Tristes subúrbios - XIV Encontro Regional de História - ANPUH-Rio
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<strong>Tristes</strong> <strong>subúrbios</strong>:<br />
cida<strong>de</strong> e classes sociais no romance Clara dos Anjos, <strong>de</strong> Lima Barreto<br />
1. Problema<br />
Pedro Belchior 1<br />
Muito já se tratou sobre Lima Barreto, pensado por inúmeros estudiosos como o<br />
literato mais significativo das duas primeiras décadas do século XX no Brasil. Sua obra<br />
apresenta múltiplos aspectos das tensões, dos conflitos e dos <strong>de</strong>vires <strong>de</strong> seu tempo. São<br />
romances, crônicas, contos e impiedosas sátiras que, compreendidas na arena <strong>de</strong> luta do<br />
campo intelectual <strong>de</strong> sua época, possibilitam um olhar diferenciado sobre múltiplas<br />
questões da Primeira República.<br />
Uma dimensão sobressalente em alguns estudos é a do “carioca” e “suburbano”<br />
Lima Barreto. Dos portentosos casarões <strong>de</strong> Botafogo às esburacadas ruas <strong>de</strong> Inhaúma,<br />
via Avenida Central, sua obra não se furta <strong>de</strong> pensar as contradições sociais <strong>de</strong> uma<br />
cida<strong>de</strong> sempre em movimento, <strong>de</strong> acanhada capital litorânea a fervilhante metrópole<br />
tropical. A vida social e os problemas dos <strong>subúrbios</strong> vão adquirindo gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque ao<br />
longo da trajetória do escritor, tanto nas crônicas quanto nas obras <strong>de</strong> ficção. Na<br />
segunda versão <strong>de</strong> Clara dos Anjos, por exemplo, não se sabe até que ponto essa região<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser “pano <strong>de</strong> fundo” para ser, ela própria, personagem da obra.<br />
Porém, muitas vezes no intuito <strong>de</strong> reforçar tomadas <strong>de</strong> posição do literato a favor<br />
do povo e dos trabalhadores, acredita-se sem pestanejar numa suposta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
suburbana (incomodamente fixa e unívoca) compartilhada por ele com seus pares<br />
geográficos – Lima Barreto foi ele próprio morador do subúrbio, <strong>de</strong> 1902, para on<strong>de</strong> se<br />
mudou com a família, até a morte, em 1922.<br />
Assim, como afirmou um intelectual contemporâneo, Lima Barreto teria sido<br />
“carioca suburbano na maior acepção da palavra” 2 . Entretanto, o próprio intelectual<br />
sugere, no mesmo texto, a mutabilida<strong>de</strong> histórica do termo subúrbio. Nei Lopes afirma<br />
1 Mestrando em <strong>História</strong> pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />
2 LOPES, Nei. “Apresentação”, in: BOTELHO, Denílson. A pátria que quisera ter era um mito: o <strong>Rio</strong><br />
<strong>de</strong> Janeiro e a militância política <strong>de</strong> Lima Barreto. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Prefeitura do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2002<br />
(Coleção Biblioteca Carioca, v. 44 – Série Literatura), p. 17.
