns deseus chefes do Iraque para países secularesvizinhos – como a Síria, o Líbano e aJordânia. Prova destas mudanças é o fatode que foram vistas operações da Al-Qaeda na Jordânia, em agosto e emnovembro de 2005, enquanto foguetesKatyusha foram lançados sobre Israel pelaAl-Qaeda a partir do Líbano, em 27 dedezembro de 2005. Ao mesmo tempo, háuma atividade contínua da Al-Qaeda noSinai, inclusive presença da Al-Qaeda emGaza”, diz Gold. “A questão crítica é saberse Israel será capaz de isolar as áreascontroladas pelos palestinos de reforçosexternos, ou se não conseguirá impedirque insurgentes e armas cheguem de forapara aumentar as forças palestinas.”Yuval Steinitz, presidente do ComitêParlamentar para Assuntos Exteriores eDefesa, membro do Likud, mostra-se menospreocupado com a Al-Qaeda do que comos desenvolvimentos no interior dacomunidade palestina. Ele enxerga umprocesso já em curso que está conduzindoao estabelecimento de um grande exércitopalestino que seria uma ameaça à existênciade Israel. Em sua opinião, o aumentono fornecimento de armas, os campos detreinamento do Hamas e o controle, porparte do Hamas, das forças de segurançapalestinas, criará a infra-estrutura necessáriapara uma força militar palestinaconsiderável, ainda que os acordos deOslo determinem que os palestinos estãoproibidos de terem um exército.Será que o Hamaspretende moderar-se,num esforço paragarantir a continuidadede bilhões de dólares emajuda ocidental?Steinitz há muito tempo vem criticandoa confiança de Israel no Egito comouma força capaz de controlar o terrorismopalestino. Ele manifesta grande preocupaçãocom o crescimento do contrabandode armas para Gaza e para a Cisjordâniapelo Sinai. “O Sinai tornou-se um paraísopara os traficantes de armas. Muitas destasarmas vêm do Irã, passando pela Líbia epelo Sudão. Outras vêm de mercadosilegais no Egito e nos Bálcãs, e são levadasatravés do deserto por mercadoresbeduínos”, ele revela. E ao que tudo indica,os fornecimentos do Irã vão aumentar.Steinitz acusa também Israel por nãoter evitado a construção de campos detreinamento do Hamas em Gaza. Se istoagora passar a ser permitido em Gazatambém, no contexto de uma tréguaprolongada, então forças palestinas bemarmadas logo estarão a poucos quilômetrosde distância de alvos estratégicosbem no centro de Israel. Boa parte dasarmas, dos recursos, da tecnologia e dotreinamento virão do Irã.“O maior perigo”, diz Steinitz, “é quemais cedo ou mais tarde o Hamas passaráa controlar a polícia da Autoridade Palestina,bem como forças de segurança preventivae de inteligência, fundindo-as comsuas próprias milícias, e confrontandonoscom um exército de 80 ou 100 milhomens.” Um grande exército comandadopelo Hamas, e apoiado pelo Irã,poderá acabar fazendo uma guerra totalcontra Israel. “A organização não podemudar sua ideologia. Ela pode, apenas,alterar suas táticas de curto prazo. A organizaçãopode dizer que agora precisa deum ano de tranqüilidade, para armar-se ecolocar seus homens à frente das forçaspalestinas. Mas, depois disto, pode acontecerqualquer coisa. E então não teríamosmais uma simples ameaça terrorista e simuma ameaça à nossa existência.”Quanto às medidas que Israel pode edeve tomar ante a nova situação, Gold vêuma ameaça regional importante vindado Leste e afirma que Israel precisamanter o controle sobre o Vale do Jordão.“Na nova equação estratégica, o Vale doJordão torna-se uma barreira essencialpara evitar que a Al-Qaeda, no Iraque,possa se tornar vizinha do Hamas”, diz ele.Steinitz sugere que Israel deve isolar oslíderes palestinos e restringir ao máximosua liberdade de movimento e seucontato com líderes estrangeiros.A vitória do Hamas nas eleições levouo conflito israelense-palestino de volta aoponto em que se encontrava há quase 60anos, quando da independência de Israelem 1948. Outra vez, o Estado judeu estálutando por sua independência, e por suasobrevivência, com uma mão estendidapara a paz, mas ao mesmo tempo dispostoa garantir seu próprio futuro. Tudodepende do que Ahmadinejad e KhaledMashal terão a dizer um ao outro em seupróximo encontro.© The Jerusalem ReportLeslie Susser é jornalistaRevista 18 21


O REPÓRTERO custo da democraciaSamuel Feldberg reflete sobre a nova conjuntura políticado Oriente Médio, em que Israel se vê cercado pelos poderescrescentes de radicais por todos os lados, ao mesmo tempoem que o Irã acompanha de ameaças e pesada retóricademagógica o esforço para se tornar uma potência nuclearPrimeiro foi o Líbano. Em um paísdestroçado por uma longa guerracivil, o Hezbolá, grupo armado quecontrola um amplo território, optou porparticipar do processo político e tornouseum dos principais partidos do paísrepresentando quase com exclusividade apopulação xiita local. Depois vieram aseleições no Egito. Em um país com quasenenhuma tradição de eleições livres, umapequena liberalização permitiu a inclusãode inúmeros representantes da IrmandadeMuçulmana (a “raiz” do Hamas) noparlamento egípcio. Na seqüência, os iranianosoptaram por substituir Khatami(presidente moderado que buscava umaflexibilização da sociedade e uma acomodaçãointernacional e funcionava comoelemento de equilíbrio para o radicalismoislâmico dos mullahs) por um representantedas massas que vê no programanuclear iraniano, na negação do Holocaustoe na destruição de Israel, elementosde propaganda para fortalecer suaposição hierárquica. (Não custa lembrarque Hitler também começou assim).Finalmente, a recente vitória do Hamasnas eleições parlamentares realizadas emGaza e na Cisjordânia (alguns leitorespreferirão a denominação Judéia eSamária) encerra um ciclo que pode servisto como o resultado adverso dademanda norte-americana pela democratizaçãodo Oriente Médio. Não podemos,entretanto, esquecer que eleições livressão somente um dos muitos elementosO Hamas está divididoentre os que clamampela luta permanente eos que acreditam serlonga a história, e que atrégua pode durar osuficiente para que ospalestinos se fortaleçama ponto de poderderrotar Israelque caracterizam os regimes democráticos.A quase totalidade dos outros (liberdadede expressão, garantias individuais,o direito de ir e vir, e muitos mais) nãoestá e nunca esteve presente nos paísesmencionados acima.Israel, como não poderia deixar de ser,é diretamente afetado por todos estesdesenvolvimentos. No Líbano, o fortalecimentodo Hezbolá, que continua a fustigaro norte de Israel com seus foguetes e recentementeviu frustrada sua tentativa deseqüestrar soldados de um posto fronteiriço,torna-se mais perigoso à medida queadquire legitimidade sem abandonar aluta armada servindo, obviamente, demodelo para o Hamas e criando na práticauma fronteira geográfica entre o Irã eIsrael. A eleição de elementos radicaispara o parlamento egípcio não representaum problema imediato para Israel, mascertamente acende uma luz vermelhajunto à inteligência israelense, que nuncadeixou de considerar a possibilidade deuma renovada guerra convencionalcontra o Egito, apesar da paz (fria) que jádura quase 30 anos. Um “Irã democrático”na fronteira sul de Israel certamenteobrigaria as forças armadas israelenses aconsiderarem uma nova ação preemptivanos moldes de junho de 1967. Enquantoisso, os egípcios sofrem os efeitos daanomia na Faixa de Gaza, impossibilitadosde controlar o fluxo através de suanova fronteira e tendo de suportar, inclusive,o seqüestro de seu representantediplomático por uma das facções que <strong>hoje</strong>lá circulam, livres e armadas.A trajetória do Irã rumo ao status depotência nuclear precisa ser vista por doisprismas diferentes; por um lado, o Irãalmeja a entrada no restrito clube por umaquestão de prestígio, parte da velha disputaque teve seu ápice com o pan-arabismo noséculo passado (o Irã, não árabe mas muçulmanoxiita, sempre foi o adversário doIraque, do Egito e outros países menores,seja sob o Xá, seja na era dos aiatolás). Poroutro lado, a posse de armas nuclearestambém permitiria ao Irã garantir umaampla retaliação a um possível ataquenorte-americano, não contra o territóriodos EUA, mas contra sua força-tarefa nooceano Índico, ou a interrupção do fluxode petróleo, por meio de um amplobloqueio do estreito de Hormuz.22 Revista 18


O REPÓRTERVisto desde Israel, o problema é muitomais psicológico que estratégico. Um Irãmunido de armas nucleares e dos meiosde lançamento necessários (seus foguetes,desenvolvidos com tecnologia russa enorte-coreana, já têm alcance para atingiro território israelense, ainda que semmuita precisão) embarcaria numa aventuracompletamente irracional e suicidacaso ameaçasse Israel, já que o EstadoJudeu é, sabidamente, detentor de mais deuma centena de bombas e da capacidadepara lançá-las contra o território iraniano.Mas há os adeptos do chamado “equilíbriodo terror” 1 , que alegam que um Irãnuclearizado contribuiria para a estabilidaderegional, nos moldes da que se estabeleceuentre a Índia e o Paquistão, porreceio de uma escalada que levasse a umaconflagração nuclear.Ao mesmo tempo, a vitória do Hamasnos territórios autônomos palestinosacontece num momento especialmentedelicado para Israel. O cenário políticoisraelense apresenta-se completamenteindefinido com a ausência de Sharon, atéhá pouco tempo seu ator principal, e atentativa de consolidação de um novopartido que deveria dar seguimento a suaspropostas. Para avaliar esta situação, épreciso compreender, primeiramente, ocenário externo: o caminho trilhado porIsrael desde a primeira eleição de Sharonaponta para uma separação cada vez maiscompleta entre israelenses e palestinos.Se as duas sociedades já estiveram intimamenteligadas, por meio de trocas comerciais,da absorção de dezenas de milharesde trabalhadores palestinos no mercadoisraelense e do compartilhamento deuma ampla infra-estrutura, agora estãoquase completamente separadas. O fluxocomercial quase desapareceu; a mão deobra palestina foi substituída em Israel; ofornecimento de energia elétrica serve<strong>hoje</strong> como elemento de chantagem e asestradas construídas nos territórios ocupadosservem para separar bolsões palestinose não para permitir a movimentaçãoentre eles. E o muro (ou cerca) que estásendo construído terminará de dividir osdois povos, deixando de um lado umapopulação israelense permanentementeem alerta e do outro uma populaçãopalestina, talvez formalmente independente,mas amargurada e com aspiraçõesO candidato derrotado nas eleições presidenciais do Irã no ano passado, Mustafá Moin, ao lado desua esposa: setor moderado é minoria enfraquecida e inexpressiva nas repúblicas islâmicasO voto palestino foi deprotesto; protesto contraas condições de vida,a corrupção, odesemprego, adesilusão. Mas apesardisto, o Hamas eleitoprega, sim, a destruiçãode Israelirredentistas, uma espécie de “Alemanhapós-Versalhes”.Sharon já não voltará à vida ativa. Aseparação unilateral será certamente alembrança mais concreta de sua longacarreira pontilhada de polêmicas. Seusadmiradores lembrar-se-ão da unidadepor ele comandada, que terminou com osataques dos fedayeen na década de 1950;da travessia do canal de Suez durante aguerra de 1973, que determinou a vitóriaisraelense e da ação no Líbano, que de láexpulsou a olp. Mas seus detratores certamenteacrescentarão à lista sua decisãodurante a Guerra do Sinai, que custou asvidas de inúmeros soldados, as centenassoldados mortos no Líbano para expulsarpalestinos que em 1993 voltariam a Israelpara governar a Autoridade Palestina, e asvitimas de Sabra e Shatila, massacrespelos quais foi responsabilizado.Muito se tem discutido a respeito dequem tem a responsabilidade pela atualsituação nos territórios palestinos. Ospalestinos certamente são responsáveispelas catastróficas condições em que seReproduçãoRevista 18 23


O REPÓRTERReproduçãoMahmoud Ahmadinejad: retórica do ódio como força demanipulação política é endossada por liderança religiosaencontra o povo; pela corrupção quegrassa na sua liderança; pela ausência deum controle das armas em poder dasmilícias. Mas os israelenses seguramentesão responsáveis por terem adiado até olimite qualquer tentativa de acomodação,especialmente após a guerra de 1967,quando líderes como Ben Gurion já perceberama impossibilidade de manter sobdomínio israelense uma população demilhões de árabes. Se a expulsão da populaçãoárabe não era possível, manter oterritório tampouco o seria. A mudançade governo em 1977, com a ascensão doLikud, colocou no poder o adversáriohistórico de Ben Gurion, MenachemBegin, que não tinha dúvidas em relaçãoao direito do povo judeu de controlar asáreas em que se encontravam seus símbolosmais sagrados. Daí surgiu o messianismoreligioso, o movimento de colonizaçãosimbolizado pelos solidéus bordados(kipot srugot), abraçado por grande parteda população atual dos assentamentos.Um exemplo de como será difícil eliminaresses assentamentos, que o atual governoconsidera insustentáveis, encontra-se,não na retirada pacífica da faixa de Gaza,mas na recente evacuação de Amona, namargem ocidental do Jordão, que gerouviolento confronto e vários feridos.Resta agora descobrir como encarar onovo governo palestino. Nenhuma dasartimanhas da Autoridade Palestina foisuficiente para evitar que o Hamas obtivessemaioria absoluta dos votos. É certoque a população palestina não elegeu oHamas por seu empenho em destruir oEstado israelense. O voto palestino foi deprotesto; protesto contra as condições devida, a corrupção, o desemprego, a desilusão.Mas apesar disto, o Hamas eleitoprega, sim, a destruição de Israel, aindaque o movimento esteja dividido entreaqueles que clamam pela luta permanentee aqueles que acreditam ser longa ahistória, e que a trégua e o cessar-fogopodem durar o suficiente para que ospalestinos se fortaleçam a ponto de poderderrotar os israelenses. A vantagem comque Israel conta no momento está na definiçãode um endereço para o Hamas: atéagora, o assassinato seletivo da liderançaterrorista (ainda que o Sheik Yassintivesse sido reiteradamente denominadoseu “líder espiritual”) demandava umamplo esforço da inteligência israelensepara localizá-la; no momento em que setornarem governo, não mais poderãoesconder-se e evitar assumir a responsabilidadepor futuros atentados, ainda queperpetrados por outras organizaçõescomo o Hezbolá ou a Jihad Islâmica. OEgito provou deste amargo remédio nadécada de 1950, quando das incursõespalestinas de Gaza, que culminaram nacampanha do Sinai.As últimas notícias mencionamesforços israelenses e norte-americanospara “secar” as fontes de recursos da AutoridadePalestina, o que levaria a umcolapso e à realização de novas eleições.Não posso deixar de associar os acontecimentosno Chile de Allende, em que osEstados Unidos financiaram as greves decaminhoneiros, levando ao golpe quederrubou Pinochet. Mais recentemente, adissolução do exército iraquiano após aocupação do país colocou nas ruas umamultidão de homens armados e amargurados,que em parte se voltou para a resistênciacontra a ocupação. A ausência defundos para manter a folha de pagamentodas forcas policiais da Autoridade Palestinapoderia ter o mesmo efeito.Que fazer então? Financiar uma entidadeque possivelmente continue engajadana perpetração de atentados, ou naprodução de foguetes para lançamentocontra alvos israelenses? É a difícil decisãoque terá de tomar o novo partido Kadima,quando vencer as eleições de março eencontrar os parceiros com quem tentaráformar um novo governo de coalizão.Samuel Feldberg é bacharel em CiênciaPolítica e História pela Universidade de TelAviv, doutor em Ciência Política pela Universidadede São Paulo (USP), pesquisador doNúcleo de Pesquisa em Relações Internacionaisda USP e membro do Grupo de Análisede Conjuntura Internacional da USP2 A situação de equilíbrio gerada pela paridade deforcas nucleares entre os Estados Unidos e a UniãoSoviética durante a Guerra Fria, que garantia amútua aniquilação em caso de uma guerra entre asduas super potências.24 Revista 18


