Alan Nardi de Souza - XIV Encontro Regional de História - ANPUH ...
Alan Nardi de Souza - XIV Encontro Regional de História - ANPUH ...
Alan Nardi de Souza - XIV Encontro Regional de História - ANPUH ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Bem distante do panóptico: a Ca<strong>de</strong>ia Pública <strong>de</strong> Mariana na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX<br />
<strong>Alan</strong> <strong>Nardi</strong> <strong>de</strong> <strong>Souza</strong> *<br />
O presente trabalho <strong>de</strong>staca a dinâmica da criminalida<strong>de</strong> em Minas Gerais na<br />
primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. Qual o número <strong>de</strong> presos registrados pela administração<br />
carcerária no período? Quantos <strong>de</strong>stes eram homens? Quantas eram as mulheres? Quantos<br />
eram escravos? Quais eram os principais crimes cometidos? On<strong>de</strong> o crime prevalecia, na se<strong>de</strong><br />
ou nos distritos? Todas são questões apresentadas ao longo da pesquisa. A visão da<br />
historiografia sobre a violência e o controle social, as ações da Casa <strong>de</strong> Câmara e Ca<strong>de</strong>ia<br />
Pública da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana, uma ampla quantificação das informações sobre a população<br />
carcerária da referida instituição, as especificida<strong>de</strong>s que compunham o quadro da socieda<strong>de</strong><br />
mineira em sua relação com a Justiça e a estrutura judiciária do período são questões<br />
abordadas.<br />
Palavras-chave: criminalida<strong>de</strong>; Ca<strong>de</strong>ia Pública; Justiça.<br />
The present paper shows off the dynamics of criminality in Minas Gerais in the first<br />
half of 19th century. What is the number of registered prisoners by jail administration in that<br />
period? How many of them were men? How many women? How many slaves? What were the<br />
principal crimes committed? Where the crime prevailed, at the city or at the district? All<br />
questions are presented along the research. The view of Historiography about the violence and<br />
the social control, the actions of House of Chamber and Public Chain of city of Mariana, a<br />
wi<strong>de</strong> qauntification of information about jail population of referred Institution, the peculiarity<br />
that composed the team of mineira society in its regards to Justice and the judicial structure of<br />
period are approached questions.<br />
Keywords: criminality; Public Chain; Justice.<br />
* Doutorando em <strong>História</strong> pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Bolsista CNPQ.
Quando discutimos os mo<strong>de</strong>los prisionais no século XIX trazemos sempre à tona as<br />
prisões da Filadélfia e <strong>de</strong> Auburn, ambas nos Estados Unidos. O padrão encontrado na cida<strong>de</strong><br />
da Filadélfia, estado da Pensilvânia, teve significativa influência religiosa. Os presos eram<br />
isolados em celas individuais das quais nunca saíam até que seu tempo <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação<br />
expirasse ou até que morressem ou enlouquecessem. Acreditava-se que a religião era a única e<br />
suficiente base da educação e que o confinamento solitário traria o pecador <strong>de</strong> volta a Deus.<br />
Discutia-se ainda que os prisioneiros não teriam assim a chance <strong>de</strong> serem corrompidos por<br />
criminosos incorrigíveis, acrescentando ainda a idéia <strong>de</strong> que um bando <strong>de</strong> prisioneiros juntos<br />
não reduziria o incentivo ao crime, ao contrário, instigaria.<br />
Este sistema <strong>de</strong> confinamento solitário aplicado na Filadélfia foi logo abandonado e<br />
substituído pelo assim chamado sistema <strong>de</strong> Auburn. Em Auburn era aplicado o confinamento<br />
solitário à noite e o trabalho coletivo nas oficinas durante o dia, permitindo assim a<br />
organização dos prisioneiros com o máximo <strong>de</strong> eficiência industrial. De acordo com George<br />
Rusche as mudanças ocorridas nos sistemas prisionais foram fruto <strong>de</strong> uma alteração no<br />
mercado <strong>de</strong> trabalho. A mudança do sistema da Filadélfia para o <strong>de</strong> Auburn <strong>de</strong>veu-se a uma<br />
mudança no mercado <strong>de</strong> trabalho americano.<br />
E no Brasil do século XIX? Qual dos dois mo<strong>de</strong>los apresentados foi aplicado? Nem<br />