que no <strong>Rio</strong>, a partir <strong>de</strong> um momento histórico específico, passou a vingar a “noção<br />
<strong>de</strong>rrogatória”, <strong>de</strong>squalificadora, <strong>de</strong> subúrbio, e não o sentido mais amplo e anterior ao<br />
mesmo – o arrabal<strong>de</strong>, bairro ou local distante do centro. Copacabana, Tijuca e Jardim<br />
Botânico, antes do processo histórico que resultou na constituição dos <strong>subúrbios</strong> como<br />
bairros pobres e longínquos, dispersos ao longo das estradas <strong>de</strong> ferro inauguradas em<br />
meados do século XIX, eram também consi<strong>de</strong>rados <strong>subúrbios</strong> e “arrabal<strong>de</strong>s” da cida<strong>de</strong><br />
– tendo sido, no entanto, incorporados a ela posteriormente, através <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s reformas<br />
e obras urbanísticas 3 .<br />
Assim, meu objetivo principal <strong>de</strong> pesquisa é problematizar a produção literária<br />
<strong>de</strong> Lima Barreto, mais especificamente os seus escritos sobre os <strong>subúrbios</strong> e os<br />
“suburbanos”, tendo em vista a sua experiência, não somente como escritor e literato,<br />
mas também como sujeito histórico, que vivenciou o seu presente como in<strong>de</strong>terminação<br />
e incerteza. É possível pensar Lima Barreto como um “escritor suburbano”? Se sim, o<br />
que implica consi<strong>de</strong>rá-lo <strong>de</strong>ssa maneira?<br />
A experiência histórica <strong>de</strong> Lima Barreto, evi<strong>de</strong>nciada em seus escritos <strong>de</strong> diversa<br />
natureza, permite-nos afirmar que, muito longe <strong>de</strong> qualquer sentimento automático <strong>de</strong><br />
pertença territorial (vive no subúrbio, logo é “suburbano” e carrega um “modo <strong>de</strong> ser<br />
suburbano”, como se houvesse um único), há no escritor uma tensa e contraditória<br />
relação com os seus vizinhos e com o espaço urbano on<strong>de</strong> vivia.<br />
Essa tensão é evi<strong>de</strong>nte ao longo <strong>de</strong> toda a obra do literato, mas, numa dimensão<br />
diacrônica, ganha força a partir dos anos 1910. Clara dos Anjos é o romance mais<br />
emblemático <strong>de</strong> toda essa produção (ficcional e não ficcional) sobre os <strong>subúrbios</strong><br />
cariocas. Neste artigo, preten<strong>de</strong>mos fazer uma leitura do romance Clara dos Anjos,<br />
publicada na Revista Souza Cruz em 1923, um ano após a morte do escritor. Há duas<br />
outras versões homônimas: um romance inacabado, <strong>de</strong> 1904, e um conto, publicado em<br />
1920 na coletânea <strong>História</strong>s e sonhos. Todos esses textos têm em comum a personagem<br />
principal, mulata, adolescente, virgem, ingênua e <strong>de</strong> origem pobre. Porém, o primeiro é<br />
ambientado nos bairros operários próximos ao centro do <strong>Rio</strong> (Estácio, Catumbi e <strong>Rio</strong><br />
3 A mesma idéia <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> “amor” entre Lima Barreto e os <strong>subúrbios</strong> é ressaltada (mas não <strong>de</strong><br />
forma uníssona) por diferentes intelectuais, como Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), João Antônio<br />
(1937-1996), Francisco <strong>de</strong> Assis Barbosa (1914-1991) e Enéias Ferraz (1896-1977)
Comprido), enquanto no conto e na versão <strong>de</strong> 1922 a história se passa nos <strong>subúrbios</strong> 4 . A<br />
persistência <strong>de</strong>sse tema ao longo da trajetória literária <strong>de</strong> Lima Barreto atesta a sua<br />
importância para o escritor, mas o que nos interessa aqui é compreen<strong>de</strong>r as<br />
representações sobre os <strong>subúrbios</strong> existentes nessa última versão.<br />
2. O romance<br />
O mulato Joaquim dos Anjos, pai <strong>de</strong> Clara, homem <strong>de</strong> poucas ambições e<br />
músico mediano (admirador do violão e das modinhas), é natural <strong>de</strong> Diamantina.<br />
Jovem, veio ao <strong>Rio</strong> a serviço <strong>de</strong> um velho inglês, proprietário <strong>de</strong> uma mina em sua<br />
cida<strong>de</strong> natal. Gostou da capital, e nela <strong>de</strong>cidiu permanecer. Graças à ajuda <strong>de</strong> um<br />
conterrâneo advogado, conseguiu o emprego <strong>de</strong> carteiro. Com seus parcos recursos,<br />
mais a venda <strong>de</strong> um lote na terra natal, comprou uma casa no subúrbio, nas<br />
proximida<strong>de</strong>s da estrada <strong>de</strong> ferro Central do Brasil. Como que avançando aos poucos<br />
em terreno pouco conhecido por seu virtual leitor, o narrador inicia a construção <strong>de</strong> uma<br />
rica (e sempre seletiva) <strong>de</strong>scrição do espaço urbano on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolve a trama. Nesse<br />
mesmo movimento, está contida a <strong>de</strong>núncia das mazelas por que passavam os<br />