ENSAIOO Islã e o mundoA doutrina islâmica, que se impõe a seus seguidores como única doutrina verdadeira, não admitea legitimidade da existência do outro e é incompatível com a noção ocidental de sociedade civile democracia. Para Luis Dolhnikoff, as tiranias muçulmanas são mera conseqüência deste fatoDesde a revolução islâmica de 1979no Irã, o islã tornou-se um atorcentral no cenário internacional.Isto gera uma série de problemas de váriasordens, a começar pelos termos dadiscussão. Pois sequer haveria um islã, jáque este termo se refere, ao mesmo tempo,a uma religião – que em si não é monolítica– e a uma cultura, ainda menosmonolítica do que a religião.No entanto, existe um islã. Pois todosos “islãs” têm certos denominadorescomuns. E o conjunto desses denominadorescomuns pode, com pertinência, serchamado de o islã. Os primeiros denominadorescomuns são a adoção de Alácomo Deus, de Maomé como Profeta e doCorão como livro sagrado. Outros, os“cinco pilares” do islã, práticas de cumprimentoobrigatório: a profissão de fé(chahada), as rezas diárias (salat), o dízimo(zakat), o jejum (saum) no mês do Ramadã(que comemora a data da “revelação” doCorão) e a peregrinação a Meca (hajj).Há, porém, outros denominadoresmenos conhecidos, como o Hadith,conjunto de histórias, normas e comentários,atribuído a Maomé, e que complementao texto do Corão (atribuído a Alá emsi mesmo, que, segundo a crença, doou-o aMaomé por meio do anjo Gabriel).Por fim, mas não menos importante,há o conceito básico da religião islâmica,a submissão – daí a palavra islã(submissão em árabe). Em princípio, trataseda submissão do homem a Alá. Naprática, trata-se da submissão dos fiéis aopróprio islã.Um denominador comum menos“oficial”, mas não menos verdadeiro, é ofundamentalismo. O termo fundamentalismooriginou-se nos EUA, no início doséculo 20, para designar protestantes quepretendem se ater aos “fundamentos” docristianismo contra o criticismo moderno.Isto inclui a noção de inspiração divina –e não de criação histórica – da Bíblia, o queimplica sua interpretação literal. Teremadotado um nome específico, cuja conotaçãoé majoritariamente negativa, indicaquão minoritários são no campo cristão.No caso muçulmano, porém, a leituraliteral ou fundamentalista do Corão é aA shariá, ou lei islâmica,é a lei. Não há, assim,nenhum país islâmicoem que a shariá nãoesteja presente. O quevaria é apenas o tipo depresença. Ou a shariá éa lei em si mesma, ou éa parte principal da lei,ou é a sombra que pairapesada sobre leisnão-religiosasnorma e o ideal. Assim, nas escolas religiosas(madrassas), os anos de “estudo”praticamente se limitam à memorizaçãodo texto – que em minha edição tem, comnotas, 781 páginas, fora o índice (SP,Marsam, 2001, trad. direta do árabe porSamir el Hayek). Não por acaso, o opostoda leitura literal, isto é, a livre interpretaçãodo Corão e também do Hadith(chamada ijtihad), passou a ser condenadajá a partir do século 11, quando o corpusteórico do islã – que além dos doisprimeiros, inclui ainda a shariá, ou leiislâmica – foi concluído.O que nos leva a outro denominadorcomum do islã. Não se trata da famosanão-separação entre Estado e Igreja. Poisembora o próprio Maomé – ao contráriode Abraão, Moisés, Buda ou Cristo – tenhasido ao mesmo tempo líder religioso epolítico, além de militar, e apesar de osprincipais títulos islâmicos, como califa(“sucessor” [de Maomé]) e xeque (“ancião”,autoridade doutrinária), serem tantoreligiosos quanto políticos, há diferençasentre as posturas sunita e xiita. A primeiracostuma defender apenas a submissão dogovernante à lei islâmica, enquanto asegunda prefere o poder direto dos sacerdotes(sunismo e xiismo; não por acaso,são divisões originalmente políticas,surgidas na sucessão de Maomé no século7). O outro denominador comum é, naverdade, a não-separação entre a lei civil e alei religiosa. De fato, é a própria inexistência,na tradição islâmica, do conceitode lei civil.A shariá, ou lei islâmica (baseada tantono Corão quanto no Hadith, e concluídano século 11), é a lei. Não há, assim,nenhum país islâmico em que a shariánão esteja presente. O que varia é apenas otipo de presença. Ou a shariá é a lei em simesma (como no Irã, na Arábia Sauditaou no Afeganistão dos talibãs), ou é aparte principal da lei (como nos inúmerospaíses que adotam leis complementares),ou é a sombra que paira pesada sobre leisnão-religiosas (como na Turquia).À sombra da lei islâmica, não apenas éimpossível uma verdadeira lei civil, comotambém é impossível uma imprensa livre(pois tudo tem de ser “religiosamentecorreto”). E sem uma lei civil e uma26 Revista 18


ENSAIOimprensa livre, não existe sociedade civilque mereça o nome (desconsiderando-semuitos outros impedimentos, como asfidelidades tribais e o profundo patriarcalismo).Porque a sociedade civil depende,entre outras coisas, de um sistema legalque proteja sua autonomia (“normaprópria”), assim como de uma imprensalivre que garanta sua voz. Sendo a democraciaa expressão política da sociedadecivil, e não havendo uma verdadeirasociedade civil nos países islâmicos,explica-se a impermeabilidade das sociedadesislâmicas à democracia.Explica-se, também, a persistência deditaduras e reinados no mundo árabeislâmico,que não é, portanto, meraconseqüência do interesse ocidental emapoiar a ordem em países produtores depetróleo, mas igualmente o resultado daausência de uma sociedade civil.Explica-se, ainda, o verdadeiro problemada política de exportação da democracia.Os argumentos habituais baseiam-se empremissas ideológicas: dizem que a democracia,um produto cultural do Ocidente,não pode ser exportada; a democracia nãodeve ser exportada, pois isto seria umaimposição cultural. O primeiro argumentonão resiste à história: de um modoou de outro, a democracia ocidental foiexportada para o Japão, a Coréia, Taiwan ea Índia. O segundo argumento não resisteaos fatos: não há, infelizmente, regimemelhor (ou menos pior, parafraseandoChurchill) no cardápio mundial. Não poracaso, nenhum outro garante o respeitoaos valores internacionais fundamentais,como os direitos humanos. Qual é, então,o problema da política de exportar ademocracia? É não se estar a exportar ademocracia – já que não se pode exportara sociedade civil. Exporta-se, portanto,apenas o método eleitoral.Existe <strong>hoje</strong> o hábito desinteligente dereduzir a democracia ao processo eleitoral.Eleições, porém, são apenas um método dereferendar governos representativos. Democracia,por outro lado, não é um método,mas um sistema político e jurídico.Na verdade, o método de escolha dogovernante é de relevância menor paraa definição da democracia. Os euaescolhem seu presidente por via indireta.No parlamentarismo, é o Parlamentoque escolhe o chefe de governo. O queCharge publicada no jornal saudita de língua inglesa The Arab News retrata Ariel Sharonbrandindo um machado em forma de suástica crianças palestinas: demonização eincitamento ao ódio estão, há décadas, na ordem do dia da imprensa do mundo árabeO islã, como religião ecomo cultura, pressupõeuma sociedade tutelada,originalmente, pelaprópria religião. Oantagonismo, assim, nãoé com a democracia emsi, mas com a concepçãode sociedade conforme areconhecemos edefendemos no Ocidenteimporta é a existência da sociedade civilsoberana (apesar mesmo das injunçõeseconômicas do capitalismo) – que então,soberanamente, escolhe como querescolher seus governantes.Não surpreende, em todo caso, queexportar eleições para lugares onde asociedade civil é fraca ou inexistente,enquanto são fortes os grupos antidemocráticos(como no mundo muçulmano),resulte, cedo ou tarde, no fortalecimentodesses mesmos grupos por meio daspróprias eleições.Mas como se resolve, então, oproblema dos grupos antidemocráticosmuito populares, como a Frente Islâmicade Salvação na Argélia e o Hamas nosterritórios palestinos? Considerando quea democracia tampouco tem a ver automaticamentecom maiorias eventuais –mas sim com regras republicanas. Ou seja,regras que têm de valer para a totalidadedo espectro político. Uma eventualmaioria eleitoral que confronte essasregras não merece, portanto, participar dojogo – muito menos vencê-lo. É o caso dosgrupos que pregam a teocracia (de fatoproibidos na Turquia, a menos imperfeitadas democracias muçulmanas – de modoequivalente, na Alemanha, grupos quepregam abertamente o nazismo nãopodem concorrer nas eleições).O caminho, na prática, é o desenvolvimentodas instituições mínimas e daReproduçãoRevista 18 27


ENSAIOmentalidade básica de uma sociedadecivil antes da realização de qualquereleição. O que foi feito na Índia pelosingleses, no Japão pelas forças americanasde ocupação, na Coréia do Sul por umaditadura autóctone, em Taiwan peloKuomintang, e mesmo no México pelo pri.Mas não pela Autoridade Palestina – que,apesar de eleições mais ou menosperiódicas, instituiu uma autocraciacorrupta, na qual as instituições e osserviços públicos são completamenteseqüestrados por um partido (Fatah), nãorepresentando, portanto, a sociedadecivil, enquanto se tolera o fortalecimentode grupos antidemocráticos (pois terroristase teocráticos) como o Hamas.Em suma, o islã, como religião e comocultura, pressupõe uma sociedade tutelada,originalmente, pela própria religião(o que faculta e facilita a eventual tutelade outros tipos). O antagonismo, assim,não é com a democracia em si, mas com aconcepção de sociedade conforme a reconhecemose defendemos no Ocidente(plural que se justifica pelo fato de a únicagrande corrente política antidemocráticaocidental, o comunismo, ter sido extinta:somos <strong>hoje</strong>, portanto, todos democratas,nem que seja por falta de alternativa).Esse antagonismo fica claro na vitóriaou na votação expressiva de grupos etendências teocráticos em todos os paísesislâmicos onde, nas últimas décadas,houve eleições, desde a Argélia em 1991(o que, aliás, resultou na anulação dosresultados) até o Irã em 2005 (com oretorno da linha dura), passando peloLíbano (com a grande representaçãoparlamentar do Hezbolá) e o Egito (omesmo para a Irmandade Muçulmana),até culminar na eleição do Hamas nosterritórios palestinos. Cada eleiçãoenvolve questões internas imediatas,como, no caso palestino, a censura àcorrupção e à inépcia do Fatah. Mas istonão explica tudo. Tampouco o explica aconsagrada crença de que o que aconteceno mundo muçulmano é mera reação aações ocidentais. Pois o islã, além de denominadorescomuns, tem vida própria –inclusive como ideologia política.O antagonismo com a concepção ocidentalde sociedade civil fica tambémclaro no recente episódio das charges deMaomé publicadas na imprensa européia.De instituições supranacionais como aOrganização da Conferência Islâmica(oci) e a Liga Árabe, passando por inúmerosgovernantes e ministros, até chegaraos clérigos e às multidões, o mundomuçulmano, tanto oficial quanto oficiosamente,pronunciou-se de forma massiva,agressiva e intolerante contra a liberdadede expressão (e, na prática, contra osdireitos humanos, pelo teor da maioriadas reações). Qualquer outra consideraçãoé ociosa: tratou-se pura e simplesmente dadefesa da supremacia do dogma religioso(a proibição de retratar Maomé) sobre aliberdade de expressão – que inclui,Dizem que a democracia,um produto cultural doOcidente, não pode serexportada, pois isto seriauma imposição cultural.O primeiro argumentonão resiste à história:de um modo ou de outro,a democracia ocidentalfoi exportada para oJapão, a Coréia, Taiwane a Índia. E o segundoargumento não resisteaos fatosnaturalmente, a liberdade de não seguirdogmas religiosos. Pois a partir do instanteem que um dogma tenha o direito derestringir a liberdade de expressão, outrosdogmas prontamente se apresentarão. Enão existe meia liberdade de expressão.Daí não haver verdadeira liberdade deexpressão no mundo muçulmano (nem,portanto, liberdades e garantias civis). Emcompensação, há uma infinidade dematérias diárias obscenamente antisemitas,anti-ocidentais e anticristãs emtodos os meios de comunicação, dosjornais às tevês (em que, por exemplo,judeus roubam órgãos de criançaspalestinas para transplantá-los empacientes israelenses). Mas isso, aocontrário das charges de Maomé, issoparece não incomodar ninguém – nem nomundo muçulmano, nem no complacentemundo ocidental.O que nos leva a outro denominadorcomum do islã: o conceito de Umma(comunidade), o conjunto dos “fiéis” (daíos líderes islâmicos se referirem constantementeos “1,5 bilhões de muçulmanos”;daí haver a Organização da ConferênciaIslâmica, única organização de Estados nomundo de caráter confessional). A partirde tal conceito, a doutrina islâmica divideo mundo em duas partes: as terras onde os“fiéis” dominam formam o Dar el Islam, “acasa do islã”, enquanto o resto do mundoé o Dar el Harb, “a casa da guerra” (porquenão sujeita à lei islâmica, que garantiria apaz, e porque passível de ser guerreadapelo islã). É essa visão dicotômica, aliada àcrença na superioridade do islã comoúltima – e definitiva – das religiões monoteístas,que explica o duplo padrãoreferido acima.Tal dicotomia também explica maisum denominador comum: os muçulmanoshabitualmente se manifestamsobre questões que lhes interessam diretamente,mas, ao contrário do que ocorreem outras culturas, jamais se manifestamsobre questões que não lhes interessamdiretamente (guerras que não envolvemmuçulmanos, problemas ambientais,genocídios vitimando “infiéis”, fomes africanasetc.). A mesma dicotomia explica,ainda, o completo descaso pelas legislaçõesnacionais e pela lei internacionalquando em confronto com a lei islâmica.E, sem esse descaso, um líder islâmiconão poderia decretar uma condenaçãocontra um cidadão qualquer, de qualquerorigem, sem qualquer julgamento, e verseu decreto respeitado pelos muçulmanos.Sem ele, tampouco poderia o islãprever em seus códigos punições (naturalmentedistintas) para muçulmanos e paranão-muçulmanos de todos os lugares, porcrimes que só existem para o próprio islã,numa espécie de jurisdição universalautoproclamada. E isto, não apenas asações ocidentais de qualquer tipo, explicamuito das tensões atuais. Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta28 Revista 18


PERFILTeoria e práticadas células-troncoA geneticista Mayana Zatz está na linha de frente da pesquisacom células extraídas de embriões humanos.Mas enfatiza que ainda está no estágio de pesquisa,não de tratamento. Por Cláudia AltschüllerAgeneticista Mayana Zatz <strong>hoje</strong>lidera um grupo de cientistas quese dedicam à pesquisa de pontaem células-tronco. Professora titular degenética, diretora do renomado Centro deEstudos do Genoma Humano da USP e,desde dezembro de 2005, pró-reitora depesquisa da mesma universidade, é autorade 270 artigos científicos publicados emperiódicos especializados. Mayana coordenauma equipe de 16 pesquisadores,entre alunos de graduação, doutorado, pósdoutoradoe técnicos. Todos trabalham naidentificação de novos genes relacionadosa doenças neuromusculares, que afetamuma em cada mil pessoas ao redor domundo, e em pesquisas com célulastroncovisando futuras terapias.Mayana descobriu a enzima responsávelpor um tipo de distrofia muscular efez parte do grupo que descobriu seisgenes ligados a doenças neuromusculares.Aperfeiçoou também métodos dediagnósticos precoces de distrofia etestes que permitem descobrir a chancede ter filhos com a enfermidade. Recebeudistinções como o prêmio Women inSciences, unesco/l’oreal (2001), por suaspesquisas em distrofia muscular, e BasicMedical Sciences, Third World Academy ofSciences (2004), entregue a cientistas quese destacaram em suas áreas de conhecimentono chamado Terceiro Mundo.As células-tronco embrionárias têm opotencial de formar todos os 216 tecidos docorpo humano e, portanto, podem vir abeneficiar portadores de diferentes tipos dedoenças como síndromes neuromusculares,diabetes e mal de Parkinson. Porém, tratasede um campo de pesquisa que, paraalém das dificuldades científicas propriamenteditas, envolve também uma série dequestões éticas e legais. No Brasil, as célulastroncosomente podem ser extraídas deGrupos de judeusortodoxos aprovam aspesquisas, poischegaram à conclusãode que um embriãocongelado não tem ostatus legal e religiosode um ser humanoembriões humanos inviáveis (ou seja, quepor algum defeito genético pararam de sedividir e não servem para implantação)ou que estejam congelados há mais de trêsanos. Em todos os casos, a instituição depesquisa precisará do consentimentoinformado dos pais biológicos do embrião.Mayana ficou conhecida fora da comunidadeacadêmica ao se tornar uma daslíderes mais ativas da campanha pela liberaçãodo uso de embriões humanos empesquisas com células-tronco na épocaem que se debatia a lei de biossegurança,aprovada em março de 2005. Esteve nasprincipais mídias, pois achava que asociedade deveria também discutir asquestões éticas da lei.À época, houve intensa pressão degrupos conservadores como a Igreja Católicae parte da comunidade evangélica,que se opunham às pesquisas por razõesreligiosas. Os judeus liberais e os ortodoxosnão são contrários às pesquisas.“Há algum tempo, participei de umdebate com um rabino ortodoxo e ele era,inicialmente, contra. Dizia que não sepodia destruir uma vida para salvar outra.Expliquei que não estávamos destruindovidas; estávamos pegando embriõescongelados, que têm um potencial de vidabaixíssimo”, diz. Depois, a bióloga soubeque grupos de judeus ortodoxos passarama aprovar as pesquisas, pois chegaram àconclusão de que um embrião congeladonão tem o status legal e religioso de umser humano.Mayana adverte que os benefícios daspesquisas com células-tronco não serãoimediatos. “Eu fiz um barulho grandepara a aprovação da lei e agora tenhoque colocar água na fervura porque aspessoas querem resultados imediatos. E,com isso, já está cheio de charlatõesoferecendo células-tronco para curar30 Revista 18