um nem outro. Eram outros os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> prisão que faziam parte da realida<strong>de</strong> no Brasil do<br />
século XIX, especialmente na primeira meta<strong>de</strong>. Enxovias, calabouços, aljubes e presigangas.<br />
Estes sim termos presentes nas discussões acerca da prisão. O mo<strong>de</strong>lo da Ca<strong>de</strong>ia Pública com<br />
Senado da Câmara em cima e enxovias embaixo era o mais comum e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana se<br />
enquadrava no exemplo da Ca<strong>de</strong>ia Pública.<br />
O principal órgão executor das disposições contidas nas Or<strong>de</strong>nações Filipinas, era<br />
nas colônias, a Câmara Municipal. Esta reunia o po<strong>de</strong>r político-administrativo e judicial na<br />
sua expressão mais elaborada. Ao mesmo tempo em que possuía gran<strong>de</strong> autonomia na<br />
condução dos assuntos locais, era também por meio das Câmaras que a metrópole fazia<br />
chegar suas <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> âmbito geral. As Câmaras Municipais eram compostas por um<br />
conjunto <strong>de</strong> oficiais, com atribuições estipuladas pelo Livro I do código filipino: um juiz<br />
ordinário, três vereadores, um procurador, um ou dois almotacés e um escrivão. Em muitos<br />
casos, a complexida<strong>de</strong> e importância das municipalida<strong>de</strong>s proporcionavam o provimento <strong>de</strong><br />
outros cargos como o <strong>de</strong> meirinho, carcereiro, juiz <strong>de</strong> fora, tesoureiro e outros. A Câmara<br />
Municipal <strong>de</strong> Mariana entre 1746-1808 apresentava uma intensa distribuição <strong>de</strong> funções, o
que fazia com que a mesma se dividisse em cargos <strong>de</strong> natureza econômica, judiciária, política,<br />
fiscal-administrativa, assistencial e territorial.<br />
A Ca<strong>de</strong>ia Pública era parte constitutiva do po<strong>de</strong>r municipal. Era a ela que recorria a<br />
Câmara, com seus oficiais, para apreen<strong>de</strong>r criminosos e todo tipo <strong>de</strong> transgressores. Instalada<br />
em um cômodo qualquer, numa casa alugada ou numa <strong>de</strong>pendência ao lado da Câmara, nunca<br />
apresentava condições a<strong>de</strong>quadas <strong>de</strong> segurança, iluminação e higiene.<br />
A prisão <strong>de</strong>ve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento<br />
físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitu<strong>de</strong><br />
moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército,<br />
que implicam sempre numa certa especialização, é onidisciplinar. Além disso, a<br />
prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terminada<br />
totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo <strong>de</strong>ve ser ininterrupta: disciplina<br />
incessante. (FOUCAULT, 1987:198)<br />
A distância entre a prisão i<strong>de</strong>alizada e retratada por Michel Foucault e a realida<strong>de</strong><br />
encontrada nas Minas do século XIX é gritante, não somente pela diferença estrutural, mas<br />
pela função <strong>de</strong>legada a cada uma. Tal prisão não visava à recuperação do <strong>de</strong>linqüente, não<br />
tinha o intuito <strong>de</strong> prepará-lo para o retorno à socieda<strong>de</strong>, mas prestava-se realmente ao<br />
armazenamento dos infratores. As Or<strong>de</strong>nações Filipinas não estipulavam para nenhum crime<br />
ou circunstância a pena <strong>de</strong> prisão isoladamente, sendo o encarceramento freqüentemente<br />
utilizado como um recurso coercitivo.<br />
Numa época em que inexistiam meios mais sofisticados, burocratizados <strong>de</strong> fazer<br />
cumprir o pagamento <strong>de</strong> uma multa, por exemplo, a <strong>de</strong>tenção do indivíduo se<br />
tornava a garantia física, corporal, <strong>de</strong> que ele saldaria o pagamento imposto.<br />
Assim, é comum encontrarmos no Livro V das Or<strong>de</strong>nações a fórmula sejam presos e<br />
da ca<strong>de</strong>ia paguem [...] cruzados. Com relação às outras penas - morte, açoite,<br />
<strong>de</strong>gredo, etc. - até que fossem atribuídas ou executadas, contava-se com a prisão<br />
como meio para garantir a contenção do acusado ou criminoso. (SALLA, 1999: 34)<br />
Em 1824 foi instituída a primeira Constituição do Brasil. De acordo com o artigo 21<br />
as ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong>veriam ser seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para<br />
separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza <strong>de</strong> seus crimes. Já no ano <strong>de</strong><br />
1830, o Código Criminal traduzia no seu artigo 48, que as prisões públicas tinham que<br />
oferecer comodida<strong>de</strong> e segurança para os <strong>de</strong>tentos. O Código Criminal visava o<br />
remanejamento das estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A partir <strong>de</strong> 1828, os presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> províncias do<br />
Brasil Império eram responsáveis pelas fiscalizações <strong>de</strong> suas respectivas prisões. A Lei <strong>de</strong> 1°<br />
<strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1828 <strong>de</strong>terminava que se nomeasse uma comissão <strong>de</strong> cidadãos respeitados que
visitariam as prisões civis, militares e eclesiásticas para informarem do seu estado e dos<br />
melhoramentos necessários. Esta comissão <strong>de</strong>veria enviar o relatório sobre as condições<br />
encontradas para os presi<strong>de</strong>ntes e vereadores das Câmaras Municipais.<br />
De acordo com Américo Jacobina Lacombe e Vicente Tapajós um relatório do ano<br />
<strong>de</strong> 1868 quantifica o número <strong>de</strong> edifícios que mereciam o nome <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia no Império. A<br />
província do Amazonas contava com <strong>de</strong>zessete ca<strong>de</strong>ias, mas somente duas em condições<br />
favoráveis. Nas províncias do Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco e Goiás a única com<br />
alguma condição era a das capitais. Nas províncias do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, do Paraná e do<br />
Rio Gran<strong>de</strong> do Sul sequer a da capital apresentava condições. A província da Paraíba tinha<br />
cinco ca<strong>de</strong>ias em condições não tão ruins. Alagoas tinha três que podiam receber o nome <strong>de</strong><br />
ca<strong>de</strong>ia. Sergipe apresentava duas ca<strong>de</strong>ias e duas casas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção, ambas lotadas e em ruínas.<br />
A província do Espírito Santo possuía três ca<strong>de</strong>ias com mínimas condições. As ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong><br />
Santa Catarina eram pequenas, sem segurança e insalubres. Mato Grosso contava com <strong>de</strong>z<br />
prisões, todas necessitando <strong>de</strong> melhorias. No Rio <strong>de</strong> Janeiro a principal era a Casa <strong>de</strong><br />
Detenção na capital. São Paulo tinha trinta e seis ca<strong>de</strong>ias e vinte e seis casas <strong>de</strong> prisão<br />
necessitando <strong>de</strong> reformas. Na Bahia um total <strong>de</strong> sessenta e uma ca<strong>de</strong>ias. Por fim, em Minas<br />
Gerais a ca<strong>de</strong>ia da capital era uma das melhores do Império, pela soli<strong>de</strong>z do edifício,<br />
elegância e segurança. Além da ca<strong>de</strong>ia da capital notam-se as <strong>de</strong> Mariana, São João <strong>de</strong>l-Rei,<br />
São José, Barbacena, Santa Luzia, Itabira, Tamanduá, Três Pontas, Montes Claros, Aiuruoca e<br />
Mar <strong>de</strong> Espanha.<br />
De acordo com tal relatório a Ca<strong>de</strong>ia Pública <strong>de</strong> Mariana estava entre as melhores do<br />
Império, mas parecem existir divergências, tanto nos relatórios quanto nos relatos <strong>de</strong> viajantes<br />
acerca <strong>de</strong> tal instituição.<br />
Elizabeth Rouwe <strong>de</strong>staca dois pareceres referentes à Ca<strong>de</strong>ia Pública <strong>de</strong> Mariana, um<br />
do ano <strong>de</strong> 1834 e um <strong>de</strong> 1855, totalmente distintos. Enquanto o primeiro verificou ótimas<br />
condições para a prisão, o segundo con<strong>de</strong>nou não somente sua estrutura física, como também<br />
o tratamento que os presos recebiam. Essa segunda comissão afirmou que a casa <strong>de</strong> reclusão<br />
se assemelhava aos antigos calabouços da inquisição. Além disso, as pare<strong>de</strong>s das celas, por<br />
serem <strong>de</strong> adobe, necessitavam com urgência serem forradas com espessas tábuas. Também as<br />
gra<strong>de</strong>s, o assoalho e o lajeamento interno precisavam <strong>de</strong> reparos. O inspetor chamou a atenção<br />
ainda, para as águas das chuvas, que constantemente infiltravam-se nas pare<strong>de</strong>s das celas.
A ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei também se encontrava num estado <strong>de</strong>plorável. Na<br />
década <strong>de</strong> 1830, os inspetores, ao vistoriarem essa instituição, disseram que a mesma parecia<br />
mais uma caverna e que a qualquer instante <strong>de</strong>smoronaria, pelo estado <strong>de</strong> ruína em que se<br />
encontrava. No ano <strong>de</strong> 1828, as autorida<strong>de</strong>s administrativas <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei enviaram um<br />
relatório à Assembleia Legislativa pedindo a liberação dos recursos para continuar as obras do<br />
novo prédio que abrigaria a ca<strong>de</strong>ia da vila. Segundo Maria Tereza Cardoso, a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
Lavras, a exemplo, da <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l-Rei, não oferecia comodida<strong>de</strong> e segurança, po<strong>de</strong>ndo<br />
esta ser facilmente arrombada.<br />
Em meados da década <strong>de</strong> 1850, os relatórios apresentados pelos fiscais sobre as<br />
condições <strong>de</strong> várias ca<strong>de</strong>ias da província <strong>de</strong> Minas Gerais <strong>de</strong>monstraram que as mesmas<br />
necessitavam urgentemente <strong>de</strong> reformas, como era o caso <strong>de</strong> Ouro Preto, Patrocínio e São<br />
Romão. Outros locais como Baependi, Pouso Alegre, Diamantina, Pitangui, Paracatu e Sabará<br />
precisavam reconstruir as suas prisões <strong>de</strong>vido ao estado precário em que elas se encontravam.<br />
Na vila do Rio Pardo a situação também não era cômoda, uma vez que não havia presídio na<br />
mesma. Diversas reformas foram feitas ao longo do século XIX, e mesmo com essas, a ca<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> Mariana não oferecia à socieda<strong>de</strong> e aos <strong>de</strong>tentos a segurança necessária. Em 1855 os<br />
funcionários afirmavam que a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Mariana não reeducava os presos <strong>de</strong>vido às condições<br />
precárias da mesma, <strong>de</strong>vendo ser enviados para a Ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Ouro Preto, os <strong>de</strong>tentos mais<br />
perigosos.<br />
Várias casas <strong>de</strong> reclusões da província mineira no século XIX estavam em condições<br />
críticas. Infelizmente as pequenas reformas feitas nessas instituições não resolveram os<br />
problemas, uma vez que as mesmas necessitavam <strong>de</strong> mudanças drásticas. O sistema carcerário<br />
<strong>de</strong> Mariana no século XIX, segundo Rouwe, além <strong>de</strong> não promover reformas estruturais<br />
efetivas, colaborava para garantir a reincidência. A comissão encarregada <strong>de</strong> inspecionar as<br />
repartições públicas <strong>de</strong>cretou em 1855 que a gran<strong>de</strong> máxima evangélica a respeito do homem<br />
é corrigir, e não <strong>de</strong>struir. Partindo <strong>de</strong>sses princípios, os fiscais afirmavam que a prisão não<br />
dispunha <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> reeducação dos prisioneiros e seu sistema colaborava para a<br />
permanência <strong>de</strong>sses homens na criminalida<strong>de</strong>.<br />
Verificando os alvarás <strong>de</strong> solturas da Ca<strong>de</strong>ia Pública <strong>de</strong> Mariana foi possível calcular<br />
o tempo que as pessoas passavam encarceradas. Em média, 26% das pessoas ficavam presas<br />
por até cinco dias, 24% <strong>de</strong> cinco dias a um mês, 25% <strong>de</strong> um mês a seis meses, 13% <strong>de</strong> seis<br />
meses a um ano e só 12% ficavam encarcerados por mais <strong>de</strong> um ano. Logo, 75% das pessoas
presas ficavam no máximo seis meses encarceradas. É importante <strong>de</strong>marcar que tais dados<br />
estatísticos referem-se às prisões nas quais foi possível encontrar os respectivos alvarás <strong>de</strong><br />
soltura. A gran<strong>de</strong> maioria dos presos em Mariana não possui alvará <strong>de</strong> soltura o que evi<strong>de</strong>ncia<br />
o caráter coercitivo da Ca<strong>de</strong>ia Pública na primeira meta<strong>de</strong> do XIX, pois o recolhimento à<br />
mesma po<strong>de</strong>ria ser feito para qualquer averiguação. A situação precária das prisões no XIX<br />
não se limitava a Minas Gerais e estendia-se por todo Império. Uma gama variada <strong>de</strong><br />