moradores dos <strong>subúrbios</strong>.<br />
A rua em que estava situada a sua casa <strong>de</strong>senvolvia-se no plano e,<br />
quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto,<br />
era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para<br />
a longínqua e habitada freguesia <strong>de</strong> Inhaúma. Carroções, carros,<br />
autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a<br />
suprir os retalhistas <strong>de</strong> gêneros que os atacadistas lhes fornecem,<br />
percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública <strong>de</strong>via<br />
merecer mais atenção da edilida<strong>de</strong>. (p. 639)<br />
Com requinte <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, o narrador apresenta os diversos tipos <strong>de</strong> habitação<br />
dos <strong>subúrbios</strong>. Um <strong>de</strong>sses, o chalet – “os clássicos chalets suburbanos” (p. 639) –, é tido<br />
como o mais representativo daquela região. Além <strong>de</strong>le, há outros tipos <strong>de</strong> casas,<br />
algumas “relativamente recentes”, com “certos requififes e galanteios mo<strong>de</strong>rnos, para<br />
lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o exagero dos aluguéis” (i<strong>de</strong>m). O<br />
autor <strong>de</strong>tém-se, no entanto, a <strong>de</strong>screver uma “casa mais digna <strong>de</strong> ser vista”:<br />
4 A versão incompleta foi publicada no Diário Íntimo. Já o romance só saiu em forma <strong>de</strong> livro em 1948,<br />
pela editora Mérito, do <strong>Rio</strong>.
Erguia-se quase ao centro <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> chácara e era a<br />
característica das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa<br />
fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada <strong>de</strong> azulejos até a<br />
meta<strong>de</strong> do pé-direito. Um tanto feia, é verda<strong>de</strong>, que ela era, sem<br />
garridice; mas casando-se perfeitamente com as mangueiras, com as<br />
robustas jaqueiras e os coqueiros petulantes e com todas aquelas<br />
gran<strong>de</strong>s e pequenas árvores avelhantadas, que, talvez, os que as<br />
plantaram não as tivessem visto frutificar. Por entre elas, on<strong>de</strong> se<br />
podiam ver vestígios do antigo jardim, havia estatuetas <strong>de</strong> louça<br />
portuguesa, com letreiros azuis. Uma era a "Primavera"; outra era a<br />
"Aurora", quase todas, porém, estavam mutiladas; umas, num braço;<br />
outras não tinham cabeça, e ainda outras jaziam no chão, <strong>de</strong>rrubadas<br />
dos seus toscos suportes. (p. 640)<br />
Mais do que um <strong>de</strong>rreter-se <strong>de</strong> nostalgia pelas antigas chácaras, construídas por<br />
velhos ricos <strong>de</strong> outras eras, e agora abandonadas, <strong>de</strong>stacam-se nesse trecho as muitas<br />
camadas <strong>de</strong> memória social existentes no território suburbano. Os chalets, construções<br />
simples, vão aos poucos substituindo as pomposas moradias em algumas regiões do<br />
subúrbio. Ou, sob outro ponto <strong>de</strong> vista, são as novas ocupações sociais, formadas por<br />
grupos advindos <strong>de</strong> diversas regiões do Estado e do país, trabalhadores <strong>de</strong> diversas<br />
ocupações, que constroem, modificam, operam mudanças no território, criando novos<br />
modos <strong>de</strong> vida e novas memórias.<br />
Clara, apesar <strong>de</strong> ser a principal personagem, é apresentada sempre <strong>de</strong> forma<br />
apagada, ao sabor da fatalida<strong>de</strong> e das <strong>de</strong>terminações que marcam sua vida social.<br />
Mulata e <strong>de</strong> origem humil<strong>de</strong>, ela fora durante toda a infância e adolescência<br />
“preservada” por seus pais, e especialmente por dona Engrácia, que com ela não fazia<br />
sequer passeios elementares pelos bairros próximos – exceto poucas idas à praia.<br />
Para o narrador, para Clara era preciso libertar-se, passear, conhecer a cida<strong>de</strong>,<br />
teatros, cinemas... Ela não conhecia nada disso” (p. 676 – grifo meu). Por estar<br />
acostumada a olhar a vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do seu chalet suburbano, Clara é apresentada<br />
também como uma alienada urbana, distante da cida<strong>de</strong> e da socieda<strong>de</strong>.<br />
Interessantemente, o narrador associa o processo <strong>de</strong> “libertação” pessoal à questão<br />
urbana, como que reconhecendo o quanto a cida<strong>de</strong>, produto das relações sociais,<br />
também plasma os modos <strong>de</strong> vida das classes sociais.<br />
Nosso vilão é Cassi Jones, cantor <strong>de</strong> modinhas, branco, sar<strong>de</strong>nto, na altura <strong>de</strong><br />
seus trinta anos, <strong>de</strong>florador <strong>de</strong> meninas inocentes e conquistador <strong>de</strong> mulheres casadas.