PERFILArquivo pessoalMayana Zatz: pesquisa de ponta não destrói vidas e apenas trabalhacom embriões que têm baixíssimo potencial para sobreviveremqualquer coisa”, adverte. Ela consideraimportante enfatizar que ainda se está noestágio de pesquisa e não de tratamento.Serão necessários alguns anos para que sepossa comprovar a eficácia da terapia.Existe uma grande diferença entre tentativaterapêutica e tratamento.Paralelamente ao trabalho de pesquisa,Mayana tem se empenhado em melhorara qualidade e expectativa de vida de portadoresde distrofias musculares. Em 1981,fundou a Associação Brasileira deDistrofia Muscular (Abdim), que atendegratuitamente pacientes que previamentepassaram por uma triagem no Departamentode Biociências – USP. A entidade,localizada em São Paulo, tem como objetivoprincipal consolidar-se como centrode referência, no Brasil, no tratamento eapoio aos portadores da enfermidade.Mayana, que nasceu em Tel Aviv em1947, passou na França a primeirainfância e mudou-se para o Brasil com afamília em 1954. Construiu em São Paulosua sólida carreira científica, cujas raízesremontam à infância. “Quando menina,eu não sabia direito se ia ser médica oucientista. No colegial, resolvi, então, fazergenética humana porque poderia aliar asduas coisas, a pesquisa e a parte de lidarcom pessoas”, diz. Ingressou no curso deCiências Biológicas da USP, onde permaneceaté <strong>hoje</strong>. Cláudia Altschüller é jornalistaRevista 18 31


PERFILFotos: divulgaçãoHumor à moda judaicaMarleine Cohen encontra-se com os integrantes do grupo Os Raposas e aUva, que mantém vivo o humor muitas vezes esquecido da tradição hebraicaSão seis humoristas e uma sonora gargalhada!– Conhece aquela da mulher que se enrosca nomarido e com jeitinho lhe pede: “David? Fofo,compra um radinho para mim?”E ele lhe responde: “Qual o rádio que você querganhar, fofa?”E Sarah diz: “Ah!... Pode ser um daqueles que têmcarro por fora!”Seja ashkenazi, seja sefardita, não há como ficaralheio às alfinetadas do grupo de humor judaicoOs Raposas e a Uva.Embaixadores do bom-humor, como se autodefinemnas palavras de Ahuva Flint – educadora eúnica mulher do grupo –, entre o palco e a maisdistante comunidade judaica da face da terra amilhões de léguas de distância, os Raposas nãopoupam ninguém: da mocinha idish com sotaqueyeke, incorporada por Ahuva, a Mohamed, judeupalestino representado por Alberto Simantob,único sefardita da turma, ninguém escapa.“A coisa já começa a ser engraçada quando sepensa que se trata de um grupo de judeus que... nãocobra nada para se apresentar!”, provoca Jô Soares,que os recebeu em seu programa, assim comoFaustão e várias entrevistadoras.A bem da verdade, a química que faz desopilar ofígado do público se impôs assim que os seiscamaradas se reuniram pela primeira vez.Isso aconteceu por acaso, por ocasião dolançamento do livro Enciclopédia do Humor Judaico,de Henry Spalding, no Brasil, em outubro de 1997.Lembra Ahuva: “Como o autor do livro não podiacomparecer ao evento por ser um homem de idadeavançada, o editor, Jairo Fridlin, da Editora Sêfer,teve a idéia de convidar alguns amigos, humoristasnotórios, amadores e contadores de piadas, paraanimar a noite na Livraria Cultura de São Paulo”.Dito e feito: os convidados foram à noite de autógrafos:David (Kaleka), Zig (Mermelstein), Rubens(Bisker) – a quem Ahuva já conhecia –, e mais Alberto(Simantob), Marcos (Susskind), entre tantos outros.“Em determinado momento, me pediram paracontar uma piada no microfone: eu não tive comorecuar. Então, arrisquei:E Moishe pergunta ao amigo:– Chaim, diga-me, tua mulher faz sexo contigopor amor ou por interesse?Ao que ele responde:– Creio que por amor, Moishe.– E como sabe?32 Revista 18


PERFIL– Ora! Porque ela não mostra nenhum interesse!”Naquela mesma noite, duas ou três piadas depois,estava formado o grupo Os Raposas e a Uva – e opúblico se contorcia de rir, sentado no chão.O nome escolhido? Uma licença poética paraum jogo de palavras com Ahuva, nome próprio queem hebraico significa querida.A missão: “Principalmente fazer benemerência”,elegendo o humor como ferramenta para ajudar aaliviar o dia-a-dia dos necessitados e menosfavorecidos, explica ela. “Mas também consolidar aidéia de que o judeu não é um avarento, ranzinza,que só pensa em guerra e ocupar terras da Palestina;é um povo capaz de fazer piadas e de rir de seucotidiano e das próprias vicissitudes”, como bemmostram Woody Allen, os irmãos Marx, JerrySeinfield, Mel Brooks, Peter Sellers e tantos outroshumoristas, através da história.A partir daquele dia, na carteira de clientes dosRaposas, além do Pioneiros de Santo André – primeirainstituição a encomendar um novo espetáculopoucos dias depois da noite de autógrafos –, surgiriaum número crescente de ongs, instituições sociais eentidades religiosas: o Instituto Padre Cacique, dePorto Alegre; a Igreja Perfect Liberty, de Arujá; aAssociação Minha Rua Minha Casa, de São Paulo; aDoentes Carentes do Hospital Amaral de Carvalho, emJahu, além – é claro – da Unibes, do Lar Golda Meier,do Refeitório Comunitário Ten Yad e tantas outrasinstituições beneficentes da comunidade judaica.“Trabalhamos exclusivamente com entidades einstituições não políticas que possuam boa administraçãofinanceira, credibilidade e notória açãosocial em comunidades carentes ou assistência àspessoas especiais”, afirma a educadora.Ao todo, segundo o empresário Alberto Simantob,são 126 espetáculos gratuitos realizados até omomento por todo o Brasil – dos quais 82 paraentidades beneficentes não pertencentes à comunidadejudaica. Em comum, têm o propósito derevolver e trazer à tona características próprias aosjudeus dos quatro cantos do mundo: os percalçosda Diáspora e as agruras da imigração, a relaçãocom o dinheiro e a religião, a comida kasher, oslaços familiares, os guetos urbanos, como o BomRetiro e Higienópolis, em São Paulo, e o exercícioda medicina, entre outras tantas.“Fazemos um show por mês, em média,buscando acima de tudo mostrar o judeu como umbenemerente, e vincular esta benemerência a causassociais”, explica Ahuva Flint, lembrando que asapresentações extrapolam não só a comunidade,mas também a cidade de São Paulo. “Começamos atrabalhar em março para chegar a um total de seteeventos ao ano, dirigidos tanto a crianças de 7, 8anos quanto a idosos. Quando fazemos shows emlugares particulares, como, por exemplo, em naviosou bufês, atribuímos um valor comercial aoespetáculo e o atrelamos à benemerência dealguma entidade”.Benemerência?Explica-se: os espetáculos dos Raposas sãogratuitos por ideologia e por opção. “Somos artistasamadores, não temos nenhuma pretensão aoestrelismo e, sim, de atender a um preceito judaicoe do Arquiteto do Universo denominado tzedaká –o maior de todos no judaísmo”, explica AlbertoSimantob. Segundo ele, a palavra em hebraico émuitas vezes erroneamente traduzida por caridade,mas, na verdade, quer dizer justiça, e, neste caso,particularmente, significa justiça social.Integração e farraE de que se alimenta o humor de Os Raposas ea Uva?Além do banco de piadas, existente no site dogrupo (www.osraposaseauva.com.br) e aberto atodos, os integrantes vão pesquisar em livros erevistas, discos e filmes.“Também recebemos piadas de amigos e nosinspiramos no dia-a-dia, sempre atentos a situaçõesque têm a ver com o universo da nossa comunidadee que podem se transformar em algo engraçado”,conta Ahuva.Mas é acima de tudo o clima mágico de integração,presente durante os ensaios, que fornece amatéria-prima necessária para o bom humor dogrupo: “Uma vez por semana, nos reunimos na casade um de nós e começamos a ensaiar. Estes encontrossão muito divertidos; lanchamos juntos, trocamospiadas novas, idéias; rimos muito”, relata Ahuva.Cada integrante tem sua “especialidade”. Assim,Alberto (Simantob) tem como principal função nogrupo, segundo ele próprio, “coordenar as correspondênciase as reuniões de ensaio e agendarshows”. Ele entra no palco na pele do judeuRubens Bisker, DavidKaleka e Ahuva Flintcom Jô Soares: “A coisajá começa a se tornarengraçada quando se pensaque se trata de um grupo dejudeus que não cobra nadapara se apresentar...”Revista 18 33


PERFILAlberto Simantob, Marcos Susskind, David Kaleka, Ahuva Flint e Rubens Bisker e,deitado, Zig Mermelstein: cada integrante tem sua “especialidade” no grupopalestino, aventurando-se pelo mundo sefardita.Rubens (Bisker) é considerado o mentor intelectualdos Raposas, enquanto David (Kaleka) é “o maisorganizado do grupo”. Marcos (Susskind) échamado de “o detalhista” – e encarna o clássicoashkenazi; como tal, não precisa de muito esforçopara provocar risadas: “Minha função no grupo étalvez a mais importante de todas”, diz. “Sou euquem leva o pano de chão para limpar o palco,antes e depois das apresentações. É claro que se umdia eu faltar, não tem espetáculo!” “Entrei no grupopor recomendação do grande Rashi, rabino que previuque eu seria um grande humorista e que disse istopara minha tataravó. De bate-pronto, ela morreu derir. Quem duvidar que se mate para encontrá-la noParaíso e confirmar esta versão!” “Se não fossem OsRaposas, não sei o que seria da minha vida: é quegraças ao grupo eu tenho... tantas dívidas!”Ahuva Flint, por sua vez, entra no palco com oouvido afiadíssimo, disposta a passear pelosdiversos personagens femininos existentes no BomRetiro: a polonesa, a hebraica e outras. Quanto a Zig(Mermelstein), tem a seu favor uma estaturainvejável que lhe permite se impor de pronto e serreconhecido pelo público simplesmente como “oZig, o grandão!”São 75 minutos de puro deleite; os integrantes serevezam diante do público e dispõem, cada qual,de um bloco no qual chegam a contar seis piadasou “causos”.O sucesso é tão grande que a agenda dos seishumoristas inclui o lançamento de um dvd, comexímia seleção de piadas, e o desdobramento damera apresentação artística no palco: um trabalhode orientação empresarial às entidades que oscontratam, com dicas de como vender o espetáculoao público, como montar o show e buscar patrocínio,entre outras.“Fazemos o que fazemos porque temos certezade que assim ajudamos o outro, ora com o dinheiroarrecadado durante o espetáculo, ora com o lazerproporcionado. Nosso objetivo é dar felicidade àspessoas. É o nosso maior presente”, explica AhuvaFlint, concluindo: “Rir faz esquecer os problemas”.Disposto a não encerrar o bate-papo, AlbertoSimantob ainda emenda: “Gostaria de contar aosleitores a piada do papagaio que o Jacó ganhou,mas que a redação censurou. Então, quem quiserouvi-la deve assistir ao nosso show...”Seria este um convite formal, Alberto?“Bem... sabe como é”, diz. “Esta é a diferençaentre a saída à francesa e à judaica; na primeira, osujeito vai embora sem se despedir. Já na saída àjudaica, ele se despede, mas nunca vai embora...” Marleine Cohen é jornalista34 Revista 18


NossaHistória


LETRAS E ARTESFotos: divulgaçãoA cerimônia de kapará, realizada um dia antes do Yom Kipur, dia do perdão: rito de absolviçãoGestos de féFotografar o invisível parece ser o objetivo de André Douek ao documentaros preparativos das celebrações da liturgia judaica tradicionalFazer uma documentação fotográfica dosrituais da liturgia judaica conforme praticadospelos seguidores da ortodoxia é umatarefa praticamente impossível. Isto porque asleis que se referem à maior parte dos dias santosdo calendário judaico proíbem, nestas datas, oexercício de qualquer trabalho – inclusive o defotografar. Deparando-se com esta impossibilidade,André Douek, fotógrafo brasileiro nascidono Egito, começou a procurar meios para arealização de um projeto que, havia anos, germinavaem sua imaginação.Seu desejo era documentar os ritos judaicos,associados a dimensões da existência que nãofazem parte do mundo quotidiano e, em seu caso,ligados também às suas memórias da terra natal,que deixou aos sete anos de idade, em 1962 – ele esua família foram dos últimos a deixarem o Egito,depois da expulsão promulgada por Nasser em1957, que pôs fim a uma das mais antigas e tradicionaiscomunidades judaicas do mundo.As lembranças nítidas da infância e da vidafamiliar no Cairo permaneceram com Douek,porém, como matrizes que organizam o universo36 Revista 18


LETRAS E ARTESA purificação do lar por meio da remoção do chametz, realizada um dia antes de Pessach: para contornar proibição religiosa de fotografardurante os dias santos, Douek optou por documentar os preparativos das principais cerimônias que marcam o calendário litúrgico judaicodos sentimentos, de maneira que presenciar a celebraçãodas festas religiosas, cada qual com seusabor específico, tornou-se, também, uma maneirade reencontrar o passado irremediavelmenteperdido, não obstante as diferenças entre as celebraçõesjudaicas no Egito e no Brasil.Tanto quanto para as festas em si, a nostalgiade Douek volta-se para o Cairo de sua infância,onde a vida, seja a dos muçulmanos, seja a doscristãos coptas, seja a dos judeus, lhe pareciaimpregnada de religiosidade em todos os seusaspectos. “No Egito daquele tempo a palavra deuma pessoa valia tudo. Havia um grau enorme deconfiança entre as pessoas, nem se pensava emcontratos”, diz ele.Recuperar a inocência e a simplicidade perdidasna voragem materialista e no cinismo, e evidenciara sacralidade do tempo conforme cultivada pelosque seguem a fundo todos os preceitos do judaísmotradicional; fotografar o invisível e o proibido,porque sagrado, foram, assim, os objetivos que eletinha em vista ao se lançar neste projeto, que aRevista 18 publica em primeira mão.Em meio à desorientação da vida mundana – eda história – o ritual proporciona refúgio, segurançae libertação. A santificação do temposuspende as incertezas para mergulhar quem delaparticipa no sentimento e no sentido de maravilhamento.E o rigor das leis judaicas referentes àsfestas tem como objetivo, justamente, preservareste espaço de suspensão dos condicionamentos,construir, como que uma cerca em torno destesmomentos apartados do calendário comum, paraque nada perturbe sua vivência.O ritual judaico não é algo que pode ser descritoem palavras, nem compreendido pela razão ou pelointelecto. É algo que ameaça perder-se no tempo enas migrações dos judeus por todos os quadrantesRevista 18 37


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Na página oposta, no alto, dedicação de uma letra de um Sefer Torá por uma família e, abaixo, preparação para o toque do Shofar, que marca ascerimônias relativas ao Ano Novo judaico: manutenção da tradição atravessa os séculos, os continentes e as adversidades da história. Acima, preceante o santuário onde ficam guardados os pergaminhos enrolados que contêm, em manuscritos hebraicos, os cinco livros de Moisés: a Torá é otemplo portátil do povo judeudo mundo, mas que acaba por sobreviver, como umlegado, tão abstrato quanto precioso, a ser transmitidoàs novas gerações.Como conciliar, então, as múltiplas restriçõesque envolvem o ritual com seu desejo dedocumentá-los? De uma maneira muito judaica,isto é, contornando o problema sem perder de vistao objetivo, Douek teve a idéia de retratar os preparativosdas festas, antes de seu início propriamentedito, produzindo imagens que são, por assim dizer,um índex, um sinal daquilo que está por vir.Assim, por exemplo, ao abordar a festa de Pessach,em que se comemora, justamente, a libertação dosjudeus da escravidão do Egito, Douek fotografouaquele momento, antes do início da festa, em que ascrianças das casas, munidas de velas, acompanhamo pai em busca do chametz, isto é, dos alimentosfermentados que precisam ser retirados, parasimbolizar uma ruptura com o passado e um novoinício – da mesma forma que a partida do Egitorepresentou, para o povo judeu, o começo de umanova vida. “Na véspera do Pessach é feita a busca dochametz. O chefe da casa faz uma bênção e, comuma única vela acesa, passa pelas dependênciasescuras, em todos os lugares onde possa haverchametz. Na manhã seguinte, o chametz coletado équeimado numa pequena fogueira”, narra Douekem sua apresentação destas fotografias.Outra das celebrações abordadas é a de Shavuot,festa que se comemora 50 dias depois de Pessach, eque celebra a colheita dos grãos na terra de Israel.Simchat-Torá, que comemora a outorga da Torá aopovo judeu, junto ao Monte Sinai, e ao mesmotempo a renovação das gerações, é evocada pelapresença de crianças junto aos manuscritossagrados, ao mesmo tempo em que Douek documentao trabalho de um escriba. Rosh Hashaná, oinício do novo ano, e Yom Kipur, o dia da expiação,são abordadas, entre outras imagens, por meio dotoque do Shofar e dos ritos preparatórios da Kapará,em que uma galinha simbolicamente expia astransgressões cometidas.Estas fotografias despertam a memória e apresença de um universo que está além dossentidos. São os gestos de uma fé milenar, queresiste a tudo. (L. S. K.)Revista 18 39