pesquisas evi<strong>de</strong>ncia esta questão. Os relatores sabiam o quanto as prisões necessitavam <strong>de</strong><br />
reparos e afirmavam que o cárcere não reeducava ninguém. Tal afirmação permite-nos pensar<br />
nesse instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r como um simples <strong>de</strong>pósito, um armazém <strong>de</strong> infratores <strong>de</strong>stinado a<br />
retirar das ruas aqueles que <strong>de</strong>scumprissem as posturas.<br />
Para ilustrarmos ainda mais a situação da Ca<strong>de</strong>ia Pública observemos duas situações<br />
distintas <strong>de</strong> personagens que <strong>de</strong>screveram algum momento da instituição em Mariana.<br />
Primeiramente, o relato <strong>de</strong> um viajante que passou por Mariana no século XIX:<br />
Uma rua muito mal calçada nos levou ao Largo da Ca<strong>de</strong>ia, em cujo centro ainda se<br />
ergue o pelourinho dos tempos coloniais, o primeiro que vi no Brasil. Mostra os<br />
buracos, pelos quais os criminosos eram amarrados, e tem no alto o globo e a<br />
coroa, a espada e a balança, assim como os ganchos <strong>de</strong> ferro em que eram<br />
suspensos os membros dos con<strong>de</strong>nados. A ca<strong>de</strong>ia, que é também a se<strong>de</strong> do governo<br />
municipal, é um prédio esquisito, atarracado, velho, com uma entrada complicada,<br />
curiosamente pintada, e alguns soldados pretos estavam <strong>de</strong> guarda. (BURNTON,<br />
2001)<br />
O segundo relato é do juiz <strong>de</strong> direito interino <strong>de</strong> Mariana que solicitava mais<br />
alimentos para os presos pobres, no ano <strong>de</strong> 1834:<br />
Sou a informar a Vossa Senhoria, em benefício da humanida<strong>de</strong>, que os presos<br />
pobres que se acham na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> estão morrendo (como ainda agora<br />
aconteceu a um <strong>de</strong>sgraçado) <strong>de</strong> fome, pois que a comida que se lhe dá, além <strong>de</strong> ser<br />
uma só vez ao dia, sou informado que é tão pouca que <strong>de</strong> um só bocado a comem;<br />
eu, a minha custa, tenho concorrido para o enterramento dos que tem morrido,<br />
também lembro a Vossa Senhoria se a Câmara, dos dinheiros que tem para<br />
tratamento dos presos, po<strong>de</strong> concorrer com as mortalhas e <strong>de</strong>spesas do enterro<br />
<strong>de</strong>les. Do reconhecido patriotismo <strong>de</strong> Vossa Senhoria espero seja melhorada a sorte<br />
dos miseráveis, que certamente a não serem quanto antes socorridos, morrem <strong>de</strong><br />
fome. Deus Guar<strong>de</strong> a Vossa Senhoria por muitos anos. (NOVAIS, 1834)<br />
Pelo que pu<strong>de</strong>mos perceber, a situação precária das prisões no XIX não se limitava a<br />
Minas Gerais e estendia-se por todo Império. Uma gama variada <strong>de</strong> pesquisas evi<strong>de</strong>ncia esta<br />
questão. Os relatores sabiam o quanto as prisões necessitavam <strong>de</strong> reparos e afirmavam que o
cárcere não reeducava ninguém. Tal afirmação permite-nos pensar nesse instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
como um simples <strong>de</strong>pósito, um armazém <strong>de</strong> infratores, bem distante do panóptico, <strong>de</strong>stinado a<br />
retirar das ruas aqueles que <strong>de</strong>scumprissem as posturas.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
BARRETO, Paulo Thedim. Casas <strong>de</strong> Câmara e Ca<strong>de</strong>ia. In: BARRETO, Paulo Thedim;<br />
REIS, José <strong>de</strong> <strong>Souza</strong>; Arquitetura Oficial I. São Paulo: FAUUSP; MEC-IPHAN, 1978.<br />
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.<br />
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.<br />
NARDI, <strong>Alan</strong>. Crime e Castigo: a criminalida<strong>de</strong> em Mariana na primeira meta<strong>de</strong> do século<br />
XIX. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora, 2007.<br />
SALLA, Fernando. As Prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999.<br />
SOUZA, Elizabeth Valéria Rouwe. A administração carcerária <strong>de</strong> Mariana no século XIX.<br />
Monografia <strong>de</strong> Bacharelado. Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto, 2003.<br />
VENÂNCIO, Renato Pinto. Estrutura do Senado da Câmara. In: Termo <strong>de</strong> Mariana: história e<br />
documentação. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1998. p. 140.