Apesar <strong>de</strong> não ter aspectos <strong>de</strong> “capadócio” (como eram chamados os homens <strong>de</strong> pouca<br />
ocupação da época), e <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um “elegante dos <strong>subúrbios</strong>” (p. 645), seu<br />
único traço <strong>de</strong> “pelintragem” é o modo <strong>de</strong> dispor os cabelos, sempre partidos ao meio e<br />
empapados <strong>de</strong> óleo.<br />
Através <strong>de</strong> Cassi, a<strong>de</strong>ntramos no terreno da malandragem suburbana carioca.<br />
Um <strong>de</strong> seus amigos é Ataliba Timbó, “mulato claro, faceiro, bem apessoado, mas<br />
antipático pela sua falsa arrogância e fatuida<strong>de</strong>” (p. 653). Na visível hierarquia das<br />
classes sociais, ele vive com sua esposa no “horrível subúrbio <strong>de</strong> Dona Clara” –<br />
contrastando com Cassi, que, com sua família pequeno burguesa, vive numa rua<br />
elegante nos arredores da estação do Méier, tida ela própria como distinta das <strong>de</strong>mais.<br />
Entre os <strong>de</strong>mais companheiros <strong>de</strong> Cassi Jones, temos um batedor <strong>de</strong> carteira nos trens<br />
da Central, malandros “imbecis”, “nojentos” e um mais “apurado”, como Franco Sousa,<br />
que finge ser advogado para aplicar sofisticados golpes.<br />
A mãe <strong>de</strong> Cassi, Salustiana, é o gran<strong>de</strong> alvo do sarcasmo com que Lima Barreto<br />
trata as classes médias suburbanas. Tida como pequeno-burguesa orgulhosa, ela sempre<br />
mascara suas origens sociais quando alguém lhe inquire sobre a ocupação <strong>de</strong> seu pai.<br />
Era do Exército, ela diz. No entanto, sabemos através do onisciente e sarcástico narrador<br />
que o pai era escriturário do Arsenal <strong>de</strong> Guerra, um burocrata menor. A<strong>de</strong>mais,<br />
Salustiana, “em suas crises <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>”, dizia-se “<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um fantástico Lord<br />
Jones, que fora cônsul da Inglaterra em Santa Catarina” (p. 645). É por tal fidalguia que<br />
Cassi <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> adicionar “Jones” à sua assinatura, confirmando a suposta origem britânica<br />
como sinal <strong>de</strong> distinção social.<br />
Outros elementos da classe média suburbana são apresentados com inigualável<br />
ironia e requinte pelo narrador. Eles po<strong>de</strong>m proporcionar uma rica leitura das relações<br />
<strong>de</strong> classe no subúrbio carioca e da maneira como o próprio sujeito histórico Lima<br />
Barreto, funcionário da Secretaria da Guerra, posicionava-se nessa arena social. Vale à<br />
pena citar este longo trecho:<br />
A residência dos pais <strong>de</strong> Cassi ficava num subúrbio tido como<br />
elegante, porque lá também há estas distinções. (...)<br />
A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras à<br />
gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a<br />
paralelepípedos. Nos <strong>subúrbios</strong>, há disso: ao lado <strong>de</strong> uma rua, quase<br />
oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, <strong>de</strong> ar urbano
inteiramente. Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos<br />