LETRAS E ARTESFranz Kafka,leitor da realidadeconcreta?Marcelo LernerEnrique Mandelbaum discute ensaios de Michael Löwy,que buscam compreender o instigante legado de Kafkacomo reflexo de realidades históricas, mas deixam de ladoaspectos importantes inerentes à sua literaturaEm maio de 1924 Kafka agonizava,dilacerado por uma tuberculose queprovocava lesões na garganta, tãograves que a respiração, a fala e a deglutiçãoestavam seriamente comprometidas.Sua aparência física materializavauma agonia na qual se tornava quaseimpossível encontrar a esperança devencer a morte. Aos 41 anos, kafkianamente,Kafka morria de fome, realizandoum incrível esforço para revisar as provastipográficas de seu texto Um artista dafome. No dia 2 de junho, a agonia atingia onível do insuportável. Ele pede ao seumédico: “Mate-me, senão você é um assassino”.Finalmente numa terça-feira, 3 dejunho, ao meio-dia, Kafka morre. Morremas não desaparece. A partir daí, umaliteratura que se estima em mais de20.000 títulos, sem contar as centenas demilhares de páginas nunca publicadas deautores anônimos e as incalculáveisreflexões que sua pequena obra escritadesperta em cada um de seus leitores, éposta em movimento, com uma intensidadetão enérgica que nada indica quevirá a se esgotar.Enquanto os homens enfrentarem asmazelas do dia-a-dia urbano, do mundoorganizado do qual nunca mais se esperaque eles saiam, Kafka estará presentecomo um outdoor afixado permanentementenuma das vias principais, próximodo olhar de toda a multidão anônima quepor ali circula. Kafka é daqueles poucosautores cuja obra transborda os textos e setransforma em parte do cenário das vidashumanas, ressoando em todas asdimensões das situações dos homens.Toda organização estatal de qualquer paísdo mundo tem algo de kafkiano. Todainstituição, pública ou privada, religiosa,acadêmica ou mafiosa, midiática, beneficente,esportiva, social ou o que seja, temalgo de kafkiano em seu interior. Todacasa, toda vida em família reserva, emseus aposentos, um nicho kafkiano. Todafala entre os homens, toda comunicaçãoacolhe também tanto a demanda por umentendimento quanto o mal-entendido,sendo que ambos podem ser kafkianos.Enfim, todo homem guarda em seuinterior uma estranheza de si consigopróprio que é também kafkiana. Kafkapenetra tão fundo a vida que é capaz de seinstalar em compartimentos e lugares doacontecer humano tão raros que poucosautores, para não dizer nenhum outro,conseguem lhe fazer companhia.Entre as letras e a vida humana, o espaçoé difícil de ser encurtado e não existe, comoos velhos rabinos já sabiam, qualquer trilhafácil, qualquer atalho facilitador. Por isto,é bom desconfiar de toda escrita e, antesde mais nada, desconfiar de nós próprios.Dostoievski disse: “O homem é um patife– e patife é aquele que diz sê-lo”, incluindoa si próprio como uma voz portadora da40 Revista 18


LETRAS E ARTESqualidade de patife, para despertar em seusleitores uma desconfiança que não sereduza à relação com os outros e com omundo que os rodeia, mas que incluaantes a eles próprios, fazendo de cada umalguém desconfiado de si mesmo.Kafka é herdeiro desta tradição quevisa levar os homens a desconfiarem de sipróprios, exacerbando-a ao máximo, aponto de que ela incida sobre o própriotexto que realiza (não devemos esquecersua séria demanda de que sua obra escritafosse queimada após a sua morte). E é estaampliação da desconfiança por sobre todoo campo textual que levou muitos de seusprimeiros críticos a ver em seus escritosalgo assim como uma ruína do trabalholiterário, a representaçãode um declíniocontextualizado historicamente:os escritosde Kafka como portavozesdas impossibilidadesburguesas deresponder com positividadeàs demandashistóricas que exigiriama superação daprópria burguesia.Ou ainda o registrodas impossibilidadesdo homem diante doacúmulo de insucessoshistória adentro.Porém, mesmo oscríticos mais inquietoscom o estado de coisasrealizado por Kafkareconhecem em suasobras a presença de um grande escritor. Eprincipalmente a realização de umenigma que nunca se fecha plenamente,porque nele, apesar de tanta negatividade,apesar de tanta desconfiança, o homemainda se ergue por inteiro.Michael Löwy, em Franz Kafka, sonhadorinsubmisso, recolhe um Kafka que poriaem atividade, em seu trabalho literário, umEsculturas da Ponte Carlos, em Praga, e, aofundo, a entrada do Museum Regni Bohemiae:literatura e escrita decerto obedecem a leispróprias, porém é inegável que a atmosfera dePraga, do Império Austro-Húngaro declinante edo império da razão que se instalou com oséculo 20, impregnaram a obra de Franz KafkaEnquanto os homensenfrentarem as mazelasdo dia-a-dia urbano, domundo organizado doqual nunca mais seespera que eles saiam,Kafka estará presentecomo um outdoor afixadopermanentemente numadas vias principaisenorme desejo de liberdade e uma extremasensibilidade para com a violência promovidapelas fontes de poder arbitrárias, quese deslocariam como que em ondassísmicas desde um epicentro do poder dopai sobre os filhos até as instâncias burocráticasdo estado autoritário, e que olevariam a criar uma obra literária na qualtodo o estado de coisas é considerado“desde o ponto de vista de suas vítimas”.Löwy propõe-se a acompanhar com cuidadoe atenção o que ele chama de um “fiovermelho” presente nos textos kafkianos,através de uma leitura que ele nomeiacomo “sociopolítica” e que lhe permiteapontar o conteúdo anti-autoritário daescrita kafkiana. E o faz como um autoracostumado ao diálogopolêmico com outroscríticos, e como umexperimentado investigadorde textos dasciências políticas esociais. Sua pesquisafixa um Kafka queflerta simpaticamentecom idéias libertárias,fazendo das experiênciasdo escritorcom leituras e personagensanarquistasuma das evidênciasde suas convicçõespessoais, que atuariamcom profundidade aolongo de toda a suaobra. É verdade que,em Kafka, as organizaçõessociopolíticase culturais são responsáveis, em grandemedida, pelo sofrimento dos homens, maseste sofrimento, ao nosso ver, não se reduzem seus escritos apenas a um produto doentorno, não provém exclusivamente doestranhamento e da hostilidade do mundoexterior. Ethos e Cosmos se integram, masum não se dilui no outro. Em Kafka, umagulhão de estranhamento parece estarimplantado nas próprias entranhas decada homem e impede a possibilidade deuma síntese pessoal estabilizadora.Löwy, porém, deixa de lado, nesteestudo, esta dimensão da obra kafkiana,privilegiando uma leitura que responsabilizaas estruturas burocratizadas dopoder pelo sofrimento e a alienação dosRevista 18 41


LETRAS E ARTEShomens, e promove assim uma reduçãoda complexidade kafkiana, na qual, comono relato A colônia penal, a violência seinscreve como letra no corpo humano efaz de cada um não apenas uma vítima,mas também um sujeito capaz de suscitála.Esta é a gravidade do universo kafkiano:cada um, mesmo aquele que mais sofre,pode ser um agente violento. Esta é asituação kafkiana por excelência, na qualtodos atropelam todos e todos são atropeladospela máquina burocrática que éposta em atividade.Um dos intuitos centrais da leitura deLöwy é tentar evidenciar quais seriam asmotivações e as fontes de inspiração dotrabalho literário de Kafka. Assim, porexemplo, ele sustenta que A colônia penalteria como origem uma crítica de Kafkaao colonialismo, ao militarismo e à burocracia,chegando até a argumentar emfavor de um colonialismo bem específico– o colonialismo francês – que estaria namira da crítica de Kafka, sendo que Löwyhesita entre saber se o espaço territorialem que se passa o relato seria a Ilha doDiabo, “para onde o Capitão Dreyfusshavia sido remetido após sua condenação,mas lá não havia população indígena”, oua Nova Caledônia, “essa ‘colônia penal’francesa habitada por melanésios, paraonde foram deportados os prisioneiroscommunards, mas Kafka não mencionaprisioneiros deportados, políticos ououtros” (p. 83). Para O processo, Löwy põeem cena a hipótese de que processos antisemitasteriam sido a sua fonte, ou aindaque a irmã Otla seria o modelo arquetípicosobre o qual teria sido construída apersonagem Amália, da novela O castelo.O diálogo entre realidade e obra literárianunca é fácil, e a crítica contemporâneahá muito que abriu mão de ver aobra literária como cópia do real. Löwy,porém, aponta para cada obra umaorigem na realidade social, da qual a obraseria um desdobramento imaginativo.Que em toda literatura uma determinadaideologia se materialize numa açãoimaginária é inquestionável. Ocorre que ocaso de Kafka é emblemático de umaliteratura que, para além de quererrepresentar um estado de coisas da vidados homens, toma a si própria como oproblema a ser trabalhado. E Löwy parece,neste trabalho, pouco atento a este fato.Ao priorizar a apresentação de um Kafkaanti-autoritário, ele termina por filtraraspectos importantes do texto kafkiano,principalmente no que diz respeito aquestões referentes à forma da escrita,lugar por excelência da singularidade deque o texto de Kafka é dotado. Löwyprivilegia uma crítica apoiada sobre oque seria o argumento do texto. Mas otrabalho literário consiste basicamente naoperação textual que é realizada, isto é,nos artifícios de escrita que o escritor põeem cena, selecionando cada palavra,construindo cada oração, atento à estruturafrasal, e assim por diante. E isto maisainda em Kafka, um autor que operavaconsciente de sua atividade textual eQue em toda literaturauma determinadaideologia se materializenuma ação imaginária éinquestionável. Ocorreque o caso de Kafka éemblemático de umaliteratura que toma a siprópria como o problemaa ser trabalhadocrítico dela, atuando não através dalinguagem mas na linguagem, lugar emque estão alocadas, pela forma como Kafkaopera, grande parte das tensões constitutivasde seu texto. E Löwy, em seu filtrocrítico, muitas vezes termina por privar otexto kafkiano desta tensão, o que significa,de algum modo, privar a letra do “espíritokafkiano” (a expressão é de Löwy).Isto não quer dizer que a leitura deLöwy não seja de grande valia. Aocontrário, ela contribui em muito paradestacar um Kafka que é também umgenial leitor crítico do estado de coisasentre os homens. E isto não é poucodiante de um panorama da crítica literáriacontemporânea, que muitas vezes tende aencerrar a obra literária num compartimentoestético-lingüístico, destituindo aobra de toda a sua potência crítica. E opróprio Löwy sabe dos limites de seutrabalho, quando escreve que “a leitura‘política’ proposta aqui evidentemente éparcial: o universo de Kafka é rico,complexo e multiforme demais para serredutível a uma fórmula única. Seja qualfor a pertinência de uma interpretação,sua obra guarda todo o seu inquietantemistério, sua singular consistência oníricacomo um ‘sonho desperto’, inspiradopela lógica do maravilhoso” (p. 13).Se toda leitura de Kafka é parcial, senenhuma a esgota, por que então oenorme esforço de Löwy para se colocarcomo original dentro do gigantesco campocrítico deste autor? Ele diz: “Em lugaralgum encontrei uma análise sistemáticade sua obra pelo ângulo da paixão antiautoritáriaque a atravessa como umacorrente elétrica” (p. 12). Não é o caso detrazer aqui o incrível leque de críticos queassentam sua leitura de Kafka justamentenesta “paixão anti-autoritária”. Citemosapenas Canetti. Diz ele: “Desde umprincípio, Kafka foi partidário dos humilhados”.E referindo-se a O castelo: “Nuncase escreveu um ataque mais claro contraa submissão ao que é superior, tanto sequeremos entender por isto um poderdivino ou meramente terreno”. 1 É importantesalientar que toda a leitura de Canettidesdobra este pensamento em profundidade,bem como a de Benjamin, Adorno,Ritchie Robertson, Hannah Arendt, MartheRobert, Deleuze e Guattari e tantos outrosque o próprio Löwy cita. Porém, se Löwynão é o primeiro a vê-la por este ângulo,este volume tem o mérito indiscutível deiluminar em que medida esta paixão antiautoritáriapercorre a obra kafkiana emsua totalidade, situando-a no contexto darealidade européia da primeira metade doséculo 20. Enrique Mandelbaum é psicanalista, coordenadorpedagógico do Colégio Iavne e autorde Franz Kafka: um judaísmo na ponte doimpossível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 20021 Canetti, E. El otro proceso de Kafka. Barcelona:Muchnik Editores, 1981, p. 146.42 Revista 18


71 faces dePrimo LeviNova antologia de contos do escritor italianoé retrato dos caminhos percorridos porum dos mais originais ficcionistas do século 20,desde suas raízes judaicas até o suicídio.Por Andrea LombardiGianni Giansanti /Sygma/Corbis/Stock PhotosPrimo Levi em seu escritório, em Turim, janeiro de 1986: escritortematizou elementos constitutivos da tradição judaica e ao mesmotempo reafirmava uma certa distância, típica do judaísmo italianoResenhar estes 71 contos do escritorjudeu italiano Primo Levi (1919-1987) apresenta uma óbvia dificuldade:como dar conta, em poucas linhas,de textos tão ricos, tão diferentes entre si eoriginários de publicações tão distintas?Esta nova antologia é uma suma de trêscoletâneas: Histórias Naturais, de 1966,com 15 contos, assinados pelo autor como pseudônimo de Damiano Malabaila;Vício de forma, de 1971, com 20 contos e,finalmente, Lilith e outros contos, de 1981,com 36 contos.Na leitura, há fatores diferentes quepesam: o estilo do autor, a afinidade como tema ou com o gênero, algumascondições de espírito (às vezes gostamosmais disso ou daquilo), a gênese e a estruturada obra. Em sua excelente introdução,Maurício Santana Dias, o tradutor,enfatiza o desconcerto que provocou apublicação de certos contos aqui incluídos,pois não tinham como tema (ou comotema único) o campo de concentração deAuschwitz – desconcerto que os críticoseuropeus manifestaram, como se Levi“fosse condenado a repetir, eternamente,os horrores do Lager”.A primeira coletânea, HistóriasNaturais, consiste de contos de ficçãocientífica, relatando, portanto, histórias eacontecimentos projetados para o futuro,ou melhor, projetados no futuro daquelepassado específico, que era o contexto doautor: a década de sessenta, interessadaem Ovnis e em habitantes de outrosplanetas. O segundo livro, Vício de forma,traz contos ambientados num anômalopresente; um presente que apresentasempre um vício de forma, um problemaou um pequeno desvio, que dá origem aum mundo paradoxal e distorcido. Tratasede contos que pertencem a um gêneroque se situa entre a ficção científica e oconte philosophique, e que, na Itália, possuisólida tradição, desde o poeta românticoGiacomo Leopardi (1798-1837) até oescritor Italo Calvino (1922-1985), contemporâneode Levi.Quanto mais imperceptível e anômaloo desvio, tanto mais surreais serão seusefeitos. Para usar o paradigma do tempo,tão forte nesta coletânea, o presente deque aqui se trata seria futuro do presente,Revista 18 43


LETRAS E ARTESum presente como aqueles que o filme deficção científica De volta ao futuro mostra,monstruoso e resultado de modificaçõesindevidas. Em “Agentes de negócio”, porexemplo, um funcionário, vestido debranco, toca a campainha e, no melhorestilo dos caixeiros viajantes, apresentasua mercadoria: “Somos especialistas naterra... Nós nos encarregamos do GêneroHumano...” e passa ao mostruário, apresentandobreves filmes de exemplares dogênero humano, para facilitar a escolha:“Homens e mulheres... O senhor conhecea diferença, não? É pequena, mas fundamental...”.O interlocutor, que é uma almaà espera de uma encarnação e um potencialcliente, desconfia de possíveis falhas eproblemas na “mercadoria”. O caixeiroviajante admite, finalmente: “Parece-meque o senhor teve uma intuição; alguém,em algum ponto, deve ter errado, pois osplanos terrestres apresentam uma falha,um vício de forma...”.O terceiro e último livro da trilogiaaqui reunida chama-se, numa alusão inequívocaà tradição cabalista judaica, Lilithe outros contos, e reúne 36 contos, divididosem três seções, emblematicamente intituladas:Passado próximo, Futuro anterior ePresente indicativo. Estes três temposgramaticais do italiano aludem, evidentemente,a três momentos na relação entreo passado e o nosso presente. Passadopróximo reúne contos sobre o campo deconcentração de Auschwitz, de onde Levifoi libertado em abril de 1945, e tema deseu magistral relato É este um Homem, de1947 (Lilith é o apelido que Levi dá a umaprisioneira). Futuro anterior e Presenteindicativo incluem visões fantasiosas,advindas de um passado ainda não superado,e sinais de incompreensão, dechoques entre culturas, de mudanças deperspectiva e situações paradoxais.Na leitura, cada palavra tem seu peso,um peso específico, bem material. Comoo peso dos tijolos. Se com estes é possívelconstruir palácios e pontes (esta última,uma metáfora bastante presente na obrade Levi, especialmente em La chiave astella, num diálogo ideal entre um engenheiroe um escritor), com as palavras épossível descrever essas pontes, mudar aperspectiva de onde são olhadas, apontarpara os “vícios de forma”, na ilusão, talvez,de que uma transformação seja possível(ao menos, uma transformação de pontode vista).Por meio das palavras observamos nossopresente, relembramos o passado que nosinfluencia e construímos um futuro, quedepende, em grande medida, do exercíciode liberdade que sabemos realizar emnossa leitura. O que confirma, ainda, opapel fundamental do exercício de leiturana época da globalização e da descrença.Por meio das palavrasobservamos nossopresente, relembramoso passado que nosinfluencia e construímosum futuro, que dependeda liberdade quesabemos realizar emnossa leituraHá dois detalhes que chamam aatenção nesta antologia: o título do livro ea última frase, duas pequenas idiossincrasiasdesta edição brasileira. Trata-se demarcas quase imperceptíveis que deixa atransposição de uma língua para outra, deum universo cultural para outro, comorastros da memória. O título 71 contosexiste somente na edição brasileira e éuma criação que, enquanto tal, modificaalgo na leitura, estimulando especulações,conjeturas, hipóteses, não necessariamentefundamentadas na lógica (mas aliteratura cria sua própria lógica, aspalavras escapam do discurso racional!). Eisto vale especialmente para um escritorque, químico de profissão e escritor emseu tempo livre, estava sempre muitoatento às coincidências, que procuravapalavras especiais, como os palíndromos(palavras que podem ser lidas nos doissentidos, da esquerda para direita e viceversa),ou o aspecto específico daspalavras: seu peso ou tamanho.Os 71 contos poderiam ser lidos comoos 49 degraus (título de um livro deensaios do escritor italiano RobertoCalasso), considerando o aspecto numerológicoda tradição cabalista. “O servo”, porexemplo, um dos contos deste volume,apresenta uma nova versão do mito doGolem, metáfora do poder da letra, dentroda escrita alfabética. Na versão relatadapor Gerschom Scholem (A Cabala e seuSimbolismo, São Paulo, Perspectiva), aoGolem, que é uma figura de barro, é dadaa vida pela inscrição de uma palavra:“Sobre a testa da imagem, escrevem emet,isto é, verdade”. Mas, vice-versa, quando énecessário parar sua atividade é sempreScholem que afirma: “Eles apagam rapidamentea letra alef da palavra emet sobrea testa, ficando apenas a palavra met, quesignifica morte. Feito isto, o Golem desmoronae se dissolve no barro, no lodo quefora antes...”. Ou seja, o texto, enquantocomposto de letras alfabéticas permutáveis,comporta-se como um organismovivo. Primo Levi, em sua versão nestacoletânea, acentua o papel dos números:“O Golem ia tomando forma, e ficoupronto no ano 1579 da Era Vulgar, 5339ºda Criação; ora, 5339 não é propriamenteum número primo, mas quase, pois éproduto de 19 [...] multiplicado por 289,que é o número dos ossos que compõemnosso corpo...”.É conhecida a relação contraditória dePrimo Levi com o judaísmo, pois oescritor italiano tematizou elementosconstitutivos da tradição judaica e, aomesmo tempo, reafirmava uma certadistância, em certa medida típica dojudaísmo italiano.A propósito do número 71 do títulodesta nova coletânea, coincidentemente,o capítulo de número 71 do tratadoKidushin do talmude babilônico trata daquestão dos segredos relativos à pronúnciado Tetragrama, o inefável nome divino.Esta é uma alusão irônica, talvez, pormera associação livre, mas fala-se, aí,44 Revista 18


LETRAS E ARTESReproduçãoTemores e fantasias referentes aos extraterrestres,tão em voga no mundo ocidentalna década de 70, estão também presentes emparte da obra ficcional de um escritor que,não obstante, tornou-se quase sinônimo deliteratura de testemunhosobre um jovem que “antes de ter a idadecerta, subiu atrás dos irmãos nos degrause prestou ouvido ao Grande Sacerdote epercebeu como ele mantinha o Nomeencoberto pelo canto de seus irmãos e dossacerdotes”. Outra menção, neste mesmotratado talmúdico, sempre no capítulo denúmero 71, parece dar indicações sobre osagrado Nome.Ambos podem ser lidos como metáforado encobrimento, o que seria bastante intrigantepara um escritor como Primo Levi,que defendeu sempre seu caráter laico eum estilo transparente, um “escreverclaro”, abrindo, como lembra o prefáciode Maurício Santana Dias, uma polêmicacom Giorgio Manganelli (exuberanteescritor da vanguarda italiana) e, indiretamente,com Paul Celan, escritor romenode língua alemã – além de Franz Kafka,embora deste último Levi tenha traduzidoO processo, para o italiano.O segundo detalhe consta no final daedição, onde há uma breve nota biográfica,quase enigmática; seis linhas, queterminam com a frase: “Primo Levisuicidou-se em 1987”. Parafraseando umtexto famoso de Walter Benjamin, seriapossível dizer que “um autor que sesuicida aos 68 anos será sempre um autorque se suicidou aos 68 anos”. Uma aparentetautologia. Esta frase abre, porém,dramaticamente, uma série de questões,pois o suicídio pode tornar-se um aspectoprivilegiado para a leitura da obra de Levi.Há outras perguntas: o leitor tem odireito de indagar sobre a vida particular doautor? Ela fornecerá elementos interessantespara a leitura? Trata-se de um interessemórbido – a morte que chama a atenção –ou esta indagação é parte de uma necessidadede comparar os dados biográficoscom a produção, segundo o ultrapassadoestilo biográfico da crítica literária?É conhecida a relaçãocontraditória dePrimo Levi com ojudaísmo. Ele tematizouelementos da tradiçãojudaica ao mesmo tempoem que reafirmava certadistância, típica dojudaísmo italianoHá duas respostas, ambas interessantese pertinentes, pois vêm do próprio PrimoLevi. A primeira, uma veemente crítica àatitude de Hans Mayer (“entrar em polêmicacom um morto é embaraçoso epouco leal”), crítico alemão de origemjudaica, que após a monstruosa experiênciade Auschwitz resolveu mudar denome (passou a chamar-se Jean Améry),mudou de nacionalidade, mudou delíngua, em sinal de protesto radical contratudo que estivesse vinculado ao nazismo.Améry “o filósofo suicida e teórico dosuicídio, que se matou em 1978”; Levidedica a ele um capítulo de seu Afogados eSobreviventes. Levi mostra pudor e constrangimentoem polemizar com Améry e emaprofundar as “razões de seu suicídio”, poisnão pode haver uma explicação exaustivapara o suicídio, além de meras hipóteses edos diagnósticos dos médicos.No conto “Rumo ao Ocidente”, sobre oqual o prefaciador se detém, três biólogosestão incumbidos de estudar o comportamentodos lemingues (uma espécie deroedores) e da tribo dos arundes (cujohabitat seria o Amazonas). Ambos os“seres”, roedores e homens, mostrariamum instinto suicida irrefreável. Entre osbiólogos há divergências: “ ‘Por que umser vivo deveria querer morrer?’ E aresposta: ‘E por que deveria quererviver?’ ‘É preciso ter coragem para dizerisso –, quem tem razão são eles.’ ‘Oslemingues?’ [...] ‘Nós nos enganamos esabemos disso, mas preferimos continuarde olhos fechados. A vida não tem umobjetivo; a dor sempre prevalece sobrea alegria; somos todos uns condenadosa assistir ao fim das pessoas maisqueridas...’ ”. Os três resolvem testar umantídoto contra a vontade suicida doslemingues e dos arundes, mas... não háum final feliz nesta história.O conto é brutal e aponta para umafilosofia que vai muito além do Além doprincípio do Prazer, o texto em que <strong>Freud</strong>identifica no princípio de morte a contrapartidaao princípio do prazer, e afirmaque nosso desejo mais profundo vai emdireção ao primeiro: paz, descanso. Morte.Mas, na leitura, não há uma interpretaçãoúnica. Há um tecido de contos que se interligam,que se superpõem, que se interseccionam.Palavras ligadas a outras palavras.Abertas, todas, para outras significações. Andrea Lombardi é professor de língua eliteratura italiana da UFRJ71 Contos de Primo LeviTradução de Maurício Santana DiasCia. das Letras, 528 p.R$ 41,00Revista 18 45


LETRAS E ARTESPara ler PAUL CELANAntologia Hausto-Cristal, comentada pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, chega ao leitor de línguaportuguesa e propõe seu emaranhado de significados como objeto de diálogo. Por Moacir AmâncioQuem sou eu, quem és tu?, livrorecém-lançado pela editora daUniversidade Estadual do Rio deJaneiro, reúne os ensaios que o filósofoHans-Georg Gadamer escreveu sobre asérie de poemas Hausto-Cristal, de PaulCelan. O livro, que traz também ospoemas, chega ao leitor brasileiro emtradução criteriosa e sensível de RaquelAbi-Sâmara. Neste volume aparentementedespretensioso encontra-se umesplêndido curso sobre como ler poesiana contemporaneidade. Sobretudo tendoem mente a complicada frase feita deAdorno segundo a qual, depois da Shoá,não se pode mais escrever poemas. Fazê-loseria um ato de “barbárie”. A realidadedesmente a frase, mas só em parte. Porquefalta a ela o seguinte complemento: não sepode mais escrever poemas como antes daShoá. De igual modo, se o registro da escritamudou, também a leitura muda. Ela se tornaum desafio radical, como vem propostanos poemas de Celan aqui comentados.Em Quem sou eu, quem és tu, encontramseuma série de poemas breves, de exteriorimpenetrável, e que colocam em xequetanto o leitor quanto as fórmulas literáriastradicionais. Ao mesmo tempo,cada um dos poemas revela uma fortecomoção e é através desta que se estabeleceo vínculo entre leitor e texto. Ospoemas não estão aí para serem decifradoscomo relojoaria, mas para seremcaptados por meio de sutilezas e obscuridades.É a isso que se propôs o críticoalemão, ao levar os 21 poemas da sériepara uma viagem de relaxamento,disposto a lê-los de maneira descondicionada,em busca da sintonia mais íntimacom cada palavra escrita por Celan.Observe-se, o texto enigmático contemporâneoé muito diferente do texto difícilde Góngora, conforme o exemplo dadopor Octavio Paz em um de seus ensaios.Em Góngora, o poema é complicado e ouso de chaves específicas permite a suacompreensão cristalina. Já na poesia atual,o texto revela-se enigmático. De um lado,sabe-se, Celan vinculou-se por algumtempo ao surrealismo, escola anti-escolaNeste volumeaparentemente despretensiosoencontra-se umesplêndido curso sobrecomo ler poesia nacontemporaneidade.Sobretudo tendo emmente a complicadafrase feita de Adornosegundo a qual, depoisda Shoá, não se podemais escrever poemasque se propunha a expor o que permaneciaoculto pelas receitas totalitárias da estéticatradicional. A convulsão no lugar datécnica e do racionalismo constrangedor,que teve como resultado máximo a Shoá.Daí o horror das imagens surrealistas. Omesmo se vê em Picasso: Guernica nãopode ser uma obra fácil e muito menosbonita. Ela é o avesso da estética “apolínea”.E propõe ao espectador uma decifraçãotambém emocional.Algo parecido ocorre com os poemasde Celan, que exigem, antes de mais nada,uma aproximação livre e desarmada. Odesafio foi aceito com plenitude porGadamer, erudito que soube perceber acondição primeira para tratar esses textos.Não se trata de descartar a erudição, algode resto impossível, mas de permitir queela seja trabalhada pela experiência dalinguagem do poeta – uma entrega àpoesia e não uma tomada da poesia. Esta,na opinião do crítico-filósofo, por sua veznão pretende se colocar como seletiva,poesia feita para alguns intelectuais, maspara essa entidade vaga e ampla chamadaleitor. Nesse sentido evidencia-se um dosconteúdos políticos dos escritos. Comopolítica é a atitude que o leitor deveadotar diante deles: em vez de pretenderdominar a matéria que lhe é dada,dialogar com ela, na aceitação do outro,sob o signo da interrogação do título.Quem sou eu, quem és tu? É o diálogo e, aomesmo tempo, o monólogo proposto pelopoeta e que o crítico procura explicitarcom a devida humildade e atenção. Oleitor profissional pode desse modoencontrar-se com o chamado leitorcomum, desde que ambos estejammunidos de certa ardente paciência, pois,como diz Gadamer: “Quem deseja compreendere decifrar a lírica hermética nãopode, certamente, ser um leitor apressado.Mas não precisa, por outro lado, ser umleitor erudito ou especialmente instruído:deve ser um leitor empenhado emcontinuar ouvindo”.Quer dizer, em vez da solução pronta,de pacote, torna-se necessário o convívioconstante e despreocupado com as46 Revista 18


LETRAS E ARTESAporias da cultura, depoisdo século da barbárieVolume de ensaios de Márcio Seligmann-Silva reúne, de maneira original e sem solução de continuidade,alguns dos temas fundamentais da reflexão humanística contemporânea. Por Susana Kampf LagesOlocal da diferença. Ensaios sobrememória, arte, literatura e tradução,título de volume recém-lançadoque traz 26 ensaios do crítico e teórico deliteratura Márcio Seligmann-Silva, já dáuma idéia da complexidade dos temas eproblemas que serão tratados ao longo desuas 357 páginas. Muito diversos e aomesmo tempo muito afins entre si, estestextos são resultado da compilação detrabalhos apresentados em diferentesocasiões, no âmbito da atuação acadêmicae ensaística do autor. O título O local dadiferença faz alusão a dois autores dedestaque no panorama dos estudos humanísticos,que se inscrevem no âmbito do pósestruturalismoou da pós-modernidade.São eles o intelectual indo-britânicoHomi Bhabba, que ganhou notoriedadecom o livro O local da cultura, em que trata,a partir da situação pós-colonial, de temasafins aos de Seligmann-Silva, e o filósofojudeu argelino e francês, recentementefalecido, Jacques Derrida, que cunhou oconceito de diferença/différence, a quem édedicado especificamente um dos ensaiosdo volume, e cujo pensamento perpassa,de uma forma ou de outra, todos os textoscontidos neste volume.O jogo de alusões anunciado no títuloremete, ademais, a outro aspecto da escritade Seligmann-Silva: a incorporação doprincípio construtivo haurido do primeiroromantismo alemão e levado ao paroxismopela literatura da modernidade e dapós-modernidade, qual seja, a justaposiçãode textos que funcionam como fragmentosde reflexão. Nesse livro, ímpar pelo nívelde erudição e de agudeza do pensamento,cada ensaio compõe uma totalidadecoerente em si, mas aberta e comunicantecom os demais ensaios do mesmovolume, e com outros do autor e de outrosautores, à maneira de uma composiçãoconstelar – imagem cara a outras duasreferências fundamentais do autor: omultivalente ensaísta e escritor alemãoWalter Benjamin e o igualmente multifacetadopoeta brasileiro Haroldo de Campos.Trata-se de uma obrasingular no panoramados estudos literáriose culturais brasileiros,também pela rarafaculdade de conjugaramplitude temáticae histórica comprofundidade analíticae originalidadeinterpretativaEmbora em parte ainda tributária doestilo expositivo do filosofar, criticadopelos românticos, a escrita de Seligmann-Silva liberta-se dele ao justapor textos sema preocupação de compor um todo inteiramentefechado. Trata-se de uma obrasingular no panorama dos estudos literáriose culturais brasileiros, também pelarara faculdade de conjugar amplitudetemática e histórica com profundidadeanalítica e originalidade interpretativa.Entretanto, toda esta carga positiva temnaturalmente sua contrapartida numaexigência: a de um leitor igualmenteculto, ou, pelo menos, um leitor que tenhao mesmo desejo de percorrer as sinuosidadesda trajetória da constituição, oumelhor, da formação (Bildung) de umpensamento que trabalha permanentementeno registro de aporias e de paradoxos.Seguindo de perto as solicitaçõesdos românticos de Iena, a obra deSeligmann-Silva não possui um fiocondutor único; o leitor deve selecionaros fios da complexa rede temática econceitual que o autor constrói.Aqui poderemos apenas seguir, demodo extremamente superficial, algunsdesses fios. Alguns deles nos são indicadospelo subtítulo: “Ensaios sobre memória,arte, literatura e tradução”. Ao denominara obra como um conjunto de ensaios, oautor assume a visada subjetiva que passade um objeto ao outro, deixando-se determinarpor cada um deles. Entretanto, demodo algum encontramos certa arbitrariedadee o aberto impulso egóicopresente no ensaísmo tradicional: cadauma das opiniões emitidas e reflexõesapresentadas encontra lastro em uma(enorme) bibliografia que aparece demodo explícito no corpo do texto, naforma de citações, no melhor estilo deuma escrita acadêmica que preserva adensidade sem ser pernóstica.A memória é um dos temas centrais dolivro e é anunciada desde a bela capa queapresenta a foto de uma instalação daartista plástica brasileira Leila Danziger,denominada Greifswalder Str. 138. E é otrabalho da memória que dá sustento a48 Revista 18