cuidados da edilida<strong>de</strong>, e os historiógrafos locais explicam: é porque<br />
nela, há anos, morou o <strong>de</strong>putado tal ou o ministro sicrano ou o<br />
inten<strong>de</strong>nte fulano.<br />
Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas<br />
quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente<br />
<strong>de</strong>la, a parte da cimalha, sacadas gra<strong>de</strong>adas e compoteiras ao alto, era<br />
nova. De fato, quando o pai <strong>de</strong> Cassi a comprou, a casa era um<br />
simples e mo<strong>de</strong>sto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa,<br />
mas segura, prosperida<strong>de</strong>, pô<strong>de</strong> ir, também <strong>de</strong>vagar, aumentando o<br />
imóvel, dando um aspecto <strong>de</strong> boa burguesia remediada. (p. 745 –<br />
grifos meus)<br />
Os bairros suburbanos são hierarquizados – uns mais ricos e outros mais pobres<br />
–, e essa complexa configuração urbana <strong>de</strong>smente a idéia <strong>de</strong> que há um subúrbio<br />
homogêneo, <strong>de</strong> “casas simples com ca<strong>de</strong>iras na calçada” 5 . O pai <strong>de</strong> Cassi, por exemplo<br />
– há trinta anos no serviço público, homem <strong>de</strong> modos rústicos e secos, mas apegado à<br />
“moral” e crítico das atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cassi –, conseguiu transformar um chalet popular em<br />
distinta casa, numa rua elegante do subúrbio. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes me<strong>de</strong>-se nas<br />
ruas. Há uma bem cuidada, calçada <strong>de</strong> paralelepípedos e <strong>de</strong> bom aspecto, ao lado <strong>de</strong><br />
outra largada, abandonada ao lamaçal e à grama que avança na sarjeta. A rua <strong>de</strong> Cassi<br />
possui “ar urbano inteiramente”; as que não têm calçamento digno não são urbanas, mas<br />
também não são rurais: sobra-lhes a alcunha “sub-urbana”, algo que oscila entre a<br />
Cida<strong>de</strong> e a Roça.<br />
Por alguns momentos – ou será ao longo <strong>de</strong> toda a estória? –, o narrador<br />
dissimula não ser ele próprio parte dos <strong>subúrbios</strong> que narra. “Porque lá também há essas<br />
distinções”: quem narra parece fazê-lo <strong>de</strong> fora, como observador e como alguém que,<br />
tanto quanto o seu leitor/receptor, vê os <strong>subúrbios</strong> com interesse etnográfico e distante.<br />
Através <strong>de</strong> outros registros (crônicas, romances, contos etc.), é possível perceber o<br />
quanto Lima não queria ser parte <strong>de</strong>ssa classe média. Como em outros momentos <strong>de</strong> sua<br />
obra, aqui o autor ataca o bovarismo pequeno burguês – a ilusão <strong>de</strong> ser o que não é, a<br />
incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> distinguir a sua própria imagem no espelho social, o viver <strong>de</strong><br />
aparências e <strong>de</strong> mentiras...<br />
Há também nesse trecho uma provocação nada gratuita. Por que uma via pública<br />
merece cuidados da prefeitura, enquanto outras não? É que, segundo o narrador, <strong>de</strong><br />
5 Refiro-me à canção “Gente humil<strong>de</strong>”, <strong>de</strong> Garoto, Chico Buarque e Vinicius <strong>de</strong> Moraes.