LETRAS E ARTEStodo o projeto intelectual que atravessaeste livro, e que tem como um de seusnúcleos sensíveis o complexo de questõeshumanas, éticas e estéticas, desencadeadopelo evento histórico que mais marcou oséculo passado: a Shoá, o genocídio demilhões de judeus nos campos de extermínionazistas.O livro coloca-se, então, por uma éticada memória – e este também poderia serum subtítulo fiel à reflexão que pacientementese estrutura neste livro, que afinaltambém tem sua dimensão autobiográfica,já que a família da mãe do autor foi obrigadaa deixar sua cômoda vida burguesaem Berlim para buscar uma vida possívelno exílio brasileiro, na década de 30.Esta vivência familiar é, entre outros, odesencadeador de uma busca intelectual,através da qual o autor põe em prática deforma eficaz o difícil diálogo judaicoalemão– talvez só possível, ou pelomenos, possível de modo crítico, menosapaixonado, fora da Alemanha. O imperativode descrever o indescritível, pois deuma abjeção impensável, intraduzível empalavras, se impõe a partir da necessidadede sobreviventes darem seu testemunhodo Genocídio (e todos os demais genocídiosda história do século 20, bem comodos assassinatos políticos perpetrados porditaduras latino-americanas). Dar testemunhoé uma necessidade imperiosa –mas, simultaneamente, uma impossibilidade,pois em sua dimensão terrificante,repulsiva e sinistra, os eventos ultrapassamos limites do representável. Aliteratura de testemunho – novo gêneroliterário por força própria? – radicaliza oquestionamento das fronteiras entre reale ficcional e o próprio estatuto da literaturaem si, evidenciando as intrincadasrelações entre a dimensão ética e estéticada obra literária.O leitor poderá acompanhar osmeandros complexos dessas relações aoseguir as reflexões de Seligmann-Silvasobre a obra de Binjamin Wilkomirski,suíço que se fez passar por sobreviventede Auschwitz, e obteve sucesso no panoramaliterário e cultural internacionalcom suas falsas memórias, e em váriosoutros ensaios que tematizam os efeitostraumáticos de catástrofes coletivas (e demodo paradigmático, a Shoá) sobre a vidasocial, a arte e o pensamento. Ao perseguiras origens e desdobramentos históricosde conceitos como o sublime e o abjeto, osinistro (o Unheimlich, em termosfreudianos), o trauma, o autor realiza umaverdadeira empresa arqueológica, trazendoà luz os lados mais sombrios e maisambíguos de nossa humanidade, assimcomo eles se manifestaram historicamentena arte, na literatura e nopensamento ocidental.Ao longo de todo o livro, afirma-se umacrise da representação, constituída comoculminância de uma série de tensões queacompanham a história da arte e da literaturano Ocidente. Mais do que historiarfatos e conceitos de maneira arquivística(embora o volume de informações sejaenorme), o livro explicita e problematizaas formas tradicionais de pensar o real ede representá-lo. Nesse sentido, ganha particularrelevo um processo fundamental,presente em toda forma de representação:a tradução. É a tradução o operador deO trabalho da memóriaque dá sustento a todo oprojeto intelectual queatravessa este livro temcomo um de seusnúcleos sensíveis ocomplexo de questõeshumanas, éticas eestéticas, desencadeadopela Shoápassagens entre as polaridades que o autoranuncia, para imediatamente relativizar edissolver no movimento da reflexão.Entre passado e presente, entre próprio,nacional e estrangeiro, entre imagem epalavra, entre eu e o outro, entre essênciae fenômeno, os segundos termos ressignificame problematizam os primeiros,num movimento espiralado em que asambigüidades, antinomias, contradições,Márcio Seligmann-Silva: “Crise darepresentação atinge o paroxismoante o imperativo de narrar o inenarrável,isto é, a abjeção dos genocídios”paradoxos e aporias são apresentados semque a reflexão os resolva num movimentounificador; antes, eles são como quepotencializados e sintetizados na figuraexemplar do double bind, do duplovínculo, aquela situação em que umprocesso se afirma como simultaneamenteimpossível e necessário.A tarefa do escritor/tradutor, do artistae também do crítico é <strong>hoje</strong> mais do quenunca marcada por um duplo vínculo. Ounós o aceitamos, e procuramos atender aoimperativo de narrar o inenarrável (e, nolimite, uma resenha crítica é sempre oproduto desse impulso, pois nadasubstitui a leitura direta do livro resenhado),ou nos abandonamos ao silêncio.Também ao leitor caberá fazer a suaescolha no diálogo aberto por este livrocomplexo e fascinante. Susana Kampf Lages é professora delíngua e literatura alemã na UniversidadeFederal FluminenseO local da diferença. Ensaios sobrememória, arte, literatura e traduçãoMárcio Seligmann-SilvaEditora 34, 2005. 547 p.R$ 46,00Sergio MeklerRevista 18 49


LETRAS E ARTESRomance daintolerânciaReproduçãoMarco Frenette lê novo romance de CésarVidal, que narra a vida de Maimônides sob osigno do exílio, da perplexidade e da solidãoOtítulo do livro do escritor madrilenhoCésar Vidal, Maimônides –O Médico de Sefarad, sugere ummergulho na vida e obra do médico e filósofojudeu do século 12. Não é o que acontece.Seu embate médico-filosófico quedesembocou na aceitação da lógicaaristotélica na Idade Média não foiromanceado; e nem se criaram situaçõesficcionais para sua aproximação críticada filosofia com a medicina. Maimônidestampouco é citado pelo escritor como oautor de Os 13 Princípios da Fé, da MishnêTorá ou do Guia dos Perplexos, obraspilares do pensamento judaico. Naturalmente,há passagens referentes à vida deMoshê ben Maimon, ou Maimônides, ousimplesmente Rambam (acrônimo deRabi Moshe bem Maimon) – mas, ao fimda leitura, ninguém entenderá por que eleé comparado a Moisés, tal sua importânciapara o judaísmo.Sendo assim, é preciso trocar de expectativapara apreciar esse romance. OMaimônides em questão tem muito maisa ver com a necessidade de Vidal – militantedos direitos humanos – de usar umpersonagem para aglutinar as diversasfacetas de um tema que lhe é caro: a vidaasfixiante que se leva em qualquer lugardominado pelo fanatismo religioso e porsua filha mais perigosa, a intolerância. Apartir dessa intenção narrativa, surge umretrato vívido de dois importantes aspectosda história judaica: a necessidade dodeslocamento para continuar a viver e ainabalável fé no Deus único, a despeitodas circunstâncias mais terríveis.Para tanto, o período histórico abordadonão poderia ser mais propício.Maimônides nasceu em 1135, na cidadeespanhola de Córdoba. Era uma época emque, mesmo sob domínio do Islã, asculturas islâmica, judaica e cristã conviviame participavam da vida públicalocal. Porém, em 1148, Córdoba foitomada pelos Almóadas, guerreiros quepregavam a restauração da fé islâmica emsua radicalidade, dando pouco valor àvida de seguidores de outras religiões enão tolerando muçulmanos com os maisleves traços de liberalidade. Instalado oclima de terror, Maimônides e sua famíliafogem. A partir daí, começa a peregrinaçãodo personagem por vários lugaresda Espanha, até se assentar como médicona cidade de Fostat, no Egito.Escrito num tom intimista e naprimeira pessoa, o romance mostra umhomem que, a despeito de sua sapiência,retidão e importantes serviços prestados àcomunidade, vive sob o jugo da subserviênciadevido à sua condição de judeuem terra estrangeira. A cada chamadapara uma consulta na casa de um muçulmano,não sabe se voltará com vida, poisum deslize verbal, o toque na mulhererrada ou algum suposto desrespeito aAlá poderá significar seu fim.Um dos trechos mais marcantesdescreve a volta do pai de Maimônidespara casa, em Córdoba, após ter ido negarsua fé, ajoelhando-se aos pés do lídermuçulmano e clamando, em árabe: AsaduAl-lah ila-lah ua Muhammad al-rasul Al-lah– Não há outro Deus senão Alá, e Maoméé o seu profeta. Fez isso sob extremapressão, para evitar que seus patríciosfossem massacrados. Mas, ao chegar à rua50 Revista 18


LETRAS E ARTESde sua casa, a vê tomada por pessoas nemum pouco interessadas em explicações.Pessoas que durante anos foram até seular para receber ensinamentos judaicos,conselhos matrimoniais, pedir dinheiroou simplesmente demonstrar respeito.Alguns dos rostos eram de amigos que jáhaviam sido queridos e fiéis. No entanto,era chegada a hora de ele provar umpouco da intolerância religiosa, não maisvinda dos previsíveis muçulmanos, masde sua própria comunidade. Ele é chutado,cuspido, esbofeteado e seu corpo é cobertocom lixo e excrementos. Como um Cristolocal e deslocado, ele suporta sua viacrucis, entra em sua casa com os ombrosarqueados, e se põe a rezar ao seu verdadeiroe único Deus.Ao ver seu pai passar de respeitadoDayan (juiz) a execrável apóstata, plantaseno espírito de Maimônides umaconvicção que o acompanhará por toda avida: “Quando nos encontramos maisfelizes e quanto mais despreocupados nossentimos, os tempos mudam, toma opoder um rei que não chegou a nosconhecer e nos vemos submetidos a umanova perseguição”. Ele também aprende,com a visão do pai machucado e sujo,rezando na sala mal iluminada enquantoas pessoas que ele tanto ajudara aindagritam do lado de fora querendo suamorte, que os desígnios do Criador sãorealmente inescrutáveis.Esses momentos de tônus literário semesclam com outros mais frouxos, nosquais se percebe a pena do autor manipulandoos personagens. E, há, também,momentos impagáveis de humor involuntário,como, por exemplo, quando Vidalconcebe Maimônides a discorrer sobre aobviedade de o gênero humano sermarcado pela desigualdade: “Basta lembrarque de Caim e Abel, os dois primeirosdescendentes de Adão e Eva, um foi justoe piedoso, e outro um assassino cruel. (...)faz-se imprescindível que sejamos diferentes.Se só houvesse carpinteiros, quemse ocuparia de semear a terra? Se existissemsó açougueiros, quem construiriaas casas? (...) Por outro lado, não querosequer imaginar as conseqüências casotodos os filhos de Adão resolvessem setornar estudantes de filosofia”.Entre altos e baixos, nos deparamoscom trechos em que Vidal parecedominar a arte do romance histórico naprimeira pessoa, a ponto de atingir umadensidade poética comparável a obrasmestras do gênero, tais como Memórias deAdriano, de Yourcenar, e Pela Mão do Anjo,de Dominique Fernandez. É assim quandoMaimônides descreve seu amor platônicopela bela Susana, judia de olhos claros ecabelos castanhos, que acaba ficando paratrás por conta de sua fuga de Córdoba. Anostalgia acentuada pelo duro sentimentode desterro também é descrita commaestria poética. As partes em queMaimônides rememora os cheiros, as corese as texturas que compõem o cenárioquotidiano de sua doce e longínquaSefarad (Al-Andalus, para os muçulmanos,Um personagem paraaglutinar as diversasfacetas de um tema queé caro ao autor: a vidaasfixiante que se levaem qualquer lugardominado pelo fanatismoreligioso e por suafilha mais perigosa,a intolerânciae Hispania, para os cristãos) tem umaagradável semelhança com os trechosmais poéticos das declarações de amor àcidade de Alexandria feitas por LawrenceDurrell em seu famoso Quarteto.O autor também se preocupou emdemonstrar quais são os caminhos edescaminhos que levam à estupidez. Emseus anos de formação, Maimônides ouvehistórias de tolerância e generosidadecontadas por sábios judeus, que servemcomo antídoto ao veneno do fanatismoque invadia as almas dos jovens estudantesda Torá. E ao se deparar com a brutalidademuçulmana, ele próprio começa a tomarconsciência dos riscos que correra emseus estudos das Sagradas Escrituras:“Nessa época, vivi a embriagante sensaçãode acreditar que tinha nas mãos as chavesda explicação de qualquer fato quepudesse ocorrer sob o sol. A leitura,durante várias horas do dia, foi criandoem mim a convicção de entender tudo e –o que era pior – de poder tudo explicar”.Como César Vidal – doutor emhistória, teologia e filosofia – tem altaspretensões estéticas, ele optou pelo entrelaçamentocronológico. Capítulos quecontam a infância de Maimônides e suaformação intercalam-se com outros sobresua vida adulta. A deficiência dessa estruturaestá no fato de os capítulos, muitocurtos, causarem insatisfação permanente,em vez de gerar o pretendidosuspense ao deixar uma história inacabadade sua infância para voltar a outra,igualmente inacabada, de sua vida adulta.Essa construção literária é usada comfreqüência por escritores que querem verseus livros transformados em filmes, e,por isso, já os escrevem a meio caminhoda linguagem cinematográfica, facilitandoo trabalho do roteirista. Mas é umproblema fácil de resolver: basta ler emseqüência todos os capítulos referentes àsua infância e adolescência, e depoisvoltar e ler todos os referentes à sua vidaadulta. Desse modo, evita-se a estruturamanquitola forjada pelo autor, e a leituraganha fluência.A despeito desses problemas estruturaise de certa frouxidão narrativa, olivro vale a pena por conta da criação desentimentos e emoções que evidenciam aperigosa espiral descendente causada pelaintolerância religiosa. Há uma frase deMaimônides que Vidal poderia ter usadocomo epígrafe: “Há coisas que estãodentro do âmbito e da capacidade deapreensão da mente humana; há outrasque o intelecto não pode, de maneiraalguma, captar – as portas da percepçãoestão fechadas”. Esse romance trata exatamentedisso, de pessoas que se debatemdiante de portas mentais e espirituais quese recusam a abrir. Marco Frenette é jornalistaMaimônides, O Médico de SefaradTradução de Ledusha SpinardiRelume Dumará, 312 p.R$ 44,90Revista 18 51


LETRAS E ARTESGUSTAV MAHLER:a criação de um íconeFotos: reproduçãoO grande compositor, perseguidoem vida em Viena e esquecidopor décadas a fio, tornou-se <strong>hoje</strong>uma espécie de íconepropagandístico da culturaaustríaca. Klaus Billandacompanha esta singulartrajetória póstumaGustav Mahler: busca pelos problemas fundamentais da existência humana, pacifismo,engajamento contra a opressão social e posicionamento em favor da integridadeda natureza fizeram do compositor um homem à frente de seu tempoHá cinqüenta anos foi fundada, emViena, a Sociedade InternacionalGustav Mahler (em alemão,Internationale Gustav Mahler Gesellschaft ouigmg). Isto acontecia numa época em queo anti-semitismo da primeira metade doséculo 20 ainda se encontrava em plenovigor em países como a Alemanha e aÁustria, o que implicava, entre muitasoutras coisas, total descaso para com amúsica de Mahler.Quando vivo, Mahler (1860-1911),tanto por sua personalidade artísticaquanto por sua obra, foi alvo de intensaspolêmicas – e de desprezo por boa parteda crítica da mais importante metrópolemusical européia de então. A incompreensãoestética e o preconceito antisemitao acompanhariam também postumamentee foram raros os maestros que,nas décadas que se seguiram à sua morte,se empenharam na apresentação de suasobras. Para os editores, ao longo de toda aprimeira metade do século 20, a publicaçãode partituras de Mahler representavaum risco comercial considerável.Durante os anos 60, porém, uma viradatotalmente inesperada levou ao início deuma era de sucessos mahlerianos semprecedentes, que perdura até <strong>hoje</strong>. Intérpretesconhecidos e pesquisadores descobriramo compositor, enquanto gravaçõesdiscográficas divulgavam uma obra atéentão desconhecida do grande público.Há uma série de fatores envolvidos nestatransformação do “patinho feio” damúsica vienense em figura central dahistória da música do século 20. A visãode mundo de uma geração mais jovemcertamente teve influência central aqui: odilaceramento interior de Mahler, suabusca pelos problemas fundamentais daexistência humana, seu pacifismo, seuengajamento contra a opressão social eseu posicionamento em favor do respeitoà integridade da natureza – tudo istotornou-se, subitamente, muito atual paraa geração que nasceu no pós-guerra, e quequeria romper com os paradigmas do universode seus pais.Desde 1955 a Sociedade InternacionalGustav Mahler, sediada em Viena,também passou a contribuir de maneirasignificativa para esta história desucesso. A iniciativa foi da Filarmônicade Viena, que convidou o maestro BrunoWalter, pioneiro na divulgação da obra docompositor, a ocupar o cargo de primeiropresidente. Mas, afinal, quem acabou porocupar este posto foi o vienense ErwinRatz, teórico da música e ex-aluno deArnold Schönberg, eleito para o posto nareunião da assembléia geral da instituiçãorealizada na sede da Filarmônica de Vienaem 11 de novembro de 1955. BrunoWalter foi nomeado presidente de honra,e da primeira diretoria da instituiçãoparticiparam, entre outros, TheodorAdorno, Rafael Kubelik, Ernst Krenek,Donald Mitchell, Eduard Reeser, AlfredRose e Georg Solti. Hoje, a Sociedade é ocentro de pesquisas mais importante arespeito da vida e da obra de Mahler, e seutrabalho de recuperação e divulgação deum dos mais ricos legados musicais daÁustria foi o tema de uma recente exposição,realizada pelo Museu Judaico deViena, por ocasião da comemoração doJubileu de Ouro da Sociedade, que levou otítulo de Mahleriana.Organizada pelos curadores ReinholdKubik e Erich Wolfganf Partsc, a mostrafocalizou a história de uma instituiçãocujo objetivo tem sido a transmissão deum legado artístico, mas trata, igualmente,da criação de um ícone, isto é, dosurgimento de uma figura de culto, que52 Revista 18


LETRAS E ARTESCasinhas que Mahler mandou construir em meio ao idílio da paisagem dos Alpes austríacospara compor: sensibilidade do artista tinha na natureza seu mais forte manancial, e sófoi reconhecida, em vida, por poucos espíritos sintonizados com seu próprio tempoentrementes se transformou numa espéciede cartaz de propaganda do patrimôniocultural austríaco.O que <strong>hoje</strong> soa como evidente, e emparte conduz à mercantilização do nomede Mahler, soaria altamente improvável àépoca da fundação desta Sociedade. Paracitar só um exemplo, gravações discográficasdo ciclo de canções Das Lied von derErde (A canção da terra) de antes de 1955,são praticamente desconhecidas (um dosprimeiros registros foi realizado porBruno Walter em 1936). Hoje há nomercado mais de 80 gravações diferentesem cd desta obra.Isto não significa, porém, que Mahlertenha sido desconhecido em seu tempo.Sempre houve pessoas sensíveis o suficientepara perceberem a enorme riquezae profundidade de sua música, embora amassa do público musical vienense de suaépoca o tenha desconsiderado. Entre osque já o reconheceram em vida está, porexemplo, o escultor francês AugusteRodin, que criou, em 1909, uma série debustos do compositor – e que tambémincorporou suas feições a uma esculturaque retratava Mozart, realizada em 1911,pouco depois da morte de Mahler, comose o fundisse, para a posteridade, com esteoutro mito da música austríaca.Um aspecto interessante abordado poresta mostra é ao amor incondicional deMahler pela natureza, sempre presenteem sua obra. O compositor dedicava inteiramenteà criação musical os meses deverão, quando tinha férias de suas incumbênciascomo regente da Ópera Imperialde Viena, e no idílio dos Alpes austríacosda virada do século recolhia-se empequenas cabanas que lhe permitiamafastar-se dos afazeres quotidianos ededicar-se inteiramente à criatividade.Essas chamadas “casinhas de composição”existiram em localidades como junto aolago Atter; em Klagenfurt-Maiernigg nolago Wörth e em Toblach (<strong>hoje</strong> Dobbiaco),no Tirol do Sul .Em Steinbach, onde passava os verõesa partir de 1883, Mahler empreendia longascaminhadas, que lhe proporcionaraminspiração para sua 2ª e 3ª sinfonias, bemcomo para algumas das canções do cicloDes Knaben Wunderhorn. Conta-se que,ao contemplar a vista esplêndida dasmontanhas ali, ele teria dito: “Tudo isto jáAuguste Rodin criou,em 1909, uma série debustos do compositor etambém incorporou suasfeições a uma esculturade Mozart, realizada em1911, pouco depois damorte de Mahlerfoi transformado em música”. Maierniggfoi seu refúgio criativo entre 1901 e 1907,onde ele passou os primeiros verões coma esposa Alma e as filhas Anna e Maria, eonde criou suas sinfonias de números 5a 8, seu ciclo de canções baseado empoemas de Rückert, e completou o cicloDes Knaben Wunderhorn. Em Toblach,onde passou os verões de 1908 a 1910,compôs sua 9ª sinfonia, e a 10ª, inacabada,assim como Das Lied von der Erde(A canção da terra).Comparar a simplicidade espartanadestas casinhas com a enorme complexidadedas obras ali criadas, bem como suaimportância para a história da música doséculo 20, fala muito sobre a genialidadedo compositor – e sobretudo sobre a realorigem de sua musicalidade. Estascasinhas de Mahler, que foram totalmenteabandonadas e esquecidas naÁustria no pós-guerra, transformaram-se<strong>hoje</strong> em memoriais graças à ação da SociedadeInternacional Gustav Mahler. Omundo onírico dos Alpes do início doséculo 20 certamente voltará à memóriade quem, tendo uma imagem dessesdespojados retiros musicais de Mahler,voltar a ouvir sua música grandiosa.Mahler foi também regente titular daÓpera Imperial de Viena, da qual se tornoudiretor artístico em 1897. Vale lembrarque converter-se ao catolicismo eraconditio sine qua non para ocupar este postode prestígio na burocracia artística dosHabsburgos. Depois de 10 anos no cargo,tendo sofrido perseguições não obstantesua conversão, Mahler abandonou aÓpera Imperial e passou algum temponos Estados Unidos, tornando-se regentetitular da Filarmônica de Nova York eregendo também no Metropolitan OperaHouse. Voltou à Áustria pouco antes demorrer de uma doença cardíaca incurável.Sua máscara mortuária, de 1911,mostra a face de um músico prematuramentefalecido, marcado pelo dilaceramentoe pelo amargor, e que certamentenão suspeitava que, na passagem doséculo 20 para o 21, sua música ombrearia,no gosto do público, com a dosmaiores compositores da história. Klaus Billand é crítico de ópera da revista Der NeueMerker, de Viena. www.der-neue-merker.atRevista 18 53


CONTOAs letras fragmentadasde Margo GlantzAdriana Kanzepolsky discute a escrita irreverentede uma autora nascida no México, filha de imigrantes judeusdo Leste europeu, que tem como objetivo minar a aparentetranqüilidade reinante em torno das palavrasIlustração: Monica Nudelman KaliliNo capítulo XXII de Las Genealogías,livro em que reconstrói asmemórias de seus pais, a escritorajudia mexicana Margo Glantz, nascida em1930, relata uma viagem ao Brasil, na qualcomprou uma fitinha do Senhor doBonfim. De volta à cidade do México, elatenta ocultá-la dos olhos de seu pai, opoeta ídiche Jacobo Glantz. Este, porém,imediatamente percebe o amuleto em seupulso e comenta: “O que é isso? Chozerain,porcarias.” “São superstições de mamãe,quem sabe de onde ela as tirou”, comentasua filha Renata, ao mesmo tempo em quemostra ao avô sua própria fitinha.As duas páginas e meia deste capítulose limitam a essa viagem, que fez juntocom outras escritoras para propor aoMinistro da Educação do Brasil da épocaum intercâmbio entre autoras mexicanase brasileiras. O relato da viagem mantémo mesmo tom leve, brincalhão e despreocupadodos demais capítulos do livro, e anarrativa do encontro com diversas escritorase psicanalistas de prestígio no Brasilarticula-se ao redor da reação desse grupode pessoas quando descobrem a “infame”fitinha. Com sua costumeira agudeza,Margo Glantz deixa claro que, apesar dealgumas reações espantadas, uns mais,outros menos, todos contavam comfitinhas ou com algum outro tipo de amuletopara se protegerem do azar.Apesar desta viagem e de algumasoutras, de caráter acadêmico, que atrouxeram ao Brasil, Margo Glantzcontinua sendo uma figura desconhecidae quase inédita no país. A única exceção éseu curto romance Aparições, publicadopela editora Autêntica, de Belo Horizonte,em 2002.Descendente de imigrantes judeusrussos, ela é uma figura importante noMéxico. Mas é também alvo de controvérsias,por suas posições políticas eporque sua narrativa escapa aos cânonestradicionais da literatura desse país.Autora de uma extensa obra de ficção,escreveu também grande número deensaios, marcados por uma vasta erudição,que cobrem um espectro que vai daliteratura colonial aos debates em tornodo lugar da mulher na sociedade contemporânea.Uma das maiores especialistas54 Revista 18


CONTOReproduçãoMargo Glantz: erudição a serviço da irreverência, da rupturados cânones e do esfacelamento dos chavões da culturamexicanas na poetisa barroca Sor JuanaInés de la Cruz, a escritora, membro daAcademia Mexicana da Língua, é colunistade alguns periódicos de seu país e,desde 1995, professora emérita da Faculdadede Filosofia e Letras da unam (UniversidadNacional Autónoma de México).Margo Glantz estreou na escrita deficção com Las mil y una calorías (noveladietética), de 1978, à qual seguiram, entreoutros títulos, Doscientas ballenas azules... y...cuatro caballos, de 1981; Las genealogías,que entre 1981 e 1997 teve diversasedições, nas quais ia acrescentando novoscapítulos; Zona de derrumbe, uma coletâneade contos editada em 2001 naArgentina; El rastro e Historia de una mujerque caminó por el camino de la vida conzapatos de diseñador, ambos publicados naEspanha em 2002 e 2005, respectivamente.Se fizéssemos um corte diagonal nanarrativa que Margo Glantz produziu aolongo destas três décadas, reconheceríamosnela algumas marcas e algunsnúcleos que se reiteram no transcurso dosanos. Refiro-me a textos que não sedeixam classificar facilmente em umúnico gênero, mas que transitam pelorelato de viagem, pelo romance, peloconto, pelo ensaio, pela reportagem, pelasO humor de MargoGlantz confronta a autora– e também aqueles quea cercam – mesmoquando se reveste deuma acidez que chega àbeira do sarcasmomemórias pessoais, entre outros, numaprosa que já foi qualificada de indômita.Uma prosa que oscila entre o registroculto e o popular, trate-se de estribilhos deboleros, de clichês do espanhol mexicano,que pontuam El rastro, por exemplo, ou deprovérbios, frases feitas e piadas emídiche, como acontece em Las genealogías.Mesmo que a erudição possa, dissimuladamente,entrar em seus textos de ficção,nos quais encontramos inúmeras referênciasa outros escritores e a outras literaturas(a inglesa, a russa ou a ídiche) e quetenha uma preocupação constante com alíngua que se traduz em um trabalho obsessivoem torno da etimologia das palavras,devemos destacar que, nestes procedimentos,o irreverente tem primazia sobreo solene. Para sermos mais justos, deveríamosdizer que eles foram colocados aserviço da irreverência, não porque a escritoranão leve a sério a alta cultura, massim porque, no processo de despedaçar aspalavras, de rasgar seu sentido canônico,desdobrando-o em suas contradições,Glantz elabora uma escrita que aposta emminar a tranqüilidade suspeita que rodeiaessas palavras, expressões ou discursosque, por serem comuns e repetidos,Revista 18 55


CONTOficaram invisíveis e, assim, adquiriram ocaráter de verdades irrefutáveis.Claro que não existe irreverência semhumor, o que faz deste uma das característicasconstantes de sua narrativa. Trata-sede um humor que a confronta e confrontaaqueles que a cercam, mesmo quando sereveste de uma acidez que chega à beirado sarcasmo, como em Historia de unamujer..., ou quando oscila entre a inocênciae a ironia, como acontece em Lasgenealogías, em que o humor parece ter sidoposto em cena, dilatada e repetidamente,expandindo a frase que no começo do livrodefine os judeus “como pessoas menores,com um sentido de humor maior”.Na prosa de Glantzreiteram-se algunsnúcleos que convocamsua escritura –obsessões, a partir dasquais constrói umanarrativa que se internana vida da matéria e quefaz do quotidiano, doinsignificante, o objetodo relatoDizia eu antes que na prosa de Glantz,seja a de ficção ou a ensaística, reiteram-sealguns núcleos que convocam sua escritura– obsessões, como ela as denominaem uma reportagem. Refiro-me, emparticular, ao corpo, em suas manifestaçõesde prazer ou de dor, ou a um corpofragmentado em pés, cabelos e dentes, àsviagens, à língua, alheia ou própria, aolugar da mulher não só nas passarelas dealta costura, mas também nos campos deextermínio nazistas, e à roupa, em particularos sapatos, objeto que a fascina e éprenda de sua memória pessoal. Obsessõesa partir das quais constrói uma narrativaque se interna na vida da matéria e que fazdo quotidiano, do insignificante, o objetodo relato.“Todos, sejamos nobres ou não, temosnossas genealogias. Eu descendo doGênesis, não por soberba, mas por necessidade”,escreve jocosamente Margo Glantzno prefácio de Las genealogías, livro em quese propõe indagar a instabilidade quereconhece como condição própria porque,como diz, “e tudo é meu e não o é, e pareçojudia e não pareço, e por isso escrevo estasminhas genealogias”. Paralelamente, elase dedica à tarefa incerta de fixar amemória daquilo que foram as vidas deseus pais, Jacobo e Luci Glantz. “Ligo ogravador (com todos os agravantes, assegurameu pai) e inicio uma gravaçãohistórica, ou pelo menos assim me parece– e também a alguns amigos. Quem sabefixe a lembrança”, anota no primeiro capítulo(itálico meu). Estamos, então, diantede uma memória que se grava e que,depois, por meio da narradora, setransforma neste gênero escorregadio quesão as memórias escritas. Trata-se de umamemória a três, que se desdobra numaextensa conversação pontuada pelaslembranças da própria Glantz, e que se fazna fala e na boca destes outros, que sãoseus pais. Uma memória que, na conversação,desliza entre o russo, línguamaterna dos pais, o ídiche, uma línguameio trazida da Europa e que terminamde aprender na América, e o espanhol,idioma materno da narradora e línguasempre precária na boca dos pais.Neste trânsito entre as três línguas, naacumulação de versões, na oscilação entrea lembrança e o esquecimento, na multiplicidadede tempos que o atravessam, Lasgenealogías é uma tentativa de reterritorializarJacobo e Luci Glantz, isto é, de criaruma zona de segurança, ancorada napalavra escrita, para estes imigrantes que,ao chegar ao México, são uma espécie denáufragos, faltos de território e de línguae, até certo ponto, despidos, porque suaroupa e/ou seu aspecto é inadequado, oque os expõe demasiadamente seja ao risoou à agressão.Mas, como contar vidas que se fizeramem uma terra e em uma língua distintasdas da narradora e das do leitor a quem olivro é destinado? Duas são as estratégiasa que Glantz recorre: pontuar estas56 Revista 18


memórias com episódios que se articulamem torno à comida e fazer de Lasgenealogías o relato de um longo exercíciode tradução em que as experiênciasvividas em russo ou em ídiche sãocontadas em um espanhol permeado porestas línguas européias.Desde o primeiro capítulo, a comidaaparece como uma espécie de pano defundo que acompanha os encontros deMargo Glantz com seus pais. E esse atoquotidiano e trivial de reunir-se à mesa ecomer comida da Europa Oriental não sóproduz um salto da memória, mastambém funde passado e presente,convertendo-se, deste modo, em memóriae genealogia.Por seu lado, a tradução é uma práticaque permeia e organiza o relato. Conseqüentemente,ser intérprete é uma dasfunções que a narradora assume. Entre afronteira do espanhol e do ídiche, elatraduz e interpreta. Translada à margemdo espanhol mexicano o russo e o ídichede seus pais, assim como também transladaao universo cultural mexicano seushábitos gastronômicos e culturais. Aotraduzir, então, intervém como “lançadeiraentre duas culturas diferentes”, istoé, intromete-se, corrige, interpreta, acrescentadados históricos que contextualizamas lembranças fragmentadas deseus pais. Uma tradução que articulasobre duas estratégias: o parêntese, querepete em espanhol a palavra ou expressãoque originalmente escreve em ídiche euma segunda, na qual não importa tantoo sentido literal dos termos, mas sim apossibilidade de imaginar o passadoeuropeu de Jacobo e Luci Glantz. Nesteponto, ela apela a autores como IsaacBabel, Bashevis Singer ou Kafka, que emsua literatura já narraram esta realidadeque não lhe pertence.É assim que, entre o começo e o fimdo texto, um círculo se fecha ao redor dapalavra escrita. Se a narradora descendedo Gênesis, a literatura judeo-européiaparece ser uma via-régia para traduzirao espanhol e à realidade mexicanaa cultura européia que foi deixadapara trás. Adriana Kanzepolsky é doutora em LiteraturaHispano-Americana pela USP e doutorandaem Teoria Literária na UnicampGenealogias (Prólogo)Todos, sejamos nobres ou não, temos nossas genealogias. Eu descendodo Gênesis, não por soberba mas sim por necessidade. Meus pais nasceramnuma Ucrânia judia, muito diferente da de <strong>hoje</strong>, e ainda muito mais diferentedo México em que nasci, este México, Distrito Federal, onde tive a sorte dever a vida entre os gritos dos mercadores de La Merced, estes mercadores aquem minha mãe observava, assombrada, vestida totalmente de branco.A mim ninguém pode acusar, como a Isaac Bábel, de preciosismo ou debiblismo, pois ao contrário dele (e de meu pai), eu não estudei hebraico, nema bíblia, nem o Talmude (porque não nasci na Rússia e porque não souhomem) e sem dúvida muitas vezes me confundo, pensando como Jeremiase evitando como Jonas os gritos da baleia. Como Joana d´Arc ouço vozes,porém nem sou donzela nem quero morrer na fogueira, ainda que me sintaatraída pela beleza destas cores berrantes, de que Shklóvski reclamava aBábel quando ainda não eram velhos, e que agora ele recorda com nostalgia, poisé velho (Shklóvski, porque Bábel morreu num campo de concentração naSibéria em 14 de março de 1941).Talvez o que mais me atraia de meu passado em meu presente judaicoseja a consciência das cores, do berrante, do grotesco, esta consciência quefaz dos judeus verdadeira gente menor com um senso de humor maior, porsua crueldade simples, sua desaventurada ternura e até por sua ocasionalsem-vergonhice. Ma atraem estas velhas fotografias de um mascate lituano,com sua barba pontiaguda (propícia às perseguições) e seu abrigo desmesurado,olhando a câmera com um sorriso “bêbado e roliço”, enquanto oferecemercadorias baratas. A seu lado aparece, solene porém desalinhado, ovendedor de roupas de mortos, chacal dos currais, porque sabe cheirar amorte próxima daqueles cujos trajes haverá de vender. Também me atraemestas crianças do cheder (escola judaica) que vão acompanhando um avô, omenino sem sapatos e o avô com o olhar desgastado e a barba branca,porém não pertenço a eles, apenas uma parte adormecida de mim mesma aeles pertence, a parte que me cabe de proximidade com meu pai, meninocamponês, Benjamin de uma família de emigrantes, cuja irmã mais velha,Rochel, desapareceu de casa ainda criança, talvez na Bessarábia (talvez emoutro lugar, que importa a esta altura!) e cujos irmãos começaram a emigrarpara os Estados Unidos depois dos pogroms de 1905.Se vejo um sapateiro de Varsóvia ou um alfaiate de Wolonin, um carregadorde água ou um barqueiro do Dnieper, me parece que são irmãos demeu pai, ainda que seus irmãos tenham se tornado prósperos comerciantesna Filadélfia e tenham trocado o solidéu e a barba por roupas das grandeslojas – provavelmente da Macy´s. Se vejo várias crianças de Lublin, que malalcançam a mesa e se sentam, muito surpresas, sempre com seus gorros,diante de uns velhos livros, enquanto o melamed (professor) lhes indica comum marcador as letras do alfabeto hebraico, me parece também que vejomeu pai terminando os trabalhos no campo, com os sapatos enlameados (dooutro lado seus irmãos usam sapatos Andrew Geller), sem poder brincarporque tem que aprender os mandamentos, o Levítico e o Talmude e asregras destas festas e celebrações que me são muitas vezes estranhas.Não tive uma infância religiosa. Minha mãe não separava os pratos e astigelas, não fazia uma separação taxativa entre os recipientes que podiamabrigar carne e aqueles destinados ao leite. Minha mãe nunca usou, comominha avó, aquelas perucas que escondiam os cabelos porque só o maridopodia ver o cabelo de sua legítima esposa, e além disto minha avó Sheine foia segunda mulher de meu avô (a primeira morreu, de parto? Não se sabe.Ninguém se lembra) e sua filha Rochel, a que emigrou para o coração imensoda Rússia Branca, era filha do primeiro casamento...