acordo com “historiógrafos locais”, o “<strong>de</strong>putado tal” ou o “ministro sicrano” teriam<br />
morado ali. Lugar <strong>de</strong> memória e, em alguma medida, produto das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a<br />
rua inscreve-se também no imaginário dos homens e mulheres que, ao historicizar o<br />
local, selecionam as memórias que irão ou não preservar. Aqui, o narrador ironiza a<br />
“história dos vencedores” levada a cabo por doutos historiadores, saudosos das<br />
fazendas, chácaras e sítios <strong>de</strong> outros tempos.<br />
Espaço <strong>de</strong> <strong>de</strong>satenção das autorida<strong>de</strong>s, zona esquecida ou não, os <strong>subúrbios</strong> – os<br />
quais Lima Barreto vivenciou não só do alto da rua on<strong>de</strong> morava, Major Mascarenhas,<br />
em Todos os Santos, mas também no dia-a-dia das esquinas, vagões, vendas, bon<strong>de</strong>s,<br />
jardins, ruas e ruelas, morros, lares e botequins – são apresentados com riqueza <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes, numa espécie <strong>de</strong> plano geral, na trama <strong>de</strong> Clara dos Anjos.<br />
O olhar e o andar avançam para a periferia dos <strong>subúrbios</strong>, on<strong>de</strong> os chalets, as<br />
antigas chácaras e as casas mais sofisticadas, como a <strong>de</strong> Cassi Jones, dão lugar a “casas,<br />
casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte on<strong>de</strong> se possa fincar quatro<br />
estacas <strong>de</strong> pau e uni-las por pare<strong>de</strong>s duvidosas” (p. 691). Utilizam-se materiais diversos,<br />
como “latas <strong>de</strong> fósforo distendidas, telhas velhas, folhas <strong>de</strong> zinco, e, para as nervuras<br />
das pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> taipa, o bambu, que não é barato”. Doenças como a varíola ameaçam a<br />
saú<strong>de</strong> das famílias que lá vivem. Animais <strong>de</strong> diversas espécies divi<strong>de</strong>m as ruas<br />
esburacadas e tortas, distantes das estações <strong>de</strong> trem – eixo da vida no subúrbio – e, ainda<br />
mais, da elegante e burguesa Avenida Central.<br />
Por esse intrincado labirinto <strong>de</strong> ruas e bibocas é que vive uma gran<strong>de</strong><br />
parte da população da cida<strong>de</strong>, a cuja existência o governo fecha os<br />
olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras<br />
inúteis e suntuárias noutros pontos do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro. (p. 692)<br />
Mais uma oscilação, e o olhar barretiano agora revela <strong>de</strong>núncia e inquietação<br />
diante da vida das pessoas simples que, com parcos recursos, recriam e expan<strong>de</strong>m a<br />
duras penas o território urbano. O romance ganha um caráter político explícito, com<br />
uma força só comparável às crônicas escritas para pequenos jornais e revistas, as quais<br />
lhe complementavam a renda e lhe garantiam uma posição na arena <strong>de</strong> lutas do campo<br />
intelectual. O crítico da pequena burguesia se revela solidário ao drama <strong>de</strong> seres
humanos que, na luta cotidiana pela sobrevivência, enchem <strong>de</strong> movimento as ruas<br />
suburbanas:<br />
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em<br />
que os po<strong>de</strong>res públicos o <strong>de</strong>ixam. Pelas primeiras horas da manhã,<br />
<strong>de</strong> todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas,<br />
ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima;<br />
alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Cachambi, em<br />
Jacarepaguá, per<strong>de</strong>m amor a alguns níqueis e tomam bon<strong>de</strong>s que<br />
chegam cheios às estações. Esse movimento dura até as <strong>de</strong>z horas da<br />
manhã e há toda uma população <strong>de</strong> certo ponto da cida<strong>de</strong> no número<br />
dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados,<br />
militares <strong>de</strong> todas as patentes, inferiores <strong>de</strong> milícias prestantes,<br />
funcionários públicos e gente que, apesar <strong>de</strong> honesta, vive <strong>de</strong><br />
pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente<br />
alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que<br />
per<strong>de</strong>ram o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim,<br />
todos os que per<strong>de</strong>ram a sua situação normal vão se aninhar lá; e<br />