ARQUIVO“Cabe ao homem salvar o homem”A história do Justo frei Arturo Paoli, que salvou as vidas de perseguidos do nazismo e <strong>hoje</strong> vive em Foz doIguaçu, onde se dedica à melhoria das condições de vida da população carente. Por Avraham MilgramEm 1999, o memorial Yad Vashemagraciou frei Arturo Paoli com otítulo de Justo entre as Nações, porsalvar judeus na Itália ocupada pelosalemães durante a 2ª Guerra Mundial. Seunome figura ao lado de Raoul Wallenberg,da Suécia, do cônsul português Aristidesde Sousa Mendes, do embaixador brasileiroLuiz Martins de Souza Dantas e deoutras 21.000 pessoas até <strong>hoje</strong> reconhecidascomo Justos. A maioria dos Justos jánão está mais em vida, e entre os vivos oúnico que reside no Brasil é o frei ArturoPaoli, de 94 anos de idade.Entre os Justos, poucos foram aquelesque explicaram por que fizeram o quefizeram. Paoli é um deles. No ato oficial daentrega do diploma e medalha de Justorealizado em Brasília, frei Arturo Paoliexpressou o fundamento moral que olevou a agir em circunstâncias de injustiçatotal.Paoli nasceu em 1912, na cidade deLucca, Itália. Em 1936, após concluir osestudos universitários em letras clássicas,optou pela vida sacerdotal, pois esta lheoferecia condições para dedicar-se acausas justas: “Acabados meus estudosuniversitários, senti um impulso irresistívelde dedicar-me à defesa dos injustiçados,porque de criança, aos seis anos deidade, assisti numa praça da minha cidadenatal a cenas de violência com derramamentode sangue. Era o tempo em que seinstalava a ditadura fascista. O imensoamor de que me envolvia minha famílianão alcançava sarar este trauma que maistarde compreendi que só podia se transfigurarem fome e sede de justiça”. Estasensibilidade humana, incubada desdetenra idade, manifestou-se a toda prova apartir de setembro de 1943, quando parteda Itália foi conquistada por Hitler. Foinestas circunstâncias que Paoli se viu naobrigação de salvar judeus perseguidos.Um deles foi Tzvi Yakov (Herman)Gerstel, judeu ortodoxo, que se refugiarana Itália com sua esposa.Tzvi Yakov (Herman) Gerstel, nasceuem Colônia, Alemanha, em 1921, de umafamília de imigrantes judeus poloneses.Em 1927 emigrou para a Bélgica com ospais e o irmão Samuel. A famíliaestabeleceu-se em Antuérpia e, ao cabo deDepois de alguns anosna Argentina, Paolidelinearia, no início dosanos 70, uma teologiacomprometida, que setornou uma espéciede prelúdio à Teologiada Libertaçãoalguns anos, ele ingressou numa Yeshivápara estudar o Talmude. Foi nesta condiçãoque testemunhou a invasão do exércitoalemão na Bélgica, na primavera-verão de1940. Numa sexta-feira à noite de setembrode 1942, alemães e agentes da polícia belgainvadiram a residência dos Gerstel paradeportá-los para os campos de extermínio.Os irmãos Tzvi Yakov e Samuelconseguiram escapar e se esconderam notelhado do edifício, lá permanecendo atéo amanhecer. Os pais não tiveram amesma sorte. Levados a Auschwitz-Birkenau, foram assassinados. Algunsmeses mais tarde, foi a vez do irmão,deportado em janeiro de 1943.Depois disto Tzvi Yakov Gersteldecidiu fugir da Bélgica, entrando ilegalmentena França com ajuda de um agenteque operava nas fronteiras. Lá, refugiou-seem Limoges, e mais tarde em Lyon. Emnovembro de 1942 os alemães invadirama França de Vichy não ocupada. Ou seja,Gerstel encontrou-se, novamente, sobdomínio alemão. Pouco depois, fugiu paraNice, no território francês ocupado pelositalianos, onde os judeus não eram perseguidoscomo no restante da França. Alicasou-se e, juntamente a cerca de 800refugiados, o casal foi levado a St. Gervaisdu Bains, uma espécie de residênciaforçada sob controle italiano. A únicaobrigação dos refugiados era apresentarsediariamente nos escritórios das autoridadesitalianas. Havia algo de surreal nascondições de vida dos refugiados judeusdesta localidade turística e pacífica, sobregime italiano, se as compararmos aoque se passava no resto da Europa sobdomínio alemão. No entanto, a queda deMussolini e a invasão dos aliados pelaparte setentrional da Itália levou osalemães a invadir os territórios francesessob domínio italiano e o norte da Itália.Pela terceira vez, Gerstel se via sobdomínio nazista. Como muitos outrosrefugiados, escapou para a Itália com suaesposa. Em Turim encontraram refúgionum albergue para idosos judeus. Certodia, apareceu no asilo Giorgio Nissim,judeu italiano e membro da delasem(Delegazione Assistenza Emigrati Ebrei),para transferir o casal Gerstel para outrorefúgio. Nissim encaminhava refugiadosjudeus para Lucca, pois lá contava com a58 Revista 18


ARQUIVOReproduçãoFrei Arturo Paoli: “O Ocidente cristão é o centro organizado da guerra,da carestia, da acumulação de riqueza nas mãos de poucos”ajuda de padres e freiras – principalmentede frei Paoli – que se encarregavam deesconder judeus em instituições cristãs ecasas particulares. Depois de passar porum castelo que pertencia a um aristocrataitaliano, Gerstel e sua esposa foramtransferidos para a casa de uma camponesa,onde permaneceram duas semanas.Como é sabido, para esconder um judeudurante o Holocausto eram necessáriasdezenas de pessoas, porém bastava umasó para delatar vários judeus.A esta altura, o casal teve que separar-sepois a esposa de Gerstel estava prestes adar a luz. Frei Paoli, com quem Nissimmantinha contato, arranjou para que alevassem ao hospital de Lucca paraconceber. Lá nasceu Rosa, a primeira filhado casal, e lá mãe e bebê permaneceramescondidos até o final da guerra. Após umbombardeio que atingiu a casa onde seescondia, Gerstel resolveu buscar oseminário de Paoli, localizado na mesmacidade. Durante o período que passouescondido no seminário, os alemãesinvadiram várias vezes a instituição embusca de judeus e de indivíduospertencentes à resistência antinazista.Nestas “visitas” eles aterrorizavam ospadres com gritos, violência, quebravammóveis, portas e utensílios domésticos.Paoli, porém, o protegeu, escondendo-odurante vários meses até a chegada dasforças americanas, que libertaram Luccaem 6 de setembro de 1944.Terminada a guerra, protegido eprotetor se separaram, cada qual tomouseu rumo. Em 1998, passados 54 anos daúltima vez que se viram, Gerstel lembrousede procurar seu salvador. Após curtainvestigação por intermédio dos consuladositalianos, veio a informação de quePaoli se encontrava em Foz do Iguaçu, noBrasil. Ainda naquele ano, o frei e o extalmudistada Yeshivá, acompanhado pelamulher, duas filhas e uma neta, se encontraramem Milão. Giorgio Nissim, naocasiao, já tinha falecido.Após o final da guerra, Paoli dedicou-seà vida sacerdotal em Lucca, e em 1949 foiconvocado por Monsenhor Montini,futuro Papa Paulo VI, para atuar na Juventudeda Ação Católica. Em meados dosanos 50, influenciado pela filosofia deCharles Foucauld, confrontou-se com asdoutrinas conservadoras do Vaticano, oque o levaria a um distanciamento deRoma e a buscar comunidades periféricasna América Latina. Depois de alguns anosna Argentina, Paoli delinearia, no iníciodos anos 70, uma teologia comprometida,que se tornou uma espécie de prelúdio àTeologia da Libertação. Neste período,publicou o livro Diálogo da Libertação,que o levou a ser visto como inimigo doregime militar argentino, correndo perigode vida. Refugiou-se na Venezuela, ondeatuou como responsável pela Ordem dosPequenos Irmãos da América Latina. Em1983, no ocaso da ditadura militar,estabeleceu-se no Brasil, inicialmente emSão Leopoldo e, em 1987, em Foz doIguaçu. Residindo num bairro pobre, BoaEsperança, fundou a Associação FraternidadeAliança, (afa) entidade filantrópicacom a finalidade de promover solidariedadeentre as pessoas, que tem resgatado acidadania de famílias inteiras.Em 9 de fevereiro de 2000, na presençado Cardeal de Florença Silvano Piovanellie do Rabino Yoseph Levi, por ocasião deuma homenagem pelo sexagésimo aniversáriode sua ordenação eclesiástica,Paoli fez a seguinte declaração: “Tutta lanostra cultura è una cultura di morte, l'occidentecristiano è il centro che ha organizzatola guerra, la carestia, l'accumulazione dellericchezze nelle mani di pochi”. (Toda nossacultura é uma cultura de morte. O Ocidentecristão é o centro organizado daguerra, da carestia, da acumulação dasriquezas nas mãos de poucos.)Aos 94 anos de idade, Paoli continuaatuante na Associação FraternidadeAliança em Boa Esperança de Foz doIguaçu, escreve, publica, dá palestras,educa e luta em prol dos carentes por ummundo melhor e mais justo. Avraham Milgram é historiador do InstitutoInternacional para a Pesquisa do Holocaustono Yad Vashem, Jerusalém. Escreveu sua tesede doutorado em História Judaica Contemporâneana Universidade Hebraica de JerusalémRevista 18 59


NO CENTROAconteceu noCentro da Cultura Judaica5 DE SETEMBRO DE 2005Inauguração da Exposição Albert Einstein: opersonagem do século20 DE OUTUBRO DE 2005Homenagem a David Reznik, que representou Israel na Bienal de Arquitetura de São PauloDa esquerda para a direita, William Lohn, daCasa de Cultura de Israel; Chaim Rabinovich,reitor da Universidade Hebraica deJerusalém e Morris Dayan, presidente daSociedade Amigos da Universidade Hebraicade JerusalémO arquiteto David ReznikA embaixadora de Israel no Brasil,Tzipora Rimon27 DE OUTUBRO DE 2005Inauguração do 3º Ciclo Multicultural Judaico-BrasileiroCláudia Matarazzo, Walter Feldman,secretário das Subprefeituras de São Paulo,e David Feffer, presidente da Casa deCultura de IsraelBoris Cambur e Ana FefferAna e David Feffer, José Mindlin eCláudia CostinJosé Serra e José Mindlin60 Revista 18


NO CENTRO9 DE NOVEMBRO DE 2005Lançamento do documentário Jamais Esqueceremos, de Francisco GotthilfRachela Gotthilf e Raul Mayer, vicepresidenteda Casa de Cultura de IsraelFrancisco Gotthilf, diretor e produtor dodocumentário, e o rabino Shabsi AlpernSarah Klein, Raphael Klein, Michael Klein eFrancisco GotthilfInauguração da exposição Albert Einstein: o personagem do século, na sede daFundação Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, MG22 DE MARÇO DE 2006Encontro sobre o tema “O surgimentodo Golem”Regina Igel e Lyslei NascimentoRaul Meyer, vice-presidente da Casa deCultura de Israel, e Rafael Alves de Moura,o vencedor do concurso de caricaturas deAlbert Einstein, realizado em Volta RedondaIlana Adour, assessora do vicepresidenteda Fundação CompanhiaSiderúrgica NacionalAnita Novinsky e Vlad Eugen PoenaruSeleção e edição de imagens por Giselle Tidei e Beatriz ReingenheimerRevista 18 61


NA REDEINTERNET por Dov Bigiowebmaster@netjudaica.com.brBeit Chabad do Brasil - http://www.chabad.org.br/Principal movimento do judaísmo ortodoxo,o Chabad Lubavitch possui mais de3.300 instituições pelo mundo, dirigidaspor mais de 4.000 famílias de shlichim (emissários),que trazem a mensagem do movimentopara as comunidades judaicas.Fundado há cerca de 250 anos, o movimentobusca levar o conhecimento e aprática da vida judaica para as comunidadesem que atua. No Brasil, o movimentoatua desde antes da 2ª Guerra Mundial, e<strong>hoje</strong> está presente praticamente em todasas principais cidades onde há comunidadesjudaicas, como São Paulo, Rio deJaneiro, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte,entre outras. Há diversas sinagogasdo Beit Chabad. O site do Beit ChabadCentral, situado em São Paulo, é o maiscompleto, com informações sobre asfestas judaicas, o ciclo de vida, artigossobre o modo de vida judaico, além deuma divertida seção dedicada às crianças.CIP - Congregação Israelita Paulista - http://www.cip.org.br/Principal representante do judaísmoliberal em São Paulo e no Brasil, a cip foifundada em 1936 por judeus refugiadosda Alemanha nazista. Atuando na cipdesde 1970, o Rabino Henry Sobel presideo Rabinato desta instituição, uma dasmaiores sinagogas do Brasil em númerode associados. Seu site apresenta textossobre judaísmo (festas, ciclo de vida,cultura, receitas etc.) além de informaçõessobre as atividades da entidade. Estádisponível também, na integra, o livro OsPorquês do Judaísmo, com perguntas erespostas sobre as principais questões dojudaísmo contemporâneo.Jewish Things - http://www.jewishthings.com/Concentrar a melhor seleção de livros,música, dvds, software e outros produtosligados ao judaísmo é a proposta doJewishThings.com, um dos maiores sitesde produtos judaicos. Se você estiverprocurando um livro, uma música ou umfilme, este é o local certo para começarsua busca. Na verdade, o site não vendenem distribui produtos, apenas centralizauma seleção de itens disponíveis naamazon.com, num sistema totalmenteintegrado. Isto garante a segurança e aqualidade do serviço prestado pela renomadaamazon.com, e facilita a pesquisadeste tipo de produtos.Jewish Jokes - http://www.jewishjokes.net/Mães judias, relacionamento entreashkenazim e sefaradim, a própria religiãoe o relacionamento de D'us com oshomens e o anti-semitismo. Estes sãoapenas alguns dos diversos temas queenriquecem o humor judaico. Para tentarcentralizar as piadas judaicas, este site fazum grande ranking das piadas publicadas,além de permitir que os visitantes enviemsuas próprias anedotas. Capazes de rir desua própria situação, de suas crenças e deseu relacionamento com o mundo, osjudeus sempre foram conhecidos por suaspiadas bem-humoradas, e neste site épossível divertir-se com elas.62 Revista 18Revista 18 5 62


ErnstYoung


HUMORHá muitos e muitos anos, naépoca em que os samuraiseram muito importantes,havia um imperador queprecisava de um novosamurai-chefe, entãoele mandou circular porseu reino um decreto, anunciandoque estava à procura do melhordos samurais. Passou-se um anoe só três candidatos se apresentarampara as provas:um samurai japonês, umsamurai chinês e... umsamurai judeu.O imperadorconvidou o samuraijaponês a entrar edemonstrar suas habilidadescom a espada.O samurai japonês abriuuma caixa de fósforos, e delá saiu uma abelha voando...Uóoosh! Com sua espada mais afiadado que uma navalha, o samurai japonêscortou a abelha em duas partes e o insetocaiu morto no chão.“Impressionante!”, exclamouo imperador.Em seguida, convidou o samuraichinês, que também abriu uma caixade fósforos, e dela saiu, zumbindo,uma mosca. Uóoosh! Uóoosh! fez suaespada reluzente, e a mosca caiu mortano chão... esquartejada!“Realmente MUITO impresionante!”,o imperador exclamou, admirado.Agora o imperador voltou-se parao samurai judeu, e pediu-lhe parademonstrar, também, suas habilidades.O samurai judeu também abriu umacaixa de fósforos, e dela saiu voando ummosquito. Sua espada, rápida como umraio, fez Uóoosh! Uóoosh!Uóoosh!... mas o mosquito continuavaa voar.O imperador, evidentemente desapontadocom a demonstração do judeu, disse:“Vejo que você não serve para o cargo.O mosquito não está morto!”O samurai judeu apenas sorriu, e disse:“A circuncisão não foi feita para matar”.64 Revista 18


Blue Tree


Safra

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