todos os dias, bem cedo, lá <strong>de</strong>scem à procura <strong>de</strong> amigos fiéis que os<br />
amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos<br />
filhos. (p. 692-3 – grifo meu)<br />
O subúrbio é a paragem inevitável dos per<strong>de</strong>dores, dos empregados inferiores <strong>de</strong><br />
qualquer parte, dos burgueses que “faliram nos negócios”. Refúgio dos infelizes – o que<br />
é preciso para que <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> sê-lo? O “plano geral” dos <strong>subúrbios</strong> termina com o olhar <strong>de</strong><br />
Cassi para o gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas que, em mais um dia, <strong>de</strong>slocam-se para seus<br />
empregos na “cida<strong>de</strong>”. Ele as olha, mas não tem consciência do lugar que elas ocupam<br />
no espaço urbano (na economia, na política e no imaginário). Sua observação é movida<br />
pela curiosida<strong>de</strong>. Cassi é a antítese do que se espera <strong>de</strong> um olhar engajado e <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>núncia. Como um sujeito representativo da classe média suburbana, talvez não lhe<br />
fosse alheia, aos olhos <strong>de</strong> Lima Barreto, qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudança das relações<br />
sociais.<br />
A leitura até aqui apreendida preten<strong>de</strong>u captar algumas nuances do olhar <strong>de</strong><br />
Lima Barreto sobre os <strong>subúrbios</strong> e a cida<strong>de</strong> do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro no início do século XX.<br />
Clara dos Anjos empreen<strong>de</strong> uma ambiciosa exploração das relações <strong>de</strong> classe e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
naquele espaço urbano, bem como das tensões entre a “cida<strong>de</strong>” e o “subúrbio”,<br />
explicitadas na passagem <strong>de</strong> Cassi Jones pelo centro do <strong>Rio</strong>.<br />
Ao fim da trama, Cassi, após incessantes trocas <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> amor, obtém o<br />
consentimento <strong>de</strong> Clara para pular a janela <strong>de</strong> seu quarto. Após alguns dias, Clara
<strong>de</strong>scobre que está grávida; Cassi, a essas alturas, já fugiu para São Paulo. Encorajada<br />
por Margarida, uma vizinha, a moça <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> contar à mãe sobre o ocorrido. A narrativa<br />
culmina com a conversa entre dona Engrácia, Clara e Margarida e a família <strong>de</strong> Cassi<br />
Jones. Clara é humilhada por Salustiana (num misto <strong>de</strong> racismo e preconceito social), o<br />
que leva a personagem principal a tomar consciência <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> inferiorida<strong>de</strong><br />
social, dizendo à mãe que “não somos nada nesta vida” (p. 748).<br />
Menos um cego <strong>de</strong>fensor do que dono <strong>de</strong> um olhar crítico sobre as hierarquias e<br />
convenções suburbanas, Lima Barreto constrói um romance que proporciona a<br />
visualização <strong>de</strong> um multifacetado contexto histórico, do qual ele próprio é parte<br />
integrante e interessada. O escritor percorre com sarcasmo essas convenções, mas, por<br />
outro lado, há sempre a <strong>de</strong>núncia da realida<strong>de</strong> e a tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o universo<br />
dos trabalhadores e da gente simples da região. Chama a atenção a maneira como, em<br />
alguns pontos, a narrativa assume um olhar pretensamente neutro e distanciado, ao<br />
mesmo tempo que avança sobre os <strong>subúrbios</strong> mais distantes, i<strong>de</strong>ntificando os dramas<br />
das classes sociais mais pobres.<br />
Um estudo que pretenda avançar sobre o discurso literário barretiano <strong>de</strong>ve<br />
buscar, a nosso ver, as experiências históricas que são a base da construção <strong>de</strong>sse<br />
discurso. A literatura é uma prática social, e, portanto, não é mero espelho da realida<strong>de</strong>,<br />
nem uma construção in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e apartada do real vivido. Buscar as relações entre a<br />
experiência histórica <strong>de</strong> Lima Barreto – registrada em toda a sua produção intelectual e<br />
em especial na obra memorialística – e a sua produção literária po<strong>de</strong> nos auxiliar a<br />
compreen<strong>de</strong>r a relação dialética entre o texto e o contexto.